AlÉm Do Materialismo Espiritual Chögyam Trungpa Tradução

download AlÉm Do Materialismo Espiritual Chögyam Trungpa Tradução

of 76

Transcript of AlÉm Do Materialismo Espiritual Chögyam Trungpa Tradução

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    1/76

    1

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    2/76

    2

    ALM DO MATERIALISMO ESPIRITUAL Chgyam Trungpa

    Traduo por Octavio Mendes CajadoReviso de contedo e forma a cargo do Grupo de Estudos do Dharma de So Paulo

    Ttulo original: Cutting Through Spiritual MaterialismCopyright 1973 Chgyam TrungpaEditado no Brasil pela editora Cultrix, na Amrica do Norte pela Shambhala Publications

    "O percurso correto do caminho espiritual um processo muito sutil e no alguma coisa a que possamos atirar-nosingenuamente. Existem numerosos desvios que levam a uma distoro egocentrada da espiritualidade; podemos iludir-nos, imaginando que estamos nos desenvolvendo espiritualmente quando, na verdade, no fazemos seno fortalecer nosso egocentrismo por meio de tcnicas espirituais. A essa distoro bsica pode dar-se o nome dematerialismoespiritual."

    Alm do materialismo espiritual a transcrio de duas sries de palestras dadas por Trungpa Rinpoche em 1970-71. "As palestras discutem, em primeiro lugar, as vrias maneiras pelas quais as pessoas se envolvem com omaterialismo espiritual, as muitas formas de auto-iluso em que os aspirantes podem cair. Depois desse passeio pelos

    desvios ao longo do trajeto, discutimos o verdadeiro caminho espiritual, em seus contornos mais amplos."O que se apresenta aqui um enfoque budista clssico no no sentido formal, mas no sentido de mostrar o

    cerne do enfoque budista da espiritualidade. Apesar de no ser testa, o caminho budista no contradiz as disciplinastestas. As diferenas entre os caminhos so mais uma questo de nfase e de mtodo. Os problemas bsicos domaterialismo espiritual so comuns a todas as disciplinas espirituais."

    Para Chokyi-lodr, o Marpa,Pai da linhagem Kagyu

    Biografia do Autor

    Chogyam Trungpa, Rinpoche, fundou vrias comunidades contemplativas budistas na Amrica do Norte, sendo asduas maiores Karma Dzong, em Boulder, Colorado, e Karm Chling, em Barnet, Vermont. Tambe'm fundou umacomunidade teraputica experimental e criou o Instituto Naropa, entidade acadmica na qual estudantes podemexperimentar a interao entre disciplinas budistas e ocidentais. Sendo diretor e principal instrutor desses centros,representa um amigo e mestre de meditao para inmeros alunos.

    Como a dcima primeira encamao do Trungpa Tulku, foi educado desde a infncia, para ser o abade superior dosmosteiros Surmang, no leste do Tibete. Aps um longo e rduo treinamento, foi iniciado e entronizado como herdeirodas linhagens de Milarepa e Padmasambhava. Assim, concluiu seus estudos meditativos e intelectuais nas tradies

    Kagy e Nyingma.Obrigado a deixar seu pas em virtude da invaso do Tibete pelos comunistas chineses em 1959, Trungpa passou

    trs anos na ndia, indo depois para a Inglaterra com a finalidade de estudar religio comparada e Psicologia, naUniversidade de Oxford. Aps quatro anos em Oxford, fundou o primeiro centro budista tibetano de estudos emeditao no hemisfrio ocidental Samyeling, na Esccia. Em 1970, visitou a Amrica do Norte e, em resposta aointeresse extraordinrio despertado pelos seus ensinamentos, decidiu fixar residncia nos Estados Unidos.

    Lecionou na Universidade do Colorado e tem viajado largamente pelos Estados Unidos e Canad, conduzindoseminrios e pronunciando conferncias. autor de uma autobiografia, de dois livros de poesia e outras obras, entre osquaisThe Myth o f Freedome Shambala: The Sacred Path of the Warrior.

    O leitor que desejar maiores informaes sobre os centros de Trungpa pode escrever, em ingls, para: Vajradhatu,

    1345 Spruce St., Boulder, Colorado, 80302 U.S.A.; ou, em portugus, para o Grupo de Estudos do Dharma, CaixaPostal 8.312, 01051 So Paulo, SP, Brasil.

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    3/76

    3

    Introduo

    A srie de palestras aqui contida foi proferida em Boulder, Colorado, no outono de 1970 e na primavera de 1971. Naquela ocasio, estvamos formando Karma Dzong, nosso centro de meditao em Boulder. Embora a maioria demeus alunos fossem sinceros em sua aspirao de seguir o caminho espiritual, traziam para o caminho uma grande dosede confuso, mal-entendidos e expectativas. Desse modo, julguei necessrio apresentar a meus alunos um apanhadogeral do caminho, com-algumas advertncias acerca dos perigos que poderiam encontrar ao percorr-lo.

    Parece agora que a publicao dessas palestras poder ser til queles que se interessam por disciplinas espirituais.O percurso correto do caminho espiritual um processo muito sutil e no alguma coisa a que possamos atirar-nosingenuamente. Existem numerosos desvios que levam a uma distoro egocentrada da espiritualidade; podemos iludir-nos imaginando que estamos nos desenvolvendo espiritualmente quando, na verdade, no fazemos seno fortalecer nosso egocentrismo por meio de tcnicas espirituais. A essa distoro bsica pode dar-se o nome dematerialismoespiritual.

    As palestras discutem, em primeiro lugar, as vrias maneiras pelas quais as pessoas se envolvem com omaterialismo espiritual, as muitas formas de auto-iluso em que os aspirantes podem cair. Depois desse passeio pelosdesvios ao longo do trajeto, discutimos o verdadeiro caminho espiritual em seus contornos mais amplos.

    O que se apresenta aqui um enfoque budista clssico no no sentido formal, mas no sentido de mostrar o cernedo enfoque budista da espiritualidade. Apesar de no ser testa, o caminho budista no contradiz as disciplinas testas.As diferenas entre os caminhos so mais uma questo de nfase e de mtodo. Os problemas bsicos do materialismoespiritual so comuns a todas as disciplinas espiri tuais. O enfoque budista comea com a nossa confuso e o nosso,sofrimento, e atua no sentido de destrinchar sua origem. O enfoque testa comea com a riqueza de Deus e atua nosentido de elevar a conscincia de modo que ela experimente a presena de Deus. Todavia, dado que os obstculos aorelacionamento com Deus so as nossas confuses e negatividades, o enfoque testa tambm precisa lidar com elas. Oorgulho espiritual, por exemplo, causa tantos problemas nas disciplinas testas quanto no Budismo.

    De acordo com a tradio budista, o caminho espiritual o processo de atravessar e superar a nossa confuso, dedescobrir o estado desperto da mente. Quando este estado se encontra entulhado pelo ego e pela parania que oacompanha, assume o carter de um instinto subliminar. Dessa forma, no se trata de construir o estado desperto damente, mas sim de queimar as confuses que o obstruem. No processo de consumir as confuses, descobrimos a

    iluminao. Se o processo fosse outro, o estado desperto da mente seria um produto dependente de causa e efeito e,assim, passvel de.dissoluo. Tudo o que criado, mais cedo ou mais tarde, tem de morrer. Se a iluminao fossecriada dessa maneira, haveria sempre a possibilidade de o ego reafirmar-se, provocando um retomo ao estado deconfuso. A iluminao permanente porque no a produzimos; apenas a descobrimos. Na tradio budista, a analogiado Sol que surge por trs das nuvens freqentemente empregada para explicar o descobrimento da iluminao. Na prtica da meditao, removemos a confuso do ego a fim de vislumbrar o estado desperto. A ausncia da ignorncia,da sensao de opresso, da parania, descerra uma viso fantstica da vida. Descobrimos um modo diferente de ser.

    O cerne da confuso o fato de o homem ter um senso de ego que lhe parece contnuo e slido. Quando ocorre um pensamento, uma emoo, ou um evento, h o sentido de que algum tem conscincia do que est acontecendo. Vocsente quevocest lendo estas palavras. Esse senso do eu, na realidade, um evento transitrio, .descontnuo, que emnossa confuso parece perfeitamente estvel e contnuo. Como tomamos por real a nossa viso confusa, lutamos paramanter e incrementar esse eu slido. Tentamos aliment-lo com prazeres e escud-lo contra a dor. A experincia

    ameaa continuamente revelar-nos nossa transitoriedade, de modo que lutamos continuamente para encobrir qualquer possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condio. "Mas", poderamos perguntar, "se a nossa verdadeiracondio um estado desperto, por que nos ocupamos tanto em evitar que tomemos conscincia disso?" Porqueestamos to imersos em nossa confusa viso do mundo que consideramos real o nico mundo possvel. Essa luta por manter o senso de um eu slido e contnuo obra do ego.

    O ego, contudo, consegue apenas sucesso parcial em sua tentativa de defender-nos do sofrimento. a insatisfaoque vem junto com a luta do ego que nos inspira a examinar o que estamos fazendo. E, uma vez que sempre existemhiatos na conscincia que temos de ns mesmos, torna-se possvel algum discernimento.

    Uma interessante metfora empregada no Budismo tibetano para descrever o funcionamento do ego a dos 'TrsSenhores do Materialismo": o "Senhor da Forma", o "Senhor da Fala", e o "Senhor da Mente". Na discusso que sesegue sobre os Trs Senhores, as palavras "materialismo" e "neurtico" dizem respeito ao do ego.

    O Senhor da Forma refere-se perseguio neurtica do conforto fsico, da segurana e do prazer. Nossa sociedadealtamente organizada e tecnolgica reflete nossa preocupao em manipular o ambiente fsico de modo a nossalvaguardar das irritaes provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisveis da vida. Elevadores acionados por

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    4/76

    4

    botes de comando, carne empacotada, ar condicionado, privadas com descarga de gua, velrios particulares, planos deaposentadoria, produo em massa, satlites meteorolgicos, mquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregosdas nove s cinco, televiso tudo so tentativas de criar um mundo controlvel, seguro, previsvel e prazeroso.

    O Senhor da Forma no significa as situaes de vida em si que criamos para serem fisicamente ricas e seguras.Refere-se, antes, preocupao neurtica que nos impele a cri-las, a tentar controlar a Natureza. O ego ambicionaassegurar-se e entreter-se, buscando evitar toda e qualquer irritao. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e propriedades, tememos mudanas ou foramos mudanas, tentamos criar um ninho ou um playground.

    O Senhor da Fala tem a ver com o emprego do intelecto no relacionamento com o mundo. Adotamos grupos decategorias que servem como alavancas, como meios para manipular fenmenos. Os produtos mais plenamentedesenvolvidos dessa tendncia so as ideologias, os sistemas de ide'ias que racionalizam, justificam e santificam nossasvidas. Nacionalismo, comunismo, existencialismo, Cristianismo, Budismo todos nos proporcionam identidades,regras de ao e interpretaes de comoe por que as coisas acontecem como acontecem.

    Aqui, novamente, o emprego do intelecto no em si mesmo o Senhor da Fala. O Senhor da Fala indica ainclinao do ego a interpretar o que quer que seja ameaador ou irritante de modo a neutralizar a ameaa outransform-la em algo "positivo" do ponto de vista do ego. O Senhor da Fala refere-se ao uso de conceitos como filtrosque nos resguardam de uma percepo direta do que . Os conceitos so levados demasiado a srio; so utilizados comoinstrumentos para solidificar o nosso mundo e a ns mesmos. Se existe um mundo com coisas a que se possa dar nomes,

    ento o "eu", como uma das coisas nomeveis, tambm existe. Nosso desejo no deixar espao algum para dvidasameaadoras, para a incerteza ou a confuso.

