Teorias Do Cinema Robert Stam

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STAM, Robert. (2003) Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus. VERMELHO, Sônia Cristina. Síntese elaborada para título de estudos e discussões. Fevereiro de 2006. Sentidos Etimológicos: Animatógrafo: enfatiza o registro da vida em si Vitascope/Bioscope: olhar sobre a vida (espectador, o desejo de olhar) Cronofotógrafo: enfatiza a escritura do tempo e da luz, sobre a imagem-tempo (Deleuze) Cinetoscópio: enfatiza a observação visual do movimento Scenarograph: ênfase sobre o registro de histórias (cenário e trama) Cinematógrafo/Cinema: atenção sobre a transcrição do movimento (...) essas designações também implicam a ´essencial´ visualidade do cinema, entendimento muitas vezes reforçado pelo argumento ´histórico´ de que o cinema existiu primeiramente como imagem e apenas depois como som(...) (Stam, 2003, p. 38) Encontra-se na origem duas grandes correntes: os formativos e os realistas. Os formativos entendiam o cinema criar uma produção que se diferenciava do real e das outras artes (Arnheim, Bálazs etc) e os realistas que julgavam o cinema ser capaz de se assemelhar ao real, seja pela mimese

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Teorias Do Cinema, por Robert Stam

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STAM, Robert. (2003) Introdução à teoria do cinema.

Campinas, SP: Papirus.

VERMELHO, Sônia Cristina. Síntese elaborada para título de

estudos e discussões. Fevereiro de 2006.

Sentidos Etimológicos:

Animatógrafo: enfatiza o registro da vida em si

Vitascope/Bioscope: olhar sobre a vida (espectador, o desejo

de olhar)

Cronofotógrafo: enfatiza a escritura do tempo e da luz, sobre

a imagem-tempo (Deleuze)

Cinetoscópio: enfatiza a observação visual do movimento

Scenarograph: ênfase sobre o registro de histórias (cenário e

trama)

Cinematógrafo/Cinema: atenção sobre a transcrição do

movimento

(...) essas designações também implicam a ´essencial´ visualidade do cinema, entendimento muitas vezes reforçado pelo argumento ´histórico´ de que o cinema existiu primeiramente como imagem e apenas depois como som(...) (Stam, 2003, p. 38)

Encontra-se na origem duas grandes correntes: os formativos e

os realistas. Os formativos entendiam o cinema criar uma produção

que se diferenciava do real e das outras artes (Arnheim, Bálazs etc) e

os realistas que julgavam o cinema ser capaz de se assemelhar ao

real, seja pela mimese seja pela revelação (Bazin, Krakauer etc). Este

último principalmente por influência do cinema italiano pós II guerra,

quando utilizou desta mídia para construir uma identidade nacional.

Os primeiros escritos sobre cinema, final do século XIX e início

do século XX, tiveram sua origem nas produções literárias, mas

indicando uma posição ambivalente em relação ao cinema: de um

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lado identificando seu potencial utópico, e por outro, demonizando-o

exatamente pela sua dimensão ilusionista; ou entre seu potencial

democratizando e seu poder cultural globalizante. Como indica Stam

(2003), o cinema aparece atrelado a três tradições discursivas:

1) a hostilidade platônica às artes miméticas; 2) a rejeição puritana às ficções artísticas; 3) o escárnio histórico das elites burguesas pela plebe imunda. (Stam, 2003, p. 40)

Mesmo ainda no período do cinema mudo, já surgiam

questionamentos que somente mais tarde mostrarão a sua

complexidade no que tange à relação do sujeito com a imagem: ainda

no início do século XX os teóricos já se perguntavam sobre os

determinantes psicológicos do cinema, quais os processos

mentais envolvidos na experiência da espectatorialidade, se o

cinema define-se como uma linguagem ou fábrica de sonho (Stam,

2003).

Nas primeiras décadas, encontramos a produção do crítico e

poeta norte-americano Vachel Lindsay (The art of the moving

picture, 1915) que argumenta enfatizando a analogia entre o cinema

e a escrita hieroglífica (como uma linguagem), bem como o poder

narcótico das salas de cinema. A noção de linguagem também

aparece na França nos anos de 1920 com Riccioto Canuto e Louis

Delluc que entendiam que seu aspecto lingüístico vinculava-se

paradoxalmente pela capacidade de transcender as barreiras da

língua e pela não-verbalidade.

Os primeiros estudos sistemáticos sobre cinema, no entanto,

encontra-se na obra de Hugo Munsterberg (The photoplay: a

psychological study, 1916), psicólogo e filósofo de Harvard, tomando

por base categorias neokantianas e da pesquisa em psicologia

da percepção. O autor identifica o cinema como uma “arte da

subjetividade”, “(...) imitadora da maneira como a consciência

confere forma ao mundo fenomênico” (Stam, 2003, p. 45). O

espectador na sua concepção é um sujeito ativo, pois preenche as

lacunas com investimentos intelectuais e emocionais.

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Distingue no cinema o que vai designar como:

Processo Interior: princípios estéticos

Processo Exterior: evolução dos mecanismos tecnológicos

Segundo Stam, Munsterberg defende que:

A utilização cinematográfica do espaço e do tempo (...) transcende a dramaturgia teatral através de mecanismos como o close up, os efeitos especiais e as mudanças ágeis de cena por meio da montagem. Para Munsterberg, é precisamente a distância entre o cinema e a realidade física que o transporta para a esfera do mental. Refletindo com base na tradição idealista em filosofia, na qual o pensamento conforma a realidade, Munsterberg afirma que o cinema reconfigura a realidade tridimensional segundo as ´leis do pensamento´. Diversamente do teatro, cria prazer ao triunfar sobre o princípio material, libertando o mundo palpável do peso do espaço, do tempo e da causalidade, e dotando-o das formas de nossa própria consciência. (Stam, 2003, p. 46)

Na discussão em torno da arte cinematográfica, Jean Epstein

defendeu neste período um “cinema puro”, ou seja, não contaminado

pelas outras artes. Este autor descreve a fotogenia como a

quintessência do cinema, o que diferenciava a magia do cinema das

outras artes. Com base nesta concepção, Epstein não se opunha a

manipulação das imagens.

Segundo Stam,

O conceito de fotogenia permitiu aos críticos impressionistas dar conta do modo como o cinema não apenas evidencia o movimento poético das coisas no mundo, mas traduz as percepções modificadas da vida urbana contemporânea, ou seja, a velocidade, a simultaneidade, a múltipla informação. (Stam, 2003, p. 53)

A França, graças às suas revistas e figuras de destaque nas

discussões, se tornou um importante foco de reflexões. Nos anos 20

também surgiram as importantes reflexões dos soviéticos sobre as

técnicas de montagem. O Instituto Estatal de Cinematografia foi

fundado em 1920 com objetivos claramente definidos não só em

torno das idéias trazidas pelas produções dos filmes, mas também

pelas questões ligadas à indústria do cinema, visando aliar a

criatividade autoral com a política de massa. Pela origem dos

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precursores, a ênfase do Instituto caia sobre a técnica, a construção e

os experimentos.

Para os teóricos soviéticos, a montagem “conferia vida e brilho

aos inertes materiais de base do plano individual” (Stam, 2003). Em

certo sentido eram estruturalistas na sua origem, pois

(...) entendiam o plano cinematográfico como destituído de um sentido intrínseco antes de sua inserção em uma estrutura de montagem. Ou seja, adquiria sentido apenas em relação, como parte de um sistema maio. (Stam, 2003, p. 55)

Uma das grandes contribuições da escola soviética é o que ficou

conhecido como “Efeito Kuleshov”. Segundo Kuleshov a arte

cinematográfica se constituía na capacidade de exercer o controle

sobre os processos cognitivos e visuais por meio da segmentação de

visões parciais, organizando numa seqüência rítmica e com sentido os

fragmentos dispersos. Com isso, os soviéticos defendiam que era a

técnica cinematográfica e não o efeito de realidade que ocasionava a

emoção no espectador (Stam, 2003).

Nesta escola encontramos Pudovkin que “(...) elucidou os

princípios básicos da continuidade narrativa e espaço-temporal,

fundamentalmente do ponto de vista do realizador.” (Stam, 2003, p.

