CHARTIER, Roger. Origens Culturais Da Rev. Francesa (p. 09-75)

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I , , .... ~ ., , . fUNDA~O EOtTORADA.Ul'lESP Presidente do'Conse/ho Curador Hermon Voorwafd Diretcr-Presidente JQ58 Casiilho Morques Neto Editor.ExecutivQ Jbio Hernani Bomfim Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreiro Conse/ho Editorial AcadAmico Cl6udio Antonio Robello Coeltlo Jos' Roberto Emond,,! Luiz (3Qnzaga Morcnezon Morio do Ro~rio Long•..• ;..I•..• , Inlli Moria Encarnar;Oo Beltrllo Sposito Morio Fernondo Bolognesi foula Cesor Corrlo Borges Roberto Andr' Kroenkel sergio Vicente Motto Editores-Assistenles Anderson Nobaro Mete Zebber Christione Grodvohl Colas COPIAOORA N" I PRO~_1 i CURtiO:~) i I O.SC: I ------, . EN1R:Q3_'lLi.l1:J-! ! QUJ;f"31.,. ~~0<:01.. ! ._..... -_~;:v~.- Roger Chartier Origens culturais da Revoluc;ao Francesa Tradu~6a George Schlesir'8er ~ •• edltora unesp

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,. fUNDA~O EOtTORADA.Ul'lESP

Presidente do'Conse/ho CuradorHermon Voorwafd

Diretcr-PresidenteJQ58 Casiilho Morques Neto

Editor.ExecutivQJbio Hernani Bomfim Gutierre

Assessor EditorialAntonio Celso Ferreiro

Conse/ho Editorial AcadAmicoCl6udio Antonio Robello CoeltloJos' Roberto Emond,,!Luiz (3Qnzaga MorcnezonMorio do Ro~rio Long•..•;..I•..•, Inlli

Moria Encarnar;Oo Beltrllo SpositoMorio Fernondo Bolognesifoula Cesor Corrlo BorgesRoberto Andr' Kroenkelsergio Vicente Motto

Editores-AssistenlesAnderson NobaroMete ZebberChristione Grodvohl Colas

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Roger Chartier

Origens culturais daRevoluc;ao Francesa

Tradu~6aGeorge Schlesir'8er

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Introdu<s6o:As origens culturois do revolu<s60 fronceso

ouPor que escrever urn livro que ja existe?

Quando publicou Lts origines intellectuelles de fa RevolutionFranfaise, em 1933. mais de cinquenta anas amis, reria DanielMarner formulado a pergunta e mostrado rodas as respostaspossiveis, de uma vez par todas? Assim como 0 Pierre Menard,de Borges, que reescreveu Don Quixote palavra por paJavra,linhapor linha, estarao as hisroriadores inexoravelmente conde-nados a reafirmar as observar;6es de Marnet e recapitular suasconclus6es?

Existem duas maneiras possiveis de apresentar essa obje-r;ao. Em primeiro lugar, nossa conhecimento nao e mais (ellnao e mais exdusivamente) 0 que foi ha cinquenta anos, e h<iurn grande numero de monografias s6lidas capazes de dar SlIS-

temacao a uma analise do terna como urn todo. Em segundo.mesmo que suponhamos que nem a pergunta nem as respostastenham mudado, nossa fela(:ao com 0 problema das origens daRevolu~aoteria de ser apresentadaem tefmas diferentes daquelesfamHiares a Marnet e seus comemponineos, da mesma forma

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II Roger Chartier

que 0 Quixote de Menard nao era mais a obra de Cervantes POf-

que quatrc? seculos separavam seus textos identicos. A hist6riase romau mais circunspecta na designa.;:ao da causalidade. e ashistoriadores aprenderam prudencia e ceticismo a panic da dificiltarefa de sujeitar a emergencia brutal do evento revolucionario acategorias racionais, bern como de sua inabilidade de conceber 0

desenvolvimento historico como exigido e comandado por urnfio discemlvel.

Sera que acreditamos que ao substituir 0 terma inteleetualpela palavra cultural poderemos escapar dos perigos de urn ripode predi~ao retrospectiva que fornece previsiio ap6s 0 fato? Talmudanc;a nos permitiria, e claro, fazer eco ao curso da historio-gratia nos ultimos vime au tdnta anos, que tern ressaltado apesquisa em sociologia cultural em lugar da tradicional hist6riade ideias. E tambem uma forma de afirmar que mesmo as in08vac;Oes conceituais roais originais e poderosas estao inscritasnas decis6es coletivas que regulam e comandam as construc;:6esimelectuais antes que elas adquiram expressao em pensamentosclaros. Adma de tudo, no entanto, indicaria uma mudanc;:a napr6pria investiga~o. Agora e menos importame saber se 0 fatoja estava presente nas ideias que 0 anundavam, prefiguravam ouexigiam, do que reconhecer decifraveis e aceitaveis as mudan~asna crenr;a e na sensibilidade capazes de gerar uma destruir;aotao rapida e profunda da velha ordem poHtica e social. Nessesentido, atribuir "origens culturais" a Revolw;:ao Francesa_naoestabelece, de forma alguma, as causas da Revolw;:ao; em vezdisso, destaca determinadas condic;oes que a tornaram possfv~por ser concebfv.:e1..,

Uma ultima palavra. Este fino volume ow e umasinopse nemtampouco uma sfntese. Poi concebido e escrito como urn ensaio.Sua intenc;ao nao e resumir 0 que sabemos sobre 0 assumo, mas,ao concrano, sugerir duvidas e interrogac;:6es references a algumasdas hip6teses de trabalho e prindpios de inteligibilidade mwsamplameme aceitos. Meu metodo privilegia camemarios sobre

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Origens cuJturoisdo Revolu~ooFronceso

textoS individuais, velhos e novos. e deve muiro ao trabalho doshistoriadores que, em anos recentes, viraram de ca~a para baixonossa compreensao das prarica5 e pensamentos dos francesesdurante 0 seculo XVIII. Espero apenas clarear algumas novasperspectivas sobre urn problema ja desgastado.

A$sim, minha inten~o nao e reescrever Morner, mas somen-te - de forma mais modesta ou temeraria, como 0 leitor preferir-levantar algumas questoes que nao the teriam ocorrido.

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Introdu~60 dos editores ingleses

Em Paris, nesta simb61ica noite de 14 de julho, noite de fervore de juhiJo, aos pes do obelisco alheio an tempo, nesta Place de laConcorde que jamais foi taO digna de seu nome, rumaJ grande eimensa vaz ... espalhani aos guatro ventns da hist6ria a can~aoqueexpressa 0 ideal dos quinhentos marselheses de 1792.

As palavras, de linguagem tao rebuscada, com 0 tom das ins-trw;6es para as grandes festivais publicos da Revolw;:ao Francesa,sao de Jack Lang. ministro frances da Cultura, Comunical;oes,Grandes Obras Publicas e do Bicentemirio. 0 texto e do progra-rna para a grandiosa opera-parada apresentando "a Marselhesapara 0 Mundo", 0 espetaculo televisionado internacionalmentede Paris, coroando as comemoral;6es oficiais do bicentemirio daRevolw;:ao Francesa.

A Iinguagem do ministro foi adequadamente moldada paraa ocasHio. Foi bern escolhida para celebrar Paris como cidadehistorica mundial - ber~o jubiloso dos prindpios modernos

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de democracia e direitos humanos - e a Revolw;:ao de 1789 comoa momentosa aflrmac;:ao das aspiras:5es humanas universais deIiberdade e dignidade, que transformaram, e ainda estao transfor-mando, 0 mundo inteiro. E nao roi menos bern escolhida a of>\aode paSSMsobre os eventos da Revolw;:ao desde 0 inicio ate 0 fim,aflrmando que as paix6es poHticas produzidas por suas graveslutas finalmente cessaram de dividir os franceses entre si.

o esperaculo na Place de la Concorde exemplificou 0 lemainconfesso da comemora.;ao oflcial do bicentenano: 'i\ Revolut;:aoacabou". Optando por uma celeb~ao condizente com a predo-minancia centrista, estado de espirito consensual da Fran~ dofinal da decada de 1980, a missao presidencial encarregadadas comemorac;oes concentrou-se nos val ores suhscritospela vasta rnaioria dos cidadaos franceses de todas as convic-<;6espoliticas - os ideais exaltados na Declarac;ao dos Direhosdo Hornem. Isso ofereceu a nac;:ao- e ao mundo - a imagem deuma Fran<;afinalrnente em paz consigo mesma: urn povo a salvode disputas, desfrutando tranqiiilamente dos direitos humanos,que constituern 0 verdadeiro patrimonio revolucioflario daFranc;:a,confiante na maturidade das instituic;:6es francesas e emsua aptidao para enCMar os desafios e as oportunidades de umanova ordem europeia, firme no empenho do pafs em assegurarrespeito universal pelo credo demoCflitico - a contrihuic;ao maisfundamental ao mundo das n~oes. Nenhum indfcio de suhse.quente radicalizas:ao, nenhurn eco de confJito social, nenhumasomhra do Terror pocIeria macular esta temporada de celebr3.l;5es.Segue-se que os tradidonais protagonistas e representantes nogrande debate sobre 0 carater e os propositos da Revolu<;ao,Danton e Robespierre, teriam de ser deixados de lado. 0 her6ide 1989 foi Condorcet: sabio, fil6sofo, reformista, revolucionano"moderado", vitima da Revoluc;:ao, nao conseguiu se sobrepornem se fazer vigorar.

Mas a Revolu<;ao - ambigua, compJexa, suhversiva comocontinua sendo, mesmo duzentos anos depois - ainda se provou

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,Origens culturoi~ da Re•••olu/Voo France~o

refrataria a domesticac;:ao. Nem mesmo 0 solene espetaculodo bicentenario na noite de 14 de julho pOde escapar de cer-toS contrapontos traic;:oeiros. Espectadores que assistiram aemocionante parada que se estendeu dos Champs-Elysees atea Place de la Concorde ja sabiam que esse mesmo trajeto senaem breve percorrido por participantes de uma comemora<;aocontra-revolucionaria devolvendo urn simulacro da guilhotinaao seu mais llot6rio sitio revolucionario. Esses espeetadoresficaram comovidos pela pungente marcha de jovens chinesesempurrando suas bicicletas em evocal;io ao recente massacrena Pras:a TIenanmen, mesmo que esse brutal silenciamemo dasexigencias por direitos humanos estivesse sendo justificado parBeijing como urna defesa relutante da Revoluc;ao comra perigo-sos elementos contra-revolucionarios, Os espectadores ficaramernocionados com a her6ica interpreta<;ao de Jessye Norman daMarselhesa, ainda que 0hino lembre a todos que tenham 0 cuida-do de pres tar atenc;ao a letra que esse canto de liberta<;ao, agorauniversal, foi tambem uma feroz canc;:aode guerra clamando peloderramamento do "sangue impuro" do inimigo. No exato dia daparada, uma polidamente exasperada Margaret Thatcher, contes-tando publicamente a reivindicat;:ao francesa da paternidade dosDireitos do Homem e insistindo na identificas:ao da Revolu~aocom 0 Terror, lembrava ao mundo a assustadora equa<;ao 1789= 1793. De sua parte, os participantes enviados pela URSS paramarchar na parada, vestindo trajes rnais russos do que sovieti-cos, levantaram questoes acerca do axioma socialista de que aRevolu.;ao Russa {oi a conclusao necessaria da Francesa. Na me-dida em que homens e mulheres por todo 0 mundo comunista selevantavam par direitos humanos, seria ainda possivel enxergar1917 como 0 autemico futuro de 1789?

As tensUes e conuadi.;oes da comemora<;ao possuem dina-mica polltica e cultural propria, mas se nutrem das tensoes econtradi.;oes da interpretal;io historica. Se na Fran~a a Revolu~ao,foi deelarada flnda, sua hist6ria esta longe de terminar - seja

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Reger Chertier

ali ou em qualquer outro lugar. De fato, 0 bicentenario daRevolu.;ao .francesa reabriu apaixonados debates historiogra-ficos a respeito de seu significado, debates que come.;aramcom a pr6pria Revolui;io. ja em setembro de ] 789, lehores doRtvolurions de AJris - urn dos primeiros e mais lidos jornais queviriam a desempenhar urn poderoso papel em moidar a consci-~ncia revolucionaria - exigiarn "urn quadro hist6rieo e politieode tudo 0 que aconteceu na Franl;a desde a prirneira Assembleiade Not3veis", que deveria ser oferecido como meio de explicar anatureza da "estarrecedora revolUl;:ao que acaba de acomecer".Desde 0 inkio, tanto obsetvadores como participames buscaramcaptar as causas, a natureza e os efeitos daqueles impressionantesevemos. E se conCOITeram todos para 0 momentoso car-iter daRevolu.;ao, diferiam veementemente quanta a sua necessidade,meios e missao fundamental. Burke e Paine, Bamave e de Maisae,Condorcet e Hegel foram apenas os primeiros de uma estomeame!ista de pensadores que responderam a necessidade de investigara identidade e a significancia hist6ricas de urn fenomeno que,desde seus prim6rdias, pareceu exigir - mais que isso, desafiar-a compreensao hist6rica.

Essa rica tradi~o de hist6ria polftico-fiJos6fica da Revolu.;ao,que ressoou ao longo de rodo 0 seculo XIX, f,?i ernudedda eprofundarnente modificada na esteira das comemora.;5es docentenario. Na Fran.;a, 0 ano de 1889 inaugurou uma nova erana historiografia revoluciomiria, dedicada ao matrimonio entrerepublicanismo e positivismo subjaceme a propria cria.;ao daTerceira Republica. Esse matrimonio deu luz, demro eta univer-sidade, a catedra de Historia da Revolu.;ao Francesa na Sorbonne,para a qual Alphonse Aulard foi e1eito em 1891. Dessa posil;ao,ocupada por mais de trimaanos, Aulard dirigiu a primeira revistaacademiea dedicada ao esrudo da Revolu.;ao, presidiu a prepara-.;ao e a publica.;ao das grandes cole.;5es oficiais de documenrosrevolucionarios, e formou estudantes para difundir 0 evangelhorepublieano-positivista. Estabeleceu e institucionalizou denuo

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Origens culturois de RevelulOi'ieFrence:s.a

do sistema universitario uma hist6ria oflcial, aparemementeciendfica: uma hist6ria dedicada a descobrir e justificar, dennoda hist6ria cia Revolu.;ao, a cria.;ao daquelas instituic;:6es repu-blicanas, parlamenrares, cuja promessa esta agora finalmenteassegurada nas mais ditosas circunsclncias. Danton, 0 patriotaque estava determinado, em 1793, a instituir em carater deemergencia 0 regime do Terror para salvar a Republica em perigo,mas que em 1794 se opos a suacontinuidade uma vez aliviado 0

perigo, tornou-se 0 heroi da Revolul;ao Francesa de Aulard.Dada sua autoridade institucional, seu posidonamenro

como historiador cientifico e seu republicanismo militante,Aulard foi capax de marginalit.ar imerpretat;:6es conservadoras daRevolu~o, ridicularizando 0 amadorismo da medrosa narrativade Hippolyte Tame acerca de suas origens no espirito fllos6fi-co e culminando no horror da viol~ncia em massa; e tambemdescanando, como pouco mais do que ideologia readonaria, aanaIise de Augustin Cochin sobre a genese e as implicac;:oes dasociabilidade jacobina.. Dentro da universidade a heran.;a revolu-cionaria tornou-se urn patrimonio a ser adrninistrado, em vez demeramente urn credo a ser inculcado. 0 mais talentoso disdpulode Aulard, Alben Mathiez, uansformou-se no seu cdrieo maisvirulentp. A ruprura foi mais que urn conflito ewpiano em relai;ioa mae republicana, Marianne. Mathiez questionou os metodosdentificos de Aulard; mas, acima de tudo, det~stava a modera.;aodantonista de seu mentor. Como alternativa a urn Danton opor-runisra, demagogico e trai.;oeiro, ele ofere cia urn Robespierreincorruptivel, em tome de quem elaborou uma leitura popular,socialista e leninista da Revolu.;io. A experiencia. bolcheviquereforl;ava seu robespierrismo, investindo-o de urn matiz milenar,e estimulando-o aempreender 0 seu trabalha mais original sobreo "movimento social" do Terror. Dai por diante a rela.;ao entrea Revolu.;ao Russa e a Revolu.;ao Francesa. entre 1917 e 1793,assombrou a interpretac;:.io republicana marxianizada, a qualMathiez dedicou sua carreira.

