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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    INSTITUTO DE LETRAS E LINGUSTICA

    MARLIA DA SILVA FREITAS

    O FEMININO E O POTICO NAS NARRATIVAS DE MARINA

    COLASANTI

    UBERLNDIA

    2014

  • MARLIA DA SILVA FREITAS

    O FEMININO E O POTICO NAS NARRATIVAS DE MARINA COLASANTI

    Dissertao de mestrado apresentada no Programa

    de Ps-graduao em Letras Curso de Mestrado

    em Teoria Literria, no Instituto de Letras e

    Lingustica, Universidade Federal de Uberlndia,

    para a obteno do ttulo de Mestre em Letras (rea

    de Concentrao: Teoria da Literatura).

    Orientador: Prof. Dr. Ivan Marcos Ribeiro

    UBERLNDIA

    2014

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    F866f

    2014

    Freitas, Marlia da Silva, 1988-

    O feminino e o potico nas narrativas de Marina Colasanti / Marlia da

    Silva Freitas. -- 2014.

    121 f. : il.

    Orientador: Ivan Marcos Ribeiro.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uberlndia,

    Programa de Ps-Graduao em Letras.

    Inclui bibliografia.

    1. Literatura - Teses. 2. Literatura brasileira - Histria e crtica - Teses.

    3. Colasanti, Marina, 1937- - Crtica e interpretao - Teses. I. Ribeiro,

    Ivan Marcos. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-

    Graduao em Letras. III. Ttulo.

    1. CDU: 82

  • Dedico esta dissertao memria de minha av Dirce, por todos os seus

    ensinamentos. Ao amor de meus pais Luiz e Mrcia e pelo incentivo aos estudos, minha

    querida irm Mariane, pela amizade sincera, apoio e motivao. Dedico-a, tambm, ao

    meu companheiro Marcelo, por ter me ajudado e acompanhado de perto a construo

    deste trabalho, por suas palavras de motivao e carinho.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a Deus, por me guiar e proteger em todas as

    circunstncias de minha vida e pela realizao e concluso deste trabalho.

    Ao meu orientador Prof. Dr. Ivan Marcos Ribeiro, por sua dedicao em me

    orientar, por contribuir, com seus ensinamentos, para a construo desta dissertao, como

    tambm para a minha formao como mestre.

    querida professora Dr. Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha, por me mostrar o

    caminho das letras e me apresentar a literatura de Marina Colasanti.

    Prof. Dr. Cludia Maria Ceneviva Nigro por sua participao na banca e pela

    disponibilidade na leitura desta dissertao.

    todos os meus professores do curso de Mestrado em Teoria Literria, em especial

    Prof. Dr. Marisa Martins Gama-Khalil, por contribuir com seus ensinamentos para a

    construo deste texto.

    Ao meu companheiro Marcelo, por me ajudar a realizar este trabalho, que esteve

    sempre presente em cada uma de suas etapas, por me apoiar, incentivar e tambm,

    contribuir com seus ensinamentos.

    Agradeo tambm, minha amiga e principalmente incentivadora Carol, que desde

    a graduao me aconselha e me apoia em tudo que eu preciso. Por estar sempre pronta a

    me ajudar e principalmente por sua amizade.

    minha querida irm Mariane, pois esteve sempre disposta a me ouvir e

    aconselhar, nos momentos de elaborao da dissertao, como em todo o processo do

    mestrado.

    Agradeo em especial ao meu pai, por ser a base de minha sustentao, e estar por

    perto em tudo que eu precisar e minha me, por me incentivar nos estudos, e

    principalmente ter me mostrado a literatura.

  • Que o texto no acabe quando lhe ponho um ponto, mas continue se abrindo em

    crculos concntricos no imaginrio do leitor, criando interrogaes. Em relao a mim

    mesma, espero avanar. Que o texto consiga me contar coisas que no sei, que me pegue

    desprevenida. E que a palavra se torne cada vez mais precisa, at vibrar ao olhar para,

    como um cristal, emitir sua nota.

    (COLASANTI, 2011)

  • RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo estudar as narrativas de Marina Colasanti, com

    enfoque nos contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres,

    publicados no livro Com certeza tenho amor (2009). A partir das anlises dos textos, feitas

    atravs de pesquisa bibliogrfica e comparativa, foi possvel elencar aspectos que os

    caracterizam como pertencentes a uma literatura que se faz feminina e feminista sem

    excluir a beleza potica da sua forma de escrita. Assim, fez-se necessrio estudar a

    formao literria da autora e a sua constituio como escritora feminina e feminista, como

    tambm, analisar os contos escolhidos, e compar-los a outros, da mesma autora, a fim de

    justificar a formao do gnero, a relevncia das fadas e do maravilhoso para a composio

    das personagens, e da presena do mtico e do simblico na construo da narrativa. Com

    isso, foi possvel verificar que os contos, mesmo sendo narrativas curtas, possuem grande

    significao, com uma narrativa que se faz potica e feminina, tornando a sua literatura

    capaz de refletir sobre aspectos da realidade, como a representao da mulher na

    sociedade.

    Palavras-chave: Literatura feminina. Contos de fadas. Mitos. Teoria literria. Marina

    Colasanti.

  • RSUM

    Le prsent travail a le but dtudier les rcits de Marina Colasanti, avec emphase dans les

    contes Quem me deu foi a manh et So os cabelos das mulheres, publi dans

    louvrage Com certeza tenho amor (2009). partir danalyses de textes, fait par des

    recherches bibliographiques et comparatives, a t possible spcifier daspectes qui les

    caractrisent comme appartenantes une littrature qui se fait fminine et fministe sans

    exclure la beaut potique de sa forme dcrite. Cependant, si fait ncessaire tudier la

    formation littraire d'auteur et sa constitution comme crivaine fminine et fministe,

    comme aussi analyser les contes choisis et les comparer a dautres, de cette mme auteur,

    afin de justifier la formation du genre, la pertinence des fes et le merveilleux, pour la

    composition des personnages, et la prsence du mythique et symbolique dans la

    construction du rcit. Ainsi, cest possible vrifier que les contes, mme tant de courtes

    rcits, avoir une grande signification smantique, avec un rcit qui fait potique et

    fminine, faisant sa littrature capable de rflchir sur les aspects de la ralit comme la

    reprsentation de femme dans la socit.

    Mots cls: Littrature fminine. Contes de fes. Mythes. Thorie littraire. Marina

    Colasanti.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1- Ilustrao do conto So os cabelos das mulheres ............................................. 21 Figura 2- Ilustrao do conto Quem me deu foi a manh ................................................ 21

    Figura 4- Fada. ..................................................................................................................... 54 Figura 5- Serpente Ilustrao do conto So os cabelos das mulheres ........................... 71 Figura 6- Ouroboros. ........................................................................................................... 76 Figura 3- Moa Ilustrao do conto Quem me deu foi a manh ................................... 94

  • SUMRIO

    CONSIDERAES INICIAIS ........................................................................................... 12 INTRODUO: .................................................................................................................. 14 DA MULTIPLICIDADE ESTILSTICA UNIFICAO SEMNTICA ....................... 14

    Uma perspectiva sgnica em Quem me deu foi a manh e So os cabelos das

    mulheres ......................................................................................................................... 21

    1. EXPLICITANDO O POTICO: A LITERATURA QUE EMANA DOS CONTOS ...... 31 1.1. Aspectos tericos e literrios .................................................................................. 31

    1.1.1. A instabilidade do gnero dentro de uma mesma categoria narrativa ............... 34

    1.1.2. A oralidade em Quem me deu foi a manh .................................................... 36 1.1.3. Formalismo, recepo e significao................................................................. 37 1.1.4. O conceito de ps-modernismo nos contos ....................................................... 41

    1.2. O gnero em questo: o conto e suas teses ............................................................ 42

    2. OS CONTOS DE FADAS: A IMPORTNCIA DAS FADAS PARA A

    CONSTITUIO DAS NARRATIVAS ............................................................................. 48 2.1. As fadas e o maravilhoso nos contos ..................................................................... 54

    3. MARINA COLASANTI, NARRADORA-POETA: UMA VIAGEM POR MITOS E

    SMBOLOS ......................................................................................................................... 63 3.1. Os smbolos no conto So os cabelos das mulheres ......................................... 67

    3.2. A simbologia presente em Quem me deu foi a manh. .................................... 73 4. FEMININO: A REPRESENTAO DA MULHER NOS TEXTOS DE MARINA

    COLASANTI E A BUSCA POR UMA AFIRMAO IDENTITRIA. .......................... 78

    CONSIDERAES FINAIS: A TESSITURA DOS SENTIDOS EM MARINA

    COLASANTI ...................................................................................................................... 95 REFERNCIAS .................................................................................................................. 99

    ANEXO A - So os cabelos das mulheres .................................................................. 102

    ANEXO B - Quem me deu foi a manh ..................................................................... 105 ANEXO C - Menina de vermelho a caminho da lua ................................................ 108 ANEXO D - a alma, no ? ..................................................................................... 115

    ANEXO E - Uma histria de amor ............................................................................ 118 ANEXO F - O Tigre ..................................................................................................... 119

    ANEXO G - Sete anos e mais sete .............................................................................. 120

  • 12

    CONSIDERAES INICIAIS

    Parece e talvez seja pretensioso, mas a minha meta, para

    leitores de qualquer idade, fazer literatura. Acredito, firmemente, que a

    literatura seja, em si, formadora. (COLASANTI, 2011)

    Os textos literrios so capazes de proporcionar aos seus leitores, conhecimento e

    reflexo a respeito da realidade em que vivem. Atravs deles, possvel identificar, de

    forma artstica, os conflitos existentes na humanidade, sejam eles sociais ou individuais,

    representados nas mais variadas formas de escritas literrias que fazem parte da histria do

    homem desde o incio dos tempos.

    Assim, esta dissertao tem, de um modo geral, o objetivo de analisar determinados

    textos literrios, com o intuito de identificar em suas caractersticas a influncia exercida

    na realidade social do ser, atravs da representao narrativa, como tambm destacar os

    elementos que o constitui como um texto literrio.

    Os contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres, da

    escritora Marina Colasanti, foram os escolhidos para a anlise, pois retratam de forma

    potica os conflitos sociais das mulheres, representados atravs da composio literria de

    seus textos, sendo que, para tal estudo ser destacado a importncia da literatura feminina,

    da teoria literria que abrange a sua forma de escrita, envolvendo os contos de fadas, assim

    como a representao simblica presente nas narrativas.