56). Mas, o mais influente teórico soviético foi Sergei Eisenstein,

com a sua “montagem de atrações”, pois ao invés de contar histórias,

para ele o cinema pensa através de imagens, utilizando o confronto

entre os planos para provocar na mente do espectador choques entre

conceitos, idéias e emoções. É um cinema de contradição, dialético-

marxista, de aproximação dos contrários (Oximoro, modo de pensar)

Dziga Vertov, por outro lado, postulava a exploração sensorial

do mundo através do cine-olho. Pretendia com isso, levar a

experiência a cada indivíduo de um cinema que se esforçasse por

mostrar o fenômeno da vida como ela realmente é; aproximando-se

de um cinema-documentário. O diferencial de Vertov em relação aos

outros teóricos soviéticos é que ele vai postular que a montagem

abrange todo o processo de produção: desde a observação, passando

pela filmagem, edição e finalização. Criticava as estrelas de cinema e

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defendia a pessoa comum na tela, bem como a representação da vida

cotidiana, o que o coloca como um realista.

A escola formalista ligado ao Círculo Lingüístico de Moscou foi

a primeira a explorar mais sistematicamente a relação entre

linguagem e cinema. Eikhenbaum, segundo Stam,

(...) via o filme em relação ao ´discurso interior´(...) [que para ele] completava e articulava o que era apenas latente nas imagens sobre a tela, facilitando, portanto, a compreensão espectatorial. A linguagem verbal tinha, pois, implicações sobre a ´legibilidade´ da imagem cinematográfica.(Stam, 2003, p. 66)

Este discurso interior era o que mediava a dimensão

individual e social no sujeito, na perspectiva tomada por Vygotsky,

para pensar o cinema como linguagem.

André Breton pleiteando um cinema de vanguarda ligado ao

movimento surrealista, buscou inspiração em Freud (Interpretação

dos sonhos) para compreender a experiência da espectatorialidade,

afirmando que o sujeito ao “entrar” na narrativa penetra num

universo cativante entre o sono e a vigília. Estas contribuições vão

inspirar posteriormente os trabalhos de Christian Metz.

Em 1933, Rudolph Arnheim publica na Alemanha Film, com

influência do pensamento kantiano e da psicologia da Gestalt,

enfatizava o papel ativo do pensamento na transformação da matéria

inerte em experiência significativa. Sua produção não se limitava ao

cinema, mas às artes visuais, pois seu foco eram os estudos

envolvendo a percepção visual. Para ele, a fruição e a visão são

fenômenos fundamentalmente mentais.

Segundo Stam (2003)

Na via negativa de Arnheim, eram precisamente os ´defeitos´ miméticos do cinema e sua facilidade par a manipulação por intermédio dos efeitos de luz, superposição, câmera lenta ou acelerada e montagem que faziam dele mais que um simples registro mecânico, capaz, portanto, de expressividade artística. Ao transcender a representação mimética permitida pelo dispositivo mecânico, o cinema se institui como arte autônoma. (Stam, 2003, p. 78)

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O húngaro Béla Balázs escreveu na década de 1930 a 1950

ensaios reunidos no Theory of the film (1972) definindo que a

montagem e a capacidade de manipulação de ângulo e distância em

relação à ação é que distinguia o cinema do teatro, elevando-o como

um instrumento para a produção de uma nova compreensão do

mundo real. Bálazs foi um grande defensor do close up, denotando

lirismo na sua capacidade de desocultar a intimidade, de descortinar

o invisível naturalmente. A microfisionomia do close up, diz Stam,

serviu de janela para a alma e o dispositivo cinematográfico como um

espelho para o nosso psiquismo (Stam, 2003).

Siegfried Krakauer, (perifericamente integrante da escola de

Frankfurt) já nos anos 20, por outro lado exaltava a função ideológica

do cinema e identificava uma força positiva na sua capacidade de

evasão da lógica taylorista e da uniformidade. Nas décadas de 1950 e

1960, Krakauer, analisando o cinema alemão do período da República

de Weimar, demonstrou como a produção daquele período mostrava

as tendências psicológicas profundas daquele país. Segundo a análise

do autor, os filmes conseguem traduzir a psique nacional por duas

questões: por serem produções coletivas e terem como alvo e

mobilizarem uma audiência de massa, não por meio de discursos

explícitos, mas sim abordando desejos implícitos, inconscientes, não

verbalizados (Stam, 2003). Segundo Stam, Krakauer

(...) desloca de modo muito interessante a questão do realismo para outro nível, no qual os filmes são vistos como representando, de uma forma alegórica, não a história literal, mas as obsessões profundas, perturbadoras e inconscientes do desejo e da paranóia nacionais (...)O cinema, para Krakauer, encena um encontro com a contingência, com o fluxo imprevisível e aberto da experiência cotidiana. (Stam, 2003, p. 97-98)

A Escola de Frankfurt deu sua contribuição no debate entre

Adorno e Benjamim em torno da “aura” do cinema. Para Benjamin,

As formas midiáticas de massa como a fotografia e o cinema construíam novos paradigmas artísticos que refletiam as novas forças históricas; não poderiam, portanto, ser julgadas pelos antigos padrões.(Stam, 2003, p. 84)

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Para Benjamin o cinema enriquecia o campo perceptivo e

ampliava a capacidade de compreensão crítica da realidade. Neste

autor vemos um deslocamento do objeto (venerado pela sua aura)

para a relação entre a obra e o espectador. Adorno, em torno do

conceito de Indústria Cultural, defendia que este era mais um

instrumento de manutenção da ordem vigente, desacreditando no

caráter emancipador do cinema, opondo-se com isso em parte a

Benjamin.

Nas décadas de 1950 e 1960 encontramos uma série de

teóricos que tomaram por base a fenomenologia no estilo de

Merleau-Ponty para estudarem o cinema. Na França esta tendência

levou a fundação do movimento denominado Filmologia, de inserção

acadêmica, e no seu primeiro congresso definiram cinco categorias

de interesse para a pesquisa: 1) a pesquisa psicológica e

experimental; 2) sobre o empirismo cinematográfico; 3) em estética,

sociologia e filosofia; 4) cinema como meio de expressão e 5) de

caráter normativo, o estudo do fato cinematográfico aplicado aos

problemas de ensino, da psicologia etc. Estes estudos prefiguraram

os interesses da teoria cognitiva nos anos 80.

Também neste período surgiu o movimento denominado

“autorismo” que colocava o diretor como um artista criativo de

pleno direito. O periódico Cahiers du Cinema defendiam que o diretor

era o responsável em última instância pela estética e pelo mise-en-

scéne do filme. Na sua versão norte-americana, a metodologia do

autorismo forçou um deslocamento do foco sobre o filme em si para a

assinatura estilística do autor (diretor); com isso trouxe à tona a

discussão em torno do “como”, ou seja, que o filme finalizado

apresentava reverberações pessoais, ideológicas e até mesmo

metafísicas subjacentes á ação do diretor no processo de produção.

No Brasil, inspirados em Gramsci e no neo-realismo italiano

encontramos Nelson Pereira dos Santos defendendo um cinema

nacional e popular. Glauber Rocha publica em 1963 o livro Revisão

Crítica do cinema brasileiro, propondo um cinema livre, revolucionário

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e insolente, contrário a ética comercial norte-americana, a estética

burguesa européia e a estética populista e demagógica soviética. O

conhecido movimento do Cinema Novo, segundo Glauber deveria

ser “(...) tecnicamente imperfeito, dramaticamente dissonante,

poeticamente rebelde e sociologicamente impreciso.” (Stam, 2003, p.

115). O cinema de Terceiro Mundo (Terceiro Cinema) trouxe uma

série de manifestos nas décadas de 1960 e 1970 procurando mostrar

sua força e especificidade, as quais envolviam questões de toda

ordem: do político ao técnico, do social ao individual.