    O Senhor da Mente refere-se ao esforo da conscincia em conservar a percepo de si mesma. O Senhor da Menteimpera quando usamos disciplinas espirituais e psicolgicas como meios de conservar a conscincia que temos de nsmesmos, de nos agarrar ao senso de eu. Drogas, ioga, oraes, meditao, transes, vrias psicoterapias tudo pode ser usado com essa finalidade.

    O ego capaz de converter tudo para seu uso prprio, inclusive a espiritualidade. Se aprendemos, por exemplo,uma tcnica de meditao dentro de uma prtica espiritual particularmente benfica, o ego se pe, primeiro, a trat-lacomo um objeto de fascinao e, depois, a examin-la. Por fim, visto que o ego slido apenas na aparncia e no pode,de fato, absorver coisa alguma; s capaz de arremedar. Em tais circunstncias, ele procura examinar e imitar a prticada meditaoe o modo de vida meditativo. Depois de aprendermos todos os truques e todas as respostas do jogo

    espiritual, tentamos imitar automaticamente a espiritualidade, j que o envolvimento verdadeiro exigiria uma completaeliminao do ego, e a ltima coisa que desejamos fazer renunciar completamente a ele. Entretanto, no podemosexperimentar aquilo que estamos tentando imitar; podemos apenas encontrar alguma rea dentro dos limites do ego que parea ser a mesma coisa. O ego traduz tudo em termos do seu prprio estado de sade, de suas qualidades intrnsecas.Experimenta um sentido de grande realizao e excitao quando consegue criar um modelo desse tipo. Finalmentecriou um feito tangvel, uma confirmao de sua prpria individualidade.

    Se formos bem-sucedidos em manter a conscincia que temos de ns mesmos atravs de tcnicas espirituais, odesenvolvimento espiritual autntico ser altamente improvvel. Nossos hbitos mentais se tomam to fortes que ficadifcil penetr-los. Podemos at chegar ao desenvolvimento totalmente demonaco da completa "Egoidade".

    Embora o Senhor da Mente detenha o maior poder para subverter a espiritualidade, os outros dois Senhores podemtambm reger a prtica espiritual. O retiro no seio da Natureza, o isolamento, a gente simples, sossegada, digna tudo

    pode ser meio para nos proteger da irritao, tudo pode ser expresso do Senhor da Forma. Ou talvez a religio nosfornea uma racionalizao para criarmos um ninho seguro, um lar singelo mas confortvel, para conseguirmos umcompanheiro afvel e um emprego estvel e fcil.

    O Senhor da Fala tambm se envolve com a prtica espiritual. Ao seguir um caminho espiritual, podemossubstituir nossas crenas anteriores por uma nova ideologia religiosa, continuando, porm, a us-la da antiga maneiraneurtica. Por mais sublimes que sejam nossas idias, se as tomamos com excessiva seriedade e as utilizamos paramanter nosso ego, ainda assim estaremos sendo governados pelo Senhor da Fala.

    Se examinarmos nossos atos, quase todos concordaremos, provavelmente, em que somos governados por um oumais dos Trs Senhores. "Mas", poderamos perguntar, "e da? Isto simplesmente uma descrio da condio humana.Sim, sabemos que a tecnologia no consegue pr-nos a salvo de guerras, crimes, doenas, insegurana econmica,trabalho laborioso, velhice e morte; tampouco nossas ideologias nos resguardam da dvida, incerteza, confuso e

    desorientao; nem podem as nossas terapias proteger-nos da dissoluo dos altos estados de conscincia que viermostemporariamente a alcanar ou da desiluso e angstia da decorrentes. Mas que outra coisa podemos fazer? Os TrsSenhores parecem poderosos demais para serem derrubados e no sabemos com que poderamos substitu-los."

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    5/76

    5

    Perturbado por essas indagaes, o Buda examinou o processo pelo qual os Trs Senhores governam. Investigou por que nossas mentes os seguem e se no havia um outro caminho. Descobriu que os Trs Senhores nos seduzemcriando um mito fundamental: o de que somos seres concretos. Todavia, o mito, em ltima anlise, falso, uma imensa burla, uma fraude gigantesca, a raiz do nosso sofrimento. Para fazer essa descoberta, ele precisou romper as defesasmuito complexas erguidas pelos Trs Senhores, com o fim de impedir que seus sditos descobrissem o enganofundamental que a origem do poder deles. No poderemos, de maneira alguma, livrar-nos do domnio dos TrsSenhores a menos que ns, tambm, cortemos e atravessemos, camada por camada, as suas complexas defesas.

    As defesas dos Senhores so criadas com material das nossas mentes, que eles utilizam para preservar o mito bsico da solidez. A fim de enxergar por ns mesmos como este processo funciona, precisamos examinar nossa prpriaexperincia. "Mas como," podemos perguntar, "haveremos de conduzir este exame ? Que mtodo ou instrumento vamosusar?" O mtodo descoberto pelo Buda foi a meditao. Ele verificou que lutar para encontrar respostas no surtiaefeito. S quando havia brechas na sua luta que lhe acudiam discernimentos. Comeou a dar-se conta de que existiadentro de si uma qualidade sadia e desperta que s se manifestava na ausncia de luta. Por isso, a prtica da meditaoimplica "deixar ser".

    Tem havido uma srie de idias errneas acerca da meditao. Algumas pessoas a consideram um estado mentalsemelhante a um transe. Outras pensam nela em termos de treinamento, no sentido de ginstica mental. A meditao,contudo, no nenhuma dessas coisas, embora lide com estados mentais neurticos. No difcil nem impossvel lidar com tais estados. Eles tm energia, pressa e um certo padro. A prtica da meditao implicadeixar ser uma

    tentativa de acompanhar o padro, uma tentativa de acompanhar a energia e a velocidade. Dessa forma, aprendemoscomo lidar com esses fatores, como relacionar-nos com eles, no no sentido de faz-los amadurecer como gostaramos,mas no sentido de conhec-los como so e de trabalhar com o seu padro.

    H uma histria sobre o Buda em que se conta como ele, de uma feita, transmitiu ensinamento a um famosotocador de citara que desejava estudar meditao. Perguntou o msico: "Devo controlar minha mente ou devo deix-lacompletamente solta?" O Buda respondeu: "Visto que voc um grande msico, diga-me como afinaria as cordas doseu instrumento." Disse o msico: "Eu no as deixaria ficar nem demasiado retesadas nem demasiado frouxas." "Damesma forma," acudiu o Buda, "na sua prtica da meditao voc no deve impor nada com demasiada fora suamente, nem deve permitir que fique ao leu." Eis a o ensinamento de como deixar a mente ser de um modo bastanteaberto, de como sentir o fluxo da energia sem tentar sujeit-lo e sem deixar que ele se descontrole, de como acompanhar o padro da energia da mente. Essa a prtica da meditao.

    Tal prtica se faz necessria, via de regra, porque o padro do nosso pensamento, o nosso modo conceitualizado deconduzir a vida, ou demasiado manipulativo, impondo-se ao mundo, ou completamente desgovernado e sem controle.Por conseguinte, nossa prtica da meditao precisa comear com a camada mais superficial do ego, com os pensamentos discursivos que esto sempre a atravessar-nos a mente, com a nossa tagarelice mental. Os Senhoresempregam o pensamento discursivo como a sua primeira linha de defesa, como pees, em seu esforo para iludir-nos.Quanto mais geramos pensamentos, tanto mais ocupados nos tornamos mentalmente e tanto mais nos convencemos danossa existncia. Desse modo, os Senhores esto constantemente tentando ativar esses pensamentos, tentando criar umaconstante sobreposio de pensamentos, para que nada mais se possa ver alm deles. Na verdadeira meditao noexiste a ambio de suscitar pensamentos, e tampouco existe a ambio de suprimi-los. Permite-se apenas que ocorramespontaneamente e se tomem a expresso de uma sanidade bsica. Eles se tomam a expresso da preciso e da clarezado estado desperto da mente.

    Se for vazada a sua estratgia de estar sempre criando pensamentos sobrepostos, os Senhores, ento, agitam

    emoes para distrair-nos. A qualidade excitante, colorida e dramtica das emoes nos prende a ateno como seestivssemos assistindo a um filme absorvente. Na prtica da meditao no encorajamos as emoes nem asreprimimos. Vendo-as com clareza, deixando que sejam como so, no mais permitimos que sirvam de meios para nosentreter e distrair. Dessa maneira, elas se tomam a energia inexaurvel que executa a ao sem ego.

    Na ausncia de pensamentos e emoes, os Senhores introduzem uma arma ainda mais poderosa, os conceitos. Arotulao dos fenmenos cria a sensao de um mundo slido e definido de "coisas". Um mundo estvel reassegura quesomos, igualmente, uma coisa slida e contnua. O mundo existe e, portanto, eu, que o percebo, tambm existo. Ameditao implica ver a transparncia dos conceitos, de sorte que a rotulao j no serve como meio de solidificar onosso mundo e a nossa imagem do eu. A rotulao passa a ser, simples mente, ato de discriminao. Os Senhores aindatm outros mecanismos de defesa, mas seria por demais complicado discuti-los no presente contexto.

    Mediante o exame dos seus prprios pensamentos, emoes, conceitos e demais atividades mentais, o Buda

    descobriu que no precisamos lutar para provar nessa existncia, no precisamos ficar sujeitos ao jugo dos TrsSenhores do Materialismo. No h necessidade de lutar para sermos livres; a ausncia de luta, em si mesma, liberdade.Este estado desprovido de ego a realizao da Natureza Bdica. O processo de transformar o material da mente paraque deixe de ser expresso da ambio do ego e passe a ser, por meio da prtica da meditao, expresso da sanidade

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    6/76

    6

    bsica e da iluminao eis o que poderamos chamar de verdadeiro caminho espiritual.

    Materialismo Espiritual

    Estamos aqui para aprender um pouco sobre espiritualidade. Eu confio na qualidade autntica desta busca, mas preciso questionar sua natureza. O problema que o ego consegue transformar todas as coisas visando ao seu uso prprio, inclusive a espiritualidade. O ego est constantemente tentando adquirir e aplicar os ensinamentos daespiritualidade em benefcio prprio. Os ensinamentos so tratados como uma coisa externa, externa a "mim", umafilosofia que procuramos copiar. Na realidade, no desejamos identificar-nos com os ensinamentos ou vir a ser osensinamentos. Assim, quando o nosso mestre fala em renncia do ego, tentamos imitar essa renncia. Cumprimos asformalidades, fazemos os gestos apropriados mas, na verdade, no queremos sacrificar parte alguma do nosso modo devida. Tomamo-nos atores habilidosos e, ao mesmo tempo que brincamos de surdos-mudos com o verdadeiro significadodos ensinamentos, encontramos algum conforto fingindo seguir o caminho.

    Sempre que comeamos a sentir qualquer discrepncia ou conflito entre as nossas aes e os ensinamentos,imediatamente interpretamos a situao de modo a abrandar o conflito. O intrprete o ego no seu papel de conselheiroespiritual. A situao se parece com a de um pas em que Igreja e Estado sejam separados. Se a poltica do Estadoestiver afastada dos ensinamentos da Igreja, a reao automtica do rei dirigir-se ao chefe da Igreja, seu conselheiro

    espiritual, e pedir-lhe a bno. O chefe da Igreja arquiteta alguma justificativa e confere sua bno poltica, a pretexto de ser o rei o protetor da f. Em nossa mente, as coisas se processam assim, muito bem arrumadas, sendo oego, ao mesmo tempo, rei e chefe da Igreja.