    Deste modo, o presente texto ir se organizar, primeiramente, a partir de uma

    introduo que abordar os aspectos estilsticos da autora, sua biografia e bibliografia, com

    nfase na sua forma de escrita dos contos e a relao que possuem com os temas que sero

    abordados ao longo da dissertao.

    Em seguida, se inicia o primeiro captulo, que se constituir de uma anlise das

    narrativas atravs das teorias literrias tradicionais e especificamente do gnero conto.

    Busca-se analisar nesta seo a relao de conceitos tericos como os de instabilidade dos

    gneros, oralidade, formalismo, recepo e significao, ps-modernismo e caractersticas

    de formao dos contos, com as narrativas de Marina Colasanti, exemplificada pelos

    contos escolhidos, a fim de mostrar a sua composio literria e a sua importncia para a

    interpretao de tal gnero acima mencionado.

    O segundo captulo ter como principal tema os contos de fadas, pois foram

    destacadas caractersticas nos contos escolhidos para a anlise, como tambm em grande

    parte de sua obra. Sendo assim, torna-se necessrio relatar a importncia das fadas e do

  • 13

    maravilhoso na constituio das narrativas, pois contribuem para o enfoque potico e

    feminino que permeia toda a dissertao.

    O terceiro captulo tratar da representao mtica e simblica presente nos contos,

    considerando que a anlise dos smbolos ser fundamental para a compreenso e a

    formao potica dos textos, enfatizando a relevncia dos mesmos para a composio dos

    enredos e a contribuio para a pluralidade de sentidos dos textos.

    O quarto captulo retomar o tema do feminino, com a finalidade de destacar a

    escrita feminina da autora, bem como, a constituio ao mesmo tempo feminina e

    feminista das narrativas. Tais conceitos sero explicitados atravs de teorias acerca da

    literatura feminina elaboradas por estudiosas como Lcia Castelo Branco, Elaine

    Showalter, entre outras.

    Com isso, esta dissertao objetiva mostrar o quanto as narrativas de Marina

    Colasanti, atravs de uma escrita peculiar e, ao mesmo tempo, potica, relatam o feminino

    e seus conflitos sociais, atravs de personagens carregadas de simbologia, enfatizando o

    papel da literatura como capaz de representar a realidade, que, neste caso, pode-se

    apreend-la na luta das mulheres para a sua aceitao e visibilidade na sociedade.

  • 14

    INTRODUO:

    DA MULTIPLICIDADE ESTILSTICA UNIFICAO SEMNTICA

    O que, sim, posso te dizer, que no escrevo voltada para um momento,

    um modismo, um alvo da moda. Os meus temas no so, em si,

    passageiros. (COLASANTI, 2007)

    A literatura contempornea marcada pela diversidade de estilos que caracterizam

    as criaes atuais. Nela, a retomada de formas clssicas de escrita como o conto, o

    romance medieval, as narrativas fabulares entre outras, mescladas com a criatividade dos

    autores contemporneos, formam os variados textos, considerados obras de artes que

    cativam os leitores da atualidade, pois conseguem ser ao mesmo tempo inovadores e

    surpreendentes.

    Um exemplo desta literatura contempornea pode ser verificado nas obras da

    escritora Marina Colasanti, cujo teor mescla formas ancestrais de escrita com a narrativa

    contempornea, como o conto e com o mito em uma escritura sinttica e potica, tendo

    como resultado, pequenas narrativas com enredos de elaborao complexa.

    Considera-se importante, antes de adentrar no universo narrativo da escritora, tecer

    algumas consideraes sobre a biografia da autora, cujo nascimento se deu na cidade de

    Asmara na frica em 1937. Ainda na infncia, foi para a Itlia, pas de origem de seus

    pais, onde permaneceu at os onze anos de idade, quando embarcou para o Brasil, em

    1948, onde vive at hoje. Na dcada de cinquenta, estudou na Escola Nacional de Belas

    Artes no Rio de Janeiro e a sua carreira profissional comeou na rea de comunicao,

    trabalhando como editora e redatora de jornais, alm de, posteriormente, escrever crnicas.

    Foi tambm ilustradora e apresentadora de programas de televiso.

    Porm, a sua carreira como escritora se iniciou no ano de 1968 com a publicao do

    livro Eu sozinha e desde ento produziu muitas obras, contando hoje com mais de

    cinquenta publicaes.

    Tais publicaes se destacam por atingir pblicos variados que vo desde o infanto-

    juvenil com as obras Zoolgico (1975), Uma idia toda azul (1979), Doze Reis e a Moa

    no Labirinto do Vento (1982), Oflia a ovelha (1989) at o pblico adulto, tendo como

    destaque as coletneas de artigos: A nova mulher (1980) e Mulher daqui pra frente (1981),

    o livro de ensaios E por falar em amor (1984), Aqui entre ns (1988), Intimidade Pblica

    (1990), De mulheres sobre tudo (1995), entre outros. Seu primeiro livro de poesias,

    intitulado Cada bicho seu capricho, foi lanado em 1992. Ademais, rene em vrias

  • 15

    coletneas contos, crnicas e ensaios no livro de memrias Minha guerra allheia,

    publicado em 2010. A sua mais recente publicao foi a obra denominada Como alimentar

    serpentes de 2013.

    No cenrio nacional, a escritora tem tido destaque por suas diversas premiaes.

    Ganhou pela primeira vez o Prmio Jabuti em 1993 com o livro de contos Entre a espada e

    a rosa (1992), depois o Prmio Jabuti de Poesia em 1994 pelo livro de poesias Rota de

    Coliso (1993), e o prmio Jabuti Infantil ou Juvenil pela obra Ana Z aonde vai voc?,

    voltando a ser premiada pela mesma instituio em 2010, novamente na categoria poesia

    por Passageira em trnsito e em 2011 com Antes de virar gigante e outras histrias como

    melhor livro juvenil. Ainda em 2011 ficou em terceiro lugar no Prmio Portugal Telecom

    de Literatura pelas memrias retratadas em Minha guerra alheia, alm de outras

    contemplaes concedidas pela Fundao Nacional do livro Infantil e Juvenil da Cmara

    Brasileira do Livro, do Concurso Latinoamericano de Cuentos para Nios, organizado pela

    FUNCEC/UNICEF, da Associao Brasileira de Crticos de Arte e o Prmio Norma-

    Fundalectura latino-americano.

    Tais reconhecimentos so consequncias de uma escritura que se destaca por

    retratar fatos do cotidiano, da fragilidade e fora do feminino, da leveza e impacto de seus

    contos, que vo alm das classificaes de faixas etrias, pois so capazes de encantar e

    intrigar pessoas de diversas idades. Contudo, esta dissertao tem como objetivo destacar

    em alguns de seus textos, as belezas estticas provocadas por uma narrativa potica, em

    uma forma mtica de narrar contos de fadas, assim como a simbologia utilizada para

    realar o feminino e a feminilidade que expressa uma realidade voltada para a mulher e a

    sua representao na sociedade.

    Uma das obras que retrata com evidncia as caractersticas acima Com certeza

    tenho amor (2009). Neste trabalho, que possui ilustraes da prpria autora, esto reunidos

    onze minicontos, com caractersticas peculiares de tempo, espao e narrador, alm de

    apresentar caractersticas especficas dos contos de fadas, mticas, simblicas e femininas,

    as quais parecem se sobressair nos contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos

    das mulheres, objetos de anlise mais profunda neste trabalho. Com base nesta obra, e

    especialmente nestes dois contos, que se expandiro as discusses dos temas relevantes,

    mencionados acima, tendo como fundamentao terica as anlises crtico-literrias, que

    baseiam a construo e formao do gnero conto, da insero de seus textos como

    pertencentes s caractersticas abordadas pela teoria literria, em seus diversos autores, a

  • 16

    incluso e a utilizao de smbolos e imagens mticas, como tambm a relevncia das

    personagens femininas e a sua importncia em cada um dos contos selecionados.

    Faz-se necessrio ressaltar que, mesmo tendo como foco principal os contos acima

    escolhidos, outras narrativas sero utilizadas na anlise com o intuito de fazer comparaes

    e explicitar caractersticas tericas ou de estilo, pois ao se destacar um conceito, como o de

    narrador, ser de extrema importncia recorrer a outros textos da mesma autora, em que tal

    recurso foi utilizado de uma forma peculiar ou at mesmo se manifestou de maneira

    semelhante nas narrativas comparadas.

    Em Com certeza tenho amor, a autora se utiliza de narrativas curtas, o que

    marcante em seu estilo, com narradores sempre em terceira pessoa e oniscientes,

    proporcionando ao conto uma neutralidade, com a finalidade de enfatizar os personagens

    principais, como tambm um carter atemporal, peculiar das histrias mitolgicas. Porm,

    relevante analisar que, em outros trabalhos, a escritora capaz de surpreender, ao criar

    narradores diferenciados.

    Uma narrativa com construo de narrador peculiar, por exemplo, est no conto

    Menina de vermelho a caminho da Lua, presente no livro O leopardo um animal

    delicado (1998), em que possvel notar a maestria da autora, capaz de criar dois

    narradores para uma mesma histria. Um que sabe dos acontecimentos, mas no quer

    narr-los e o outro ser contratado para narrar o que o primeiro se recusa:

    Esta uma histria que no quero contar, uma pequena histria sem fatos,

    espessa como um mnstruo, que no pretendo assumir. Tentei livrar-me

    dela, afund-la e ao fastio que me causa. No consegui. Desnecessria

    como , ainda assim insiste em existir. Foi por isso que botei um assunto

    no jornal. Dizia: Procura-se narrador. Exigem-se modstia e prazer

    descritivo. Pagamento a combinar. Procurar... endereo... etctera.

    (COLASANTI, 1998, p.16).

    No trecho citado acima, observa-se que o narrador inicial se queixa por no querer

    contar algo que persiste em ser contado e por isso ele resolve procurar um narrador que

    faa isso por ele. Tambm so perceptveis as condies de criao de um autor, presente

    na narrativa que est dentro de si e nas formas de extra-la para o papel. Contudo, este

    conto dito como uma pequena histria sem fatos, vai se desenrolar em uma narrativa

    extensa, misturando o enredo a ser narrado, com os conflitos dos narradores,

    confirmando a capacidade da autora em se diversificar nos seus textos.

    Outra forma utilizada na narrativa, tambm bastante comum em seus contos, o

  • 17

    discurso indireto livre, ou seja, narrador em terceira pessoa, mesclado a monlogos

    interiores da personagem principal com inseres de dilogos. O conto a alma, no ?,

    tambm presente em O leopardo um animal delicado, um claro exemplo deste narrador

    no estilo mais atual da literatura, pois ao narrar o conto, a sua fala se mistura com os

    pensamentos da personagem, exigindo do leitor mais percepo em sua leitura e

    diferenciando a narrativa das demais consideradas tradicionais, ou escritas em linha reta.