Uma outra vertente teórica que viria a influenciar a produção

em torno do cinema foi o estruturalismo nos anos 60. O movimento

estruturalista, cujas raízes remontam às crises que minaram a

confiança na modernidade européia, trouxe de contribuição às

discussões em torno do cinema por intermédio da obra de Saussure

tomando a linguagem como aspecto estruturante das práticas sociais

e artísticas. O estruturalismo, como matriz teórica para analisar o

cinema, com as contribuições de Lévi-Strauss posteriomente, veio a

questionar o autorismo e introduzir uma perspectiva

semiótica/semiológica aos trabalhos em torno do cinema,

inaugurando o projeto dos filmolinguístas, tendo Christian Metz

como um dos grandes expoentes. Metz aportava de início um

ferramental teórico e metodológico diferenciando-o dos

pesquisadores anteriores, e para ele,

(...) o objetivo da cine-semiologia deveria se o de extrair, da heterogeneidade de sentidos do cinema, seus procedimentos básicos de significação, suas regras combinatórias, com vistas a apreciar em que medida essas regras se assemelhavam aos sistemas diacríticos de dupla articulação das línguas naturais.(Stam, 2003, p. 129)

Talvez a maior contribuição de Metz tenha sido o fato de ele

ressaltar que é justamente a natureza “imaginária” do significante

fílmico que faz dele este poderoso catalisador das projeções e

emoções humanas (Stam, 2003).

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Nas discussões em torno do cinema como linguagem, Metz

(Stam, 2003) identifica algumas diferenças que são fundamentais

entre plano e palavra:

1) Planos são numericamente infinitos, enquanto o léxico

impõe determinadas limitações à construção das

frases;

2) Planos são criações do cineasta e as palavras

possuem um outro tempo e espaço de produção;

3) Planos em si possuem mais informações do que as

palavras;

4) Plano se assemelha mais a um enunciado ou frase, é

uma unidade tangível para quem vai utilizá-la, já a

palavra depende de outros elementos em combinação

para ter um sentido mais complexo (imagem de um

cachorro e a palavra cachorro).

Além destas diferenças entre plano e palavra, Metz acrescenta

ainda a discussão sobre o meio. O domínio da língua materna é

adquirido a todos, independentemente de condição social, cultural,

etc. Este domínio pode variar em função dos condicionantes sociais,

ambientais e culturais, mas não impede necessariamente que o

sujeito consiga se comunicar (falar, pensar) utilizando-se desta

linguagem. Já a do audiovisual, ainda que consigamos “ler” os

códigos audiovisuais, é necessário conhecimento específico para que

um sujeito consiga produzir enunciados por meio desta linguagem

(Stam, 2003). Em função desta questão em particular, Metz vai definir

que o cinema é uma linguagem e não uma língua. Mais tarde o autor

vai substituir este conceito pelo de código (Linguagem e cinema,

1971), com uma carga menor de filiação com a lingüística, lembrando

que o cinema é um meio “Pluricódigo” que combina códigos

especificamente do cinema e outros não específicos. Stam (2003)

define a linguagem cinematográfica como sendo:

(...) o conjunto das mensagens cujo material de expressão compõe-se de cinco pistas ou canais: a imagem fotográfica em

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movimento, os sons fonéticos gravador, os ruídos gravados, o som musical gravado, e a escrita (créditos, intertítulos, materiais escritos no interior do plano). (Stam, 2003, p. 132)

Seus pressupostos teóricos fundantes são as heranças de

Saussure (língua/Linguagem) e dos formalistas russos nas questões

específicas do cinema.

O final dos anos 60, tendo como pano de fundo a crise do

socialismo do leste que culminaram em várias manifestações (maio

de 68), trouxe novas questões para os debates em torno da produção

cinematográfica. Mas a base, segundo Stam (2003), estava nas

teorizações da esquerda, “(...) revisitando, na verdade, muitos dos

debates precedentes: o de Eisenstein e Vertov sobre o

experimentalismo no cinema, o de Brecht e Lukács sobre o realismo e

o de Benjamim e Adorno sobre o papel ideológico dos meios de

massa.” (p. 152). Estas questões trouxeram para o centro da cena as

questões sociopolíticas em torno da produção cinematográfica, desde

os condicionantes individuais e coletivos, ou aqueles relacionados

mais à produção industrial de cinema. Conceitos como hegemonia

(Gramsci), ideologia (Marx, Althusser), falsa consciência (Marcuse) etc

tornaram-se centrais para os debates.

Do ponto de vista teórico, numa releitura estruturalista da

teoria marxista, Althusser forneceu um arsenal teórico, em

particular com seu conceito dos Aparelhos Ideológicos do Estado,

permitindo que o cinema fosse incluído como uma das instituições

socioculturais pertencente a estas estruturas que sustentavam a

sociedade.

Segundo Stam (2003),

Se Arnhein via o realismo intrínseco da câmera como um defeito estético, os teóricos althusserianos viam-no como uma espécie de defeito ideológico congênito. E se Bazin e Krakauer celebravam o realismo cinematográfico como um catalisador da participação democrática, os althusserianos o viam como um autoritário instrumento de subjugação. Em seu entendimento, era precisamente a transmissão de realismo intrínseca da câmera que a tornava cúmplice da ideologia burguesa. (p. 158. Grifos do autor)

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Esta concepção monolítica do cinema desconsiderava as

contradições em torno do próprio sistema (cinemas de vanguarda, de

resistência etc) e das produções em si, tendendo a uma concepção a-

histórica de cinema.

As discussões nas décadas de 60 e 70 trouxeram à tona

também uma discussão dos anos 30 de Bertold Brecht sobre o teatro,

trazendo para o centro das discussões a política (em outros termos

em relação aos estruturalistas althusserianos). Brecht elaborou uma

proposta estética e algumas técnicas específicas para o teatro

visando sua função social, que, para ele, deveria ser uma via de

politização, de transformação social. Alguns destes pressupostos

brechtiano foram incorporados a uma estética de cinema. O cineasta

brasileiro Glauber Rocha sofreu influências fortes deste movimento.

Entre os elementos estéticos e técnicos propostos por Brecht,

salientamos sua iniciativa em propor que o teatro, e em decorrência o

cinema, trabalhasse com 1. a criação de um espectador ativo, 2. a

noção do via-a-ser, transformando e não satisfazendo o desejo

espectatorial, 3. a arte como uma chamamento à práxis (no sentido

marxiano), 4. personagem e temas como contradição, 5. a recusa dos

heróis/astros construídos por meio dos recursos do meio e, 6. a

despsicologização, ou seja, de uma arte que foca nas nuanças

individuais da consciência para os padrões coletivos de

comportamento.

Apesar das contribuições enormes que Brecht trouxe para o

cinema, críticos posteriores indicaram algumas questões que são

pertinentes. Por exemplo, a crença enorme do bretchnianismo no

cientificismo, no racionalismo, no classe-centrismo e no

monoculturalismo. Além destas questões, as produções propriamente

ditas tinham uma proposta que negava a possibilidade de prazer ao

ato espectatorial, e uma teoria com esta orientação “(...) baseada

simplesmente em negações dos prazeres convencionais do cinema –

a negação da narrativa, da mimese, da identificação – conduz a uma

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a-hedonia sem saída, deixando o espectador pouco com que se

conectar.” (Stam, 2003, p. 173)

Neste período também surgiu uma discussão em torno do

conceito de “reflexividade” o que levou à produção de vários filmes

metadiscursivos, ou seja, falando sobre si mesmo.

Na contracorrente do cinema clássico, encontramos influência

de Bakhtin no conceito de “carnaval”. Conforme esta teorização, a

produção possui uma estética anticlássica, rejeitando a harmonia e a

unidade formal, trazendo o assimétrico, o heterogêneo, o oximoro e a

miscigenação. Este conceito influenciou sobremaneira a produção de

cinemas alternativos. No Brasil e em países do Terceiro Mundo

cristalizou-se em neologismos como o da “estética da fome”,

“estética do lixo”, “contracinema” etc. Segundo Stam (2003), o que

essas estéticas possuem em comum é que

(...) ultrapassam as convenções formais do realismo dramático em prol de modos e estratégias como o carnavalesco, o antropofágico, o realista mágico, o modernista reflexivo e o pós-modernismo resistente. (p. 180)

Enquanto isto, no Primeiro Mundo, a orientação lingüística cedia

lugar a segunda semiologia na qual a psicanálise passava a ter uma

influência determinante. Críticos e produções com intervenções deste

campo teórico articularam vários autores durante os anos 60 a 70. O

trabalho pioneiro com esta orientação foi o Edgar Morin (O cinema ou

o homem imaginário, 1958) em que ele:

(...) enfatiza a capacidade do cinema de infantilizar e subjugar o espectador. Segundo Morin, o espectador não assiste, simplesmente, a um filme, mas vive-o com uma intensidade neurótica, como uma forma de regressão socialmente aprovada (...) Stam, 2003, p. 182)

Com esta inflexão para a psicanálise, o debate semiótico passou

a incorporar noções como escopofilia, voyerismo, fetichismo, e

em conceitos lacanianos como estagio do espelho, imaginário e

simbólico. A psicanálise lacaniana (francesa) diferenciava-se da

norte-americana quanto à sua priorização: enquanto a primeira trazia

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a noção de id, inconsciente e sujeito para o núcleo, a segunda a

psicologia do ego. Como salienta Stam (2003),

Na fase psicanalítica da semiótica, o foco de interesses deslocou-se da relação entre a imagem fílmica e a realidade para o dispositivo tomado em si mesmo, no sentido não apenas da base instrumental de câmera, projetor e tela, ma também no do espectador como um sujeito desejante do qual depende a instituição cinematográfica como objeto e cúmplice. (p. 184)

Mas, as escolhas em torno da lingüística e da psicanálise não se

deram aleatoriamente. Segundo Stam (2003), a escolha deveu-se ao

fato de que ambas lidavam diretamente com a significação como

elemento central. No caso da psicanálise, em função de que Lacan

posiciona a linguagem como o centro de entendimento e de

constituição do sujeito, sendo a própria condição do inconsciente. Os

teóricos psicanalistas de cinema estavam interessados

particularmente em entender a dimensão psíquica envolvida na

“impressão de realidade” que o meio cinematográfico imprimia para

tentar entender o imenso potencial persuasivo que o meio possuía.

Jean-Louis Baudrye Christian Metz entendiam como

inseparáveis a questão da impressão de realidade com o

posicionamento e a identificação espectatorial. Baudry foi o primeiro

a trabalhar com esta abordagem e ele

Postulou a existência de um substrato inconsciente no processo de identificação, no sentido de que o cinema, como dispositivo de simulação, não apenas representa o real, mas também estimula fortes efeitos subjetivos. (p. 185, grifos do autor)

Segundo Stam (2003),

O cinema, portanto, atinge-nos duplamente: estímulos visuais e auditivos extremamente intensos nos inundam ao mesmo tempo em que estamos predispostos à recepção passiva e ao autocentramento narcísico. (p. 186)

Segundo esta orientação, o cinema seria uma materialização de

objetivos inconscientes, talvez inerentes à nossa psique, tais como o

desejo regressivo de retornar à estágios do nosso desenvolvimento

onde o narcisismo era mais latente no qual nossos desejos podem ser

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satisfeitos por uma realidade simulada, numa situação em que a

separação entre mundo exterior e interior, ego e não-ego não está

claramente definida (Stam, 2003). Metz defende a hipótese de que a

natureza duplamente imaginária do significante cinematográfico (pelo

que representa e pela natureza do seu significante) aumenta as

possibilidades de identificação.

Segundo Metz,

As imagens recebidas chegam de fora, em um movimento progressivo direcionado à realidade exterior; no entanto, em virtude da mobilidade inibida e do processo de identificação com a câmera e a personagem, a energia psíquica normalmente devotada á atividade é canalizada para outras vias de descarga. (p. 188)

Metz, no entanto, também estabeleceu uma série de críticas

aos críticos de cinema, afirmando que eles não poderiam ignorar o

fato de que eles também eram sujeitos condicionados da mesma

forma que os cineastas e os espectadores. Ou seja, a leitura, a reação

perante o filme deles não se diferenciava totalmente dos demais

sujeitos.

Além destas questões em torno dos conceitos de identificação,

narcisismo, também advinha da orientação psicanalítica os trabalhos

em torno da dualidade cinema X sonho. Hugo Mauerhofer (1949) já

enunciava a “situação cinematográfica” como possuindo algumas

semelhanças com a situação do sonho.

Em seu entendimento, a impressão de realidade oferecida pelo cinema deriva de uma situação cinematográfica que estimula sentimentos de recuo narcísico e auto-indulgência sonhadora, uma regressão a processos primários condicionada pelas circunstâncias similares às que subjazem a ilusão de realidade do sonho. O filme ficcional convencional ocasiona um enfraquecimento do estado de vigília que leva a um estado próximo ao do sono e do sonho. (p. 189)

Metz também procurou instituir as fontes subjacentes do prazer

cinematográfico. Segundo ele, a identificação seria uma delas, tanto

com a câmera (identificação primária) com os personagens

(identificação secundária); o voyerismo, pois a espectatorialidade é

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uma situação de observação do outro numa posição resguardada do

perigo de ser descoberto e, o narcisismo tendo como expressão as

sensações auto-exaltadoras de um sujeito que tudo percebe. A

escopofilia, termo cunhado por Freud, também seria um elemento

inscrito no prazer do cinema, uma vez que o outro se transforma no

objeto do olhar (o cinema se alicerça sobre o prazer no olhar)

Nos anos 60 a crítica pós-estruturalista de orientação de Derrida

veio trazer à tona a crença no cientificismo e na possibilidade da

análise fílmica semiológica seria capaz de capturar todos os sentidos

de um filme ao evidenciar seus códigos. Percebeu-se, baseado em

Bakhtin (Marxismo e Filosofia da linguagem) a impossibilidade desta

empreitada, pois não existia uma univocidade de sentido, as

múltiplas interpretações, a não existência de uma origem única para

os discursos, a identidade instável do signo, a onipresença da

intertextualidade etc.

Nos anos 80 a análise textual, uma outra vertente que operou

nos anos 70 e 80 com base no conceito de heteroglossia de

Bakhtin, sofreu muitas críticas, tanto dos pós-estruturalistas, quanto

dos estudos culturais. Ou seja, as análises fílmicas e textuais

mostravam-se inadequadas para dar conta da compreensão do filme

em si e da relação com o sujeito e o contexto. Isto se deveu

basicamente pelo caráter a-histórico das origens destas teorias

(lingüística suassureana e formalismo russo), tanto que as críticas

vieram no sentido de que “(...) embora haja algumas coincidências

cognitivas, a maneira como audiências específicas compreendem e

interpretam um dado filme também depende do momento histórico,

das afiliações comunitárias, da ideologia política etc.” (Stam, 2003, p.

220). Conforme a defesa de Adorno, não é possível separar a

compreensão de um valor interpretativo, de um julgamento de valor.

Nesta crítica, conforme defende Stam, por mais limitadas e

insignificantes que sejam, não devem ser descartadas, mas a

perspectiva é de ir além da análise, entendê-la como um estágio do

processo e não o seu fim.

Page 16: Teorias Do Cinema Robert Stam

Neste mesmo período (anos 80) a teoria da intertextualidade

encontrava-se em ascensão. Introduzido nos anos 60 por Kristeva,

como tradução do dialogismo bakthiniano, a intertextualidade

entendia que todos os discursos eram resultados das inúmeras

possibilidades do sujeito nas suas práticas discursivas dentro de uma

cultura, a partir de uma matriz de enunciados comunicativos no

interior do qual ele se realiza. Gerard Genette, a partir das obras de

Bakhtihn e Kristeva, (Palimsestes, 1982) cunha o termo

“transtextualidade” para referir-se a tudo aquilo que coloca um texto

em contato com os outros textos, de maneira direta ou indireta. Ele

propôs 5 tipos de relações transtextuais:

1) Co-presença efetiva de dos textos: na forma de

plágio ou alusão direta de um sobre o outro.

2) Paratextualidade: são as mensagens, comentários

que cercam o texto, incluindo até mesmo toda a

produção de divulgação do filme (cartazes, matérias

em jornal, etc)

3) Metatextualidade: relação crítica entre um texto e

outro, de forma direta ou silenciosamente evocado.

Exemplo: filme hollywoodiano criticando hollywood.

4) Arquitextualidade: certos textos que se caracterizam

por um desejo de se identificarem com outro. Exemplo:

As viagens de Sullivan – As viagens de Gulliver.