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Embora a cobiJ;:ada catedra de Aulard tenha sido negada aMathiez, t';'ste ledonou na mesma universidade ate sua maneprematura. Seu contemporaneo exato, Georges Lefebvre, par~tilhava muito de sua sensibilidadepolitica e de seu interessepela hist6ria oriunda de baixo, e 0 sucedeu como presideme daSociedade para Estudos Robespierristas. A eleiJ;:aode Lefebvrepara a cadeira da Sorbonne em 1937 provou ser decisiva para aconsolid3.J;:ao,na realidade para 0 triunfo, da interpretaiYao socialda RevoluiYaoFrancesa baseada nos princfpios do materialismohist6rico. Mais sociol6gico do que Mathiez em sua abordagem,e mais sutiI em seus julgamentos, lan~ou novas raizes comsua monumental obra sobreos camponeses (cuja autonomia eindividualidade ele restituiu) e com seus subsequentes estudossobre a estrutura sodal; ele recuperou questoes importantesem rneio a pol~rnica va. Seu rigor, seu talento pedag6gico e adiscreta qualidade de seu marxismo - corporificada efetivamenteao maximo no celebrado estudo sobre 1789 que publicou parao sesquicentenario da Revolll(;:ao Francesa em 1939 - valeram aele, it sua catedra e a interpretaiYao que promovia urn prestigiomundial. Ap6s 1945, e ate sua morte em 1959, ele presidiu todaa pesquisa internacional na area como diretor de seu Institutopara Hist6ria da Revolw;ao Francesa na Sorbonne. Sob a egide deLefebvre, a interpretaiYao republicana marxianizada da RevoluiYaoFrancesa tornou-se 0 paradigma, dominanl.e da historiografiarevolucionaria na FraniY3ap6s a Segunda Guerra Mundial; e foilargamente adotada, seguindo as lideres franceses nessa area, parurn Dumero crescente de historiadores especializados no ternaque se tornaram surpreendentemente caraeterfsticos da expansaoacademica pos-guerra, em particular nos pafses de fala inglesa.

Lefebvre passou seu manto de lideranc;:aa Albert Soboul, seualuno, que a sucedeu na catedra da Sorbonne em 1967. Sobouldevia sua fama academica em especial it sua tese pioneira sobreos sans-culottes parisienses, urn trabalho recentemente sujeito aseveras criticas sobre suas anaIises sociologica e ideol6gica, sobre

Origens culturois da Revaluo;oo Franceso

"sua compreensao do mundo do trabalho e sobre seus metodoscom freqiienda teleol6gicos e tautol6gicos. Mas sua influendatranscendeu de longe sua adamada monografia. Alto membra doPartido Comunista Frances, bern como diretor do Instituto paraa Historia da Revoluc;:ao Francesa, Soboul via a si mesmo comohistoriador tanto "cientiflco" como "comunista-revoludonano".Incansavel, ubiquo e prolffico, recitou tenazmente a narrativarnarxista da Revolu~ao Francesa como uma revolu~ao burguesainscrita na logica da necessaria transic;:ao do feudalismo para acapitalismo. Mas seu apetite par confronta~ao e sua assertivadefesa tIe umaortodoxia cada vez mais rfgida acabaram con-vidando - fazendo dele 0 alvo principal- 0 assalto revisionistaque veio a considerar a interpretac;:ao dominante mecanicista,redutiva e erronea.

Desafios a hegemonia da versao da:Sorbonne para a hist6riada Revolw;:ao Francesa foram fornecidosno final da decada de1950 e come~o dos anos 60 pela tentativa de Robert Palmerde redirecionar a ateniYao para a politica democratica de umaRevolu~ao Atlantica e, mais fundamentalmente, pelo ataquefrontal de Alfred Cobban as premissas metodologicas e poHti-cas da interpreta~o marxista. Mas tal era a poder do consensoacademico que, condenadas com certo prazer em Paris, essasobras obtiveram apoio imediato' rclativamente pequeno. Foi sono final da decada de 1960 e inkio da de 1970 que a correnterevisionista adquiriu uma base nativa ,francesa, tanto intelectualcomo institudonaL A carga foi Iiderada por Franc;:oisFuret, quedeixou 0 Partido Comunista em 1956 para em seguida gravitarrumo a uma politica liberal de centro. Urn dos primeiros his-toriadores franceses a ter intima familiaridade com os estudosanglo.:americanos (e com a vida norte-americana de forma geral) ,Furet serviu como terceiro presidente da Ecole de Hautes Etudesen Sciences Sociates, acelerando seu desenvolvimento paratorna-Ia urn dos prindpais centros da Europa para pesquisa emciencias sociais e humanidades - e formidavel rival institucional

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da Sorbonne. Desencantado com 0marxismo, tambem se afastouda tradi~ao dos Annales de hist6ria social e cultural quantitativa,vigorosamente abra~ada nos estagios iniciais de seu trabalho.Durante as ultimos quinze anos, tern sustentado uma criticadevastadora ao "catecismo" jacobino-Ieninista, redirecionando aaten~aa academica para a dinamica da Revolur;:aocomo fen6menoessencialmente politico e cultural; para a legka, contradi~5es epathos de sua inven~ao da sociabilidade democratica; para suafecundidade como problema para as indaga~6es politicas e filo-seficas do seculo XIX, sobre cuja inspira~ao ele insiste que oshistoriadores devem se pautar.

E uma das grandes iranias da historiografia revolucianaria,portanto, que a centemu-io da Revolu~ao tivesse inaugurado acanso1ida~ao da exegese republicana oficiaJ, enquanto 0 bicen-temirio tenha marcado a desintegra~ao de sua descendenciamarxista. 0 campo de busca esta agora roais aberto, roais flui-do, mais excitante do que foi por muitas decadas. Da mesmamaneira, e agora moldado por preocupa~5es e sensibilidadesderivadas de mudan~as e experiencias recentes. Estas ultimassao numerasas e variadas. Qualquer !ista abrangente teria deincluir 0 eclipse do marxismo como for~a polftica e intelectual;o declinio dramatico do comunismo, em especial na Fran~a; aressurgimento do Hberalismo noOcidente,. com sua reabilita~aodo mercado como modelo e moralidade, afirmando a conexaointrinseca entre liberdade polftica e laissez-faire; a drama-ticamudan~a no Leste, do gulag para agla.snost e a perestroika, do ma-oismo para a ocidentaliza~o, com seu reconhecimemo oblfquoe aberto do fracasso comunista, e a ignominia estendendo-se deVarsovia a Moscou e Pequim. Mas tallista nao poderia omitir amemoria do Holocausto e as traumas da descoloniza~ao, tantoentre colonizados como colonizadores, desde a Guerra daArgellaate as horrares sanguimirios do polpotismo. Teria de induir aimpressionante triunfo e a subsequente exaustao dos Annalescomo paradigma, com sua metafora de niveis de determina~ao

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,Origens culturois do Revolu~(io "Froncesa

privilegiando a perspectiva de longo praz<1.e.as tecnicas quami-qttiyas; a emergenciade uma nova historia cultural, pluralistae agressiva. alimentada par diyersas energias disciplinares econtradisdpJinares; 0 surpreendente desenvolvimento da Ecolede Hautes Etudes en Sciences Sociales como comrapeso a uni-versidade francesa tradicional e 0 florescimento de uma tradi~aode estudos historicos franceses fora da Frant;a, cujo desafio ahegemonia parisiense nesse campo nao pode mais ser ignorado.Nem se poderia negligenciar a dramatica erup~ao da imagina~aorevoluclonaria nos eventos de 1968, e as novas politicas radicaisde r~a, sexo e genera, que se tornaram uma preocupar;:ao taoprofunda nas decadas subsequences.

As impliCal;Oesdesta nova situat;ao para 0estudo da Revolur;:aoFrancesa sao profundas. Muitas preniissas fundamentais, nao s6acerca da Revolu~ao em si, mas tambem sobre como estuda-la,tern sido questionadas. Embora atualmente a Revoluc,:ao sejamais bem-entendida como nunca foi ameriormente, 0 colapsoda estrutura hegem6nica de aprendizagem e interpretar;:ao ternrevelado pontos cegos flagrantes naquilo que ate agoracontribufapara a compreensao e 0 conhecimento. Ao mesmo tempo em quea visao republicano-marxista inovou em certas areas, esterilizoua pesquisa em muitas ourras. Hoje ja nao e mais possive! eyocarcomplacentemente ocar<lter burgues daRevolu~ao, seja em,termos de causas ou de efeitos; as papeis, na verdade a propriadefini~ao, de outros atores sociais precisam ser reexaminados.Uma abordagem poUtica reabilitada esra avidamente reocupandoa Jugar de uma interpreta~ao social com seria necessidade de serreformulada. Quest6es de ideologia, discurso, genero e pniticasculturais vieram para 0 primeiro plano de maneiras renovadas.Cada vez menos historiadores estao dispostos a aceitar ou rejeitara Revolu~ao "em bloco", enquanto urn numero cada vez maior sepreocupa COIJJ «l necessidade de sondar e relacionar seus multi-plos e contraditorios componentes. 0 Terr~r perdeu 0 beneficiade sua relativa imunidade e isolamento. E apesar de hiperboles

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Roger Charlier

extravagantes, e com frequenda pateticas, a Direita conseguiufazer valer seu ponto de que a Vendee em particular - e a expe-riencia contra-revolucionaria em geral - exige urn tratamemomais aprofundado e equilibnido, da mesma forma que os terrorespas-termidorianos. Finalmente, ha uma sensal;ao generalizada deque a estreita periodizal;ao dos estudos revoludonarios precisaser substancialmente ampliada.

Quando a poeira do bicentenario assentar, os historiadores daRevolul;ao Francesa terao muito que fazer. Muitas quest6es iraorequerer pesquisa e discussao genuinamente cdticas, buscandoreavalial;ao, bern como uma sfntese vigorosa e original. Nossaambic;:aoem editar estas Reflex6es do Bicentenario da Revolu~oFrancesa e contribuir para esse empreendimento. Ao organizar aserie, que abrange doze volumes, procuramos identificar tapicose problemas fundamentais -- problemas que ate agora tern sidotratados de forma fragmentaria; t6picos em torno dos quais asabedoria convencional temwse desintegrado ao longo dos cor-rentes debates - que serao cruciais para qualquer nova narrativada RevolU/;:ao Francesa. Enos voltamos para alguns dos maisagul;ados historiadores neste campo, que se tern tornado urncampo de estudo cada vez mais internacional, pedindo-lhes quereexaminassem sua pr6pria compreensao desses assumos a luzde reflex6es pessoais, suas proprias e de,outras, eapresentas-,sem os resultados dessas reflex6es para urn publico mais amploem trabalhos relativamente breves, sinteticos, que ofereceraotambem urn ponto de partida cdtieo para posterior trabalho nocampo. Os autores compartilham .conosco da crenc;:ade que estamadura a ocasiao para urn repensar fundamental. Eles, obvia-mente, 0 farao, cada urn a sua propria maneira.

Os evenras que tiveram,infdo na Franc;:a em 1789 ternocupado, por duzentos anos, uma posic;:aohistorica privilegiada.o bicentenario serviu como urn dramatico lembrete de que nao56 as nossas nOl;6es modernas de revoluc;:aoe direitos humanos,mas toda a gama do nosso discurso politico derivam daqueles

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,Origens (;uiturais da Revoluo;ao FrCIO(;eso

eventos. A Revoluc;:aoFrancesa tern sido para a mundo modernooqueGnkia e Roma foram para a Renascenc;:a e sua heranc;:a: urnmundo condensado de atos e fatas, lutas epaix5es. significadose sfmbolos, constantemente reconsiderado e reimaginado natentativa de abarcar - e implementar - uma compreensao danatureza, condic;:6es e possibilidades da ac;:aohumana em suarelac;:aocom a politica, com a cultura e com 0 processo social.Para aqueles que gostariam de mudar 0 mundo, a Revoluc;:aoainda oferece urn roteiro, que e continuamente elaborado eestendido - em parlamentos e pris5es; em jornais e manifestos;em revoluc;:oes e.repress6es; em faroflias, Exercitos e grupos dedebate ... Para aqueles que gostariam de interpretar 0 mundo,ainda apresenta 0 incansavel desafio de compreender a naturezada extraordinaria mutac;:ao que deu a luz 0 mundo moderno.

"Grande ano! Voce sera 0 anD regenerador, e sera conhecidopar esse nome. A Hist6ria louvara seus grandes feitos", escreveuLouis-sebastien Mercier, anatomista litera.rio do seculo XVIII emParis, num poeticaAdeus ao anD 1789.

Vocemudou a minha Paris, e verdade. Ela esta completamentediferente hoje...Durante trinta anos tiveum pressentimento secretade que nao morreria sem testemunhar urn grande fato poUtko.Alimentei meu espirito com isso: hi alga l1ovopara,aminha pena.Se meu Tableau precisa set re/tito, ao menos algum dia se diea: Nesteana as parisienses ... se agitaram, e este impulso roi transmitido paraa Fran~ae para a resto da Europa.

Os historiadores da Revoluc;:aoFrancesa talvez nao se despe-c;:amdo ano do bicentenario em tons tao enlevados. Mas ao menosfarao eco a alguns de seus sentimentos. Nosso tableau precisa serrefeito; hoialgo de novo para as nossas canetas.

Keith Michael Baker e Steven Laurence Kaplan26 de agosto de 1989

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1lIuminismo e revolu~oo;Revolu~ooe iluminismo

Qualquer reflexao sabre as origens culturais da Revolw;:aoFrancesa conduz inevitavelmente a urn c1assico, Lesorigines intellec~tuellesck laRt!volutionFraJ1faise-1715~ 1787 [As origens intelectuaisda Revolll(;ao Francesa - 1715-1787J. de Daniel Marnet (1933,1967).1A obra de Marnet parece ditac a {micaperspeetiva passlvelpara trabalhos futuros, uma perspectiva quepostula uma conexao

Essa obra foi esenta aproximadamente na metade da carreira de Mornet,disclpulo fiel de Gustave lanson. docente de letras na Sorbonne. Antes daPr'ime.ira Guerra Mundial Marnet publicou Lesmtimmt dr laMlu'" til FrQllct. DrJM1I-JaeqIltSROIISSttlUIIBtrnardinM Sllillf.Piurlt. Paris: Hacheut', 1907; Les en-seignements des bibliod~ques privees (1750-1780). Rffllt d'Hutmrt Lilttrain:dtlaFrwlCt, p.449.96, jul.-set. 1910; e ussde-nusdt la IUItUn'mFranctau XVI1/'5itck. Paris: Armand Colin, 191;. Tres condi~Oes. fortemente expressas emseu Origines inttlltctlltllts ... , sao subjacentes a abordagem de Morner e 0 dis-tanciaram da crftica literaria a.hist6rica e de inc1ina\ao estetica: a exigenciade captar a produ~ao literaria dt: lIma epoca em sua totalidade em vez d~Iimitar-se a estudar os "grandes" autores e os "grandes" textOs da tradi.;i'ioe do dIlone literarlo; a necessidade de investig:ar nao 56 os tex(Qs, mas as

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evidente e obrigat6ria entre 0progresso de novas ideias atraves doseculo X\.'III e a emergencia da Revolu~o como acontecimento,Para Mornet, tres leis governavam a penetra~ao de novas ideias,que ele identificou com 0 lluminismo, na opiniao publica gera!.Primeiro, as ideias desciam pela escala social "das classes altamen-te refinadas para a burguesia, para a pequena burguesia e para °povo" (ibidem, p.2). Em segundo lugar, essa penet~aose difundiado centro (Paris) para a periferia (as provfncias). Finalmente, 0

processo foi se acelerando no decorrer do seculo, com~do comminorias que anteciparam as novas ideias antes de 1750 e pros-seguindo nos decisivos e mobilizadores contlitos na metade dosecu1o, para chegar, apes 1770, na difusao universal desses novosprindpios. !sse levou Morner fatese subjacente do Iivro, de que"foram, em parte, ideias que determinaram a Revolu~ Francesa"(ibidem, p.3). Embora nao negasse a imponancia - na verdade, aprirnazia -das causas polfticas, Mornet considerou 0pensamentoiluminista, tanto em sellS aspectos criticos quanto reformadores,como precondi~ necess8ria para a crise final da velhamonarqlliaa medida que rumava para a revolu~.

