Dimensões Culturais da Globalização - ARJUN APPADURAI

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ARJUN APPADURAI é professor de antropologia e de línguas ecivilizações da Ásia meridional na Universidade de Chicago, cidade

onde foi a'nteriormente director do Chicago Humanities Institute,

Entre as suas muitas publicações contam-se: Worship a.nd Conflict

under Colonial Rule (Cambridge, 1981), The Social Life of Things

(director de edição na Cambridge University Press, 1986) e Gender,

, Genre and Power (como co-editor da University of PennsylvaniaPress, '1991). É director do Globalization Project na Universidade

de Chicago e trabalha actualmente sobre a relação entre violência ,étnica e representações do território nos modernos estados-nação.

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ARJUN APPADURAI

Dimensões Culturaisda Globalização

A modernidade sem pelas ,

Tradução deTeIma Costa

Revisão científicaConceição Moreira

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© 1996. Regents of the University of Minnesota

Título originaI: Modernity at Large - Cultural Dimensions oJ Globalizacion

Tradução: Telma Costa

Re visão científica: Conceição Moreira

Capa : Fernando Mateus'Composição e paginação: Rui Miguen s de Almeida

lm pressão e Rainha & Neves. Lda o1Santa Maria da Feira

I;ste livro foi impresso no mês de Dezembro de 2004

:S BN : .972-695-612-9

Depósito legal no 219595104

; \õdos os direitos reservados por

ED ITORIAL TEOREMA . LDAo

Padre Luís Aparício o9 - la Frente

I : 50-148 Li sboa 1Portugal

"relef.: 213129131 - Fax:::1 352 14 80

t onail: mail @ed itorialteorema.pt

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Para o meu filho Alok,

meu abrigo no mundo

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Agradecimentos

Este livro foi escrito ao longo de um peqodo de seis anos e durante essetempo, benefiCiei docontacto com muitas pessoas e instituições. A ideia dolivro tomou formadurante 1989-90, os anos em que fui MacArthur FelIowno Instituto de Estudps Avançados, em Princeton. Partes dele foram escritasenquanto estive na Universidade da Pensilvânia como co-director do Centrode Estudos Culturais Transnacionais. Foi terminado na Universidade deChicago, onde participei em um sem-número de conversas interdisciplina:-res no Instituto'de Humanidades, em ChÍcago, e onde beneficie i das ener-gias do Projecto Globalização. Ainda em Chicago e durante este período,as conversas e debates no Centro de Estudos Transculturais (antigo Centro ,

.de Estudos Psicossociais) foram fonte de frutuos.as perspectivas nacionaise internacionais.

Recebi proveitosas críticas e sugestões sobre as várias partes e versões\ dos capítUlos deste livro das seguintes pessoas: Lila Abú-Lughod, Shahid

Arriín, Tala! Asad, Fredrik Barth, Sanjiv Baruah, Lauren Berlant, JohnBrewer, Partha ChatteIjee, Fernando Coronil, Valentine Daniel, Micaeladi Leonardo, Nic.holas Dirks, Virginia Dominguez, Richard Fardon, Mi-chael F ischer, Richard . Fox, Sandria Freitag, S,:!san Gal, Clifford Geertz,Peter Geschiere, Michael Geyer, Akhil Gupta, Michael Hanchard, Miriam

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ARJUN APPADURAI

Hansen, Marilyn Ivy, Orvar Lofgren, David Ludden, John MacAloon,

Achille Mberribe, Ashis Nandy, Gyanendra Pandey, Peter Pels,Roy Por-

ter, Moishe Postone, Paul Rabinow,.Bruce Robbins, Roger Rouse, Mars-

hall Sahlins, Lee Schlesiriger, Terry Smith, Stanley J. Tambiah, Charles, .Taylor, Michel-Rolph Trouillot, Gieg Urban, Ashutosh Varshney, Toby

- Volkman, Myron Weiner e Geoffrey White. Aos que inadvertidamente es-queci, as minhas sinceras desculpas.

Um pequeno número de pessoas merece uma menção especial pelo

seu apoio mais generalizado e O meu professor, amigo e co-

lega Bernard S. Cohn deu-me, em 1970, o sinal de partida para uma via-

gem através da antropologia e da história e tem sido desde então uma

inesgotável fonte de ideias, de amizade e de crítica realista. Nancy Far-

riss manteve-me sempre atento aos desafios da comparação histórica e

, ao significado da fidelidade ao arquivo. Ulf Hannerz é o meu parceiro

para o estudo da res global desde 1984, ano que passámos juntos no

Centro de Estudos Avançados em Ciências do Corriportamento (PaIoAlto). Peter van der Veer, em Filadélfia como em Amesterdão, é uma

fonte inesgotável de amizade, humor e debate de ideias. John e Jean Co-

maroff, graças à sua cultura e à sua estimulante presença no departamen-

to de Antropologia da Universidade de Chicago, contribuíram de muitas

formas para a elaboração deste livro. Sherry Ortner apoiou o projecto

desde o princípio e proporcionou uma das duas cuidadosas e sugestivas

leituras do manuscrito para a University of Minnesota Press. Estou

igualmente grato ao seguIldo leitor, anónimo. Dilip Gaonkar e Benjamin

Lee (os directores da colecção que inclui este 'livro) foram amigos, co-

legas e interlocutores sob muitas e variadas formas. Homi Bhabha, Jac-queline Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Steven Collins, PrasenjitDuara e

Sheldon Pollock proporcionaram-me uma comunhão de ideias que, ao

mesmo tempo que se ia formando, me ajudava a completar este livro

a imaginar muitos outros para o futuro.

Lisa directora da University of Minriesota Press, e Janaki

Bakhle (àrHeriormente na Press) estiveram sempre ao meu lado, num mis-

to de paciência e estímulo, sugestões críticas e saber editorial.

8

DIMENSÕES CULTURAIS DA .GLOBALIZAÇÃOur

Muitos foram os alunos que, tanto na Universidade da Pensilvânia

como na de Chicago, constituíram uma fonte de inspiração e de énergia. , .1,

Devo fazer menção espeéial daqueles cujo trabalho enriqueceu as ideias Ü l;Icontidas neste livro: Brian Axel, William BisseU, Caroline Cleav.es, Ni-

cholas De Genova, Victoria Farmer, Gautam Ghosh, Manu Goswami, O

Mark Liechty, Anne Lorimer, Caitrin Lynch, Jacqui McGibbon, Vy- '

J ayanthi Rao, Frank RomaoO'osa, Philip Scher, Awadendhra Sharan, Sarah r"I .) ,I

Strauss, RacheI Tolen, Amy Trubek e Miklos Votos. Eve Darian-Smith, Ç)Ritti Lukose e Janelle Taylor merecem menção especial, quer pelo con- .

tributo intelectual dado a este livro, quer pela su a assistência Cai- , Otrin Lynch fez um esplêndido trabalho no índice. Entre outros, participa-: O,

ram também no complexo processo de produção deste texto Namita Gupta OWiggers e Lisa McNair.

A minha família viveu com este livro, sempre generosamente mas por

vezes sem saber que o fazia. A. minha mulher e colega; Carol A. Brec-

kenridge, est'á de certo modo presente em tOdas as páginas: este livro émais um documento da aventura das nossas vidas. O meu filho Alok, a

quem este livro é tornou-se adulto com ele. A sUa capacidade

de amare a sua paixão pela vida têm velado para que eu nunca esqueça

que os livros não são o mundo: são sobre o mundo.

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Aqui e agora

A modernidade pertence a essa" pequena fariulia dé teorias que simul-taneamente se declara e se deseja de aplicabilidade universal. O que tem

de novo a modernidade (ou a ideia de que a sua novidade é um novo tipo

de novidade) decorre desta dualidade. Para além de tudo o que criou, o

projecto iluminista aspirou a criar pessoas que, postfestum, viessem a

querer ser modernas.Esta ideia que em si própria se consuma e" se justifica

provocou muitas críticas e muita resistência, tanto na teoria como na vida

Nos meus tempos de juventude, em "Bombaim, o contacto com a mo-

dernidade enl uma experiência nitidamente sinestésica e largamente an-

teteórica. Via " cheirava a modernidade lendo a Life e catálogos" de uni-versidades americanas na biblioteca do United States Information Service,

vendo filmes da série B (e alguns da série A) de Hollywood no Cinema

Eros, a quinhentos metros do meu prédio. Pedi para Stanford, ao meu ir-

mão (no princípio dos anos sessenta), que me trouxesse umasjeans e

rei a América no que trazia a sua bagagem quando ele regressou. Grad; a1-

mente, fui perdendo a Inglaterra que antes assimilara a p'artir dos livros

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ARJUN APPADURAI

escolares vitorianos, do que diziam os meus colegas de faculdade que ti-nham bolsas Rhodes e dos livros de Billy Bunter e Biggles devorados in-discriminadamente, a par de outros de Richmal Crompton e Enid

. Franny e·Zooey, Holden Caulfield e Rabbit Angstrom foram limando len-tamente essa par te de mim que até então era só vivas à Inglaterra. São es-tas as pequenas derrotas que explicam como a Inglaterra perdeu o império

na Bombaim pós-colonial. .. Não sabia então que estava a afastar-me de uma espécie de subjecti-vldade pós-colonial (dicção anglófona, pseudodebates na Oxford U nionumas espreitadelas à Encounter, um interesse patrício pelas humanidades)para outra: o Novo Mundo mais áspero, mais sedutor, mais viciante dasreprises de Humphrey Bogart, de Harold Robbins, da Time e das ciênciassocjáis em estilo americano. Quarido mergulhei nos prazeres do cosmo-P?litismo, no Elphinstone College, já ia equipado com tudo o que é pre-

. CISO: uma educação anglófona, um endereço da classe alta de Bombaim

(emboracof9. o rendimento. de uma faffil1ia da classe média), relaciona-

social.com manda-chuvas da academia, um irmão famosoUá

fa-que tinha sido lá aluno, uma irmã com amigas bonitas já na uni-versidade. tinha sido picado pelo bichinho americano. Estava já

.entrado na VIagem que me levou à Universidade de Brandeis (em 1967,quando os estudantes eram uma categoria étnica irrequieta nos EstadosUnidos) e depois até à Universidade de Chicago. Em 1970 ainda eu an-dava à deriva, a caminho de um encontro com as ciências sociais ameri-canas, com os estudos de área e com essa forma triunfal de teoria da mo-

dernização que era. ainda produto certificado do americanismo nummundo bipolar. . .

Os que se seguem podem ser vistos como um esforço para

dar sentIdo a uma viagem que começou com amodernidade como sen-. sação materializada nos filmes de Bombaim e terminou num frente-a-

-frente com a modernidade-corno-teoria nas minhas aulas de ciências so- .ciais, na Universidade de Chicago, nos primeiros anos setenta. Nestescapítulos, procurei tematizar certos factos culturais e para ex-

·por ·a relação entre a modernização como facto e a modernização como

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. . ._ _ • _ -DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO gteoria1. Esta inversãÇl do p·rocesso que me deu a conhecer o ser- O I.ve para explicar algo que de outro modo poderia uma preferên- :

disciplinar e ,arbitrária pelo cultural como mera deformação profis- O .slOnal do antropologo. . . . O

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Todas as grandes forças sociais têm percursores, precedeI1tes, análogos . :e. fontes no passado. São estas as profundas e múltiplas gen'ealogias (ver !capítulo 3) que têm frustrado a modernizadores inseridos em sociedades U.muito diferentes a aspiração de ·sincronizar os seus relógios históricos. ( )

\ Este livro defende também a presença de·Uma ruptura geral no teor das O. relações intersocietais destas últimas décadas. Há que explicar esta pers- Opectiva de mudança - melhor, de ruptura - e distingui-la de algumas Odas anteriores teorias da transformação radical.> . .

Um dos mais problemáticos legados da ciência social do Oci- ( )dente (Auguste Comte, Karl Marx, Ferdinand TonÍ1ies, Max Weber, OÉmile Durkheim) é nunca ter deixado de reforçar o sentido de um mo- Omento singular - chamemos-lhe o momento moderno - que pela sua C)aparência abre. uma brecha profunda é sem precedentes entre o passado O·

e o presente. Reencarnada como o corte· entre tradição e modernidade e Otipificada comCa ·; ; t re sõciedades ostensivamente fraCf0io-nais e sociedades por demais demonstrado po- Ü

os sig1Ü.ficados da tiãn-:SJôrmação e da política do ( )

\No entanto, o mundo em que hoje vivemos - em que a modernidade.O

\anda decididamente à solta, po r vezes acanhada e sentida de·forma de- Q. sigual - implica seguramente um corte com todo o tipo· de passados O! Que espécie de corte é este, senão o identificado pela teoria da moder- o1nização (e criticado no capítulo 7)? .

Implícita neste livro está uma teoria de ruptura qu e toma os meios Ode comunicação social e a migração como os seus dois diacríticos prin- Ocipais e interligados, e explora o seu efeito conjunto sobre a obra da C;

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AI.UUN APPADURAI

como característica constitutivá da subjectividade moderna.

pnmeIro passo o provar é que os meios de comunicação electró-

lllCOS mudaram decIsIvamente o campo mais ·vasto dos meios de comu-

nicação de massas e outros meios de comunicação tradicionais. Isto não

é uma fetichização monocausal da electrónica. Esses meios de comuni-

o campo da mediatização de massas porque ofere-cem a construçao de eus imaginados e de mundos imaginados novos re-

novas disciplinas. É uma tese relaciona!. A comunicação

marca. e um campo muito mais vasto em que a,

escnta e outras formas de comunicação oral, visual e au-

dItIva podem continuar a ser importantes. Através de processos c'omo a

ondensação de notícias em bytes audiovisuais, através da tensão entre

s espaços públicos do cinema e os espaços mais exclusivos do vídeo

través .imediatidade.da sua absorção no discurso público e

d ten?enCIa para os assoc iar a sedução, a cosmopolitismo e a novidade, .

m.elOs electrónicos (estejam eles ligados a notícias, .Ifuca, vIda famIlIar ou diversão e espectáculos) tendem a interrogar,

ubverter e transfo,rmar outras literacias contextuais. Nos capítulos que

eguem vou atras dos modos como a comunicação electrónica trans-

ma mundos de comunicação e conduta preexistentes.

A comunicação electrónica dá uma tessitura nova ao contexto em que

oderno e o global aparecem como faces opostas da

ma moeda. Sempre portadora do sentido da distância entre observa-

8.contecimento, provoca, não obstante, a transformação do discurso

Ao mesmo tempo, fornece recursos para a espécie de

de construção dó eu em todo o tipo de sociedades e para

tIpO de pessoas. Permite enredos de vidas possíveis imbuídas da

o das estrelas de Cinema e de fantásticos argumentos de filmes .

u o seu carác tet de plausibilidade, como noticiários,

ntários e outras formas de telemediatização informativa e de texto

o. Graças à mera multiplicidade de formas que assume (cinema,

o, computadores e telefones) e à maneira rápida como se move

das rotinas da vida quotidiana, a comunicação electrónica é uma .

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

ferramenta para que cada indivíduo se imagine como um projecto social

em curso.

Passa-se com o movimento o me smo que se passa na mediatização.

A questão das migrações de massas (voluntárias e forçadas) não é nada

de novo na história humana: Mas se a colocarmos' em justaposição com

o rápido fluxo de imagens, textos e sensações mediatizados, temos umanova ordem de instabilidade na moderna produção de subjectividades,

Quando os turcos que trabalham na Alemanha vêem filmes nos

seus apartamentos alemães, os coreanos de Filadélfia vêem as Olimpíadas

de Seul-1988 através de emissões satélite da .Coreia e em Chicago os ta-

xistas paquistaneses ouvem cassetes de sermões' gravados em mesquitas

no ou no Irão, vemos imagens que vão ter com "espectadores

desterritorializados. E estes criam esferas públicas de diáspora, fenóme-

nos que invalidam as teorias ancoradas na hegemonia continuada do Es-

tado-nação.como principal árbitro de importantes transformações sociais.

',' Em suma, a corn.unicação electrónica e as migrações marcam o mundo'do presente, não 'como forças tecnicamente novas, mas como aquelas que

. parecem impelir (e, por vezes, compelir) a obra da imaginação. Juntas,

criam irregularidades específicas porque espectadores e imagens estão em

circulação simultânef Nem as imagens nem os espectadores cabem em cir-

cuitos ou audiências que facilmente se confinam a espaços locais, nacionais

ou regionais. Claro que muitos espectadores podem não emigr;rr. E muitos

acontecimentos mediatizados são de alcance fortemente local, como a tele-

visão por cabo em algumas partes dos Estados Unidos. Mas poucos são os

filmes, notícias radiofónicas, ou espectáculos de televisão importantes que

se mantêm üúeiramente incólumes a outros acontecimentos mediáticos vin-

dos de longe. E, no .mundo de hoje,poucas são as pessoas que não têm um

amigo, um parente, um çolega de trabalho que não esteja a caminho de qual-

quer outro lugar oujá de voita para casa, portador de histórias e de possi-

bilidades . Neste sentido; tanto pés soas como imagens encontram-se muitas

vezes por acaso, forà' das certezas do cordão sanitário de efeitos me-'.diáticos locais enácionais. Esta relação amovível e imprevisível entre acon-

tecimentos e audiências migratórias define o âmago da liga-

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ARJUN APP

, ção entre a globalização e o modernolNos capítulos que seguem, mostro

que a obra da neste contexto, nem é puramente emanci- ,

padora nem inteiramente disciplinada: é um espaço de contestação no qual

indivípuos e grupos procuram anexar o global às suas próprias práticas do.-_ ..-

Obra da imaginação

de Durkheim e do trabalho do grupo dos Années Sociologiques,

os' antropólogos aprenderam àconsiderar as representações colectivas fac-

tos sociais, isto é, a vê-las transcender a volição individ.ual, carregadas

com a força da moral social e como realidades sociais que

eu quero sugerir é que houve nestas últimas décadas uma transformação

com base nas transformações do século em que a ima-

ginaçãose tornou um facto colectivo, social. E estaeY9lução está por sua

, vez na base da pluralidade de mundos '

Nesta conformidade, absurdo âventar que há algo de novo no

papel que a imaginação ocupa no mundo contemporâneo. Afinal, esta-

mos habituados a pensar que todas as sociedades produziram ·as suas

versões da arte,.do mito, da lenda, expressões que implicavam a poten-

cial evanescência da vida social Nestas formas de

todas as sociedades se mostraram capazes' de reenquadrar

a,vida socia l corrente recorrendo a mitologias de \vários tipos em que a

" ,vida social surgia imaginativamente deformada. E nos sonhús, os"víduos, mesmo os das sociedades mais simples, acharam o terreno onde

reconfigurar a sua vida social, superar estados emocionais e sensações

,'iriterditos e ver coisas que. depois roram integrar no seu sentido da vida

corrente. Além'disso, todas estas expressões estiveramna base de um

diálogo complexo entre a imaginação e o ritual em muitas sociedades

humanas, 'através do qual a força das normas sociais correntes de certo

m do se aprofundou, pela inversão, pela ironia ou pela intensidade ac-

tu' nte e p I trabàlho de colaboração que muitos tipos de ritual exigem.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBAL/ZA '

:- .-.

Tudo isto é o mais seguro 49., que o melhor da antropologia

nica do nos incu1cQu . _' : ,

.\ Quando afirm?,que a imaginaçãp ,no mundo pós-electrónico ten

novo papel significativo, baseio-me em três·distinções. Primeiro, a 111ginação saiu do particular espaço expressivo da arte, mito e ritual

passar a fazer parte da actividade mental .quotidiana da gente vulg \J

muitas sociedades. Entrou para a lógica da vida corrente de que con I

sucesso tinha sido segregada. Clar-o que encontra preced I

para tal nas grandes revoluções, nos cultos de personalidade e nos m V, r

mentos messiânicos de outrora, em que chefes ferozes implantavam . 11

Rerspectiva na vida social'oriando assim enérgicos movimentos de trllJl

formação.sqcial. Mas agora já ,não se trata de indivíduos partiçtilarm 111. .dotados (carismáticos) a injectar imaginação onde ela não cabe. A p

, soas' vulgares começaram a dar prova$ de imaginação na sua prática quo

tidiana vida. Exemplo deste facto é a mútua contextualização d mil

vimento e mediatização.

Nunca como agora tantas pessoas parecem imaginar rotineiramen t

possibilidade de elas ou os seus filhos viverem e trabalharem em lug 11

diferentes daqude em que nasceram: é esta a fonte do aumento da t I

de migrações a todos os níveis da vida social, nacional e global. OUlJ'll

são arrastados para novos cenários, como nos recordam os campos d J

fugiadosda Tailândia, Etiópia, TàInil Nadu e Palestina. É que estas p

soas deslocam ': se e têm que arrastar consigo a imagi.nação para novas lTll

neiras de viver. E depois há os que se deslocam em busca de trabalh I,

, riqueza e oportunidades, muitas vezes porque as circunstâncias em qu

encontram são intoleráveis. Transformando e alargando ligeiramente d

termos importantes de Albert'Hirschman, lealdade e saída, podemos f II I!de diásporas de esperança, diásporas de terror e diásporas de desesp 1( I

Mas em todos os casos estas' diásporas trazem a força ' da imaginaç (

como memória e como deseJb, para as vidas de muita gente vulgar, p \I

mitografias diferentes das disciplinas e do ritual de tipo clássi 'o

O cerne desta diferença é que estás novas rnitografias são atestados ,de no

vos projectos sociais e não apenas contraponto das certezas da vida'qu I

 

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ARJUN APPADURAI

tidiana. Para um grande de pessoas, levam a força glacial do há-bito ao ritmo acelerado da improvisação. Aqui, as imagens, os textos, osmodelos e as narrativas que chegam pelos meios de comunicação de mas-sas (nos- seus IpodoS realista e ficcional) traçam a diferença entre as mi-graçõescÍe h.oje ea s do passado. Quem quer mudar-se, quemjá se mudou,quem já e quem preferiu ficar rarament e formula os plano s

fora da esfera da rádio e da televisão , das cassetes 'e dos vídeos, dos jornaise do ,tel,efooe. Para os mjgrantes, tanto as fórmulas de adaptação à novosambientes como o estímulo para sair ou voltar são profundamente afec-tados por um imaginário mediático que frequentemente o es-p,ço nacional. . ' . ,

A segunda distinção é entre imaginação e fantasia. ,Existe' um vastorespeitável corpo de textos, nomeadamente dos críticos da cultura

de assas pertencentes ã Escola de Frankfurt e já avançado na obra deMax Weber, que considera que o mundo moderno está em 'vias de setransformar numa jaúla de ferro por obra das' forças da nierdmtilização

O capitalismo industrial e da regulamentação e secularização genera-lizadas do mundo. Entre os teó,ricos da modernização das ú1timas trêsd6cada's (de Weber, passando por Talcott Parsons e Edward Shils até

aniel Lerner, Alex lnkeles e muitos e utros) teve larga aceitação aid ia de que o mundo moderno é um espaço de religiosidade decres-

nte (e maior cientismo), menos diversão (e lazer cada vez mais re-ulamentado) e de inibição a todos os níveis. Há

linhas nesta ideia, linhas que unem teóricos tão diferentes com9N rbert Elias e Robert Bell, mas há também nela algo de fundamen-t lmente errado. O erro funciona a dois níveis. Erinlellih.baseia :;sê...lli!!P-

quiemprematuro à morte::da religião e à vItória Há novas

ligiosidades de toda a espécie que Gemonstram que-ã-religião nãonas não morreu como pode até ter mais consequências do que nun-

n s pol íti ca; g'lobais de hoje, tão inJerligadas e dotadas de tão gran-mobilidade. 'A'um outro nível, é errado presumir que a comunicação

. . . . . . . ---- 

I o ópio Esta posIção, que apenas começa a ser

rri gidà, na noção de que os processos mecânicos de repro-

\

DIMENSÕES CULTURAIS DA GL lJAUZ •

dução reprimem severamente a gente comum que busca trabalh in-dustrial. É demasiado simplista.;

vez há mais provas de que o cons umo de comunicação de massasorigina em todo o mundo resistência, ironia, selectividade e, em geral, im-pulso para a acção. Os terroristas que modelam a sua figura pela de Ram-bo (que já deu origem a uma porção de contrapartidas fora do Ocidente),

as donas de casa para quem a leitura de romances e folhetins faz parte doseu esforço de construção de vida própria, famílias muçulmanas reu-nidas a ouvir dirigentes islâmicos gravados em cassete, as criadas do Sulda Índia fazem excursões organizadas a Caxemira, são exemplos do -modo activo' como os meios de .comunicação são apropriados por gentede todo o T-shirts, o's cartazes publicitários, os grafitos,bem

'como a música rap, a dança de rua e os bairros de lata, tudo isso demonstra, que as imagens dos meios de comunicação entram rapidamente para os

repertórios locais de ironia, ira, humor e resistênc ia.J ., E não-se traiá- apenas de gente do Terceiro Mundo que reage à comu-

nicação de massas americana, pois o mesmo é verdadeiro para pessoas detodo o mundo como reacção à sua comunicaç ão electrónica nacional. Tan-to basta para que a teoria dos meios de comunicação como ópio do povo

, tenha que ser encarada com grande cepticismo. Não se pretende"sugerirque os consumidores são sujeitos livres que vivem felizes num mundo de

, centros- comerciais seguros, refeições gratuitas e estimulantes rápidos.Como sugiro no capítulo 4, no mundo contemporâ neo o consumo é muitasvezes uma forma de corveia, faz parte do processo civilizacional capita-lista. Não obstante, onde há consumo há prazéi,e onde há prazer há acção.Por outro lado, a liberdade é uma mercadoria um tanto mais fugaz.