5) Hipertextualidade: evoca a relação entre as

adaptações cinematográficas e os romances originais,

“(...) em que as primeiras podem ser toamdas como

hipertextos derivados de hipotextos preexistentes,

transformados por operações de seleção, amplificação,

concretização e atualização.” (Stam, 2003, p. 234)

A questão da sonorização é discutida também pelos

psicanalistas franceses que afirmam que o som desempenha um

papel essencial na constituição do sujeito. Nos estudos identificam

que a música, por exemplo, conduz o expectador durante os pontos

Page 17: Teorias Do Cinema Robert Stam

mais opacos da diegesis, daí sua importância durante os créditos e na

abertura. Um outro aspecto apontado por eles é de que:

Dado que a música está intimamente ligada à cultura comunitária e às estruturas de sentimento, pode nos dizer onde se localiza o núcleo emocional de um filme. (Stam, 2003, p. 246)

Numa outra linha de investigação, os estudos culturais

começam a se inserir neste contexto nos anos 60. Esta corrente

interessava-se mais por situar os meios em um contexto histórico e

cultural mais amplo (Raymond Willians, E.P. Thompson, Staurt Hall,

Michel de Certeau). Os estudos com esta orientação procuram

chamar a atenção para as “(...) condições sociais e institucionais no

interior das quais o sentido é produzido e recebido” (Stam, 2003, p.

250), sendo que uma de suas idéias fundamentais “(...) é a

compreensão da cultura como o campo de conflito e negociação no

interior de formações sociais dominadas pelo poder e atravessadas

por tensões relativas a classe, gênero, raça e sexualidade” (ibid, p.

253) . Nestes estudos foi privilegiado muito mais os usos que eram

feitos pelos filmes do que os filmes em si, a preocupação se voltava

mais para o externo ao filme, do que uma análise interna a ele.

Nos anos 80 e 90, sob inspiração dos estudos culturais e de

semiótica bakthiniana, voltam-se os estudos para a questão da

natureza historicamente condicionada da espectatorialidade numa

perspectiva teórica em que se pretendia investigar “(...) as lacunas e

tensões entre os diferentes níveis, as diversas formas por meio das

quais o texto, o dispositivo, a história e o discurso constroem o

espectador, e as formas como também o espectador, como sujeito-

interlocutor, molda esse encontro.” (Stam, 2003, p. 257).

Nos anos 80 e 90, revisitando a Screen theory surge o

cognitivismo como uma das perspectivas de trabalho com o cinema,

numa junção dos lingüistas e dos formalistas. No entanto os

cognitivistas voltam-se para os elementos formais do cinema que

“coincidem” com as leis da percepção humana. Segundo esta

perspectiva, “(...) a representação cinematográfica fundamenta-se

Page 18: Teorias Do Cinema Robert Stam

nas atividades mentais do espectador, que utiliza esquemas mentais

para processar as informações audiovisuais a fim de construir um

sentido narrativo” (Stam, 2003, p. 276), correndo-se o risco de reduzir

o texto a estímulos.

Nos anos 80 também a semiótica, surgindo a

“semiopragmática” que procurava estudar a produção e a leitura de

filmes como constitutivas de práticas sociais programadas, ou seja,

procuravam entender como o sentido fílmico é produzido pelos

sujeitos. Não desconsideram as questões históricas e sociais que

interferem no processo, pois, no ambiente pós-moderno, a mídia

ocupa um papel diferenciado em relação a outros momentos e

espaços.

Nos anos 80 e 90 percebe-se claramente uma inversão no

sentido de trazer á tona os aspectos culturais e históricos que

engendram a produção (desde as escolhas de temáticas até a

utilização dos recursos da linguagem), evidenciando que as

abordagem complexas (leia-se pós-modernas) assumem a hegemonia

nas teorias do cinema. As abordagens passam a trazer contribuições

de distintas áreas, não encontrando-se mais teorias com categorias

puras de uma ou outra área (psicanálise, semiótica, lingüística, etc)

Outros aspectos teóricos a serem debatidos e discutidos

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

Pesquisa sociológica que procurava investigar alguns aspectos

particulares do cotidiano da sociedade atual. Utilizou um arcabouço

teórico que poderá nos ajudar. Abaixo coloco alguns conceitos e

discussões que considerei relevante para nossa pesquisa.

Page 19: Teorias Do Cinema Robert Stam

Como se tratou de uma pesquisa sobre as práticas cotidianas e

seu significado individual e social, tomou os “atos da fala” como fonte

de análise. O objeto de estudo foi a “enunciação”, pois compreende

que os atos da fala (o enunciado) supõe:

1. Uma efetuação do sistema lingüístico por um falar que atua as suas possibilidades (a língua só se torna real no ato de falar); 2. uma apropriação da língua pelo locutor que a fala; 3. a implantação de um interlocutor (rela ou fictício) e por conseguinte a constituição de um contrato relacional ou de uma alocução (a pessoa fala a alguém); 4. a instauração de um presente pelo ato do “eu” que fala, e ao mesmo tempo, pois o ‘presente é propriamente a fonte do tempo’, a organização de uma temporalidade (o presente cria um antes e um depois) e a existência de uma ‘agora’ que é presença no mundo. (Certeau, 1994, p. 96)

Segundo Certeau (1994, p. 41) as “(...) maneiras de fazer

constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do

espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural”.

(Certeau, 1994, p. 41), portanto, deve haver alguma lógica nestas

práticas.

Tomando os atos da fala como objeto de estudo, Certeau afirma

que estamos todos nós “(...) submetidos, embora não identificados, à

linguagem ordinária. Como na nave dos insensatos, estamos

embarcados, se possibilidade de fuga ou de totalizações”(1994, p.

70).

Discutindo as formalidades das práticas cotidianas, Certeau

afirma que existe uma diferenciação nestes estilos, as quais criam um

jogo mediante a estratificação de funcionamentos diferentes e

interferentes. (Certeau, 1994).

Neste sentido, quando Certeau (1994) discute o uso ou o

consumo de bens culturais e que parece ser possível considerar,

(...) esses bens não apenas como dados a partir dos quais se pode estabelecer os quadros estatísticos de sua circulação ou constatar os funcionamentos econômicos de sua difusão, mas também como repertório com o qual os usuários procedem a operações próprias. (Certeau, 1994, p. 93)

Page 20: Teorias Do Cinema Robert Stam

Neste sentido, não basta analisar as imagens distribuídas pela

TV e o tempo de sua assistência ou ainda os filmes veiculados nas

salas de cinema, porquanto restaria perguntar o que é que o

consumidor fabrica com essas imagens e durante essas horas.

Ou seja, o que fazem com isso? (Certeau, 1994, p. 93)

Certeau vai utilizar dois conceitos para seu trabalho, que penso

ser possível articularmos com nossa pesquisa. O primeiro é o conceito

de estratégia. Para ele a estratégia

(...) é o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações como uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc) (Certeau, 1994, p. 99)

E o conceito de tática que segundo o autor é uma

(...) ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. (...) a tática não tem por lugar senão o do outro.E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Mão tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento, dentro do ‘campo de visão do inimigo’ (...) e no espaço por ele controlado. (Certeau, 1994, p. 100)

Em resumo a tática é a arte do fraco que para se manter

indivíduo dentro do coletivo, este muitas vezes opressor, cria

mecanismos (táticas) para caminhar neste campo, para se

circunscrever no espaço e no tempo.

Com esta concepção Certeau (1994) concentra-se na

perspectiva de “(...) sugerir algumas maneiras de pensar as práticas

cotidianas dos consumidores, supondo, no ponto de partida, que são

do tipo tático.” (Certeau, 1994, p. 103)

Segundo Certeau (1994), as práticas cotidianas são

procedimentos, ou esquemas de operações e manipulações

técnicas. Centramos nosso olhar sobre o trabalho de Certeau no

Page 21: Teorias Do Cinema Robert Stam

estudo que ele realiza do uso da língua. Tomando a oralidade como

temática central (atos da fala), entende que esta foi sendo modificada

nestes últimos quatro séculos de história e de trabalho. A

centralidade da oralidade como elemento constituidor da

nacionalidade (entendida como as amarras que construíam o

sentimento de pertença a um espaço e a um tempo) foi sendo

gradativamente substituído pelos sistemas escriturísticos.