Sem duvida, as causas politicas nao teriam sido suficientespara determinar a Revolw;ao, pelo menos de forma tao nipida.Poi a inteligencia que estendeu e organizeu suas consequl!:ncias(ibidem, pA77).

jnstitui~s literirias, a drcul~o das obras e seu publico (0 que conduziuMomet em seu artigo de 1910 a urn interesse pioneiro nos invemirios dasbiblioteeas); a importinda de usar numeros e porcentagens para medir adrcul~ (Uo que importa tanto quanto 0 nUmero ea proponjio do numero",ibidem, pAS7). Em suas obras postenofC's, por exemplo.-:l Hutolrt! IVfa /ittl-rtlturt! ft""flUst cUmiqur, 16()Q.1700, sesCtll"tlCurtS v&iUlbltS tt ~ aspects inconnus.Paris: Annand Colin, 1940, Mometseafastou ciaperspe«iva de Lanson, 0 queIhe valeu urn ultica mordaz de Lucien Febvre em "De La;I:iOnIiDaniel Momet. .Un renoncement?", Annales d'Histcnre Socillk3 (1941), artigo ~impresso na co-letinea de ensaios de Febvre, Combats pour I'histQiu. Paris: Armand Colin, 1953.

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r, Origen$ culturais da Revolu<;60Francesa

A despeito de sua prudl:ncia e de suas ressalvas (claramenteassinaladas no texto por meio de expressoes como "em parte","sem duvida" e "pelo menos"), Mornet postulou uma liga~aonecessaria entre 0 Iluminismo e a Revolm;:ao. Os motivos daRevolu.;l1onao estavam, e claro, inteiramente contidos na filoso-fia, mas sem transfo"rma.;oes no "pensamento publico" geradas"peJa inteligencia", tal evento poderia nao ter ocorrido quandoocorreu. Isso levou Mornet a urna hip6tese de trabalho que nosultimos cinqiienta anos tern assombrado tanto a hist6ria inte-lettual como a sociologia cultural do seculo XVIII.

A quimera des origens

Surgiram duvidas. no en tantO, insinl,lando que a quesrao podeter sidd mal colocada. Em primeiro lugar, sob quais condi.;6ese legitimo estabelecer urn conjunto de ideias e fatos difusos edfspares como "causas" ou "origens" de urn acontecimento? Essaopera..;ao nB<>e tao a\.lto-evidente quanta parece. De urn lado,pressupOe urn processo de sele.;ao que retem, dentre as inume-ras realidades que constitllem a hist6ria de uma epoca, apenas amatriz do futuro even to. De outro, demanda uma reconscruc;aoretrospectiva que d~ unidade aos pensamentos e as a..;-eesque sesup6em ser as "origens", mas alheios uns aos OUtrOS,heteroge-neos em sua natureza e descondnuos em sua realizac;ao.

Seguindo Nietzsche, Michel Foucault nos ofereceu umacntica devastadora a noc;:aode origem entenclida nesse sentido.(Foucault, 1971, p.145-72, 1977, p.139-64). Assurnindo a line-aridade absoJuta do curso da hist6ria, justificando urna intermi-navel busca de come.;-os e anulando a originalidade do eventocomo presente ja antes de acontecel', recorrer a essa categoriaoblitera tanto a descontinuidade radical de rnudan..;-ashist6ricasabruptas quanto a irredutfvel discordAl1cia que separa as variasseries de discursos e pniticas. Quando a hist6ria sucumbe a

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"quimera das origens", ela assume, talvez inconsdentemente, 0

fardo de diversas pressuposic;:6es: que todo momento historico euma totalidade homogenea investida com urn significado unicoe ideal, presente em cada uma das realidades que constituem eexpressam 0 todo; que 0 devir hist6rico se organiza como umainevitaveJ continuidade; que as eventos esrao correladonados,urn tecendo a outro num fluxo inihterrupto de mudanc;:a que nospossibilita decidir que urn deles e a "causa", outro 0 "efeito". ParaFoucault, todavia, era precisamente dessas n~6es classicas detotalidade, continuidade e causalidade que a analise "geneal6-gica" au "arqueologica" deveria fugir se quisesse formular umanarrativa adequada da ruptura e da divergencia. Como a wirklicheHistorie [Historia] de Nietzsche, tal analise

transp6e a rela~ao ordinariamente estabeledda entre a erup~aode urn evento a sua necessaria continuidade. Toda uma tradi~aohist6rica (teo16gicaau racionalista) visa a dUuira evento singularnumacontinuidade ideal- como movimento teleol6gicoau processonatural. A hist6ria "efetiva", no entanto, lida com as eventos emrerrnos de suas caracterfsticas mais espedficas, suas manjfesta~6esmais agudas (Ibidem, p.161; idem, Language,p.154).

Se a hist6ria deve substituir a busca de origens pela "dispo-sic;:aosistematica da noc;:aode descontinuidade" (Foucault, 1968,p.9-40, citac;:aoda p.ll), a propria pertinencia da questao da qualpartimos fica minada.

Isto e ainda mais verdadeiro uma vez que a noc;:aode origemimp6e 0 risco adicional de propor uma leitura teleol6gica do se-culoXVIII que buscacompreende-lo s6 em relac;:aoao fen6menosupostamente considerado seu desfecho necessaril) _ a Revoluc;:aoFrancesa - e a focalizar apenas 0 fen6meno visto como geradordesse desfecho - 0 Iluminismo. Nao obstante, 0 que deve serquestionado e justamente a ilusao retrospectivainerente ao "mo-vimento regressivo que nos possibilita ler sinais premonitorios

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r Origens culturais do Revolu<;ao francesa

quando 0 evento foi cornpletado, e qU'Vldo ol~aI?0s para 0 passa-do de urn ponto de chegada que talvez nao fosse necessariamenteseu futuro" (Goulemot, 1980, p.603-13). Ao afirmar que foi 0

Ilumioismo que produziu a Revolw;:ao, a interpretac;:ao cbissicaralvez iAverta a ordem 16gica: nao deverlamos, em vez disso, coo-siderar que foi a Revoluc;:aoa inventora do l1urninismo, tentandoancorar sua legitimidade num corpo de textos e autores basicos,reconciliados e unidos, apesar de suas extremas diferenc;:as, pelasua preparac;:ao de uma ruptura com 0 velhq mundo?(Schleich,1981, p.2IO; Gumbrecht & Reichardt, 1985, p.7-88; Popkin,1987, p.737-S0.) Quando reuniram (nao sem algum debate)urn panteao de ancestrais incluindo Voltaire, Rousseau, Mablye Raynal, quando atribuiram uma func;:ao radicalmente crfticaa filosofia (se nao a rados os Philosophes), as revolucionariosconstrulram uma continuidade que foi primeiro urn processo dejustificac;:ao e urna buscade paternidade. Encontrar as "origens"de urn evento nas ideias do seculo- que fOJ a proposta de Marnet_ seria uma forma de repetir, sem saber, as ac;:5esdas pessoasenvolvidas no pr6prio evento e de sustentar como rustoricamenteestabelecida uma filiac;:aoque foi prodamada ideologicamente.

Poderia essa dificuldade ser contornada por urna reformula-c;:aoque substitua a categoria de origens intelectuais por origensculturais? Tal substituic;:ao, sem duvida, faria muiro por ampliaras possibilidades de compreensao. De um lado, a noc;:ao deorigens culturais assume que as instituic;:5es culturais nao saos"imples receptaculos para (ou resistencias a) ideias forjadasem outros lugares. Isso nos permite restaurar uma dina-micapropria para formas de sodabilidade, meios de comunicac;:ao eprocesso.s educadonais, dina-mica esta que Ihes e negada poruma anaJise como a de Mornet, que os considera apenas doponto de vista da ideologia que con tern ou transmitem. Deoutro, uma abordagem em termos c:lesociologia cultural abreuma larga gama de praticas que devem ser levadas em conside-rac;:ao:nao somente pensamentos elaros e bern elaborados, mas

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tambem representar;5es nao me~jadas e corporificadas; nao soenvolvimentos voluntarios e racionais, mas tambem lealdadesautomaticas e obrigat6rias. Isso torna passivel situar a eventorevalucionario nas transformar;5es de longo prazo que EdgarQuinet designou "temperamento" quando contrastava a natu-reza inflexivel dos reformadores religiosos do seculo XVI comoa posir;ao roais rnaleavel dos revolucionarios de seculo XVIII(Quinet, 1865), abrindo caminho para urna reflexao essencialsobre as variar;6es na estrutura da personalidade ou, para usara terminologia de Norbert Elias, economia psiquka (idem, ibi.dem). Mas sera essaampliar;ao de perspectiva suficiente paraevitar as ciladas da interpretar;ao teleol6gka?

o postulado de que "0 que realmente ocorreu" foi devido anecessidade e uma c!assica Husao retrospectiva de consciencia his-t6rica, que ve a passado como campo de possibilidades dentro doqual "0 que realmente ocorreu" aparece expost facto como 0 unicofuturo para esse passado,

escreveu Franij:ois Furet (1978a, p.35), colocando-nos em guardacontra reconstrur;5es a posteriori que parecem estar necessaria-mente implicitas em qualquer busca de origens.

Mas sera evitavel esse perigo? Devemos nos, inspirados pela"hist6ria contrafuctual", nos comportar tal qual nao tivessemosconhecimento de como a decada de 1780 terminou? Devemossuspender qualquer julgamento e supor que a Revolur;ao Francesajamais aconteceu? Seria divertido, ate mesmo proveitoso, encararesse desafio. Mas se 0 fizessemos, que questionamemo e princI-pio de inteIigibilidade usanamos para organizar nossa indagar;aodas rnuitas series de discurso e pratica que se entielac;:am paraformar 0 aquila que habitualmeme e designado como a culturada Franr;a do seculo XVIII? A Histori,a despida de tada e qualquertentac;:ao teleol6gica estaria arriscada a se tamar urn intermina-vel inventario de fatos desconexos abandonados a sua prolifica

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Origem culturais do Revolu<;CioFroncesQ

incoerencia, a espera de hip6teses que proponham uma possivelordem entre eles. Gostemos ou nao, pa:ecisamos trabalhar dentrodo terreno delimitado par Mornet (e antes dele, pelos pr6priosrevoluciomirios) e considerar que nenhuma abordagem de urnproblema hist6rico seja possivel fora do discurso historiogntiicoque a elaborou. A quesrao proposta por Les origines intellectuellesde la Revolution Fran~aise - a questao da relac;:aoentre as ideiasformuladas e propagadas pelo Iluminismo ,om a ocorrencia daRevolur;~o - nos servira como urn conjunto de problemas queao mesmo tempo aceitaremos e descanaremos, que recebemoscomo legado e continuaremos a sujeitar a duvida.

Taine: da razao c1assica00espfrito revolucionario

A relar;ao de Mornet com os historiadores que a precederamfoi exatamente da mesma ordem. Ha duas referencias bibliogra-ficas fundamentais em seu livro: uma que ele reiterava, discutia erefutava - L:AncienRegime [0 Antigo Regime] de Hippolyte Taine- e outra discreta e mencionada quase en passant - L:Ancien Regimeet la Revolution [0 Antigo Regime e a Revolur;ao], de Alexis de

. rocqueville (1856). Ambas sao obras centrais para a historiogra-fia'~~volucionaria. Mornet fazia duas cnticas a Taine. A primeiracensurava-o par conduir com excessiva pressa que "a espiritorevoluciomirio" foi difundido desde 0 inicio e por basear seu julga~mento em textos que eram famosos demais, parcos demais e, alemde tudo, construidos erroneamente. Para Mornet, reconstituir 0

progresso de novas ideias requeria uma abordagem diferente: umatentativa de medir a penetrar;ao dessas ideias (oua resistencia aelas) com base num conjunto de evidencias a mais vasto possivel,extraidas nao somente da literatura ou da filosofia, mas tambemde mem6rias pessoais. peri6dicos impressos, curs.os academicos,debates nas academias e lojas mac;:6nicas,enos eahiers de doleanees.

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E verdade que nesse trabalho a implementa~ao de Mornet deseu charnado ao rigor e com fre:qu~ncia canhestra e tentativa,mantendo-se mais enumerativa que quantitativa, aceitando aevid~ncia de series incompletas e discrepantes. A preocupa~aaexpressa por Marnet (que de forma geral se mantem fiel ao pro-grama elaborado par Lanson na decada de 1900) (Lanson, 1903,p.445~53; 1904, p.621-42) fomeceu, nw obstante, uma base deestudos que modificouprofundamente a hist6ria cultural francesanos ultimos vinte ou 25 arIOS,conduzindo-a para 0 massivo corpodocumental, para 0 tratamento de dados em series temporais epara a experiencia das pessoas comuns.

No entanto, Mornet tinha uma segunda critica a Taine.Quando este afirmava que 0 "espfrito revolucionario" ja existia,completamente farmado, na sociedade do Antigo Regime, sendalevado as consequencias roais extremas pelos Philosophes, davanova vida a velha teoria da canspirar;ao e a tese de uma revalur;aoplanejada. Mornet julgava essa ideia inaceitavel.

UrnLenin, urn Trotsky,quiseram uma revolUl;iioespecifica;pri-meiro a prepararam, depois a organizarame entao adirigiram. Nadasemelhante a isso aconteceu na Franr;a.As origens da Revolur;iiosao uma hist6ria, a hist6ria da Revolur;aoe outra (Mornet, 1933,1967, p.471).

Trata-se de urn comenta-rio precioso. Ele abre caminho paratodas as linhas de pensamento que distinguem, de urn lado, aRevolu~o sendo inscrita num processo de longo prazo como adesfecho necessario para uma constela~o de causas que a fizeramacontecer e, de outro, a Revolw;ao como urn evento que institui,par uma dinamica pr6pria, uma configurar;ao politica e socialque nao pode ser reduzida as condic;:5esque a tomaram possivel(Furet, 1978a, p.38~9; 1981, p.17-28). Mesillo assumindo que aRevolw;ao tenha tido muitas origens (intelectuais, culturais auoutras), sua propria hist6ria nao pode ser limitada a elas.

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j!.Origens culturois do Re'lOlu~60franceso

A dupla critica de Mornet iildubitavelmente deixa de captar aoriginalidade paradoxal do trabalho de Taine - ou seja, a genealo-gia que faz remontar 0 "espirito revoludonario" a sua matriz noclassicismo frances. Numa carta enderar;ada a Boutmy em 1874,Taine descreve seu projeto de trabalho nos seguintes termos:

[Eu quero] mostrar que Boileau, Descartes, Lemaistre de Sacy,Corneille, Racine, Flechier sao as antecessores de Saint-Just eRobespierre. 0 que .,~ reteve foi que 0 dogma monarquico e reli-gioso estava imacto; uma vez que 0 dogma '~edesgastou pelos seusexcessos e foi derrubado pela visao cientifica do mundo (Newton,via Voltaire), 0 espfrito chissico inevitavelmente produziu a teoriado homem abstrato, natural e do contrato social. (Taine, 1986).!

Alem do I1uminismo, a RevolUl;ao tinha raizes no triunfoda raison raisonnante do classicismo. Substituindo "a plenitude ecomplexidade de realidades" par urn "mundo abstrato", substi-tuindo a individuo real tal como de fato existe na natureza e nahist6ria por urn "homem em geral", a espirito chissico deu aopensamento filos6fico sua estrutura, ao mesma tempo em quesoJapava as funda~5es costumeiras e hist6ricas da monarquia.

