Monografia. Letícia Marques Camargo

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    CURSO DE CINICAS SOCIAIS

    MONOGRAFIA

    ORIENTAO: ANA CLAUDIA CRUZ DA SILVA

    Ttulo: A Parentada da Dona Anita Uma etnografia da

    histria a partir de imagens de famlia

    Letcia Marques Camargo

    Niteri, Maro de 2013

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    SUMRIO:

    Resumo.....................................................................................................p.04

    Introduo.................................................................................................p.05

    Capitulo 1: Uma Etnografia da Histria...................................................p.11

    Captulo 2: O Narrador e as Narrativas....................................................p.18

    Captulo 3: Memria e Imagem................................................................p.28

    a. A funo da imagem...................................................................p.28

    b. Observando o observador...........................................................p.33

    Concluso.................................................................................................p.46

    Referncias Bibliogrficas.......................................................................p.48

    Anexo 1- Genealogia da Famlia..............................................................p.50

    IMAGENS

    Imagem 1 - Marqus de Baependi...........................................................p.34

    Imagem 2 - Baro de Juparan................................................................p.35

    Imagem 3- Padrinhos de Anny.................................................................p.36

    Imagem 3- Alfredo e Jacinta....................................................................p.37

    Imagem 5 - Sem legenda..........................................................................p.38

    Imagem 6 -Essa da boa..........................................................................p.39

    Imagem 7 - Muito boa essa, tempo bom lel...........................................p.40

    Imagem 8 - Aurely, Adaury, Waldir e Cludio Luis................................p.41

    Imagem 9 - Sem legenda..........................................................................p.43

    Imagem 10 - Sem legenda........................................................................p.44

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    Dedico este trabalho toda minha famlia, mas

    principalmente a duas pessoas que faleceram enquanto eu j

    estava realizando a pesquisa, pai e filha, Aloy e Ktia: o amor

    que vocs dedicaram famlia Marques dos Santos, o primeiro

    mantendo vivas as nossas histrias, e a segunda, mantendo viva

    a nossa unio, no existe em qualquer lugar. Espero poder

    passar um pouco daquilo que aprendi com vocs, e o legado

    que deixaram foi o amor que se mantm vivo.

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    RESUMO

    A viso de mundo das pessoas o que costumamos chamar de cultura fruto

    dos processos histricos vividos por elas e por seus antepassados, assim como essa

    viso quem produz e legitima sua histria, j que esta sempre parcial e dependente do

    ponto de vista de quem a conta. Assim sendo, histria e antropologia so cincias

    intrinsecamente ligadas, no sendo possvel traar limites reais entre elas. Quando as

    pessoas de uma famlia encaram suas prprias histrias como elemento central de sua

    formao cultural, essa ligao se torna ainda mais visvel. Aqui, irei analisar as

    histrias de uma famlia, que so contadas atravessando geraes e de forma oral, e

    evocadas cotidianamente para expressar a imagem que as pessoas possuem de si

    mesmas e do mundo. Fazendo uma etnografia da histria a partir das imagens de

    famlia compartilhadas virtualmente pelo grupo A parentada da Dona Anita, na rede

    social Facebook, meu objetivo compreender a idia que possuem sobre o significado

    da palavra famlia, e a forma como esta construda, atualizada ou modificada de

    acordo com as ideias que fazem de seu passado.

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    INTRODUO

    Quando partiste chorei

    Mas logo depois lembrei

    O quanto foste bom no mundo

    Pode ser que Deus no fundo,

    Tenha te mandado ir

    Com uma bela esperana:

    Algum anjinho criana

    Quer estorinhas ouvir

    (Maria de Lourdes Marques Camargo)

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    Fazendo uma interface entre antropologia e histria, este trabalho visa

    compreender como as categorias sociais tempo, espao, histria e parentesco so

    pensadas a partir das histrias oralmente reproduzidas por descendentes do Baro de

    Juparan, que d nome a um distrito da cidade de Valena, no interior do Estado do Rio

    de Janeiro, palco de boa parte das histrias que so contadas.

    Tal vilarejo surgiu ao redor de uma fazenda de caf do final do sculo XIX, a

    Fazenda de Santa Mnica, pertencente ao Marqus de Baependi (Manoel Jacintho

    Nogueira da Gama) e sua famlia: a Marquesa de Baependi (Francisca Mnica Carneiro

    da Costa e Gama), e seus filhos Brs Carneiro Nogueira da Costa e Gama (futuro Conde

    de Baependi), Manoel Jacintho Carneiro Nogueira da Costa Gama (Baro de Juparan)

    e Francisco Nicolau Carneiro Nogueira da Costa e Gama (futuro Baro de Santa

    Mnica).1

    Dos filhos do Marqus de Baependi, o Baro de Juparan foi o que travou um

    maior envolvimento com o vilarejo que surgia em volta da fazenda onde morava

    realizando algumas obras que ainda so os principais monumentos da localidade outrora

    chamada Desengano, e que hoje o distrito que leva o seu nome. Nas narrativas dos

    moradores da localidade registradas em uma matria da TV Rio Sul2 no ano de 2010,

    Manoel Jacintho Carneiro Nogueira da Costa e Gama, ou simplesmente o Baro de

    Juparan, possuiu cinco escravas as quais viviam com ele como suas esposas, j que

    ele no teve nenhum casamento oficial. Dessas escravas surgiram cinco ramos

    familiares diferentes, porm com o patriarca em comum. Segundo um folheto publicado

    pela igreja local em 1981, que teve ajuda dos moradores na construo da narrativa que

    l consta, o Baro deixou parte de suas terras para seus filhos como herana, os quais

    chamava de meus protegidos.3 (RAMOS, 1981).

    O trabalho que comea a ser realizado com esta monografia de concluso do

    curso de Cincias Sociais no visa confirmar a veracidade daquilo que narrado, mas

    entender o quanto essas histrias influenciam naquilo que essas pessoas so hoje, o

    quanto esse passado se une ao presente, e pode transformar seus futuros. Neste primeiro

    momento de investimento na pesquisa, realizei algumas entrevistas e participei de

    diversos eventos familiares onde pude conversar com muitas pessoas, porm foi por

    1 Fonte: http://www.geneaminas.com.br/genealogia-mineira/descendentes.asp?codpessoa=28803 acessado

    em 04.03.2013 2 Matria sobre o distrito de Baro de Juparan veiculada pela TV Rio Sul, filiada Rede Globo no o sul

    do Estado do Rio de Janeiro em 22.05.2010. Ver http://riosulnet.globo.com/web/conteudo/5_269106.asp Acessado em 04.03.2013 3 Segundo texto extrado do folheto comemorativo do anivrsrio da igreja local em 1981.

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    meio da rede social Facebook, onde existe um grupo chamado A Parentada da Dona

    Anita, que obtive as mais valiosas informaes para que este texto fosse composto.

    Este grupo formado pelos descendentes diretos do casamento entre um neto do Baro

    de Juparan, Arthur Marques dos Santos, e uma bisneta do mesmo, Ana Mafra

    Marques. Desta unio foram gerados onze filhos: Anny, Aloy, Amaury, Adaury, Anely,

    Aurely, Aury, Analy, Antony, Anacy, Aucy, onde os mais novos foram criados junto

    com os filhos dos irmos mais velhos, e seus filhos foram criados com os netos dos

    irmos mais velhos, dividindo os primos-tios-irmos por geraes4. Separados pelas

    oportunidades que foram surgindo na vida de cada um, estes mantm a casa da v

    como o local de encontro, mesmo que nela no more mais ningum, alm de manter

    desde 19/07/2005 um grupo na rede social Orkut, que mais tarde foi transferido para o

    Facebook.

    Assim, a famlia que havia se distanciado aps a morte da Dona Anita, voltava a

    se relacionar de uma forma completamente diferente, mas que voltou a dar sentido

    ideia de pertencimento que estava adormecida. a partir dessa nova relao que

    comea esta pesquisa, estabelecida em volta das interaes online por onde uma grande

    troca de documentos como fotos, poemas e cartas foi gerada, e por onde os encontros de

    famlia passaram a ser marcados. Este trabalho, porm, no se limitar ao que estou

    propondo neste momento, j que entrevistas j esto sendo realizadas com a inteno de

    conhecer melhor as narrativas da histria dessa famlia - o fio que envolve o sentimento

    de pertencimento a algo maior. Estou tambm coletando documentos junto s famlias

    e aos museus e arquivos nacionais para que uma etnografia da histria seja feita nos

    dois sentidos: Do presente ao passado, focada nas narrativas orais passadas de gerao

    em gerao, e do passado ao presente, dando voz aos documentos, para uma

    contextualizao das histrias orais e uma melhor compreenso dos costumes locais da

    poca.

    No primeiro captulo, procurei demonstrar o que seria a etnografia da Histria

    que pretendo fazer, a partir de uma discusso bibliogrfica com autores que trabalham

    assuntos que relacionam antropologia e histria, pontuando onde se aproximam e onde

    se distanciam enquanto disciplinas. Defendo, a partir principalmente do trabalho de

    Maria Olivia da Cunha, que o trabalho de campo antropolgico pode tambm ser feito

    por meio de arquivos.

    4 Para maiores esclarecimentos, ver genealogia em anexo

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    No segundo captulo exponho os resultados da minha primeira experincia em

    campo, com a entrevista a Osmar (ou Mazinho), a pessoa mais entendida dessas

    histrias de famlia, j que ao abordar outros familiares sobre o assunto, sempre me era

    sugerido procur-lo, pois este era reconhecido como uma espcie de narrador oficial

    da famlia. Pretendo continuar esses encontros com Mazinho e com outros narradores

    que j estou contatando, a fim de apreender melhor o contexto em que essas pessoas

    vivem hoje em dia, assim como, a partir das informaes que so coletadas,

    compreender melhor a ideia que fazem de suas histrias e a influncia que elas possuem

    na formao de suas identidades, em suas vises de mundo e em seus valores culturais.

    Essa parte ser melhor desenvolvida durante o mestrado em antropologia, que ter

    incio em maro de 2013, pela Universidade Federal Fluminense. Este trabalho,

    portanto, constitui apenas um primeiro exerccio, j que tive pouco tempo para coletar

    informaes e desenvolv-lo.