Além disso, a ideia de fantasia traz consigo a inevitável conotação do

pensamento divorciado dos projectos e das atções e tem também o seuquê de privado, de individualista. A imaginação, pelo contrário, tem emsi um sentido projectivo, o sentido de ser o prelúdio a um qualquermQdo

expressão, seja estético ou outro. A fantasia pode dispersar (porque alógica é muitas vezes autotélica), mas a imaginação, especialmente

quando colectiva, pode tomar-se carburante da acção. É a imaginação, nas

 

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ARJUN APPADURAI

suas formas colectivas, que cria ideias de comunidade de bairro e de na-ção, de economias morais e governos , injustos , de salários mais altos eperspectivas 'çle trabalho no IA imaginação é hoje umpara a acção e não apenas para a evasã<0 ' '

A terceira distinção é entre o sentido individual e o. sentido colectivoda imaginação. Neste passo, é important e salientar que falo de imaginaçãocomo' colectivos e não apenas como uma faculdade do in-divíduo dotado (que é o sentido em que tacitamente é tomada desde o flo-rescimento do Romantismo europeu). Parte do que os meios de comuni-cação de massas tornam possível, por causa das condições de leitura,crítica e prazer colectivos, é o noutro lugar chamei «comunidade desentimentos» (Appadurai, 1990), um grupo que começa a imaginar e asentir coisas em conjunto. Como tão bem demonstrou Benedict Anderson(1983), o capita lismo impresso pode ser um meio muito importante de

grupos que nunca se conheceram começarem a pensar-se como Indoné-sios, Indianos ou Malaios. Mas outras forinas de capitalismo electrónicopodem terereitos semelhantes oU mesmo mais fortes, pois não operamapenas ao nível do Estado-nação.\A recepção colectiva dos meios de co-municação de massas, especialmente do cinema e do vídeo, pode criarconfrarias de veneração e carisma, como as que se formaram regional-mente em torno da deusa indiana Santochi Ma , nos anos setenta e oi tenta, ,e internacionalmente em torno do aiatolá Khomeini mais ou menos pelamesma altura. Tais confrarias podem constituir-se a propósito do desportoe do internaciona lismo, como tão claramente demons tram os efeitosnacionais dos Jogos Olímpicos. Os condomínios e os prédios albergamvideoclubes em sítios como Catmandu ou Bombaim. Clubes de Ias, co-missões de apoio político, emergem em culturas çomunicacionais provin-cianas ,. como no Sul da Índia.:J

" Estas co nfrarias assemelham-se ao que Diana Crane (1972) chamou«colectivos invisíveis» referindo-se ao mundo da ciência, mas são maisvoláteis, menos profissionalizadas, menos sujeitas a critérios de prazer,gosto ou relevância mútua partilhados colectivamente. São comunidadesem si, maS' sempre potencialmente comunidades por si capazes de transitar

20

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZA Ç

da imaginação partilhada para a acção colectiva. O mais importante, com I

defenderei na conclusão deste capítulo, é que estas confrarias são muit ,vezes transnacionais, até pós-nacionais, e operam frequentemente pa ,além dos limites da nação. Estas confrarias mediati zadas ' pela comunic \

ção de massas acrescem ainda em complexidade porquanto nelas se entrecruzam diferentes experiênciÇls locais de gosto, prazer e política, cri n

do assim a possibilidade de convergências na acção social translocal qude outro modo seria difícil imaginar.

Não há episódio que melhor capte estas realidades do que o caso, quhoje nos deixa perplexos, Salman Rushdie, em que entra um livro proibi-do, uma sentença de morte de fundamento religioso e um autor empenhdoem ter voz e liberdade estética. Os' Versículos Satânicos incitou mu-

çulmanos (e outros) do mundo inteiro a debater as políticas de leitura ,relevância cultural da censura, a "dignidade da religião e a liberdade de c -

, tos grupos para julgarem os autores se m um conhecimento independentdo texto. O caso Rushdie é um caso de texto-em-movimento que uma tr •

jectória mercantilizada fez sair do porto seguro das normas ocidentais s -bre liberdade artística e direitos estéticos para o espaço da sanha religioe da autoridade dos teólogos nas suas próprias esferas transnacionai .Aqui, os mundos transnacionais da estética liberal e do islão radical en-trechocaram-se nos cenários muito diferentes de Bradfàrd e Carach I,Nova Iorque e Nova Deli. Neste episódio, vemos também como é que O

processos globais relativos a textos com mobilidad e e públicos migrant ,criam eventos implósivos que reduzem as pressões globais a diminutaarenas já politizadas (ver capo 7), produzindo'localidade (cap. 9) segund

novas formas globalizadas.Esta teoria de um corte - ou ruptura - que tem o seu vector mai

saliente na comunicação electrónica e na migração de massas, é nece -sariamente uma teoria do passado recente (ou do presente alargado) ,porque sÇ>mente nestas duas últimas décadas os meios de càmunicaç ãe as rnlgrações foram tão largamente globalizados, ou seja, operaram em

irregularmente transnacionais. Porque penso eu que estateoria é algo mais que um a actualização das velhas teorias sociais da

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ARJUN APPADURAI

rupturas da modernizaçãoO Primeiro, a minha teoria não é teleológica,. \ , d d ' . Iuma receita que ensina como a modernização ha- e pro UZlr umversa -

mente racionalidade, pontualidade, democracia, mercados livres e um

Produto Nacional Bruto maior. Segundo, o eixo da minha teoria não é .

um projecto de engenharia social em larga escala (seja ele organizado

por por instituições internacionais ou outras elites tecnocráti-

cas), mas sim uma prática cultural de todos os dias através da qual setransforma a obra da imaginação. Terceiro, a minha abordagem deixa in-

teiramente em aberto a questão de saber se as experiências com a mo-

dernidade proporcionadas pela comunicação electrónica podem dominar

em termos de nacionalismo, violência e justiça social. Por outras pala-

vras, sou mais profundamente ambivalente quanto ao prognóstico do

que qualquer variante da teoria clássica da modernização que conheça.

Quarto e mais importante, a minha abordagem do corte causado pela for-

ça conjun ta da comunicação e1ectrónica e das migrações de massas é ex- .

plicitamente transnacional '- mesmo pós-nacional -, como sugiro na

última parte do livro. Assim, afasta-se radicalmente da arquitectura dateoria clássica da modernização, que podemos classificar de fundamen-

talmente realista, na medida em que assume a supremacia, tanto meto-

dológica como ética, do Estado-nação .>Não podemos simplificar as coisas imaginando que o global está para

o espaço como o moderno está para o tempo. Para muitas sociedades, a

modernidade é urr:t alhures, tal como o global é uma vaga temporal que

elas têm que conhecer no seu presente. A globalização estreitou a dis-

tância entre elites, deslocou relações essenciais entre produtores e con-

sumidores, quebrou muitos laços entre o trabalho e a vida familiar, obs-

as linhagens entre locais temporários e vínculos nacionais

imaginários. A modernidade parece agora mais prática e menos peda-

gógica, mais experimental e menos disciplinar do que nos anos cinquen-

ta e sessenta, quando era sentida sobretudo (especialmente para quem

não pertencesse à elite nacional) através dos aparelhos de propaganda

dos Estados-nações que acabavam de adquirir a sua e dos

seus crrandes diriaentes como Jawaharlal Nehru, Gamal Abdel Nasser, .o o .

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

Kwame Nkrumah e Sukarno. A mega-retórica modernização para o

desenvolvimento (crescimento económico, alta tecnologia, agricultl,lra

industrializada, ensino,militarizaç,ão) está ainda presente em muitos

países. Mas é frequentemente pontuada, interrogada e domesticada pelas

micronarrativas do cinema, da televisão, da música e de outras formas

de expressão que permitem que a modernidade seja reescrita maisc<?mo

globalização vernacular e menos como uma concessão em larga escala

às políticas nacionais e internacionais. Referi já que aqueles que, como

eu nasceram no seio das classes dirigentes dos novos países, nos anos

e sessenta, tiveram acesso a algo deste experimental,

mas, para muitos 'trabalhadores e para os pobres, este compromisso ex-

perimental com a modernidade é um facto relativamente recente. .

Estas micro narrativas subversivas alimentam também movimentos

oposicionistas que vão desde o Sendero Luminoso, no Peru, até ao Ha-

bitat for Humanity, dos movimentos dos Verdes na Europa até ao na-

cionalismo tâmil no Sri Lanka, dos grupos islâmicos do Egipto àsguer.:

rilhas nacionalistas separatistas da Tchetchénia. Néstes movimentos,

alguns dos quais são repressivos e violentos enquanto outros são demo-

cráticos e pacíficos, podemos ver que a comunicação electrónica de

massas e a mobilização transnacional quebraram o monopólio dos Es-

tados-nações autónomos sobre o projectoda modernização. A transfor":

mação das subjectividades quotidianas através da comunicação electró-

nica e da obra da imaginação não é apenas um facto cultural. Está

profundamente ligada à política através dos novos modos como os vín-

culos, os interesses e as aspirações individuais cada. vez mais intersec-

tam os do Estado-nação.

As esferas públicas da diáspora criadas por esses confrontos já nãosão pequenas, nem marginais, nem excepcionais. Integram-se na dinâ-

mica cultural da vida urbana na maior parte dos países e continentes nos

quais a migração e a comunicação de massas criam conjl,lntamente um

novo sentido do global como moderno e do moderno como global. O fil-

me de Mira Nair, Mississipi Masala, por exemplo, é um duplo épico da

diáspora e da raça que explora o modo como os indianos transformados. .

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e deslocados pela relações raciais no Uganda encaram as complexidadesda raça no Sul do sEstados Unidos sem perderem um sentido de india-nismo-em-movimento. Assistir a encontros de críquete entre a Índia e oPaquistão é, para os que emigraram desses países para os estados doGolfo (ver capo 5), algo que tem a ver com as peculiaridades do nacio-

'nalismo ,da diáspora 'numa política emergente no oceano Índico. Os de-bates intensos sobre língua inglesa e direitos dos imigrantes actualmentea acender-se (de novo) nos Estados Unidos não são apenas mais uma va-riante das políticas do pluralismo: são acerca da capacidade da políticaamericana para conter as políticas de diáspora dos mexicanos no Sul daCalifórnia, dos haitianos em Miami, dos colombianos em Nova Iorque ,'edos coreanos em Los Angeles. Na verdade, como proporei nas minhasobservações conclusivas, é'a aparência largamente difundida de váriostipos de esferas públicas de diáspora que constitui um diacrítico especialdo moderno global. .

Basta por ora de global. Há também um aqui, nestes capítulos. De certo

" modo, foram escritos a parti.r do encontro entre a minha equcação angló-do pós-guerra e as estórias de modernização na ciência social ame-

ricana como teoria do verdadeiro, do bom e do inevitável. Foram tambémescritos de uma perspectiva profissional moldada essencialmente por duasformaturas americanas em investigação dentro das quais fiz o grosso daminha formação e em que passei grande parte da minha vida de académi-

. co: são elas a antropologia e os estudos de área. Embora seja sobre glo-balização, este livro é marcado e restringido pelas disputas das duas últi-mas décadas no seio de ambas estas formações académicas americanas.Por isso as suas ansiedades epistemológicas são decididamente locais,

mesmo que a localidade já não seja o que era (cap. 9).

o olhar da antropologia

A antropologia é o meu arquivo das realidades vividas, todaa espécie de etnografias sobre povos que viveram vidas muito diferentes

24

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO I,

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da minha, hoje e no passado. O arquivo de antropologié!- é uma t'-sombra em todos os capítulos que se seguem. Mas não é por'çste ser in- ) ttrinsecamente melhor do que qualquer outro arquivo disciplinar. Na \,

lidade, nos últimos anos as, críticas a este arquivo até têm sidC)severas e incansáveis. E, porém, o que eu sei ler melhor. Como arquiv0

0t,:'

tem também a vantagem de nos recordar que toda a similitude esconde ", Imais que uma diferença e que similitudes e diferenças se escondem uma"Làs outras sem cessar, por isso o último da fila ainda é uma questão de conr" )veniência ou de garra metodológica. Este arquivo e a sen'sibilidade que el t:'J ' t.favorece no antropólogo predIspõem-me fortemente para '1 ideia de que O,,globalização não é uma 'questão de homogeneização Esta últimq'\noção é o mínimo que ,posso esperar que o leitor tire deste livrq. Masantropologia traz consigo uma profissional para p,!ivilegiar á ) ,cultural co mo diacrítico-chave em muitas práticas (que' a outros 1

parecer simplesmente humanas, estúpidas, calculistas, ou qual( ) '.

quer outra coisa). Como este livro se pretende acerca das dimensões cuia "

turais da globalização, deixem-me definir a especial força que este adjec"(.) , I

tivo comporta na utilização que lhe dou. .... "Muitas vezes me tem intrigado a palavra cultura comÇ> substantivb"",,,i

eminentemente ligado à sua forma adjectiva, ou seja, cultural. Quandó:J é

penso nas razões deste facto, entendo que 'grande parte do problema da-:J

forma substantiva tem a ver com o facto implícito dea cultura ser uma.:,Jde objec to, coisa ou substância, seja física ou A subs-

O:

tancIahzação parece remeter a cultura para o espaço dIscurSIVO da raça, . !, ( \ ,

precisamente a ideia que na origem ela se destinava a combater. Como,j \implica substância mental, o substantivo' cultura favorece a partilha, aO "

concordância e a vinculação que contrasta com factos, como a desigual ,dade de conhecimentos e as diferenças de prestígio entre estilos de vida,Q .e retira atenção às visões do ,mundo e à acção dos marginalizados do-O '

minados. Vista como substância física, cultura começa logo a cheIrar a .biologismos vários, raça inclusive, certamente já superados como cate-\Jgorias científicas. Superorgânico, o termo de Alfred Kroeber, capta bemOambos os lados deste substancialismo, coisa com que não simpatizo. Os O

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ARJUN APPAD URAI

esforços das décadas mais recentes, nomeadamente na antropologia

americana, de escapar a esta ratoeira encarando a cultura como uma for-

ma em grande medida linguística (entendida sobretudo nos termos do es-

truturalismo saussuriano) só em parte evita os perigos de tal substancia-

lização.

. Se cultura como substantivo parece suscitar a associação com uma

substância de um modo que esconde mais do que revela, cultu-

ral, o.adjectivo, transporta-nos para um reino de diferenças, contrastes ecomparações bem mais útil. Este sentido adjectivo de cultura, que se for-

ma no cerne de uma linguísticá. saussuriana sensível ao contexto e focada

nos contrastes, parece-me ser uma das virtudes do estruturalismo que ten-

demos a esquecer na nossa pressa de o atacar pelas suas conotações a-his-

. tóricas, formais, binárias, intelectualistas e lextualistas.

A característica mais valiosa do conceito de cultura é o conce ito de di-

ferença, uma propriedade de certas coisas mais contrastiva do que subs-

tantiva. Embora o termo diferença se tenha apropriado de um vastç> leque

. de associações (principalmente por causa do Uso especial que Jacques

Derrida e os seus seguidores lhe deram), a sua principal virtude é ser .umaheurística útil, capaz de destacar pontos de semelhança e contraste entre

qualquer tipo de categorias: classes, géneros, papéis, grupos e nações. As-

sim, quando apontamos numa prática, distinção, concepção, objecto ou

ideologia, uma dimensão cultural (note-se o uso adjectivo), esta mos a sub-

linhar a ideia de diferença situada, isto é, diferença em relação a uma coisa

local, com corpo e significado. Podemos resumir isto mesmo da seguinte

forma: não vale a pena encarar a cultura como substância, é melhor en-

cará-la como uma dimensão dos fenómenos, uma dimensão que releva da

diferença situada e concretizada. Salientar este dimensionamento da cul-

tura em vez da suasubstanciali dade permite-nos pensar a cultura não tanto

como propriedade de indivíduos e grupos, mas como um ins trumento heu-rístico ao nosso alcance para falarmos de diferença. . .

Contudo, há muitos tipos de diferença no mundo e apenas algumas de-

las são culturais. E introduzo uma segunda componente da minha.. I

proposta sobre a forma àdjectiva da palavra cultura. Sugiro que conside-

26

.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

remos culturais apenas as diferenças que exprimem, ou servem de funda-

mento, à mobilização de identidades de grupo. Esta qualifiáção propor-

ciona um princípio bruto de selecção que incide sobre uma série de dife-

renças relacionadas com a identidade de grupo, dentro. e fora dequalquer t

grupo social. Ao colocar a mobilização das identidades de grupo no ârtla- . i

go doadjectivo cultural, faço na realidade um movimento que, à primeira

vista, parece regressivo, pois é corrio se começasse a pôr a pala vra cultu ra

desconfortavelmente perto da ideia de etnicidade. E isso traz-me a novos

. problemas que ·têm que ser destrinçados.

Antes de ensaiar a destrinça que me permitirá avançar :para a ideia de

vamos rever o caminho percorrido. Ao resistir à ideia de cul-

tura que nos tenta a pensar grupos sociais existentes como culturas, resisti -

. também à forma substantiva cultura e sugeri uma abordagem adjectiva da

cultura que reforça as suas dimensões contextual, heurística e comparati va

e nos orienta para a ideia de cultura como diferença, diferença especial-

mente IJO domínio da identidade de grupo. Sugiro, portanto, que a cultura

é uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a diferença

para gerar diversas concepções da identidade de grupo. ·.-

Depois de rumar para tão perto da ideia de etnia - a ideia de identi-

dade de grupo natUralizada -, é importante que sejamos claros quanto à

relação entre cultura e identidade de grupo que aqui procuro articular. Cul-

tura, sem itálico, pode continuar a usar-se para referir ·a pletora de dife-

renças que caracterizam o mundo actual, diferenças a vários níveis, com

valências diversas e maior ou menor grau de consequências sociais. Pro-

ponho, porém, restringirmos o termo cultura em itálico ao su.bconjunto

destas diferenças, que foi mobilizado para articular os limites da

ça. Como questão definidora de limites, cultura torna-se então uma ques-

tão de identidade de grupo enquanto constituída por certas diferenças en-

tre outras.

Mas não será isto simplesmente uma maneira de tornar etnia equiva-

lente a cultura? Sim e não. Sim, porque nesta acepção cultura não destaca

simplesmente a posse de determinados atributos (materiais, linguísticos

ou territoriais), mas a consciência desses atributos e a sua naturalização

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como essenciais à identidade de grupo (ver capo 7). Ou seja, em vez decair no pressuposto, pelo menos tão velho como Weber, de que a etniaassenta numa espécie de extensão da ideia primordial de parentesco (que,por sua vez, é biológica e genealógica), a ideiaode etnia que proponho giraem tomo de um centro que é a construção e mobilização conscientes eimaginativas das diferenças. Cultura 1, constituindo um arquivo de dife-

renças em aberto, molda-se conscientemente em Cultura 2, o subconjuntodessas diferenças que constitui o diacrítico da identidade de grupo.Mas este processo de mobilizar certas diferenças e de as ligar à iden-

tidade de grupo é também diferente da etnia, pelo menos no sentido maisantigo, porque não depende da extensão dos sentimentos primordiais aunidades cada vez maiores, numa espécie de processo unidireccional, nemcomete o erro de supor que unidades sociais maiores simplesmente vãobuscar os sentimentos de família e parentesco para dar força emocionalàs identidades de grupo em larga escala. Assim, demonstrarei no capí tulo·5 que o críquete na Índia, longe de ir buscar o repertório de emoções exis-tente e o deslocar para um terreno mais vasto, é uma forma em larga escala

que acaba por se inscrever no corpo através de uma série de práticas deescala progressivamente menor. Esta lógica é apenas o reverso da velhaideia primordialista (ou extensionista) de identidade étnica.

A ideia de cultura, enquanto extensiva à organização naturalizada decertas diferenças nos interesses da identidade de grupo através e dentrodo processo histórico, e através e dentro das tensões entre agentes e es-truturas, aproxima-se do que já se chamou concepção instru°mental de et -nia por oposição à concepção primordial. Tenho duas qualificações a fa-

ozer quanto a esta convergência, qualificações que conduzem àanálise do culturalismo. Uma, é que os fins para que se formam as con-

cepções instrumentais de identidade étnica podem ser já de si respostascontra-estruturais a valorizações existentes da diferença: podem ser,portanto, da ordem da razão-valor e não da razão-instrumental, no sen-.tido weberiano. Podem ter uma instrumentalidade puramente voltadapara a identidade em vez de instrumentalidade que, como tantas ve-zes tem sido sugerido, seja extracultural (económica, política ou emo-

28

DIMENSÕES CULTURAIS DA

U I

cional). Por outras palavras, a mobilização dos marcadores das

ças de grupo pode fazer parte de uma contestação de valores relátivo'

à diferença, independentemente das consequências da diferença para "0riqueza, a segurança ou o poder. A minha segunda qualificação quanto .a explicações mais instrumentais é que elas não esclarecem o processoUpelo qual certos critérios de diferença mobilizados .para a idé'ntidade de:)

grupo (por sua vez instrumentalpara

outros objectivos)são

(re)inscritos .Jem sujeitos corpóreos para assim serem sentidos ao mesmo tempo como 'naturais e profundamente incendiários. U

Demos agora mais um passo, da cultura como a culturaucomo dimensão da diferença, para a cultura como identidade de grupo ba- .

seada na diferença, para a cultura como processo de naturalizar um sub-:J

conjunto de diferenças que foram mobilizadas ao serviço da articulação-l

da identidade de grupo. Neste ponto, estamos em posição de avançar para,, )

a questão do culturalismo. . . o . o . o' . URaramente encontramos a palavra culturalismosozinha: surge normal-,

mente acoplada como substantivo com certos prefixos como"bi, eU

inter, para citar apenas os mais frequentes. Mas pode ser útil começar aUusar culturalismo para designar uma característica dos movimentos que'Jenvolvam identidades em construção consciente. Estes movimentos, nos j

Estados Unidos ou noutros lugares, vão normalmente na direcção de Es- ..J

tados-nações modernos que distribuem vários direitos, por mesmode vida e de morte, de acordo com "classificações e políticas relativas à".J

identidade de grupo. Em todo o mundo, perante as actividades de ...J

interessados em enquadrar as suas diversidades étnicas em conjunto s fixos .Je fechados de categorias culturais a que os indívíduos são muitas vezeo '--Jconsignados à força, há muitos grupos a mobilizarem-se conscientemente IJ

segundo critérios identitários. Em termos simples, culturalismo é políticade identidade mobilizadá ao nível do Estado-nação. 'J

Este culturalismo é o meu tema princi pai no capítulo 7, onde procedo IJa uma crítica fundamentada da visão primordialista da violência étnica na 'Jdécada de 1980. Aquilo .que parece um renascimento mundial dos nacio- IJnalismos e separatismos étnicos não é na realidade o mesmo a qu e os jor- J

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Jj.ARJUN APPADURAI

nalistas e os panditas com demasiada frequência chamam «tribalismo» eque implica histórias antigas, rivalidades locais e ódios profundos. Não,a violência étnica que vemos em muitos sítios faz parte de uma transfor-mação, mais vasta: a que o termo culturalismo sugere. O culturalismo,como já referi, é a mobilização consciente das diferenças culturais ao ser-viço de uma política nacional ou transnacional mais ampla. Anda muitas

vezes associado a histórias e memórias extraterritoriais, por vezes ao es-tatuto de refugiado e ao exílio e quase sempre a lutas por um melhqr re-conhecimento por parte de Estados-nações existentes ou .de váriosorga-nismos transnacionais.