A nega<;aoda realidade, que reside no corar;ao do classicismo,atingiu sua plenitude na erradicac;:aoaculturadora proposta peloshomens da Revoluc;:ao;

Em nome da Razao, da qual a Estado somente e representantee interprete, eles se propoem a desfazer e refazer, de acordo com arazao, e com a razao apenas, todos as costumes, festas, cerimoniase trajes, a era, a ca1endario,pesos e medidas, os nomes das esta~6es,meses, semanas e dias, de pra~ase monumentos, names de familiae de batismo, drulos honorfficos, 0 tom do discurso, a forma de

2 Acarta para Boutmy, de 31 de julhode 1874. ecitada na introdll~ao por Fran~oisLtger. "Taineet les Origines de la France comemporaine". p.XXX1.

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saudac;ao. de cumprimentar, de falar e de escrever, de tal maneiraque 0 frances, como anteriormente 0 puritano e 0 quaere, remo-delado ate mesmo em sua substancia interna, exponha, medianteos minimos detalhes de sua eonduta e aparencia, 0 dominio dotodo-poderoso principio que remodela seu ser e a inflexlveJ l6gicaque controJa seus pensamentos. Isso constitui 0 resultado final etriunfo completo do espirito ehissico (ibidem, p.IS?).'

sera que isoo deve ser visto como a exuberancia ou a em-briaguez de uma filosofia conua-revolucionaria reescrevendo ahist6ria nacional a luz de seu inevitavel, destrutivo e detestavelresultado? Talvez nao, ou nao simplesrnente isso. Trac;andoo ffespirito revoludomirio" nao diretamente as reformas doIiurninismo, mas a uadi~ao em si - a ti'adi~ao em suas formasmais respeitosas de autoridade, real e djvina - Taine dejxoude lado 0 tl1pQ:S forjado pela RevoJu~o, que, em sua busca porher6is fundadores, escolheu apenas Descartes (proposto, masnao admitido, para 0 panteao revolucionano) para ser coloea-do ao lado dos PhilQ:sopm:s. FiJia~oes que fracassaram em vir atona na consciencia dos protagonistas hist6ricos e que tedamrela~6es desconhecidas sob suas proclamadas ideologias saomais interessantes que aquelas que eles aJegavame exaltavam.A esse respeito, Taine contribuiu para a conceitualiza~ao doprocesso cultural que inclufa a Revolu~ao, situando-a numintervalo de tempo mais longo do que havia sido considerado,tanto antes dele quanto depois de Mornet. Alem disso, quandoTaine caracteriz;ava 0 dassicismo em termos de sua rejei~iioda realidade e de sua neg3A;aodo mundo social, forneceu urnesb~o para posteriores anaJises que definiam a ffderreifiea~ao"como um tra~o distintivo da Iiteratura francesa nos seculosXVII e XVIlI.

3 Tainee citado de TMArinc Rtgitrrt, nov~ ed. rev.T~d. John Durand. NewYork; H. Holl. 1896. p. !91, ZSO-l.

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Qriger'ls ",llu'ois do RevolulO50Fronceso

A tragedia ciassica dos franceses representa 0 extremo radicalna separa~io de estilos, na rompimento do tragico com 0 cotidia-no e 0 real, conseguido pela literatura europeia (Auerbach, 1946.p.36S-94, citac;lo p.388).

Este pronunciamento de Erich Auerbach e como uma remi-nise!nda da afirmativa de Taine. Tambem para AUerbacha este-ticac1assica(que igualmente regia a literatura do Iiurninisrno, eda qual 0 drama tragico era apenas um exempJo de expressao)substituia a experiencia conereta, cotictiana,a poJiticapratica e asexistencias individuais por uma humanidade universal, absolutaem[tica. Vinte anos antes de Taine, e considerando urn intervaJode tempo ainda menor, TocquevilJeeoncebeu a rnesma oposi~oentre 0 mundo abstrato da raUo e .a plenitude e complexidadedas realidades", utiJizando outro par de categorias conrrastantes;.poUtica Jiteniria" e "experi~ncia de assuntos pubJicos".

Tocqueville: politico liter6rio eexperi'incia de assuntos publicos

ParaTocqueville,era essential expressar que a Revolut;.fiofoi,paradoxalmente, 0 desfecho inevitAveltanto de uma evolu~iioextrernamente Jonga da centraJiz;a~aoadministrativa assurni-da pela monarquia quanto de uma ruptura brutal, violenra einesperada.

o acaso nao desempenhou papel algum na irrUPl;aO daRevolul;'ao; embora tenha apanhado 0 mundo de surpresa, foi 0

desfecho inevitavel de urn longo perfodo de gestal;'Ao, a condusaoabrupta e violenta de um processo no qual seis geral;Oes desempe-nharam um papel intermitente. Mesmo que eJa nao tivesse ocorrido,de qualquer maneira, cedo ou tarde, a velha estrutura social teria

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s,ido abalada. A (mica diferem;:a teria sido que, em vez de ruir deforma ~ subita e brutal, teria desabado poueo a poueo. Numa ul1ieae cruel arremetida, sem aviso, sem uansi~ao e sem eompun~ao, aRevolu~ao efetivou 0 que de todo modo tenderia a oeorrer, apenasde forma leota e gradual. Assim, tal foi a eonquista da Revo]ll(;:ao(ToequevilIe, 1967, p.Bl).

Embora sua signifidnda estivesse totaJmente contida noprocesso que foi seu inicio e sua causa, a Revolw;:ao foi, naoobstante, uma ruptura violenta eujo momento e radicalidadenao podem ser deduzidos a partir do processo. Para que issoseja passivel, Tocqueville apresentou outras razoes, esbQ\.adasno livro 3 do L'Anden R~gime et laRevolution, onde tenta encaixara emergencia do evento e seus desenvolvimentos posterioresque conferirarn semido e neeessidade ao acontecimento. Parafaze~lo, enfatizou uma cronologia de curto prazo (os trinta auquarentaanos que precederam a Revolu~o) e tentou discernir asmudanl;:as culturais que produziram transformal;:5es nipidas emideias e sentimentos. 0 novo papel assumido pelos intelectuaisnao foi a menos importante dessas mudanl;:as.

Tocqueville analisa 0 papel dos intelectuais no livre 3, capi-tulo I, "Como em torno da metade do seculo XVIII homens deletras assumiram a lideranl;:a na politica e as eonseqiiencias dessenovo desenvolvimento".4 0 ponto de partida do capitulo e umaoposi~ao fundamental entre 0 exerddo efetivo do governo parparte de agentes da administral;:ao momi.rquica (que Tocquevilledenominava, com certo anacronismo, fonctionnaires) e a "polfti~ca abstrata, liteniria" desenvolvida pelos homens de letras quehaviam~se tornado as <irbitros da opiniao. Na Fran~ posteriora 1750, a autoridade tinha sido desligada do poder, a polltica,

4 As tlta0es de TocqueviJle "esse panigrafo e no seguime provem de L'AncienRegimttt laRholurion, livro 3, cap. 1, p.229.41, citado de The Old Regime,cit.,p.138-4.

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Origens cuhurais do Revolur;aa Franceso

separada da administrac;:ao, e a discussao publica tinha lugarfora das instituil;:5es governamentais. Na visao de Tocqueville,tal situa~ao justapunha perigosamente politica sem poder eurn poder sem autoridade. E apresentava dois resultados: deurn lado, levava a colocar "teorias abstratas e generalizac;oesreferentes a natureza do governo" em lugar das Hc;:oesde "pra-tica" e "experienda", do respeito pelo "complexo de costumestradicionais" e da "experiencia em assuntos publicos". Banidada esfent governamentaJ, e, POrtanto, carente de qualquer acessoa tomada de decisoes administrativas, a vida politica poderiaapenas ser transposta ou "canalizada" para a literatura ~ refouleedans/a litterature, escreveu Tocqueville, in.dicando tanto repres-sao corrio transferencia. De outro lado, a ruptura entre 0 poderadministrativo e a "poHtica literaria~'. investiu esseshomens deletras - os "filosofos" e "nossos escritores" - com uma funl;:ao euma responsabilidade anteriormente (ou em outras partes) atti.buida aos "Hderes de opiniao publica" normals. Diferenternenteda Inglaterra, onde "escritores sabre teotia do governo e aquelesque efetivamente governavam cooperavam entre si" e oode os"politicos profissionais" continuavam a dirigir a opiniao publica,na Franl;:ano final do Antigo Regime os homens de letras se tOf-natam umaespecie de aristocracia substituta, que era ao mesmotempo tod.o~pod.erosa e nao tinha pader real algum.

A razao desse paradoxa reside no processo de centralizal;:ao.Ao destruir as "instituil;:oes livres" que Tocqueville qualificavacomo "comumente descritas como feudais", e ao enfraquecer a"vida publica" removendo "a nobreza e a burguesia" do exerciciodo poder, a propria monarquia criou.condic;:5es que autorizavama hegernonia "filos6fica". De urn lado, 0 governo, que tendosuprimido todaa administra<;ao ao esvaziar de seu eonteudo aAssembleia Geral, as assembleias provinciais e as conselhos mu-nicipais, viu~se privadode pessoas experientes na arte da polftica,uma vez que nao havia mais onde adquirir tal experienda. Deoutro, 0pader do Estado confrontava-se com uma opiniao publica

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surgida do entulho da velha liberdade publica e fascinada pela"poHtica Ii~eniria". As elites, despidas de todas as instituit;:6esrepresentativas e expulsas dos neg6dos publicos, voltavam ascostas para a sociedade a qual haviam pertencido para imergirno mundo ideal elaborado pelos homens de letras:

Assim, paralelamente ao sistema social da epoca, tradidonal econfuso, para nao dizer caotico, foj sendo gradualmente construfdana mente dos homens uma sociedade ideal imaginaria, na qual tudoera simples, uniforme, coerente, eqiiitativo e raciona! no sentidopleno do termo.

Quando 0 mundo social foi destitufdo de sua realidade (umaideiada qual Taine tiraria proveito) "essas propens6es literanasforam importadas para a arena polftica" - ou seja, 0 movimentodual de abstral;ao e generalizalYao tendia a reduzir 0 "complexode costumes tradicionais" a algumas poucas "regras simples,elementares, derivadas do exercicio da razao humana e da leinatural". A politiz~o da literatura foi, portanto, ao mesmo tem-po uma "literiza~o" da politica transforrnada numa expectativade ruptura e urn sonho de urn "mundo ideal".

A poHtica liteniria e a educalYaote6rica, produros do processode centralizal;ao, tomaram-se uma ideologia comum entre gru-pas igualmente pdvados de qualquer participac;ao no governo.Assim, contribulram notavelmente para mini mizar as difereni;asentre nobres e burgueses, tamando as dais gropos comparaveis.Tocqueville estabeleceu assim urn novo pensamento polftico,e sua difusao de teorias genericas e abstratas na perspectiva(fundamental a seu ver) de reduzir as brechas entre provfnciase classes:

Niioha duvidade que no final do sec~J1oXVIIIainda erapassiveldetectar matizes de diferenr;a no comportamento da arista<:raciae'da burguesia; pois nada leva mais tempo para ser adquirido do

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Origens culturois dQ Revolu'i0o Froncese

que 0 vemiz superficial daquilo que se chama boas maneiras. MasbaSlcamentetodos os graduados acimadahorda cornuroeram seme-[haoles; tinham as mesmas ideias, as mesmos habitos, os mesmosgostoS,os mesmos tipos de divertimento; liam os mesmos livros efalavamda mesma maneira.

a juizo de Tocqueville e claro, como se ve no tituio do livro 2,capitulO 8: "Como a Fran~a se tornou 0 pais no qual as homenserarn mais parecidos".

No entanto, devemos considerar 0 res tame do pensamen-to de Tocquevilte: "... eles diferiam apenas em seus direitos"(ibidem, p.158). A comunhao de mentes tornava a exibilYaodeprivilegios e prerrogativas simultaneamente mais necessaria emais intolenlvel. Par tras de identicospe~samentos e pnhicassociais ainda repousavam interesses ferozmente antagonicos eceTta ostenta~ao de distanciamento. Coroo 0 forralecimemo do"despotismo democratico" - uma categoria paradoxal que, con-forme 0 termo empregado por Tocqueville, refere-se ao processodual de centralizalYaoadministrativa e aboli~o das difereni;as - assolidariedades e interdependencia necessariamenteproduzidaspar uma sodedade de liberdade e estrutura hienirquica deramlugar a interesses individuais que competiam entre si. Emboraumaculturacompartilhada trouxesse uniformidade as preferen-cias e aos padroes de comportamento, nada fazia para atenuar asdistancias que separavam as franceses, "tao similares em tantosaspectos". Ao contnmo, 0 desaparecirnento da liberdade polfticasignificava tao claramente a decomposilYao de corpo social que acultura cornum exacerbava a hostilidade e aumentava a tensao.

Por que essa demorada discus sao sabre Tocqueville? Hoi pelomenos tres razoes. A primeirae preventiva: Tocqueville denun-ciou qualquer tenta~ao de enxergar a filosofia do I1uminismocomo uma ideologia exclusiva de uma burguesia triunfante emconfrente com a arigtocracia. Contrastou essa visao redutiva,que vida a tet algum sucesso depois dele, com autra que via as

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novas icleias como possuidoras de umespirito compartilhado por"todos as graduados acima da horda coroum". 0 pensamentoradonal e reformador, lange de indicar distancia e diferen~as,era COillum as classes superiores, cuja rivalidade era ainda maisfortalecida por seu vincula comum com a "politica liteniria".

Em segundo lugar, 0 livro de Tocqueville designa clara-mente alga que Marnet foi incapaz de ver: os efeitos culturaisdas transformas:6es nas farmas do exercicio de poder. QuandoTocqueville concedeu urn lugar central e determinante para aconfiguras:ao polftica em illuta~ao (na destrui~ao, por parte deuma administra~ao desp6tica centralizada, da liberdade ine~rente a urn governo baseado em institui~6es representativas),ele sugeriu uma forma suti! de pensar sobre posi~6es e tensoesrtaarea intelectual e cultural. Encarar a constru~ao do Estadoabsolutista e 0 desenvolvimema do pensamento crftico comoduas hist6rias autonomas e paralelas constitui uma oposi~aodemasiadamente simples. Foi precisamente por tender a mono-polizar todo 0 exerddo de governo que 0 poder real, cenrrali-zado administrativamente, produziu tanto a polftica intelectuaJquanto a opiniao publica.

Em terceiro e ultimo, Tocqueville nos ajuda a formular aarticula~ao entre a consdencia historica daqueles que fizeramhist6ria e a significancia de suas as:6es, das quais eles pr6priosnao estavam conscios. A Husao de ruptura que e 0 fundamentoeo significado explicito do ate revolucionario tern suas rafzes napoJitica imaginaria e abstrata construida pelos autores do seculoXVIII fora das institui~6es que comandavam a "sodedade real".Partanto, compreender as praticas culturais do seculo e neces-sariamente uma questao de ten tar cap tar como conseguiramtornar possivel a consci€:ncia da - e a disposi~ao F<ira- inova~aoabsoluta que caracterizou a Revolw;:ao:

Nenhuma nal;aojamais embarcou numa tentativa tao resolutacomo as franccses em 1789de romper com 0 passada, de pravocar,

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como se fosse, uma cisao em sua linha de vida e de criar urn golfointransponlvel entre tuda que fai ate a momenta e tuda a que seaspira agora ser (ibidem, p.43).

Qualquer reflexao sobre as "origens culturais" desse eventoprecisa, portanto, levar em considera~ao tambem esse impulsoescatoI6gico e essa certeza de inaugura<;ao.