    Outra frente dessa pesquisa desenvolvida no terceiro captulo, no qual utilizo

    os registros fotogrficos de famlia, trocados por meio das comunidades nas redes

    sociais Orkut e Facebook para compreender quais so os sentimentos e impresses que

    transmitem, e como elas podem expor de alguma forma a ideia que cada um faz do

    todo maior que seria a famlia. O diferencial que aqui o campo virtual, onde fao

    uma observao participante, j que tambm fao parte da famlia, o que facilita

    sensivelmente a compreenso dos assuntos tratados. Acreditei ser a internet um bom

    instrumento no apenas para conhecer as percepes de alguns membros da famlia a

    respeito dela mesma, a partir das reaes s imagens antigas, mas tambm para

    desenvolver uma genealogia, iniciada anteriormente por Amaury (pai de Mazinho, j

    falecido), j que hoje existem sites do tipo redes sociais especializados em seu

    desenvolvimento, que colocam em contato pessoas que possuem parentes em

    comum5. O trabalho de campo junto a grupos virtuais algo que vem sendo explorado

    por alguns cientistas sociais, mas ainda no muito reconhecido, como expe a

    antroploga Rita Amaral:

    Se muitos antroplogos ainda no consideram o computador como um

    instrumento de pesquisa, a maior parte de nossa "tribo" j utiliza com

    familiaridade seu computador pessoal como processador de texto e

    boa parte dela tambm como via de acesso Internet para enviar

    mensagens eletrnicas (e-mails) para os colegas. Tem-se deixado,

    entretanto, de explorar os recursos do computador como instrumento

    5 Infelizmente muitos so pagos, portanto tive um acesso restrito

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    de pesquisas, e no apenas para a organizao e anlise estatstica dos

    dados que recolhemos em campo (quando dominamos a

    operacionalizao dos programas -softwares- indicados para estas

    finalidades). O que pretendo levantar como tema de discusso aqui o

    fato de que, devido imensa versatilidade advinda no apenas da

    simplificao do uso dos programas, mas tambm das novas

    facilidades de acesso rede Internet, os computadores podem e devem

    ser usados efetivamente para a realizao de pesquisas qualitativas

    pelos cientistas sociais. (AMARAL, 2001, p. 31)

    Este trabalho no um resultado final, mas uma pequena mostra do que ser

    melhor desenvolvido durante o mestrado. Vejo-o apenas como um intenso exerccio que

    me possibilitou clarear algumas dvidas que havia quanto aos meus objetivos, j que

    realizo uma pesquisa com minha prpria famlia. Pode ser que as dvidas sempre

    estejam presentes, mas agora consigo visualizar um caminho por onde seguir sem que

    gere qualquer tipo de conflito interno entre a Letcia filha, neta ou prima e a Letcia

    antroploga. Ser sempre essa balana a responsvel pelo o que visto como relevante

    para a minha pesquisa, sem extrapolar os limites entre uma e outra, mas tendo em mente

    preocupaes genunas em questionar o que no poderia ser questionado se no

    estivesse na posio de cientista. Olhar para essas histrias enraizadas e naturalizadas

    no contexto familiar de forma crtica um esforo a que me lano sabendo das

    dificuldades apresentadas. O prprio Malinowski, em 1939, apoiou um antroplogo

    chins, Hsiao-Tung Fei, para que publicasse sua pesquisa entre os camponeses chineses,

    ciente que o trabalho de campo entre os seus era mais difcil, porm mais valioso.

    Marisa Peirano demonstra que Malinowski no foi o nico a incentivar pesquisas feitas

    por nativos entre nativos:

    Se Malinowski nos surpreende por sua postura ousada, ele no

    estava sozinho. A aprovao que Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard

    deram ao estudo de M. N. Srinivas sobre os Coorgs indianos sugere

    que o cnone pode ter se desenvolvido independente das prticas.

    (PEIRANO, 1997, p.72)

    Buscar o no contado dentro do contado, o no explcito dentro do familiar;

    ouvir novamente as histrias que estavam esquecidas, agora com um novo olhar. Um

    olhar que aprendi durante toda a graduao em Cincias Sociais, de ultrapassar a

    superfcie para compreender o que h por dentro, qual o papel dessas histrias para a

    manuteno dos valores que criam a ideia de pertencimento ou na perspectiva analisada

    mais profundamente por este trabalho: quais so as funes das imagens ao serem

  • 10

    compartilhadas pelo grupo, quais sentimentos e lembranas despertam nos parentes, e

    como produzem eficazmente um sentimento de pertencimento.

  • 11

    CAPTULO 1 UMA ETNOGRAFIA DA HISTRIA

    Quando me propus a realizar uma etnografia da Histria6, tinha em mente

    desenvolver uma forma de abordar a histria antropologicamente, observar os tipos de

    histria produzidos e o porqu de essas histrias serem acionadas. A proposta tratar a

    histria como um objeto visando produzir um trabalho genuinamente antropolgico.

    Desde o surgimento da Antropologia como uma cincia social, sua relao com

    a Histria de movimentos contnuos de aproximao e de afastamento. A histria da

    antropologia apresenta momentos em que foi necessrio delimitar melhor os espaos de

    cada uma dessas duas disciplinas, assim como em outros momentos foi preciso afrouxar

    esses limites para que se compreendesse melhor a dinamicidade das culturas.

    Lvi-Strauss , sem dvida, um dos antroplogos mais importantes quando se

    trata de pensar a relao entre Antropologia e Histria. Por conceber a origem simblica

    do social em oposio ao que era concebido pela Escola Sociolgica Francesa, em que os

    smbolos se originariam do social, Lvi-Strauss toma a linguagem como modelo para

    compreender os outros sistemas simblicos. A lngua seria um sistema de signos, uma

    unidade de sentido da linguagem/fala (parole), ou seja, seria a potencialidade do ato de

    falar. Segundo este modelo, a histria sempre ocuparia uma posio secundria, pois

    no se relacionaria diretamente com a estrutura, j que a potncia, o falar, no seria

    modificvel pelo contexto. Sua importncia se resumiria revelao das estruturas, tal

    qual acontece com os fenmenos sociais de maneira geral. Os objetivos de Lvi-Strauss

    so, portanto, diferentes dos de Marshall Sahlins, j que este ltimo tenta perceber a

    dinmica da estrutura dentro de uma determinada cultura, enquanto Lvi-Strauss tenta

    perceber as estruturas de um ponto de vista mais distanciado:

    [A] antropologia estrutural funda-se numa oposio binria que se

    tornou sua marca registrada: uma oposio radical em relao

    histria. Trabalhando a partir do modelo saussuriano da lngua como

    objeto cientfico, o estruturalismo similarmente privilegia o sistema

    em detrimento do evento, e a sincronia no lugar da diacronia.

    Seguindo uma via paralela quela da distino saussuriana entre a

    lngua (la langue) e a fala (la parole), a anlise estrutural parece

    tambm excluir a ao individual e a prtica mundana, exceto quando

    estas representam a projeo ou execuo do sistema vigente.

    6 Termo elaborado em conjunto com a minha Orientadora, a Prof Ana Cludia Cruz da Silva. A

    principio, chamei de antropologia da histria, termo utilizado tambm por outros autores, notadamente Schwarcz. A ideia de fazer uma etnografia da histria, como sugerido por minha orientadora, adequa-se melhor proposta de perceber a histria em uso pelos agentes sociais.

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    Argumentarei aqui, sobretudo por meio de demonstraes concretas,

    que esses escrpulos todos no so de fato necessrios; que possvel

    determinar estruturas na histria e vice-versa. (SAHLINS, 2008,

    p.19).

    Em outro polo, Sahlins admite que nenhum povo se relaciona de maneira

    exclusivamente utilitria. Existem questes utilitrias, porm estas se enquadram nos

    mitos e na lgica nativa. Admite-se que o interesse norteia as aes, porm que os

    atores sociais utilizam-se dos signos de valor como meio para um fim. O interesse que

    se tem em algo no possui uma ligao intrnseca com o valor convencional, mesmo

    que esse valor intencional derive do valor convencional, toma-se aqui uma perspectiva

    que deixa margem a uma experincia pessoal, que no se admite na chave estruturalista.

    Segundo Sahlins, na ao que os conceitos fazem sentido, e da mesma forma por

    meio dos signos que as pessoas agem.

    Sahlins supera o problema da histria (ou no histria) no estruturalismo quando

    demonstra que no h uma nica histria, e sim historicidades. As historicidades seriam

    pontos de vistas, ou cosmologias que estariam envolvidas com os mitos que cada

    cultura possui.

    O mito, dessa forma, est conectado ao presente, faz parte de uma realidade

    prtica e ao mesmo tempo possui uma esfera filosfica e estrutural. Estrutura e evento

    no so antagnicos, esto presentes simultaneamente e se influenciam mutuamente. A

    compreenso do evento atual, do presente, se d tambm pelo passado. diante dessa

    evidncia que se pode afirmar que antropologia e histria so, na realidade, frutos de

    uma cosmologia tanto dialtica quanto estrutural.

    Para Joana Overing, assim como para Sahlins, esses julgamentos sobre o que faz

    parte da histria e o que no faz tm a ver com o conceito de histria que se referencia.

    Ao invs de assumir uma posio entre o universalismo ou o extremo relativismo, como

    a antropologia adaptou-se, Overing concebe que o outro produz questes diferentes,

    as quais devem ser respondidas de formas diferentes. Em oposio s preocupaes

    cartesianas ligadas objetividade, as quais suprimem aquilo que ela chama de

    temporal, local e prtico, Overing prope que [o] realmente construdo tambm

    real, e portanto tem efeito real sobre as aes no mundo. Dessa forma, tanto modelos

    culturais valorativos, como o modelo objetivo e cientfico esto diretamente ligados

    com a teoria social local. (OVERING, 1995, p. 129)

  • 13

    O caso que este trabalho analisa se refere a uma cultura que existe em um espao

    ocidental, portanto a historicidade presente nesta localidade faz parte da noo de

    histria ocidental. Porm, mesmo em sociedades ocidentais existem possibilidades

    mltiplas de compreenso e assimilao da histria. Segundo Lilia Schwarcz:

    (...) Assim, a autoconscincia histrica faz parte de culturas que

    trazem para dentro de si tal movimento progressivo, o que faria da

    nossa sociedade, uma sociedade a favor da histria. Mas o perigo de

    apostar nessa viso unitria caricaturar a ns mesmos. Se outras

    sociedades carregam histrias no plural, tambm o Ocidente no

    s (e sempre) um conjunto de sociedades que se pauta pela

    cronologia. (SCHWARCZ, 2005, p. 130)

    Possuir os mesmos instrumentos e regras para contar o tempo no significa que

    ele visto da mesma maneira pelas mais diversas sociedades ocidentais.