    Se para se atingir a verdadeira espiritualidade, essa justificao do caminho espiritual e das nossas aes deve ser traspassada. Entretanto, no fcil lidar com essa justificao porque todas as coisas so vistas atravs do filtro dafilosofia e da lgica do ego, que faz com que tudo parea arrumado, preciso e muito lgico. Para cada pergunta,tentamos encontrar uma resposta que se autojustifique. A fim de nos tranqilizar, procuramos adaptar ao nosso esquemaintelectual todos os aspectos de nossa vida que possam trazer confuso. E o nosso esforo to srio e solene, to diretoe sincero que difcil suspeitar dele. Confiamos sempre na "integridade" do nosso conselheiro espiritual.

    No importa o que possamos usar para chegar autojustificao: a sabedoria dos livros sagrados, diagramas oumapas, clculos matemticos, frmulas esotricas, religio fundamentalista, psicologia profunda, ou qualquer outro

    mecanismo. Toda vez que nos pomos a fazer avaliaes, decidindo se devemos ou no fazer isto ou aquilo, j teremosassociado nossa prtica ou nosso conhecimento a categorias contrapostas umas s outras, e isso materialismoespiritual, a falsa espiritualidade do nosso conselheiro espiritual. Toda vez que temos uma noo dualstica como, por exemplo: "Estou fazendo isto porque quero atingir um determinado estado de conscincia, um determinado estado deser", automaticamente nos separamos da realidade do que somos.

    Se perguntarmos a ns mesmos: "Que h de mau em avaliar, que h de mau em tomar partido?", a resposta serque, quando formulamos um juzo secundrio: "Eu devia estar fazendo isto e devia evitar fazer aquilo", estamosatingindo um nvel de complicao que nos faz enveredar por um longo caminho, afastando-nos da simplicidade bsicado que somos. A simplicidade da meditao significa apenas vivenciar o instinto simiesco do ego. Se algo alm disso superposto nossa psicologia, ela se toma uma mscara muito pesada e espessa, uma armadura.

    importante notar que o aspecto principal de qualquer prtica espiritual deixar para trs a burocracia do ego, isto

    , deixar para trs o constante desejo do ego de adquirir uma verso mais elevada, mais espiritual, mais transcendentaldo conhecimento, da religio, da virtude, do julgamento, do conforto ou de qualquer particularidade que umdeterminado ego esteja procurando. Precisamos deixar para trs o materialismo espiritual. Se no pusermos de lado omaterialismo espiritual, se, na verdade, o praticarmos, poderemos, posteriormente, surpreender-nos na posse de umaimensa coleo de caminhos espirituais. Podemos pensar que esse aglomerado espiritual muito precioso. Estudamosmuito. Talvez tenhamos estudado filosofia ocidental ou filosofia oriental, praticado ioga ou estudado sob a orientaode dzias de grandes mestres. Conseguimos realizaes e adquirimos conhecimentos. Acreditamos ter acumulado umarsenal de conhecimentos. E, no entanto, depois de passar por tudo isso, ainda nos resta abrir mo de alguma coisa. Isso extremamente misterioso: Como pde acontecer algo assim? Impossvel! Mas, infelizmente, assim mesmo. Osnossos vastos conjuntos de conhecimentos e experincias so apenas parte da exibio do ego, parte da caractersticaaparatosa do ego. Ns as exibimos ao mundo e, ao faz-lo, reasseguramo-nos de que existimos, sos e salvos, como pessoas "espirituais".

    Teremos, porm, apenas criado uma loja, uma loja de antigidades. Poderemos estar nos especializando emantigidades orientais ou antigidades crists medievais, ou em antigidades de uma outra civilizao ou de um outrotempo, mas estamos, todavia, gerenciando uma loja. Antes de a enchermos de tantas coisas, a sala era bonita: paredescaiadas de branco, soalho bem simples e uma lmpada brilhante acesa no teto. No meio da sala havia um belo objeto de

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    7/76

    7

    arte. Todas as pessoas que chegavam apreciavam sua beleza, inclusive ns mesmos.

    Mas no estvamos satisfeitos e pensamos: "J que este nico objeto embeleza tanto a minha sala, se eu conseguir outras antigidades, minha sala ficar ainda mais bonita." Assim, pusemo-nos a colecionar, e o resultado final foi ocaos.

    Percorremos o mundo inteiro cata de belos objetos a ndia, o Japo, vrios pases. E sempre queencontrvamos uma antigidade, como estvamos lidando apenas com um objeto de cada vez, vamos sua beleza e pensvamos como ficaria bonito em nossa loja. Mas quando levamos o objeto para casa e o colocamos na sala, ele setornou apenas mais um acrscimo a nossa coleo de quinquilharias. A beleza do objeto j no se irradiava, pois estavacercado de outras tantas coisas bonitas. O objeto j no tinha significado algum. Em lugar de uma sala cheia de belasantigidades, estvamos criando uma loja de entulhos!

    Comprar adequadamente no implica acmulo de uma grande quantidade de informaes ou de coisas bonitas, masrequer uma apreciao plena de cada objeto individualmente. Isto muito importante. Quando apreciamos de fato um belo objeto, indentificamo-nos completamente com ele e esquecemo-nos de ns mesmos. como assistir a um filmemuito interessante, fascinante, e esquecermo-nos de que somos o pblico. Naquele momento, o mundo deixa de existir;todo o nosso ser aquela cena daquele filme. a esse tipo de identificao que aludimos, o completo envolvimentocom uma coisa. Ser que efetivamente saboreamos, mastigamos e engolimos, de forma adequada, aquele objeto de arte,aquele ensinamento espiritual? Ou nos limitamos a consider-lo como parte de nossa vasta a crescente coleo?

    Coloco tanta nfase sobre esse ponto porque sei que todos ns chegamos aos ensinamentos e prtica dameditao no para ganhar bastante dinheiro, mas porque tnhamos um desejo autentico de aprender, de desenvolver-nos. Se, porm, consideramos o conhecimento como uma antigidade, como "sabedoria secular" a ser colecionada,estamos no caminho errado:

    No que diz respeito linhagem dos mestres, o conhecimento no se transmite como uma antigidade. Ao contrrio,um mestre vivncia a verdade dos ensinamentos e a transmite como uma inspirao ao seu aluno. Essa inspiraodesperta o aluno, tal como seu mestre foi despertado antes dele. Em seguida, o aluno passa os ensinamentos a um outroestudante, e assim segue o processo. Os ensinamentos esto sempre atualizados. No so "sabedoria secular", uma lendaantiga. No passam de uma pessoa a outra como informaes, no se transmitem como as histrias popularestradicionais que um av conta a seus netos. No e' assim que as coisas funcionam. Trata-se de uma experincia real.

    H um dito nas escrituras tibetanas: "O conhecimento precisa ser aquecido, malhado e batido como o ouro puro. Sdepois poderemos us-lo como um ornamento." Portanto, quando voc recebe instruo espiritual das mos de outra pessoa, no a aceite sem esprito crtico, mas a aquea, malhe e golpeie at que aparea a cor brilhante e nobre de ouro.Ento, voc faa dela um ornamento, dando-lhe o desenho que desejar, e passe a us-la. Dessa forma, odharma seaplica a todas as pocas, a todas as pessoas; possui uma qualidade viva. No nos basta imitar o mestre ou guru; noestamos tentando nos transformar em uma rplica do nosso instrutor. Os ensinamentos constituem uma experincia pessoal de cada um, at chegar ao detentor atual da doutrina.

    possvel que muitos dos meus leitores estejam familiarizados com as histrias de Naropa, Tilopa, Marpa,Milarepa, Gampopa e outros mestres da linhagem Kagy. Foi uma experincia viva para eles e viva a experincia dosatuais detentores da linhagem. Apenas os pormenores das situaes de vida que so diferentes. Os ensinamentos tm aqualidade do po quente, recm-sado do forno; o po ainda se conserva quente e fresco. Cada padeiro precisa aplicar osconhecimentos gerais de como fazer po ao seu prprio amassar e enfornar. A seguir, precisa experimentar

    pessoalmente o po fresco, cort-lo enquanto fresco e com-lo enquanto quente. Precisa tornar seus os ensinamentos e,depois, pratic-los. Este um processo muito vivo. No h engano algum em termos de coletar conhecimentos. Temosde trabalhar com nossas prprias experincias. Quando ficamos confusos, no podemos nos voltar para a nossa coleode conhecimentos e tentar encontrar alguma confirmao ou consolo: "O mestre e todos os ensinamentos esto do meulado." O caminho espiritual no segue por esse rumo. um caminho solitrio, individual.

    P: O senhor acha que o materialismo espiritual um problema particularmente americano?

    R: Toda vez que os ensinamentos chegam do exterior a um pas, intensifica-se o problema do materialismoespiritual. Neste momento, sem dvida nenhuma, os Estados Unidos so um solo frtil e preparado para receber osensinamentos. E por ser to frtil e estar procura da espiritualidade, os Estados Unidos tm a possibilidade deencorajar charlates. Os charlates no decidiriam ser charlates se no se sentissem motivados a tanto. No fosseassim, seriam assaltantes de bancos ou bandidos, j que desejam ganhar dinheiro e ficar famosos. E como os Estados

    Unidos esto buscando a espiritualidade com tanto empenho, a religio toma-se um modo fcil de ganhar dinheiro econquistar fama. Nessas circunstncias, vemos charlates no papel de estudante,cheia,assim como no papel de guru.Acho que os Estados Unidos, neste momento atual, oferecem um solo interessantssimo.

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    8/76

    8

    P: O senhor aceitou algum mestre espiritual como guru, algum mestre espiritual vivo em especial?

    R: Neste momento, no tenho nenhum. Fisicamente, deixei meus gurus e mestres para trs, no Tibete, mas osensinamentos permanecem comigo e continuam.

    P: Ento, quem que o senhor est mais ou menos seguindo?

    R: As situaes so a voz do meu guru, a presena do meu guru.

    P: Depois que o Buda Shakyamuni alcanou a iluminao, permaneceu nele algum vestgio do ego, de modo queele pudesse prosseguir nos seus ensinamentos?

    R: Os ensinamentos simplesmente aconteceram, Ele no tinha o desejo de ensinar nem de no ensinar. Ele passousete semanas sentado sombra de uma rvore e caminhando ao longo de um rio. Ento, ocorreu que algum apareceu por ali e ele comeou a falar. No h escolha. Voc est ali, uma pessoa aberta. Ento, a situao se apresenta e oensinamento acontece. o que se chama "atividade bdica".

    P: difcil no ser aquisitivo, com relao espiritualidade. O desejo de adquirir uma coisa de que nosdesfazemos ao longo do caminho?

    R: Voc deve deixar que o primeiro impulso se esvazie. O seu primeiro impulso em direo espiritualidade poder coloc-lo em um cenrio espiritual especfico; mas se voc trabalhar com esse impulso, pouco a pouco ele seextingue e, num determinado ponto, se torna tedioso, montono. Esta mensagem muito til. Veja bem, essencialrelacionar-se consigo mesmo, com sua prpria experincia, efetivamente. Quando no nos relacionamos conosco, ocaminho espiritual torna-se perigoso, passa a ser mais um entretenimento puramente externo do que uma experincia pessoal, orgnica.