Os movimentos culturalistas (pois são quase sempre esforços -de mo-bilização) são a forma mais geral da obra da imaginação e radicam mui-tas vezes no facto ou na possibilidade de migração ou secessão. O maisimportante' é que são tímidos quanto a identidade, cultura e herança,tudo noções que tendem a integrar o vocabulário deliberado dos movi-mentos culturalistas quando lu tam com Estados e outros focos e grupos

,culturalistas. É esta mobilização deliberada, estratégica e populista do

material cultural que justifica chamar culturalistas a esses movimentos,embora possam ter muitas variantes. Os movimentos culturalistas, querenvolvam afro-americanos; paquistaneses na Grã-Bretanha, argelinosem França, havaianos nativos, siques ou francófonos do Canadá, tendema ser antinacionais e metaculturais. No sentido mais lato, como defen-derei na última parte deste livro, O culturalismo é a forma que as dife-renças culturais tendem a assumir na era da comunicação de massas, damigração e da globalização.

Como se processam os estudos de área

O realce antropológico do cultu ral, que é a principal inflexão que que-ro dar ao debate sobre globalização, é, no meu caso, reforçado pela minhaformação e prática em estudos de área, especificamente estudos da ÁsiaMeridional nos Estados Unidos. Não está ainda feita uma análise funda-

30

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DIMENSÕ,ES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

me'ntada da relação entre a emergência da ideia de áreas culturais em an-tropologia, nos Estados Unidos, entre as Grandes Guerras e a formaçãoplena, após a Segunda Guerra Mundial, dos estudos de área como ummeio importante de olhar ' as part es estrateg icamente significativas domundo em desenvolvimento. Contudo, não r:estam dúvidas de que ambasas perspectivas nos inclinam para'Um tipo particular de em que os

grupos e o tipo de vida que têm são marcados por diferenças de cultura;e na formação de estudos de área estas diferenças transitam para uma to-pografia de diferenças culturais nacionais. Portanto, as divisões geográfi-cas, diferenças culturais e fronteiras nacionais tendem a t0I11fI'-se isomór-ficas e desenvolveu-se uma forte corrente que refracta os processosmundiais através desta espécie de mapa nacional-cultural do mundo. Osestudos de área trazem para este imaginário espacial um sentido forte, em-bora por vezes tácito, da impor tância da informação adquiridanesta perspectiva. É esta a razão para as ligações tantas vezes apontadasentre Guerra Fria financiamento aovernat ivo e expansão universitária nac ,

organização dos centros de estudos de área após a Segunda Guerra Mun-diaL Não obstante, dos estudos de área veio o maior contraponto à ilusãoque' é ver sem ponto de vista, subjacente a muita da ciência social canó-nica. Foi este aspecto da minha formação que me impeliu a situar a minhagenealogia do presente global na área que melhor conheço: a Índia. '

Uma especial ansiedade rodeia agora as estruturas e ideologias dos es-, tudos de área nos Estados Unidos. Reconhecendo que os estudos de área

andam de certo modo ligados a um quadro mundial estra-teaicamente submetido às necessidades de política externa dos Estadosc ,Unidos entre 1945 e 1989, figuras de proa do mundo das universidades,fundações, painéis de sábios e mesmo do governo tornaram claro que a

velha maneira de realizar estudos de área não faz sentido no mundo pos-terior a 1989. Assim, aos 'críticos de esquerda dos estudos de área, muitoinfluenciados pelos trabalhos de Edward Said sobre orientalismo, junta-ram-se os liberalistas e advogados da liberalização, impacientes com oque, pejorativamente, designam po r estreiteza e fetichismo histórico dosespecialistas de estudos de área_, É costume considerar os es'pecialistas em

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estudos de área obstáculos a todos os estudos, sejam eles comparativos ouda contemporaneidade, versem a sociedade civil ou o mercado livre. Claroque uma crítica tão demolidora e tão súbit a não pode ser inteiramente justae a estranha miscelânea dos seus críticos sugere que a formação em estu-dos de área pode estar a ser vítima de uma falha mais importante da aca-demia americana: a incapacidade de mostrar uma imagem mais alargada

e mais presciente do mundo após 1989.Em estudos de área, a tradição é uma espada de dois gumes. Numa so-

ciedade que notoriamente a excepção e uma infinita preocupaçãocom a «América», esta tradição tem sido parco refúgio para um estudosério das línguas estrangeiras, de visões do mundo alternativas e de pers-pectivas das grandes transformações socioculturais fora da Europa e dosEstados Unidos. pemonizados por uma certa tendência para a filologia(no sentido restrito, lexical) e para um excesso de identificação com as

regiões da sua especialidade, os estudos de área, não obstante, têm sidoum dos poucos contrapesos sérios à incansável tendência para marginali-

zar partes substanciais do mundo na academia americana e na sociedadeamericana em geral. Contudo, talvez os estudos de área tenham por tra-dição instalar-se demasiado confortavelmente nos seus mapas do mundo,sempre seguros das suas práticas especializadas, insensíveis aos processostransnacionais, tanto hoje como no passado. Por isso, impõem-se semdú-

vida a crítica e a reforma, mas como podem os estudos de área contribuirpara melhorar o modo como normalmente se geram as imagens do mundonos Estados Unidos?

Da perspectiva avançada aqui e no resto deste livro, os estudos de áreasão uma maneira salutar de nos lembrarmos de que a globalização é em

si um processo profundamente histórico, desigual e mesmo localizador.Globalização não implica necessariamente ou sequer frequentemente ho-mogeneização ou americanização e, na medida em que sociedades dife-rentes têm modos diferentes de apropriar os materiais da modernidade, é.

amplo o espaço para o estudo aprofundado de geografias, histórias e lín-guas específicas. A minha análise, nos capítulos 3 e 4, da relação entre

, - história e genealogia não pode ser feita sem um forte sentido das realida-

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO o'i

v Ides da longue durée que sempre produzem geografiás esp:cíficas: tanto 0

, reais como imaginárias. Se a genealogia das formas culturaiS trata da s'ua' Ocirculação nas regiões, a história destas formas trata da ( ) I

as vai integrando nas práticas locais. A própria interacção de formas hiS-

tóricas e genealógicas é desigual, 'diversíficada e contingent.e. Neste O,tido, a história, a impiedosa disciplina do contex to (na O 'de E. P. Thômpson) é tudo. Mas reconhecê-lo não é uma garantia 0de localismo do tipo que por vezes se 'associa aos estudos de área . Seja ( )

como for, os estudos de área são uma técnica de investigação especlfica- ( )

mente ocidental, dificilmente poderão assumir-se como simpÍ'es espelhodo Outro civilizacional. O que é preciso reconhecer, se quisermOS revi ta- ( ) ,lizar a tradição dos estudos de área, é que a própria' localidade éu m pro- O

histórico e que as histórias que permit em a emergência de localidades Uacabam por ficar sujeitas à dinâmica do global. Desta te.se, cujo ponto,cul- "()

minanteé recordar que o local em nada é simples, se encarrega o capItulo oinal deste'livro.

A revisão múltipla dos estudos de uma tradição em que tenho es-tado mergulhado nos últimos vinte e cinco anos, está subjacente à presen-ça de dois capítulos sobre a Índia na parte central deste livro. Estes capí-tulos sobre o censo e sobre o críquete, servem de contraponto a essesoutr;s que de outro modo pod,eriam parecer, .bem .. globais.Mas apresso-me a rogar que a lndia - nes te lIvro - nao seja comoum mero caso, exemplo ou modelo de algo mais lato do que ela. E antesum sítio para examinarmos como emerge a localidade num mundo glo-balizado, como os processos coloniais subscrevem as políticas contempo-râneas, como a história e a genealo§ ia se mutuamen,te e como ,

factos globais assumem forma local . Nesse sentido, estes capItulos - e" as frequentes invocações da .Índia ao longo do livro - não são sobre. a

Índia (tomada como facto natural), são sobre os processos de que emergIUa Índia contemporânea. Estou ciente da ironia (até contradição) de usarum Estado-nação como âncora de referência num livro dedicado à

" !ização e 'animado pelo sentido do fim da era do Mas aqUi

a minha competência e as minhas limitações são dOIS lados da mesma

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moeda e convido o leitor a ver a Índia como uma ópúca, e não' como uJ 'facto social reificado ou um reflexo nacionalista em bruto, !

Fiz esta digressão em do facto de que qualquer livro so-'bre globalização é um suave exercício de megalomania, em especial quandoproduzido nas circunstâncias relativamente privilegiadas da investigaçãouniversitária americana. Afigura-se importante identificar as formas de co-nhecimento que permitem que essa megalomaniase articule. No caso,estas formas - a antropologia e os estudos de área - predispõem-me, porhábito, a fixar práticas, espaços e paises num mapa de diferenças estáticas.Isto é, à revelia da intuição, um perigo, mesmo num livro como este, cons-cientemente concebido dentro do interesse pela diáspora, a desterritoriali-zação e a irregularidade das relações entre nações, ideologias e movimentossociais. . . . 1

\,

Ciências sociais depois do patriotismo ·

A parte final do aqui e agora é um facto do mundo moderno que tem 'desafiado alguns dos melhores pensadores contemporâneos das ciênciassociais e humanas: a questão do Estado-nação, a sua história, a sua crise 'actual, as suas prospectivas. Não comecei a escrever este livro com a cri- 'se do Estado-nação como preocupação principal. Mas nos ·seis anos emque foram escritos os seus capítulos, fui-me convencendo de que o Esta-do-nação, como forma política moderna complexa, está a dar as últimas.Não é de modo algum uma evidência nem se colhem daí os frutos. Seique nem todos os Estados-nações são iguais no que respeita ao imaoinário

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nacIOnal, aos aparelhos de Estado ou à solidez do hífen entre os dois. Mashájusti ficaçã o para o que pode parecer uma visão ·reificada deste Estado--nação neste livro. Os com todas as suas importantes di-ferenças (e só um louco misturaria o Sri Lanka com a Grã-Bretanha), sófazem sentido se fizerem parte de um sistema. Este sistema seconsiderado um sistema de diferenças) mostra-se mal ,equipado para lidarcom as diásporas combinadas de pessoas e imagens que marcam o aqui

34 III

I

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

e agora. Os Estados-nações, enquanto unidades num complexo sistema in-teractivo, não têm granqes.hipóteses de servir de árbitros a lan'go prazoda relação entre globalidade e modernidade. Por isso insinuo, no meu tí-tulo, que a modernidade não tem peias.

. A ideia de que alguns Estados-nações,.estão em crise é um cavalo-de--batalhà nó campo da política comparada e foi, em certo sentido, a justi-

ficação de muita teoria da modernização, especialmente nos anos sessen-ta. A ideia de que há Estàdos fracos, doentes, corruptos ou moles anda noar há várias décadas (lembram-se de Gunnar Myrdahl?). Mais recente-mente, tem tido aceitação geral a ideia do nacionalismo como uma doen-

r

ça, em particular quando se trata do nacionalismo alheio. A ideia de quetodos,os Estados-nações foram de algum modo demonizados por movi- ,mentos globais de armas, dinheiros, doenças e ideologias também não énovidade nenhuma mi era das multinacionais. Mas a ideia de que o própriosistema de Estado-nação está em risco não é lá muito popular. Neste livro,a minha atenção permanente ao hífen que liga Estado a nação integra-se

na construção da: tese do fim próximo do Estado-nação. Esta ideia, que sesitua algures entre um diagnóstico e um prognóstico, entre uma intuição .e uma convicção, precisa de ser clarificada.

Primeiro, tenho que distinguir entre as componentes ética e analíticada minha tese. Na frente ética, sinto-me cada vez mais inclinado a ver nosmodernos aparelhos governamentais uma propensão. para se perpetuarem,se empol arem· para se tomare m violentos e corruptos. Aqui, tenho com-panhia, à esquerda e à direita.(A questão ética com que muitas vezes meconfronto é: se o Estado-nação desaparece, que mecanismo irá assegurara protecçãodas minorias, a distribuição mínima de direitos democráticose as razoáveis possibilidades de um crescimento da sociedade civil? Res- .pOI1do que não sei, mas admiti-lo não é bem recomendar eticamente umsistema que enferma de doença crónica. Quanto às formas e possibilidadessociais alternativas, existem hoje formas e combinações sociais que po-deriam conte r a de formas mais dispersas e cttxersas de fidelidadee filiação t ransnacional) Esta ideia faz parte da tese do" capítulo 8 , embora 'eu esteja pronto a admitir que Ocaminho que levam os diversos movimen-

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tos transnacionais em direcção a formas sustentadas de governação trans-nacional não é muito claro. Prefiro, porém, o exercício de procurar - oumelhor, imaginar - estas possibilidades alternativas a uma estratégia queconsidere uns Estados-nações mais saudáveis do que outros, assim suge-rindo diversos mecanismos de transferência de ideologia. Esta última es-

tratégia repõe a política de modernização-e-desenvolvimento, com o mes-mo triunfalismo subjacente e as mesmas perspectivas nadasaudáyeis.

. Se a frente ética da minha tese é necessariamente difusa, a frente ana-lítica é um tanto mais nítida. Um exame, mesmo apressado, das relaçõesdentro e entre os mais de 150 Estados-nações'que são membros actuaisdas Nações Unidas as guerras fronteiriças, as guerras culturais,a inflação galopante, a imigraçãoem massa de populações ou as fugas gra-ves de capital ameaçam a soberania em muitas delas. Mesmo onde a so-berania do Estado está aparentemente intacta" a legitimidade do Estado é,

muitas vezes, incerta. E mesmo em Estados-nações tão aparentemente se-

guros como os Estados Unidos, o Japão e a Alemanha, as discussões sobreraça e direitos, nacionalidade e lealdade, cidadania eautoridade já não sãoculturalmente periféricas. Enquanto o argumento da longevidade da formaEstado-nação se baseia nestes casos aparentemente sólidos e legítimos, ooutro argumento é inverso e baseia-se nos novosetnonacionalismos domundo, nomeadamente os da Europa de Leste. Nos Estados Unidos, aBósnia-Herzegovina é quase sempre apontada como o principal sintomado facto de o nacionalismo estar vivo e doente, embora se invoquem aomesmo tempo as democracias ricas para mostrar que o Estado-nação estávivo e de saúde.

Dada a frequência com que se usa a Europa Ocidental para demonstrarque o tribalismo é profundamente humano, que o nacionalismo dos outrospovos é tribalismo com maiúsculas e que a soberania territorial continuaa ser o grande objectivo dos grupos étnicos, deixem-me propor uma in-terPretação alternativa. A meu ver, a Europa de Leste tem sido singular.mente distorcida em populares análises do nacionalismo na imprensa e na

. academia nos Estados Unidos. Em vez de caso modal das complexidadesde todos os etnonacionali smos contemporâneos, a Europa de Leste, e a sua

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

face sérvia em particular, têm sido usadas para demonstrar o contiI}uadoviaor-dos nacionalismos em que terra, língua, religião, história e sangue

conaruentes, um exemplo de antologia do que é o nacionalismo. Claroque o é fascinante na Europa de Leste, é que alguns dos seu s ideól.ogos

de direita convencera'm os jornais do Ocidente liberal de que o naCIOna-lismo é políti ca dos primórdios, quando' a verdadei ra quest ão é por-que o fizeram parecer isso mesmo. Assim, a Europa de t?rna-.se porcerto um caso fascinante e urgente de muitos pontos de VIsta, mclumdo

facto de precisarmos de ser cépticos quando os especialistas aqrmam terencontrado tipos ideais em casos reais.

Na maior parte dos casos de antinacionalismo, secessão, supranacio-nalismo ou revivalismo étnÍco em larga escala, ofactor comum é mais aautodeterminação doque a soberania territorial propriamente dita. Mesmonos casos em que o parece ser um factor fundamental, como a _Palestina, poder-se-ia afirmar que as discussões sobre terra e território são

de facto motes para teses que substancialmente se ocupam do poder, dajusti,ça e da autodeterminação. Num mundo de gente em demercantilização global e Estados incapazes de outorgar dIreItos baslcosaté às suas populaçÕes de maioria étnica (ver capo 2), a sobera nia territo-rial é uma justificação cada vez mais difícil paraesses Estados-nações quecada vez mais dependem da mão-de-obra, dos cérebros, ,das armas e dos

,soldados estrangeiros. É que, para os movimentos contranacionalistas, asoberania territorial é o idioma plausível das suas aspirações, mas não po-demos confundi-la c om uma lógica fundadora ou com a sua inquietaçãoúltima. Fazê-lo é cometer o que chamarei a Falácia Bósnia, um erro que

(a) tomar as lutas,étnicas da Europa de Leste por tribalistas.e pri-: mordiais, erro "em que o New York Times é campeão, e (b) consolIdar o _" , erro tomando o caso da Europa de Leste por caso modal de todos os na-

cionalismos emergentes. Sair da Falácia Bósnia requer duas concessõesdifíceis: primeiro, que os sistemas políticos das nações ricas do ,Norte es-tivessem também em crise; segundo, que os nacionali smos emmuitas partes.do mundo tivessem por base patriotismos que nãó sejam ex-clusiva nem fundamentalmente territoriais. Os argumentos a favor destas

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concessões inspiram muitos dos capítulos deste livro. Ao defendê-los,nem sempre achei fácil manter a distinção entre as perspectivas analíticae ética do futuro do Estado-nação, embora o tenha tentado.

No momento em que o Estado-nação entra numa crise terminal (se osmeus prognósticos se revelarem correctos), por certoseria de e sperar queos materiais para um imaginário pós-nacional estivessem já presentes.

Neste ponto, penso que devemos prestar particular atenção à relação entrecomunicação de massas' e migração, dois factos na base do sentido quedou à política cultural do moderno global. Precisamos, em particular, deter em atenção tudo o que tem emergido como esfera pública de diáspora.Benedict Anderson fez-nos um favor ao identificar o modo como certasformas de comunicação de massas, nomeadamente as que se referem a jor- .nais, romances e demais comunicação impre ssa , desempenharam o papelcapital de imaginar a nação e facilitar a difusão desta forma de mundo co-lonial na Ásia e noutros pontos. A minha tese geral é que há uma relaçãosemelhante a descobrir entre a obra da imaginação e a emergência de um

mundo político pós-nadonal. Sem o benefício da reflexão a posteriori(que temos para o percurso global da ideia de nação), é difícil equacionarcom eficácia o papel da imaginação numa ordem pós-nacional. Mas comoos meios de comunicação de massas estão cada vez mais dominados pelacomunicação electrónica (e assim desligados da capacidade de ler e es-crever) e como esses meios cada vez mais ligam entre si produtores e pú-

-blicos para além das fronteiras nacionais, como os próprios públicos dãoinício a novas conversas entre os que se deslocam e os que ficam, desco-brimos um número crescente de esferas-públicas de diáspora.

Estas esferas da diáspora andam muitas vezes ligadas a estudantes eoutros intelectuais interessados no nacionalismo longínquo (como os ac:"

tivistas da República Popular da China). A instauração da maioria negrana África do Sul abre um novo tipo de discurso de democraCia racial em

bem como nos Estados Unidos e nas Caraíbas. O mundo islâmicoé o exemplo mais conhecido de todo um leque de debates e projectos quepouco têm a ver com fronteiras nacionais. Religiões que no passado foramresolutamente nacionais servem agora com vigor missões glObais e clien-

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III

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOllALlZAÇÃO

telas de diáspora: o hinduísmo global da década de oitenta é o melhor

_ xemplo isolado deste processo. Os movimentos activistas em torn"o doambiente, das questões femininas e dos direitos humanos, na sua genera-lidade, criaram uma esfera de discurso transnacional, muitas vezes assenteria autoridade_ moral de refugiados, exilados e outros des locados. Grandesmovimentos separatistas transnacionais, como os. siques, os c urdos e os

tâmiles do Sri Lanka constroem a imagem de si em sítios de todo o mundo,onde quer que tenham membros suficientes para que aPareçam múltiplascélulas numa esfera pública de diáspora maior.

A onda de debates sobre multiculturalismo que tem percorrido os Es-tados Unidos e a Europa é seguramente testemunha da !ncapacidade deimpedir as suas populações minoritárias de relaciona rem com círculosmais amplos de filiação religiosa ou étnica. Estes e outros exemplos su-gerem que a era em que podíamos supor que as esferas públicas viáveissão típica, exclusiva ou necessariamente nacionais pode estar a chegar ao

fim.

As esferas públicas de diáspora, cheias de diversidade entre si, são oscadinhos de uma ordem política pós-nacional. O motor do seu discursosão os meios da comunicação de massas (tanto interactiva como expres-siva) e o movimento dos refugiados, activistas, estudantes e trabalhadores.Pode muito bem ser que a ordem pós-nacional emergente se revele nãoum sistema de unidades homogéneas (como o actual sistema de-Estados--nações), mas um sistema baseado nas relações entre unidades hetero-géneas (certos movimentos sociais, certos grupos de interesses, certosgrupos profissionais, certas organizações não governamentais, certas co-lecti vidades armadas, certos corpos judiciais). O desafio que se põe a estaordem emergente é saber se essa heterogeneidade é coerente com conven-

"" " ções mínimas de norma e de valor, o que não requer uma adesãO estrita .ao contrato social liberal do Ocidente moderno. A resposta a esta questãofatal não virá de um fiat académico, mas de negociações (tanto ordeirascomo violentas) entre imaginados por esses diferente s interes-ses e movimentos. A curt6- prazo, como já podemos ver, é provável queseja um mundo de incivilidade e violência cada vez maiores , A longo pra-

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. ZO, livres dos constrangimentos da forma nação, podemos vir a descobrir

que a liberdade cultural e a justiça fundamentada no mundo não pressu-

põem a existência uniforme e generalizada do Estado-nação. Esta poss i-

bilidade inquietante poderá ser o' mais estimulante dividendo .de viver a

modernidade sem peias.

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PRIMEIRA PARTEFluxos Globais

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Disjuntura e diferença

na economIa cultural global

to mero conhecimento dos factos do mundo moderno basta para notar

,'que ele é agora um sistema interactivo num sentido espantosamente novo.

Histori<idores e sociólogos, em particular os que se interessam pelos pro-

cessos translocais (Hodgson, 1974) e pelos sistemas mundiais associados

ao capitalismo (Abu-Lughod, 1989; Braudel, 1981-84; Clirtin, Wal-

lerstein, 1974; Wolf, 1982), sempre souberam que o mundo há muitos sé-

culos que é um conglomerado de interacções em larga escala. Contudo, ·

o mundo de hoje implica de uma nova ordem e de uma nova

intensidade. No passado, as transacções entre grupos sociaiseram em geral restringidas, umas vezes por factores de geografia e eco-

logia, outras pela resistência activa à interacção com o Outro (como na .