    A prpria Histria, enquanto cincia, passa a estar atenta a estas questes a partir

    de 1929, com a fundao da revista Annales dHistoire Economique et Sociale, que

    sofre bastante influncia das Cincias Sociais. Neste movimento, autores como Braudel,

    Lucien Febvre, e Marc Bloch conduziram a nova histria em direo independncia

    da disciplina em relao ao ponto de vista do Estado, recusando a ideia de tempo linear

    prprio do ideal progressista do evolucionismo. (REIS, 2000, p. 67). Sob a influncia

    desses autores, vieram geraes de historiadores preocupados com o fazer da histria,

    com o oficio do historiador e a seleo que feita a partir de um olhar influenciado por

    sua prpria cultura. Carlo Guisnburg e Robert Darnton so exemplos contemporneos

    que atuam no campo da histria, porm por uma via bem prxima da perspectiva

    antropolgica. Guinsburg, em Olhos de Madeira (2001), apresenta nove ensaios sobre a

    influncia dos contatos com outras culturas na histria da civilizao europeia, adotando

    uma perspectiva positiva sobre os convvios interculturais, bastante prxima ideia de

    progresso apresentada por Lvi-Strauss no texto Raa e Histria (1976). Darnton, em O

    Grande Massacre dos Gatos (2000), utiliza-se de um mtodo hermenutico, aquele

    mesmo defendido por Geertz em A Interpretao das Culturas (1989), ao pintar com

    maestria um belo quadro sobre os homens comuns da Frana do sculo XVIII. O

    captulo que d ttulo ao livro narra um curioso massacre desses felinos (como o nome

    do livro j diz) ocorrido em Paris, tendo como pano de fundo as crenas na feitiaria e

    como fonte o relato de um tipgrafo que vivenciou tal evento. Essa abertura do campo

    de viso da histria, contra as perspectivas positivistas, introduziu novos instrumentos

    metodolgicos e teve como resultado histrias de autoapresentao, autopercepo, to

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    legitimas quanto qualquer outra maneira de se fazer a Histria. Nathan Wachel, em

    sua aula inaugural no Collge de France (1993), expe alguns pontos interessantes sobre

    esta relao entre a antropologia e a histria:

    No se trata de justapor as duas disciplinas, mas de associ-las

    intimamente. Minha dupla experincia dos arquivos e do campo me

    permitiu verificar que as suas perspectivas, longe de se oporem, so

    verdadeiramente complementares. De fato, a pesquisa de campo no

    procura somente uma coleo de dados empricos, sob a forma de

    inventrio: esses se inscrevem numa sociedade viva, onde se prope

    deixar a aparecer as coerncias internas, as contradies e lgicas

    subjacentes. No sendo apenas uma questo de projetar

    mecanicamente o presente no passado, essas anlises, na sincronia,

    podem dar conta de fenmenos mais antigos. O mtodo regressivo

    procede, ento, do mais ao menos conhecido, e do resultado final ao

    esboo. Percebe-se, a partir do presente, do interior, as regras lgicas

    que [o] ordenam (...). O inqurito histrico, por seu lado, se esfora

    em descobrir o que a tradio oral no grava ou no transmite. (...) A

    regresso ao passado tenta voltar at a sua gnese, enquanto a

    perspectiva histrica a situa na durao: trata-se ento de colocar em

    evidncia as compatibilidades ou as contradies entre as diferentes

    lgicas, as defasagens entre ritmos temporais que os afetam as

    continuidades as rupturas, as gestaes em obra, as separaes entre

    morto e vivo. (WACHEL, 1995, p. 14)

    Essa percepo do passado pelo presente, segundo Wachel, seria uma forma de

    abordagem dentro do trabalho de campo, enquanto o que ele chama de inqurito

    histrico, seriam as anlises de documentos de poca. Na perspectiva desse autor,

    ambas se complementariam e possibilitariam uma percepo mais apurada se analisadas

    em conjunto.

    Se Wachel enquanto historiador percebe na antropologia uma boa parceria para

    produzir um texto histrico mais rico, a antropologia tambm adota novas perspectivas

    diante de um mundo onde grande parte das sociedades passa a produzir documentos, e

    sociedades como a presente na etnografia de Malinowski j no so encontradas com

    facilidade. Cresce ento o interesse, por parte dos antroplogos, de se estudar

    sociedades ocidentais, e estes passam a buscar outras fontes alm da observao

  • 15

    participante, metodologia criada por Malinowski durante sua pesquisa entre os

    trobriandeses, registrada na introduo do livro Os Argonautas do Pacfico Ocidental

    (1973). Emerson Giumbelli questiona a preferncia da antropologia pela pesquisa de

    campo tradicional, observando que para se realizar uma antropologia em sociedades

    complexas pode-se tomar como referncias outros mtodos para que o trabalho fique

    mais completo:

    (...) Em relao propriamente a questes metodolgicas, a mesma

    operao pode ter implicaes que considero igualmente

    problemticas. Uma possibilidade que o trabalho de campo acabe,

    em vez de abrigar ou traduzir, subsumindo um conjunto geralmente

    plural de tcnicas e abordagens. Essa subsuno tende a dispensar

    uma reflexo sobre as prprias tcnicas e abordagens, vrias delas no

    exclusivas antropologia. Outra possibilidade, que, quando se trata

    da antropologia das sociedades complexas (ou qualquer de seus

    equivalentes), a metodologia acabe pensada como uma composio

    entre tcnicas antropolgicas (o trabalho de campo) e tcnicas no

    antropolgicas (tudo o que no implique em contato direto e

    intens(iv)o com os nativos), como se esse pesquisador fosse menos

    antroplogo do que aqueles que se dedicaram integralmente ao

    trabalho de campo. (GIUMBELLI, 2002, p. 94)

    A antropologia no deve se limitar apenas ao seu mtodo mais consagrado,

    podendo, sim, utilizar de outros meios sem que precise se justificar com seus pares. A

    noo do que o campo deve ser ampliada, j que a pretenso do pesquisador que no

    convive diretamente com seus nativos no a de produzir um olhar distanciado do

    olhar antropolgico. Segundo Celso Castro e Olivia Maria Gomes da Cunha:

    Apesar de vrios antroplogos importantes terem feito pouca ou

    nenhuma pesquisa de campo no sentido malinowiskiano Mauss e

    Lvi-Strauss so dois exemplos eloquentes -, o trabalho de campo

    permanece como marca distintiva da disciplina aos olhos dos no-

    antroplogos, bem como um ritual de passagem identitrio para os

    prprios antroplogos, como se quem no fizesse trabalho de campo

    no fosse realmente antroplogo (CASTRO; CUNHA, 2005, p. 2)

    Com a abertura que ocorre quanto definio do campo dentro do trabalho

    antropolgico, principalmente a partir dos anos de 1980, os arquivos foram tomados

    como fontes vlidas para a produo da pesquisa etnogrfica. Assumindo que os

    arquivos foram criados por propsitos coloniais para classificar as informaes de que o

    Estado necessita, e preservados como se houvessem sido criados de forma imparcial,

    Olvia Maria da Cunha percebe que estes, mesmo no guardando segredos, vestgios,

  • 16

    eventos e passados (p.292), informam muito sobre eles prprios e os contextos de sua

    poca:

    (...) [os Arquivos] Sinalizam, portanto, temporalidades mltiplas

    inscritas em eventos e estruturas sociais transformados em narrativas

    subsumidas cronologia da histria por meio de artifcios

    classificatrios. Tais tentativas de inscrever evento e estrutura na

    topografia dos arquivos implicam procedimentos constantes de

    transformao. Os arquivos tornaram-se ento territrios onde a

    histria no buscada, mas contestada, uma vez que constituem loci

    nos quais outras historicidades so suprimidas (...). Assim, o carter

    artificial, polifnico e contingente das informaes contidas nos

    arquivos bem como as modalidades de uso e leituras que ensejam

    tm sido repensados (...). (CUNHA, 2004, p.292)

    Cunha aponta para diferenas entre a forma como se dialoga com arquivos ou

    com pessoas, porm existe uma paridade quanto maneira de produzir uma anlise, j

    que na antropologia no somente se interpreta o que dito, mas se pretende

    compreender os contextos inscritos socialmente ou simbolicamente. Arquivos so,

    portanto, produzidos por pessoas.

    Para construir este primeiro exerccio, tento fazer uma etnografia da histria.

    Para isso irei utilizar como fontes principais as fotografias de famlia compartilhadas

    por meio da rede social Facebook, onde esta famlia possui um grupo chamado A

    Parentada da Dona Anita. Estes arquivos remetem memria da famlia e geram os

    mais diversos tipos de comentrios destes membros. Simultaneamente ao que o grupo

    envia de forma espontnea, tambm participo enviando arquivos que recupero por meio

    dos lbuns antigos de minha famlia nuclear e de grupos virtuais que trabalham com

    genealogias7, tentando compreender a forma como estes parentes reagem quando

    expostos s imagens de um passado do qual no fizeram parte de forma direta. A

    proposta de uma etnografia da histria tambm passa pelo trabalho de campo

    tradicional, por meio de entrevistas com aqueles que possuem o reconhecimento de toda

    famlia como narradores. Trabalhando nestas duas frentes, pretendo compreender

    melhor o papel das histrias, acessadas por meio das imagens compartilhadas

    virtualmente, ou por meio da narrativa oral das histrias de famlia. Olho, portanto, para a

    mudana (o relacionamento familiar virtual), focando naquilo que permanece, e o que fica so

    as histrias de famlia, que perpassam os parentes de uma forma ou de outra, mesmo que em

    nveis diferentes. Existem aqueles que dizem que no sabem delas, mas sabem e no querem

    7 Como o www.myheritage.com (acessado em 04.03.2013)

  • 17

    contar. Existem aqueles que dizem igualmente que no sabem, mas quando se insiste mais um

    pouco, contam muitssimo bem. Existem ainda os narradores, os que sabem das histrias e no

    negam, e gostam de pass-las adiante. Esses foram os primeiros que apareceram, j que vivi

    uma grande resistncia por parte dos meus parentes mais prximos, que me fizeram buscar os

    narradores oficiais, e foi somente aps esse primeiro momento que eu consegui perceber

    alguns dos motivos para que essas histrias no fossem narradas na mesma proporo por todos

    os membros da famlia. Uma delas de que a funo de narrador passada de pai para filho.

    No prximo captulo, irei discutir sobre essa funo de narrador, quem a assume

    e em quais momentos essas histrias so contadas para a famlia, como os ouvintes vo

    se agrupando e como participam do evento. Quais so as temticas das narrativas, e

    quais sentimentos provocam quando evocadas.

  • 18

    CAPTULO 2. O NARRADOR E AS NARRATIVAS

    A Casa da Vov

    A casa nova bela, cheia de luz.

    no tem sombras nem quando a noite chega.

    No tem tristezas,

    nem traz ms recordaes.

    Tem flores e um grande quintal,

    seus frutos so beliscados por pardais

    e no por morcegos.

    - Talvez seja l que nasa o arco-ris...

    Tantas crianas

    tantos irmos

    tantas traquinagens...!

    Se um dia passarem por ali

    na minha cidade natal

    olhem para uma casa

    meio escondida entre as rvores

    precedida por um riacho

    e um bambuzal

    Ouam os risos.

    Sintam a alegria.

    natural.