    No mbar. Preso no mbar como uma liblula no exagera, Marta est

    bem, no d mesmo para tanto, preso no mbar como um inseto, uma

    mosca. isso, preso no mbar como uma mosca. (...) Uma mosca presa

    no mbar, isso o meu casamento. Pois no tinha o marido, de manh

    mesa do caf, abertas as folhas entre os dois, relatado com espanto a

    notcia do jornal? (COLASANTI, 1998, p. 7).

    Observa-se no trecho acima, a reflexo de Marta acerca de seu casamento. A

    personagem compara a sua vida conjugal a um inseto preso no mbar, pois o marido se

    tornara indiferente ao relacionamento. Esta passagem mostra claramente a insero do

    monlogo interior no texto.

    O narrador em primeira pessoa tambm est presente em algumas de suas histrias,

    como por exemplo, em uma histria de amor e O tigre, ambas presentes na coletnea

    Um espinho de Marfim e outras histrias (1999). As personagens desses dois contos so

    femininas e abordam fatos acontecidos em seus relacionamentos; a primeira relata como o

    marido engordava ao mesmo tempo a ela e s martas que lhe serviriam de estola, e a

    segunda retrata a relao que tinha com um tigre, at ser comida por ele.

    Mesmo sendo possvel encontrar outras formas de narrador em seus contos, a que

    mais se destaca, porm, a utilizao do narrador em terceira pessoa, onisciente e neutro,

    como mencionado anteriormente. A maior parte de seus textos no possui um referencial

    narrativo determinado, inicia-se com verbos em terceira pessoa e so destacadas, na

    maioria das vezes, as personagens femininas.

    Assim, aps ressaltadas as caractersticas de narradores presentes nos textos de

    Marina Colasanti, possvel analisar a obra Com certeza tenho amor , luz das teorias de

    Walter Benjamin sobre o narrador.

    Segundo Benjamin, existem dois tipos de narrador, o campons sedentrio e o

    marinheiro comerciante, que, ao se interpenetrarem, so responsveis pelos verdadeiros

    tipos de narrao, os quais ganharam larga contribuio no perodo medieval, pois os

    migrantes compartilhavam suas histrias com os residentes e assim a arte de narrar

  • 18

    adquiria aprimoramento:

    O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa

    interpenetrao. O mestre sedentrio e os aprendizes migrantes

    trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz

    ambulante antes de se fixar em sua ptria ou no estrangeiro. Se os

    camponeses e os marujos foram os primeiros mestres na arte de narrar,

    foram os artfices que a aperfeioaram. No sistema corporativo associava-

    se o saber das terras distantes, trazidos para a casa pelos migrantes, com o

    saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentrio. (BENJAMIN,

    1994, p. 199).

    Na citao de Benjamin acima, possvel observar como a arte de narrar adquiria

    tal aprimoramento. Atravs da convivncia entre mestres e aprendizes, as narrativas iam se

    interpenetrando, pois o mestre repassava as histrias aos seus aprendizes, aperfeioando,

    desta forma, a arte de narrar que migrava com os camponeses e marujos.

    Para Benjamin a narrativa consiste nesta troca de experincias, pois quanto mais

    experiente o seu narrador, mais a histria ganha densidade e se aproxima da oralidade. A

    troca de experincias, o repasse da histria de um narrador para outro, que tambm a passa

    adiante, faz com que o texto adquira consistncia e no se perca no tempo. Assim, percebe-

    se que na atualidade h uma tentativa de reproduzir o narrador benjaminiano em algumas

    histrias fazendo com que a narrativa adquira oralidade.

    Dessa forma, possvel inferir um aspecto atemporal nas narrativas de Com certeza

    tenho amor, pois o narrador dos contos que ali esto inseridos no se identifica, e por isso

    tanto pode ser algum que ouviu a histria em algum lugar de suas passagens ou que

    presenciou os fatos ocorridos, por ser habitante do local em que se passam as histrias. Isto

    faz com que o enredo se aproxime das narrativas orais, que, conforme Benjamin, so as

    mais verdadeiras; como exemplo destaca-se o incio do conto Quem me deu foi a

    manh: Foi uma moa lavar suas anguas no rio. Espuma de rendas, espuma de guas

    (COLASANTI, 2009, p. 61), em que o uso do verbo na terceira pessoa do singular

    associado ao tempo pretrito perfeito contribui para a oralidade da narrativa.

    Tal recurso verbal recorrente em todo o enredo deste conto, inclusive no final da

    narrativa: ningum viu quando, antes de se afastar, recebeu ao redor do tornozelo uma joia

    fria como vidro e brilhante como prata. (COLASANTI, 2009, p. 61), constatando-se

    assim a caracterstica benjaminiana de um narrador que est passando uma experincia ao

    recontar a histria e, ao mesmo tempo, oralizando-a.

  • 19

    Conforme as narrativas vo se aproximando da oralidade, elas vo adquirindo

    caractersticas prprias e se tornando quase artesanais, enfatizando assim, os

    ensinamentos presentes em seu contedo.

    Contudo, somente o fator da experincia pode tornar esta narrativa verdadeira,

    segundo as teorias de Benjamin, pois, para ele, s possvel narrar algo atravs das

    experincias que se teve. Assim, para Benjamin, a falta dessas trocas de experincias, pode

    causar a extino da arte de narrar:

    [...] a experincia de que a arte de narrar est em vias de extino. So

    cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se

    pede num grupo que algum narre alguma coisa, o embarao se

    generaliza. como se estivssemos privados de uma faculdade que nos

    parecia segura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias.

    (BENJAMIN, 1994, p.197-198).

    Assim, percebe-se no excerto citado, que a extino da arte de narrar est na falta

    de experincia das pessoas, fazendo com que haja dificuldade em proceder a uma

    narrativa, que antes era intrnseca ao homem, devido facilidade em trocar experincias.

    Com relao aos contos de Marina Colasanti, o narrador elemento relevante na

    composio desse gnero literrio como um todo, pois ser a partir dele que se poder

    inferir o carter atemporal que se liga ao mtico, como tambm uma forma de dar nfase

    aos personagens principais de cada narrao, alm de confirmar o estilo da autora em suas

    pequenas narrativas.

    Conforme se observa, h nos contos de Marina Colasanti aspectos de linguagem,

    tais como o uso da conciso, o narrador onisciente e neutro, que do carter sofisticado ao

    gnero, fazendo-os adquirir uma poeticidade, que juntamente com o resgate do mito e dos

    contos de fada, faz com que suas obras se destaquem das demais, o que ser constatado nas

    anlises estabelecidas em Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres,

    tendo como referncia as caractersticas gerais de todos os seus textos.

    Desta forma, possvel perceber que nos contos de Com certeza tenho amor existe

    uma forma peculiar de escrita em que a autora consegue inserir elementos poticos atravs

    de uma linguagem metaforizada, dando narrativa em forma de prosa uma caracterstica

    semelhante dos contos de fada, ao fabular, ao ferico e ao mtico, contribuindo para o

    carter mgico, ao mesmo tempo simples de todas as histrias presentes nessa obra.

    Com a mistura de elementos poticos em um texto em forma de prosa, Marina

  • 20

    Colasanti adquire um estilo prprio de narrar, pois na maioria de seus contos os elementos

    poticos acentuam a conciso e enfatizam a beleza das personagens principais, como

    tambm do espao e do tempo das narrativas.

    Ressalte-se tambm que a direo da narrativa, atravs das metforas presentes e

    das lacunas que levam o leitor a refletir e tirar as suas prprias concluses, indica que todo

    o trabalho literrio pressupe uma leitura representativa tambm das peculiaridades e

    patrimnios sensveis daquele que usufrui da obra.

    Assim, os aspectos narrativos, como o narrador em terceira pessoa, a construo

    peculiar das personagens, como tambm o estilo da autora ao escrever contos poticos,

    por mais que parea variado aos seus leitores e analistas, para ela se constitui em algo

    unificado, como ela mesma afirma:

    [...] O que eu quero dizer que aquilo que eu fiz continua em sintonia

    comigo. O incio gmeo, no sentido da mesma gentica, do quase

    final. Porque com 71 anos eu posso dizer quase final. Tudo sai da

    mesma matriz e visvel isso. Gosto que seja assim porque um atestado

    de sinceridade, que nenhuma crtica, que nenhuma anlise poderia me dar

    melhor. essa gentica mantida que me diz da sinceridade do meu

    trabalho isso para mim muito importante. E, alm do mais, como fao

    um trabalho aparentemente fragmentado, porque me divido em muitos

    gneros, a coeso muito importante para mim. Eu s estou fazendo um

    trabalho fragmentado para os outros, para mim estou fazendo um trabalho

    s. (MELLO, 2009).

    Marina Colasanti explicita acima, que apesar de sua obra parecer variada aos olhos

    dos outros, existe uma coeso que unifica todos os seus textos, ou seja, tudo o que ela

    produz se manifesta de variadas formas, que se unificam por partirem de uma mesma

    matriz.

    Dentro desta unificao, portanto, se destacam a feminilidade, a simbologia

    mtica e a narrativa potica que so inerentes ao estilo da autora, que mesmo apresentando

    vrias formas de construo de narrativas, possui consonncia e sustentabilidade ao se

    analisar e comparar os seus textos, o que pode ser confirmado em seus aspectos tericos,

    tratados por diversos estudiosos da teoria literria e filosfica, tais como Mikail Bakhtin,

    Mircea Eliade, Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Julio Cortzar, Eldia Xavier, Lcia

    Castelo Branco, Ruth Silviano Brando, Lcia Osana Zolin, Elaine Showalter, Nelly

    Richard, Ren Wellek, Austin Warren, Robert Scholes, Robert Kellogg, Hans Robert Jauss,

    David Harvey, Ricardo Piglia, Wilhelm Dilthey, Nelly Novaes Coelho, Bruno Bettelheim,

    Junto de Souza Brando, Carl Gustav Jung, Northrop Frye, dentre outros estudiosos

  • 21

    importantes que sero mencionados neste trabalho, enfatizados pelos dois contos acima

    escolhidos.

    Uma perspectiva sgnica em Quem me deu foi a manh e So os cabelos das

    mulheres

    Figura 1- Ilustrao do conto So os cabelos das mulheres

    Fonte: COLASANTI (2009).