China durante a maior parte da sua história e no Japão antes da Restau-

ração Meiji). Sempre que houve transacções culturais duradouras em·

grandes zonas do globo, elas estiveram normalmerite relacionadas com as

viagens de longo curso das mercadorias (e dos mercadores a elas mais ·

ligados) e de viajantes e exploradores de todos os tipos CHeIros , 1988;

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1963). As duas princip·ais forças de interacção cultural duradouraantes deste século foram a gue rra (e os grandes sistemas políticos que por

. vezes a geraram) e as religiões de conversão que por vezes tiveram como. foi ,0. caso do islão, a guerra como um dos seus instrumentos delegItImos. Portanto, entre viajantes e mercadores, peregrinos e conquista-dores, o mundo tem visto muito tráfego cultural de longo (e longo- I

prazo). Até aqui, é tudo evidente. . I

poucos negarão que, dados os problemas de ·tempo e de distânciae as tecnologias para a gestão de recursos em espaços muito vas-tos, os tramItes culturais entre grupos socialmente e espacialmente sepa- I

rados foram efectuados com grande custo e só com muito esforço se pro-longaram no tempo. As forças de gravidade cultural parecem puxar

para longe da formação de ecúmenos em larga escala, sejam elesrehgIosos, comerciais ou políticos, para atr eções de intimidade e interessede escala menor.

. Algures nos séculos transactos, parece rer mudado a natureza deste cam-. . po. Empartepor causa da expansão dos interesses marítimos

OCIdentaIS a seguir a 1500, em parte por causa do" desenvolvimento relati-vamente autónomo de formações sociais vastas e agressivas nas Américas

. (como os Astecas e os Incas), na Eurásia (como os Mongóis e s seus des-os Mogóis e os ,Otomanos), no Sueste Asiático insular (como os

e nos r.einos da Africa pré-colonial (como o Daomé), começa aum de ecúmenos sobrepostos, em que conglomerados de

conquista e migração se mo·stram capazes de criar vín-mtersocletais duradouros. Este processo foi aceleradO pelas transfe-

rencIas de tecnologia e pelas inovações do fim do século XVIII e século XIX

(e. .Bayly, 1989), que criaram ordens coloniais complexas com base em

europeus se difundiram no mundo extra-europeu. Este conjuntomtrIncado e de mundos eurocoloniais (primeiro espanhóis eportugueses, maiS tarde sobretudo ingleses, franceses e holandeses) esteve

base de um permanente tráfego das ideias de povo e indivíduo, as quaiscnaram por sua vez as comunidades imaginadas (Anderson, 1983) dos re-centes nacionalismos em todo o mundo.

44 .

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO u

UCom aquilo a que Benedict Ande rson chamou «capitalismo impresso», U

lançou-se no mundo um novo poder, o poder da literacia de massas e darespectiva produção em -larga escala de p rojectos de afinidade étnica isen- l )

tos, o que é notável, da necessidade de comunicação presencial ou mesmode comunicação indirectaentre pessoas e grupos. ° cto de ler coisas em Uconjunto dispôs o cenário para movimentos baseados num paradoxo: o pa- Uradoxo do primordialismo construído. Claro que há muito mais coisascontidas no percurso do colonialismo e nos nacionalismos que ele geroudialecticamente (Chatterjee, 1986), mas a questão das etnicidades cons-truídas é sem dúvida uma fase crucial deste percurso.

A revolução do impresso e as afinidades culturais e diá-logos por ela desepcadeados foram, porém, apenas modestos precursoresdo mundo em que hoje vivemos; Com efeito, no século que passou· veri-ficou-se uma explosão tecnológica, dominada em grande medida pelostransportes e pela inforniação que faz com que as interacções de um mun-

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do dominado pela imprensa pareçam tão duras de ganhar e tão fáceis de · U

eliminar como pareciam :as formas anteriores de tráfego cultural à luz darevolução da imprensa. É que, com o advento do navio a vapor, do auto-móvel, do avião, da fotografia, do computador e do telefone, entrámosnuma fase inteiramente nova das relações de vizinhança, mesmo daqueles

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que estão muito distantes de nós. Marshall McLuhan, entre outros, pro-curou teorizar este mundo como «aldeia global», mas as teorias·como estaparecem ter sobrestimado as implicações comunitárias da nova ordem da

comunicação (McLuhan e Powers, 1989). Sabemos agora que, quando setrata de meios de comunicação, de cada vez que queremos falar de aldeiaglobal, há que não esquecer que eles criam comunidades «sem sentido do

lugar» (Meyrowitz, 1985). ° mundo em que hoje viVemos é rizomático'o ., (Deleuze e Guattari, 1987) ou mesmoesquizofrénico; requer teorias dO

desenraizamento, da alienação e da distância psicológica entre indivíduose grupos por um lado, das fantasias (ou pesadelos) da contiguidade elec-

. trónica por outro. E aqui aprox imamo-nos da problemática central dos·'''\'processos culturais no mundo actual.

Portanto, a curiosidade pela Ásia que Pico Iyer despertou recentemente

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(1988) é de certo modo produto de uma confusão entre uma inefável

mcdonaldização do mundo e o jogo muito mais subtil das trajectórias in-

dígenas do desejo e do medo com fluxos globais de pessoas e coisas. Com

· efeito, as próprias impressões de Iyer testemunham que, se é certo que está

a emergir um sistema cultural global, ele está porém cheio de ironias e re-

sistências, por vezes camufladas de passividade e de um apetite insaciável '

do mundo as-ático pelas coisas do Ocidente.A própria explicação de Iyer para a estranha afinidade filipina pela

música popular americana é um rico testemunho do culto global do hi-

per-realista, pois, de certo modo, as versões filipinas canções popu-

lares americanas não só são as mais ouvidas nas Filipinas como .são mais

perturbadoramente fiéis às suas origens do que o são hoje nos Estados

Unidos. Toda uma nação parece ter aprendido a mima·r Kenny Rogers

e as irmãs Lennon, como um grande coro Motown asiático. Mas ame- I

ricanização é por certo um pálido termo para aplicar a esta situação, pois

não só são mais filipinos do que americanos a cantar versões perfeitas .

de algumas canções americanas (muitas vezes do passado americano), I

como também se verifica, evidentemente, que o resto das suas vidas não

está em completa sincronia com o mundo de referência de onde são ori-· ginárias as cançõ es.

Em mais um passo para a globalização no que Frederic Jameson cha-

mou recentemente «nostalgia do presente» (1989), estes filipinos contem-

. pIam um mundo·passado que nunca perderam. Aqui reside uma das gran-

des ironias da política dos fluxos culturais globais, especialmente no

campo do entretenimento e diversão. Faz um jogo demolidor com a he-

gemonia da eurocronologia. A nostalgia americana alimenta o desejo fi-

lipino representado como reprodução hipercompetente. Trata-se de nos-

talgia sem memória. É evidente que o paradoxo tem as suas explicações,· e são histórica s; intac tas, elas p õem a nu a questão da missionação ame-

ricana e da violação política das Filipinas de que resultou, entre outras coi-

sas, a criação de uma nação de americanos a fingir que aturaram durante

tanto tempo uma primeii'\dama que tocava piano enquanto os bairros da

lata se expandiam e degffldavam em Manila .o s mais radicais dos pós-

46

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

-modernos talvez achem que não é para ádmirar, porquanto na crónica das.

peculiaridades do capitalismo tardio, o pastiche e a nostalgia sã.o modos

essenciais de produção e recepção de imagens. Os próprios Americanos

já não estão bem no presente quando tropeçam nas megatecnologias do

século XXI com roupagens defilm no r dos anos sessenta, de jantares dos

anos cinquenta, de moda dos anos quarenta, de dos anos trinta, de

danças dos anos vinte e assim por diante, ad úzfinitum.No que respeita aos Estados Unidos, poder-se-ia sugerir que a ql1estão

já não é nostalgia, ma.s um imaginaire social amplamente construído sobre

reposições Jamesonnão hesitou em relacionar a política da nostalgia com. J

a sensibilidade mercantil pós-moderna, e por certo tem razao (1983). As

guerras da droga na Colômbia recapitulam os suores do Vietname, co m

Ollie.North e a sua sucessão de máscaras Jimmy Stewart esconde John

Wayne que esconde Spiro Agnew e todos eles se transfiguram em Syl-

vester Stallone, que ganha no Afeganistão .-, satisfazendo ao mesmo

tempo a secreta inveja que a América tem do imperialismo soviético e a .

reposição (desta vez com happy ending) da guerra do Vietname. Os Rol-

ling Stones, quinquagenários, circulam entre rapaziada de dezoito anos

que parece não precisar do mecanismo de nostalgia para embarcar nos he- .

róis dos seus pais. Paul McCartney vende os Beatles a novos públicos co-

lando a sua nostalgia oblíqua ao desejo deles de novidade a cheirar a ve-

lho. Dragnet regressa travestido de anos noventa, bem com9 Adam-12,

para não falar de Batman e de Missão: Impossível, tudo em roupagem tec-

nológica, mas notavelmente fiel à atmosfera dos originais.

O passado deixou de ser uma pátria a que regressar numa simpies ope-

ração de memória. Tornou-se um armazém ·sincrónico de enredos cultU-

rais, uma espécie de central de ccisting temporal a que recorrer apropria-

damente, conforme o filme a realiúr, a peça a encenar, os reféns a salvar.

Tudo isto está em forma para a orrida, se seguirmos Jean Baudrillard ou

Jean-François Lyotard ao interior de um mundo de signos totalmente de-

satracados do seu significado social (todo o mundo é uma Disneylândia).

Mas aostaria de suaerir que a possibilidade aparentemente crescente deo o .

substituir todo um período ou postura por outros nos estilos culturais do

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capitalismo avançado está ligada a forças globais mais vastas que muitofizeram para mostrar aos Americanos que o passado é normalmente outropaís. Se o teu presente for o futuro deles (como em tanta teoria de moder-nização 'e em muitas fantasias turísticas gratificantes), se o futuro deles foro teu passado (como no caso dos virtuosi filipinos da música popular ame-ricana), então o teu passado pode apresentar-se como uma simples moda-

lidade normalizada dõ teu presente. Assim, embora alguns antropólogoscontinuem a relegar os seus Outros para espaços temporais que eles pró-prios não ocupem (Fabian, 1983), as produções culturais pós-industriaisentraram numa fase pós-nostálgica. '

O ponto crucial, porém, é que já não são os Estados Unidos quem puxa

os cordelinhos de um sistema mundial de imagens, pois não passam deum elo de ,uma complexa construção transnacional de paisagens imaginá-rias. O mundo em que hoje vivemos caracteriza-se por um novo papel daimaginação na vida social. Para o compreendermos, precisamos de recu-perar a velha ideia de imagem, em especial as imagens produzidas meca-

nicamente (no sentido da Escola de Frankfurt); a ideia da comunidadeimaginada (no sentido de Anderson); e a ideia francesa do imaginário(imaginaire) como paisagem construída de aspirações colectivas, que nãoé mais nem menos real do que as representações colectivas de ÉmileDurkheim, agora mediatizadas pelo prisma compleXo dos meios de comu-nicação modernos.

Imagem, imaginado, imaginário: são tudo termos que nos orientamparaalgo de fundamental e de novo nos processos culturais globais: aimaginação como prática social. Já não é mera fantasia (ópio do povocuja verdadeira função está alhures), já não é simples fuga (de um mun.:.

do definido principalmente por objectivos e estruturas mais concretos),já não é passatempo de elites (portanto, irrelevante para as vidas da gen-te comum), já não é mera contemplação (irrelevante para novas formasde desejo e de subjectividade), a imaginação tornou-se um campo orga-.nizado de práticas sociais, uma maneira de trabalhar (tanto no sentidodo labor como no de prática cultllfalmente organizada) e uma forma denegociação entre sedes de acção (fl\divíduos) e campos de possibilidade

48 :I

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

globalmente definidos. Este desatar da imaginação liga o jogo do pasti-che (em certos cenários) ao terror e à coerção dos Estados e doS' seuscompetidores. A imaginação está agora no centro de todas as formas deacção, é em si um facto social e é o componente-chave da nova ordem 'global. Mas, para o podermos afirmar com sentido, temos que abordar

outras questões.

Homogeneização e heterogen.eização

o problema no centro das interacções globais de hoje é a tensão entrehomogeneização cultural e heterogeneização cultural. Poder-se-ia invocartoda uma série de factos empíricos a favor dq lado da homogeneização emuitos deles vieram do lado -esquerdo do espectro dos estudos sobre co-municação (Hamelink, 1983; Mattelart, 1983; Schiller, 1976), alguns deoutras perspectivas (Gans, 1985; Iyer, 1988). Atese da

ramifica-se quase sempre, quer na- tese da americanização, quer na teseda mercantilização e quase sempre as duas andam intimamente ligadas.O que estas posições não consideram é que pelo menos tão rapidamentequanto são trazidas para as novas sociedades, as forças de várias metró- ,poles tomam-se indígenas de uma maneira ou de outra; isto é verdade paraa música e para os tipos de habitação como o é para a ciência e o terro-rismo, os espectáculos e as constituições . A dinâmica desta indigenizaçãomal começou a ser explorada sistematicamente (Barber, 1987; Feld, 1988;

1987, 1989; Ivy, 1988; Nicoll, 1989; Yoshimoto, 1989) e muitomais há a fazer. Mas há que notar-que para o povo de Irian Jaya a indo-nesianização pode ser mais preocupante dó que a americanização, comO

'''\ opode ser aniponização para os Coreanos: a indianização para osgaleses, a vietnamização para os Cambojanos e a russificação para 6 povoda Arménia soviética e para as repúblicas bálticas. Esta lista de medos al- ,ternativos à americanização poderia ser muito maior, mas não é um in-ventário amorfo: para comunidades de menor há sempre o medoda absorção cultural por comunidades de maior escala, sobretudo pelos vi-

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zinhos. Uma comunidade imaginada pelo homem é mais uma prisão po-lítica para o homem . .

Esta dinâmica escalar, que tem difundido manifestações globais; estátambém ligada à relação entre Estados e nações, a que voltarei mais tarde.De momento,.notemos que a simplificação destas muitas forças (e medos)de homogeneização pode também ser explorada por Estados-nações rela-

tivamente às suas próprias minorias mediante apresentarem a mercantili-zação (ou o capitalismo, ou qualquer outro inimigo externo) como maisreal do que a ameaça das suas próprias estratégias hegemónicas.

. A nova economia cultural global tem que ser considerada uma ordemcomplexa, estratificante, disjuntiva, que já não podemos compreendernos termos dos model os preeXistentes (mesmo os quepodem explicar centros ' e 'periferias múltiplos). Também não é suscep-tível de modelos simples de promoção-retracção (em termos de teoriadas migrações), ou de excedentes e défi ces (como nos modelos tradicio-nais de balança comercial), ou de consumidores e produtores (como na

maior parte das teorias neomarxistas do desenvolvimento). Mesmo asteorias mais complexas e flexíveis do desenvolvimento global surgidasda tradição marxista (Amin, 1980; MandeI, 1978; Wallerstein, 1974;\Volf, 1982) são inadequadamente rebuscadas e não conseguiram enten-der-se como que Scott Lash e John Urry chamaram capitalismo qesor-ganizado (1987). A complexidade da economia global actual tem a 'vercom certas disjunturas fundamentais entre economia, cultura e política

, . , . 1que começamos Ja a teonzar .

Proponho um esquema elementar para explorar essas disjunturas: ver arelação entre cinco dimensões de fluxos culturais globais a que podemoschamar (a) etnopaisagens, (b) mediafaisagens, (c) teenopaisagens,. (d) fi-

nanciopaisagens e Ce) ideopaisagens . Paisagem como sufixo pemute-nosapontar a forma fluida, irregular destes horizontes, formas que caracterizamo capital internacional tão profundamente como a moda internacional dovestuário. termos com paisagem como sufixo comum indicam tarn-'

bém que estas não são relações object ivamente dadas que parecem o mesmode todos os ângulos de visão, são construções profundamente perspectiva-

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DIMENSÕES DA GLOBALIZAÇÃO

das, inflectidas pela localização histórica, lingu ística e polít ica de diferentestipos de actores: Estados-nações, empresas multinacionais, comunidades dadiáspora, bem como grupos e movimentos subnacionais (sejam religio-sos, políticos ou económicos); e mesmo' de grupos íntimos e próximos,.como aldeias, bairros e famílias. Com efeito, o indivíquó actuante é o últimoloeus deste conjunto perspectivado de paisagens, pois estas aca-bam por ser percorridas por agentes que vivem e constituem formaçõesmaiores, em parte à custa do seu próprio sent ido do que essas paisagens ofe-recem .

Estas paisagens são portarito o material de construção do qU? (por ex-tensão de Benedict Anderson) chamarei mundos imaginados, isto é, os .múltiplos universos que são constituídos por imaginações historicamentesituadas de pessoas e grupos espalhados pelo globo (cap. 1). Um facto im-portante no mundo em que hoje vivemos é que em t?do o globo muitas .pessoas vivem nesses mundos imaginados (e não apenas em comunidades 'imaginadas), sendo portanto capazes de contes tar e por vezes até. de sub- .

verter os mundos imaginados ria mente oficial e na mentalidade empre:"sarial que as rodeia.

Por etnopaisagem designo a paisagem de pessoas que constituem omundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados,exilados, traba.lhadores convidados e outros grupos e indivíduos em mo-vimento constituem um aspectQ essen cial do mundo e afec tar apolítica das nações (e entre as nações) a um grau sem precedentes. Nãoquero com isto dizer que não haja. comunidades e redes de parentesco,amizade, trabalho e lazer; bem como de nasci mento, residência e' outrasformas de filiação relativamente estáveis. Quero' dizer qUe por toda a parte

o tecido destas estabilidades é feito no tear dos movimentos humanos, à-----, rried{da que aumenta o número depessoas e grupos que t êm que enfrentara realidade de terem que se deslocar ou as fantasias de quererem deslo-car-se. Além disso, estas realidades e estas fantasias funcionam agora emmaior escala, pois os homens e mulheres das aldeias da Índia não pensamapenas em deslocar-se a Poone ou Madrasta, mas sim em m.udarem-separa o Dubai e para Houston, os refugiados do Sri Lanka encontram-se

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tanto no Sul da Índia como na Suíça, tal como os Hmong vão para Londresou para Filadélfia. E como o capital internacional desloca as suas neces-sidades, como a produção e a tecnologia vão gerando necessidades dife-rentes, como os Estados-nações alt eram a sua política para populações re-fugiadas, estes grupos em movimento podem nunca conseguir deixar

descansar por muito tempoa:

sua imaginação.Por tecnopaisagem refiro-me à configuração global, sempre tão fluida,da tecnologia e ao facto de a tecnologia, tanto a alta como a baixa, a me-cânica e a informacional, transpor agora a grande velocidade diversos ti-pos de fronteiras antes impenetráveis. Hoje, são muitos os ·paÍses onde aempresa multinacional tem raízes: um grande compl exo siderúrgico na Lí-bia pode implicar interesses da Índia, China, Rússia e Japão, fornecedoresde diferentes componentes de novas configurações tecnológicas. A distri-buição desigual das tecnologias, logo, as peculiaridades destassagens são cada vez menos determinadas por uma óbvia economia de es-cala, controlo político ou racionalidade dO$ mercados, e mais pelas

relações de complexidade crescente entre fluxos monetários, possibilida-des políticas e pela disponibilidade de mão-de-obra, qualificada e indife-renciada. Portanto, a Índia, ao mesmo tempo que exporta criados de me sae motoristas para o Dubai e para Sharjah, exporta também engenheirospara os Estados Unidos - contratados por pouco tempo para a Tata-Bur-roughs ou para o Banco Mundial, depois branqueados pelo Departamentode Estado para se tomarem abastados estrangeiros residentes que são porsua vez objecto de mensagens sedutoras no sentido de investirem o seudinheiro e competência em projectos federais e estatais na Índia. Conti-nuamos a poder referir-nos à economia' global nos termos dos indicadores

tradicionais (como faz o Banco Mundial) e estudá-la rios termos das com-parações tradicionais (como no Projecto Link, da Universidade da Pensil:-vânia), mas as complicadas tecnopaisagens (e as etnopaisagens em tran-siçã-o) subjacentes a estes iridicadores e comparações estão mais longe d9alcance da rainha das ciências sociais do que nunca . Como é que se há-de

uma comparação significativa dos salários do Japão com os dos Es-tàdos Unidos ou . do preço do imobiliá rio em Nova Iorque e em Tóquio

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'UDIMENSÕES CULTURi!'IS DA GLOBALlZAÇÃO u i::

sem ter em grande atenção os fluxos fiscais e 'de investimento, extrema-'mente complexos, que ligam as duas economias através de uma.grelhaglobal de especulação monetária e transferência de capitais?

Portanto, é-nos também útil falar de financiopaisagem, pois a dispo-sição do capital global é hoje uma paisagem mais misteri.osa, rápida e di-fícil de seguir do que n:\lnca, já que os mercadós de capitais, as bolsas na-cionais e a e speculação' comercial se movem nas placas ' giratóriasnacionais a uma velocidade estonteante, com implicações vastas e abso-lutas para as pequenas diferenças de pontos percentuais e unidades detempo. Mas a questão fulcral é que a relação glo bal entre etn9paisagens,tecnopaisagens e financiopaisagens é profundamente disjuntiva e ' total-mente imprevisível, porque cada uma dessas paisagens está sujeita aosseus próprios constrangimentos e incentivos (uns políticos, outros infor-macionais, outros técnico-ambientais) ao mesm o te mpo que cada uma de-las actuacomo constrangimento e parâmetro dos movimentos das outras.Assim, mesmo um modelo elementar de economia polít ica global tem que

ter em linha de conta as relações profundamente disjuntivas entre' movi-mento humano, fluxo tecnológico e transferências financeiras:

Em refracção destas disjunturas (que aliás não chegam a formar umainfra-estrutura mecânica global simples) estão o que chamarei mediapai-

sagens ou ideopaisagens, que são paisagens iconográfica s intimamente 'relacionadas. Mediapaisagem refere-se à distribuição da capacidade elec-trónica para produzir e disseminar informação Uornais, revistas: estaçõesde televisão e estúdios de produção de filmes) que estão agora ao disporde um número crescente de interesses privados e públicos em todo o mun-do e das imagens do mundo criadas por esses meios de comuriiçação. Es-

tas imagens encerram muitas inflexões complicadas; conforme o seu gé-

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ré-electrónicas), os seus públicos (local, nacional, transnacional) e os in-. eresses daqueles que as detêm e controlam. O aspecto mais importantedestas mediapaisagens é que fornecem (espec ialmente sob a sua forma detelevisão, cin<?ma e cassete) vastos e complexos repertórios de imagens,narrativas e etnopaisagens a espectadores de. todo o mundo, e' nelas estão

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profundamente misturados o mundo da mercadoria e o mundo das notíciase da política. O que isto significa é que para muitos públicos em todo omundo os próprios meios de comunicação são um repertório complicadoe interligado de imprensa, celulóide, ecrãs electrónicos e painéis de rua.As linhas qivisórias entre as paisagens realistas e ficcionais que vêem es-tão esbatidas, de modo que, quanto mais longe estes públicos estão da ex-

periência directa da vida metropolitana, maior a probabilidade,de cons-truírem mundos imaginados que serão objectos quiméricos, estéticos, atéfantásticos, particularmente se avaliados pelos critérios de outra perspec-tiva, de outro mundo imaginado.

As mediapaisagens, 'sejam elas_ produzidas por interesses privados ou

, públicos, tendem a ser explicações centradas na imagem, com base nar-rativa, de pedaços da realidade, e o que oferecem aos que as vivem e as

transformam é uma série de elementos (como personagens, enredos e for-mas textuais) a partir dos quais podem fomar vidas imaginadas, as delespróprios e as daqueles que vivem noutros lugares. Estes enredos podem

. desagregar-se, e desagregam-se, em complexos conjuntos de metáforasem que as pessoas vivem (Lakoff e Johnson, 1980), pois ajudam a cons-tituir narrativas do Outro e protonarrativas de vidas possíveis, fantasiasque podem tornar-se prolegómenos ao desejo de aquisição e movimento.