    Ali vive a felicidade

    - a casa da vov!

    (Maria de Lourdes Marques Camargo)

    A famlia como a varola: a gente tem quando criana e fica marcado

    para o resto da vida.

    (Jean- Paul Sartre)

  • 19

    Uma casa alegre, cheia de gente parecida. O cheiro do fogo a lenha era forte, e

    estranho ao meu nariz acostumado aos aromas da comida feita a gs. Bonecas de loua

    da Tia Anely eram meus primeiros pensamentos, e sempre voltava para casa com uma

    para mim. Logo meu mundo era povoado por muitas histrias: - V, por que voc est

    de terno nessa foto?, no sou eu, o meu pai. E Dona Anita na varanda, com seus

    poucos cabelos brancos que nunca viram tinta e no diziam a idade que tinha, contava

    para as crianas suas histrias de infncia: No lembro os nomes de todos os meus

    filhos, mas a minha infncia ainda est clara na minha cabea. Eu e ela, de mos

    atadas: uma senhorinha de oitenta e muitos, uma menininha de pouqussima idade,

    compartilhavam suas infncias. Logo essas histrias que me faziam sonhar foram

    sumindo e perderam o lugar em minha imaginao, principalmente quando vieram

    outros assuntos mais interessantes na concepo de uma cabea adolescente. Anos

    antes, outra menininha (a que escrevia o poema acima), tambm vivia seus sonhos nessa

    mesma casa povoada por essa gente parecida. Minha me tambm diz ter se esquecido

    das histrias que eram contadas, mas a magia que envolvia sua infncia na casa da

    vov ficou registrada nesta poesia, e esse pertencimento famlia algo que

    permanece bem vivo.

    Analiso o ato de contar histrias como uma tradio dentro desta famlia, que

    passada, primeira vista, de forma aleatria, porm ao perguntar para os membros do

    grupo A Parentada da Dona Anita do Facebook quem eram as pessoas j falecidas

    que contavam as histrias da famlia, percebi que existe certa hereditariedade

    naqueles que contavam para aqueles que sabem destas hoje em dia8. Obviamente que o

    dom da narrativa no algo biologicamente herdado, porm a meu ver existem dois

    motivos para que essas histrias permaneam sendo contadas por uns e no por outros.

    O primeiro a arte que passada oralmente de pai para filho. Uma histria no

    contada uma vez s; so histrias que se repetem (mesmo que nunca da mesma forma)

    nos encontros entre estes, que chamarei de narradores, e a famlia. Provavelmente,

    elas no so apenas contadas nesses grandes encontros, mas se repetem com muito mais

    frequncia dentro da famlia nuclear. Portanto, as histrias so construdas junto com os

    ouvintes interessados que se encontram mais prximos, ou seja, os seus filhos. Outro

    motivo para essas histrias permanecerem em determinadas famlias a proximidade

    8 Ver em anexo 1 a genealogia. Nela esto grifadas as pessoas que contavam as histrias e as que contam

    hoje em dia.

  • 20

    com o epicentro das histrias narradas. Quanto mais prximo do distrito de Baro de

    Juparan essa famlia est, mais quente a lembrana do passado fica, porm todos os

    membros da famlia se relacionam com essas histrias em nveis diferentes. Para Ecla

    Bosi:

    As lembranas do grupo domstico persistem matizadas em

    cada um dos seus membros e constituem uma memria ao mesmo

    tempo una e diferenciada. Trocando opinies, dialogando sobre tudo,

    suas lembranas guardam vnculos difceis de separar. Os vnculos

    podem persistir mesmo quando se desagregou o ncleo onde sua

    histria teve origem. Esse enraizamento num solo comum transcende

    o sentimento individual. (BOSI, 1994, p.423)

    Assim, mesmo que esta famlia formada pelos filhos e netos de Dona Anita e

    Arthur esteja h setenta anos fora do distrito de Baro de Juparan, as histrias esto

    enraizadas no em um solo material, mas em um plano simblico. Porm, existem

    aqueles que vivem nas proximidades de Vassouras, Valena e Barra do Pira. Nessas

    localidades, a memria das histrias dos Bares do Caf se mistura aos trilhos da

    ferrovia que as cruzam, ficando mais vivas a cada apito do trem. Esses que l vivem so

    narradores, contudo, por mais que assumam a postura de serem os contadores oficiais,

    todos os ouvintes participam ativamente na construo dessas narrativas, trocando

    informaes sobre aquilo que ouviram de outros narradores ou de seus parentes mais

    prximos, dando forma e existncia quase que material ao passado. Outro ponto que se

    pode observar nessas narrativas a temporalidade diferenciada. Mesmo que haja um

    esforo para localiz-las no tempo, essas histrias longnquas vo se misturando s

    histrias vividas pelo prprio narrador, o que as aproximam deste, e de forma indireta

    daqueles que as ouvem. Para Walter Benjamim, a relao que o narrador estabelece

    uma relao artesanal:

    Podemos ir mais longe e perguntar se a relao entre o

    narrador e sua matria - a vida humana - no seria ela prpria uma

    relao artesanal. No seria sua tarefa trabalhar a matria-prima da

    experincia - a sua e a dos outros - transformando-a num produto

    slido, til e nico? (BENJAMIM, 1994, p. 211)

  • 21

    Se para Benjamim, as histrias so produtos de um trabalho artesanal, que no

    caso analisado um oficio compartilhado dentro do ambiente familiar, qual seria a

    funo e a utilidade desses produtos? Para compreender essa funo aqui, vou analisar

    as preocupaes de Benjamim e Bosi quanto s mudanas provocadas pela

    modernidade. Para Benjamim, a arte de narrar est em vias de extino, j que menos

    pessoas sabem narrar histrias. Para o autor, isso acontece com o surgimento do

    romance, no incio do perodo moderno, junto com a imprensa. A diferena de uma

    narrativa oral para um romance que este ltimo est essencialmente ligado ao livro.

    Enquanto a narrativa uniria as pessoas no ato de contar as histrias, o romance as

    isolaria, j que uma leitura individual. Outro motivo para o declnio dos contadores de

    histria seria os propsitos da imprensa, que com a ascenso da burguesia inaugurou

    uma nova forma de comunicao baseada na informao. A informao verificvel,

    se compromete com o hoje, e por isso algo efmero, que no produz um sentido, no

    construindo uma relao direta com a memria. Para Benjamim, o que vinha de longe

    (no tempo ou no espao) possua uma autoridade que hoje vem sendo tomada pela

    frivolidade das informaes imediatas.

    Por outro lado, Bosi v que com a modernidade, a famlia que outrora era

    composta por muitos parentes, primos, tios, padrinhos, hoje se restringe ao grupo

    conjugal e seus filhos:

    Nos moldes de hoje a famlia em estrito senso rema contra

    a mar de uma sociedade concorrencial, onde a perda de um de seus

    poucos apoios absoluta e irremedivel. Falta-lhe o envolvimento da

    grande famlia de outrora em que o bando de primos fazia as vezes de

    irmos, e onde tios, parentes e agregados acompanhavam a criana

    desde o bero. (BOSI, 1994, p.423)

    As preocupaes de ambos os autores so legtimas, porm nem os narradores

    nem a famlia extensa chegaro ao fim. Para poder ver que este fim no est prximo

    preciso no generalizar as verdades dos centros urbanos, j que, primeira vista,

    fcil comprovar essa hiptese, porm, se distanciando poucos quilmetros das capitais,

    pode-se encontrar facilmente modelos familiares mais prximos dos modelos

    considerados tradicionais. Relegar a permanncia dessas famlias no interior tendo em

    mente a oposio entre centro x periferia seria cair mais uma vez no erro, j que seria

    necessrio observar mais de perto as famlias nos centros urbanos para poder perceber a

  • 22

    permanncia ou no da famlia extensa. A famlia que pesquiso utiliza desde 2005 a

    internet como meio de manter a relao que existia anteriormente com mais facilidade

    fisicamente. As necessidades de uma vida regrada pelo trabalho e pelas oportunidades

    financeiras obrigaram os parentes que viviam em uma proximidade grande a se

    separarem. Parte migrou para So Paulo, parte para o Rio de Janeiro, outras pessoas

    foram das cidades pequenas para as cidades medianas do sul do Estado do Rio de

    Janeiro, como Barra do Pira, Volta Redonda e Resende. Alguns foram para o exterior,

    como Canad e Sua, onde l vivem mas voltam algumas vezes por ano, e outros

    permaneceram nas redondezas de Baro de Juparan, como Demtrio Ribeiro e Mendes.

    Com o advento das redes sociais que tiveram um boom em meados dos anos 2000, a

    famlia volta a se comunicar de forma mais assdua. Os encontros voltaram a ser mais

    constantes quando a casa da v foi reformada por Katia, neta criada como filha mais

    nova de Ana Mafra (Dona Anita). E em 2006 foi comemorado o centenrio da Dona

    Anita, dez anos aps sua morte. Esse evento marcou simbolicamente o esforo desta

    famlia por manter-se em unio permanente. Um dos smbolos disso foi a criao na

    comunidade do Orkut, de um tpico intitulado carto de ponto, onde diariamente os

    membros se manifestavam. Dessa forma, a modernidade que primeiramente fez com

    que a famlia se afastasse, fez, em um segundo momento, que se reaproximasse de uma

    maneira nova. As histrias, portanto, continuaram latentes tanto nas redes sociais

    quanto nos eventos familiares. Esses novos encontros foram tambm o reencontro com

    as histrias, principalmente pela voz dos narradores, geralmente os membros mais

    velhos da famlia, alguns dos filhos da Dona Anita. Infelizmente, nos ltimos dois anos,

    os dois ltimos senhorezinhos contadores de histria, Amaury e Aloy, faleceram.

    Meses antes de Aloy falecer, em 2011, quando eu j estava estudando abordar este tema

    na monografia de concluso do curso de Cincias Sociais, pude participar de uma festa

    de famlia, onde algumas histrias foram narradas por ele.

    Era a comemorao do aniversrio de dois membros da famlia: Adaury, um dos

    filhos de Arthur e Anita, e Beto, marido de Katia. A festa acontecia do lado de fora da

    casa, em volta da piscina, em um churrasco animado, enquanto dentro da casa algumas

    pessoas permaneciam assistindo a um jogo de futebol. Sentado mesa na antessala se

    encontrava Aloy, um pouco deslocado, solitrio e pensativo. Foi quando fui falar com

    ele que, emocionado, comeou a falar de minha me e de minha av. A partir da,

    muitas histrias foram lembradas da infncia deles, ou de quando minha av foi estudar

    no Rio. Histrias sobre o Baro de Juparan e Duque de Caxias (j que, segundo Aloy,

  • 23

    foi seu av - pai de seu pai - quem cuidou de Duque de Caxias quando senil viveu com

    a filha na Fazenda Santa Mnica), se misturavam com as histrias de sua vida e de sua

    carreira profissional como enfermeiro. Histrias sobre a linha do trem, esta mesma que

    passa na frente da casa em que estvamos, j que seu pai foi chefe da estao velha de

    Mendes. Aos poucos outras pessoas chegavam perto para participar da conversa. A festa

    continuava acontecendo do lado de fora com msica alta, crianas na piscina e

    conversas informais, enquanto do lado de dentro se ouviam as histrias, narradas num

    tom de voz baixo e tranquilo. Ambos os momentos eram importantes para que o

    sentimento de pertencimento fosse afirmado naquele evento, sendo esse seu objetivo.