A cultura politico do Antigo Regime

Qualguer tentativa de reformular a pergunta proposta porMornet, cinqiienta anos a~as inevitavelmente nos leva a buscarurn olhar renovado para as categorias por ele admitidas a priori E'

a formar outras categorias que para ele tiriham pouca pertinen-cia. A nOl;:aode "cultura polftica" e uma delas. Fiel alanson, 0

projeto inteiro de Les origines intellectuelles de la Revolution Franfaisevisava a distinguir a dinamica de uma difusao apos 1750, e maisainda ap6s 1770, que foi gradualmeme introduzindo as novasideias nas iostitui~5es culturais e meios sociais. Assim, Mornetestava interessado em formas de sociabilidade intelectual, emleitura de livros e circulat;ao de jornais, no que era ensinado nasescolas e 00 progresso da Ma~onaria. Seu livro aponta a intro~du~ao dessas iostitui~5es. mede a partidpas:ao nelas, e comentaas inova<;Oes,abrindo assim urn novo campo de pesquisa que asociologia cultural retrospectiva da decada de 1960 encampoucom maior rigor e urgencia. Ao faze~lo, porem, as Origines ... deMornet criaram uma dkotomia redutiva que estabeleceu "prin-dpios e doutrinas" contra "realidades polfticas", retornandoassim a uma forma branda da distinc;ao feita por Tocquevilleentre teorias gerais e experiencia pratica em assuntos publicos.Seu esquema nao deixava espac;o para a cultura politica, se talcultura for entendida como "constituida denno de urn campode discurso e de Iinguagem politica como elaborado no curso

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de urna a~ao politica" (Baker, 1982, p.197-219, dtal;ao p.212;19900, p.12c27).

Considerar a politica do Antigo Regime urn conjunto dediscursos concorrentes dentro de uma area unificada por refe-rencias identicas e pela constituil;ao de meras aceitas por todosos protagonistas abre duas perspectivas. De urn lado, torna-sepossivel relationar as dois dominios que Tocqueville separou comtanta clareza - talvez com clareza exagerada: 0 "governo" e "po-litica literaria". Para neutralizar essa visao de uma centralizal;aoadministrativa todo-paderosa, inexoravel e inteiril;a, devemosressaltar a import~da dos conflitos politicos e "constitucio-nais" que abalaram as fundal;oes da monarquia depois de 1750.Similarmente, para nos contrapormos a ideia de uma politicapublica abstrara, hoinogenea e exclusiva, precisamos registrara vivaddade de correntes rivais denrro do discurso filos6fico,correntes estas que apresentavam represental;Oes conrrastantesde ordem politica e social. E cerro que, em tado caso, gruposcontemporaneos estavam bern dentes da transformal;ao radialdo discurso e do debatepoHtico, com~ando pela crise jansenistae a retirada dos sacramenros dos padres que se recusaram asubscrever a bula papal Unigenitus, e com 0 forralecimento da re~sistencia parlamemar. Nao somente 0 fermento imelectual expOsos mecanismos secretos do Estado, privando-o assim do pader derestril;ao sabre a mente do povo, mas, 0 quee mais importante, adiscus sao que havia sido lanl;ada focalizou a propria natureza damonarquia e seus prindpios fundamentais (ibidem, p.213H6).

Alem disso, ao esrabelecermos a polftica do Antigo Regimecomo urn campo de discurso espedfico _ a nao ser misturadonem com 0 discurso filasofico nem com 0 exerdcio da autoridadeestatal - permitimoHnos reinvestir a sociabilidade intelectualdo seculo com urn conreudo politico, mesmo que pniticas ma-nifestas dessa sociabilidade parel;am distantes dos conflitos emtorno do poder. Ha duas maneiras de retratar essa politizal;ao. Aprimeira identiflca as varias associal;oes do seculo XVIII (dubes,

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sodedades litenirias, lojas mal;onicas) como locais onde experi-plentar e elaborar uma sociabilidade democnitica que encontrousua forma mais completa e explicita no jacobinismo. As societesde pensee do Iluminismo desenvolveram modos de opera~aoindividualistas e iguaHtarios, que nao podiam ser reduzidos asrepresental;oes subjacentes a sociedade de Hardens" e "esrados".Estabelecidas para gerar uma opiniao publica necessariamenteunanime, e revestidas de uma funl;aode represenral;ao total men-te independente das fontes tradicionais de autoridade, como asEstados provinciais, as parlamentos, au 0 pr6prio soberano, quepensava incorp.orar esse papel, as societes de pensee foram vistascomo a matriz de uma nova legitimidade politica incompatfvelcom a legitimidade hierarquica e corporativa requerida pelo sis-tema monarquico. Assirq, ainda que seus discursos afirmassemrespeito pela autoridade e adesao aos valores tradicionais, nassuas praticas as novas maneiras de associa~ao intelectual pre-figuravam a sociabilidade revolucionaria em suas formas maisradicais (Cochin, 1921; Furer, 1978b, p.212-59; Halevy, 1986,p.145-63).

Este primeiro modelo de politizal;ao, que poderiamos chamarde modelo Cochin-Furet, difere de outro que poderia ser designa-do modelo Kanr-Habermas. Este ultimo enxerga a sociabilidadeintelectual no seculo XVIII como fundadora de uma nova areapublica na qual 0 usa da razao e do julgamento era exerddo sema coloaa~a:o de limites para a exame cdtico e sem submissaoobrigat6ria a autoridade antiga. As varias inst~das de criticaliteraria e artistica (nos saloes, cafes, academias, e as jornais eperi6dicos) formavam urn publico ilOVO, livre, autonomo e so-berano. Assim, enrender a emergenda da nova politica culturale notar a progressiva politiza<;ao da esfera litedria publica e amudanl;a da critica rurno a domfnios rradicionalmenre proibidosa ela - os misterios da religiao e do Estado (Habermas, 1962).Essas duas perspectivas, embora nao incompativeis, marcamdois modos diferentes de compreender 0 lugarda cultura polftica

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dentro das formas de cultura inteleetual: a primeira a localiza nasoperal;oes alltomaticamente impHcitas nas pr6prias modalidadesde associar;ao volunniria; a segunda a fundamema nas demandase nas conquistas do uso publico das funr;6es crfticas.

o quee lIuminismo?

Repensar Mornet tambem implica necessariameme ques-tionar a nOl;ao de "espirito filos6fico" equiparado ao progressodo Iluminismo. 0 termo parece f:kil de definir uma vez que econsiderado urn corpo de doutrinas formuladas pelos Philosophes,difundido par todas as classes da popular;ao e articulado em tornode varios principios fundamentais, como crftica ao fanatismoreligioso, exaltar;ao da tolerancia, confianr;a na observar;ao e naexperimentar;ao, exame cdtico de todas as instituir;5es e costu-mes, definir;ao de uma moralidade natural e reformular;ao dosvinculos politicos e sociais com base na ideia de liberdade. Aindaassim, confrontados com esse quadro classica, surge a duvida.E ceTto que a Iluminisma deva ser caracterizado exclusiva, auprincipalmente, como urn corpa de ideias transparemes, auto-comidas, ou como urn conjunto de proposir;oes claras e distintas?Nao seda preciso ler em outra parte a novidade daqueJe seculo~ nas multiplas praticas guiadas por urn interesse na utilidadee no servir;o, que visava a administrar espar;os e popular;6es'ecujos mecanismos (intelectuais ou institucionais) impuseramuma profunda reorganizar;ao dos sistemas de percepr;ao e daordem do mundo social?

Essa perspectiva autoriza uma reavalia<;ao da relar;ao entre 0

Iluminismo e a Estado monarquico, uma vez que a Estado - 0 alv0'basico do discurso filos6fico - era sem duvida a iniciador maisvigoroso de reformas pniticas, como notou Tocqueville no livrG3, capitulo 6 de L 'Ancien Regime et laRevolution, que leva 0 titulo"Como certas praticas do poder central compieravam a educa~ao

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revolucionaria das massas". Mais ainda, pensar no Iluminismocomo uma rede de praticas sem discurso (ou no mfnimo sem asvariedades de discurso tradicional e espontaneamente definidascomo "iluministas") e oferecer a si mesmo uma maneira depastular dist:1ncias e ate mesmo contradi<;5es entre dedarar;6esideo16gicas e a "formalidade de praticas", fazendo uso de urnadas categorias de Michel de Certeau (1975, p.153-212).

Assim, passar do "intelectual" para 0 "cultural" e, ern mi-nha opiniao, nao s6 ampliar a indaga~aoou mudar seu objeto.Fundamentalmente, esse mavirnento implica lanr;ar duvidassobre duas ideias: primeiro, que praticas podem ser deduzidasdos discursos que as autorizam ou justificam; segundo, que epossivel traduzir nos termos de uma ideologia explfcita 0 signi-

- ficado latente dos mecanismos sodais. Marner usou 0 segundodesses procedirnentos quando tentou restaurar 0 "subconscienteda Mar;onaria"; Cochin 0utilizou quando designou como jacobinaa ideologia implicita das pra-ticas sociais e intelectuais das societesde pensee. a primeiro procedimento, tfpf~~ de toda a literaturadedicada ao Iiuminismo, ve a difusao de ideias filos6ficas comoconduzindo a atos de ruptora dirigidos as autoridades estabe-leddas, sob a premissa de que mis atcs sejam engendrados porpensamentos. Contra esses dois procedimentos (que funcionamtanto para reduzir como para traduzir), poderfamos pastular umaarticular;ao diferente da sede de discursos e regimes de prarkasabre cuja base as posic;:5es sociais e inrelectuais se organizamnuma determinada sociedade, De urn para outro nao ha nemcontinuidade nem necessidade, como se ve, por exemplo, nacontradi<;ao entre a ideologia libertada do Iluminismo e 0 meca-nismo que, ao mesma que alegava estar baseado nessa ideologia,estabeleceu multiplas restri~6es e comroles (Fouqult, 1975).Se a Revolur;ao de fata reve origens culturais, elas nao residiamem nenhuma harmonia (seja proclamada au nao-reconhecida)que suposramente uoia aros anunciatorios e a ideologia que asgovernava, e siro nas discordancias que exisriam entre (mais

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que isso, competiam) discursos que ao representar 0 mundosocial propunham sua reorganiza~ao e as pniticas (desconti-nuas) que, ao serem efetivadas, criavam novas diferencia~6ese novas divisoes.

Como estudo da propaga~ao do "espirito filos6fico", 0 livrode Mornet faz uso extensivo da no~ao de opiniao. A flutua~ao e aevolu~ao da opiniao erarn a medida da penet~ao de novas ideias.Quando essas novas ideias se tomavam "opinHio publica gene-ralizada" ou "pensarnento publico", a causa estava ganha para 0

Iluminismo e a caminho se abria para a "inteligencia" dar formae expressao as contradi~6es politicas. Assim Mornet atribuiu aopiniao tra~6es que a opunham, termo par termo, a produ~ao deideias: a opinHio era impessoal e anonima, ao passo que as ideiaspodiam ser atribufdas a umindividuo e apresentadas em seunome; a opiniao era dependente e ativa, ao passo que as ideiaseram crial;6es intelectuais originais e inovadoras. Na visao deMornet, era inconcebivel pensar na opiniao em outras termos, eele manuseava essa no~ao como se fosse uma invariavel historica,presente em todas as sociedades, e que fornece a hist6ria a unical

tarefa de registrar seus diversos e mutaveis conteudos.Esse postulado nao e rnais satisfatorio. Em primeiro lugar, a

difusao de ideias nao pode ser considerada uma simples impo-51(,":ao.A recep~ao sempre envolve apropria~ao, que transforma,reformula e transcende a recebido. A opiniao nao e, de maneiraalguma, urn receptaculo, e tampouco uma superficie mole sabrea qual se pode escrever. A circula~ao de pensamentas ou mode-los culturais e sempre urn processo dinamico e criativo; Textas,para inverter a questaa, nao carregam consigo urn significadoestavel e inequfvoco, e suas migra~6es dentro de determinadasociedade produzem interpreta~6cs que sao m6veis, plurais eate mesmo contradit6rias. Nao existe distin~ao posslvel (Marnetao contrario) entre a difusao, entendida como uma amplia~aoprogressiva dos meios conquistadas pelas novas ideias e a corpode doutrinas e prindpios que foram objeto dessa difusao e que

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poderiam ser identificados exteriarmente a qualquer apropriac;:ao.Mais ajnda, a "opiniaa publica generalizada" nao e uma categoriatrans-hist6rica que apenas requer particulariza~ao. Como ideiae como configuraC;ao, foi construida numa situa~aa hist6ricaespedfica com base em discursos e praticas que the atribu(ramcaracterfsticas particulares. 0 problema nao e mais, portanto,se a opiniao era receptiva ao espirito filos6fico ou resistente aele, mas compreender as condi(,":oesque, num dado momentodo seculo XVIII, levaram a emergencia de uma nova realidadeconceitual e social: a opiniao publica.

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2A esfera publica e a opiniao publica

Uma leitura (que necessariamente sera uma interpreta~<;:ao)da obra chissica de Ji.irgen Habermas Strukturwandel deTOffmtlichkeit [A transforma<;ao estrutural da esfera publica]nos oferece urn guia inicial de como a 00<;3:0de opinHio publica[oi construida no seculo XVIII (1962; Habermas, 1974, p.49-55; Hohendahl, 1974, p.4S-8). Habermas apresentou sua teseclaramente: no corac;ao do seculo (em alguns lugares antes, emoutros depois) apareceu uma "esfera publica poHtica", que eletambem chamou de "uma esfera publica no campo politico"au uma "esfera publica burguesa". Politicamente essa esferadefinia um espar;o para discussao e interdmbio distante docontrole do Estado (isto e, da "esfera da 'autoridade publica'" au"poder publico") e critica dos atos au do fundamemo do poderestatal. Sociologicameme era distinta da corte, que pertenciaao dominio do poder publico, e do povo, que nao tinha acesso aodebate critico. E par isso que essa esfera podia ser qualificadade "burguesa".

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A esfera publica polilica

Diversos prindpios organizacionais governavam a esfera pu-blica politica. que derivava diretamente da esfera litera ria publicae estava baseada nos sal6es e cafes e numa literatura de peri6di-cos. Sua primeira defini~ao era urn espa~o onde pessoas privadasfaziam uso publico de sua razao: "a esfera publica burguesa podeser concebida acima de tudo como a esfera de pessoas privadasse reunindo como urn publico" (ibidem, 1962). Havia. assim,urn elo fundamental entre a emergencia de uma nova forma de"existir publico" - que nao era mais simplesmente a exibi~aoou a celebra~ao da autoridade estataJ - e a constitui~ao de urndominio do privado que indula a intimidade da vida domestica.a sodedade civil fundada sobre 0 intercambin de mercadoria etrabalho e a esfera dada ao exerddo cdtico da "razao publica".

o processo de privatiza~ao tipico das sociedades ocidentaisentre 0 final da Idade Media e 0 secuJo XVIII nao deve, ponan-to, ser considerado meramente urn retiro do individuo para asvarias formas de convivencia (conjugal. domestica ou sodavel)que 0 removeu das exigencias e da supervisao do Estado e de suaadministra~ao. Sem duvida. havia uma distin~ao basica entre 0

privado e 0 publico no faro de a pessoa privada nao participar doexerddo do poder e assumir seu Jugar em esferasnao,governadaspela dominayao monarquica. Mas foi precisamente essa reci~m-conquistada autonomia que tornou possive! e concebivel cons-cituir urn novo "publico" fundamemado sobre a comunica<;aoestabelecida entre pessoas "privadas" Iivres de suas obriga~6espara com 0 soberano.

Tal comunica~ao postula que os varios participames sejamiguais por natureza. A esfera publica poHtica ignorava, portanto,distin~oes de "ordens" e "estados" que irnpunham uma hierar.quia a sodedade. No intercamhio de jUIZOS, no exerdcio de fun-~oes criticas e no choque de diferences opini6es era estabe!eddauma igualdade a priori entre indivlduos que se diferenciavam

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Or;gel"1S culturois do Revoluo;ao FrQl"1cesQ

entre si apenas pela auto-evidencia e coerencia dos argurnentosque apresentavam. A fragmenta~ao de uma ordem organizadacom base numa mu{tiplicidade de corpos, a nova esfera publicaopunha homogeneidade e uniformidade; em lugar de uma dis-tribui~ao de autoridade modelada estritamente sobre urna escaJasocial herdada, ofere cia uma sociedade que aceitava apenas seusproprios prindpios de diferencia~ao.

o exerdcio da razao publica por individuos privados naodeveria estar sujeito a limite algum e nenhum dominio deveriaser proibido. 0 exercicio critico da razao 0;10 era mais refreadopelo respeito devido a autoridade politicaou religiosa, como haviasido 0exerdcio da duvida metodica. A nova esfera publica politicacrouxe 0 desaparecimento da divisao instituida por Descartesencre credenciais e obediencias. de urn lado, e, de outro, opini6esque po<iiam estar legitirnamente sujeitas a duvida. A primeira"maxima" do "c6digo de rnoralidade provisional" com queDescartes havia se armado era "obedecer as leis e aos costumesdo meu pais, conservandoa religiaoque juJguei melhor e na qual,com a gra~a de Deus, fui criado desde a infaocia" (1953, p.141).Isso 0 levou a uma distin~ao fundamental:

"Tendouma vez me assegurado dessas mixima.~,e as tendo sepa-rado junto as verdades de minha fe, que sempre foram de absolutacerteza para mim, julguei que poderia proceder livremente pararejeitar todas as minhas outras cren~as (ibidem, p.144).