As ideopaisagens são também concatenações de imagens, mas sãomuitas vezes directamente políticas e com frequência têm a ver comlagias de Estados e contra-ideologias de movimentos explicitamenteorientados para a tomada do poder de Estado ou de um bocado dele. Estas

são compostas por elementos da visão do mundo iluministaque consiste num encadeado de ideias, termos e imagens, entre os quaisliberdade, prosperidade, direitos, soberania, representação e o termo do-

minante, democracia. A narrativa dominante do Iluminismo Ce das suasmuitas variantes no Reino Unido, França e Estados Unidos) foi construídacom uma certa lógica interna e pressupunha uma certa relação entre lei-tura, representação e esfera pública. (Sobre a dinâmica deste processo nàhistória inicial dos Estados Unidos, ver Warner, 1990.) Mas a diásporadestes termos e imagens por todo o mundo, especialmente a partirdo sé-

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

culo XIX, aligeirou a coesão interna que os mantinha unidos numa narra-tiva domina nte euro-americana, substituindo-a por uma sinóptica da po-lítica pouc o estruturada em que diferentes Estados-nações, no processo dasua evolução, organizaram a sua cultura política e que gira em torno dediferentes palavras-chave (e. g., Williams, 1976)._ '

Em resultado das diferentes diásporas destas palavras-chave, as narrati-

vas políticas que regem a comúnicação entre elites e apoiantes em diferentespartes do mundo comportam probiemas de natureza semântica e pragmáti-ca: semântica, na medida em que as palavras (e os seus equivalentes 1exi-

cais) requerem, nos seus movimentos globais, cuidadosa tradll;Ção de con-texto para contexto; e pragmática, na medida em que o uso dessas palavraspor agentes políticos e seus públicos pode estar sujeito a conjuntos muitodiferentes de con\'enções contextuais que mediatizam a sua traaução paraa política oficial. Essas convenções não são apenas questões de retórica po-lítica: por exemp10, o que querem os vetustos dirigentes chineses dizerquando se re ferem aos perigos do hooliganismo? O que querem os dirigen- .

tes sul-coreanos dizer quàndo falam de disciplina como chave par:a o cres-cimento industrial democrático?, . Estas convenções implicam tarribém uma questão muito mais subtil:que conjunto s de géneros comunicacionais são valorizados e de que modoUornais contra cinema, por exemplo) e que espécie de convenções de gé-nero pragmático regem as leituras colectivas de diferentes tipos de textos.Assim, enquanto na Índia o público pode estar atento às ressonâncias deum discurso político em termos de certas palavras-chave e frases reminis-'centes do cinema hindu, um público coreano pode reagir aos códigos sub-tis da retórica budista ou neoconfuciana encriptada num documento polí-

tico; A própria relação de ler com ouvir e ver pode variar em importantesaspectos que determinam a morfologia destas diferentes ideopaisagens.quando tomam forma em diferentes contextos nacionais e transnacionais.Quase ninguém ' reparou nesta sinestesia globalmente variável, mas im-põe-se uma análise urgente. Portanto, democraciaum termo dominante, com poderosos ecos desde o HaItl e a''froloma ateà antiga União Soviética e à China, rrias está no centro de uma série de

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ideopaisagens, apostas de diferentes configurações pragmáticas de tradu-ções toscas de outros termos centrais do vocabulário do Iluminismo. E porisso se criam continuamente novos caleidoscópios terminológicos, pois osEstados (e os grupos que os querem conquistar) procuram pacificar po-pulações cujas etnopaisagens estão em movimento e cujas mediapaisa-gens podem criar graves problemas às ideopaisagens que se lhes deparam.

A fluidez das ideopaisagens complica-se em particular por causa da creS-cente diáspora (voluntária e involuntária) de intelectuais que continua-mente injectam novas correntes de significado no discurso da democracia,em diferentes partes do mundo. . .

Esta longa análise terminológica dos .cinco termos que criei serve debase para uma tentativa de formulação das condições em que ocorrem osactu:üs fluxos globais: ocorrem dentro e através da crescente disjunturadas etnopaisagens, tecnopaisagens; mediapaisagens eideopaisagens. Esta formulação, que é o cerne do meu modelo de fluxocultural global, requer algumas explicações. Primeiro, povo, maquInaria,

dinheiro, imagens e ideias seguem hoje caminhos cada vez mais aniso-mórficos; claro que em todos os períodos da história humana houvedis-junturas no fluxo destas coisas, mas a mera velocidade, a escala e o vo-lume de cada um desses fluxos são agora tão grandes, que as disjunturasse tornaram fulcrais para as políticas da cultura global. Os Japoneses sãoparticularmente receptivos a ideias e sao estereotipados como propensosa exportar (todas) e a importar (algumas) mercadorias, mas estão tambémnotoriamente próximos da imigração, como os Suíços, os Suecos e os Sau-ditas. No entanto, os Suíços e os Sauditas aceitam populações de traba-lhadores convidados, assim criando diásporas laborais de turcos, italianose outros grupos circum-mediterrânicos. Alguns desses grupos de trabalha-

dores convidados mantêm contacto continuado com as suas nações de ori-. gem, como os turcos, mas outros, como os migrantes sul7asiáticos de alto

nível, tendem a desejar viver nas suas novas pátrias, levantando de raiz oproblema da reprodução num contexto desterritorializado.

A destenitorialização, em geral, é uma das forças fulcrais do mundomoderno porque traz as classes trabalhadoras para os sectores da classe ..

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO 0 t\

baixa e pa;ao espaço de sociedades relativamente abastadas, ao. mesmo I-J Itempo que cria, por vezes, um sentido exagerado e intensificado da crítica ,. ,

ou do apego à política na pátria de acolhimento. A destenitorialização,seja de hin·dus, de siques, de palestinianos. ou de ucranianos, está agora O ,\

no' âmago de uma série · de fundamentalismos globais, incluindo o funda- C)islâmico e o hindu: NÇ> caso hindu, por exemplo, é evidente O ,i

que o deslocamento transoceânico inoianos explora?o por va- Oriados interesses, dentro e fora da India, para cnar uma complIcada rede ( )

de identificações financeiras e religiosas através das quais o problema dareprodução cultural dos hindus no estrangeiro ficou ligado ãpolítica in-terna hindu do fundamentalismo. . O

Ao mesmo tempo, a desterntorialização cria novos mercados para as O. produtoras de filmes, empresários das artes e agências ?e que Oapostam na contacto da população com Oo país de origem. Naturalmente, estas pátrias inventadas, constituem aas mediapa isagens de grupos desterritorializados, podem mUltas vezes tor- ·

nar-se fantásticas e unilaterais o bastante para fornecerem material para Onovas"deopaisagens em que podem começar a irromper conflitos étnicos. oOO

A criação de Calistão, uma pátria inventada para a população sique des-territorializada de Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, é um exemplo dopotencial sanguinário dessas mediapaisagens quando interagem com oscolonialismos internos do (e. g., Hechter, 1975). A MargemOcidental [do Jordão], a Namíbia e a Eritreia são outros teatros onde seencen.a a negociação sanguinária entre Estados-nações existentes e vários C)

grupos destenitorializados. ., ( JÉ no terreno fértil da destenitorialização, em que dmheuo, merca- , ,

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\dorias e pessoas Sé dedicam a caçar-se mútua e incessantemente à roda ;:do mundo, que as mediapaisagens e ideopaisagens do mundo moderno . ""

encontram a sua contrapartida fracturada e fragmentada. É que as ideiase as imagens produzidas pelos meios' de comunicação de massas sãomuitas vezes apenas guias parciais para os bens e experiências aspopulações desterritorializadas transferem umas para as outras. No bri-lhante fil!ile de Mira Nair, lndia Cabaret, vemos as inúmeras voltas des-

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ta desterritorialização forçada quando jovens mulheres, quase sem con- :corrência na boémia metropolitana de Bombaim, vêm para a cidade em i

busca de fortuna como dançari.nas e prostitutas de cabaré, atender os ho- I

mens em clubes com números de dança inteiramente derivados das es- .caldantes sequências dançadas dos filmes indianos. Estas cenas, por sua :vez, veiculam ideias sobre as mulheres ocidentais e estrangeiras e sualiberalidade, ao mesmo tempo que fornecem a essas mulheres simula-cros de carreiras como álibi. Algumas dessas mulheres são de Kerala,onde floresceram os cabarés e a indústria dos filmes pornográficos, em

parte em função da bolsa e dos gostos de autóctones retornados dodia Oriente, onde a vida de diáspora longe das mulheres distorceu neleso próprio sentido do que possam ser as relações entre homens e mulhe-res. Estas tragédias de deslocamento por certo poderiam ser revistasnuma análise mais atenta das relações entre as excursões sexuais japo-

nesas e alemãs à Tailândia e as tragédias do comércio de sexo em Ban:.guecoque e outros elos semelhantes que encadeiam fantasias sobre o Ou- I

tro, as conveniências e seduções da viagem, a economia do comércio

global e as brutais fantasias de mobilidade que dominam as políticas se-xuais em muitos pontos da Ásia e no mundo em geral

. Embora muito mais se pudesse dizer sobre a política cultural da des-territorialização e a sociologia mais ampla do deslocamento que ela ex-prime, será apropriado, neste passo, aduzirmos o papel do Estado-naçãona economia global disjuntiva da cultura actual. A relação entre Estadose 'nações é conflituosa em toda a parte. É possível dizer que em muitassociedades a nação e o Estado tornaram-se projectos um do outro. Ou seja,enqmnto as nações (ou, mais propriamente, grupos com ideias sobre na-

cionalidade) procuram captar ou obter Estados e pod er de Estado, aomes-mo tempo os Estados procuram captar e monopoli zarideia s de nação (Ba-ruah, 1986; Chatterjee, 1986; Nandy, 1989a).Em geral, os movirnentosseparatistas transnacionais, incluindo os que contam com o terror nos seusmétodos, são exemplos de nações em busca de Estado.Siques, tâmÍlescingaleses, bascos, mouros, quebequenses - cada qual representa comu-nidades imaginadas que procuram criar Estados próprios ou talhar um bo-

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

cado de Estados existentes. Os Estados, por outro lado, procu ram por todaa parte monopolizar os recursos morais da comunidade, seja afirman do-seabertamente coevos da nação, seja museificando e representando sistema -ticamente todos os grupos no seu seio mediante diversas políticas suces-sórias que se afiguram notavelmente· uniformes em todo o mundo (Han-

dler, 1988; Herzfeld, 1982; McQueen, 1988).Assim, as mediapaisagens nacionais e internacionais são exploradaspelos Estados-nações par a pacificar separatistas ou mesmo a potencialfis-

siparidade de quaisquer ideias de diferença. Normalmente, os E stàdos-na -ções contemporâneos conseguem-no exercendo controlo táxonómico so-

bre a diferença, criando vários tipos de espectáculo internacional para

domesticar a diferença e seduzindo pequenos grupos com a fé).ntasia de se

apresentarem numa espécie de palco global ou cosmopolita. U m novo as-pecto da política cultural global, ligado às relações entre as vá-rias .paisagens aqui tratadas, é que Estado e nação se agride m mutuamente

e o hífen que os une é hoje menos um ícone de conjuntura e mais um in-

dício de disjuntura. Esta relação disjuntiva entre nação e Estado tem doisníveis: ao nível de um dado Estado-nação, significa que há uma luta da

Ímaginação, com Estado e nação procurando devorar-se um ao outro. É esteo alfobre de separatismos brutais - maioritarismos que parecem ter sur-gido do nada e mi.cro-identidades que se tornaram projectos políticos d en-tro do Estado-nação. A um outro nível, esta relação disjuntiva está pro-fundamente enredada nas disjunturas globais de que vimos tratando em

todo este capítulo: ide as de nacionalidade parecem aumentarvamente de escala e cruzam regularmente . fronteiras estatais existentes,por vezes, como entre os Curdos, porque identidades anteriores se esten-

deram por vastos espaços nacionais ou, como entre os tâmiles d o Sri Lan-ka, as linhas dormente s. de uma diáspora transnacional foram activadaspara inflamar a micropolítica de um Estado-nação .

Numa análise da política cultural que subverteu o hífen de união en-

tre nação e Estado, é part1Sularmente importante não essas

políticas radicam nas irregularidades que hoje caractenzam o capItal de-

sorganizado (Kothari, 1989c; Lash e Urry, 1987). Como trabalho, finan-

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ças e tecnologia estão agora muito separados, as volatilidades subjacen-tes aos movimentos pela nacionalidade (tão vastos como o islão trans-nacional, por um ládo, tão pequenos como o dos Gurkas por um Estadoseparado no Nordeste da Índia, por embatem nas vulnerabilidadesque caracterizam as relações entre Estados. Os Estados são instados amanterem-se abertos pela pressão dos meios de comunicação, da tecno-

logia e das viagens, que alimentaram o consumismo em todo o mundoe aumentaram e fomentaram o anseio, fora do mundo ocidental ,pelos novos bens e espectáculos. Por outro lado, estes mesmos a'nseiospodem ficar retidos 'nas novas etnopaisagens, mediapaisagens e, por fim,ideopaisagens, como a democracia na China, que o Estado não pode to-lerar como ameaças ao seu próprio controlo sobre as ideias de nação epovo. Há em todo o mundo Estados sitiados, especialmente onde as lutaspor ideopaisagens como a democracia são ferozes e fundamentais e ondehá disjilnturas radicais entre ideopaisagens e tecnopaisagens (como nocaso de países muito pequenos a que faltam. tecnologias de produção e

informação); ou entre ideopiüsagens é financiopaisagens (por exemplo,em países como o Méxicó ou o Brasil, onde os empréstimos internacio-nais influenciam em muito alto grau a política nacional); ou entre ideo-paisagens e etnopaisagens (como em Beirute, onde as filiações dadiáspora local e translocal travam um combate suicida); ou entre ideo-paisagens e mediapaisagens (como em muitos países do Médio Orienteeda Ásia) onde os est ilos de vida. representados nas televis'ões e no ci-nema nacionais e internacionais dominam completamente, e minam, aretórica da política nacional. No caso indiano, emergiu o mito do heróique infringe a lei para mediatizar esta luta sem tréguas entre as crençase as realidades da política indiana, que se foi tomando cada vez mais

brutal e corrupta (Vachani, 1989}., O movimento transnacional das . artes marciais, particularmente na

Asia, mediatizado pelas indústrias cinematográficas de Hollywood eHong Kong (Zarilli, 1995) é uma boa ilustração do modo como as tra-'

dições ancestrais dessas artes, reformuladas para satisfazerem as fanta-sias da população jovem contemporânea (por vezes lúmpen), criam no-

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vas culturas de masculinidade e violência que por sua vez alimentam aviolência na política nacional e internacional. Essa violência é por 'suavez incen'tivo para um comérc io de armamento mais rápido e' amoral,que penetra no mundo inteiro. A difusão mundial da AK-47 e da Uzi nosfilmes, na segurança priva?a e pública, no terrorismo e na actividade po-licial e militar, ler.nbra-nos que as uniformidades técnicas aparentemente

simples ocultam muitas vezes um conjunto de elos cada vez mais com-plexo, a ligar imagens de violência às aspirações de comunidade nummundo imaginado. .

Voltando então às etnopaisagens por onde comecei, o central. r

da política étnica no mundo actual é que os factores primordiaisde linguagem, de cor da pele, de vizinhança ou de pare?tesco) se glo-

balizaram. Ou seja, os sentimentos, cuja maior força está na sua capaci-dade de fazer da intimidade um estado político e da localidade um palcopara a identidade, vão-se espalhando por espaços vastos e irregulares àmedida que os grupos se deslocam, mas mantendo-se ligados entre si atra- ..

vés de sofisticados processos de comunicação. Não quero com isto negarque esses factores primordiais são muitas vezes produto de tradições in-ventadas (Hobsbawm e Ranger, 1983) ou de filiações retrospectivas, massalientar que, devido à interacção disjuntiva e instável dO comércio, meios .de comunicação, políticas nacionais e fantasias dos consumidores, a etni-cidade, outrora um génio metido na garrafa de uma qualquer localidade

. (por mais lata), tornou-se hoje uma força global eternamente a resvalar en-tre e através das brechas entre Estados e fronteiras. '

Mas a relação entre os níveis económico e cultural deste novo conjuntode disjunturas globais não é uma simples via de sentido único em que os

. termos da política cultural global ganham coesão, ou são coesamente con-"-" finados dentro das vicissitudes dos fluxos internacionais de tecnologia,

e finanças, requerendo apenas uma modesta modificação dosmodelos neomarxistas existentes de desenvolvimento desigual e formaçãode Estados. Há uma mudança mais prQ[unda, acarretada pelas disjunturasentre as paisagens de que falei, constíh&las pela su a interacção continua-mente fluida e insegura e que incide na relação entre produção ti consumo .

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na ecoriomia global actuaL Introduzo aqui a famosa (e muitas vezes des-virtuada) tese de Marx sobre o fetichismo da mercadoria sugerindo queesse fetichismo foi substituído no mundo em sentido lato'(e'vemos agoraó mundo como um vasto sistema interactivo composto por muitos subsis-temas complexos) por dois des cendentes , que se apoiam mutuamente, oprimeiro dos quais designarei por fetichi,smo da produção e o segundo por -fetichismo do consumidor.

Por fetichismo da produção entendo uma ilusão criada pelos Zoei daprodução transnacional contemporânea que mascara o capital translocal,os fluxos de lucrotransnacionais, a gestão global e muitas vezes trabalha-dores distantes (empregues em diversos tipos de operações de produçãode alta tecnologia) com o idioma e o espectáculo do controlo local (porvezes até operário), produti vidade nacional e soberania territoriaL Na me-dida em que vários tipos de zonas de comércio livre se tornaram modelosde produção transversal, em especial de mercadorias de alta tecnologia, aprópria produção tornou-se um fetiche, obscurecendo não as relações so-

.. ciais enquanto tais, mas as relações de produção, que são cada vez maistransnacionais. A localidade (quer no sentido da fábrica ou posto de pro-dução local, quer no sentido mais lato de Estado-nação) toma-se um fe-

. tiche que disfarça as forças globalmente dispersas e rege efectivamente oprocesso de produção. Isto gera alienação (no sentido marxista) c0rI! duplaintensidade, pois o seu sentido social é agora composto por uma compli-cada dinâmica espacial cada vez mais globaL '

Quanto ao fetichismo do consumidor, pretendo por ta l indicar que oconsumidor foi transformado pelos fluxos mercantis (e pelas mediapaisa-gens, especialmente da publicidade, que os acompanham) em signo, tanto

no sentido de Baudrillard, um simulacro que · só assintomaticamente seaproxima da forma de um verdadeiro agente social, como no sentido deuma máscara da verdadeira sede'da acção, que não é o consumidor ' maso produtor e as muitas forças que constituem a produção. Aglobal é a tecnologia-chave para a disseminação mundial de uma pletorade ideias criativas e culturalmente seleccionadas de promoção do consu-mo. Estas imagens promocionais ,são cada vez mais distorções de um

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

mundo de comercialização tão subtil, que equivale a convidar o consumi-dor a acreditar que é quem age quando de facto é, no máximo, quem es-

colhe.A globalização da cultura não é o mesmo que a sua homogeneização,

mas a alobalização requer o uso de Uma série de instrumentos de homo-aeneiz;ção (armamentos, técnicas publicitárias, hegemonias linguísticas; maneiras de vestir) que são absorvidos pelas econom ias políticas e cul-turais locais apenas para serem repatriadas como diálogos heterogéneosde soberania nacional, livre iniciativa e fundamentalismo em que o Es-tado desempenha um papel cada vez mais delicado:, demasiadU abertura ·aos fluxos globais, e o Estado-nação é ameaçado pela revolta, como na

síndrome da pouca abertura, e o Estado sai da cena internacional,como aconteceu de' diferentes modos co m a Birmânia, a Albânia e a .Co-

reia do Norte. No geral, o Estado tornou-se o árbitro desta repatn'ação

da diferença (sob a forma de mercadorias, anúncios, frasese modas). Mas esta repatriação ou exportação das modas e mercadonas

da diferença exacerba continuamente a política interna do maioritarismoe da homogeneização que, as mais das vezes, se esgota em discussões

sucessórias.Portanto, a principal característica da política global de hoje é a polí-

tica do mút uo esforço da semelhança e da diferença para se canibalizaremreciprocamente, assim proclamando o saque vitorioso das ideias gémeasdo Iluminismo, o universal triunfalista e o particular resiliente. Esta mútuacanibalização mostra o seu lado feio nos motins, fluxos de refugiados, tor-tura promovida pelo Estado e etnocídio (com ou sem apoio estatal). O seulado melhor é a expansão de muitos horizontes individuais de esperança

e de fantasia, na difusão global da terapia de re-hidratação e outrOS ins-' " trumentos de prosperidade de pouca exigência tecnológica, na suscepti?i-

lidade, mesmo da África do Sul, à força da opinião pública global, na lll -

capacidade do Estado polaco para reprimir a sua própria

,) e no desenvolvimento vasto leque de alianças pro-c-"\rressistas. Podemos multIplIcar os exemplos de ambos os tIPQS. O ponto

é que os lados da moeda do processo cultural global são hoje

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produtos da contestação mútua infinitamente variada de semelhança e di-

ferença num cenário caracterizado por disjunturas radicais entre diferentes

tipos fluxos globais e as paisagens incertas criadas dentro e atràvés des-

tas disjunturas.

-A obra da reprodução numa era de artes mecânicas

Inverti os termos principais do título do famoso ensaio de Walter Ben-

jamin (1969) para trazer esta análise dos seus voos um tanto altos para

um nível mais acessível. um problema humano clássico que não de-

saparecerá por mais que os processos culturais globais. alterem a sua di-

nâmica, que é o problema que hoje é normal'mente tratado sob a rubrica

reprodução (tradicionalmente referido em termos de transmissão de cul-

tura). Em qualquer dos casos, a questão é: como é·que os pequenos grupos,

- em especial as famílias, osZoei

Clássicos da socialização, encaram estas -novas realidades globais quando procuram reproduzir-se e, nesse proces-

so , reproduzem acidentalmente· ormas culturais? Nos termos da antropo-

logia tradicional, isto podia enunciar-se como problema de enculturação

num período de rápida transformação cultural. Portanto, o problema nem

é novo. Mas assume dimensões novas nas condições globais de que temos

falado neste capítulo.

-. Primeiro, essa espécie de estabilidade transgeracional do conhecimen-

to , pressuposta na maior parte da s eorias da enculturação (ou, em termos

ligeiramente mais latos, de socialização), já não colhe. Quando as famílias

se mudam p::.ra novos locais ou os filhos se mudam antes das gerações

. mais velhas, ou os filhos mais velhos de temporadas passadas

noutros lugares do mundo, as relações familiares podem tornar-se volá-

teis; negaceiam-se novos padrões de comodidade, calibram-se dívidas e

obrigações e os rumores e fantasias sobre o novo cenário,

fazendo deles efectivos repertórios de saber e prática. Muitas vezes, as

diásporas laborais globais implicam pressões imensas sobre os casais em

geral e as mulheres em particular, pois o casal torna-se o ponto de encon-

64

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

tro de padrões históricos de socialização e novas ideias de comportamento

correcto. As gerações dividem-se facilmente quando as ideias 'pro-

priedade, decência e colectivo se rendem ao assédio da distância e

do tempo. Mais importante do que isso é que o trabalho de reprodução

cultural em novos -ambientes torna-se profundamente complicado porcau-

sa da política que quer dar da uma representação de normalidade .(em especial dos jovens) aos vizinhos e pares do sítio novo. Claro que

nada disto é novo para o estudo cultural da imigração.

O que é novo é que este é um mundo em que tanto os pontos de partida

como os pontos de chegada estão em fluxo cultural e por isso busca de

pontos de referência estáveis quando são feitas as opções de vida pode ser

muito difícil. É nesta atmosfera que inventar a tradição (e. a etnia, o pa-

rentesco e outros marcadores de identidade) pode ser uma tarefa esquiva,

pois a busca de certezas vai sendo frustrada pela fluidez da comunicação

transnacional. À medida que o passado dos grupos vai começando a figu- .

rar em museus, exposições e colecções, no espectáculo nacional e no in-ternacional, a cultura vai sendo menos o que Pierre Bourdieu chamaria um

hábito (um domínio tácito de práticas e disposições reprodutíveis) e mais

uma arena de escolha,justificação e representação consciente, esta última

muitas vezes para públicos especialmente deslocados.