    P: Se decidirmos procurar uma sada para a ignorncia, podemos supor, quase com certeza, que tudo o quefizermos e que nos der prazer ser benfico ao ego e estar, na verdade, bloqueando o caminho. Qualquer coisa que parece certa est errada; tudo que no nos virar de cabea para baixo acabar por enterrar-nos. Existe alguma sada paraisto?

    R:Se voc executa um ato que seja aparentemente certo, isso no quer dizer que ele seja errado, pela simples razo

    de que errado e certo esto fora deste contexto. Voc no est trabalhando de nenhum lado, nem do lado "bom", nem dolado "mau", mas sim com a totalidade do conjunto, para alm de "isso" e "aquilo". Eu diria que h uma ao completa. No existe ato parcial, embora tudo que faamos relacionado com bom e mau parea um ato parcial.

    P: Quando nos sentimos muito confusos e procuramos nos desvencilhar e sair da confuso, pode parecer queestamos nos esforando demais. Mas se no fizermos nenhuma tentativa, devemos ento entender que estamos nosiludindo?

    R: Sim, mas isso no significa que temos de viver nos extremos, esforando-nos muito ou no fazendo tentativaalguma. Precisamos trabalhar com uma espcie de "caminho do meio", um estado completo de "sermos como somos".Poderamos descrev-lo com uma poro de palavras, mas temos realmente que passar por ele. Se voc comea, de fato,a viver o caminho do meio, ento ir enxerg-lo, ir encontr-lo. Voc precisa permitir-se confiar em si prprio, confiar em sua prpria inteligncia. Somos pessoas incrveis, temos coisas incrveis dentro de ns. Temos simplesmente que

    nos deixar ser. Auxlio externo no pode oferecer ajuda. Se voc no est disposto a se permitir crescer, ento cair no processo autodestrutivo da confuso. Aqui temos autodestruio ao invs de destruio por outra pessoa. Eis por queisso eficaz: porque auto-destruio.

    P: O que a f? Ela til?

    R: A f pode ser simplista, confiante e cega, ou pode ser uma confiana definitiva que no pode ser destruda. A fcega destituda de inspirao; muito ingnua. No criativa, embora no seja exatamente destrutiva. No criativa porque entre sua f e voc mesmo nunca se estabeleceu nenhuma conexo, nenhuma comunicao. Voc apenasaceitou, cegamente, toda a crena, muito ingenuamente.

    No caso da f como confiana, existe uma razo viva para voc ser confiante. Voc no espera que uma soluo pr-fabricada lhe seja misteriosamente apresentada. Voc trabalha com as situaes existentes, sem medo, sem qualquer

    dvida de envolver-se ou no. Es

    sa atitude sumamente criativa e positiva. Se sua confiana definitiva, voc est toseguro de si que no tem que se fiscalizar. Trata-se de confianaabsoluta,uma verdadeira compreenso do que estacontecendo agora. Portanto, voc no hesita em seguir outros caminhos nem em tomar a atitude necessria frente acada nova situao.

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    9/76

    9

    P: O que que o guia no caminho?

    R: Na realidade, no parece haver nenhum guia em particular. De fato, se algum estiver nos guiando, isso suspeito, porque estaremos nos amparando em algo externo. Ser plenamente o que somos em ns mesmos passa a ser oguia, mas no no .sentido de vanguarda, porque no h um guia para seguir. No precisamos seguir os passos deningum, mas apenas seguir livremente. Em outras palavras, o guia no caminha nossa frente, mas ao nosso lado.

    P: O senhor poderia dizer mais alguma coisa sobre como a meditao provoca um curto-circuito nos mecanismos protetores do ego?

    R: O mecanismo protetor do ego implica voc se fiscalizar, o que uma forma desnecessria de auto-observao.A base da meditao no est no fato de meditar sobredeterminado assunto por meio de uma autofiscalizao; mas ameditao significa uma completa identificao com as tcnicas que voc estiver empregando. Desse modo, na prticada meditao, no h esforo algum para buscar segurana.

    P: Parece que estou vivendo num ferro-velho espiritual. Como posso transform-lo numa sala simples comapenas um objeto bonito?

    R: A fim de desenvolver a capacidade de apreciar sua coleo, voc tem que comear com um nico objeto.

    preciso encontrar uma entrada, uma fonte de inspirao. Talvez no seja preciso passar pelo resto dos objetos da suacoleo se voc estudar apenas uma pea. Esse nico objeto poderia ser uma placa que voc conseguiu furtar em NovaYork; poder ser to insignificante quanto isso. Mas precisamos comear com uma coisa, enxergar sua simplicidade, aqualidade tosca deste traste velho, ou desta bela pea de antigidade. Se consegussemos comear apenas com umacoisa, isso eqivaleria a ter um nico objeto numa sala vazia. Creio que uma questo de encontrar uma entrada. Por termos tantos bens em nossa coleo, o problema, em grande parte, que no sabemos por onde comear. Voc tem que permitir que seu instinto determine qual ser a primeira coisa que ir apanhar.

    P: Por que o senhor acha que as pessoas protegem tanto o ego delas? Por que to difcil abrir mo do nosso ego?

    R: As pessoas tm medo do vazio do espao, da ausncia de companhia, da ausncia de uma sombra. Poderia ser uma experincia apavorante no ter ningum nem nada com quem se relacionar. A idia disso pode ser extremamenteassustadora, se bem que a experincia real no o seja. Trata-se, geralmente, de um medo de espao, de um medo de no

    sermos capazes de nos ancorarmos em um solo firme, de perdermos nossa identidade como uma coisa fixa, slida edefinida. Isto pode ser muito ameaador.

    Entrega

    A esta altura podemos ter chegado concluso de que deveramos abandonar todo o jogo do materialismoespiritual, isto , de que deveramos desistir de tentar defender-nos e aperfeioar-nos. Podemos ter entrevisto que nossaluta ftil e querer entregar-nos, abandonar por completo nossos esforos para nos defender. Mas quantos de ns poderamos realmente fazer isto? A coisa no to simples e fcil como se pode pensar. At que ponto poderamosverdadeiramente desapegar-nos e sermos abertos? Em que ponto passaramos para a defensiva?

    Nesta palestra vamos discutir a entrega, especialmente em termos da relao entre o trabalho sobre o estadoneurtico da mente e o trabalho com um guru ou mestre pessoal. Entregar-se ao "guru" poderia significar abrir nossasmentes para as situaes da vida bem como para um mestre individual. No entanto, se o nosso estilo de vida e a nossainspirao apontam no sentido de descobrir a mente, ento quase certamente iremos tambm encontrar um guru pessoal.Por isso, nas prximas palestras vamos enfatizar o relacionamento com um mestre pessoal.

    Uma das dificuldades de entregar-nos a um guru so as nossas idias preconcebidas em relao a ele e as nossasexpectativas do que acontecer com ele. Estamos absorvidos com idias do que gostaramos de experimentar com onosso mestre: "Eu gostaria de ver isso; esta seria a melhor maneira de ver. Eu gostaria de vivenciar essa situao, porque est perfeitamente de acordo com a minha expectativa e a minha fascinao."

    Deste modo, tentamos encaixar as coisas em escaninhos, tentamos ajustar a situao s nossas expectativas, e noconseguimos renunciar a parte alguma do que aguardamos. Se samos procura de um guru ou de um mestre,

    esperamos que ele seja piedoso, sereno, discreto, um homem simples e, no obstante, sbio. Quando descobrimos queele no corresponde s nossas expectativas, comeamos a nos decepcionar, comeamos a duvidar.

    A fim de estabelecer um verdadeiro relacionamento mestre-discpulo, necessrio que renunciemos a todas as

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    10/76

    10

    nossas idias preconcebidas a respeito deste relacionamento e de como abrir-nos e entregar-nos. "Entregar-nos"significa abrir-nos completamente, tentando passar alm da fascinao e da expectativa.

    Entregar-nos tambm significa reconhecer as qualidades cruas, rudes, desajeitadas e chocantes do nosso ego,reconhec-las e renunciar a elas. Geralmente, achamos muito difcil mostrar e entregar as qualidades nuas e cruas donosso ego. Embora possamos odiar-nos, ao mesmo tempo, vemos neste auto-dio uma espcie de serventia. Apesar deno gostarmos do que somos e acharmos penosa nossa auto-condenao, ainda assim no conseguimos abrir mo destefato completamente. Se comeamos a renunciar nossa autocrtica, podemos sentir que estamos perdendo a nossaocupao, como se algum estivesse tirando o nosso emprego. No teramos nenhuns outros afazeres, se tivssemos querenunciar a tudo; no haveria coisa alguma a que nos agarrar. A auto-avaliao e a autocrtica so, basicamente, ten-dncias neurticas que decorrem do fato de no termos suficiente confiana em ns mesmos, "confiana" no sentido dever o que somos, saber o que somos, saber que podemos permitir-nos uma abertura. Podemos permitir-nos a entregadessa qualidade neurtica nua e crua do eu, e deixar para trs o fascnio, deixar para trs as idias preconcebidas.

    Precisamos abrir mo de nossas esperanas e expectativas, assim como de nossos medos, e marchar diretamente para dentro do desapontamento, trabalhar com o desapontamento, entrar nele e fazer dele o nosso modo de vida, o que uma coisa muito difcil de fazer. O desapontamento um bom sinal de inteligncia bsica. No pode ser comparado anada: ntido, preciso, bvio e direto. Se formos capazes de nos abrir, comearemos a ver, de repente, que nossasexpectativas so irrelevantes, se comparadas realidade das situaes que estamos enfrentando. Isto, automaticamente,traz uma sensao de decepo.

    A decepo o melhor veculo que podemos usar no caminho do dharma. Ela no confirma a existncia do nossoego nem de seus sonhos. Entretanto, se estamos envolvidos com materialismo espiritual, se encaramos a espiritualidadecomo parte de nosso acmulo de aprendizado e virtudes, se a espiritualidade se transforma num meio de nos formar ans mesmos, o curso de todo o processo de entrega est completamente distorcido. Se consideramos a espiritualidadeum meio de adquirirmos conforto, toda vez que tivermos uma experincia desagradvel, uma decepo, tentaremosracionaliz-la: " claro que isto deve ser um gesto de sabedoria da parte do guru, pois eu sei, tenho certeza de que eleno faz nada que seja prejudicial. Guruji um ser perfeito e tudo o que faz est certo. Tudo o que faz, no importa oqu, Guruji faz por mim, porque est do meu lado. Por isso estou em condies de me abrir. Posso entregar-me comsegurana. Sei que estou seguindo pelo caminho certo." H qualquer coisa no muito certa numa atitude assim. Namelhor das hipteses, ela simplista e? ingnua. Ficamos cativados pelo aspecto impressionante, inspirador, digno e pitoresco de "Guruji". No ousamos ter um outro ngulo de viso. Desenvolvemos a convico de que tudo quantovivenciamos faz parte do nosso desenvolvimento espiritual. "Eu consegui. Eu vivenciei a experincia. Sou uma pessoa

    que se fez por si mesma e sei quase tudo, porque li livros e eles confirmam minhas crenas, minhas idias, que eu tenhorazo. Tudo coincide."

    Podemos conter-nos ainda de outra forma: no nos entregando de fato porque nos julgamos pessoas muito bem-educadas, sofisticadas e dignas. "Por certo que no podemos entregar-nos a esta realidade prosaica, vulgar e suja".Temos a impresso de que cada passo do caminho que percorremos deveria ser uma ptala de ltus e criamos umalgica que concordantemente interpreta tudo o que nos acontea. Se camos, criamos um pouso macio para impedir qualquer choque brusco. Mas, a entrega no inclui preparativos para um pouso suave; significa simplesmente cair emsolo duro, comum, em terreno agreste, cheio de pedras. Quando nos abrimos, camos no querealmenteexiste.