Na esfera publica construida urn seculo depois essa reservadesapareceu, urna vez que nenhurn dominio de pensamento oua~ao era "separado" e removido do julgamento critico.

Tal julgamento era exercido pelas institui~6es que tornavamo publico urn tribunal de crhica est~cica - os sal6es, os cafes, osc1ubes e os peri6dicos. A publicidade que esses grupos ofereciam,arrebatando das autoridades tradicionais em tais assumos (acorte, as academias oficiais, urn drculo restrito de conhecedores)

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Roger Ch"rtier

seu monopolio de avalial;ao da produl;ao artistica, envolvia tantouma ampliar;ao quanto uma exclusao: uma ampliaC;ao porque 0

grande numero de canais para publicidade (os peri6dicos emparticular) criava uma comunidade crftica que inclula "todasas pessoas privadas, pessoas que - uma vez que eram leitores,ouvintes e espectadores [supondo que tivessem riqueza e cul-tura], podiam se qualificar mediante 0 mercado de objetos queestavam sujeitos a discussao" (Habermas, 1962); uma exclusaoporque "riqueza e cultura" nao eram acesslveis a qualquer urn,e a maioria das pessoas era mantida fora do debate politico deri~vado da critica liteniria porque careda da competencia especialque tornava possivel "0 publico de pessoas privadas fazer uso darazao" (ibidem) J.

Foi 0 processo de exclusao que deu importancia plenaaosdebates centrados no conceito de representas:ao durante 0 seculoXVIII. Eliminado da esfera publica poHtica por sua inadequa-c;ao "litenrria", 0 povo necessitava fazer sentir sua presenC;a dealguma maneira, "representado" por aqueles cuja voc~ao eraserem seus mentores ou porta-vozes, e as quais expressavampensamentos que 0 povo era incapaz de formular. Isso era aindamais verdade uma vez que as varias linhas de discurso politicoque fundamentavam a esfera do poder publico desenvolveram,cada uma a sua maneira, uma teona de representas:ao. Segundo.Keith Baker, podemos distinguir tres teorias: a teoria absolutista,que fazia da pessoa do rei 0 unico representante possivel de urnreino dividido em ordens, Estados e corpos; a teona judidaria,que instituiu os Parlamentos como interpretes da anuencia edas postulac;5es da nac;ao; e a teoria administrativa, au "social",que atribuia a representac;ao radonal dos interesses sociais aassembleias municipais ou provinci<>.isfundamentada nao emprivilegios mas em propriedade (Baker, 1987a, p.469-92). A luz

Acera da posic;:aodas mulheres na esfera publica, absolutista ou burguesa,ver Joan B. Landes, 1988.

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dessas definir;5es contrastantes e conflitantes (todas elas, pon~m,focalizando 0 exerdcio efetivo ou almejado da autoridade estatale governamental), a nova esfera publica definia urn modo derepresental;ao alternativo que removia 0 conceito de qualquerestrutura institucional- monarquica, parlamentar au adminis-trativa - e que postulava a auto~evidencia de uma unanimidadedesignada pelacategoria "opiniao publica", e fielmeme represen-tada peJos homens esclarecidos capazes de lhe dar voz.

o uso publico do rozao

Ler Habermas abre urn campo de reflexao que leva, primeiro,a questionar a articulac;ao entre as conceitos de publico e pri-vado e, a partir dat, parar para considerar a texto que serviu aHabermas como a matriz de sua demonstras:ao: a resposta deKant a pergunta "0 que e I1uminismo?", que aparece num artigodo Berlinische MonatsschTift (1784).2 Kant discute as condic;5esnecessa}ias para 0 progresso do Iluminismo, que definia comoa emergenda da humanidade de sua menoridade. Sua respostareside em duas observac;5e.s: Primeiro, uma emancipas:ao dessetipo sup5e que os individuos venham a controlar 0 uso de suapr6pria compreensao e sejam capazes de se Hbertarde/'estatutose formulas, essas ferramentas mecanicas do emprego racional,au melhor, mau.emprego, dos.,. talentos naturais" que obstruema exercfdo da mente. Assim, 0 IIuminismo requer uma ruptu'racom os padr5es de pensamemo obrigat6rios herdados do passadoeo dever de todos de pensar por si mesmos.

2 Sobre este texto, ver os comerHario5 de Ernst Cassirer, 1981, p.227-8, 368;Jurgen Habermas, Structural Transformation, p.104-7; Michel Foucault, 1982,p.208-26, espedalmente p.21S-6; e Michel Foucault, 1984, p.35-9. Todas asdta~OeS de Kant nesta seo;:aosao extraidas da tradm;:ao de Beck de What isElightrnmenf?, 1975.

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Roger Chartier

Mas - e essa e asegunda observa~aD de Kant~ para a maioriados homens essa nao e uma conquist:a faci!, grac;:asII for~a dohabito arraigado, "que se tornouqua.se [sua] natureza", e aopeso da autoridade aceita de mentoreS a quem a humanidadeincumbiu a responsabilidade de pensar por ela: "Portanto, hapoucos que conseguiram, por seu pr6prio exerddo de mente,Iibertar~se da incompetenda e adquirir tJrn ritmo estavel". 0 pro~gresso de Iluminismo nao poderia ser resultado de uma reformade compreensao assumida por individuos separados, isolados,abandonados a seus pr6prios recursoS. "Mas e mais possivelque 0 publico deva iliJminar a si mesJ1lO; de fato, se a Iiberda~de e garantida, e quase certo que a el&lse siga 0 Iluminismo."Assim, 0 progresso do lluminismo reqlJer a constituic;:ao de umacomunidade para dar respaldo aos avaOC;:0sde cada indivfduo ena qual os movimentos ousados daqueles que enxergam maislonge possam ser compartilhados.

Neste pOnto de seu argumento Karlt prap6e uma distinc;:aoentre 0 "uso publico" e 0 "uso privado" da razao que, da maneiracomo formulou, encerra urn aparente paradoxo. 0 uso privado darazao e "aquele de que a pessoa pode fazernurn posto ou gabinetecivil particular que lhe e confiado". AssiIl1,0 uso privado da razaoesta associ ado ao exercfcio de urn cargo Oll fun~ao (Kant fornece

_-os;exemplos do oficial de Exercito que cleve cumprir ordens edo pastor que leciona para sua congrega-c;:ao)ou com 0 dever docidadao_para com 0 Estado (pOt exemplo, como contribuinte fis-cal). 0 exerdcio da compreensao em tais circunstancias poderiaser legitimarnente restringida em nome dos "fins publicos" quegarantem a propria existenda da comunidade a qual pertencemo oficial, 0 pastor e 0 contribuinte, naquila que Kant denominou"0 interesse da comunidade". Essa obedienci<~,:)brigatoria, quenao deixa lugar para crftica ou raciodnia pessoaJ, nao e preju~dicial ao Iluminismo, porque facilita evitar a desmembramentodo corpo social que necessariamente QCorreria se a disciplinaFosse refutada.

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Qrigens culturois do Revolu,"oo Froncesa

Porque, no entanto, esse usodatazao, que parece 0 tipo mais"publicO" de razao emtermos da velha definil;:ao que identificava';publico" como participante de urn Estadoou autoridade religio~sa, deveria ser designado por Kant como "peivado", invertendoassim os signiflcados aceitos desses teernos? Usando 0 exernplodo c1erigo ensinando a seus fleis, Kant esboya seus motivos paraessa defini~ao paradoxal: "0 uso ... que urn professor indicadofaz de stia razao diante sua congrega~ao e meramente privada,pois essa congrega~o e apenas domestica (mesmo que seja urngrande agrupamento de pessoas)." A categoria "privado" refere-se, portanto, II natureza da comunidade na qual se faz usa dacompreensao. Uma assembleia de fieis, uma igreja particular,urn Exercito, ate mesmo urn Estado, todos constituem entidadessingulares, circunscritas e Jocalizadas. Quanto a isso diferemradicalmente da"sociedade de cidadaos do mundo", que naoocupa urn territorio determinado e cuja composi~ao e ilimitada.Assim, "familias" sociais, qualquer que seja seu tamanho e suanatureza, sao muitos segmemos que fragmentam a comunidadeuniversal; devem, portamo, ser consideradas pertencemes a or~dem do "privado", em contraste com urn "publico" definido naopela participa~ao, como agente e sujeito, no exerdcio de algumaautoridade particular, mas pela idemificac;:ao com a humanidadecomo-urn todo.

Assim colocado numa escala universal, 0 usa publico dacompreensao contrasta, termo par termo, com 0 usa "privado"exercido em uma rela~ao de domina.-;ao espedfica e Iimitada."En tendo como uso publico da razao 0 usa que a pessoadela fazcomo erudito diante de urn publico lei tor; "como erudite" - ouseja, como membra de uma sociedade sem distin~o de hierar~quia ou condi~ao sodal; "diante do- publico leitor" - ou seja,dirigindo~se a uma comunidade nao definida como parte de umainstituic;:ao. 0 "publico" necessario pra 0 advento do Iluminismoe cuja Iiberdade nao pode ser lirnitadaconstitui-se assim de indi~viduos que tern os mesmos direitos, que pensam por si proprios e

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falamem seu proprio nome, e que se comunicam escrevendoparaseus pares ..Nao deve existir nenhum domfnio inacessfvel parasua atividade cntica - nem as actes, nem as cH~ncias,e tampoucoas "questOesreligiosas" ou a "legisl~ao". 0 principe esclarecido(leia-se Frederico II) e esclarecido precisamente parque permiteque esse uso publico da tazao se desenvolva sem constric;aoourestri~, perrnitindo assim que os homens atinjam sua matu-ridade plena. Uma tolerancia dessa especie de forma nenhumacoleca em risco a "ordem civil", que e garantida pelos limitesimpastos ao usa feito da razao nas func;5esrequeridas pela pro-fissao au status social. Mais ainda, a toleranda tern 0 merito deprover urn exemplo surpreendente: "Este espirito de liberdadese espalha para alem desse territorio, mesmo para aque1esqueprecisam lutar com obsraculos extemos erguidos par urn govemoque compreende mal seus proprios interesses"(como era 0 casodo reino da Franc;a,que possivelmente Kant tivesse em mentesem explicitar).

Neste texto Kant rompe com duas tradic;5es.Primeiro, pro-pOeuma nova articul~ da relac;aodo publico com 0 privado,nao s6 equiparando 0 exercicio publico da razao a julgamentosproduzidos e comunicados par individuos privados atuandocomo eruditos ou "em sua qualidade de homens letrados" (comoSl,JstentavaHabermas), mas rambem definindo a publico como aesfera do universal e 0 privado como 0 dominio de interessesparticulares e "dornesticos" (que podem ser ate mesmo as deuma igreja ou Estado). Segundo, Kant modificou a maneira pelaqual os legitirnos timites para as atividades criticas deveriamser concebidos. Assim, tais limites nao mais residiam nos pr6-prios objetos do pensamento, como no raciodnio cartesiano,que comec;apor pastular que existem dominios proibidos paraa duvida metodica; eles residem na posil;ao do sujeito pensantelegitimamente constrangido ao executar os deveres de 'leu cargoou de seu status, necessariamente livrequando agecomo membrade "uma sociedade de cidadaos do rnundo".

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Origens culturcls do Revoiu"Oo Francese

Tal sociedade e unificada pela circulaC;aode livros escritosqJ,Jeautorizam a comunical;ao e discussao de pensamentos. Kant.j'nsistenesse ponto, sistematicamente associando 0 "uso publicoda razaoindividual" com a produc;aoau leiturade materiaescrita.Como pessoa educada, todo cidadao deve ter a permissao de"fazer seus comennuios livre e publicamente, ista e, mediante 0

acodtescrever, sabre os aspectos erroneos da presente instituic;ao"(griConosso). Aqui 0 "publico" nao e construfdo com base emnoVasformas de sociabilidade intelectual tais como clubes, cafes,sociedades ou lojas, porque esses grupos sem duvida retinhamalgo da "congregac;ao domestica", reunindo uma cornunidadeespedfica, discreta. Tampouco 0 "publico" e constituido comreferenda ao ideal da ddade na Antiguidade classica, que pres-supunha ser capaz de escutar a palavra falada e deliberada emcomum, e envolvia a proximidade fisica de todos os membrosdo carpo politico. Para Kant, apenas a comunical;aO escrita,que permite intercambio na ausencia do autor e cria uma areaautonoma para debate de ideias, e admissivel como uma figurapara 0 universal.

A concepc;;aoque Kant tern do dominio especifico para 0 usapublico da rwo derivava da nOlj:aoe das func;5esda Respublicaliueratorum [Republica literaria], urn conceito que unia as le-trados e cultos, por meio da correspondencia e da irnprensa,antes mesmo do lluminismo (Mandrou, 1988, p.263-80; Dibon,1978, p.42-55).3 Baseada no livre engajam~nto da vontade, em

3 Referencia as pniticas dll.vida Jnteleclual no seculo XVII, baseadas. desde aepoca dos Iiberdnos cultos, nn troca de correspondencia. na coillunica.;:aode manuscritOS, em livros emprestados au oferecidos como prcseIHcs c.ap6s 1750, em pcri6dicos de cultura. Coe:'tiste no ttX,O de Kam com urnreconhecimcnto impJlcilo da sltua.;:i1ona Alcmanha, onde, ainda mais quena Fran.;:a,os intelectullis estavarn mais cOllcentrados 0; capital, dependiamde m:lteria escrita. Em 1827, Goethe cementeu ess~ cai.aet~rfs~ica Jl<lcionalcom especial for.;:a:"Todos 110SS0S homens de talemo estao espalhados pelt:'pais. Urn esta em Vicna. outrO em Berlim, urn em Konigsberg, oulro em

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igualdade entre seus interlocutores e no exerdcio absolutamentedesinteressado do intelecto, a Republica das Letras (inventadanao pelos Philosophes, mas por homens de cultura no seculo pre-cedente) fornecia urn modelo eum apoio para a livre investiga~aopublica de quest6es relativas a religiiio e legisla\ao. Ao mesmotempo, a referenda a no~ao de vontade livremente engajadaassinala a distanda que separa a universalidade te6rica do con~ceiro de publico e a composil;ao real desse corpo. Na epoca deKant, 0 "publico leitor" nao era de maneira nenhuma a todo dasociedade, e 0 publico capaz de uma produ\a.o escrita era aindamenor. Kant explicava a distancia que implicitamente reconhedaentre 0 publico e 0 povo como urn todo dizendo que

da forma como as coisas estao agora, falta muita que impede ashamens de serem, ou de se tornarem facilmente, capazes de usarsua pr6pria razao em quest6es religiosas com seguran~ae livresdeco'ndul;aoexterna

(ou, poderfamos acrescentar, bern como em questoes referen~tes as artes, as ci~ndas ou a legisla~ao). "Toda a comunidade"constituia apenas potendalmente "a sociedade dos cidadaos domundo". Quando essas duas entidades coincidissem, poder-se~iaprever a adyen_~ode "uma era esclarecida".

o publico ou 0 POVO

Kant sustentava que a distinl;ao entre 0 publico e 0 popularera temponi.ria, transit6ria e caractedstica de urn seculo que erauma "era de iluminismo" mas ainda nao uma "era iluminada".

Bonn au Dusseldorf, todes separados entre si par cinqiienta ou cern milhasde distAncia, de modo que 0 cantata pessaal ou a troca pessoa! de idcias euma raridade~ (citado par Norbert Elias, 1969a, p.28).