Hoje, essa “voz do povo”, (...) registrada de todas as maneiras,

normalizada, audível em toda a parte, uma vez ‘gravada’,

mediatizada pelo rádio, pela televisão ou pelo disco, e ‘depurada’

pelas técnicas de sua difusão” (Certeau, 1994, p. 222), perdeu seu

espaço e seu estatuto social. No entanto, apesar da perda de sua

centralidaed, “(...) a oralidade se insinua, sobretudo como um desses

fios de que se faz, na trama – interminável tapeçaria – de uma

economia escriturística.” (Certeau, 1994, p. 223). Decorrente deste

processo, a prática escriturística, ao longo de quatro séculos, assumiu

um valor mítico ao trazer para si a ambição ocidental de fazer sua

história e, por conseguinte, fazer história, sem, entretanto deixar de

coexistir com a oralidade.

As pesquisas no campo da psicolingüística da compreensão, diz

Certeau, nos trouxe uma imensa contribuição no sentido de discernir

entre os atos léxicos e escriturísticos. Estes estudos mostraram que

no processo de escolarização a criança aprende a ler

(...) paralelamente à sua aprendizagem da decifração e não graças a ela: ler o sentido e decifrar as letras correspondem a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem, [uma vez que] somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite enriquecer aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um escrito afina, precisa ou corrige. (Certeau, 1994, p. 263)

As Práticas escriturísticas se concretizam no ato de escrever, o

qual é entendido por Certeau (1994) como sendo “(...) a atividade

concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em

construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi

previamente isolado.” (Certeau, 1994, p. 225)

Page 22: Teorias Do Cinema Robert Stam

Tomando a escrita neste nível elementar, o autor identifica três

elementos fundamentais:

1) A página em branco: o espaço próprio (lugar) de produção

para o sujeito. “Coloca-se uma superfície autônoma sob o

olhar do sujeito que assim dá a si mesmo o campo de um

fazer próprio.” (p. 225). Neste lugar próprio e autônomo,

desde a criança até os adultos, está colocada a possibilidade

de, diante deste espaço, ele gerir e executar seu querer, seu

desejo. Um espaço de externalização do desejo. Se

entendermos a filmadora e a fita como ferramentas para a

escritura de um “texto audiovisual” temos diante de nós a

possibilidade de análise do discurso do sujeito.

2)Um segundo elemento seria o texto: onde os materiais

lingüísticos (e audiovisuais) são tratados, segundo métodos

explicitáveis (no audiovisual é possível afirmar isto?) de modo a

produzir uma ordem, a tornar este texto legível. Para a sua

concretização, o sujeito opera uma série de operações gestuais

e mentais as quais vão traçando trajetórias que se concretizam

nas palavras, nas frases e, por último no sistema (texto) inteiro.

Segundo Certeau (1994, p. 225), “(...) sob formas múltiplas,

este texto construído num espaço próprio é a utopia

fundamental e generalizada do Ocidente moderno.”

3) E como terceiro elemento, Certeau indica a

intencionalidade da mudança (o autor não utiliza este

termo), pois o sentido para a produção deste texto é voltar-se

para a exterioridade, para a realidade de que se distinguiu

buscando alterá-la de alguma forma.

Segundo Certeau (1994), se tomarmos as práticas

heterogêneas da sociedade tentando perceber o que as articulam

simbolicamente “(...) no ocidente moderno, não há mais um discurso

recebido que desempenhe esse papel, mas um movimento que é uma

prática: escrever. A origem não é mais aquilo que se narra, mas

a atividade multiforme e murmurante de produtos do texto e

Page 23: Teorias Do Cinema Robert Stam

de produzir a sociedade como texto.” (Certeau, 1994, p. 224)

(grifos nossos)

A oralidade torna-se secundarizada, perde seu estatuto de

cientificidade, o oral não contribui para o progresso, contrariamente

ao escriturístico que vem associado à idéia de uma prática ‘legítima’.

Essa cisão entre o oral e o escrito marca uma fronteira na cultura

ocidental. Tratando da produção do texto, Certeau (1994) coloca que:

As coisas que entram na página são sinais de uma ‘passividade’ do sujeito em face de uma tradição; aquelas que saem dela são as marcas do seu poder de fabricar objetos. No final das contas, a empresa escrituristica transforma ou conserva dentro de si aquilo que recebe do seu meio circunstancial e cria dentro de si os instrumentos de uma apropriação do espaço exterior. (p. 226)

Certeau (1994) indica um outro aspecto importante para nossas

análises: à medida que a escritura se modifica ao longo destes

séculos, a própria relação com a linguagem também se altera.

Segundo o autor,

(...) o lugar que lhe era [ao sujeito] outrora fixado por uma língua cosmológica [palavra de Deus], ouvida como ‘vocação’ e colocação numa ordem do mundo, torna-se agora um ‘nada’, uma espécie de vácuo, que obriga o sujeito a apoderar-se de um espaço, colocar-se a si mesmo como um produtor de escrituras.(Certeau, 1994, p. 230)

Neste sentido, o domínio da linguagem escrita se torna o

código de promoção sócio-econômica (Certeau, 1994),

dominando e selecionando, tornando-se o elemento que inscreve o

sujeito numa hierarquia social. Com isto, os atos de escrita e de

leitura são fundamentais (viscerais) no estabelecimento da ordem de

inserção do sujeito no social.

Segundo Certeau (1994),

No Século XVIII, a ideologia das Luzes queria que o livro fosse capaz de reformar a sociedade, que a vulgarização escolar transformasse os hábitos e costumes, que uma elite tivesse com seus produtos, s a sua difusão cobrisse todo o território, o poder de remodelar toda a nação. Este mito da Educação inscreveu uma teoria do consumo nas estruturas da política cultural. (Certeau, 1994, p. 261)

Page 24: Teorias Do Cinema Robert Stam

Uma inversão de valores passou a operar entre os meios de

difusão que se tornaram mais importantes do que as idéias que

veiculavam. No decorrer dos séculos, este processo trouxe subjacente

como corolário a idéia de que na produção da sociedade, cujo

processo passa necessariamente por um sistema escriturístico, o

público é moldado pelo escrito, “(...) torna-se semelhante ao que

recebe, enfim, deixa-se imprimir pelo texto e como o texto que lhe é

imposto.” (Certeau, 1994, p. 261).

Este processo de generalização dos atos de ler e escrever

provocou inúmeros efeitos sobre a sociedade: a substituição do

costume pela lei abstrata; a troca das autoridades tradicionais pelo

poder do Estado e, talvez uma das implicações de maior envergadura

do ponto de vista do social, a desagregação do grupo em benefício do

indivíduo. (Certeau, 1994)

O ato de ler, conclui Certeau, que de forma nenhuma se pode

associar a uma atividade passiva, ainda que ler seja peregrinar por

um sistema imposto, análises recentes afirmam também que toda

leitura modifica o seu objeto, portanto, o leitor efetua uma ação sobre

o objeto, uma intertextualidade com os outros textos com os quais já

teve acesso. No entanto, Certeau também considera que nas práticas

cotidianas de leitura, a liberdade do leitor através do texto é tolerada

somente por aqueles considerados “doutos”, os quais ele denomina

de funcionários autorizados, não sendo consentida aos alunos e ao

público em geral.

A liberdade de leitura se dá, portanto, para aqueles cujo lugar

na hierarquização social está nas camadas superiores. No entanto,

esconde-se a realidade das práticas de leitura, pois por trás deste

cenário, desta nova ordem cultural, existe “(...) a atividade silenciosa,

transgressora, irônica ou poética, de leitores (ou telespectadores) que

sabem manter sua distância da privacidade e longe dos

‘mestres’”(Certeau, 1994, p. 268).

E para finalizar, esta reflexão de Certeau (1994):

Page 25: Teorias Do Cinema Robert Stam

Ler sem pronunciar em voz alta ou a meia-voz é uma experiência ‘moderna’, desconhecida durante milênios. Antigamente, o leitor interiorizava o texto: fazia da própria voz o corpo do outro, era o seu ator. Hoje o texto não impõe mais o seu ritmo ao assunto, não se manifesta mais pela voz do leitor. Esse recuo do corpo, condição de sua autonomia, é um distanciar-se do texto. (...) Seja como for, sua maior autonomia não preserva o leitor, pois é sobre o seu imaginário que se estende o poder dos meios, ou seja, sobre tudo aquilo que deixa vir de si mesmo nas redes do texto – seus medos, seus sonhos, suas autoridades fantasmadas e ausentes. Aí em cima jogam os poderes que fazem das cifras e dos ‘fatos’ uma retórica que tem por alvo esta intimidade liberta. (p. 272)

Page 26: Teorias Do Cinema Robert Stam

MARTÍN-BARBERO, Jesús & REY, Gérman. Os exercícios do

ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo:

SENAC, 2001.