A tarefa da reprodução cultural, mesmo nas suas arenas mais íntimas,

como as relações marido-mulher e pais-filhos, torna-:-se politizada e expos-:-

ta aos traumas da desterritorialização quando os membros da família com-

binam e negoceiamos seus acordos e aspirações em configurações espa-

ciais por vezes fracturadas. A níveis mais amplos, como a comunidade, o

bairro e o território, esta politização é muitas vezes o carburante emocio-

nal para políticas de identidade mais explicitamente violentas, precisa- :

"-" mente porque estas políticas mais ambiciosas penetram por vezes no go-

. vemo doméstico e inflamam-no. Por exemplo, quando dois descendentes

de uma prole discordam do pai numa questão fundamental de identifica-:-

ção num cenário transnacional, as normas localizadas preexisten-

tes pOdem ter pouca força. Assim, um filho que entrou para o g rupo Hez-

bollah no Líbano pode deixar de se dar com os pais ou irmãos filiados no

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AmaI ou em qualquer outro ramo da identidade política xiita do Líbano. 'É particularmente sobre as mulheres que recai o mais aceso deste tipo defricções, pois tornam-se · peões na política sucessória do lar e são muitasvezes sujeitas aos abusos e violência dos homens, estes por sua vez divi-didos quanto à relação entre sucessão e oportunidade em formações es-paciais, e 'políticas em transformação,

As dores da reprqdução cultural num mundo global disjuntivo, como é I

evidente, não são aliviadas pelos efeitos das artes mecânicas (ou meios decomunicação de massas), pois estas dispõem de poderosos recursos em con-tranódulos identitários que a juventude pode projectar como óbice à vontadee aos desejos parentais. A níveis mais amplos de organização, pode havermuitas formas de política cultural no seio de populações deslocadas (sejamelas de refugiados ou de imigrantes voluntários) que os meios de comuni - 'cação (bem como as mediapaisagens e ideopaisagens que oferecem) inflec-tem em ir:nportantes aspectos. Um elo fundamental entre as fragilidades dareprodução cultural e.o papel dos meios de comunicação de massas no mun-

do de hoje é a política de género e violência. Corrio são as fantasias de vio-lência sexualizada que dominam a indústria dos filmes de série B que pu- ..

lulam no mundo, ambas reflectem e refinam a violência sexualizada emcasa e na rua, pois os jovens (em particular) são arrastados por políticas ma-chistas de afirmação pessoal em contextos onde muitas vezes lhes é negadoagir, e as mulheres, por um lado, são forçadas a integrar a mão-de-obra de

. formas novas, .por outro têm que continuar a preservar a herança familiar.Assim, a honra das mulheres torna-se não apenas uma armadura dos siste-mas estáveis (ainda que desumanos) de reprodução cultural, mas tambémuma no va arena para a formação de identidade sexual e políticas familiaresquando homens e mulheres enfrentam novas pressões no trabalho e novasfantasias de lazer.

Como trabalho e lazer nada perderam do seu carácter sexualizado nes-ta nova ordem global, antes foram adquirindo representações fetichizadasainda mais subtis, a honra das mulheres é cada vez mais umda identidade de comunidades conflituosas de ao mesmo tempoque, na realidade, as mulheres deles têm que lidar com condições cada vez

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mais duras no trabalho de casa e fora de casa. Em suma, as comúnidadesdesterrit orializadas e as populações deslocadas, por 'mais que gozem dos .frutos de no,vas maneiras de ganhar a vida e de novas vias de acesso aocapital e à tecnologia, têm que esgotar os desejos e fantasias destas novasetnopaisage"ns ao mesmo tempo que se esforçam por reproduzir a farruliacomo microc osmos de cultura. À medida que a forma das culturas se vai

tornando menos delimitada e tácita, mais fluida e politizada, o trabalhode reprodução cultural passa a ser um risco quotidiano. Muito mais podia,

.. e devia, dize r-se sobre o trabalho de· reprodução na er a das artes mecâni-cas: esta análise destina-se' a indicar os con.tornos dos problemas que umanova teoria da reprodução cultural, globalmente informada, terá que en-

. frentar.

Contornos e processo das formações culturais globais

As deliberações das propostas que até agora desenvolvi constituem oesqueleto de uma abordagem a uma teoria geral dos processos cl;llturaisglobais. Em torno das disjunturas, empreguei um de termos (ei-

nopaisagem, financiopaisagem, tecnopaisagem, mediapaisagem e ideo-

paisagem) para sublinhar as diferentes correntes ao longo das quaisvemoso fluxo de materi al cultural cruzar as fronteiras nacionais. tam-bém exemplificar o modo como estes vários fluxos (ou paisagens, da pers-pectiva estabilizadora de um dado mundo imaginado) se encontram emdisjuntura fundamental uns em relação aos outros. Quais os passos seguin-tes em direcção a uma teoria geral dos processos culturais globais baseada

nestas propostas?" " O primeiro é notar que os nossos próprios modelos de contorno cul-

tural terão que ser alterados: pois as configurações de povo; lugar e he-rança perdem toda a aparência de isomorfismo. Trabalhos recentes emantropologia têm feito muito para nos libertar das grilhetas de imagensde forma e substância cultural altamente localizadas, delimitadoras, ·ho-lísticas, primordialistas (Hannerz, 1989; Marcus e Fischer, 1986; Thorn-

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ton, 1988). Mas não se pôs grande coisa no seu lugar, excepto versões

maiores, se bem que menos mecânicas, destas imagens, como na obra

"de Eric Wolf sobre a relação da Europa com o resto do mundo (1982).

O que gostaria de propor seria começarmos por pensar a configuração

das' formas cu lturai s no mundo actual como basicamen te fractais, ou

seja, como se· tivessem fronteiras, estruturas OU regularidades nãoeucli-diarias. Em segundo lugar, gostaria de sugerir que estas formas culturais,

essas que deveríamos esforçar,-nos por considerar absolutamente frac-

tais, são também estratificadas segundo modelos que andamos a exami-

nar à luz da pura matemática (teoria dos conjuntos, por exemplo) e da

biologia (na linguagem das classificações politéticas). Portanto, preci-

samos de combinar uma metáfora fractal para os contornos das culturas

(no plural) com uma ' explicação politética das sobreposições e seme-

lhanças. Sem este último passo, vamos atolar-nos no trabalho compara-

tivo assente na .separação nítida das entidades a comparar antes de ini-

ciar uma efectiva comparação. Como poderemos comparar formas

culturais de contornos.fractais que são também politeticamente estrati-

ficadas na sua cobertura do espaço terrestre?

Enfim, para que a teoria das interacções culturais globais assente nos

fluxos disjuntivos tenha mais força do que uma teoria da metáfora mecâ-

nica, teremos que avançar para qualquer coisa como uma versão humana

da teoria a que alguns cientistas chamam do caos. Ou seja, não precisamos

de perguntar como é que estas figuras complexas, estratificadas, fractais,

constituem um sistema simples, estável (ainda que em larga escala), mas

sim qual a sua dinâmica: porque ocorrem motins étnicos, quando e onde?

Porque é que os Estados enfraquecem a um ritmo maior em certos lugares

e tempos e não noutros? Porque é que certos países se descartam de con-venções sobre pagamento da dívida internacional com muito maior des-

preocupação aparente do que outros? Como é que o fluxo de armamento

internacional induz conflitos étnicos e genocídios? Porque é que certos

Estados sa em da cena internacional ao passo que outros clama m por entrar

nela? Porque é que os acontecimentos-chave têm lugar a altura e em .

dado lugar e não noutros? Claro que se trata das mesmas perguntas tradi-

68

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

cionais, causalidade, contingência e previsão, que as ciênçias humanas

sempre fizeram, mas num mundo de fluxos globais disjuntivos talvez seja

importante começar por fazê-las a partir de imagens de fluxo e incerteza,

logo, de caos, e não das velhas imagens de ordem, estabilidade e siste-

mática. De outro modo, teremos ido demasiado longe na direcção de uma

,teoria dos sistemas culturais globais, mas descartado os processos pelo ca':'minho. O que faria destas notas etapas de um caminho para uma espécie

de ilusão de ordem que já não podemos dar-nos ao luxo d.e impor num

mundó tão declaradame nte volátil. . . , ,.

Seja qual for a direcção para que levemos estas macrometáforás (frac-

tais, classificações politéticas e caos), precisamos de fazer mais uma per-

gunta batida, tirada do paradigma marxista. Há alguma ordem prévia à

força relativa que determina estes fluxos globais? Porque .postulei que a

dinâmica dos sistemas culturais globais é ditada pelas relações entre flu-

xos de pessoas, t,ecnologias , finanças, informação e ideologia, poderemos

. falar de uma ordem estrutural-causal a ligar estes fluxos por analogia como papel da ordem económica num a versão do paradigma marxista?

mos dizer que alguns des tes fluxos, por razões prioritariamente estruturaiS

ou históricas, são sempre prévios e formadores de outros fluxos? A minha

hipótese, que neste passo é apenas experimental, é que a relação destes

vários fluxos entre si, quando se congregam em determinados eventos e

formas sociais, será radicalmente dependente do contexto. Assim, enquan- . .

to os fluxos laborais e os seus elos de fluxo financeiro entre Kerala e o

Médio Oriente podem explicar os contornos dos fluxos mediáticos e das

ideopaisagens em Kerala, o inverso poderá ser verdade para SiIicon Va!-

ley, na Califórnia, onde a especialização intensa num só sector tecnoIo-

o gico (computadores) e especiais fluxos de capital podem muito bem de-"

" --- terminar em profundidade O' contorno assumido por etnopaisagens,

ideopaisaoens e mediapaisagens. ' .

Não isto dizer que a relação histórico-causal entre estes vários flu-

xos seja aleatória ou de insignificante contingência, mas sim que as nossas

teorias correntes de caos cultural não se desenvolveram o suficiente para

serem ao menos modelos parcimonioscis, qU:lOtO mais para serem teorias

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preditivas, o velo de ouro de certa ciência social. O que procurei dar neste

capítul-o foi um vocabulário técnico razoavelmente económico e um

delo rudimentar de fluxos disjuntivQs de onde· se possa tirar uma análise

global decente. Sem uma análise dessas, será difícil construir o que John

Hinks0n.. chama «uma teoria social da pós-modernidade» que seja adequa-

.damente global (1990, p. 84).

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Etnopaisagens globais: notas e perguntas

para uma antropologia transnacional

No capítulo 2 uso o termo etnopaisagem. Este neologismo tem certas

ambiguidades nele integradas deliberadamente. Começa por referir os di-

lemas de perspectiva e representação com que se confrontam inevitavel-

mente todos os etnógrafos e admite que as tradições de percepção e pers-

pectiva (como as paisagens nas artes visuais), bem como as variações na

posição do observador, podem afectar o processo e o produto da re-

presentação. Mas quis também que este termo indicasse que há alguns fac-

tos brutos do mundo do século xx com que todos os etnógrafos têm. que

confrontar-se. No centro desses factos está a reprodução social, territorial

; e cultural da identidade de grupo em mudança. Como os grupos migram,

' ···refazem em novos locais, reconstroem, a sua história e reconfiguram os .

seus projectos étnicos, o etno 'de etnografia assume um carácter esquivo,

não localizado, a que as práticas descritivas da antropologia terão que res-

ponder. As paisagens da identidade de grupo - as etnopaisagens - de

todo o mundo já não são objectos antropológicos familiares, na medida

em que os grupos já não são rigorosamente territonalizados, delimitados

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espacialmente, historicamente assumidos ou culturalmente homogéneos.Temos menos culturas no mundo e mais debates culturais internos (Par-'kin, 1978)1. Neste capítulo, através de uma série notas, enunci ados evinhetas, procuro repor algumas das noss'as .convenções disciplinares, aomesmo tempo que tento mostrar que as etnopaisagens do mundo actualsão profundamente interactivas.

Modernidades alternativas e cosmopolitismo etnográfico

Um importante desafio que se coloca à antropologia actual é o estudodas formas culturais cosmopolitas (Rabinow, 1986) do mundo contempo-râneo sem pressupor lógica ou cronologicamente a autoridade da expe-riência ocidental ou os modelos derivados dessa experiência, Parece im- I

possível estudar estes novos cosmopolitismos proveitosamente semanalisar os fluxos culturais transnacionais no seio dos quais progridem, I

competem e se alimentam reciprocamente de um modo que derrota e con-funde muitas verdades das ciências humanas de hoje. Uma dessas verda-des refere-se à relação entre espaço, estabilidade e reprodução cultural. Há

uma necessidade urgente de nos debruçarmos sobre a dinâmica culturaldo que agora se chama desterritorialização. Este termo aplica-se não só aexemplos óbvios., como as multinacionais e os mercados mone tário s, mas 'também a grupos étnicos, movimentos separatistas e formações políticasque cada vez mais operam de uma maneira que transcende limites e iden-tidades territoriais específicos. A desterritorialização (da qual dou algunsperfis etnogr:íficos no capo 2) afecta as lealdades de grupo (especi almente

no contexto de diásporas complexas), a sua manipulação transnacional damoeda e outras formas de riqueza e investimento, e as estratégias dos Es-tados. O desatar dos laços entre povo, riqueza e território altera fundamen-talmente a base da reprodução cultural.

Ao mesmo tempo, a desterritorialização cria novos mercados para a in-dústria empresários e as agências de viagens queapostam na necessidade de contacto das populações deslocadas com a sua

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

terra. Mas esta terra é em parte inventada, existe apenas nados grupos desterritoria lizados e pode por tornar-se tão fantástica eunilateral, que serve de alimento a novos conflitos étnicos.

A ideia de desterritorialização pode também aplicar-se ao dinheiro efinanças, pois quem gere dinheiro procura para os seus investimentos os '

melhores mercados, independentes de fronteiras nacionais.Por

sua vez,estes movimentos do dinheiro são a base de novos conflitos, como a preo-cupação dos naturais de Los Angeles pelos Japoneses andarem a comprara sua cidade, a de Bombaim com os árabes ricos dos estados do Golfo,

'que não só preço das mangas em Bombaim cpmo alte-raram substancialmente o perfil de hotéis, restaurantes e outros serviços,aos olhos da população local - tal como fizeram em Londres. Contudo,a maior parte dos residentes de Bombaim é ambivalente quanto à presençados árabes, pois o verso da sua presença é a ausência de amigos e parentesque estão a ganhar bom dinheiro no Médio Oriente e trazem dinheiro e ·artigos de luxo para Bombaim e outras cidades da Índia. Essesaitigos

transformam o gosto do consu midor dessa's cidades. Acabam muitas ve:?espor ser contrabandeados através dos portos e aeroportos e passados nosmercados cinzentos das ruas de Bomba im. 'Nestes mercados cinzentos(adjectivo que me permite captar a natureza paralegal desses cenários) al-guns membros da classe média de Bombaim 8 o seu lúmpen-proletariadopodem comprar coisas que vão desde volumes de cigarros Marlboro a cre-me de barbear Old Spice e discos de Madonna. Outras vias igualmentecinzentas, muitas vezes com o apoio de marinheiros, diplomatas e hospe-deiras do ar com outra actividade paralela, gente que entra e sai do país ,regularmente, mantêm os mercados cinzentos de Bombaim, Madrasta e ,

Calcutá alimentados em mercadorias não apenas do Ocidente mas tam-bém do Médio Oriente , Kong e Singapura. São também esses via-jantes profissionais que estão cada vez mais implicados na difusão trans '"

nacional de doenças, a menor das quais não é a sida.A visão dos estudos de cultura transnacional que a análise sugere pa-

rece até aqui, à primei ra vista, requerer apenas modestos daabordagem tradicional da antropologia à A meu ver, porém, um a

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prática etnográfica genuinamente cosmopolita exige uma interpretação do

terreno dos estudos culturais nos Estados Unidos de hoje e do estatuto da

antropologia nesse terren02. .

Estudos culturais em terreno global

. Como este livro trata de antropol.ogias do presente, pode ser importan- \

te do estat.uto da antropologIa no presente e em .particular do hoje ,

monopólio o estudo da «cultura» (doravante sem aspas). iA analIse que se segue cna o cenário para a crítica da etnográfia contida !nas secções subsequentes.

tópico, a cultura tem muitas histórias, umas disciplinares, outras

a funcIOnar fora da academia. Dentro da academia há certas diveraências

entre disciplinas quanto a saber em que medida a cultura tem sidobum tó-

pico explícito de investigação e em que medida tem sido tacitamente en-

tendida. Entre as ciências sociais, a antropologia (especialmentenos Es-

tados Unidos, mas menos em Inglaterra) fez da cultura o seu conceito

central; definindo-a como uma espécie de substância humana embora as

ideias sobre esta substância se tenham deslocado, ao longo de' um século,

das ideias. de um modo geral, de E. B. Tylor sobre costume para as ideias

d.e Geertz sobre significado. Alguns antropólogos temem que os

dados a cultura sejam demasiado variados para um termo téc-

nICO, encontram virtude nessa diversidade. Ao mesmo tempo, as

outras CIenClas sociais não se têm desinteressado da cultura: na socioloaia I

o sentido de verstehen de Max Weber e as várias ideias de Georae I'medio.ram entre as ideias alemãs neokantianas do fim do século XIX e a

sociologia como discipl ina das ciências soCiais. Como' em muitos outros. casos. a cultura é agora um subcampo dentro da socioloina e a American

SociologicalAssociation legitimou esta segregação ao criar uma subuni-

na. da cultura em que pessoas interessadas na produção e

dlst.nbUlça.o de cultura, especialmente em cenários ocidentais, podem as-

lIvremente umas com as outras.

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No epicentro dos debates actuais sobre e dentro da cultura, muitas e

diversas correntes afluem a um único rio, assaz turbulento, o dÇ)s ,muitos

pós-estruturalismos (sobretudo franceses) de Jacques Lacan, Jacqués Der-

rida, Michel Foucault, Pierre Bourd ieu e suas muitas subescolas. Algumas

destas correntes são tímidas relativamente à linguagem como seu objecto

e seu modelo, outras menos. A actilal multiplIcidade de usos que rodeia

as trê.s palavras' significado, discurso e texto deveria bastar para indicarque não estamos apenas numa época de indefinição de géneros (como pro-

feticamente disse Geertz [1980J há mais de umadécada), mas numa fase

peculiar a que gostaria de chamar «pós-indefinição», em que o ecumenis-

mo deu lugar - afortunadamente, a meu ver - a debates ace§os sobre a

palavra, o mundo e a relação entre eles.

Nesta indefinição pós-indefinição, é cruéial ver que o nível superior

foi tomado pela literatura inglesa (como disciplina), em particular, e pelos

estudos literários, em geral. É este o nexo em que a palavra teoriCL, ,um

termo algo prosaico em muitos campos e por muitos séculos, entra de re-

pente para o sedutor círculo das modas. Hoje, para uni antropólogo dos

Estados Unidos, o mais impressionante da década de oitenta na academia

é o ataque à cultura desferido pelos estudos literários - embora já não

tenhamos um olhar arnoldiano unilateral, mas um assalto multifacetado

(onde florescem cem Blooms) com muitos debates internos sobre textos

e antitextos, referência e teoria e prática. Aqueles que trabalham

em ciências sociais vêem com fascínio os seus colegas de literatura ingle-

sa e literatura comparada falar (e brigar) de matérias que, até há muito

pouco tempo, uns quinze anos, pareciam tão relevantes para os departa-

mentos de Inglês como, digamos, a mecânica quântica.

Na generalidade, podemos presumir que o tema dos estudos culturais

é a relação entre a palavra e o mundo. Entendo estes dois termosno seu 'sentido mais lato, por forma :a que palavrapossa abranger todas as formas

de expressão textualizada e mundo signifique tudo, desde os meios de pro-

dução e de organização das vidas-mundos até às relações globalizadas de

reprodução cultural de que já falámos.

Os estudos culturais assim concebidos poderiam constituir a base de

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uma etnografia cosmop olita (glo bal?, macro?, translocal?). Traduzir a ten-

são entre palavra e inundoIJ.uma estratégia etnográfica produtiva requer

um novo entendimento do mundo desterritorializado que muitas pessoas

habitam e das vidas possíveis que muitas pessoas são hoje capazes de vis-

lumbrar. Os termos da negociação entre vidas imaginadas e mundos des-

são complexos e por certo não podem ser captados so-

mente pelas estratégiasde

localização da etnografia tradicional. O 'queuma nova espécie de etnografia pode fazer é captar o impacto da dester-

ritorialização sobre os recursos ima ginativos das experiências locais vivi-

das. Por outras palavras; a tarefa da etnografia passa agora a ser resolver

um enigma: qual a natureza da localidade como experiência vivida -num

mundo globalizado, desterritorializado? Corno irei sugerir na próxima

secção, o princípio de 'uma resposta a esta charada está numa nova abor-

dagem do papel da imaginação na vida social.

Todas as narrativas dominantes que normalmente guiam a maior parte

da etnografia têm raízes iluministas e todas foram seriamente postas em

questão. A acerba crítica de Foucault ao humanismo ocidental e às suas

epistemologias ocultas tomou difícil manter a fé na ideia de progresso,

com as suas m)litas manifestações, velhas e novas. A narrativa dominante

da evolução, fundamental par a a antropol ogia nos Estados Unidos, enfer-

ma da profunda distância entre as suas versões restritas, voltadas para a

cultura (como na obra de Marvin Harris), e as versões alargadas, mais

atraentes mas menos antropológicas, como nas fábulas biogeológicas de

Stephen Jay Gould. O aparecimento do indivíduo como narrativa domi-

enferma não apenas dos contra-exemplos das principais experiên-

cias de totalitarismo do século xx como também de muitas desconstruções

da ideia de eu, pessoa e sujeito actuante na filosofia, sociologia e antro-

pologia (Parfit, 1986; Giddens, 1979; Carrithers, Collins e L)lkes, 1985).As narrativas dominantes da jaula de ferro e da marcha da racionalidade

burocrática são constantement e refutadas pelas irracionalidades, contradi - '

ções e pura brutalidade cada vez mais notórias corno patologias do mo-

derno Estado-nação (Nandy, 1987). Finalmente, a maior parte das versões

da narrativa marxista dominante entram em conflito à medida que o ca-

76

pitalismo assumindo um aspecto mais desorganizado e desterritor:ia-

, lizado (Lash e Urry, 1987) e que a expressão cultural vergar-se aos,

requisitos seque r da menos facciosa marxIsta. (Por ex.emplo,

veja-se a polémica entre Frederic Jameson e AIJaz Ahm,ad em Soczal Text

[Jameson, 1986; Ahmad, 1987].) , " ' "

A etnografia cosmopolita, ou o que podéremos chamar

fia, ganha particular urgência por destas narra-tivas dominantes pós-iluministas. E. dIÍlcrlIr alem do exploratono quanto

ao que esta macroetnografia (e suas etnopaisagens) poderá ser, mas as sec-. ' ,

ões seguintes procuram elUCIdar os seus contornos.

Imaginação e etnografia

Vivemos num mundo com muitas espécies de realismos, uns mágicos,

outros socialistas, outros capitalistas e outro s que ainda não Es- ,

tes realismos genéricos têm as suas pro víncias de origem: realIsm?

gico na ficção latino-americana das décadas 1970-80, o socIahs!a

na União Soviética dos anos de 1930 e o realismo capItalrsta, expressa0

achada por Michael Schudson (1984), na retórica visual e_verbal pu-

blicidade americana contemporânea. Em muito da expres sa0 estétIca' ac-

tual, as fronteiras entre estes vários realismos esbateram-se.

vérsia em torno de Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdle, d.a

exposição de fotografias de Robert M.applethorpe en: Cincinnati e de mUl-

tas outras obras de arte noutras partes do mundo velO lembrar-no s os

artistas cada vez mais desejam subir a fasquia do seu sentido,das fronteIras

entre a sua arte e o teor da opinião públiCa.

"'-" M3.is consequente para os nossos objecti vos é o facto d.e a. ter hoje adquirido uma foiça nova e singular na vida SOCIaL A Imagma-

ção - expressa em sonhos, canções, fantasias, mitos e. contos - sempre

constou do repertório de qualquer sociedade que esteja modo

organizada culturalmente. Mas na vida social hoje a ImagIQaçao tem

uma força nova e singular. Mais pessoas em maIS partes do mundo con-

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sideram possível um conjunto de vidas mais vasto do que nunca. Uma fon-

te importante para esta mudança está na comunicação de massas, que

apresenta um sortido rico e sempre variado de vidas algumas

das quais entram na imaginação vivida da gente comum melhor do que

outras. São também importantes os contactos, as notícias e os rumores so-

bre outros que habitam o ambiente social daqueles que se tomaram habi-

tantes desses mundos longínquos. A importância dos meios de comunica-ção não é muita como fontes directas de novas imagens e enredos para as

vidas possíveis, mas sim como diacríticos semióticos fortes que inflectem

também o contacto social com o mundo metropolitano facilitado por ou-

tros canais .