J Origens cvlturois do Revolur;:60frol1ceso

Para outrOS pensadores do seculo XVIII, porem, as duas coisasconstituiam uma dicotomia irreconciliaveL "0 publico nao eraurn povo", afirmou Mona Ozouf ao mosrrar como, durante asLiltimasdecadas do Antigo Regime, a opiniiio publica era definidaem contraste preciso com a opiniao da maioria. Contrastes U:xicosdemonstram isso de forma particularmente vigorosa: Condorcetcontrastava "opiniiio" com "populacho"; Marmontel opunha"a opinHio dos homens letrados" e "a opinHio das multid6es";D'Alembert falava do "publico realmente esdareddo" e da "mul-tidao cega e barulhenta"; Condorcet, novamente, estabeleceu "aopinHio de pessoas esdarecidas que precede a opiniao publicae termina por dita~la" contra "a opinHio popular" (Ozuf, 1987,pA19-34). A opinHio publica, estabeledda como autoridade,soberana e arbitro final, era necessariarnente esnivel, unificada efundamentada na razao. A universalidade de seus juizos e a obri-gat6ria auto-evidenda de seus decretos derivavam da constandainvariavel e desapaixonada; 0 reverso da opinii:io popular, que eramultipla, versatil e habitada pelo preconceito e pela paixao.

Esses autores revelam uma forte persistencia de representa~~6es mais antigas do "povo"; uma imagem negativa do publicoao qual todas as opinioes devem se submeter. A definil;ao depovo, que varia pouco nos dicionarios de Hngua francesa deRichelet ate Furetiere, do Dictionnaire de /'Acadtmie [Dicionarioda Academia] ao Dictionnaire [Dicioo<hio] de Trevoux, enfatiza ainstabilidade fundamental atribuida a opinia.o popular ao longode todo 0 seculo XVIII (Fleury, 1986). Por exemplo, a edi~ao de1727 do Dictionnaire Universe! de Furetiere[Dicionario UniversalFuretiere] cita: "0 povo epovo em toda parte; ou seja, tolo, in~quieta, :ivido de novidades". Seguem-se dois exemplos: "0 povotern 0h:ibita de odiar nos outros as mesmas qualid~des que nelesaprecia (Voiture)", e "Nao h:i meio~termo no humor do povo.Se ele nao terne, cleve ser temido, mas quando treme pode serdesprezado impunemente (d'Ablancourt)". Sujeito a extremos,inconstante, contradit6rio, cego, 0 povo nos didonarios do seculo

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XVIII permanecia fiel a seu retrato na tragedia chissica: semprepronto a mw;!ar de rumo, d6cil ou furioso, de um minute a outro,mas sempre manipulavel. Assim, no ultimo ato do Nicomede deCorneille, encenado pela primeira vez no inverno de 1650 e pu-blicado em 1651, a revolta popular era simplesmente uma armadisputada pelos poderosos. A revolta e primeiro fomentada porLaodice:

Par Ie droit de laguerre, ilfut toujours permisD 'alumer la revolte entre ses ennemis.

Pelas leis da guerra sempre foi permitido1ncitar a revolta entre seus inimigos.

A seguir, talvez a ser neutralizado por Prusias, se der ouvidosao conselho de Arsinoe:

Montrez-yous a cepeuple, etflattant son COUTrOUXAmusez.le du mains a debattre avec l'OUS.

Mostrai-vos a esse povo, e curvando-se a sua iraAo menos alegrai-o permitindo debater convosco

Finalmente e extinto por urn gesto de Nicomede:

Tout est ca/me, Seigneur: un moment de ma vueA soudain apaise la populace.

Tudo esta calmo, senhor. A simples vista de mimAcalmou de subito 0 populacno (CorneiUe, 1963, 1970, p.539-41,versos 1696-97, 1621-22, e 1779-80.)

Sobreearregado com essas representa<;:oes arraigadas, 0 povonao podia ser visto facilmente como agente politico, mesmo

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r,

Origens cu11urais da Revoluo;ao Francesa

quando 0 discurso nao era deliberadamente depreciativo. 0artigo "Peuple", compilado por]ancourt para a Enciclopedia,representa uma prova disso (Eneyclopedie, 1778-81, vol. 25, p.543.5).0 artigo prop6e uma definh;ao estritamente socio16gica:o povo e exclusivamente "os trabalhadores e os lavradores",excluindo os homens da lei e os homens de letras, os homensde neg6cios e os homens de finanr;as, e ate mesmo "a especiedos arteSaos, ou melhor, artistas requintados que trabalhamem itens de luxo". Considerado formando "sempre a parte maisnumerosa e mais necessaria da nar;ao", esse povo de trabalha-dores e camponeses, objet'o de pena e respeito, era consideradoabsolutamente incapaz de participar num governo de conselhoou representa<;:ao, mas era sempre ligada ao soberano numarela<;:aode fidelidade oferecida em troca de salvaguarda, decompromisso em troea de ter assegurada uma "melhor subsis~u~ncia". a artigo continua:

Os reis nao tern suditos mais fieis e, ouso dizer, melhares ami-gas. H;imais amor publico nessa ordem do que talvez em todas asoutras ordens; nao porque seja pobre, mas porque sabe muita bern,apesar de sua ignorancia, que a autoridade e a protec;:aodo principesao a unica garantia de sua seguran~. e bem-estar.

, .

A Ern::iclopedianao reconhece a noyao de "opiniao publica". 0termo opiniiio pode ser encontrado ali como uma categoria 16giea("urn jufzo da mente dubia e incerta", oposta a auto-evidenciaciaciencia) ou, no plural, como urn termo tecnico na linguagemjudicial (ibidem, p.754-7). 0 terma publico e ~sado apenas comoadjetivo, como em "0 bern publico" ou "0 interesse publico", cujasalvaguarda e eonfiada "ao soberano e aos funciomirios que, sobsuas ordens, esrao enearregados dessa responsabilidade" (ibi-dem, p.752-3). Nao precisamos forr;ar nossa analise ate a pontode comparar a defini~ao que a Enciclopedia d<ide "0 povo" com an~ao de "0 publico", que aioda nao existia na summa filos6fica

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do seculo XVIII (prova, alias, da afirm~ao tardia da no~ao maisrecente). ~ao obstante, ao reiterar as imagens tradicionaisdo povo como arnoroso ou rebelde, a Enciclopedia rnanifesta avalidade continuada de uma representalTao que considerava asduras exigencias da condilTao popular incompativeis com suaparticip~ao na condu~ao racional de urn governo.

Quando 0 poder da opiniao publica realmente emergiu _definida como a autoridade superior a qual todas as opini6esparticulares devem se curvar, mesmo as do rei e de seus admi-nistradores - a distinlTao entre opiniao publica e opinHio populartornou~se essencial. Conforme indicou Keith Baker, 0 conceitode opiniao publica surgiu em discussoes que tiveram Iugar emtorno de 1750, primeiro na controversia sabre a recusa dos sacra-memos aos jansenistas; depois sobreaJiberaliza~ao do comer-ciode graos e, finalmente, sobre a administr~ao financeira do reino(Baker, 1987b, p.204-6). Impotente para proibir 0debate publico,a pr6pria monarquia foi for~ada a participar dele para explicar,persuadir e tentar obter aprovar;:ao e apoio.

As'sim, uma nova cultura poUtica tomava forma, reconhecidacomo novidade por seus contemporaneos no fato de transfe-rir 0 assento da amoridade, da vontade exclusiva do rei, quetomava decisoes em segredo e sem apela~ao, para a juizo deuma entidade nao corporificada em nenhQma institui~ao, quedebatia publicarnente e era mais soberana que 0 soberano. Issoaumentou a acuidade e a urgencia de novas questoes: Comoera possivel distinguir essa autoridade delegada ao publico dasviolentas diferenr;:as entre fac~oes rivais ilustradas de forma taodeteSitavel na Inglaterra? Quem eram as verdadeiros pona-vozesda opiniao que daquela maneira se tamara publica: os homensde letras que a modelavam, os magistrados do Parlamemo quea formulavam, ou os administradores esclarecidos que a execu~tavam? Finalmente, como se deveria avaliar a auto-evidencia deseus decretos para haver garantia de consenso? Embora todosreconhecessem a existencia da opinHio publica e postulassem

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I.Origens Cl,Iltl,lrais do Revoll,ll;oO Franceso

sua unidade, nao havia resposta unamme para essas perguntaspois a opiniao publica era ao mesmo tempo uma voz que exigias~r ouvida e urn tribunal que devia ser persuadido .

o tribunal da apinilia

Em 1775, em seu primeiro discurso diante da AcademieFranr;:aise,Chretien-Guillaume Malesherbes expressou veernen-temente a ideia - comumente aceita na epoca - de que a opiniaopublica devia ser considerada uma corte de justir;:amais imperiosaque qualquer outra:

Surgiu urn tribunal independente de todos as poderes e quetodos as poderes respeitam, que aprecia todos as talentos, que sepronuncia sabre tadas as pessoas de merito. Enum seculo ilumina-do, num setulo em que tOOosas cidadiiospodem falar para toda ana~aopor meio da imprensa, aqueles que tern 0 talento de instruir05 homens e 0 dam de comove-los - em uma palavra, os homens deletras- sac, em meio ao publicodisperso, 0 que as oradores de Romae Atenas eram no meio do publico reunido (Ozouf, 1987, p.424).

Ha diversos argumentos contidos nessa comparar;:ao.Primeiro, ela investia os novos juizes - "em uma palavra, oshomens de letras" - de uma autoridade que os juizes ordimi-rios nao possuiam. Sua competenda nao tinha restri~oes e suajurisdir;:ao nao conheda limites; sua liberdade de julgamentoera garantida porque nao dependiam de maneira nenhuma dopoder do dirigente; seus decretos tinham a [orr;:ade proposir;:6esauto-evidentes. Estabelecendo os homens de letras como osmagistrados de urn tribunal ideal e supremo era investi-los dalegitimidade fundamentalmente judiciaria de todos os poderestradicionais, a com~ar pelo rei e pelo Parlamento. Assim, 0 poderdos "homens de letras" nao mais se fundamentava exdusivamente

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- como no Systeme figure des connaissances humaines da Encyc/opedie[Sistema figurado dos conhecimentos humanos da Encic10pedia J- na submissao da "ciencia de Deus, ou Teologia natural, queDe-us houve por bern corrigit e santificar pela Revelal;ao" auma "ciencia do ser em geral", 0 primeiro ramo da "fiIosofia ouciencia (pois essas palavras sao sin6nimas)" que era "a porl;aodo conhecimento humano que deveria estar relacionada com arazao". Essa sujei~o permitia que 0 papel de guia da humanidade[osse transferido dos escolisticos aos Phi/osophes (D'Alembert,1965, p.l55-68). Com a inven~ao da opiniao publica, "a nal;aoiluminada dos homens de letras e a nal;ao livre e desinreressadados Phi/osophes" viu-se investida de urn verdadeiro oficio publico(ibidem, p.lS; Darmon, 1984a, p.190-213).

A referenda ao judicial tinha" ,00 enranto, outra funl;3o.Visava a estabelecer uma conexao entre a unive:rsalidade de jul-gamemos e a dispersao das pessoas, e a construir uma opinHiouniforme que, diferenremente dos antigos, nao tinha localiza~aofisica onde se expressar e experienciar ~ua unidade. Tal comoposteriormeme para Kant, era a circulal;ao da materia impressaque tornava possive] para Malesherbes, nos protestos que apre-sentou em maio de 1775 em nome da Cour des Aides, contemplara constitlli~ao de urn publico unificado numa nal;ao em que aspessoas estavam necessariamente ~eparadas umas das outras eformavam suas ideias individualmenre:

o conhecimemo esta semo estendido pela Imprensa, as Leisescritas sao hoje conhecidas pm rodos e todo mundo pede aoorcarseus proprios assumos. Os ]uristas perderam 0 imperio que aignorancia dos ourros homens Jhesproporcionava.Os]uizes podemser eles proprios juJgados POt urn Publico insrruldo, e a censurOlemuiro mais severa e mais equitativa quando pode set exercidanurn"leirura fria e reflexiva do que quando sufragios sio consttangidosem rurnu)tuada asseOlbleia (MaJesherbes. 1978, p.272-3).

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OrigeJl~ wlturois do Re"olu~ao Fronce~Cl

Assooando a natureza publica da palavra escrita - vastamen-te incrementada pelas impressoes (urn recurso indispemavelno combate a "c1andestinidade" da administra~ao) - com aautoridade suprema dos julgamentos pronunciados pelo blocopublico ate mesmo em rela~ao aos juizes, Malesherbes converteuos amonroados de opinioes pessoais que emergem da leiturasolitaria em uma entidade conceitual coletiva e anonima que eao mesmo tempo abstrata e homogenea.

Condorcet desenvc!veu a mesma ideia nas paginas inidais daoitava "epoch" de seu Esquisse d'un tableau historique des progres deI'esprit humain [Esbol;O de urn panorama historico do progressodo espirito humano], escrito em 1793. Lan~ou seu argumen-to contrastando a palavra falada, que atinge apenas ouvintespr6ximos e excita suas emol;oes, com a palavra impressa, cujacircula~ao cria as condi~oes para umacomunica~ao ilimitada edesapaixonada.

Os homens .'Iedescobriram possuidores do meio de comunicar-.'Iecom pessoas do mundo imeiro. Uma nova especie de tribunalpassara a ter existencia. no qual impressOes menos vividas, poremmaisprofundas eram comunicadas; 0 que nao mais permitia oexer-ciciodo mesmo imperio tiriinico sabre as mentes dos homens, masassegurava urn poder sobre sua.';mentes mais ceno e duradouro:uma situa~iiona qual as ••antagens estao todas do lado da verdade,pois aquilo que a arte da comunical,':aopercleno poder de seduzir,ela ganha do poder de iluminar.

A imprensa tornou possivel, port an to, a constituir;ao deurn reino publico que independia da proximidade fisica - umacomunidade sem presenr;a visivel:

A opiniao publica que se formou clessa maneira era poderosaem vinude de seu tamanho, e efetiva parque as forl,':asque a triaramoperavamcom igual intensidade sabre todos os homens ao mesma

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tempo, nao importando as distancias que os separavam. Numapalavra, .agora temos urn tribunal, independente de codacoer~aohumana, que favorece a razao e a justi~a, urn tribunal de cujo es-crutinio e dificil se esquivar, e de cujo veredicto e impossive! fugir(Condorcet, 1988, p.188).'

Esse tribunal- no qual os !eitores eram os julzes e autorese os autores, as partes interessadas - era urna manifestac;ao douniversal porque "todos os hornens que falam a mesrna lingua-gem podem se manifestar com referenda a qualquer questaodiscutida em qualquer lugar" (ibidem, p.189). Mesmo queCendorcet tenha dado a opiniao mais "democnitica", a opiniaopublica, idealmente universal, predsaria chegar a tecmos com6bvias cisoes cultucais, e nao era algo rnuito faci! fazec 0conceitoabsoluto coincidir com as realidades do rnundo social:

Eassim, embora restasse urn grande numero de pessoas conde-nadas a ignorancia, quer voluntana quer for~a, a fronteira entre ascultos e as incultos haviasido qua.seinteiramente apagada,deixandouma gradu~o inconsciente entre os dais extremos, a geniaJidadee a estupidez (ibidem, p.140).

Os proprios tecrnos empcegados por Condorcet ("ernbora","quase inteiramente") indicavam clararnente a persistencia deuma distinda que era, no entanto, considerada abolida.

Assim, do seculo XVII para 0 XVIII houvera uma mudan~aradical na maneira de conceber 0 publico. Na epoca da polltica"barroca" os trac;os que definiarn 0 publico eram os mesmosque tipificavam 0 publico de teatro: heterogeneo, hierarquizadoe transformado em urn publico apenas pelo espec.kulo que lhesera dado vere acreditar. Esse tipo de publico era potencialmeme

4 Paraumadiscussaoemoutrocontexcosobrea rela~ entre;{circula~odemateri.alimpressae aesferapublic.a,verMichaelWarner,1990.