    Tradicionalmente, a entrega simbolizada por prticas como a prostrao, que o ato de cair ao cho num gesto derenncia. Ao mesmo tempo nos abrimos psicologicamente e nos entregamos completamente ao nos identificarmos como mais humilde dos humildes, reconhecendo nossa qualidade crua e rude. No h nada que temamos perder quando nos

    identificamos com o mais baixo dos baixos. Ao faz-lo, preparamo-nos para ser um recipiente vazio, pronto parareceber os ensinamentos.

    Na tradio budista existe uma frmula bsica: "Refugio-me no Buda, refugio-me no dharma, refugio-me nosangha." Refugio-me no Buda como exemplo de entrega, o exemplo do reconhecimento da negatividade como parte danossa constituio e de nossa abertura ela. Refugio-me no dharma dharma, a "lei da existncia", a vida como ela .Estou disposto a abrir os olhos e enxergar as circunstncias da vida exatamente como elas so. No estou inclinado av-las como espirituais ou msticas, mas quero ver as situaes da vida como elas realmente so. Refugio-me no sangha."Sangha" significa "comunidade de pessoas no caminho espiritual", "companheiros". Estou disposto a compartilhar aexperincia de toda a vida que nos cerca com os meus companheiros de peregrinao, meus companheiros de busca, osque caminham comigo; mas no estou disposto a encostar-me neles a fim de obter apoio. Minha vontade apenascaminhar com eles. H uma tendncia muito perigosa de nos apoiarmos uns nos outros ao percorrer o caminho. Se osmembros de um grupo se firmam uns nos outros, todos cairo se, por acaso, um deles cair. Por isso mesmo no nos

    apoiamos em uma outra pessoa. Limitamo-nos a caminhar uns com os outros, lado a lado, ombro a ombro, a trabalhar com os outros, a ir com eles. Essa atitude com relao entrega, essa noo de refgio muito profunda.

    A maneira errada de nos refugiarmos supe a busca de um abrigo adorar montanhas, deuses do Sol, deuses da

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    11/76

    11

    Lua, divindades de todos os tipos, pela simples razo de parecerem maiores do que ns. Esse gnero de refugiar-se semelhante resposta da criana que diz: "Se voc me bater, vou contar tudo para minha me", na suposio de que suame seja o arqutipo de uma pessoa poderosa e grande. Quando atacada, seu recurso automtico correr para a me,uma personalidade invencvel, onisciente e onipotente. A criana acredita que a me pode proteg-la, que, na realidade, a nica pessoa capaz de salv-la. Buscar refgio numa figura materna ou paterna realmente auto-aniquilante. Quemo faz no tem, em absoluto, qualquer fora bsica efetiva, qualquer inspirao verdadeira. Est constantemente ocupadoem avaliar poderes maiores e menores. Se somos pequenos, algum maior do que ns pode nos esmagar. Buscamosrefgio porque no podemos nos permitir ser pequenos e desprotegidos. Tendemos a nos menosprezar desculpando-nos:"Sou muito pequenino, mas reconheo a grandeza de sua qualidade. Gostaria de adorar sua grandeza, juntar-me a ela;voc poderia fazer o favor de me proteger?"

    Entregar-se no significa ser inferior e tolo, nem querer ser elevado e profundo. No tem nada a ver com nveis eavaliaes. Ao invs disso, entregamo-nos porque gostaramos de nos comunicar com o mundo tal "como ele ". No precisamos nos classificar como cultos ou como ignorantes. Sabemos onde estamos e, portanto, fazemos o gesto deentrega, da abertura, que quer dizer comunicao, ligao, comunicao direta com o objeto da nossa entrega. No nosconstrangemos com nossa rica coleo de qualidades cruas, rudes, belas e puras. Apresentamos tudo ao objeto da nossaentrega. O ato bsico da entrega no implica a adorao de um poder externo. Antes disso, significa trabalhar junto coma inspirao, de modo que nos tomamos um recipiente aberto no qual o conhecimento pode ser vertido.

    Dessa forma, a abertura e a entrega constituem a preparao necessria para o trabalho com um amigo espiritual.

    Ns reconhecemos nossa riqueza fundamental em vez de lastimar a pobreza imaginria do nosso ser. Sabemos quesomos dignos de receber os ensinamentos, dignos de relacionar-nos com a riqueza das oportunidades de aprender.

    O Guru

    Ao chegarmos ao estudo da espiritualidade nos deparamos com o problema do relacionamento com um mestre,lama, guru, ou como quer que ns chamamos a pessoa que, supomos, nos dar compreenso espiritual. Essas palavras,sobretudo o termo "guru", adquiriram no Ocidente significados e associaes enganosos e que, geralmente, aumentam aconfuso em tomo da questo de saber o que significa estudar com um mestre espiritual. Isso no quer dizer que as pessoas no Oriente saibam como devem relacionar-se com um guru, enquanto os ocidentais no o saibam; o problema universal. As pessoas chegam sempre ao estudo da espiritualidade com algumas idias j fixas a respeito do que voconseguir e como lidar com a pessoa da qual presumem que vo conseguir. At a noo deconseguir alguma coisa de

    um guru felicidade, paz de esprito, sabedoria, seja o que for que procuremos um dos preconceitos mais difceisde todos. Desse modo, penso que seria proveitoso examinar o modo com que alguns discpulos famosos lidaram com os problemas de como relacionar-se com a espiritualidade e com um mestre espiritual. bem possvel que esses exemplostenham alguma relevncia para a nossa prpria busca.

    Um dos mais renomados mestres tibetanos e tambm um dos principais gurus da linhagem Kagy, da qual sou ummembro, era Marpa, aluno do mestre indiano Naropa e guru de Milarepa, seu mais famoso filho espiritual. Marpa umexemplo de algum que se tornaria um homem bem-sucedido, por iniciativa prpria. Nascera de uma famlia deagricultores, porm, como um jovem, era ambicioso, o que o levou a escolher os estudos e o sacerdcio como caminho para a preeminncia. Podemos imaginar o tremendo esforo e determinao que devem ter custado ao filho de umlavrador, para elevar-se posio de sacerdote segundo a tradio religiosa local. Havia apenas umas poucas maneirasde um homem nessas condies adquirir qualquer tipo de posio no Tibete do sculo X como mercador, como bandido ou, sobretudo, como sacerdote. Ingressar no clero local, naquele tempo, eqivalia, aproximadamente, a se

    tomar, ao mesmo tempo, mdico, advogado e professor universitrio.Marpa comeou estudando tibetano, snscrito, vrias outras lnguas e a lngua falada da ndia. Depois de cerca de

    trs anos desses estudos, ele j era bastante competente para comear a ganhar dinheiro como um erudito e, com essedinheiro, financiou seus estudos religiosos, e tomou-se um sacerdote budista razovel, o que lhe valeu certo grau de proeminncia local. Marpa, contudo, era mais ambicioso e, assim, embora j fosse casado e tivesse uma famlia,continuou a economizar o que ganhava at acumular grande quantidade de ouro.

    Nesse ponto, anunciou aos parentes a inteno de viajar para a ndia a fim de colher mais ensinamentos. Nessapoca, a ndia era o centro mundial dos estudos budistas, onde se erguia a Universidade de Nalanda e onde viviam osmaiores sbios e eruditos budistas. Marpa pretendia estudar e adquirir textos desconhecidos no Tibete, lev-los paracasa e traduzi-los, estabelecendo-se, dessa maneira, como grande tradutor erudito. A viagem para a ndia naqueletempo, e at muito recentemente, era uma longa e perigosa jornada. A famlia de Marpa e seus parentes idosos tentaram

    dissuadi-lo de faz-la. Mas ele, muito determinado, ps-se a caminho, acompanhado apenas de um amigo e colega deestudos.

    Aps uma difcil caminhada de alguns meses, os dois cruzaram os Himalaias e entraram na ndia, dirigindo-se a

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    12/76

    12

    Bengala, onde se separaram, seguindo cada qual o seu rumo. Ambos tinham as necessrias qualificaes para o estudoda lngua e da religio e, assim sendo, decidiram procurar seus prprios mestres, que satisfizessem s preferncias decada um. Antes de se separarem, combinaram tornar a encontrar-se para a viagem de regresso ao lar.

    Enquanto viajava pelo Nepal, Marpa ouviu falar no mestre Naropa, homem de enorme fama. Naropa fora abade daUniversidade de Nalanda, talvez o maior centro de estudos budistas que o mundo j conheceu. No ponto culminante dasua carreira, percebendo que entendia o sentido mas no aprendia o verdadeiro significado dos ensinamentos,abandonou o posto e saiu procura de um guru. Durante doze anos sofreu terrveis apuros nas mos de seu mestreTilopa, at que, finalmente, atingiu a iluminao. Na ocasio em que Marpa ouviu falar a seu respeito, ele eraconsiderado um dos maiores santos budistas que j tinham vivido. Marpa, naturalmente, partiu sua procura.

    Marpa encontrou Naropa vivendo pobremente numa casa singela nas florestas de Bengala. Tinha esperadoencontrar to grande mestre vivendo num ambiente religioso altamente desenvolvido e, por isso mesmo, sentiu-se umtanto decepcionado. Entretanto, como estivesse meio confuso diante das surpresas que lhe proporcionava um paisestranho, disps-se a fazer algumas concesses, achando que talvez fosse daquela maneira que viviam os mestresindianos. Alm do que, a apreciao da fama de Naropa pesou mais do que o desapontamento, e ele, dando ao mestre amaior parte do seu ouro, solicitou-lhe os ensinamentos. Explicou-lhe que era casado, sacerdote, erudito e lavrador doTibete, e que no estava disposto a renunciar vida que construra para si, mas pretendia recolher ensinamentos que pudesse levar de volta ao Tibete a fim de traduzi-los e, com eles, ganhar mais dinheiro. Naropa concordou semdificuldade com as solicitaes de Marpa, deu-lhe instrues, e tudo correu da melhor maneira possvel.

    Depois de algum tempo, Marpa decidiu que j coligira ensinamentos suficientes para satisfazer aos seus propsitose preparou-se para voltar. Dirigiu-se a uma estalagem numa cidade grande, onde se reencontrou com o companheiro de jornada. Sentaram-se os dois para comparar os resultados dos seus esforos. Quando o amigo viu o que Marpaarrecadara soltou uma gargalhada e disse-lhe: "O que voc traz a no vale nada! J temos esses ensinamentos noTibete. Voc deveria ter encontrado algo mais emocionante e raro. Pois eu encontrei ensinamentos fantsticos, querecebi de grandiosos mestres."

    Marpa, naturalmente, sentiu-se extremamente frustrado e conturbado depois de haver feito um percurso to longo,com tamanhas dificuldades e despesas, de modo que decidiu voltar para junto de Naropa e tentar mais uma vez. Quandochegou cabana de Naropa e pediu-lhe ensinamentos mais raros, mais exticos e adiantados, para surpresa sua Naroparespondeu-lhe: "Sinto muito, mas voc no pode receber de mim tais ensinamentos. Ter de receb-los de outra pessoa,um homem chamado Kukuripa. A jornada difcil, porque Kukuripa vive numa ilha no meio de um lago venenoso. Mas

    a pessoa que voc ter de encontrar se quiser esses ensinamentos."A essa altura, Marpa estava ficando desesperado, de forma que resolveu empreender a viagem. Alm do que, se

    Kukuripa possua ensinamentos que nem mesmo o grande Naropa podia dar-lhe e vivia no meio de um lagoenvenenado, era evidente que teria de ser um mestre extraordinrio, um grande mstico.