    Figura 2- Ilustrao do conto Quem me deu foi a manh

    Fonte: COLASANTI (2009)

    Tomando como base a frase de Bakhtin: Um signo no existe apenas como parte

    de uma realidade; ele tambm reflete e refrata uma outra (BAKHTIN, 1995, p.32), pode-

    se fazer um levantamento dos principais aspectos constituintes em Quem me deu foi a

    manh e So os cabelos das mulheres, pois como se sabe, as narrativas em contos so

    sucintas, nos remetem a um fato principal com um acontecimento marcante, com a

    finalidade de causar algum efeito ao leitor.

    Os signos so utilizados nessas narrativas para retratar a realidade, porm refletindo

    outra, com a finalidade de passar ao leitor algo diferente de seu cotidiano, mas sem se

  • 22

    afastar totalmente dele, ou seja, os signos proporcionam ao leitor a construo e a

    reinveno dos significados existentes nas narrativas, levando em conta toda a influncia

    da ideologia presente em cada um e, ao mesmo tempo, permitindo-lhe criar,

    imaginativamente, novos e inesperados signos que simbolizam e reconstroem um percurso

    tambm imaginativo, frutificando em vrias leituras e interpretaes.

    Os contos a serem analisados propiciam que o leitor faa suas prprias leituras e

    percorra por um universo paralelo a seu modo, tirando suas prprias concluses e

    aprendizagens. Porm, a forma como a autora os constri, nos faz pensar nos conceitos de

    mito e contos de fada em uma literatura contempornea.

    Pode-se comparar tais contos, apresentando o conceito de mito, se pensarmos em

    sua funo de contar algo em um tempo passado, associado a poderes, ou

    acontecimentos mgicos, com nfase em um personagem ou um fato, levando o leitor a

    adquirir algum conhecimento, tanto em seu cotidiano, ou mesmo dentro da histria.

    Nesses contos, o conceito de mito fundamental para se compreender o tempo em

    que as histrias so contadas, pois quando se l um mito, h a sada do tempo atual em

    direo a outro tempo que tem suas prprias caractersticas e que no se pode remet-lo ou

    associ-lo a nenhum outro tempo.

    O mito conta uma histria sagrada; ele retrata um acontecimento o

    corrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princpio. Em outros

    termos o mito narra como, graas s faanhas dos Entes Sobrenaturais,

    uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou

    apenas um fragmento: uma ilha, uma espcie vegetal, um comportamento

    humano, uma instituio. (ELIADE, 2010, p.11).

    Se considerarmos o mito como uma narrativa que evidencia os modelos de conduta

    humana, ele servir, nesses contos, como base para caracterizar a conduta das mulheres,

    que so as personagens influentes, conduzindo os leitores a refletirem a respeito de sua

    prpria existncia Tambm poder se observar a construo de imagens significantes para

    a composio do enredo da narrativa, reforando um carter de certa forma fabular,

    fazendo com que a anlise simbolgica seja fundamental nas narrativas.

    Elementos como gua, serpentes, fogo, entre outros, adquirem importncia nos

    contos, dando profundidade aos textos e retomando conceitos arquetpicos tratados por

    Jung em Os arqutipos e o inconsciente coletivo (2008), abordando tambm a simbologia

    de tais signos que pode ser observada nos textos de Bachelard e Durand, por exemplo,

  • 23

    conforme se ver adiante.

    Outro aspecto a se observar nos dois contos, como tambm em toda a obra, a

    linguagem potica contida em tais narrativas em forma de prosa, enfatizando os traos

    femininos presentes nas personagens. Essa poeticidade se apresenta, principalmente,

    atravs do uso de metforas, tanto na voz do narrador, quanto na voz das personagens,

    como tambm na maneira concisa de narrar, enfatizando sempre um acontecimento,

    atravs do recorte de um fato, o que pode ser observado no incio do conto Quem me deu

    foi a manh:

    Foi uma moa lavar suas anguas no rio. Espumas de rendas, espumas de

    guas. Depois deitou-se sobre a grama para secar. E da grama uma salamandra

    levantou a cabea e perguntou:

    Que rendas so essas que voc lava com tanto capricho?

    So as rendas que farfalham nos meus tornozelos respondeu a moa.

    Eu tambm quero ouvir esse farfalhar disse a salamandra. E antes

    mesmo que a moa vestisse a primeira angua, enroscou-se no seu

    tornozelo.

    Era fria como vidro e brilhante como prata. Mas, com medo de ser

    mordida, a moa deixou-a estar e voltou para a aldeia. (COLASANTI,

    2009, p.61).

    Observa-se, acima, que o conto inicia-se com um narrador em terceira pessoa,

    introduzindo os dilogos entre a moa e a salamandra, dois personagens femininos, o que

    vai caracterizar toda a narrativa em torno desta moa, podendo se referir semelhana

    estabelecida por Jlio Cortzar em que o conto secreto e voltado para si mesmo, caracol

    da linguagem, irmo misterioso da poesia em outra dimenso do tempo literrio.

    (CORTZAR, 1974, p. 149). Assim, a poeticidade pode ser notada nas pequenas frases

    como espuma de rendas, espumas de guas, que do um carter mais visual ao texto,

    pois, de maneira concisa, nos faz imaginar as anguas da moa dentro dgua enquanto

    eram lavadas.

    A forma como a moa fala com a salamandra ao explicar que rendas eram aquelas,

    atravs do verbo farfalhar, torna ainda mais a sua fala potica, o que pode ser observado

    quando o narrador utiliza-se da anttese e personificao: Era fria como vidro e brilhante

    como prata (COLASANTI, 2009, p. 61) que resume a salamandra, valorizando o seu

    valor simblico de um animal considerado pelos antigos como capaz de viver no fogo, ou

    ter o poder de apagar o fogo, por ser fria. O que tambm acontece com os cabelos no conto

    So os cabelos das mulheres, pois de acordo com a simbologia (CHEVALIER, 2005),

  • 24

    acreditava-se, na China, que cortar os cabelos fazia cessar a chuva.

    Presentes em todo o conto, as metforas so utilizadas principalmente para

    descrever com leveza, a beleza da moa e dos animais transformados em joias, alm de dar

    mais visualidade ao texto, atravs do contraste feito com as cores e a natureza, numa

    mistura de sentidos e objetos que conferem significado aos acontecimentos. Em ondular

    de ouro na gua, ondular de azul entre os fios (COLASANTI, 2009, p.62) servir como

    descrio dos cabelos da moa, que so loiros, e tambm descrio da lavagem desses

    cabelos no rio de guas azuis.

    Outro aspecto relevante a importncia que a salamandra tem neste conto. Como

    um smbolo da ressurreio, ela ser o primeiro animal a seguir a moa e tambm o que

    permanecer com ela at o final do conto, sendo a responsvel pelos acontecimentos

    inslitos ali presentes como o seu surgimento das cinzas aps ser queimada em uma

    fogueira, ou seja, o motivo literrio.

    Assim, mito e simbologia se unem para dar beleza e fora literria s escrituras de

    Marina Colasanti como um todo. Nesta obra, principalmente, tais caractersticas esto mais

    enfatizadas, representadas pela conciso e poeticidade de linguagem, ou seja, poemas em

    forma de contos, que podero ser constatados ao longo deste trabalho.

    A linguagem potica faz com que o leitor seja mais sensvel, despertando-lhe a

    curiosidade, exigindo-lhe uma leitura mais profunda, que vai alm de uma interpretao

    superficial do texto, alcanando a sua essncia. Dessa forma a linguagem potica em

    Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres, enfatiza os mistrios

    contidos no enredo associando-se ao carter mtico, como se pode notar neste trecho de

    So os cabelos das mulheres em que se descreve o aparecimento das serpentes na aldeia:

    Aquecia-se ao sol a antiga umidade guardada entre pedras e grotas.

    Vindas daquele calor, talvez, daqueles vapores abafados no escuro

    silncio, longas serpentes negras comearam a deslizar para a luz.

    Os homens s se deram conta da temvel presena quando os campos

    abaixo da aldeia j estavam invadidos. Com asco e horror as encontravam

    de repente enroscadas no cabo de uma enxada, no fundo de um cesto, ou

    brilhando entre os sulcos. Eram tantas. De nada adiantava ca-las;

    cortadas ao meio ou degoladas por faco ou foice multiplicavam-se, cada

    parte adquirindo vida prpria e afastando-se como se recm-sada do ovo.

    Quase no lhes bastassem os campos, comearam a deslizar em direo

    aldeia. (...) E entre as achas de lenha, entre as talhas de azeite, entre os

    gravetos e as cinzas do fogo, entre os gros nas despensas, por toda parte

    e em todo canto cobras ondulavam suas espirais. (COLASANTI, 2009,

    p.26)

  • 25

    Neste trecho pode-se observar que o mistrio est presente na dvida sobre o

    surgimento de tais serpentes, se direcionado a um local escuro, abafado e silencioso, o que

    faz aumentar ainda mais tal enigma. H os acontecimentos sobrenaturais de ordem do

    fantstico quando se narra que as serpentes se multiplicavam ao serem cortadas ou

    degoladas, alm das metforas, como em cobras ondulavam suas espirais enfatizando a

    permanncia destes animais.

    Levando em considerao que a histria narrada pelo mito constitui um

    conhecimento de ordem esotrica, no apenas por ser secreto e transmitido no curso de

    uma iniciao, mas tambm porque esse conhecimento acompanhado de um poder

    mgico-religioso (ELIADE, 2010, p. 18), observa-se que este conto se constitui como

    mito, justamente por possuir estas caractersticas, que podem ser observadas tambm nas

    magias feitas pelos sbios e pelas mulheres, no envolvimento com os animais e com

    elementos do corpo humano, como os cabelos.

    Contudo, possvel perceber nos contos elementos similares aos apregoados por

    Eliade, pois em sua composio perceptvel um discurso que leva ao misterioso atravs

    dos acontecimentos que surgem sem explicao prvia, como tambm das solues

    secretas, que no caso do conto So os cabelos das mulheres, so decididas pelos aldees.

    Com esse componente mtico e essa simbologia apresentada, pode-se aludir s

    teorias da narrativa, que estudam a palavra alm de seu significado superficial,

    caracterizando-as como signos, atravs da influncia da ideologia. E tambm

    intencionalidade do autor ao dirigir os acontecimentos, a fim de que o leitor possa obter

    uma interpretao e uma compreenso mais profunda do que est sendo narrado.

    Marina Colasanti tambm se destaca por escrever histrias curtas, em que o mnimo

    vale o mximo, em que tudo se condense em poucas linhas, transformando um gnero

    sucinto, que o conto, em minicontos, que so capazes de retratar poeticamente assuntos

    sociais, e um exemplo a ser citado, dentre vrios a histria Porm igualmente:

    Porm igualmente

    uma santa. Diziam os vizinhos. E D. Eullia apanhando.

    um anjo. Diziam os parentes. E D. Eullia sangrando.