Neste livro Barbero e Rey discutem a dimensão da visualidade

na sociedade contemporânea. Utilizam os conceitos de tecnicidade,

no sentido humano do termo, justificando que diante do fenômeno da

comunicação atual não se tem dado a devida atenção a noção grega

da techné que remete a dimensão humana da destreza, da habilidade

do fazer, mas também de argumentar, expressar, criar e comunicar.

Há hoje na técnica, segundo os autores, “(...) novos modos de

perceber, ver, ouvir, ler, aprender novas linguagens., novas formas de

expressão, de textualidade e escritura.” (Martin-Barbero & Rey, 2001,

p. 12)

Decorrente deste novo estatuto da técnica, os autores vão

afirmar a existência de um novo regime, portanto, de visualidade.

Partindo de uma discussão sobre a função social da imagem, afirmam

que esta sempre foi um meio de expressão, de comunicação, mas

também de adivinhação, de iniciação, de encantamento e cura (B&R,

2001, p. 53)

Com esta carga genética, a imagem com freqüência é

impregnada de sentimentos de desconfiança, vem assumindo novo

estatuto em função de sua formação híbrida entre as dimensões de

sua visualidade e de sua tecnicidade.

Segundo B&R (2001):

Confundido por uns com as identificações primárias e as projeções irracionais e, por outros, com as manipulações consumistas ou com o simulacro político, o atual regime da visualidade se acha socialmente dicotomizado entre o universo do sublime e o do espetáculo/divertimento. (p. 16)

Neste percurso histórico, que remonta a própria noção de

comunidade, o que emerge nestes últimos séculos além da

complexidade de linguagens e de escritura da imagem, as imagísticas

e os imaginários, o seu desgaste e o seu esvaziamento de sentido em

Page 27: Teorias Do Cinema Robert Stam

função de sua submissão à lógica da mercadoria. Existe, neste

sentido, a primazia de uma estética que privilegia a banalização da

vida cotidiana com a proliferação de imagens nas quais, tomando

Baudrillard, “não há nada para ver”.

Os autores tem como pressuposto a constituição na

modernidade de um dês-ordenamento cultural, em particular nos

países latinos, que deve-se em grande medida,

(...) ao entrelaçamento cada dia mais denso entre os modos de simbolização e ritualização do laço social com os modos de operar dos fluxos audiovisuais e das redes comunicacionais. O estouro das fronteiras espaciais e temporais, que eles [meios] introduzem no campo cultural, deslocaliza os saberes, desligitimando as fronteiras entre a razão e a imaginação, saber e informação, natureza e artifício, ciência e arte, saber especializado e experiência profana. (B&R, 2001, p. 18)

A partir deste pressuposto, afirmam que: “Se já não se escreve,

nem se lê como antes, é porque tampouco se pode ver, nem

expressar como antes” (B&R, 2001, p. 18). Esta afirmação,

fortemente alicerçada num pensamento benjamiano, nos coloca o

desafio de pensar este estatuto da visualidade a partir da uma lógica

econômica, subjugada em certa medida, à freqüência, a intensidade e

a regularidades do mercado. Qual imagem se torna importante hoje?

Algumas colocações dos autores foram consideradas

importantes para estarmos discutindo. Sem uma preocupação de

discuti-las, tomarei para discussão no coletivo.

Uma primeira idéia que os autores defendem tomando como

elemento a problemática existente em torno do empobrecimento do

sujeito que assiste televisão (televisão é boa ou má?), sustentam que

a escola se coloca numa situação de recuo. Dizem eles:

Com o argumento de que ‘para ver televisão não se necessita aprender’, a escola – que nos ensina a ler – não teria nada a fazer aqui. Nenhuma possibilidade, nem necessidade, de formar uma visão crítica que distinga entre informação independente e informação submissa ao poder econômico e político, entre os programas que buscam se conectar com as contradições, as dores e as esperanças de nossos países e aqueles que nos oferecem evasão e consolo, entre cópias baratas do que é

Page 28: Teorias Do Cinema Robert Stam

imperante e trabalhos que fazem experiência com as linguagens (...) (Barbero & Rey, 2001, p. 27-28)

Os autores identificam que neste processo de desordenamento

cultural, as tecnologias atuam como um dos grandes protagonistas

sociais e tem produzido densos e amplos paradoxos. Citamos alguns

que consideramos importantes:

1. a convivência com uma opulência em termos

comunicacionais com uma debilidade de público (aqui discutir

em relação ao Certeau quando afirma que os sujeitos

constroem táticas para poderem circular no meio social. Existe

mesmo este público deficitário na sua capacidade de leitura

crítica dos meios?)

2. maior disponibilidade de informação com um

empobrecimento/deterioração da educação formal (esta não é a

única variável para explicar este processo na educação),

3. aumento significativo de imagens e um empobrecimento da

experiência (esta é uma questão interessante para analisarmos

se, e o quanto, a proliferação das imagens tem

responsabilidade pelo empobrecimento da experiência. É mais

fácil, cômodo e melhor se relacionar com as imagens? É um

jogo de interesses em que todos ficam satisfeitos com o

resultado: ter acesso fácil ao mundo? Não sei, coisas para

pensarmos)

4. multiplicação de signos numa sociedade que padece do

maior déficit simbólico. (B&R, 2001, p. 31)

A percepção do espaço e do tempo é alterada a partir do

surgimento dos suportes técnicos que permitiram a constituição do

que hoje chamamos de “experiência audiovisual”. As experiências

audiovisuais, como afirmam os autores, repõe radicalmente nossa

relação com a cultura fundamentalmente pelo modo como passamos

a nos relacionar com a realidade. Em relação à espacialidade dizem

os autores:

Page 29: Teorias Do Cinema Robert Stam

Do espaço, aprofundando o desancoramento que a modernidade produz com relação ao lugar, desterritorialização dos modos de presença e relação, das formas de perceber o próximo e o longínquo, que tornam mais perto o vivido ‘a distância’ do que aquilo que cruza nosso espaço físico cotidianamente. E, paradoxalmente, essa nova espacialidade não emerge do itinerário que me tira do meu pequeno mundo, senão, ao contrário, da experiência doméstica convertida pela televisão e pelo computador nesse território virtual ao qual, como expressivamente disse Virillo, ‘todos chegam sem que tenham que partir’. (B&R, 2001, p. 34)

Sem este lastro na espacialidade, a cultural local-nacional perde

seus laços orgânicos com o território e com a língua, que eram

aspectos nucleares na sua constituição: os sujeitos, na relação com o

espaço e com os outros, articulam sua cultura e, portanto, sua

identidade. A diminuição destas duas dimensões (espaço e língua) na

sociedade atual altera significativamente o posicionamento da

cultura, na perspectiva individual e coletiva, como eixo

coesionador/aglutinador do coletivo. Isto, associado à lógica da

mercadoria, pode nos direcionar para uma sociedade sem laço algum,

sem uma configuração espacial e lingüística que permita a

diferenciação cultural. Quais as conseqüências disto?

De outro lado, a nossa percepção do tempo, no qual se

instaura o sensorium audiovisual, vem sendo cada vez mais

marcada pela simultaneidade, do instantâneo e do fluxo. A dimensão

temporal remete diretamente à noção de história, herança, mas

também de futuro, de utopia. Essa “perturbação do sentimento

histórico” (B&R, 2001) fica mais evidenciada quando percebemos

uma exaltação do presente: este deve ser construído pelos meios de

comunicação incessantemente, os tempos são achatados na

simultaneidade do agora; isto porque uma das tarefas-chave da mídia

atual é a “fabricação do presente”. Assistimos todos os dias o jornal

televisivo para sabermos como está sendo nosso presente hoje,

amanhã outro dia é fabricado nos telejornais, em particular.