    Algo similar aconteceu no dia em que marquei minha primeira entrevista, j

    ciente de que este seria o tema da minha pesquisa. O narrador em questo era Osmar, ou

    Mazinho, filho de Amaury, falecido h alguns anos atrs, como mencionado. Amaury

    foi o responsvel pela genealogia que se encontra em anexo, e segundo as pessoas com

    quem conversei, este era um dos irmos que mais sabia das histrias. Seguindo a

    lgica, seus filhos tambm so os que mais sabem das histrias nesse ncleo familiar9.

    Como Mazinho morador de Mendes, marcamos nosso encontro durante um almoo

    promovido na casa de tio Adaury, onde eu estava hospedada naquele final de semana.

    Eu havia arrumado uma cmera emprestada com um primo, e a coloquei na sala para

    que filmasse o sof onde ele se sentaria. Assim que ele acabou de almoar, fomos para a

    sala, porm o restante da famlia que estava presente, acreditando ser um assunto srio

    j que se tratava de uma pesquisa, deixou que Mazinho e eu conversssemos sozinhos.

    Aos poucos as pessoas viram que se tratava de assuntos da famlia e foram chegando

    um a um, at todos estarem conversando na sala. A partir da, as histrias que estavam

    um pouco vazias e sem graa (pois eu no sabia muita coisa para contribuir com a

    narrativa de Osmar), ficaram muito mais interessantes. Essas narrativas foram

    construdas por Mazinho a partir da perspectiva de Amaury, que era ferrovirio como o

    pai, portanto, as histrias se iniciam margeadas pelas linhas do trem criadas por D.

    Pedro II naquela regio, e terminam com um sentimento de tristeza quanto ao abandono

    das ferrovias brasileiras.

    Mazinho, ao se sentar para a nossa conversa, demonstrou como era que o vov

    Arthur se sentava quando ia contar alguma histria, ou tomar a tabuada dos seus netos:

    suas lembranas comeavam por a, na forma como as histrias foram ouvidas por ele

    9 Filhos e netos de Anita e Arthur.

  • 24

    nas primeiras vezes. Ele inicia sua narrativa estabelecendo uma origem para essas

    histrias, e ela est bem l atrs, com a invaso de Napoleo a Portugal. Segundo ele,

    existia uma regra que ditava que os Marqueses eram assim intitulados por serem

    parentes do Rei, o que explicaria a proximidade do Marqus de Baependi com a corte.

    Mazinho conta que o Marqus de Baependi era ministro das relaes exteriores, cargo

    que hoje se confunde com o ministrio da fazenda. Por isso, foi passar um ano na

    Inglaterra a fim de pedir dinheiro emprestado ao Brasil aps a independncia, e

    durante esse tempo que a Marquesa, sua esposa, engravida de seu filho Manoel Jacintho

    Carneiro Nogueira da Costa e Gama, que viria a ser o futuro Baro de Juparan.

    Segundo ele, como a Marquesa e o Imperador Dom Pedro I eram muito prximos, este

    seria o primeiro na lista dos possveis pais do Baro.

    Em seguida, Mazinho conta o motivo de o Baro de Juparan ter ficado solteiro.

    Este seria apaixonado por sua prima Luiza Loreto Vianna de Lima e Silva, que era

    tambm filha do Duque de Caxias. Porm, segundo meu interlocutor, seu irmo tambm

    se apaixonou pela prima e acabou pedindo a mo dela em casamento antes do Baro de

    Juparan. Desiludido, este teria permanecido solteiro, e tomou como suas esposas

    cinco escravas: Emlia, Geralda, Manoela, Florenciana e Dora. Osmar disse ainda que o

    nosso ramo familiar viria da Florenciana, da qual meu bisav Arthur era neto e minha

    bisav Ana Mafra era bisneta, ou seja, os dois tambm estavam ligados por laos de

    parentesco.

    Segundo Mazinho, Cati, uma das primeiras filhas do Baro, teve um filho com

    seu prprio cunhado, Brs Giffone, casado com uma de suas irms. Esse irmo de

    Arthur, Alfredo, deu origem famlia Giffone que ainda reside no distrito de Baro de

    Juparan. Essas pessoas ajudaram a redigir o folheto comemorativo dos 100 anos da

    Igreja de Nossa Senhora do Patrocnio (1981) da localidade, onde foi feito um

    compilado de algumas histrias sabidas pelos moradores de l. Neste folheto, a

    bondade do Baro de Juparan relatada como uma de suas maiores virtudes. Alm

    da igreja, o Baro ainda trouxe para o distrito a estao da Estrada de Ferro D. Pedro II,

    obra que teve como pano de fundo uma disputa entre este e o Baro de Vassouras, e

    que, segundo narra o folheto, por conta disso que o vilarejo que hoje leva o nome do

    Baro recebeu primeiramente o nome de Desengano, em comemorao decepo de

    seus rivais. Mais um motivo para justificar a ideia de bondade do Baro segundo as

    informaes deste folheto, que quando faleceu, o Baro de Juparan deixou parte de

    suas terras para seus filhos, que chamava de meus protegidos. Entre elas est a

  • 25

    Fazenda Bom Retiro, onde, segundo Mazinho, vivia a v Rosina av de Anita e tia de

    Arthur, e onde ambos foram criados. Mazinho conta uma histria presenciada por Dona

    Anita quando criana:

    V Rosina era parente dos escravos da fazenda, ento ela nunca os

    maltratou. E tinha tia Isabel, que era despachada, parecia um pouco

    com a tia Nan, deve ter puxado. A a dona da fazenda Mato Dentro

    foi falar com S Rosina, se S Rosina emprestava uma negra pra

    ir l lavar roupa. E quem era a lavadeira? Era Isabel. A V Rosina

    disse democraticamente: Se ela quiser, v, se ela no quiser, eu no

    obrigo ela a ir. A chamou Isabel (isso quem me contava era v

    Anita, que era menina). Pois no, Sinh?, (Rosina) Ela est

    perguntando se voc pode ir l lavar roupa. (Isabel) Sinh no

    bateu, Sinh no maltratou, [Mazinho faz uma banana com os

    braos]. Voltou, catou a v pela mo e foi l pra dentro. Deu uma

    banana pra dona da fazenda do Mato Dentro. Por qu? Porque ela

    judiava dos escravos, e na fazenda nossa que era a do Bom Retiro ela

    no maltratava, eles comiam na mesa com ela, n? Por que que a

    gente ia chamar uma escrava de tia? Por que a gente ia chamar tio

    Ludigero de tio e tomar bno?

    Dona Anita nasceu em 1906, dezoito anos aps a abolio da escravatura,

    porm, quando ainda era menina, muitos dos ex-escravos continuavam a viver e

    trabalhar na fazenda. O motivo seria que muitos eram ligados por laos de sangue com

    os seus senhores, e essa mudana de status que os filhos do Baro sofreram ao herdarem

    parte das terras deste, parece no ter proporcionado uma mudana em suas atitudes, j

    que dividiam at a mesa com os ex-escravos. Histrias sobre os sentimentos

    conflituosos de senhores pretos aparecem muito pouco no que me foi contado at

    agora e, quando aparecem, so sempre para mostrar que no havia domnio semelhante

    ao dos brancos. Porm, podemos interpretar que h uma hierarquizao implcita neste

    discurso, mesmo que o foco central seja a igualdade. Acredito que essas questes sero

    melhor respondidas conforme a pesquisa de campo for sendo feita. O que se pode tirar

    disso que a memria de famlia uma memria selecionada para que tenha coerncia

    com o que se acredita estar de acordo com os valores atuais. Segundo Bourdieu:

    Produzir uma histria de vida, tratar a vida como uma histria, isto ,

    como um relato coerente de uma sequncia de acontecimentos com

    significado e direo, talvez seja conformar-se com uma iluso

    retrica, uma representao comum da existncia que toda uma

    tradio literria no deixou e no deixa de reforar. (BOURDIEU,

    2006, p.185)

  • 26

    Para este autor, j o ato de tentar colocar um incio, meio e fim em histrias de

    vida, como se fossem etapas de um desenvolvimento necessrio (p.184) seria uma

    grande iluso. Essa crena de que o passado um todo coerente que se relaciona

    diretamente com o presente e com o futuro, como se fossem partes de um todo tomado

    de sentido e significado, uma ideia que se deve ultrapassar para conseguir

    compreender quais so os sentidos e significados que as histrias de famlia projetam

    para a construo do sentimento de pertencimento. A seleo do que contado no

    acontece ao acaso; todos aqueles que contaram histrias sobre a famlia, desde o

    primeiro, possuam a inteno de passar algo adiante, e o que os motivou a selecionar o

    que deveria ser lembrado, tambm motivou a selecionar o que deveria ser esquecido.

    Mary Douglas reflete sobre esse esquecimento institucional, demonstrando que o

    verdadeiro compromisso da histria com o presente, j que tanto o esforo para que se

    construa uma histria, quanto o esforo de se revisar outra, produzem reflexos

    distorcidos do passado:

    O esforo revisionista no objetiva produzir o nivelamento ptico

    perfeito. O espelho, caso a histria o seja, distorce tanto aps a reviso

    quanto o fazia antes. O espelho porm uma pobre metfora da

    memria pblica. Aquele que busca uma verdade histrica no est

    tentando obter uma imagem mais ntida de sua prpria face, ou at

    mesmo uma imagem mais lisonjeira. Remendar conscientemente e

    refazer, so apenas uma pequena parte da moldagem do passado.