    Porm igualmente se surpreenderam na noite em que, mais bbado que de

    costume, o marido, depois de surr-la, jogou-a pela janela, e D. Eullia

    rompeu em asas o voo de sua trajetria. (COLASANTI, 1999, p.44).

    Nota-se neste texto elementos caractersticos do gnero em questo, alm da

  • 26

    narrativa curta, h o clmax e o desfecho, assim como define Poe em filosofia da

    composio (1999). O enredo trata de fatos do cotidiano, como a violncia contra a mulher

    e a posio da sociedade sexista. Outros contos da autora apresentam a mesma estrutura,

    mas retratam assuntos diferentes, conforme se observa em O passarinho:

    O passarinho

    Comeou dizendo que tinha um passarinho na cabea. Queixava-se.

    O passarinho batia asas, a cabea doa. Ningum deu-lhe ateno.

    Parou at se queixar. Gemia, conversava com o passarinho que a

    habitava. Morreu sufocada, o nariz entupido de alpiste. (COLASANTI, 1999, p.14).

    Na histria acima, a autora utiliza um narrador em terceira pessoa, inserindo o

    fantstico ou o estranho, como forma de cativar o leitor e de dar profundidade ao

    enredo, contudo os contos Quem me deu foi a manh e So os cabelos das mulheres,

    assim como a maioria de seus outros textos, possuem acontecimentos de ordem

    sobrenatural.

    Esses acontecimentos fazem com que a narrativa se enquadre no conceito de

    fantstico maravilhoso elaborado por Tzvetan Todorov (1975), pois h uma aceitao desse

    sobrenatural, que crucial para um bom desenvolvimento do enredo, destacando o seu

    carter inslito e constituindo, assim, uma releitura atual de uma narrativa mtica.

    Outro aspecto importante nas fices desta autora o trabalho com o feminino, pois

    perceptvel em seus textos que grande parte se direcione a este pblico direta ou

    indiretamente. Nos anos oitenta ela foi convidada para ser diretora de comportamento de

    uma revista feminina, desta forma, escreveu vrios artigos voltados s questes da mulher,

    com a inteno de discutir e refletir sobre a condio da mulher naquela poca, ps-

    ditadura o que culminou nos livros Intimidade pblica (1990), A nova mulher (1980) e

    Mulher daqui pra frente (1981), que so compilaes dos artigos e cartas publicados nas

    revistas em que trabalhou.

    Ao analisar os seus textos possvel perceber a maestria da autora em refletir sobre

    questes cotidianas a respeito da mulher de uma forma direta, que se constata em suas

    publicaes cientficas, e que leva em considerao a condio da mulher contempornea,

    rompendo com os padres rgidos existentes, como afirma o professor Anderson Gomes ao

    entrevistar a autora e estudar a suas obras baseadas no gnero em questo:

  • 27

    A autora, atravs de seus textos, desafiava algumas noes dominantes na

    vida das mulheres e tentava romper com certos modelos excessivamente

    rgidos de comportamento, buscando abrir um horizonte de novas

    possibilidades, informando, esclarecendo, fazendo refletir. Em outras

    palavras, estes artigos, quando reunidos e analisados na sua diversidade

    temtica, constituem uma narrativa representativa do perodo em que

    foram escritos e possuem o condo de representar uma espcie de

    pedagogia da nova mulher. (GOMES, 2007, p. 162).

    Dessa forma, Marina Colasanti consegue transpor para a sua literatura o que

    problematiza em seus artigos, ou seja, possvel encontrar em suas personagens os

    conflitos femininos existentes no cotidiano em geral, em que esposas se redescobrem na

    sua vida familiar, moas sofrem com a imposio masculina, transgredindo normas ou

    sendo agentes transformadoras do espao em que vivem. O comportamento feminino pode

    ser analisado de forma potica em seus contos de fada ou mticos, como tambm em

    narrativas atuais, mesclando situaes do dia-a-dia com sentimentos conflitantes,

    imaginrios, exticos e erticos, misturando a leveza e ingenuidade com pequenas doses de

    beleza e sensualidade vindas da natureza e do feminino.

    Um exemplo dessa forma peculiar de escrita pode ser verificado no miniconto No

    silncio que o sol queima presente no livro Contos de amor rasgado (1986) e Um espinho

    de marfim (1999):

    No meio do trigal, pernas abertas, abrigava pssaros. Era sempre assim.

    Com a chegada do vero sentia-se frtil, ensolarada de desejo, me da

    terra. E deitava-se entre as hastes rgidas, as espigas trgidas, espera.

    Logo, pardais vinham aninhar-se entre suas coxas, fazendo-a suspirar

    com a doce carcia das asas. Esmagava entre os lbios ptalas de

    papoulas, e gemia. Fremir de plumas, pequenos bicos, breves pios,

    delcias. E as lnguas do sol sobre os seus seios. Mas era s ao entardecer,

    quando o gavio em vo desenhava crculos de sombra sobre o outro,

    lanando-se como pedra entre suas carnes para colher o mais tonto dos

    pardais, que as hastes estremeciam enfim, inclinando as espigas ao

    supremo grito. (COLASANTI, 1999, p.29)

    Com uma riqueza de metforas este conto pode descrever uma relao amorosa e

    at mesmo sexual de uma mulher ou garota, que se dava atravs do contato com a natureza.

    Toda a narrativa se faz feminina ao usar-se das cores da paisagem em que a personagem

    est, e do contato com os pssaros e o sol, como se a mesma fosse tocada por eles com

    carcias ao mesmo tempo fortes e sutis, que podem ser notadas pela combinao de

    elementos como doce carcia das asas, esmagava entre os lbios, fremir de plumas,

  • 28

    lanando-se como pedra, supremo grito, dentre outros.

    A relao entre mulher e natureza se apresenta, nesta narrativa, de forma ertica e

    poetizada, tendo como motivo o calor do vero, que se remete fertilidade da personagem,

    iniciando-se com pequenos carinhos at atingir o pice, representado pelo gavio (smbolo

    do masculino), com o estremecimento das pernas e o grito.

    Assim, um aspecto da feminilidade est representado neste conto, justificando a

    pertinncia da autora em trabalhar com esta abordagem, podendo ser analisada tambm nos

    contos o passarinho e porm igualmente, citados anteriormente, pois possuem a

    mulher como personagem central, e at mesmo nica personagem e se destacam por

    apresentarem elementos conflitantes e sociais da mulher na sociedade em que vive.

    Contudo, a obra de Marina Colasanti merece um recorte especial para tratar de cada

    meno ao feminino que aparece em seus textos, porm, neste trabalho, ele ser mostrado

    nos contos principais, que so objetos de estudo desta dissertao.

    Esse recorte foi realizado, pois em suas personagens e enredos encontra-se a

    feminilidade que faz a narrativa, como tambm a transformao do gnero em meios

    sociais, em que cada uma das mulheres apresentadas nos dois contos so agentes

    transformadoras, transgressoras, sem esquecer a leveza e sensibilidade, relacionada

    natureza e aos elementos mticos.

    Em So os cabelos das mulheres nota-se a submisso perante as ordens dos

    aldees e sbios e ao mesmo tempo um certo ar de superioridade quando elas adquirem a

    voz no texto, como, por exemplo, na parte em que so acusadas pelo aparecimento das

    serpentes:

    E as mulheres riram, escondendo o rosto nos lenos e nos xales com que

    cobriam suas cabeas.

    Acabem com isso! ordenaram-lhes os sbios. E no se referiam ao

    riso, mas s serpentes. E com voz que no admitia rplica, repetiram

    Acabem com isso, mulheres!

    Mas como acabar com o flagelo se lhes faltava o remdio? responderam

    as mulheres. E acrescentaram Cabelos. Para acabar com esses,

    precisamos dos nossos. (COLASANTI, 2009, p. 27).

    J em Quem me deu foi a manh, esta feminilidade est presente tanto na moa

    quanto nos animais que a acompanham, e o que h de comum nestes dois contos que as

    mulheres so responsveis por todos os fatos ali presentes, sendo atravs delas, e de suas

    atitudes, que eles se desencadeiam.

  • 29

    Isto pode ser explicado usando as palavras de Eldia Xavier em seu artigo

    intitulado Por uma teoria do discurso feminino em que o discurso feminino faria parte

    de um projeto subversivo mais amplo, com o objetivo de anular o discurso do poder e de

    modificar as relaes sociais. (XAVIER, 1990, p. 240). Ou seja, as personagens dos

    contos modificam a rotina do lugar em que vivem podendo fazer com que o leitor relacione

    os conflitos internos e externos das mesmas para as questes sociais, polticas e at mesmo

    pessoais a respeito das questes do feminino.

    Dessa forma as narrativas de Marina Colasanti parecem se assemelhar s de outras

    autoras como Clarice Lispector e Virginia Woolf, que tambm retratam as questes

    femininas, tanto em seus papis sociais, quanto psicologicamente, enfatizando a sua

    importncia e principalmente suas conquistas, que ainda vem sendo adquiridas ao longo

    dos anos perante a sociedade que , sobretudo, patriarcal.

    Virgnia Woolf uma das precursoras de um modelo de escrita que enfatiza os

    conflitos femininos, pois retrata em suas obras questes que fazem refletir sobre a condio

    da mulher na sociedade. Clarissa Dalloway, obra Mrs. Dalloway, uma de suas

    personagens mais relevantes. Nesta obra a autora consegue transmitir de forma peculiar os

    conflitos de identidade de sua personagem e mostrar como a sociedade interfere nas suas

    relaes de mulher casada, me e principalmente na sua personalidade que se molda

    atravs de um sistema patriarcal dominante.

    Em Clarice Lispector tambm so marcantes as questes do feminino na maioria de

    suas personagens, as quais so cheias de conflitos interiores e introspectivos, ou seja,

    representam as aflies da mulher brasileira na sociedade destacando a opresso sofrida

    perante as desigualdades sociais e os esforos para tentar viver sem as diferenas.