Uma das principais alterações da ordem cultural global, criada pelas

tecnologias do cinema, televisão e vídeo (e pelo modo como elas enqua-

dram e estimulam outros meios de comunicação mais antigos) tem a ver

com o papel da imaginação na vida social. Até há pouco tempo, fosse qual

fosse o poder da mudança social, podia-se afirmar que a vida social sofria

. em geral de inércia, que as tradições ofereciam um conjunto relativamentefinito de vidas possíveis e que a fantasia e a maginação eram práticas re-

siduais, confinadas a pessoas ou domínios especiais, restringidas a mo-

mentos ou · lugares especiais. Em geral, imaginação e fantasia eram antí-

dotos para a finitude da experiência social. Nas últimas duas décadas, à

medida que a desterritorialização de pessoas, imagens e ideias foi ganhan-

do nova força, o fiel da balança foi-se deslocando imperceptivelmente.

Mais pessoas em todo o mundo vêem as suas vidas pelo prisma das vidas

possíveis oferecidas peros meios de comunicação de massas sob todas as

suas formas. Ou seja, a fantasia é agora uma prática social; entra, de in-

finitos. modos, no fabrico de vidas sociais para muitas pessoas em muitas

sociedades.

Apresso-me a notar que observar isso não traz alegria, nem se pretende

implicar que o mundo é agora um lugar mais feliz e com mais opções (nO

sentido utilitário) para mais pessoas, com mais mobilidade e mais finais

felizes. Pelo contrário, o que está implícito é que mesmo a mais ruim e

mais desesperançada das vidas, a mais brutal e desumanizadora das cir-

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cunstâncias,as mais duras desigualdades vividas estão agora abertas ao

jogo da imaginação. Presos políticos, crianças operárias, mulheres.a tra-

balhar nos campos e nas fábrIcas do mundo, e outras cuja sorte é dura, já .

não vêem nas suas vidas o mero resultado que as coisas dão, mas um com-

promisso irónico entre o que podiam imaginar e o que a vida social-per- .

mire. Portartto,as bio"grafias da gente comum- são const ruções (ou fabri-

cações) em que a imaginação desempenha um papel importante. Mas estepapel também não é uma simples via de escape (mantendo firmes as con-

venções que regem o resto da vida social), pois na mó das engrenagens

entre a vida que se leva e a sua contrapartida imaginada uma sé-

rie de comunidades (Anderson, 1983) que geram novas políticas, ·novas

formas de expressão colectiva e novas necessidades de disciplin'a social

e vigilânci"a por parte das elites. .

Tudo isto tem muitos contextos e implicações que não podemos exa-

minar aqui. Mas o que implica para a etnografia? Implica que-os etnógra- .

fos já não podem contentar-se simplesmente com a densidade que trazem

para o loca l e o part icular nem presumir que quando abordam o local abor-dam uma coisa mais elementar, mais contingente e por isso mais real do

que a vida tomada de uma perspectiva ampla. E que o que é real nas vidas

normais é agora real de muitas maneiras, que vão da pura contingência

das vidas individuais e dos caprichos da competência e do talento que dis-

tinguem as pessoas em todas as sociedades até aàs realismos a que os in-

divíduos estão expostos e que arrastam para a sua vida quotidiana.

Estas vidas complexas, em parte imaginadas, devem passar a formar

o veio principal da etnografia, pelo menos de uma etnografia que queira

fazer ouvir a sua voz num mundo transnacional,desterritorializado. É que

o novo .Poder da imaginação no fabrico de vidas sociais está inelutavel-

mente ligado a imagens, ideias e oportunidades que vêm de alhures e são

muitas vezes transportadas no veículo que são os meios de comunicação

de massas. Assim, a reprodução cultural padrão (como o inglês padrão) é

aaora uma actividade em perigo que só vinga através desígnio cons-

ciente e da vontade política, onde vinga. Na verdade, orillb parece ter-se

afirmado a separação do mundo mais vasto e onde o papel da imaginação

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global é recusado à gente comum (lugares como a Albânia, a Corei a doNorte e a Birmânia), parece surgir no seu lugar Um bizarro realismo deiniciativa estatal que contém sempre a possibilidade da demência genoci-da e totalitária de um PolPot ou do desejo longamente reprimido de críticaou saída, como está a acontecer na Albânia e em Myanmar (Birmânia).

A questão, portanto, não é como pode a escrita etnográfica tratar um

leque mais vasto de modelos literários, modelos propensos a elidir a dis-tinção entre vida de ficção e ficcionação da vida, mas como tratar o papelda imaginação na vida social num nOvo tipode etnografia que não seja

, tão resolu tamente localizadora. Claro que há-muito a dizer sobre o local,o particular e o contingente, que sempre foram o forte da melhor escrita

'etnográfica. Mas quando as vidas estão a ser imaginadas de certo mododentro dos r ealismos e através de realismos que devem ser, de uma manei-ra ou de outra, de inspiração oficial ou em larga escala, aí o etnógrafopre-cisa de encontrar novos meios de representar as relações entre a imaaina-

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,ção e a vida social. Este problema de representação não é bem o mesmoque o conhecido problema do micro e do macro, da pequena e grande es-cala, embora tenha importantes pontos comuns com ele. A relação entreo prob lema de representar etnograficamente vidas imaginadas e a dificul-dade de transitar das realidades locais para grandes estruturas está implí-cita no artigo de Sherry Ortner, «Reading America» (1991). Em conjunto,a tese de Ortner e a minha apontam para a importância de inserir as gran-des realidades nos mundos-vidas concretos, mas abrem também a possibi-lidade de interpretações divergentes do que está implícito em localidade.

A ligação entre imaginação e vida social, diria, é cada vez mais globale desterritorializada. Assim, os que representam vidas reais ou banais têmque resistir a reivindicar o privilégio epistémico relativo às particularidades

vividas da vida social. Melhor será a etnografia redefinir-se como práticada representação que ilumina0 poder na sua,dimensão mais lata, as possi-bilidades de vida imaginada segundo trajectórias de vida específicas. É uIJ)a 'densidade, mas diferente, porque está dotada de uma nova atenção ao factode as vidas banais de hoje já não serem potenciadas por aquilo em que dãoas coisas , mas pelas possibilidades que os meios de comunicaç-ão (directa

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ou indírectarnente) sugerem. Por outras palavras, pode-se reter alguma daforça da ide a de hábito, de (1977), mas o destaque vai parÇ). a suaideia de improvisação, porque a improvisação já não ocorre dentro de umconjunto relativamente delimitado de posturas pensáveis, está sempre a

_vaIar e a partir, potenciada pelo visionarhento imagin,ado de narrativas do-minantes dos meios de comunicação de massas. Houve uma transformaçãogeral das condições globais das-vidas-mundos: em termos simples, onde aimprovisação era outrora furtada ao refluxo glacial do hábito, tem o hábitoque ser agora penosamente reforçado perante vidas-mundos que estão quase

sempre em fluxo. ,Três exemplos servirão para mostrar o que tenho em mente. Em Ja--

neiro de 1988, a minha mulher (que é uma americana branca, historiadorada Índia) e eu (um brâmane tilmil criado em Bombaim e feito homo aca-demicus nos Estados Unidos), jUntamente com o nosso filho, três mem-bros da família do meu irmão mais velho e um acomitiva dos seus colegase empregados, decidimos visitar o templo Meenaksi, 'em Madurai, um dos

, grandes centros de peregrinaçao do Sul da Índia. A minha mulher tinha

estado por lá várias vezes em trabalho de investigação nas duas décadasanteriores.

Os nossos objectivos nessa viagem enlm vários. O meu irmão e a mu-' lher andavam preocupados com o casamento da sua filha mais velha e pre-tendiam obter as bênçãos de tantas divindades poderosas quantopossÍvel,na sua busca de uma boa aliança. Para o meu irmão, Madurai era um lugarespecial, pois passara aí os seus primeiros vinte anos, com a família alar-gada da minha mãe. Tinha, portanto, velhos amigos e memórias em todasas ruas das cercanias do templo. Ia agora a Madurai como funcionário su-perior dos com negócios a tratar com diversos empre-

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sários privados que pretendiam persuadi-lo da qualidade das suas ofertas.E um desses potenciais clie-ntes providenciara acomodações para nós numcolorido hotel moderno de Madurai, a dois passos do templo, e andou comele de Mercedes, enquanto o resto de nós fomos para a

O nosso filho de onze anos, acabado de chegar de que, \ . " .

estava na presença de práticas da herança e, se lhe pedIssem, atIrar-se-Ia

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virilmente ao chão, no gesto hindu da prostração perante· os mais velhose as Aguentou bem o barulho incrível, a multidão e a irritaçãodos sentidos típicos de um grande templo hindu. Por mim, estava ali paraadornar o séquito do meu irmão, para acrescentar alguma vaga força mo ralaos seus desejos de um casamento feliz para a filha, para reabsorver a. ci-dade onde cresceu a minha mãe Uá lá tinha estado várias v.ezes), p ara par-tilhar do entusiasmo da mi9ha mulher por voltar a uma cidade e a um tem-plo que são provavelmente elementos maiores da sua imaginação e paracaptar o cosmopolita em bruto.

Entrámos, pois, no complexo religioso de. quinhentos metros quadra-dos grupo importante, embora um entre muitos, e em breve os di-versos sacerdotes que ali oficiam nos abordaram, um a um. Um deles re-conheceu a minha mulher, que lhe perguntou onde estava ThangamBhattar. Thangam Bhattar era o sacerdote com quem ela tinha trabalhadomais de perto. A resposta foi: «O Tharigam Bhattar está em Houston.»-Le-vámos todos algum tempo a absorver a piada e depois tudo se percebeunum instante. A comunidade indiana de Houstoh, como muitas comuni-

dades de indianos nos Estados Unidos, tinha construído um templo hindu,sendo este dedicado a Meenaksi, a principal divindade de Madurai. Ti-

. nham convencido Thangam Bhattar a ir para lá, deixando ficar a sua fa-mília. Leva uma vida solitária em Houston, cooperando na complexa po-lítica cultqral de reprodução nUma comunidade indiana além-mar,provavelmente auferindo um rendimento modesto, enquanto a sua mulher ·e filhos continuam na sua casinha perto do templo. Na manhã seguinte, aminha mulher e a nossa sobrinha foram a casa de Thangam Bhattar e alilhes falaram das dificuldades que ele passava em Houston, e elas conta-ram à família como tinham sido para nós os anos decorridos. Há aqui uma ·

ironia transnacional,como é evidente. Carol Breckenridge, historiadoraamericana, chega a Madurai ansiando por ver o seu mais próximo infor-mante e amigo, um sacerdote, e descobre que ele está lá longe, em Hous-ton, que é longe mesmo da distante Filadélfia.

Mas esta ironia transnacional é uma meada com muitos fios que se de-senrolam para trás e para diante no tempo segundo estruturas longas e flui-

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das de signi ficado e comunicação. Entre esses fios estão as esperanças domeu irmão para a filha, que depois casou com um doutorando em Química

. Orgânica numa universidade do estado çe Nova Iorque e recentementeveio ela própria para Syracuse; a oportunidade de a minha mulher recon-textualizar a sua experiência em Madurai num mundo que, pelo menospara alguns dos seus actores principais, passa a incluir Houston; e, paramim, uma ocasião de compreender que o cosmopolitismo histórico de ·Madurai adquiriu uma nova dimensão global e que algumas das principaisvidas situadas no centro das práticas rituais do templo coritam agora Hous-ton nas suas biografias imaginadas. É possível e necessário destrinçar, .cada um destes fios, pois conduzem a um entendimento da globalizaçãodo hinduísmo, da transformação de «nativos» em cosmopolitas a seumodo e o facto de o templo agora não só atraír pessoas de todo-o mundo,mas também se expandir. A deusa Meenaksi tem uma presença viva em

Houston.

Entretanto, o nosso filho passou a ter no seu repertório de experiênci"asuma jornada do tipo Raizes. Pode lembrar-se disso enquanto constrói a sua

vida de americano de ascendência meio indiana. Mas também pode ser

·que se lembre mais nitidamente da súbita necessidade de ir aos sanitáriosenquanto andávamos de santuário em santuário, numa visita a outro gran- .de templo, em Janeiro de 1989, e do quarto de banho da pousada de uma

fundação de caridade em que encontrou abençoado alívio. Mas tambémaqui há uma história inacabada que encerra dinâmica familiar, memóriae turismo para um americano com hífen de onze anos, que tem que ir pe-riodicamente à Índia, quer goste quer não, e enfrentar as muitas redes debiografia em mudança que ali encontra. Este relato, como os que se se-guem, não apenas precisa de ganhar densidade como deve servir, por ago-

ra, de vislumbre de uma etnografia que se ocupe de libertar a imaginação·do lugai. .

A minha segunda vinheta vem de uma colectânea de textos de uma es-pécie de realismo um livro de Julio Cortázar chamado Um Certo

Lucas (1984). Como ultirllamente a antropologia tem ido buscar à litera-tura muitos modelos e metáforas mas há reIativ·amente pouca antropologia

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ARJUN APPADURAI

na literatura, parece apropriada uma palavra sobre esta colectânea. A fic-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

chama-se «Nadando numa piscina de calhaus cinzentos». Refere-se à

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ção, como o mito, faz parte.do repertório conceptual nas sociedades con-temporâneas.'Os leitores de romances e poemas comovem-se com a acçãointensa (como em Os Versículos Sátânicos, de Salman Rushdie) e os seusautores contribuem muitas vezes para a construção dos mapas sociais emorais dos seus leitores. Mais relevante ainda para os meus objectivos, a 'prosa ficcional é o terreno e'xemplar d,a imaginação pós-renascentista e,neste sentido, é fundamental para uma etnografia mais geral da imagina-

ção. Mesmo os pequenos fragmentos de fantasia, como a que Cortázarconstrói num ,breve conto, mostram como opera a imaginação contempo-rânea.

o realismo mágico é interessante não apenas corno género literáriomas também como representação do modo como o mundo aparece a al-gumas pessoas que nele vivem. (Para um interessante comentário a um

aspecto desta a bordagem da narrativa literária, ver Felman, 1989.) Cor-tázar é sem dúvida único e nem toda a gente imagina o mundo à sua ma-

neira, mas a sua visão seguramente comprova que Qglobo começou agirar de um modo novo. Como os mitos da pequena socied.ade mostrados

nos clássicos da antropologia do passado, as fantasias da literatura con-temporânea contam-nos alguma coisa sobre deslocamento, desorienta- ,ção e acção no mundo contemporâneo. (Para um excelente exemplo re-cente desta abordagem no contexto dos estudos culturais, ver Rosaldo,1989, capo 7.) ,

,Como agora já sabemos muito sobre a escrita da etnografia (Clif-ford e Marcus, 1986; Marcus e Fischer, 1986; Geertz, 1988), estamos

em boa posição para avançar para uma antropologia da representação

que tem muito a ganhar com.as nossas recentes descobertas sobre a po-

lítica e a poética de cultura». Sendo assim, podemos devol-

ver às críticas recentes da prática etnográfica as lições de anteriores

críticas à antropologia como campo de práticas a operar dentro de um

mundo mais vasto de políticas institucionais e poder (Hymes, 1969).Este conto de Cortázar, de estrita mais ligeira mas também mais cer-

teiro do que alguns outros nacos mais extensos de realismo mágico,

84

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II

descoberta, em 1964, pelo Professor Migueletes, de uma piscina

que tinha calhaus cinzentos em vez de água., A descoberta é rapida-mente noticiada pelo mundo do desporto e nos , Jogos Ecológicos de

Bagdade o carnpeão japonês Akiro Tashuma bate o recorde mundial

«nadando cinco metros em um minuto e quatro (Cortáza r,, 1984, p. 80). O texto de Cortázar prossegue falando da maneira como

Tashuma resolveu o problema técnico de respirar naquele meio semi-

-sólido. Entram então em cena os jornalistas, nas palavras ' extrema-

mente económicas de Cortázar:

Interrogado sobre a tendência crescente de muitos atletas internacionais para

nadar em calhaus, Tashuma apenas respondeu que ao cabo de alguns milénios

se provou enfim que há uma certa monotonia acto de saltar para a água e sair

dela todo molhado sem que nada tenha mudado muito esse desporto. Deu a en-

tender que a imaginação está lentamente a chegar ao poder e que é agora tempo

de aplicar formas revolucionári'as aos velhos desportos cujo único incentivo ébaixai os recordes em algumas fracções de segundo quando tal é possível, o que

é raro. Modestamente, declarou-se incapaz de sugerir descobertas equivalentes

para o futebol e o ténis, mas fez uma referência oblíqua a uma nova evolução

do desporto, uma bola de vidro usada num jogo de basquetebol em Naga: se a

bola se quebrasse acidentalmente, o que é sempre possível, toda a equipa res-

ponsável deveria cometer haraquiri. Há tudo a esperar da cultura japonesa, em

especial quando trata de imitar os Mexicanos. Mas, para nos ao Oci-

dente e a calhaus, estes últimos começaram a subir de preço, para particular de-leite dos países que os produzem, todos eles do Terceiro Mundo. A morte por

asfixia de sete crianças australianas que tentaram praticar mergulhos

na nova piscina de Camberra demonstra, porém, as limitaçÕes deste interessanteproduto, cujo uso não deve ser levado demasiado longe tratando-se de amadores(pp, 82-83).

Ora aqui está uma divertida parábola que pode bem ser lida a mui-tos níveis, de muitos pontos de..."vista. Para o que me interessa, começo

por observar que foi escrita potihn argentino nascido em Bruxelas , queviveu em Paris de 1952 até à sua morte, em 1984.' A figaçã'o entre o

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃD

Cortázar reflecte também sobre os problemas da imitação e da trans-

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'lhores vozes merece um exame mais atento, mas que maIS tem esta VI-

nheta para ao estudo das novas d_o mundo con-

temporâneo? O conto é, em parte, acerca de uma lnvenç ao que

capta a imaginação distante de Tashuma, uma pe?soa que cre que «a

imaginação está lentamente a chegar ao poder». E também _do

percurso transnacional de ideias que podem cOmO

humorísticas e acabar em bizarras realidades teCnlcas susceptIveIs de

causar a morte. Aqui, somos forçados a pensar na trajectória de OsVersículos Satânicos, que começa como uma meditação satírica sobre

o bem, o mal e o islão e termina como arma da violência de grupo em

muitas partes do mundo.

A vinheta é também acerca da internacionalização do desporto e da

exaustão espiritual que vem da: obsessão técnica com pequenas

ças de actuação. Diferentes actores podem levar a sua imaginação a ah-

mentar-se do problema do desperto de diversas maneiras. Os Jogos

Olímpicos do passa:do estão cheios de incidentes

complexas de os indivíduos, situados dentro de traJectonas naCIOnaIS e

culturais específicas, imporem a sua imaginação a públicos globais. EmSeul, em 1988, por exemplo, o pugilista coreano derrotado que se sentou

no ringue durante várias horas para proclamar publicamente a sua ver-

Gonha de coreano e os funcionários coreanos que invadiram o rinque

;ara atacar o árbitro neo-zelandês por o que pensaram ser uma

injusta leva vOm as suas vidas imaginadas a alimentar-se das narrativas

olímpicas de comportamento correcto, desportivismo e jogo

Toda a questão dos esteróides, incluindo o caso do corredor canadlano

·Ben Johnson (ver MacAloon, 1990) também não anda longe do absurdo

técnico do conto de Cortázar, em que o· corpo é manipulado para dar no-

vos resultados num mundo dOe espectáculo competitivo e mercantilizado.

A ideia de sete crianças australianas mergulhando numa piscina de ca-

lhaus onde morrem merece também ser comparada com as muitas his,.

tórias de abnegação indi vidual e exces so físico que por vezes alimentam

o desporto global.

86

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ferência cultural e sugere que eles podem levar a inovações violentas e

culturalmente O adjectivo cultural surge aqui gratuitamente

e requer certa justificação. Que T óquio e Camberra, Bagdade °e Cidad e

do Méxic'o entrem na história não significa que se tenham tornado bo-

cados fungíveis de um mundo arbitrariamente mudado, deslocalizado.

Cada um destes lugares tem realidades locais complexas, de forma que

a morte numa piscina tem um certo significado em Camberra, como o

têm o acolhimento de ogran des espectáculos no Iraque e a tealizàção de. inovações técnicas bizarras no Japão. Fosse qual fosse a ideia'que Cor-

tázar fazia destas diferenças, das continuam a ser culturais, mas já não

no modo inerte que a palavra implicava anteriormente. Culturao mplica

diferença, mas as diferenças, agora, já não são taxonómicas,.são inte-

ractivas e refractivas, de forma qu e entrar num campeonato de natação

só ganh.a o peso peculiar que tem em Camberra por causa da maneira

como certas forças transnacioriais se ·viram configuradas na imaginação

dos seus habitantes. A cultura deixa portailto de ser uma espécie de subs-

tância inerte, local, para se tornar um a forma de diferença algo mais vo-

látil. Esta é uma parte importante dos motivos para se escrever contra acultura, como tem sugerido Lila Abu-Lughod (1991).

Claro que há outras macronarrativas que brotam deste peqUeno texto

de re;üismo mágico, mas todas elas nos recordam que as vidas são hoje

tanto actos de projecção e imaginação como encenações de enredos co- .

nhecidos de resultados previsíveis. Neste sentido, todas as vidas têm algo

em comum com o espectáculoo atlético internacional; num tempo em que

os trabalhadores convidado s se esforçam por corresponder aos padrões de

eficiência em novos cenários nacionais e as noivas que casam muito longe

\', da sua terra se esforçam por corresponder aós critérios de hipercompetên-

' cia que estes novos contextos inuitas vezes exigem. O mundo desterrito'"

rializado em que muitas pessoas agora vivem - algumas movendo-se ac-

tivamente nele, outras vivendo com as suas ausências ou retornos

repen tinos - é como a piscina de calhaus de Cortázar, cada vez , mais se-

dento de competência e muitas vezes duro para quem não estiver prepa-

87

 

ARJUN APPADURAI

rado. A vinheta de Cortázar é em si uma parábola etnográfica condensada

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e, ao tosquiar as histórias possíveis dos seus protagonistas e os seus futu-ros possíveis, as nossas etnografias da literatura podem ,tornar-se exercí-

, cios de interpretação do novo pape l da imaginação na vida social. Inscre-ve-se nesses esforços uma vertigem reflexiva quando contemplamos oTashuma inventado por Cortázar, mas dessa reflexividade resultam nãoapenas reflexões sobre as nossas próprias práticas .representacibnais en-

quanto autores, como também uma complexa incubação de apropriaçõesimaginativas relativas à 'construção de capacidade actuante num mundodesterri torializado.

Mas nem toda a desterritorialização é de âmbito global, nem todas as

vidas imacrinadas abarcam vastos panoramas internacionais. O mundo em.

movimento afecta até pequenos espaços ,geográficos e culturais. O cinemacontemporâneo representa de diversos modos estes pequenos mundos do

deslocamento. Os filmes de Mira Nair a textura destas pequenasdeslocações. cujas rev,erberações nunca a.ndam por longe. seus fil-mes, lndia Cabare.t, e o que eu chamana um etnodrama . RealIzado em1984, fala de um pequeno grupo de mulheres que abandonaram vilas e al-

deias, em geral na parte sul da Índia, para ' irem para Bombaim trabalharcomo dançarinas de cabaré num decadente bar e nightclub chamado Megh-raj. O filme contém (ao estilo do primeiro Jean-Luc Oodard) longas con-versas entre o realizador e algumas dessas mulheres, que são apresentadasde frente para a câmara, como se falassem COql o espectador do filme. Estessegmentos de entrevista, ricos como narrativa, são intercalados de sequên-cias de dança de cabaré e cenas dos tristes paradoxos da vida de alguns doshomens que sãO clientes habituais. O filme segue também uma das mulheresaté à sua aldeia natal, onde nos é mostrada a dor do seu ostracismo, poistoda a gente sabe como se' ocupa'em Bombaim. Consta que essa cena foi

montada a pedido do realizador, mas ao menos a encenação revela a estra-nheZae a dor da sequência. O filme não tem a ver com finais felizes exa-nos com várias soluções para a vida daquelas mulheres, todas elas aomesmo tempo orgulhosas e envergonhadas, na realidade prostitutas hones-tas e pertinazes que fabricaram uma identidade de artistas.