    Nessas condies, Marpa realizou a jornada e conseguiu atravessar o lago e chegar ilha, onde comeou a procurar Kukuripa. Ali encontrou um velho indiano que vivia no meio da sujeira e cercado de centenas de cadelas. A situao eraestranhssima, para dizer o mnimo, mas assim mesmo Marpa tentou falar com Kukuripa. Tudo o que obteve comoresposta foram frases sem sentido. Kukuripa parecia estar dizendo apenas besteiras.

    A situao se tornara quase insustentvel. Alm de no compreender uma nica palavra do que lhe dizia Kukuripa,Marpa precisava estar constantemente em guarda contra as centenas de cadelas. Assim que conseguia fazer amizade

    com uma delas, outra latia e ameaava mord-lo. Finalmente, quase fora de si, Marpa desistiu de tudo, desistiu de tentar tomar notas, de tentar receber qualquer tipo de doutrina secreta. Nesse instante Kukuripa principiou a falar-lhe com voz perfeitamente inteligvel e coerente, as cadelas deixaram de atorment-lo e Marpa recebeu os ensinamentos.

    Depois de haver completado os estudos com Kukuripa, Marpa retornou mais uma vez ao guru original, Naropa. E Naropa lhe disse: "Agora voc precisa voltar ao Tibete e ensinar. No lhe basta receber ensinamentos tericos. Voc precisa passar por certas experincias de vida. Depois, poder voltar outra vez e continuar a estudar."

    Marpa tornou a encontrar-se com o companheiro de buscas e, juntos, iniciaram a longa jornada de regresso aoTibete. O companheiro de Marpa tambm estudara muito e os dois homens carregavam uma pilha de manuscritos.Enquanto viajavam, discutiam o que tinham aprendido. No tardou que Marpa se sentisse inquieto em relao ao amigo,o qual, cada vez mais inquisidor, tentava descobrir a todo custo os ensinamentos que Marpa obtivera. As conversaesque travavam pareciam girar, cada vez mais, em torno desse assunto, at que, afinal, o companheiro de Marpa chegou

    concluso de que este obtivera ensinamentos mais valiosos do que ele e, assim, acabou ficando com inveja. Enquantoatravessavam um rio numa balsa, o colega de Marpa comeou a queixar-se de que estava numa posio incmoda,estorvado por toda a bagagem que ambos traziam. Trocou de posio na balsa, a fim de instalar-se de maneira um poucomais confortvel e, ao faz-lo, deu um jeito de atirar todos os manuscritos de Marpa no rio. Marpa tentou

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    13/76

    13

    desesperadamente recuper-los, mas estavam perdidos. Todos os textos que tanto se esforara por obter haviamdesaparecido num instante.

    Foi, assim, com um sentimento de perda muito grande, que Marpa retomou ao Tibete. Tinha inmeras histrias para contar sobre suas viagens e estudos, mas nada slido como prova de seus conhecimentos e experincias. Apesar disso, passou vrios anos trabalhando e ensinando, at que, para sua surpresa, comeou a compreender que os seusescritos lhe teriam sido inteis, ainda que tivesse podido resgat-los. Enquanto se achava na ndia, anotara apenas as partes dos ensinamentos que no compreendera. No pusera por escrito os que faziam parte da sua prpria experincia.Somente anos mais tarde veio a descobrir que eles se haviam transformado, realmente, numa parte de si mesmo.

    Com esse descobrimento, Marpa perdeu todo o desejo de tirar proveito dos ensinamentos. J no se preocupava emganhar dinheiro ou prestgio; em vez disso, sentiu-se inspirado a atingir a iluminao. Ento, juntou ouro em p comooferenda a Naropa e, mais uma vez, seguiu viagem ndia. Desta vez ia ansioso por ver o guru e vido dosensinamentos.

    No entanto, o encontro seguinte de Marpa com Naropa foi muito diferente dos anteriores. Naropa parecia muitofrio e impessoal, quase hostil, e as primeiras palavras que lhe dirigiu foram: "Prazer em v-lo novamente. Quanto ourovoc tem para pagar meus ensinamentos?" Marpa trouxera grande quantidade de ouro mas, como quisesse guardar algum para as suas despesas e para a viagem de volta, abriu a bolsa e s deu a Naropa uma poro do que tinha. Naropa

    contemplou a oferta e disse: "No, isso no basta. Preciso de mais ouro do que este para ensin-lo. D-me todo o

    seu ouro." Marpa deu-lhe um pouco mais de ouro, mas nem assim Naropa se contentou; pediu-lhe todo o ouro e odilogo prosseguiu dessa maneira at que, finalmente, Naropa desatou a rir e disse: "Voc acha que pode comprar meusensinamentos com o seu embuste?" Nesse ponto, Marpa cedeu e entregou-lhe todo o ouro que levava. Para seu assom- bro, Naropa pegou as bolsas e ps-se a atirar o p de ouro para o ar.

    Marpa sentiu-se, de sbito, extremamente confuso e paranide. No podia compreender o que estava acontecendo.Trabalhara com afinco para ganhar aquele ouro, com o qual pretendia pagar os ensinamentos que tanto ambicionava. Naropa parecera indicar-lhe que precisava do ouro e que, em troca, o ensinaria. E, no entanto, estava jogando tudo fora!Disse-lhe ento Naropa: "Que necessidade tenho eu de ouro? O mundo inteiro ouro para mim!"

    Foi esse um grande momento de abertura para Marpa, que, abrindo-se, pde receber os ensinamentos. Permaneceucom Naropa por muito tempo depois disso e recebeu um treinamento austero, mas no se limitou a ouvir osensinamentos, como at ento fizera; foi-lhe preciso senti-los na prpria pele. Teve de renunciar a tudo que possua, no

    apenas o que possua materialmente, mas tambm o que resguardava na mente. Foi um processo contnuo de abertura eentrega.

    No caso de Milarepa, a situao desenrolou-se de maneira muito diferente. Este era um campons, muito menosinstrudo e sofisticado do que Marpa quando conheceu Naropa, e j praticara inmeros crimes, incluindo o homicdio.Sentia-se miseravelmente infeliz, almejava a iluminao e estava disposto a pagar qualquer preo que Marpa lhe pedisse. Assim sendo, Marpa o obrigou a pagar num nvel literalmente fsico. Ele fez Milarepa construir uma srie decasas, uma depois da outra, e, aps a completa edificao de cada uma delas, Marpa ordenava a Milarepa que aderrubasse e colocasse todas as pedras de volta no lugar onde as encontrara, para no estragar a paisagem. Cada vez queMarpa mandava Milarepa desmanchar uma casa, apresentava alguma desculpa absurda, como alegar que estava bbadoquando ordenara a construo ou afirmar que absolutamente nunca a encomendara. E Milarepa, cada vez mais ansioso pelos ensinamentos, punha a casa abaixo e recomeava.

    Por fim, Marpa planejou uma torre de nove andares. Milarepa passou por tremendo sofrimento fsico para carregar as pedras e construir a casa e, quando terminou, dirigiu-se a Marpa e, mais uma vez, rogou-lhe que o ensinasse. Marpa,contudo, lhe respondeu: "Voc quer que eu lhe d ensino, assim, sem mais nem menos, s porque construiu esta torre para mim? Pois receio que ainda tenha de dar-me um presente como taxa de iniciao."

    A essa altura, Milarepa no possua coisa alguma, pois gastara todo o seu tempo e trabalho construindo torres. MasDamema, esposa de Marpa, teve pena dele e disse-lhe: "Estas torres que voc construiu so um gesto maravilhoso dedevoo e f. Meu marido seguramente no se incomodar se eu lhe der alguns sacos de cevada e um rolo de tecido para a sua taxa de iniciao." Milarepa levou, portanto, a cevada e o tecido para o crculo de iniciao em que Marpaestava ensinando e ofereceu-os como gratificao, junto com os presentes dos outros estudantes. Marpa, porm, aoreconhecer o presente, enfureceu-se e gritou para Milarepa: "Essas coisas so minhas, seuhipcrita! Voc est tentandoenganar-me!" E chutou-o literalmente, a pontaps, do crculo de iniciao. .

    Nesse ponto, Milarepa perdeu toda e qualquer esperana de conseguir, um dia, que Marpa lhe ensinasse.Desesperado, decidiu suicidar-se e j estava prestes a dar cabo da vida quando Marpa o procurou e declarou que ele,afinal, estava pronto para receber os ensinamentos.

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    14/76

    14

    O processo de receber ensino depende do aluno dar alguma coisa em troca; necessrio uma espcie de entrega psicolgica, algum presente dessa natureza. Por isso precisamos discutir a entrega, a abertura, a renncia dasexpectativas, antes de podermos falar sobre o relacionamento entre mestre e aluno. fundamental que voc se entregue,que se abra, que se apresente tal como ao guru, em vez de tentar apresentar-se como um aluno meritrio. Poucoimporta o quanto esteja disposto a pagar, o decoro do seu comportamento, a inteligncia que demonstra ao dizer a coisacerta ao seu mestre. No como realizar uma entrevista para conseguir emprego nem como comprar um carro novo. Aquesto de obter ou no o emprego depende das suas credenciais, do bom aspecto do seu traje, do bonito lustro que deuaos sapatos, do seu modo correto de falar, das suas boas maneiras. Se voc estiver comprando um carro, tudo dependerda quantia de dinheiro que tenha e do seu crdito na praa.

    Em se tratando, porm, de espiritualidade, requer-se algo mais. J no uma questo de solicitar um emprego, devestir-se bem a fim de impressionar o possvel empregador. Esse tipo de engano no se aplica a uma entrevista com umguru, que enxerga nossas intenes. Ele achar engraado que voc se vista especialmente para falar com ele. No sefazem gestos cativantes nessa situao; na verdade, isso ftil. Precisamos assumir um compromisso verdadeiro deabrir-nos perante o mestre; precisamos estar dispostos a desistir de todas as nossas idias preconcebidas. Milarepa tinhaa expectativa de que Marpa fosse um grande letrado e um santo, vestido maneira iogue, cheio de rosrios, recitandomantras, meditando. Em lugar disso, encontrou-o trabalhando na fazenda, dirigindo os trabalhadores e arando sua terra.

    Receio que a palavra "guru" seja usada em demasia no Ocidente. Teria sido melhor se falssemos em "amigoespiritual", uma vez que os ensinamentos enfatizam um encontro recproco de duas mentes. mais uma questo de

    comunicao mtua do que uma relao de amo e criado entre um ser altamente desenvolvido e um ser miservel econfuso. No relacionamento de amo e criado, o ser altamente desenvolvido pode dar a impresso de no estar sequer sentado na sua poltrona, mas parecer flutuar, levitar, olhando de cima para ns. Sua voz, penetrante, difunde-se peloespao. Cada palavra, cada tosse, cada movimento que faz um gesto de sabedoria. Mas isto um sonho. O guru h deser um amigo que nos comunica e oferece suas qualidades, como Marpa fez com Milarepa, e Naropa com Marpa. Esteltimo ofereceu sua qualidade de iogue-agricultor. Acontece que ele tinha sete filhos e uma esposa, tratava da fazenda,cultivando a terra e sustentando a si e aos seus. Tais atividades, entretanto, eram apenas uma parte corriqueira da suavida. Ele cuidava dos discpulos como cuidava das colheitas e da famlia. Era um homem to minucioso, prestandoateno a cada pormenor da sua vida, que era capaz de ser um mestre competente alm de pai e lavrador competente. No havia nem materialismo fsico nem espiritual no seu estilo de vida. Ele no enfatizava a espiritualidade nemignorava a famlia ou sua relao fsica com a terra. Quem no estiver envolvido com o materialismo, nem espiritualnem fisicamente, no dar nfase a nenhum extremo.