    Assim, Marina Colasanti faz parte de um grupo de escritoras que resgatam o

    feminino em sua escrita, fazendo com que suas narrativas sejam feministas ao abordar um

    discurso que reflita as condies da mulher na sociedade e tambm femininas por se

    constiturem de uma forma delicada, que mesmo cheia de lacunas capaz de se aprofundar

    em um universo psicolgico profundo, o que pode ser explicado por Lcia Castelo Branco

    ao comparar a escrita feminina ao gozo da mulher:

    A escrita feminina, similar ao gozo da mulher, tambm produto da falta

    e do deslocamento, do elptico e do prolixo, que fazem com que o

    discurso se desenvolva em circunvolues e que parea estacado, sempre

    girando em torno de si mesmo, sempre no mesmo lugar e, no entanto

    sempre outro. Essa tessitura do texto, excessiva e lacunar, termina por

  • 30

    reproduzir mimeticamente a estrutura do feminino. Como Bordado, como

    um vu que exibe sempre seus furos, suas brechas, como uma renda.

    (BRANCO, 1994, p. 94).

    Todos esses aspectos mencionados, dentre outros, podem ser comprovados na

    anlise destes dois contos, escolhidos justamente por apresentarem estas caractersticas

    mais marcantes, em uma forma simples de narrar.

    Com o destaque da presena feminina nestes contos, Marina Colasanti refere-se a

    todo um passado de luta das mulheres, que anseiam por melhores condies de vida e

    igualdade na sociedade, e, comparando-se aos dias atuais, h toda uma fora, contida na

    mulher, que ainda vtima de preconceitos, mas capaz de estabelecer transformaes no

    espao em que vivem. Assim, o surgimento da mulher das cinzas e a fora presente em

    seus cabelos representam o quanto a classe feminina precisa ser forte para se destacar ao

    longo dos anos na vida social.

  • 31

    1. EXPLICITANDO O POTICO: A LITERATURA QUE EMANA DOS CONTOS

    Tenho como regra, chegar, com o mximo de economia, ao mximo de

    resultado. Entrar, como de leve, em um tema, e, com poucos toques, vir-

    lo de cabea para baixo. Minha alegria chegar, com conciso, ao

    mago das coisas. A palavra certa um tesouro precioso, sempre raro. E

    uma palavra repentina e solta, saboreada na boca, melhor que bala.

    Quando estou em algum veculo de imprensa, lido mais diretamente com

    as coisas. Mas em literatura no sou amante do realismo, trabalho com

    smbolos, corto no vis. (COLASANTI, 2013)

    1.1. Aspectos tericos e literrios

    As teorias sobre literatura so fundamentais para o entendimento denso das

    escrituras caracterizadas como obras literrias, como tambm para a compreenso da sua

    importncia para a sociedade em que ela se insere e para as interferncias ocasionadas ao

    se retratar comportamentos, denncias, fantasias e conflitos que, ao longo das geraes,

    vo se modificando de acordo com as mudanas sociais, econmicas, artsticas, etc. Com

    isso, vrios tericos desde filsofos, fillogos, psicanalistas, ou seja, cientistas das diversas

    reas do conhecimento se dedicam aos estudos literrios como forma de compreender um

    pouco mais o meio em que vivem.

    E para que haja uma anlise tcnica dos textos de Marina Colasanti faz-se

    necessrio estudar as suas obras luz das teorias literrias vigentes, a fim de levantar

    aspectos que enquadram suas histrias como pertencentes aos conceitos literrios

    elaborados e estudados por diversos tericos ao longo das geraes. Dessa forma ser

    destacado o conto Quem me deu foi a manh, objeto central de estudo desta anlise, em

    comparao com a alma, no ? Do livro O leopardo um animal delicado, para que

    fiquem ntidas as diferenas e semelhanas tericas existentes dentro de um mesmo gnero

    literrio.

    Como mencionado anteriormente, o foco de anlise desta dissertao so os contos

    So os cabelos das mulheres e Quem me deu foi a manh, porm, para que haja uma

    melhor compreenso das teorias usadas ser necessria a utilizao de outras narrativas da

    mesma autora a fim de ampliar e comparar os conceitos levantados ao longo das pesquisas.

    Pode-se dizer que estes contos escolhidos so, em sua forma de compreenso,

    iguais e diferentes ao mesmo tempo, pois foram escritos em uma mesma poca literria,

    que a contempornea, pela mesma autora e apresentam caractersticas que percorrem

  • 32

    toda a histria literria, sendo um mais ancestral em seu modo de escrita, e o outro, mais

    atual na sua linguagem. Para que essas teorias sejam melhores explicitadas, faz-se

    necessrio conhecer um pouco o enredo de cada um dos contos, como ser mostrado a

    seguir.

    Como anteriormente citado, o conto Quem me deu foi a manh, est presente no

    livro Com certeza tenho amor, publicado pela autora em 2009 e, narrado em terceira

    pessoa com a incluso de dilogos ao longo da narrativa. Aborda-se nele a histria de uma

    moa, que ao ir lavar as sua anguas no rio se depara com uma salamandra, que encantada

    com a beleza da roupa, pergunta que rendas eram aquelas, e recebendo a resposta de que

    era algo que farfalhavam em seus tornozelos, o animal decide que quer ouvir este

    farfalhar, enroscando-se na moa.

    A salamandra descrita como fria como o vidro e brilhante como prata, sendo

    comparada ou at mesmo confundida com uma joia, causando espanto e admirao s

    outras moas da cidade, que ficam curiosas para saber a origem de tal objeto em uma

    pessoa to simples da aldeia.

    Com o passar do tempo a personagem volta ao rio para lavar novamente as suas

    roupas, e ao lavar o seu xale surge uma serpente, que do mesmo modo que a salamandra se

    encanta com a beleza da pea e decide, tambm, ficar no pescoo da moa como um colar,

    surpreendendo mais uma vez as pessoas da aldeia, ansiosas para saber onde havia

    conseguido joia to bela.

    E assim se sucedeu com uma liblula, que se encantou com seus cabelos, ao serem

    lavados no rio, pousando neles e ficando igual a uma presilha, delicada e graciosa como

    uma filigrana (COLASSANTI, 2009, p.61), o que foi o auge das especulaes da cidade,

    pois ao ser indagada mais uma vez sobre a aquisio de tais peas, a moa simplesmente

    responde que as ganhou da manh.

    Os boatos sobre as joias se espalham por toda a aldeia e a moa presa, acusada

    de roubo, porm algo fantstico acontece: dentro da cadeia os animais soltam a moa, pois

    a serpente pica o carcereiro e a liblula voa at a chave levando-a sua dona. Mas como

    este acontecimento foi inexplicvel aos habitantes da aldeia, a personagem foi acusada de

    bruxaria, presa novamente e levada inquisio em praa pblica onde seria queimada em

    uma fogueira.

    E dessa forma todo o ritual se procede, a moa queimada na frente de todos, ainda

    com a salamandra presa em seu tornozelo, e quando a madrugada chega e os habitantes

  • 33

    esto todos dormindo, ela surge das cinzas e se afasta com a joia em seu corpo:

    Assim, ningum viu aquele sbito mover-se entre cinzas, o menear, a

    cabea da salamandra erguendo-se. Ningum viu o brao, o ombro, a

    cabeleira da moa emergindo dos restos da fogueira, ela toda de p

    sacudindo-se como quem sai da gua. Ningum viu quando, antes de se

    afastar, recebeu ao redor do tornozelo uma joia fria como vidro e

    brilhante como prata. (COLASANTI, 2009, p. 65).

    J o conto a alma, no ? retirado do livro O leopardo um animal delicado,

    publicado em 1998, relata os pensamentos e as indagaes de Marta sobre o seu

    casamento. Alm de ser escrito em terceira pessoa com a insero de dilogos, h tambm

    pequenos monlogos interiores.

    Toda a narrativa deste conto parte de um elemento central que uma liblula

    encontrada na tumba de um fara, presa no mbar, sendo noticiada em um jornal. Atravs

    deste acontecimento, Marta comea a comparar a sua vida conjugal com a liblula presa.

    As suas reflexes tm incio de manh, na mesa do caf, quando o marido lhe fala sobre a

    notcia e ela toma conscincia de que tambm est presa em um mbar.

    Marta, depois do caf, na sala de televiso, continua a refletir sobre o seu

    relacionamento, pois no incio de tudo, os dois eram como liblulas, tinham vontade e

    dedicao com o outro, enquanto nos dias atuais, tudo se tornou mecnico, as palavras no

    mais se faziam necessrias para a comunicao, como se tornassem-se indiferentes, numa

    vida montona e entediante.

    Com todos esses pensamentos, Marta se sente presa em sua prpria casa, como a

    liblula no mbar, e imagina o cientista cortando a liblula para retirar o DNA, que

    segundo seu marido era como se fosse a alma do animal. Ao mesmo tempo, ela passa a

    unha sobre a pele do colo, imaginando que estava sendo cortada tambm, porm diferente

    do inseto, dela no se poderia extrair nada, pois a sua alma no estava ali.

    E assim Marta conclui que nem mesmo os arquelogos poderiam encontrar a

    resposta para o que virou o seu casamento, sendo tal situao impossvel de ser revertida,

    comparada a restos sem utilidade: As tumbas, diz para si mesma, os casamentos esto

    cheios de fragmentos sobre os quais nenhum arquelogo vem aliviar o peso da terra, restos

    necrosados que jamais sero duplicados para a vida. (COLASANTI, 1998, p. 10). E assim

    o dia vai escurecendo at que o seu marido retorna do trabalho e ela lhe pergunta

    secamente como foi o seu dia, e sem esperar a resposta, se volta para a televiso.

  • 34

    1.1.1. A instabilidade do gnero dentro de uma mesma categoria narrativa

    Com os contos explicitados acima, possvel notar, primeiramente, a mudana que

    ocorre dentro do prprio gnero em si, pois as narrativas expem em seu contedo formas

    diferentes de se apresentarem, o que pode se remeter ao conceito de espcie literria citado

    por Ren Wellek e Austin Warren no livro Teoria da literatura, em que h a indagao

    sobre o princpio ordenador de tais gneros e at que ponto a inteno influencia nessas

    mudanas:

    Tero todas as obras relaes literrias suficientemente estreitas com

    outras obras para que o seu estudo seja auxiliado pelo estudo dessas

    outras? E at que ponto est a inteno includa na ideia de gnero? A

    inteno de um pioneiro, de um inovador? A inteno dos outros?

    (WELLEK; WARREN, 1976, p. 282).

    O que se observa, tomando como referncia a definio a cima, que as duas

    histrias, se divergem na concepo de espao, pois em Quem me deu foi a manh ela se

    passa em uma aldeia enquanto em a alma, no ? todo enredo se constitui em uma

    casa, principalmente, na sala desta casa. Outra diferena que se encontra quanto ao

    tempo, pois na primeira narrativa h uma passagem cronolgica de dias que impossvel

    determinar; j na segunda os fatos ocorrem em apenas uma manh e tarde, sem se ter uma

    cronologia.

    evidente que pode haver vrias formas de se escrever contos, porm essa

    capacidade de escrev-los de diferentes formas, que enfatiza a inteno do autor em

    relao ao leitor e tenciona as possveis relaes que uma obra pode ter com outra ou no.