    Quando observamos mais de perto a construo do passado,

    verificamos que o processo tem muito pouco a ver com o passado e

    tudo a ver com o presente. As instituies criam lugares sombreados no

    qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita. Elas fazem

    com que outras reas exibam detalhes muito bem discriminados,

    minuciosamente examinados e ordenados. A histria surge sob uma

    forma no-intencional, como resultado de prticas direcionadas a fins

    imediatos, prticos. Observar essas prticas estabelecerem princpios

    seletivos que iluminam certos tipos de acontecimentos e obscurecem

    outros significa inspecionar a ordem social agindo sobre as mentes

    individuais. (DOUGLAS, data, p.82)

    O esquecido sempre muito maior do que o lembrado, e o que lembrado o

    por estar de acordo com valores sociais vigentes. Esses lugares sombreados do

    esquecimento so verdadeiros vcuos, buracos negros onde o que levado para l pode

    nunca mais ser iluminado pela lembrana. Porm, antes de querer analisar a lembrana

    versus o esquecimento de forma maniquesta, deve-se ter em mente que o esquecimento

    absolutamente necessrio, e a lembrana o filtro que d sentido ao vivido, o ponto de

  • 27

    vista que impe valor a certos fatos em detrimento de outros, algo que est

    intrinsecamente relacionado com a cultura de determinado local. A partir do que

    lembrado que se pode iluminar o esquecido, e essas lembranas de famlia podem

    enfim produzir perguntas sobre o at ento inquestionvel, como por exemplo, sobre os

    conflitos que podem estar em volta da suposta relao harmnica entre um senhor e suas

    cinco esposas-escravas, e mais adiante entre seus filhos, senhores de uma fazenda e seus

    escravos-parentes.

    O ponto de vista escolhido para a construo dessas histrias pende mais para o

    lado daquele que tinha o domnio nessa relao de foras: o Baro de Juparan. A

    maioria das pessoas com quem conversei no sabia o nome da escrava que deu origem

    famlia, mas sabia os nomes dos parentes prximos do Baro. possvel especular que

    essas lembranas tenham sido construdas para que fosse amenizado o passado escravo

    e para que os conflitos existentes ficassem mais leves, e at mesmo com um toque de

    humor. Contudo, as histrias por si mesmas so muito interessantes para se olhar por

    dentro da decadente aristocracia cafeeira do sudeste fluminense, as relaes

    extraoficiais que mantinham com a monarquia brasileira, alm de expor detalhes sobre o

    fim da vida de figuras pblicas, como Duque de Caxias, por exemplo. Ainda possuo

    poucos elementos para que estas histrias venham luz, porm este caminho ser

    retomado e aprofundado durante a pesquisa do mestrado, por enquanto, Mazinho apenas

    repetiu o que sua av dizia: A cachorrada velha.

  • 28

    CAPTULO 3 - MEMRIA E IMAGENS DE FAMLIA

    a- A funo da Imagem

    (...) O retrato no me responde,

    ele me fita e se contempla

    nos meus olhos empoeirados.

    E no cristal se multiplicam

    os parentes mortos e vivos.

    J no distingo os que se foram

    dos que restaram. Percebo apenas

    a estranha ideia de famlia

    viajando atravs da carne.

    (Carlos Drummond De Andrade)

    A fotografia causa um imenso fascnio por reproduzir um momento

    passado, mas as perguntas feitas ao passado capturado pela imagem so respondidas

    pelo presente, por aqueles que a observam hoje e a impem um sentido. A influncia

    das imagens algo falseado j no sentido estrito da palavra pode produzir em nossas

    vidas sentimentos intensos e verdadeiros, como na obra do venezuelano Adolfo Bioy

    Casares, A inveno de Morel (1986), em que o protagonista, que no possui nome,

    se apaixona por uma imagem, a de Faustine, preservada pela inveno de um cientista

    obcecado pela eternidade. Faustine no o v, no o responde, nunca o conheceu ou o

    conhecer, mas mesmo assim sua imagem foi capaz de modificar sua vida.

    A fotografia um tipo de documento peculiar, j que reproduz cenas passadas,

    momentos que ficam congelados no tempo retratando aquilo que ns fomos ou o que

    outros foram um dia. Por mais que haja um forte impulso a se ver a fotografia como um

    retrato imparcial da verdade (por muitas vezes ser produzida e consumida como tal),

    no podemos perder de vista a ideia de que a imagem fotogrfica tambm um produto

    intermediado por pessoas e, portanto, assim como qualquer outro, est imbuda de um

    determinado foco. Mesmo que a imagem produza uma sensao mais real de

    proximidade com o passado, sempre estaremos observando do ponto de vista do

    fotgrafo. a partir desse olhar que a fotografia produzida, e esse olhar determinado

    pelo lugar social que ocupa o fotgrafo e pelos sentimentos que o percorrem, decidindo

    o momento a ser marcado por meio do registro fotogrfico:

  • 29

    O chamado documento fotogrfico no incuo. A imagem

    fotogrfica no um simples registro fisicoquimico ou eletrnico do

    objeto fotografado: qualquer que seja o objeto da documentao no

    se pode esquecer que a fotografia sempre uma representao a partir

    do real intermediada pelo fotgrafo que a produz segundo sua forma

    particular de compreenso do real, seu repertrio, sua ideologia. A

    fotografia , como j vimos reiteradas vezes, o resultado de um

    processo de criao/construo tcnico e esttico elaborado pelo

    fotgrafo. A imagem de qualquer objeto ou situao documentada

    pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a nfase pretendida

    pelo fotgrafo em funo da finalidade ou aplicao a que se destina.

    (KOSSOY, 2002, p.52)

    Mas qual seria o momento decisivo (termo imortalizado por Cartier-Bresson)

    que impulsiona o click: instante em que o olho e o dedo entram em consenso quanto ao

    que importante ser registrado? A fotografia a cena escolhida por merecer, segundo o

    filtro de seu captador, ultrapassar o presente e atingir o futuro. Por esse motivo ela

    est intimamente ligada necessidade da construo de uma memria, particular ou

    social. Os lbuns de famlia surgem dessa mesma necessidade. Para Bourdieu:

    O lbum de famlia exprime a verdade da recordao social. Nada se

    parece menos com a busca artstica do tempo perdido que estas

    apresentaes comentadas das fotografias de famlia, ritos de

    integrao a que a famlia sujeita os seus novos membros. As imagens

    do passado dispostas em ordem cronolgica, "ordem das estaes" da

    memria social, evocam e transmitem a recordao dos

    acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo v um

    fator de unificao nos monumentos da sua unidade passada ou, o que

    equivalente, porque retm do seu passado as confirmaes da sua

    unidade presente. por isso que no h nada que seja mais decente,

    que estabelea mais a confiana e seja mais edificante que um lbum

    de famlia: todas as aventuras singulares que a recordao individual

    encerra na particularidade de um segredo so banidas e o passado

    comum ou, se quiser, o menor denominador comum do passado, de

    nitidez quase coquetista de um monumento funerrio frequentado

    assiduamente". (BOURDIEU Apud LE GOFF. 1990, p. 466).

    O lbum de famlia estabelece uma conexo entre passado e presente onde o

    primeiro responsvel por dar o sentido ao segundo, ambos compartilhados dentro do

    grupo familiar. Porm, o lbum de famlia enquanto uma tradio familiar algo

    relativamente recente (j que a fotografia s se populariza em fins do sculo XIX e

  • 30

    incio do sculo XX), mas que se incorporou muito bem s necessidades de uma

    burguesia cada vez mais ascendente. Na famlia pesquisada, poucas imagens

    permaneceram da poca referida acima. Acredito que este fato possa estar ligado a trs

    motivos: o primeiro seria por no estarem enquadrados nas lgicas dessa burguesia, j

    que eram descendentes de escravos e de aristocratas decadentes; outro motivo seria a

    vida isolada em uma fazenda distante, onde no existiam as mesmas necessidades e

    oportunidades da vida urbana; e um ltimo possvel motivo seria que dentro dessa

    famlia as narrativas seriam o principal veculo de ligao entre o passado e o presente,

    j que as histrias de famlia faziam as vezes das imagens impressas em papel. As

    imagens preservadas pelos parentes nos dias atuais, portanto, so, em sua maioria,

    aparentemente (algo que analiso pelo vesturio da poca e por algumas datas

    preservadas nas fotografias) a partir da dcada de 1940, o que coincide com a partida de

    casal Arthur e Anita da regio de Afonso Arinos, em LeviGasparian, cidade onde,

    segundo Otto Marques dos Santos, bisneto destes, o casal foi morar quando Arthur, que

    era ferrovirio, foi transferido da estao de Baro de Juparan, em Valena. Com uma

    nova transferncia, desta vez para a estao da cidade de Mendes, tambm na regio sul

    do Estado do Rio de Janeiro, toda a famlia se muda para este que seria o ponto final da

    jornada, j que em fevereiro de 2013 foram comemorados setenta anos desde que a

    famlia se estabeleceu na localidade. Mendes era uma cidade bastante urbanizada na

    poca, em funo de sua proximidade de Barra do Pira, j que nesta segunda havia a

    conexo entre os trens que vinham de So Paulo, Rio e Minas. Pode-se deduzir que essa

    mudana para uma localidade mais urbana pode ter aproximado a fotografia desta

    famlia.

    Por mais que essa prtica de colecionar fotografias tenha surgido, ou

    intensificado com a proximidade de um centro urbano, no significa que com a

    modernidade uma tradio genuna utilizando a oposio construda por

    Hobsbawn em A inveno das tradies (1984) tenha sido suprimida ou se perdido.

    Essa prtica moderna , ao contrrio, englobada s tradies familiares, onde o

    passado continua tendo uma posio ativa, positiva e afirmativa. Em relao a esse

    tema, e possuindo o patrimnio cultural como foco, Jos Reginaldo Gonalves chega

    seguinte concluso:

    (...) parafraseando a sugesto de Roy Wagner, se no ser oportuno

    considerar se no so, afinal, os patrimnios culturais que nos

    inventam (no sentido que constituem nossa subjetividade), ao

    mesmo tempo em que os construmos no tempo e no espao. Em

  • 31

    outras palavras: quando classificamos determinados conjuntos de

    objetos materiais como patrimnios culturais, esses objetos esto

    por sua vez a nos inventar, uma vez que eles materializam uma teia

    de categorias de pensamento por meio das quais nos percebemos

    individual e coletivamente. Por esse prisma, a categoria patrimnio

    cultural assume uma dimenso universal e no seria apenas um

    fenmeno ocidental e moderno: na verdade, manifestar-se-ia de

    formas diversas em toda e qualquer sociedade humana.

    (GONALVES, 2007, p. 29)

    A elaborao de lbuns de famlia, enquanto objetos construdos para se

    recordar, no meramente uma prtica datada dentro da lgica moderna, porm mais

    uma maneira de perceber-se no mundo. As fotografias de famlia so pontos de

    encontro, onde, por meio do observador, dado sentido imagem observada e,

    simultaneamente, a imagem d sentido forma como os membros do grupo enxergam a

    si prprios. A imagem , assim, uma maneira de combinar as semelhanas que existem

    entre o passado da famlia e seu presente, a partir das lembranas e histrias que essas

    imagens ativam, produzindo uma identidade e um sentimento de pertencimento.