    Tampouco vale a pena escolher algum como guru simplesmente por ser famoso, ser renomado por ter publicadomontes de livros e convertido milhares ou milhes de pessoas. O critrio, nesse caso, seria se voc pode, de fato,comunicar-se com a pessoa, direta e completamente. At que ponto voc se ilude a si mesmo? Se voc abrir-serealmente com o seu amigo espiritual, vocs com certeza trabalharo juntos. Voc capaz de falar com ele plena edevidamente? Ele sabe alguma coisa a seu respeito? E, a propsito, ele sabe alguma coisa a respeito de si prprio? Oguru , de fato, capaz de enxergar atravs das suas mscaras, de comunicar-se com voc adequada e diretamente? Na procura do mestre, estas parecem ser as indicaes, muito mais do que a fama e a sabedoria.

    H uma histria interessante de um grupo de pessoas que resolveu estudar sob a orientao de um grande mestretibetano. Eles j tinham estudado um pouco com outros mestres, mas se haviam determinado a no poupar esforos paraestudar com aquela determinada pessoa. Estavam todos muito ansiosos por se tornarem seus alunos e por isso lhesolicitaram uma audincia, mas o grande mestre no quis aceitar nenhum deles. "S os aceitarei com uma condio",disse ele: "se estiverem dispostos a renunciar aos seus mestres anteriores." Todos lhe rogaram encarecidamente, decla-

    rando o quanto lhe eram devotados, quo grande era a sua reputao e o quanto gostariam de estudar com ele. O mestre, porm, no quis aceitar nenhum, a menos que cumprissem a condio. Finalmente, todos, exceto um, decidiramrenunciar aos mestres anteriores, com os quais, de fato, haviam aprendido muita coisa. O guru lhes pareceu muito felizquando eles assim fizeram e pediu-lhes que todos voltassem no dia seguinte. Mas, quando voltaram, disse-lhes: "Com- preendendo a hipocrisia de vocs. Da prxima vez que forem procurar outro mestre, renunciaro a mim. Por isso, foradaqui!" E enxotou-os a todos, menos ao que valorizava o que aprendera antes. A pessoa que ele aceitou j no estavamais disposta a tramas mentirosas, nem a tentar agradar o guru simulando ser diferente do que era. Se voc for fazer amizade com um mestre espiritual, ter de agir com simplicidade, abertamente, de modo que a comunicao seestabelea entre iguais, em lugar de tentar conquistar-lhe a simpatia.

    Para poder ser aceito pelo guru corno amigo, voc ter de abrir-se completamente com ele. E para poder abrir-se,ter provavelmente de sujeitar-se a provas que lhe sero dadas pelo seu amigo espiritual e pelas situaes da vida emgeral, e todas elas assumiro a forma de desapontamento. Em alguma fase do processo voc duvidar de que o amigo

    espiritual tenha qualquer sentimento, qualquer emoo em relao a voc. Isso lidar com a prpria hipocrisia. Ahipocrisia, o fingimento e a deformao bsica do ego extremamente dura; tem uma pele muito grossa. Tendemos ausar armaduras, uma em cima da outra. Essa hipocrisia to densa e multinivelada que, assim que retiramos umacamada da armadura, encontramos outra debaixo dela. Esperamos que no sejamos obrigados a despir-nos completa-

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    15/76

    15

    mente. Esperamos que o simples despojar de algumas camadas nos faa apresentveis. Em seguida, aparecemosenvergando a nova couraa com um rosto insinuante, mas o nosso amigo espiritual no usa nenhum tipo de armadura; uma pessoa nua. Em comparao com a sua nudez, estamos vestidos de cimento. A nossa armadura to grossa que onosso amigo no consegue sentir a textura da nossa pele, de nossos corpos. No pode sequer ver direito o nosso rosto.H muitas histrias antigas sobre relaes entre mestre e aluno em que este ltimo precisava fazer longas viagens esuportar muitas dificuldades at que a sua fascinao e os seus impulsos comeassem a desgastar-se. Essa parece ser aquesto: o impulso para procurar alguma coisa , por si mesmo, um bloqueio. Quando este impulso comea a desgastar-se, a nossa nudez bsica fundamental comea a aparecer e o encontro das duas mentes comea a ocorrer.

    J houve quem dissesse que a primeira fase do encontro com o amigo espiritual como a ida a um supermercado.Voc est emocionado e sonha com todas as coisas diferentes que ir comprar: a riqueza do amigo espiritual e ascoloridas qualidades da sua personalidade. A segunda fase do relacionamento como o comparecimento a um tribunal,como se voc fosse um criminoso. Incapaz de satisfazer s exigncias do seu amigo, voc comea a sentir-seconstrangido, porque no ignora que ele sabe tanto quanto voc a respeito de voc mesmo, o que sumamenteembaraoso. A terceira fase, quando voc vai ver o amigo espiritual, como estar vendo uma vaca que pasta feliz, numcampo. Voc apenas lhe admira o sossego e a paisagem, e continua andando. Finalmente, a quarta fase como passar por uma pedra na estrada. Voc nem sequer percebe, passa por ela e segue em frente.

    No princpio, ocorre uma espcie de namoro com o guru, um caso de amor. At que ponto voc capaz de obter as boas graas dessa pessoa? H uma tendncia para querer estar mais perto do amigo espiritual, porque deseja realmente

    aprender. Sente grande admirao por ele. Ao mesmo tempo, porm, ele o assusta, o perturba. Ou a situao nocorresponde s suas expectativas, ou h um sentimento embaraoso que o leva a pensar: 'Talvez eu no seja capaz deabrir-me total e completamente." Surge, ento, um relacionamento de amor e dio, como um processo de entrega e fuga.Em outras palavras, comeamos a jogar um jogo: o jogo de querermos nos abrir, de querermos nos envolver num casode amor com o guru e, logo fugir. Se chegarmos demasiado perto do amigo espiritual, comearemos a nos sentir subjugados por ele. Como diz o antigo provrbio tibetano: "O guru como o fogo. Se voc se aproximar demais, sequeimar; mas, se permanecer demasiado longe, no receber calor suficiente." Esse gnero de namoro acontece da parte do aluno, que tende a chegar perto demais do mestre, mas, ao faz-lo, queima-se. Ento deseja fugir de uma vez por todas.

    Por fim, o relacionamento comea a tornar-se muito efetivo e slido. Voc comea a compreender que o desejo deestar perto e o desejo de estar longe do guru simplesmente um jogo seu. No tem relao alguma com a situao real, pois apenas uma alucinao sua. O guru ou amigo espiritual est sempre l, ardendo, sempre como um fogo de vida.

    Voc pode entreter-se com ele, ou no, como bem entender.A seguir, o relacionamento com o amigo espiritual comea a ficar muito criativo. Voc aceita as situaes de ser

    engolfado ou ser excludo por ele. Se ele decidir representar o papel da gua gelada, voc o aceita. Se ele decidir representar o papel do fogo, voc o aceita. Nada o consegue abalar e voc se reconcilia com ele.

    A fase seguinte aquela em que, tendo aceito tudo o que o amigo espiritual pode fazer, voc comea a perder a prpria inspirao porque se entregou completamente, desistiu completamente. Sente-se reduzido a um grozinho de p. insignificante. Comea a achar que o nico mundo que existe o do seu amigo espiritual, o guru. Como se estivesseassistindo a um filme fascinante, to emocionante que voc passa a fazer parte dele. J no h voc, nem sala decinema, nem poltronas, nem expectadores, nem amigos sentados ao seu lado. O filme tudo o que existe. Este ochamado "perodo da lua-de-mel", em que se vem todas as coisas como parte do ser central, o guru. Voc no passa deuma pessoa intil, insignificante, continuamente alimentada pelo grande e fascinante ser central. Toda vez que se sente

    fraco, cansado ou entediado, senta-se na sala do cinema e entretido, enaltecido, rejuvenescido. Nesse ponto, destaca-seo fenmeno do culto da personalidade. O guru a nica pessoa do mundo que existe, viva e vibrante. O prpriosignificado da sua vida depende dele. Se voc morrer, morrer por ele. Se viver, sobreviver por ele e insignificante.

    Esse caso de amor com o amigo espiritual, todavia, no dura para sempre. Mais cedo ou mais tarde diminuir deintensidade e voc ter de enfrentar sua prpria situao de vida e sua prpria psicologia. como se houvesse casado ese acabasse a lua-de-mel. Voc no s toma conscincia da pessoa amada como foco central de sua ateno, mastambm comea a perceber-lhe o estilo de vida. Comea reparando no que faz dessa pessoa um mestre, para alm doslimites da individualidade e da personalidade. Dessa forma, o princpio da "universalidade do guru" entra igualmenteem cena. Cada problema com que voc se depara na vida parte do seu casamento. Sempre que voc vivnciadificuldades, ouve as palavras do guru. Este o ponto em que comea a conquistar a independncia do guru comoamante, porque cada situao passa a ser uma expresso dos ensinamentos. Primeiro voc se entregou ao amigoespiritual. Depois se comunicou e entreteve-se com ele. E agora chegou ao estado de abertura completa, em

    conseqncia do qual comea a ver a qualidade de guru em cada situao da vida, e a perceber que todas as situaes davida lhe oferecem a oportunidade de ser to aberto quando voc com o guru, de modo que todas as coisas podemtransformar-se no guru.

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    16/76

    16

    Milarepa teve uma viso vivida do seu guru Marpa enquanto meditava num retiro muito rigoroso no Vale da Jiada Pedra Vermelha. Enfraquecido pela fome e fustigado pelos elementos, desmaiara enquanto procurava juntar paus delenha fora da caverna. Quando voltou a si, olhou para o oriente e viu nuvens brancas na direo em que vivia Marpa.Com muita saudade, cantou uma splica, dizendo a Marpa o quanto ansiava por estar com ele. Marpa, ento, apareceu-lhe numa viso, cavalgando um leo branco das neves, e disse-lhe algo corno: "Que aconteceu? Passou por algumaespcie de crise neurtica? Voc compreende o dharma, por isso continue a praticar a meditao." Reconfortado,Milarepa voltou caverna, a fim de meditar. Sua confiana e dependncia de Marpa nesse ponto indica que ainda no selibertara da noo do guru como amigo pessoal, individual.

    Contudo, ao voltar para a caverna, encontrou-a cheia de demnios de olhos grandes como caarolas e corpos dotamanho de polegares. Usou todos os tipos de artimanhas para obrig-los a deixar de zombarias e provocaes, mas elesse recusaram a sair at que Milarepa, finalmente, deixou de reagir reconhecendo a prpria hipocrisia e cedeu abertura.A partir desse ponto observou-se enorme mudana de estilo de seus poemas, porque ele aprendera a identificar-se com aqualidade universal de guru, em lugar de relacionar-se unicamente com Marpa como indivduo.