Or'l;Iens cul',-!~o;sdo Revoluc;co Fronceso

compos to de homens e mulheres de codos os niveis sociais;reunia lOdos cuja adesao e apoio se buscava - as poderosos eas pessoas comuns, politicos astutos e plebeus ignorantes. Eratambem urn publico a ser "conduzido pelo nariz"; a ser "seduzi-do e iludido pelas aparencias", segundo Naude, 0 auconomeadoteorico de uma politica cujos efeitos mais espetaculares sernpremascaravarn as rnanobras que os produziam e as metas que bus-cavam alcan\Af (Jouhaud, 1985a, p.337-52; 1985b). Capturados,mantidos cativos e manipulados dessa forma, os espectadoresdo rheatrum mundi de maneira alguma constituiam uma "opiniaopublica" (mesmo que a expressao possa ser encontrada antes de1750, por exemplo, em Saint.Simon).

Quando 0 conceico de "opiniao publica" realmente emergiu,efetivou uma dupla ruptura. Contrapunha-se aarte do engodo,da dissimulac;ao e do segredo ape lando para uma transparenciaque deveria assegurar a visibilidade de intenc;5es. Diante do tri-bunal lOdas as causas podiam ser defendidas sem dupJicidade;causas que evidentemente tinham a justil;a e a razao a seu ladonecessariamente triunfariam. Mas nem todos os cidadaos eram(ou ainda nao eram) adeptos de exercer seu julgamenco dessemodo, ou de se reunir para formar uma opiniao esclarecida.Assim sendo, urna segunda rupeura rejeitava 0 publico que semisturava nos teatros, onde os lugares mais baratos do fundoda plateia ficavam pr6xirnos aos camarotes, e onde todo mundotinha sua pr6pria interpretac;ao - grosseira ou sofisticada - deum espetaeulo destinado a todos, em favor de urn publico maishomogeneo que servia como tribunal para julgar os meritos etalentos pocHicos e literarios. Quando se come~ou a pensar aopiniao do ponto de vista do atar, em vez de objeto de a~ao, elase tornou publicae perdeu sua universalidade, e passeu a excluirmuita gente que carecia de competenda para assumir os decretosque eta proclamava.

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Roger Chartier

A constituic;60 do publico

Constituir 0 publico como uma entidade cujos decretostinham mais forc,:ado que as das autoridades estabelecidaspressupunha diversas operac,:6es. Dois exemplos devem bastarpara ilustra.las. A primeira operac,:ao, que concerne as mem6-rias publicadas par grande numero tanto de advogados comode litigames a partir de 1770, serviu para tamar a comparac,:aojudicial ao pe da letra. Malesherbes justificou essa operac,:aoemseus protestos de 1775, onde se manifesrou contra a critica dejuizes que achavam que "0 publico nao deveria ser constituidocomo juiz nas cortes":

Basicamente, a ordem comum da justj~a na Fran~a e que elaseja tornada publica. E a uma audiencia publica que todos as casasdevem ser normalmenre trazidosi e quanda se toma a Publicacomo testemunha par meio de Mem6rias impressas, tudo isso fazpar aumenrar 0 carater publico da audiencia (Malesherbes, 1978,p.269-70).

Em todos as casas, urn assunto que esteja sendo examinadopar un: tribunal normal deveria ser exposto perante a opiniiio.Tomar urn caso espedfico que colocasse pessoas privadas umacontra outra e que estava sujeito aos procedimemos secretos daJusti~, e transforma-Io num debate publico encarregado de trazera verdade a tona e, com efeito, transfonnar 0 contexto na qual 0

julgamento tinha lugar, exigia a adol;ao de varias estrategias.A estrategia fundamental consistia em investir a causa que

estava sendo defendida com valor getal e exemplar. Lacretelle,urn advogado, chegou a dizer:

Qualquer caso particular que leve a consideral;6es gerais eseja passivel de se tamar urn foco impotunte de atenc,:ao publicadeve ser considerado urn evento de maxima impartancia no qual a

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Origens (uiturois do Revalul;0o Franceso

experiencia testemunha com plena autoridade e a opiniao pu bJica

se ergue com tada sua influenda.

Vma restemunha admiradora nos coma que essa rambemera a pratica de Lacretelle:

Em vez de se fechar na estreito drculo de urn assunto corriquei-ra, ele abarca as leis canstitutivas dos varios governosi ele enxergaapenas os resultados mais importantes; cada caso particular setorna, nas maDs dele, a programa de uma questao de Estado.

A divida que urn nobre da corte se recusava a pagar a seuscredores, que eram cidadaos comuns, tornava-se a ocasHio idealpar"adenunciar privilegios injustos, assim como a deten~ao deurn cavalheiro brerao era a oportunidade de denunciar as lettresde cachet (Maza, 1987, p.73~90; Renwick, 1982; Liisebrink, 1980,p,892-900)Y

DUllS outras coisas precisavam ser conseguidas antes quecasas espedficos pudessem ser investidas de significanciauniversal. Primeiro, era necessaria romper 0 sigilo dos procedi-mentos judiciais mobilizando 0potencial de circulal;aO de textosimpressos na maior escala posslvel. Isso contribuia para as gran-des tiragens impressas de memarias judiciais (3 mil capias pelomen as, com freqiiencia 6 mil, e ocasionalmente 10 mil capias oumais), bern como para seu baixo prel;o (quando nao eram distri-buidas gratuitameme). Segundo. urn estilo de reda~ao diferentedevia substituir a costumeira prosa legal, urn estilo que tirasse,seus mod-elos e refetencias de generos bem-sucedidos e dessea narrativa uma forma dramatica au, ainda, urn estilo baseadonuma narrativa em primeira pessoa, que emprestava veracida-de mediante 0 emprego do "eu", como na literatura da epoca.

5 Devo aa artigo de Maza ambas as cira<;&se ideias no tocante a~memoriasjudiciais.

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Roger Cnartier

Universalizar 0 particular, tomar publico 0 que havia sido secretae "ficcionali~ar" a discurso eram as tlknicas que as advogadosusavam para apelar para a opiniao e, ao faze-la, proclamar-seinterpretes autorizados dessa opiniao,

A relar;ao tradicional direta, discreta e exclusiva que vin-culava os individuos ao rei - 0 fiador e guardiao dos segredosdomesticos - deu Iugar a urn mecanismo totalmente distimona exposil;ao publica das diferenr;as privadas (Farge, 1986a,p,580~617; Farge & Foucault, 1982). Desse ponto de vista, asmem6rias judiciais sao 0 perfeito inverso das lettres de cachetconcedidas pelo soberano em resposta as solicitar;6es das fami-lias interessadas em sufocar "desordens" que manchavam suahoma. As mem6rias revelavam as que as lettres ocultavam; elasesperavam do julgarn:ento par parte da opiniao 0 que as lettresesperavam ganhar da onipotencia do monarcaj convertiam numprocesso civil os escAndalos que as lettres estavam encarregadasde ocultar, A "poIitizar;ao" do setar privado parece assim tersurgido a partir de urn desenvolvimento que baseava a propriaexistencia de uma nova esfera publica num processo de "pri-vatizar;ao" no qual as indivfduos gradualmente conquistavamautonomia e liberdade da autoridade estatal.

A segunda operar;ao, a emergencia do publico como umacone de julgamento mais elevada, fica clara na evolur;ao da criticaartistica, Ap6s 1737, quando 0 Salao se tornou uma institui~aaregular e bern freqiientada, sua pr6pria existencia transferiu alegitimidade da aprecia~ao estetica, tirando-a do estreito meioque ate entao haYia clamado seu monap6Ho (aAcademie Royalede Peinture et Sculpture, clientes aristocraticos e eclesiasticos,colecionadores e os comerciantes que lhes vendiam as obras dearte), e passando-a para 0 misturado e numeroso publico quepassava julgamento sabre os quadros pendurados no Salao doLouvre. Nomear aquela multidao de visitantes como tribunal deborn gosto nao deixava de ter seus problemas, Como escreveuThomas Crow, uma quest1io estava no centro da mente de todos

Origem (:uf1uraisda Revolu~oa Francesa

aqueles que davam sustenta~ao as expectativas e gostos dessesnOvas espectadores, em oposir;ao as velhas autoridades:

o que transforma [urna] audiencia em urn publico, isto e, numacornunidade com um papellegitimo a desempenhar na justificar;aoda p'ratica ardstica e no estabelecimento de valor dos produtosdessa pratica? A audiencia e a manifesta~ao concreta do publico,mas jamais identica a ele,.. 0 publico surge, com uma forma e umavontade, par meio das vadas alega~6esfeitas para representa-lo: equando numeros suficientes de uma audiencia chegam a acreditarem uma au outra dessas representat;:6es,0 publico pode se tornarurn importante ator arte-historico (Crow, 1985, p.5).

Transformar espectadores em "publico" encontrou forteresistencia cia Academie, dos conoisseurs e, ate mesmo, dos pr6~prios artistas. Nao obstante, a movimepto foi relativarnentebem~sl:kedido; sob a alYaodos criticos independentes (coqJ.freqiiencia anonimos, e ocasionalmente dandestinos) cujos nu-meros aumentaram depois de 1770 e cujos escritos circulavamde forma visivelmente mais ampla do que os comentarios deDenis Diderot reservados para os assinantes do CorresponcUmcelitteraire [Correspondenda literaria], de Melchior Grimm. Da

.mesma maneira que 0 publico era simultaneamente invocadoe representado pelos advogados em suas mem6rias judiciais, 0

publico que se julgava regular 0 gosto nas belas~artes encontrousellS primeiros interpretes nos criticos que 0 estabeleceram nopapel de legisladores esteticos.

Mesmo que tenha sido definida como entidade conceitual (outalvez par causa disso), e nao em termos sodo16gicos, a no~aode opiniao publica que invadiu a discurso de 'l:pdosos segmentosda sociedade - politico, administrativo e judicial- nas duas outres t1ltimas decadas do Antigo Regime operaram como urn ins~trumento poderoso tanto para a divisao como para a legitimar;aosocial. Na realidade, a opinUio publica fundamentava a autoridade

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Roger Chortier

de todos aqueles que, afirmando que reconheciam unicamenteseus decretQs, nomeavam a si pr6prios como encarregados depronunciar seus julgamentos. Foi na consoHda.;ao da opinHio emurn publico unificado, esclarecido e soberano que os homens deletras, como escreveu Tocqueville, "assumiram a lideran<;a napolitica". Universal em sua essencia, a publico capaz de fazerusa critico da razao estava lange de ser universal em sua efetivacomposi.;ao. A esfera publica, emancipada do dominio no qualo monarca detinha 0 contrale, nao tinha, portamo, nada em ca-mum com as apini6es osdlantes e emoc;:6escegas da rnultidao.Havia uma clara fenda entre 0 publico e 0 povo. De Malesherbesa Kant, a linha demarcat6ria corria entre aqueles que sabiam lere produzir material escrito e aqueles que nao sabiam.

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j:

Si

g~-

3o cominho de imprimir

Dois textos aproximadamente contemporaneos permitem-nos urn primeiro exame da rela.;ao entre 0 surgimemo da esferapublica e a circulac;:aoda palavra impressa. 0 primeiro e Memoiressurlalibrairie [Mem6rias dalivraria], de Malesherbes, escrito em1758 e 1759, depois de Malesherbes ter sido indicado diretardo comercio livreiro ern 1750 (1979).1 0 segundo e 0 memorialdisserta.;ao sobre liberdade de imprensa escrita por Diderotaproximadamente no fim de 1763 sob requisic;:ao da associac;:aoprofissional dos livreiros de Paris, a Communaute des LibrairesParisieris, e em particular sob a solicitac;:aodo syndic dessa organi-zac;:ao,a livreiro Le Breton, urn dos responsaveis pela publicac;:aoda Enciclopedia. Esse segundo texto se tornou conheddo ap6s 0

seculo XIX pelo titulo Lettre sur le commerce de fa libraiJle [Carrasdo comerico livreiro], 0 titulo original do manuscrito assinado

Todas asdrw;:6es e numeros de pagina das memorias de Malesherbes referem-se a esse te.xto e sao citadas como M.

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(Diderot, 1964; 1963-73, p,305-81; Proust, 1961, p,321~45),lOs dois textos foram dirigidos a figuras similares, bern comotiveram datas de publicac;ao quase contemporaneas, Malesherbesescreveu suas Memoires .. , para uma pessoa poderosa, provavel~mente seu pr6prio pai, Guillaume de Lamoignon, que havia sidochanceler desde 1750 e, por esse motivo, era responsavel pelasupervisao do comercio de livros, De Lamoignon entio trans-mitiu as Memoires ao delfim. 0 memorial de Diderot deveria serenviado em nome da Communaute des Libraires para Antoinede Sartine, que substituira Malesherbes como diretor do co-mercia livreiro em 1763 quando, depois de seu pai ter caido emdesgrac;a, renunciou ao cargo para poder se dedicar em tempointegral as suas responsabilidades como primeiro presidenteda Cour des Aides, Em ambos os casas, entao, os texcos foramescritos dirigindo~se a altos nfveis da administrac;ao real como prop6sito de submeter queixas e propostas de reforma, massem intenc;ao de que fossem publicados (de fato, as Mbr1oires."de Malesherbes nao foram publicadas ate 1809, e aLettrt [Carta]de Diderot, apenas em 1861),

Diderot, no entanco, em 1769 pensou em publicarseu memorialcomo uma coletAnea de textos reunidos. Em uma carta enderec;adaa Madame de Meaux, ele a descreveu nos seguintes teernos:

Eu poderia acrescentar a essa [colet4nea] urn te.xtoque escrevisabre liberdade de imprensa. no qual e.xponhoa hist6ria dos regu-lamentos que governam 0 comercio livreiro, as circunstlncias queos produziram, 0 que deveria ser mantido e 0 que precisaria sereliminado (Proust. p,7).

2 Todasasdtal;6esenumerosdepaginamencionadosnestetextorefercm.seaessaedil;ioesaodtadascomoL Dutraedil;iodasmemooasacha.sedisponlvelsob0 tituloUtm hisloriqllttf poIitiqut sur Ie,ommtra' de 10librairit. emOlderot,Otuvm compUtes,15 vs, Paris: i.e Club F~s du Uvre. 1963-1973, 5:305-81.Sobreessasmem6rias,verJacquesProust""PourseMr ill uneeditioncritiquede la Lelue sur Iecommen:ede Ialibrairie.,DidmJc51udits3, 1961:32] ..••5,

rf!

Origans c;ulturois do Revolu~ao Frono::eso

por "liberdade de imprensa" Diderot entendia a liberdade depublicar materia impressa de qualquer especie -livros, libelosou peri6dicos, A expressao tambem foi usada par Malesherbes.que criticau a excessa de censura:

As pessoas tern medo de ofender as ministros. como se estesnao fossem amplamente compensados, com a eminencia de suasposi,,6es, pelos pequenos desconfortos aos quais a liberdade deimprensa poderia expo-los (M, p,121),

Para Malesherbes, assim como para Diderot, partanta. a ques-taO central era a liberdade de imprimir. uma vez: que ambos osautares sustentavam que a livre publicac;ao era necessaria parao advento da verdade:

Os Iivros nw causam neohum dana: mas 0 espirito humanoesta fazendo urn progresso que tende rumo a bern geraJ. Existemdesvios, mas a loogo prazo a verdade prevalece (M. p.IIO).

Nao yOU discutir se esses Iivrosperigosos [os livros proibidos]sao tao perigosos quanto as pessoas dizem; se mentiras e sofismasnio sao cedo au tarde reconheddos e tratados com desprezo; se averdade, que jamais pode ser sufocada, espalhando-se gradualmen-te, vencendo apassos quase insensJveis0 preconceito que encontra,e tornando-se generalizada apenas urn surpreendente lapso detempo. pode alguma vel. ter a1gumperigo real (L,p,B7),

As crises do deeodo de 1750

Uma leitura cuidadosa dessas linhas revela trai;os das trescrises que abalaram todo 0 sistema de censura e policiamentode Iivros petta do tim da decada de 1750 e. mais do que isso. 0

proprio poder real. A primeira crise foi estritamente politica. esuas raizes residiram na recusa do sacramento aos jansenist3s.