    Todas essas possibilidades de escrita fazem com que se confirme a teoria de que os gneros

    literrios no so fixos e sofrem mudanas dentro das mesmas categorias.

    O conto Quem me deu foi a manh exemplifica ainda a mistura de gneros

    distintos como a narrativa e a poesia, a sua construo adornada de metforas o torna

    potico, assemelhando-se aos poemas picos com traos de oralidade. Todas essas

    metforas se encontram no texto como descrio das caractersticas dos personagens, como

    por exemplo, para se referir aos cabelos loiros da moa:

    Ajoelhou-se na beira e mergulhou a cabea para lavar os cabelos.

    Ondular de azul na gua, ondular de azul entre os fios. Depois penteou e

    sacudiu os cabelos para sec-los ao sol. E como se trazida pelo sol, uma

    liblula voou e veio pousar na cabea, um pouco de lado. Ali, imveis as

    asas, deixou-se ficar. (COLASANTI, 1999, p. 62).

  • 35

    Na segunda histria tem-se uma concepo atual do gnero, que no se mistura com

    nenhum outro elemento, no h poeticidade e sim as reflexes da conscincia da

    personagem, o que uma caracterstica muito comum nos contos modernos, tais como os

    de Clarice Lispector e Virgnia Woolf, por exemplo. Nota-se que os pensamentos da

    personagem se misturam com o do narrador, causando um estranhamento por parte do

    leitor, exigindo dele uma leitura mais atenta, principalmente nos pargrafos iniciais:

    No mbar. Preso no mbar como uma liblula no exagera, Marta est

    bem, no d mesmo para tanto, preso no mbar como um inseto, uma

    mosca. isso, preso no mbar como uma mosca. (...) Uma mosca presa

    no mbar, isso o meu casamento. Pois no tinha o marido, de manh

    mesa do caf, abertas as folhas entre os dois, relatado com espanto a

    notcia do jornal? (COLASANTI, 1998, p. 07)

    Com todas essas diferenas e semelhanas existentes nestas duas narrativas, pode-

    se compreender que o gnero apreciado por elas no puro e se enquadra na teoria

    moderna sobre os mesmos. Como se sabe, Wellek e Warren explicitam duas teorias sobre

    os gneros ou as espcies literrias, a clssica e a moderna, que segundo eles, no podem

    se confundir uma com a outra, sendo a primeira descrita como normativa e prescritiva,

    sem a possibilidade de haver relao de um gnero com o outro, enquanto a teoria moderna

    engloba-se todas as suas definies, aceitando as suas miscigenaes e o valor nico de sua

    originalidade:

    A moderna teoria dos gneros claramente descritiva. No limita o

    nmero das espcies possveis e no prescreve regras aos autores. Admite

    que as espcies tradicionais possam misturar-se e produzir uma espcie

    nova (como a tragicomdia). Reconhece que os gneros podem ser

    construdos tanto numa base de englobamento ou enriquecimento como

    de pureza (isto , gnero tanto por acrscimo como por reduo). Em

    lugar de sublinhar a distino entre as vrias espcies, interessa-se

    maneira da preocupao romntica pelo carter nico de cada gnio

    original e de cada obra de arte em descobrir o denominador comum de

    uma espcie, os seus processos e objetivos literrios. (WELLEK;

    WARREN, 1976, p. 293).

    Dessa forma Marina Colasanti trabalha em suas obras no sentido de aprimorar o

    conceito do gnero, renovando-o e ao mesmo tempo retomando caractersticas tradicionais

    e mesclando-as com as modernas, reafirmando que a literatura adquiriu uma forma

    moderna de narrar e que os conceitos relativos aos gneros textuais so flexveis e

  • 36

    maleveis, tambm nos dias de hoje, no podendo haver uma definio precisa ou

    tradicional.

    Ao observar a maneira como se apresentam os dois contos acima escolhidos,

    relacionando-os com a poca em que foram escritos, tm-se uma viso muito clara destas

    modificaes ocorridas no conceito do gnero.

    1.1.2. A oralidade em Quem me deu foi a manh

    Alm dos aspectos referentes ao gnero, possvel observar, com mais nfase, a

    oralidade presente no conto Quem me deu foi a manh, pois a sua forma de narrar se

    assemelha forma mtica ou fabulosa dos contos antigos, da poca medieval.

    sabido que muito antes da escrita os poemas eram narrados oralmente, cantados,

    como fazia Homero na Grcia. Somente com o passar dos anos que as narrativas foram

    sendo registradas dando a elas um carter de imortalidade atravs dos tempos. Como cita

    Scholes e Kellogg em seu livro A natureza da Narrativa, a escrita tornou as palavras mais

    reais aos homens, e os livros em si adquiriram valores que vo alm do meramente fsico.

    E para que epopeias to grandes pudessem ser escritas e at mesmo memorizadas,

    os poetas utilizavam de frmulas para a concepo dos versos, atravs das mtricas

    utilizadas, e os enredos eram constitudos basicamente de fatos heroicos, como na Odisseia

    e at mesmo de mitos das origens e explicaes do mundo. E ao longo dos sculos a escrita

    foi se modificando e a maneira de se conceber as narrativas tambm. Pois enquanto um

    cantor oral tinha que desenvolver tanto o enredo quanto o tema do mito simultaneamente,

    na narrativa literria moderna, o enredo vai se transformar na histria do mito:

    O aspecto representativo do mito o enredo; seu aspecto ilustrativo,

    como o do topos e do canto inteiro, o tema. O cantor oral precisa

    desenvolver, simultaneamente, ambos os aspectos dos mitos que

    incorpora em seu canto. Quando a narrativa potica oral se desagrega

    com o advento da aptido literria no sentido moderno o como resultado

    de algum outro tipo de diferenciao cultural radical, o aspecto

    ilustrativo do mito desenvolvido em forma de alegoria e de escritor

    filosficos discursivos. O aspecto representativo do mito , ento,

    desenvolvido em forma de histria e de outros tipos de narrativa

    emprica. (SCHOLES; KELLOGG, 1997, p. 18-19).

    Assim, o conto Quem me deu foi a manh se assemelha a uma narrativa oral, por

    constituir em sua composio formas que lembram a narrativa do mito, pois a histria se

    passa de uma maneira ancestral e o tempo da narrao, por estar no passado, remete a um

  • 37

    acontecimento que pode ter sido secular ou mesmo atemporal, alm dos acontecimentos

    fantsticos, pois como se sabe, a personagem central de uma certa forma encanta os

    animais que passam a fazer parte do seu corpo, e os animais por sua vez tm aspectos

    humanos ao falarem com a moa.

    Sobretudo ao se ler o conto, percebe-se que o mesmo foi escrito de maneira a se

    assemelhar com a fala, devido s vrias metforas existentes tanto na descrio como na

    construo dos personagens.

    Esta narrativa em especial, adquire formas mais tradicionais de narrar, enquanto a

    outra ( a alma, no ), no se preocupa tanto em fantasiar os acontecimentos, sendo

    mais direta e cotidiana ao leitor, tomando como fundamental os fatos ocorridos ali no

    momento, que, no caso da segunda histria toda montada a partir de um nico elemento

    central, a liblula no mbar.

    Com isso, percebe-se que Quem me deu foi a manh uma forma de narrativa

    originria da combinao da oralidade com a escrita, tendo como base uma cultura

    estritamente oral, que ao ser escrita passou a dar diferentes formatos s maneiras de narrar

    algo, se modificando plenamente, como nos contos contemporneos, exemplificado pelo

    conto a alma, no ? Ou revitalizando e rememorando a sua tradicionalidade no breve

    conto da moa e a salamandra.

    1.1.3. Formalismo, recepo e significao

    Esses dois contos em especial possuem uma forma peculiar de narrativa que faz

    com que se retomem certos conceitos da teoria formalista e da esttica da recepo

    segundo Hans Robert Jauss, justificando de certo modo o estilo da autora em questo.

    Como se sabe a teoria formalista surgiu para dar literatura mais autonomia, ou seja,

    caracteriz-la como arte separando-a da linguagem prtica:

    A diferenciao entre linguagem potica e linguagem prtica conduziu ao

    conceito de percepo artstica, conceito este que rompe completamente o

    vnculo entre literatura e vida. A arte torna-se, pois, o meio para a

    destruio, pelo estranhamento, do automatismo da percepo

    cotidiana. Decorre da que a recepo da arte no pode mais consistir na

    fruio ingnua do belo, mas demanda que se lhe distinga a forma e se

    lhe conhea o procedimento. Assim, o processo de percepo da arte

    surge como um fim em si mesmo, tendo a perceptibilidade da forma

    como seu marco definitivo e o desvelamento do procedimento como o

  • 38

    princpio para uma teoria que, renunciando conscientemente ao

    conhecimento histrico, transformou a crtica de arte num mtodo

    racional e, ao faz-lo, produziu feitos de qualidade cientfica duradoura.

    (JAUSS, 1994, p. 18-19).

    Dessa forma o estranhamento pode ser percebido em Quem me deu foi a

    manh pelos acontecimentos fabulosos como na conversa da moa com os animais, no

    seu ressurgimento das cinzas e tambm por ser um conto com aspectos antigos, no que

    tange a sua semelhana com a forma mtica de narrar, escrito nesta poca contempornea.

    J em a alma, no ? nota-se tal quebra com o automatismo da percepo

    atravs dos questionamentos de Marta a cerca de seu casamento, ressaltando aspectos

    psicolgicos da personagem, como tambm na presena de um nico elemento central para

    a formao de todo o enredo, com nfase na falta de grandes acontecimentos que mudam

    o desfecho da histria ali contada, diferentemente do que acontece nos contos tradicionais

    ao estilo do escritor norteamenricano Edgar Allan Poe, com incio, clmax e fim.

    A capacidade que estes contos tm de chamar a ateno do leitor para uma reflexo

    relativa aos fatos ali contidos, dando aos enredos significados plurais, faz com que a cada

    leitura haja uma renovao de seus significados, atravs dos smbolos presentes na

    narrao. Com isso, esses textos reafirmam o que Jauss escreve sobre a literatura na

    perspectiva da recepo, em que seu acontecimento s se d pela expectativa dos leitores,

    ao diferenciar o acontecimento poltico do literrio:

    Ele (acontecimento literrio) s logra seguir produzindo seu efeito na

    medida em que sua recepo se estenda pelas geraes futuras, ou seja,

    por elas retomada na medida, pois, em que haja leitores que novamente

    se apropriem da obra passada, ou autores que desejem imit-la. A

    literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte

    de expectativas dos leitores, crticos e autores, seus contemporneos e

    psteros, ao experienciar a obra. (JAUSS, 1994, p. 18-19).