    O amigo espiritual passa a fazer parte de ns, ao mesmo tempo que continua a ser um indivduo, uma pessoaexterna. Como tal, o guru, tanto interno quanto externo, desempenha parte muito importante na penetrao e exposiodas nossas hipocrisias. O guru pode ser uma pessoa que age como um espelho, refletindo-nos, ou a nossa prpriainteligncia bsica assume a forma do amigo espiritual. Quando o guru interno comea a funcionar, no se pode maisfugir da exigncia de abrir-se. A inteligncia bsica nos segue a toda parte; no se pode escapar da prpria sombra. "O

    Grande Irmo1

    est nos vigiando." Embora no sejam entidades externas que nos observam e assediam, ns nosassediamos. Nossa prpria sombra nos assedia.

    Podemos olhar para isso de duas maneiras diferentes. Podemos ver o guru como um fantasma, que nos assombra ezomba da nossa hipocrisia. Pode haver uma qualidade demonaca na compreenso do que somos. De outro lado, hsempre a qualidade criativa do amigo espiritual que tambm se torna parte de ns. A inteligncia bsica, continuamente presente nas situaes de vida, to aguda e penetrante que, em determinada fase, no conseguimos livrar-nos dela,ainda que o desejemos. s vezes, ela assume uma expresso severa, outras um sorriso inspirador. Segundo a tradiotntrica, no vemos o rosto do guru, apenas a sua expresso durante o tempo todo, sorrindo, sardnico, ou fechando acara, colrico. Sua expresso faz parte de cada situao de vida. A inteligncia bsica,tathagata-garbha,natureza deBuda, est sempre presente em toda experincia que a vida nos traz. No h como escapar-lhe. Diz-se tambm nosensinamentos: " melhor no comear. Mas se voc comear, melhor terminar." Por isso melhor que voc s ponhaos ps no caminho espiritual, se precisar faz-lo. Mas, depois que tiver posto os ps no caminho, depois que o tiver

    realmente feito, no pode voltar atrs. No h jeito de escapar. P: Tendo percorrido vrios centros espirituais, tenho impresso de que uma personalidade como a de Marpa deve

    ser um fenmeno muito perturbador para a maioria das pessoas intoxicadas com a busca espiritual. Eis um homem que parece no fazer nenhuma das coisas que, todos dizem, nos levaro at l. Ele no asctico nem se abstm de coisaalguma. Trata dos negcios de todos os dias. um ser humano normal e, no entanto, aparentemente, mestre deenorme capacidade. Foi Marpa o nico que tirou o mximo proveito das possibilidades que se oferecem a um homemnormal sem passar pela enorme dor do ascetismo e da disciplina da purificao?

    R: claro que Marpa um exemplo das possibilidades que nos so oferecidas. Sujeitou-se, todavia, a umatremenda disciplina e a um rduo treinamento enquanto esteve na ndia. Estudando com afinco sob a orientao demestres indianos, preparou o seu caminho. Sou de opinio, porm, que devemos compreender o verdadeiro significadodas palavras "disciplina" e "ascetismo". A idia bsica do ascetismo uma vida de acordo com o dharma, ter o esprito

    fundamentalmente so. Se voc pensa que levar uma vida vulgar uma coisa mentalmente sadia, isso dharma. Por outro lado, voc talvez ache que levar a vida de um iogue asctico, tal. como a descrevem os textos, pode converter-senuma expresso de insanidade. Tudo depende do indivduo. Trata-se de saber o que realmente so para voc, qual oseu enfoque slido, sadio e estvel da vida. O Buda, por exemplo, no era um fantico religioso, que tentasse agir deacordo com algum alto ideal. Limitava-se a lidar com as pessoas de maneira simples, aberta e muito sbia. A sabedoriavinha-lhe do bom-senso transcendental. Seus ensinamentos eram saudveis e abertos.

    O problema parece ser que as pessoas se preocupam com um conflito entre o religioso e o profano. Achamdificlimo reconciliar a chamada "conscincia mais elevada" com assuntos de ordem prtica. Mas as categorias de maisalto e mais baixo, religioso e profano, no parecem realmente pertinentes a um enfoque de vida basicamente so.

    Marpa era uma pessoa comum, preocupada em viver cada pormenor de sua vida. Nunca tentou ser algumespecial. Quando perdia a cabea, simplesmente a perdia e chegava s vias de fato. Com a maior naturalidade. Nunca

    representou nem fingiu. Os fanticos religiosos, por outro lado, esto sempre tentando viver de acordo com algummodelo do que supem que tudo isso deve ser. Tentam conquistar as boas graas das pessoas apresentando-se

    1 Referncia ao onivigilante ditador do livro1984de George Orwell(N. T.).

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    17/76

    17

    agressivamente e com muita agitao, como se fossem totalmente puros e bons. A meu ver, todavia, a tentativa de provar que somos bons indica um medo qualquer. Marpa, porm, nada tinha para provar. Era apenas um respeitvelcidado comum, mentalmente sadio e, ao mesmo tempo, uma pessoa muito iluminada. De fato, o pai de toda a linha-gem Kagy, do qual emanam todos os ensinamentos que estamos estudando e praticando.

    P: Existe um dito zen: "A princpio as montanhas so montanhas e os ribeires so ribeires. Depois, as montanhas j no so montanhas e os ribeires j no so ribeires. Mas, no fim, as montanhas voltam a ser montanhas e osribeires voltam a ser ribeires." Pois bem, no estamos todos na fase em que as montanhas j no so montanhas e osribeires j no so ribeires? O senhor, todavia, d destaque qualidade vulgar. Mas no temos de passar por esse perodo "invulgar" antes de podermos ser realmente vulgares?

    R: Marpa ficou muito transtornado quando morreu seu filho, e um dos seus discpulos perguntou: "O senhor costumava dizer que tudo iluso. Que me diz da morte de seu filho? No iluso?" E Marpa replicou: " verdade, amorte de meu filho uma superiluso." Quando experimentamos pela primeira vez a vulgaridade verdadeira, aexperincia to extraordinariamente vulgar que poderamos dizer que montanhas j no so mais montanhas, assimcomo os ribeires j no so mais ribeires, porque os vemos to vulgares, to precisos, "assim como so". Ainvulgaridade deriva da experincia da descoberta. Finalmente, porm, esta supervulgaridade, esta preciso, converte-senum acontecimento de todos os dias, alguma coisa com a qual vivemos o tempo todo, realmente vulgar, e voltamos ao ponto em que comeamos: as montanhas so montanhas e os ribeires so ribeires. E podemos relaxar.

    P: Como que tiramos a armadura? Como nos abrimos? R: No se trata docomofaz-lo. No existe ritual, nemcerimnia, nem frmula de abertura. O primeiro obstculo a prpria pergunta: "Como?" Se no nos interrogarmos, seno nos observarmos, f-lo-emos simplesmente. No pensamos em como vamos vomitar; vomitamos. No h tempo para pensar; a coisa acontece. Se estivermos muito tensos; sentiremos uma dor tremenda e no seremos capazes devomitar direito. Tentaremos engolir de novo, tentaremos lutar contra o mal-estar. Precisamos aprender a relaxar quandoestamos doentes.

    P: Quando as situaes de vida principiam a transformar-se em nosso guru, tem importncia a forma que assumea situao? Tem importncia a situao em que nos encontramos?

    R: No temos escolha. O que quer que acontea uma expresso do guru. A situao pode ser de dor ou deinspirao, mas a dor e o prazer so a mesma coisa nesta abertura de ver a situao como guru.

    Iniciao

    A maior parte das pessoas que vieram estudar comigo, o fizeram porque ouviram falar de mim como pessoa, daminha reputao como mestre de meditao e lama tibetano. Mas quantas teriam vindo se nos tivssemos encontrado por acaso na rua, ou nos tivssemos conhecido num restaurante? Pouqussimas ficariam inspiradas a estudar Budismo emeditao em virtude de um encontro desses. Ao contrrio, as pessoas parecem inspirar-se no fato de eu ser um mestrede meditao vindo do extico Tibete e ser a dcima primeira reencarnao do Trungpa Tulku.

    Deste modo, as pessoas vm e buscam iniciao por meu intermdio, iniciao nos ensinamentos budistas e nosangha, a comunidade dos meditadores que seguem o caminho. Mas o que realmente significa essa iniciao? Existeuma longa e grande tradio de transmisso da sabedoria da linhagem budista de uma gerao de meditadores

    seguinte, e esta transmisso est ligada iniciao. Mas em que consiste tudo isso?Acho que vale a pena ser um pouco desconfiado a este respeito. As pessoas gostariam de receber iniciao;

    gostariam de entrar para o clube, receber um ttulo, adquirir sabedoria. Pessoalmente, no me agrada manipular asfraquezas dos outros, o seu desejo de conseguir alguma coisa de extraordinrio. Certas pessoas compram uma tela dePicasso simplesmente pelo nome do artista. Pagam milhares de dlares, sem considerar se o que esto comprando temalgum valor como arte. Esto comprando as credenciais do quadro, o nome; esto aceitando reputao e "diz-que-diz"como garantia de mrito artstico. No h muita inteligncia num ato destes.

    Ou algum poder entrar para um clube, iniciar-se numa determinada organizao por se sentir miservel, semvalor. O grupo prdigo e rico, e a pessoa quer algum que a alimente. Ela alimentada e engorda, como esperava queacontecesse. Mas e da? Quem est iludindo quem? O mestre, ou guru, est se iludindo, inflando seu ego? "Tenho umgrande rebanho de seguidores que foram iniciados." Ou est ele iludindo seus discpulos, levando-os a pensar que se

    tornaram mais sbios, mais espirituais, simplesmente porque se comprometeram com a organizao e receberam ortulo de monge, iogue, ou outro ttulo qualquer? H muitos ttulos diferentes que se pode receber. Ser que essesnomes, essas credenciais, nos trazem algum benefcio verdadeiro? Ser que trazem mesmo? Meia hora de cerimnia nonos leva etapa seguinte da iluminao; vamos encarar os fatos. Pessoalmente, tenho imensa devoo linhagem

  • 8/14/2019 Alm Do Materialismo Espiritual Chgyam Trungpa Traduo

    18/76

    18

    budista e ao poder dos ensinamentos, e confio profundamente neles, mas no de um modo simplista.

    Precisamos aproximar-nos da espiritualidade com um tipo de inteligncia realista. Se formos ouvir um mestrefalar, no devemos permitir que sua reputao e seu carisma nos arrebatem; devemos, sim, vivenciar adequadamentecada palavra da palestra ou cada aspecto da tcnica de meditao que est sendo ensinada. Precisamos estabelecer umarelao clara e inteligente com os ensinamentos e com o homem que est ensinando. Esta inteligncia no tem nada aver com emocionalismo nem com a romantizao do guru. No tem nada a ver com a aceitao crdula de credenciaisimpressivas, nem se trata de ingressarmos num clube para enriquecer-nos.

    Tampouco se trata de encontrar um guru sbio de quem possamos comprar ou roubar sabedoria. A verdadeirainiciao implica lidar honesta e diretamente com nosso amigo espiritual e com ns mesmos. Assim sendo, precisamosfazer algum esforo para nos expor e expor nossos auto-enganos. Temos que nos entregar e expor a qualidade nua ecrua do nosso ego.

    O equivalente em snscrito de "iniciao" abhisheka,que significa "espargir", "Verter", "uno". E para se verter preciso que haja um vaso onde possa cair o lquido vertido. Se nos comprometemos realmente, abrindo-nos para nossoamigo espiritual de maneira apropriada e completa, transformando-nos num vaso que possa receber a comunicao, eletambm se abrir, e ento a iniciao ocorre. Este o significado de abhisheka ou "o encontro das duas mentes", a domestre e a do discpulo.

    Tal abertura no implica obter as boas graas do nosso amigo espiritual, nem tentar agrad-lo ou imp