    Na famlia dos descendentes de Arthur e Anita, h uma recente reabertura

    coletiva dos lbuns de famlia que vem acontecendo no ciberespao, por meio da rede

    social Facebook, onde se mantm em contato pelo grupo A parentada da Dona Anita.

    Este grupo uma continuao do grupo que existia em outra rede social, o Orkut, o

    qual foi abandonado quando todos os integrantes passaram a socializar virtualmente

    com maior intensidade pelo primeiro. O grupo do Orkut existia desde o ano de 2005 e

    possua a seguinte descrio:

    Em nossas veias corre o sangue mais importante de todo o mundo, o sangue

    Marques dos Santos. Nossa Matriarca nos ensinou que seus filhos, netos,

    bisnetos, (etc...) eram seu sangue, e a casa dela era sua veia, e todos viam no

    olhar dela a felicidade de ter uma casa cheia de gente sendo eles parentes ou

    no, mas que havia nesta casa muita alegria, carinho e paz. Espero que

    possamos com esta comunidade retribuir, nos doando um pouco para fazer

    com que o sangue flua novamente na veia.10

    O grupo virtual foi composto pelos parentes prximos dos onze filhos do casal

    Ana e Arthur - Anny, Aloy, Amaury, Adaury, Anely, Aurely, Aury, Analy, Antony,

    10 Texto de descrio da Comunidade do Orkut A Parentada da Dona Anita, criado em 2005 por Guilherme Marques dos Santos.

  • 32

    Anacy, Aucy (em ordem cronolgica) - que tentavam tornar mais quente o sentimento

    de famlia que havia adormecido aps a morte de Dona Anita em 1996. Esta antiga

    unio que foi reividicada por meio deste grupo fazia referncia forma como essa

    famlia foi estruturada, em que os filhos mais novos de Anita e Arthur foram criados

    juntos com os filhos de seus irmos mais velhos, e que por sua vez os filhos desses

    filhos mais novos foram criados com os netos dos irmos mais velhos, dividindo os

    primos-tios-irmos por geraes. Separados pelas oportunidades que foram surgindo

    na vida de cada um, estes mantm a a casa da v como o local de encontro, mesmo

    que nela no more mais ningum. Com as redes sociais virtuais,porm, a famlia que

    havia se distanciado aps a morte da Dona Anita, voltava a se relacionar de uma forma

    completamente diferente, mas que forneceu novamente sentido ideia de

    pertencimento. a partir dessa relao estabelecida pelas interaes online, que uma

    grande troca de documentos fotogrficos foi gerada, e por onde novos encontros de

    famlia passaram a ser marcados. Essa forma de relacionamento por meio da internet

    redefiniu muito eficazmente os sentimentos de famlia. A ideia que se tem do grupo

    formada pela memria do tempo em que o convvio era constante. Esse tempo recorrido

    pelas imagens que ficaram registradas o que afirma a existncia de pensamentos e

    sentimentos compartilhados por este grupo. Segundo Halbwachs:

    O tempo onde viveu o grupo um meio

    semidespersonalizado, em que podemos assinalar o lugar de mais de

    um acontecimento passado, porque cada um deles tem uma

    significao em relao ao conjunto, e este se conserva porque sua

    realidade no se confunde com as imagens particulares e passageiras

    que o atravessam. (HALBWACHS, 1990, p.123)

    O relacionamento virtual estabelecido por esta famlia rememora o passado

    vivido em conjunto, o que afirma a sua essncia, mas ao mesmo tempo trabalha para a

    incluso dos membros da nova gerao que est sendo constituda, dos filhos dos

    bisnetos de Ana e Arthur. Sendo assim, o compartilhamento de imagens feito pelo

    grupo atua nas duas direes: sendo a direo do passado conectada afirmao da

    identidade da famlia, e a direo do futuro com a funo de incluir novos personagens,

    visando a continuao desta famlia enquanto uma unidade.

  • 33

    b- Observando o observador

    nunca olhamos apenas uma coisa, estamos sempre

    olhando para as relaes entre as coisas e ns mesmos.

    (BERGER apud LEITE, 2001, p.31)

    O exerccio que me proponho uma etnografia das impresses do passado a

    partir das reaes dos membros do grupo A parentada da Dona Anita, ao entrarem em

    contato com imagens antigas compartilhadas por outros membros do mesmo grupo. As

    imagens em si poderiam ser fontes riqussimas se a preocupao fosse interpretar o

    passado por meio delas, j que fornecem muitas informaes sobre os contextos de

    poca, vestimentas, diferenciaes de comportamento entre gneros, comportamento

    infantil e at mesmo o prprio relacionamento familiar poderia ser apreendido somente

    por elas. Porm, aquele momento selecionado pelo fotgrafo para ser compartilhado

    com o futuro foi novamente selecionado pelo membro do grupo virtual no presente

    como algo relevante para que os outros parentes se identificassem, e se sentissem parte

    deste todo maior chamado famlia. Esse esforo espontneo tem como consequncia

    uma reao em cadeia, em que as lembranas dos que comentam essas fotografias vo

    tomando forma e nos informando sobre os mecanismos utilizados para que estas

    pessoas se identifiquem como membros do grupo familiar

    Olvia Maria Gomes da Cunha utilizou uma metodologia semelhante ao

    recuperar algumas fotografias da antroploga Ruth Landes quando esta esteve no Brasil,

    entre 1938 e 1939, pesquisando em Salvador as populaes afro-americanas. Cunha

    apresentou essas fotografias para os membros mais antigos dos terreiros em que Landes

    havia pesquisado e comparou algumas impresses destes ao observarem as fotografias

    com as de Landes:

    (...) Ver imagens e ouvir vozes de um tempo distante, e a partir delas

    produzir narrativas, memrias sobre fatos, pessoas, coisas, situaes e

    lugares prximos. O carter relativo das noes de tempo e distncia

    no meramente retrico. (...) Mas a produo de uma memria a

    partir desses registros uma operao mais complexa e limitada. Pode

    tanto reinscrever e reproduzir fatos, pessoas, coisas e lugares numa

    outra cartografia quanto alterar radicalmente nosso olhar informado

    por narrativas consagradas e autorizadas. (CUNHA, 2005, p.8)

    No caso de Cunha, muitas das impresses das pessoas s quais mostrou as

    fotografias no condiziam com as de Landes em sua poca. Poderamos ver essas

    contradies como algo normal, pois so pontos de vista muito distantes, tanto

  • 34

    culturalmente, j que Landes era americana, quanto temporalmente (mesmo que Cunha

    tenha buscado conversar com as pessoas mais velhas, estas eram crianas quando

    Landes esteve na localidade). Cunha demonstra como possvel utilizar de arquivo para

    se produzir uma observao etnografia, algo que tambm realizo a partir de imagens,

    porm no meu caso, as imagens no foram produzidas por pesquisadores e sim por

    antigos membros da famlia, ou por fotgrafos contratados. Foram tambm

    compartilhadas de forma espontnea pelos prprios membros do grupo. As nicas

    imagens introduzidas por mim foram: uma antiga imagem em que gostaria de conhecer

    os nomes do casal retratado, e algumas fotografias ou pinturas que consegui por meio de

    um site de genealogia online11, dos protagonistas do mito fundador da famlia (o

    Baro de Juparan, o Marqus de Baependi, e de Luiza Loreto Vianna, filha do Duque

    de Caxias), portanto, irei iniciar por estas.

    Imagem 1: Marqus de Baependi (fonte: www.myheritage.com)

    Esta uma imagem do Marqus de Baependi, pai de Baro de Juparan.

    Compartilhei com o grupo para ver a reao que a famlia teria, j que, segundo as

    histrias que so contadas, ele no seria o pai biolgico do Baro (ver no captulo dois a

    histria narrada por Osmar). Trs bisnetos de Arthur e Anita acreditaram que este

    lembrava muito Adaury, o nico filho do casal ainda vivo. Em seguida, tivemos um

    11 www.myheritage.com

  • 35

    comentrio de Cludia, filha de Adaury, contando a verso que ouviu onde este no

    seria o verdadeiro pai do Baro de Juparan. O restante do grupo (das 37 pessoas que

    visualizaram a fotografia) no se manifestou. Diferente do que ocorreu com a imagem

    de Luiza Loreto Vianna, que mesmo no tendo se casado com o Baro de Juparan,

    segundo as histrias narradas por Osmar, esta foi muito comparada a uma das filhas de

    Anita e Arthur: a Analy, ou Nan. A imagem do Baro de Juparan (abaixo) tambm

    foi bem comentada, pois a maioria acreditou ser este parecido com Airton e Marcelo,

    ambos filhos de Anacy (netos de Anita).

    Imagem 2: Baro de Juparan (fonte: www.myheritage.com)

    Essas imagens compartilhadas remetiam a personagens e ideias formadas apenas

    pelas histrias narradas, pessoas as quais a maioria dos integrantes do grupo nunca

    havia tido contato imagtico anterior a este que promovi. A reao foi bem interessante,

    pois mesmo que no tivessem nenhuma referncia direta com esses fantasmas do

    passado, logo foi criada uma maneira de conect-los ao presente a partir das

    semelhanas fsicas que os familiares viam em seus contemporneos. Dessa forma, o

    que primeira vista parecia distante, rapidamente inserido no contexto familiar,

  • 36

    quando a viso daquele passado nunca antes observado comparada com a viso do que

    lhes era familiar, aproximando os rostos do passado de suas verses do presente.

    Outra fotografia que compartilhei foi retirada do lbum guardado por minha

    famlia nuclear. Na legenda estava escrito somente padrinhos de Anny, filha mais

    velha de Anita e Arthur e minha av. Interessei-me bastante por esse casal, j que eram

    os nicos negros em todo o lbum da famlia, e porque j que Anny nasceu no ano de

    1927, estes rostos antigos poderiam ser talvez de filhos ou netos do Baro de Juparan e

    de Florenciana (ver genealogia em anexo). Infelizmente, nenhum dos integrantes do

    grupo virtual pde me auxiliar na nomeao desses parentes, e, por enquanto, a imagem

    permanece apenas retratando este casal sem que sejam reconhecidos por seus nomes ou

    por suas histrias.

    Imagem 3 Padrinhos de Anny (sem data), segundo legenda em lbum da famlia nuclear de

    Anny

    Essas foram as quatro imagens das 301 fotografias compartilhadas na

    comunidade que partiram de meus interesses. Todas as outras 297 foram

    espontaneamente selecionadas pelos outros membros do grupo, a partir de suas prprias

    intenes. Como so muitas imagens, fiz uma triagem a partir de dois parmetros: o

    primeiro a data da fotografia: preferi analisar as interaes por meio das imagens em

    preto e branco. A mquina colorida foi inserida na famlia em meados da dcada de

  • 37

    1970, portanto, todas as imagens aqui apresentadas sero anteriores a isto. Outra escolha

    que fiz foi a partir da quantidade de comentrios, com isso, analisarei algumas das

    fotografias mais comentadas pela parentada, pensando na relevncia que estas

    possuem para a identidade do grupo.