    Tais caractersticas podem ou no ser dependentes da inteno do autor, pois o

    enredo pode culminar em significados que inicialmente no faziam parte das perspectivas

    do escritor, mas que atravs da leitura de cada um vai se transformando e tomando outras

    inferncias. Em Quem me deu foi a manh o leitor pode refletir sobre os significados que

    cada animal possui e o porqu de justamente a salamandra ter sido o que salvou a moa da

    morte na fogueira, ou ento pensar no que aconteceu depois que a personagem partiu, alm

    de muitas outras coisas.

  • 39

    No conto em que Marta a personagem principal o leitor tambm tem a

    possibilidade de inferir diversos significados aos acontecimentos, pois o final da histria

    fica em aberto. H a possibilidade de associao da liblula presa no mbar, no s com o

    cotidiano de Marta, mas tambm com outros fatores sociais que culminam na instituio do

    casamento, fazendo com que a narrativa atinja uma reflexo mais profunda e at

    psicolgica dependendo do leitor.

    Contudo, a associao dos contos com a teoria da recepo acima citada, faz com

    que a obra de Marina Colasanti adquira um carter atemporal, pois poder ser lida

    futuramente sempre com a probabilidade de ter os seus significados renovados, resultando

    num texto novo a cada olhar do leitor.

    Ainda no conceito de significao da obra, tendo como referncia s teorias de

    Scholes e Kellogg sobre o significado da narrativa, pode-se tambm analisar tais contos no

    que diz respeito ilustrao e representao, que se dar na medida em que os enredos se

    aproximam ou se distanciam da realidade.

    De acordo com Scholes e Kellogg nem toda narrativa ir se preocupar em ter um

    significado, e esta despreocupao poder se manifestar de diversas formas, pois nem

    todas as obras procuram revelar os seus sentidos da mesma maneira, adotando

    variedades diferentes de manifestaes, mas que esto ligadas entre si: O ilustrativo

    simblico; o representativo mimtico. (SCHOLES; KELLOGG, 1977, p. 58). Com isso,

    os tericos alegam que a ligao entre o mundo ficcional e o real pode dar-se de maneira

    representativa ou ilustrativa.

    Quando a literatura, assim como qualquer outra arte, procura mostrar algo que

    esteja intimamente ligado com o real, chegando a ser uma espcie de rplica da realidade,

    ela est representando, ou seja, h uma impresso convincente do real dentro do que est

    sendo narrado. Por outro lado, se em vez de reproduzir a realidade em si, a literatura buscar

    apenas ressaltar um aspecto da mesma, ela estar ilustrando a narrao, sugerindo assim, os

    seus significados.

    Dessa forma, pode-se apreciar as narrativas como uma mais ilustrativa e a outra

    mais representativa. No conto Quem me deu foi a manh, existem vrios fatos que se

    remetem realidade, porm no chega a ser uma representao fiel pois os fatos

    fantsticos que ali ocorrem no podem acontecer efetivamente no mundo real, como por

    exemplo, no momento em que a personagem volta para a aldeia com a liblula nos cabelos

    e responde s outras moas que quem lhe deu todas aquelas joias foi a manh:

  • 40

    As moas esperavam para v-la passar. E essa preciosidade

    perguntaram em coro movidas pelo cintilar irizado quem foi que te

    deu?

    Quem me deu foi a manh respondeu a moa. E, sem olhar para trs,

    entrou em casa. A porta deixou aberta, soubessem todos que nada tinha a

    esconder. (COLASANTI, 2009, p. 63).

    H nesse trecho apenas uma sugesto de que todos os presentes da moa seriam

    vindos da natureza, ou seja, que a manh lhe agraciava com aquelas joias por ser

    justamente neste horrio que os animais apareciam para falar com a moa. A ilustrao

    tambm est presente neste trecho na fala das outras moas indicando certa inveja para

    com a possuidora dos adereos. A personagem central ilustra um ser frgil que perante as

    foras da natureza se torna forte e se sobressai aos desgnios humanos, dando um aspecto

    alegrico ao texto.

    Por outro lado, o conto a alma, no ? est mais voltado para a representao,

    pois h um retrato psicolgico e sociolgico, no que se percebe principalmente em Marta

    que representa o cotidiano de uma dona de casa que passa a perceber a rotina que virou seu

    casamento. O seu marido, no entanto, pode representar o homem, que est to voltado para

    o trabalho que no mais presta ateno na famlia, ou, em sntese, a narrativa apresenta a

    monotonia de uma relao sem esforos para se manter com o mesmo entusiasmo do

    comeo, o que acontece com muitos casais.

    Essas duas personagens criadas por Marina Colasanti chamam a ateno do leitor,

    cada uma sua maneira, e faz com que ele vivencie o que leu, tornando-se mais sensvel,

    exercitando a sua percepo da realidade, justificando assim a capacidade que o texto

    literrio tem de fazer com que o real seja visto mais claramente do que o cotidianamente.

    O leitor no apenas se entretm ao ler os seus contos, mas tambm passa a ver com outros

    olhos o mundo ao seu redor, seja com mais beleza e poesia, ou com mais dureza e

    realidade.

    A moa do primeiro conto apresentada de forma simples ao leitor adquirindo

    feies poticas e fabulosas maneira dos contos de fadas, os seus pensamentos no so

    importantes para o enredo e sim os seus atos. Pode-se perceber que neste conto no h a

    presena monlogos, o que a diferencia de Marta, mostrada na narrativa atravs de seus

    monlogos interiores - marca da escritura moderna.

    Apesar da insero dos monlogos interiores no segundo conto, ainda sim a

    personagem de Marta no apresenta grandes complexidades se analisada isoladamente. O

  • 41

    fato de ela pensar na sua situao conjugal no se remete aos fluxos de conscincia

    complexos, pois ao final da histria ela continua sendo a mesma, sem alteraes em seu

    psicolgico, que foi apenas explicitado durante a narrativa.

    1.1.4. O conceito de ps-modernismo nos contos

    Levando em considerao a data em que estes dois contos foram publicados, pode-

    se inclu-los como pertencente a uma poca ps-modernista. O conto a alma, no ?

    data de 1998, e Quem me deu foi a manh de 2009, como anteriormente citado, ou seja,

    so duas publicaes recentes, que possuem caractersticas que vo alm do tempo em que

    foram escritas.

    De acordo com David Harvey o ps-modernismo representa uma desconstruo

    do eu, uma mescla de diferentes realidades e consequentemente suas complexidades,

    diferentemente do modernismo. Com isso, h um pluralismo na escrita, permitindo aos

    autores uma maior liberdade em criar diferentes mundos em seus textos, fazendo com que

    haja questionamentos entre os seus personagens:

    O retrato do ps-modernismo que esbocei at agora parece depender, para

    ter validade, de um modo particular de experimentar, interpretar o ser no

    mundo o que nos leva ao que , talvez, a mais problemtica faceta do

    ps modernismo: seus pressupostos psicolgicos quanto personalidade,

    motivao e ao comportamento. A preocupao com a fragmentao e

    instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente, por

    exemplo, a certa concepo da personalidade. (HARVEY, 1996, p. 56).

    Assim as narrativas aqui apresentadas se enquadram como ps-modernistas, no s

    pela data em que foram escritas, mas sim por apresentarem caractersticas plurais. Estes

    textos proporcionam uma capacidade de interpretao particular dos acontecimentos

    capazes de exercer influncias psicolgicas e comportamentais em cada um, o que notado

    principalmente em a alma, no ?, em que a sua linguagem fundamental para se

    compreender a sua instabilidade de sentidos, como foi esboado acima por David Harvey.

    O fato de a autora retomar em seus textos formas literrias de escrita nos moldes

    antigos, como se nota em Quem me deu foi a manh, tambm faz com que sua obra se

    encaixe nos preceitos ps-modernistas. Neste conto em especial h uma releitura da forma

    de narrar dos mitos e dos contos de fada, alm da oralidade, anteriormente mencionada, o

    que comum nas narrativas contemporneas.

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    Ou seja, h em seus contos os fatos atuais do cotidiano, sendo mostrados em uma

    forma ancestral e tambm atual de escrita, com nfase em pequenos detalhes, que no

    caso desta autora, est em retratar o feminino e a feminilidade, caracterstica comum nos

    dois contos.

    Como foi possvel perceber, as duas personagens femininas sofrem com

    especulaes em sua forma de viver, a moa do primeiro conto, por exemplo, uma figura

    que pode representar a luta por uma colocao melhor da mulher perante a sociedade,

    enquanto a personagem de Marta, j est inserida na sociedade e questiona a vida que est

    levando. Nos dois contos, como se percebe, o aspecto feminino vem para ser questionador,

    o que um dos fatores da literatura ps-modernista.

    Esta corrente artstica na qual a autora est inserida, lhe permite uma maior

    liberdade de criao e por isso os seus contos assumem significaes plurais, permitindo

    que possuam marcas, tambm, de um tradicionalismo dentro do contemporneo.

    Outro fator importante para a caracterizao destas narrativas como atuais, o fato

    de retratarem o cotidiano, o que se percebe mais claramente no segundo conto, pois, ainda

    nos conceitos de Harvey, um dos aspectos fundamentais do ps-modernismo justamente

    a sua inerncia com os fatos habituais da vida em si.

    Contudo, a versatilidade da autora em geral ir contribuir ainda mais para a

    formulao contempornea de seus textos, pois ao mesmo tempo em que capaz de

    retomar uma forma antiga de escrita, ela tambm quebra com os automatismos, criando

    personagens complexas, incluindo monlogos interiores, ou seja, renovando e

    particularizando simultaneamente.

    Assim, estes dois contos se assemelham em seu carter de ps-modernidade, de

    acordo com os conceitos acima apresentados, porm em seu interior possvel perceber

    que eles assumem aspectos diferentes em sua forma de apresentao ao leitor. Em Quem

    me deu foi a manh h a retomada da escritura mtica, enquanto a alma, no ? est

    totalmente inserido na contemporaneidade.

    1.2. O gnero em questo: o conto e suas teses

    Destacando agora o gnero em que as narrativas de Quem me deu foi a manh e

    So os cabelos das mulheres se constituem possvel analis-las sob o prisma de

    Ricardo Piglia, atravs dos co