Como afirma os autores, é um “presente autista, que crê poder

bastar-se a si mesmo” (B&R, 2001). Neste contexto, o passado fica,

Page 30: Teorias Do Cinema Robert Stam

em relação ao presente, debilitado uma vez que os discursos o

descontextualizado, dês-historicizado e apolítico, pois ele fica

reduzido à “citações ao longo do texto”. E, com relação ao futuro,

este fica desprovido de um horizonte no qual possamos vislumbrar

uma utopia possível, pois o que se têm é a permanente

presentificação. A seqüência de acontecimentos não estrutura uma

história cuja duração permitisse vislumbrar um projeto. Como dizem,

ficamos entulhados de projeções, mas desprovidos de projetos.

Segundo eles,

Hoje, o fluxo televisivo constitui a metáfora mais real do fim dos grandes relatos pela equivalência de todos os discursos – informação, drama, publicidade, ou ciência, pornografia, dados financeiros-, pela interpenetrabilidade de todos os gêneros e pela transformação do efêmero em chave de produção e em proposta de gozo estético. (B&R, 2001, p. 36)

A América Latina, segundo B&R, vem se apropriando da

modernidade mantendo a cultura da oralidade (pensar em Certeau).

Conscientes de que ao nos debruçarmos sobre os meios de

comunicação passamos a lidar com uma questão antropológica,

propõem como centro das nossas atenções a

(...) profunda compenetração – a cumplicidade e complexidade de relações – que hoje se produz na América Latina entre a oralidade, que perdura como experiência cultural primária das maiorias, e a visualidade tecnológica, essa forma de ‘oralidade secundária’ tecida e organizada pelas gramáticas tecnoperceptivas do rádio e do cinema, do vídeo e da televisão.(B&R, 2001, p. 47)

Essa mudança na natureza dos processos sociais, pois as

relações passam a ser estabelecidas entre esses imigrantes do

tempo e do espaço, sujeitos de tempos e espaços distintos e

diversos veiculados pelos meios de comunicação traz como “caldo”

uma experiência cultural muito distinta. A idéia de desancoramento

é muito forte neste sentido: o sujeito levantou sua âncora e está

sendo levado pela maré. Isto me lembra a música de Caetano:

“Navegar é preciso, viver não é preciso”. “Preciso” no sentido da

precisão e não da necessidade, cabe pensarmos o quanto imprecisa

Page 31: Teorias Do Cinema Robert Stam

esta a navegação da vida nestes tempos de desenraizamento do

sujeito em relação à sua cultura. Este processo tem levado ao que

Freud indicou no século passado: a um sentimento de mal-estar numa

cultura onde ele não se reconhece e nem é reconhecido.

Apoiados na história cultural, na linha reflexiva inaugurada por

Bejamin, nas questões colocadas por Heidegger ao ligar a técnica ao

mundo constituído por/pelas imagens e, em Vattimo, em torno das

reflexões sobre sociedade e tecnologia, indicam a necessidade de um

“olhar” mais sistemático em torno da batalha travada nos interstícios

da cidade, num desequilíbrio entre o real e o virtual. A forte presença

da cidade virtual hoje, afirmam, não deriva necessariamente do

excesso de vitalidade e de aceitação das mídias, mas antes, pela

débil e confusa relação do sujeito com o seu território e com seus

pares.

Em relação especificamente às instituições família e escola,

indicam que a televisão causou um verdadeiro curto-circuito nas

estruturas de relações de autoridade, “transformando os modos de

circulação da informação no lar” (B&R, 2001) e, complementaríamos,

na escola também.

Novamente, chamam a atenção para aquilo que realmente,

segundo eles, seria a pergunta mais importante a ser feita: qual o

verdadeiro papel que a televisão está tendo neste processo de

reconfiguração do lar? Atualmente as crianças não dependem mais

da do domínio da cultural letrada para terem acesso ás informações

como acontecia na sociedade em que o livro reunia as informações,

muitas delas proibidas às crianças. A televisão expõe, apesar das

recomendações quanto á faixa etária dos programas, informações

que segundo certo princípio que afirma não ser próprio para elas.

Para os autores, são as estruturas das situações que deveriam ser

o foco das atenções e de análises para identificar a complexidade e

as implicações da televisão na configuração dos laços parentais.

Em relação à escola, esta organizou-se em torno do texto

impresso e instaurou um regime de saber baseado na comunicação

Page 32: Teorias Do Cinema Robert Stam

do texto impresso. Este paradigma de comunicação adotado pela

escola, convertendo a idade como critério de ascensão, permitiu o

estabelecimento de uma dupla correspondência:

(...) entre a linearidade do texto escrito e o desenvolvimento escolar – o avanço intelectual caminha paralelo com o progresso na leitura – e entre este e as escalas mentais da idade. (...) E é este modelo mecânico e unidirecional ao qual responde a leitura passiva [discutir], que a escola fomenta, prolongando a relação do fiel com a sagrada escritura, que a Igreja havia instaurado tempos atrás. (B&R, 2001, p. 57)

Este modelo paradigmático escolar acabou por promover uma

profunda desconfiança em torno das imagens, pois sua incontrolável

polissemia apresentava desafios aos sujeitos que, à época, não

deveriam permitir muita liberdade de leitura aos alunos [associar esta

questão ao que Certeau apresenta].

Segundo eles,

(...) a escola buscará controlar a imagem a todo custo, seja subordinado-a à tarefa de mera ilustração do texto escrito, seja acompanhando-a de uma legenda que indique ao aluno o que diz a imagem. (B&R, 2001, p. 57)

A diversidade de meios e dispositivos de acesso de informações

(os autores falam em conhecimento, o que podemos discutir) muito

mais versáteis, ágeis do que a escola dispunha, acabou por gerar

uma crise em torno da leitura de livros, situação que a escola (leia-se

educadores) vai atribuir aos malefícios trazidos pela larga e

diversificada circulação de tecnologias da imagem. A crítica que os

autores fazem, e que procede, é de que atribuindo esta crise de

leitura aos meios,

(...) poupa a escola de precisar questionar a profunda reorganização que vive o mundo das linguagens e das escritas com a conseqüente transformação dos modos de ler, deixando sem apoio a obstinada identificação da leitura com o que se refere somente ao livro e não à pluralidade e heterogeneidade de textos, relatos e escrituras (orais, visuais, musicais, audiovisuais, telemáticos) que hoje circulam. (B&R, 2001, p. 58)

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Acaba por se configurar um alargamento da fenda entre a

experiência cultural, da qual falam os professores, e aquela vivida

pelos alunos, e esta situação vem ainda reforçada, segundo as

autores, pelas indicações da UNESCO, por exemplo, que ao tratar do

binômio educação e comunicação, propõem que as mídias sirvam

substancialmente para expandir os auditórios da escola ou ampliar os

o alcance dos microscópios. Ou seja, desconsiderando os aspectos

culturais que trazem as mídias. Neste sentido, é que não se estranha

que as escolas continuem vendo “(...) vendo nas mídias unicamente

uma possibilidade de eliminar o tédio do ensinamento, de amenizar

jornadas presas de inércia insuportável.”(B&R,2001, p. 60),

desconsiderando, desta forma, que o problema de fundo é que se

constituiu um novo ecossistema comunicativo emergindo, com isso,

uma nova cultura, com outros modos de ler, de ver, de aprender e de

conhecer. (B&R, 2001).

Afirmam Barbero & Gey,

Ao reivindicar a presença da cultural oral e da audiovisual, não estamos desconhecendo, de modo algum, a vigência da cultura letrada, mas desmontando sua pretensão de ser a única cultura digna desse nome e o eixo cultural de nossa sociedade. O livro continua e continuará sendo a chave da primeira alfabetização forma que, em vez de se fechar sobre si mesma, deve pôr as bases para essa segunda alfabetização que nos abre às múltiplas escrituras, hoje conformando o mundo do audiovisual e da informática. (B&R, 2001, p. 62)

A escola , neste movimento social em torno da intermidialidade

e na intertextualidade, poderia abandonar o discurso moralista em

torno das mídias e construir um projeto ético em torno deste

ecossistema comunicativo. Este esforço se constitui atualmente no

grande desafio à educação, no sentido de fortalecer a consciência

histórica para que a memória não se transforme definitivamente em

esquetes retrô de um presente que sufoca a todos nós.

Page 34: Teorias Do Cinema Robert Stam

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Problematizações sobre o

exercício de ver: mídia e pesquisa em educação. Revista

Brasileira de Educação, nº 20, mai/jun/jul, 2002.