    J que fracassei na minha empreitada de descobrir o nome dos padrinhos de

    Anny, iniciemos pelos padrinhos de Adaury, seu irmo. A foto que foi compartilhada

    por Cludia, sua filha, retratava o casal Alfredo e Jacinta ou Tota. Alfredo Giffone era

    o meio-irmo de Arthur segundo a narrativa de Osmar (na histria contada, Alfredo

    seria filho de Cati com seu prprio cunhado. Para mais detalhes, ver captulo dois), e

    Jacinta era tia de Anita, irm de Berta, sua me. Os comentrios se centram na

    identificao do casal e nas lembranas do grupo, j que algumas pessoas o tinham

    conhecido durante a infncia, quando estes tios moravam no bairro do Maracan, na

    cidade do Rio de Janeiro.

    Imagem 4 Padrinhos e tios de Adaury (1947) compartilhado do lbum da famlia nuclear deste

    Outra irm de Berta e Jacinta retratada, j com a idade avanada, pela

    fotografia compartilhada por Janete Lazra, filha de Joaquim, tambm irmo de Berta,

    Jacinta. Normadina a senhora mais velha da imagem (a que est em p no canto

    direito da fotografia), e chamada por Janete de v Dinoca, pois sua verdadeira av

  • 38

    falecera quando sua me ainda era pequena. A imagem abaixo seria, segundo Janete, a

    nica imagem que possui de Normadina:

    Imagem 5 sem legenda (1953), compartilhado do lbum de Janete Lazera

    Os comentrios foto foram bem diversos. Primeiramente os parentes se

    empenharam em desvendar os nomes dos personagens apresentados, o que ficou

    assim, da esquerda para direita: Analy (Nan), Ana (Anita), Aucy (Edu), Anacy

    (Cici), Antony (Turrico), Mrcia Lazra, Santa, Eliane Lazra e Normadina

    (Dinoca). Em seguida se comparou a semelhana entre Analy e sua filha Ana Maria

    quando nova (mesmo a imagem estando um pouco borrada, os traos ficaram

    evidentes para estes). Ainda, alguns dos netos de Anita e Arthur se manifestaram,

    dizendo ter nascido nesta casa que pertencia a seus avs, localizada na cidade de

    Mendes, prximo estao velha, onde Arthur trabalhava.

    A famlia se compreende dividindo-se em diferentes geraes. Porm estas

    geraes de filhos e netos de Anita e Arthur se cruzavam por meio de algumas

    pessoas hibridas (um pouco mais novas do que o primeiro grupo, e mais velhas

    do que o segundo), o que pude perceber a partir dos comentrios de pessoas que

  • 39

    conviveram assiduamente com ambos os grupos e conhecem mais histrias, estas

    participam mais assiduamente dos comentrios s fotografias. A imagem abaixo

    retrata a forma como os primos mais velhos compartilharam suas infncias com

    seus tios mais novos:

    Imagem 6 legenda Essa da Boa (1956), compartilhado por Cludia Valeria, do lbum da

    famlia nuclear de Adaury.

    Esta imagem foi uma das mais comentadas pelo fato de todos os retratados

    estarem descalos e por conta da pssima qualidade de conservao da imagem, j

    que foi difcil para os parentes identificar algumas pessoas. Porm, segundo um

    consenso, se chegou seguinte legenda da esquerda para a direita: Aloy e Ktia

    (beb no colo deste), Alcy (Edu), Anita, Jos Carlos (criana de p na frente de

    Anita), Tnia (no colo de Anita), Anny e Maria de Lourdes (Maria do gato no

    colo de Anny, atrs de Anita), Anacy e Ildani (Cici e Dani - de mos dadas, Dani na

    frente de Cici) e Aury (Dinho). O casal no canto direito e a criana com o rosto

    apagado no foram identificadas, porm, o cachorro se chamava Lalau segundo

    os comentrios. Nessa primeira gerao de primos, entrariam ainda Osmar, Cristina,

  • 40

    Carla e Ana Maria que no aparecem na fotografia, ou ainda no haviam nascido,

    sendo estes ltimos aqueles que estariam entre esses primeiros primos e os que

    viriam a seguir. A chamada segunda gerao nasce alguns anos depois. Essas

    crianas esto retratadas na foto abaixo, junto com outros da gerao anterior:

    Imagem 7 Muito Boa essa, tempo bom lel (sem data) compartilhada por Anna Luiza, do

    lbum da famlia nuclear de Adaury.

    Mais uma vez a famlia se empenhou bastante para que todos fossem

    identificados na fotografia, que ficou assim, da esquerda para a direita: Anna Luiza

    e Claudia Valria (virando de costas), Ana Maria, Osmar fazendo chifres em Lus

    Cludio e Katia Regina, Carla e Tnia (na frente de Katia), Alcy (ao lado de

    Osmar), Tia Nezinha (esposa de Aurely, de leno branco) e Lcia (na frente de sua

    tia), Airton atrs de Alan (ao lado de Tnia), Cristina (ao lado de Alcy), Antony

    com mos nos ombros de Paula Maria que faz chifres em Cssia e est ao lado de

    Mrian Eliane (nica de culos). As lembranas comentadas ficaram pelos trinta e

    nove anos de morte de Antony, tio que faleceu aos 33 anos de idade, devido a um

    cncer, doena que tambm foi responsvel pela morte de Analy, Anny, Alcy,

    Ildani e Katia mais recentemente, no ano de 2012.

    Podemos perceber que a identificao de todos os parentes que integram as

    ltimas trs fotografias apresentadas uma etapa importantssima para as

    observaes que viro em seguida, j que sero estes personagens os agentes

    responsveis pela ativao das lembranas antigas, ou a construo de novas

  • 41

    referncias (como no caso de nunca se ter visto a imagem do parente naquela

    determinada fase da vida, fazendo-se assim um esforo para ligar este a uma

    lembrana mais recente, semelhante ao ocorrido na comparao de Analy a Ana

    Maria na imagem 5). Nessas impresses dos parentes sobre as imagens, podemos

    perceber sempre a busca por um referencial que aproxime o observador do objeto

    observado, seja por meio de sua identificao com o espao fsico em que os

    personagens retratados se encontram (como caso da antiga casa de Mendes, onde

    muitos dos netos de Anita e Arthur disseram ter nascido, algo que provavelmente

    ouviram de seus pais); assim como as lembranas que estes ativam em si ao

    entrarem em contato com suas prprias imagens do passado (lembranas ou

    esquecimentos, como caso de Mirian Eliane, que no conseguiu se reconhecer na

    imagem 6, mas como era a nica criana que utilizava culos, no pode contestar);

    ou ainda quanto saudade sentida no presente daqueles parentes j falecidos (como

    por exemplo, a saudade do tio Turrico, o Antony). Independente da forma como

    as observaes se desenvolvem, as imagens observadas vo se duplicando em novas

    imagens compostas pela referncia guardada pela memria, em que as cenas e

    histrias lembradas fazem com que as fotografias guardem um sentido muito alm

    do momento preservado. Para que fiquem mais claros esses desdobramentos de

    imagens, seguem adiante dois exemplos que demonstram como eles ocorrem.

    Imagem 8 Aurely, Adaury, Waldir e Claudio Luiz (1958) do compartilhada por Anna

    Luiza do lbum da famlia nuclear de Adaury

  • 42

    Na imagem acima vemos trs homens, Aurely frente, Adaury (que carrega

    Cludio Luis, no colo) e atrs Waldir marido de Analy, e pai de Claudio, dentro de

    uma canoa. At hoje para se chegar residncia de alguns parentes (filhos e netos

    de Laudilina, irm de Anita), preciso atravessar o Rio Paraba, em Demtrio

    Ribeiro, prximo ao distrito de Baro de Juparan. No ano de 2011, parte da famlia

    que l vive falecera, pois no conseguiu sair da canoa aps esta ter virado.12

    Maria

    de Lourdes viu esta imagem e se lembrou de que odiava andar de canoa. Sua prima

    Mriam Eliane concordou e se recordou da ltima vez em que esteve dentro de uma:

    Nem fala... A ltima vez que andei de canoa foi no casamento de

    Laudinha, a filha mais nova da tia Laudilina. Tivemos de

    atravessar o Paraba de canoa. Vestido longuete, salto fino, canoa

    cheia de lama, Paraba transbordando e eu morrendo de medo. L

    pelas tantas o Claudio [o mesmo da foto e seu irmo] queria

    brigar. Foi um zum zum zum e no final dormimos no galinheiro.

    S percebemos de manh... hahahaha essa festa foi demais...

    Quem estava l????

    A imagem, que era a cena esttica dos rapazes na canoa, fez com que as

    pessoas lembrassem em um primeiro momento do pavor que tinham de ter de

    atravessar o rio (o que deviam fazer muitas vezes para visitar seus parentes), e em

    seguida uma terceira imagem foi surgindo, que so as lembranas de um casamento.

    Aps esse comentrio, muitas pessoas se lembraram das cenas que marcaram neste

    casamento, da foto que a noiva tirou de vu, prximo a uma roseira, do frio que

    fazia e do noivo ter cado no rio Paraba na volta da festa (de volta canoa...). A

    historiadora Miriam Moreira Leite percebe algo muito similar em seu trabalho:

    Os depoimentos foram sempre muitssimo mais ricos em informaes

    e reflexes sobre as relaes familiares retratadas que a observao

    das imagens sem esclarecimentos verbais, atravs de dedicatrias,

    poesias de circunstncia, e dos depoimentos. Observe-se, contudo, que

    o impacto emocional ou esttico da imagem sempre superava os

    esclarecimentos verbais. A atrao pela imagem imediata e a sua

    comunicao atravs de desdobramentos, na memria do observador,

    de imagens semelhantes ou associadas estabelecem um vnculo, que a

    12 Para mais informaes do ocorrido:

    http://www.focoregional.com.br/v2/page/noticiasdtl.asp?t=Bombeiros+procuram+desaparecidos+no+Rio

    +Paraiba+em+Vassouras&idnoticia=58781 Acessado em 04.03.2013

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    mensagem mediada pelas palavras ou pelo cdigo escrito estabelece

    mais demoradamente. (LEITE, 1994, p.132)

    A cena em si no em nenhum momento explicada, no se sabe onde eles

    estavam e para onde iam. Podemos at supor que iam pescar, j que era uma prtica

    muito apreciada por Adaury, segundo conversas que tive com seu neto Otto, mas essa

    no a preocupao da famlia. Os parentes, ao olharem para a fotografia

    espontaneamente se recordaram de outras imagens, e estas foram