88

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Para os nossos objectivos, o mais importante neste filme é a maneiracomo mostra que o cabaré não é simplesmente um mercado de desejo fiastambém um lugar onde, se negoceiam vidas imaginadas: as dançarinas'ac-tuam graças 'ao sentido precário da imagem de dançarinas que têm de sipróprias; a orquestra de segunda ordem tenta dar largas às suas paixões .musicais, alimentadas pelas aspirações da comunidade. católica de Ooa(Índia Ocidental) de tocar bem música instrumental europeia e americana.

Os clientes qus lá vão sentem-se claramente participantes de uma coisamaior que a vida e comportam-se exactamente como os clientes das cenasde cabaré em muitos filmes comerciais indianos. Na realidade,p esquel1).a

que elabora o terreno de encontro de todos esses personagens vem das se-quências de cabaré do cinema indiano comercial.

Em muitas dessas cenas habituais, um espalhafatoso quarteto de night-club toca uma melodia sensual deprimente que associa instrumentos e ar-monias ocidentais e indianos enquanto o vilão e os seusmem bebidas alcoólicas obviamente ordinárias e assistem a um númerode dança dolorosamente explícito executado por uma estrela vamp. O

rói é normalmente introduzido na acção de uma maneira que acentue a suavirilidade e ao mesmo tempo superioridade moral sobre o ambiente sór-'dido. Normalmente, essas cenas estão cheias de figurantes do estúdio quese esforçam por manter a expressão sofisticada de pessoas habituadas àalta-roda. São cenas de um provincianismo estereotipado na sua aborda-gem ao acto de beber, à dança e ao som e resultam algo deprimentes. Osclientes, as dançarinas e a orquestra do Meghraj parecem representar umaversão algo desafinada, sonâmbula

ldessas sequências clássicas dos filmes

indianos.

A vida no Meghraj por certo é comandada por imagens do cinema co-"'\ mercial, mas a sua força é inadequada para cobrir ansiedades, degradação

pessoal e o drama angustian'te do ócio ' a que todos os personagens se en-tregam, No entanto, os personagens deste etnodrama têm imagens e ideiàspróprias que não são simples resultados contingentes das suas vidas cor-rentes (ou simples fuga a elas), mas sim fabricações baseadas numa subtilobediência às convenções discursivas e representacionais do ' cinema in-

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ARJUN APPADURAI

diano. Portanto, embora este filme seja um documentário nos termos con- :vencionais, é também um etnodr ama, no sentido em que nos a es-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

Contudo, mesmo os mais localizados desses mundos, pelo menos em so-

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trutura dramática e os personagens que animam uma faixa particular dosestilos de vida' Bombaim. Estes actores são também -não I

tanto por terem idiossincrasias óbvias a eles ligadas, porque são fa- i- bricações negociadas no encon!ro entre os esforços do cmema i

sentar o cabaré e os dos cabarés verdadeiros para captarem a excltaçao do icinema. É nesta negociação, não apenas negociação de corpos, que se en- :

quadra a verdadeira ordeI11 de negócios do Meghraj. mulhe!es que t ra- _balham no cabaré são desterritorializadas e com moblhdade: sao trabalha--doras convidadas em Bombaim. É difícil vê-las no discurso da resistência "(embora sejam cínicas em relação aos homens, como são em toda a parte ,as prostitutas), se bem que a própria postura física, a agressividilde su.a "linguagem, o jogo obsceno, quase lésbico, de umas com as outras, Imph- .quem uma espécie de contracultura cortante e en:,ergonhada: O que nosfica é uma sensação de que estão a arrumar as VIdas, a fabncar os seuspróprios personagens usando os materiais cinematográficos e sociais deque dispõem.

- Há aqui indivíduos, sem dúvida, e actuantes, também, mas oque co-

manda estes indivíduos e a sua acção são os realismos complexos que osanimam: um realismo boçal sobre os homens e as suas motivações; uma

espécie de realismo capitalista que inspira o seu discurso sobre riqueza edinheiro; um curioso realismo socialista que subjaz às caracterizações que

fazem de si próprias como honestas trabalhadoras no comércio da carne i(não muito diferentes das donas de casa de Bombaim). Constituem um im- 'Ipressionante exemp lo etnográfico para este capítulo porque o próprio des-locamento que está na base dos seus problemas (embora o arranque departida seja normalmente uma reacção a horrores domésyco.s. ainda pio-res) é também o motor dos seus sonhos de riqueza, respeltablhdade e au- I

tonomia.Portamo, nestas vidas construídas o passado é tão importante como o

futuro e quanto mais descobrimos esses mais nosde mundos que são cada vez menos cosmtipolItas, cada vez mais locaIs.

90

ciedades como a indiana, foram inflectidos - a t é afligidos ' o por enredoscosmopolitas que regem as políticas das famílias, as frustrações dos tra-balhadores, os sonhos dos dirigentes locais. Uma vez mais, temos que ser

cautelosos e não supor que ao andarmos para trás nestas vidas imaginadaschegamos ao berço local, cultural, feito de um conjunto fechado de prá-ticas reprodutivas e isento dos rumores do vasto mundo. (Para um ângulodiferente mas complementar destes factos, ver Hannerz, 1989.) lndia Ca-

baret, de Mira Nair, é um modelo gritante de como a etnografia num mun-do desterritorializado pode os p'rbblemas de e actor,pois mostra como opera na realidade o fabrico de si num mundo de tipose de tipificação. Preserva a tensão entre global e local que rege hoje em

dia a reprodução cultural.

As vinhetas que aqui usei têm duas finalidades. A é sugerirtipos de situações em que se pode detectar a obra da imaginação nummundo desterritorializado. A segunda é sugerir qu e muitas vidas estãohoje inextricavelmente ligadas a representações e que por isso precisamosde incorporar as complexidades da representação expressiva (cinema, ro-

mances, relatos de viagem) nas nossas etnografias, não apenas como au-xiliares técnicos mas como matéria-prima com que construir e interrogaras nossas próprias representações.

Conclusão: convites e exortações

Embora os cosmopolitisfIJ,os emergentes rio mundÇ> tenham complexashistórias locais e o seu diálogo translocal tenha uma ,história complexatambém (a peregrinação islâmica é apenas um exemplo), parece aconse-

lhável tratar o presente como momento histórico e usar a nossa compreen- ', são dele para iluminar e guiar a formulação dos problem as históricos. Istonão é conservadorismo perverso, é, sim, a resposta a um problema prático:em muitos casos, simplesmente não e laro como ou onde umalinha básica cronológica para o fenómeno que pretendemos estudar. A es-

91

 

ARJUN APPADURAI

tratégia de começar pelo princípio torna-se ainda mais ineficaz quando

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

minante. Para aqueles de nós que possam desejar propor uma nova nar-

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queremos esclarecer as relações vividas entre as vidas imaginadas e as re-des de cosmopolitismo em que se desenrolam. Assim, para não esmiuçar-mos muito a questão, precisamos de uma etnografia que seja sensível ànatureza histórica do que vemos .hoje (o que implica também a compara-ção cuidadosa, como sabe todo o bom historiador), mas sugiro que entre-mos no problema através do presente histórico.

Embora muito tenham escrito sobre a relação entre história e antropo-

logia os praticantes de ambas as disciplinas na década de oitenta, poucosdedicaram uma reflexão cuidadosa ao que significa construir genealogiasdo presente. Em especial no que respeita aos muitos cosmopolitismos al-ternativos que caracterizam o mundo actual e aos complexos fluxos cul-turais transnacionais que os ligam, não há uma maneira fácil de começarpelo princípio. Os cosmopolitismos actuais combinam experiências de vá-rios de comunicação com várias formas de experiência - cinema,vídeo, restaurantes, espectáculos desportivos e turismo, para citar apenasalgumas - que têm diferentes genealogias naCionais e transnacionais. Al-gumas destas formas podem começar por ser extremamente globais e aca-

. bar muito locais - a rác;iio seria um exemplo -, enquanto outras, comoo cinema, podem seguir a trajectória inversa. Em determinada etnopaisa-gem (termo que poderemos querer substituir por entidades anteriorescomo aldeias, comunidades e localidades), as genealogias do cosmopoli-tismo possivelmente não serão iguais às suas histórias: enquanto as ge-nealogias revelam os espaços culturais em que novas formas podem tor-nar-se indígenas (por exemplo, da forma como o turismo vem habitar oespaço da peregrinação na Índia), as histórias destas formas permitem sairpara fontes e estruturas transnacionais. Assim, as etnopaisagens maisapropriadas para o mundo de hoje, com as suas modernidades alternativas,

,interactivas, deviam habilit ar a genealogia e a história a confrontar-se, dei-xando o terreno aberto a interpretações da forma como as trajectórias his.-

tóricas locais passam a complicadas estruturas transnacionais. Claro queeste diálogo entre histórias e genealogias tem a mas para estahistória posterior de certeza que não possuímos ainda uma narrativa do-

92

rativa dominante, seja qual for a sua forma, as novasbais têm que ser sólidos materiais de construção. Michel-Rolph TrouiUot(1991) sugere que o papel histórico da antropologia seria colmatar a «bre-cha selvagem» num diálogo ocidental interno sobre utopia. Uma antropo-logia recuperada deve reconhecer que o génio já saiu da garrafa e qúe está ,ao alcance de todos especular sobre utopia: A antropologia por certo 'podecontribuir com o seu dote especial de experiência vivida para um estudo

transdisciplinar mais vasto dos processos culturais globais. Mas, para o fa-zer, terá primeiro que sair do frio e o desafio de paraos estudos culturais sem o benefício da sua principal alavanca anterior:os panoramas do selvagem.

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Consumo, duração e história

Consumo é um tópico que vem sempre equiPado com uma ilúsão de

óptica. Est a' ilusão, promovi da em especial pela economia neoclássica

do século XIX, é que o consumo é o fim do caminho das mercadorias e

serviços, término da sua v{da social, a conclusão de uma espécie de Ciclomaterial. A minha prlncipal intenção neste capítulo é demonstrar que se

trata realmente de uma ilusão e que, para nos livrarmos dela, temos que

devolver o consumo .ao tempo - tempo concebido como múftiplo -

como história, periodicidade e processo. Daqui se tira uma série de con-

clusões metodológicas e uma proposta preliminar sobre a maneira de

conceptualizar o que é novo no consumismo após o advento da comu-

nicação electrónica .

Repetição e regulação

Como respirar, o consumo é um hábito imperceptível de que só se

. dá conta quando contextualmente ostentatório. Mas só na ostentação nos

95

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ARJUN APPADURAI

apercebemos do consumo e esta é a primeira das ratoeiras metodológicas

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

mas do corpo, a tendência para ganharem uniformidade através da ha-

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que precisamos de evitar, ratoeira que pertence também a muitos outros

tópicos. Ou seja, precisamos de resistir à tentação de construir uma teo-

ria geral do consumo em torno do que Neil McKendrick e colegas cha-

maram «efeito Veblen» (McKendrick, Brewer e Plumb, 1982; Veblen,

1912), nomeadamente a tendência para padrões de mobilidade organi-

em torno da imitação dos superiores sociais. O facto de o consumo

poder por vezes ser notório e imitativo não deve levar-nos a pensar que I

foi sempre assim, sobretudo por causa das várias formas de abstinência

que também podem ser notórias e ter consequências sociais (Appadurai,

1986).

Como característica geral da economia cultural, o consumo tem que

cair, e cai, no modo repetitivo, na habituação. À esta luz, a observação de

Frederic Jameson (1990), apoiado Jean Baudrillard, Sigmund Freud, I

Sy)ren Kierkegaard e outros, que a repetição caracteriza a mercadoria cultu-

ra do capitalismo consumidor, pode situar-se numa antropologia mais alar- I

gada da relação entreconsumo e repetição. Mesmo nos contextos mais li- i

bertos da moda, como sugiro na secção seguinte deste capítulo, o consumo

tende para a habituação através da repetição. O principal motivo para isso I

é que o consumo, em todos os contextos sociais, gira em torno do que

Marcel Mauss chamou «técnicas do corpo» (Mauss, 1973) e o corpo pede

disciplinas que são repetitivas ou pelo menos periódicas. Mas não é por

o corpo ser em todá a parte o mesmo facto biológico que por isso exige

as mesmas disciplinas. Pelo contrário, como arena íntima das práticas de

reprodução, o corpo é o sítio ideal para a inscrição de disciplinas sociais

e estas podem ser muito variadas. Jogando com uma' das raízes etimoló-

gicas da palavra consumo, vale a pena notar que comer - ao contrário

de, digamos, tatuar - induz habituação, mesmo nos círculos do topo da

escala em que a comida passou a estar largamente dominada por ideiasde beleza física e comportamento em vez de ideias de energia e suficiência

(Bourdieu, 1984).

Mas onde as práticas de consumo hedonis tas e antinóm icas

penetraram prhlundamente, permanece, naquelas que estão mais próxi-

96

bituação: comidas, roupas, penteados. Saliento a força da ' habitljação

pois é frequente vê..:la ignorada a favor das forças de imitação ou opo-

sição. Estas últimas podem muitas vezes se r importantes, mas deparam

sempre com a inércia social das técnicas corporais. Portanto, mesmo en-

tre monges , vegetarianos , bocas esquisitas anticonsumidores de toda. .

a espécie, é extremamente difícil manter um regime de consumo anár-

quico. As técnicas do corpo, por mais peculiares, inovadoras e anti-so-

ciais que sejam, precisam de se tornar disciplinas sociais (Asad, 1987),

de fazer parte de um hábito, livre de artifícios ou de coerção, externa,

para poderem assumir toda a sua força. Como o centro das p{áticas de

consumo é o corpo, a habituação que precisa das disciplinas físicas para

triunfar implica padrões de consumo que hão-de sempre tender para a

repetição, pelo menos em certos aspectos. É este o paradoxo interno do

hedonismo, especialmente nas suas dimensões anárquicas: até o consu-

mo hedonista requer as suas disciplinas corporais, e estas .disciplinas

pela sua própria natureza, estimulam a repetição e dissuadem a inventiva

(Campbell, 1987). MesmO uma barba desgrenhada tem que ser tratada.

Naturalmente, nem todo o consumo tem que ser repetitivo ou habitual,mas um s istema de consumo que se esforce por se libertar do hábito é em-

purrado para uma estética do efémero, .como veremos ao longo deste ca-

pítulo. Assim se explicam algumas das características importantes da re-

lação entre consumo, moda e prazer, que abordo na minha conclusão.

Todas as práticas de consumo que resistem têm que pagar o_seu tributo à

inércia corporal, ainda que essa inércia afecte áreas muito diferentes e se

insira em ideologias' radicalmente diferentes no tempo e no espaço. Com

base nesta inércia é possível construir toda uma série de periodiCidades -e '.

\ . ritmos temporais diferentes, inCluindo os que são induzidos pelo consumo

. notório de que fala Thorstein Veblen.Em qualquer conjunto socialmente regulado de práticas de consumo,

as que giram em torno do corpo, em particular em torno da alimentação

do corpo, assumem a função de o ritmo temporal, de dete rmi-

nação do compasso temporal mínimo (por analogia com a actividade mu-

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ARJUN APPADURAI

sical) que permita construir padrões muito mais complexos e caóticos.

Dando mais um passo na analogia, os pequenos hábitos de consumo, nor-'

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

lógica (Mauss, 1976; Sahlins, 1972). Para o que nos interessa, sugere que

os ritmos de acumulação e despojamento que geram estados

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malmente os hábit os alimentares diários, podem desempenhar o papel da'" I

percj.lssão na organização dos padrões de consumo em larga e estes

podem ser feitos de ordens de repetição e improvisação muitq mais com- I

plexas. A moral metodológica inerente pode ser enunciada do seguinte i

,modo: onde a imitação parece dominar, a repetição espreita.

Uma lógica de inércia na repetição é um recurso que serve às socie-

dades e às suas classes dirigentes para edificar regimes de maior perio-

dicidade, normalmente em torno de formas de sazonalidade'. A nossa ex-

periência do " renesim de presen tes de Natal, nos Unidos

exemplifica muito bem este tipo de regime. Em muitas sociedades, im-

portantes ritos de passagem têm marcadores de consumo, muitas vezes

agregados obr igatoriamente, ou quase obrigat.oriamente, em tom o da ofer-

ta de presentes, no geral entre categorias predefinidas de pessoas ligadas

socialmente, sobretudo parentes. Mas tal não implica um casamento me-

cânico de Arnold ván Gennep com Marcel Mauss (Van Gennep, 1965;

Mauss, 1976). Co m efeito, as sazonalidades que organizam o consumo

são mais complica das e menos mecânicas do que à primeira vista parece.Os actos de consumo que rodeiam as rotinas dos ritos de passagem são

muitas vezes menos mecanicamente prescritivos do que possa parecer.

Pierre Bourdieu demon strou-o muito bem no seu estudo dos presentes en-

tre afins nos casamento s cabilas, na Argélia (1977). O que Bourdieu con-

segue mostrar, como exemplo do que ele chama improvisações regula-

mentadas do hábito, é que algo que parece ser um conjunto fixo de

prescrições a" eger a troca de presentes entre afins é determinado por um

conjunto extremamente complexo de interacções estratégicas cuja se-

quência, por ser improvisatória, é imprevisível, embora a sua morfologia :

social geral seja conhecida dos agentes logo desde o prinCípio. Uma fonte 1 ;

crucial de incerteza, que pode ser tratada como recurso estratégico pelos

principais agentes, é o intervàlo de tempo entre vários actos de presentear.

Bronislaw Malinowski já notara este papel essencial do calendário dos

presentes (1922) e também Mauss, e Marshall Sahlins deu-lhe força tipo-

98

de riqueza material em muitas sociedad es são produto, não da distribuição

mecânica de bens ou de padrões de oferta previsíveis, mas de complexas

sequências de cálculo, baseadas, como outras formas agonísticas, em

acordos partilhados quanto ao estilo; mas com considerável latitude estra-

tégica.

Esta dimensão calculista de dar presentes confere uma perspectiva

mais complexa à relação entre consumo e ritos de passagem. Os actos de

troca de presentes, com as suas implicações concomitantes de consumo e,produção, são muitas vezes vistos no contexto dos ritos de passagem como

marcadores altamente convencionados (na terminologia de Charles Pier-

ce, ícones) destes Mas será mais útil considerar estas estratégias de

consumo indexadas aos ritos de passag em, isto é, criadoras do significado

desses ritos pelo modo como apontam para a sua intenção. Expliquemo- "

-nos. O pacote básico de ritos de que fala Van Gennep (1965), osque têm

a ver com nascimento, iniciação, casamento e morte, são normalmente

considerados regularidades culturais com um grau notável de universali-

dade devido, segundo Van Germep, às uniformidades fi"siológicas e cos-mológicas em que se baseiam. Usando as ideias de Mauss sobre técnicas

do corpo (1973) para inverte r o sentido de Van Gennep, sugiro que as pe-

"riodicidades do consumo, mediatizadas por estratégias de acumulação e

despojamento, constituem muitas vezes à principal significado destes

acontecimentos «naturais», não se limitam a marcá-los de um modo su-

perficial, «simbólico ». Isto é muito claro na iniciação e no casamento, em

que as questões de tempo e oportunid ade são "obviamente importantes

dado o grau de intervenção de que dispõem os agentes principais para de- -

"\ terminar em quando e quem esses eventos afectarão. Com o nascimeritoe

a morte, o relógio biológico parece primário e, no entanto, mesmo aqui

sabemos que O ritual que marca estes acontecimentos, que podem ser de-

morados, discutidos e altamente idiossincráticos, define a sua rele'vância

social (Geertz, 1973). O que afecta a relevância social é a natureza, opor-

tunidade, escala e visib ilidade social das transacções materiais 'que cons-

99

 

ARJUN APPADURAI

tituem o processo ritual destes ritos. A questão seria mais simples no caso

DIMEN.SÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

uma festa de todo o ano, com períodos mais ou menos fre-

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de outros ritos de passagem analisados por Van Gennep, ritos que. envol-vem transições no espaço, território, grupo de pertença, agricultura e si-milares . Numa palavra, as periodicidades de consumo socialmente orga-nizadas e as estratégias calculistas que lhes conferem acção e amplitudesão constitutivas dos significados sociais dos ritos de passagem e não me-ros marcadores simbólicos desses significados. Portanto, na escala sazo-nal das estações, biografias e histórias de grupo analisadas porVan Gennep e outros, o consumo rege as periodicidades maisdos ritos temporais de passagem. Neste sentido, o consumo cria tempo,não se limita a reagir a ele.

Para tornar mais clara esta máxima, voltemos ao Natal. Nos EstadosUnidos, à medida que aumenta o leque de mercadorias, que as famíliasse vêem com listas mais extensas de bens e serviços que podemos desejos dos seus membros e que as modas, em especial paraos maisnovos, mudam como o vento, os que fazem o papel crucial de Pai Nataldão consigo a fazer as compras de Natal mais cedo. A oportunidade é umproblema delicado, pois toda a gente quer fazer as suas compras antes dos

apertos e o ideal seria comprar tudo durante o calor de Junho ou Julho.Por absurdo que pareça, isso torna-se duplamente difícil pelo facto de, sóem Setembro ou Outubro o ciclo da moda, em especial para coisas comobrinquedos de criança, começar a emitir sinais claros. Portanto, é precisosaber quanto tempo se deve esperar antes de decidir que os favoritos doano já estão definidos, mas não tanto que se tenham esgotado nas lojas.Na outra ponta do processo, todas as grandes lojas fazem saldos a seguirao Natal, mas é frequente, por causa da pouca afluência de compradoresem algumas partes do país, haver saldos antes do Natal, o que distorce ain-da mais a periodicidade de preços e sentimentos a gerir pelas famílias

americanas. O comprador astuto sempre soube que amelhor altura paracomprar presentes de Natal (em especial, se não estiver preocupado comartigos sujeitos aos curtos ciclos da moda) está nos potlatches que se se-guem imediatamente ao Natal nos grandes armazéns. Por isso o Natal,

é óbvio, não é um mero facto sazonal. De certo ponto de vista, pode

100

néticos de actividade consciente. Neste caso, é mui to mais como o cultivoda batata-doce de Trobriand do que como o parto por cesariana. A dife-rença reside na maior lógica social de aquisição e despojamento coorde;,nada para que determinado rito de obtenha sucesso. A máximametodológica, aqui, complica a' anterior: quando a no con'sumoparece ser determinada por sazonalidades de passagem ou univer-

sais, considere-se sempre a cadeia causa l inversa, em que as sazonalidadesdo consumo possam determinar o estilo e significado das passagens «na-turais».

Periodicidades e histórias

Mas as próprias sazonalidades do consumo são forjadas por proces-sos temporais mais abertos, mais circunstanciais, contingentes. Emtodas as sociedades, independentemente de serem quentes ou frias, le-

'tradas ou não, história é por definição o decurso da Zangue durée, sai-

bamos ou não o suficiente sobre todas as histórias que encontramos. Emrelação ao consumo, as estruturas passadas não têm sido tão elaborada-mente estudadas em termos do mundo fora do Ocidente como o foramna Europa e no mundo que a Europa descobriu 4epoisde 1500. Mas co-:-

nhecemos o suficiente sobre, pelo menos, algumas das histórias do restodo mundo relativas a gral!des períodos do tempo (Curtin, 1984; Hodg-son, 1974; Perlin,1983; Schafer, 1963; Wolf. 1982) par"a sabermos que,em vez de um processo espacÍotemporal de unid,ades definidas, o mundofoi durante muito tempo constituído por agregados sobrepostos de ecú- ,

' \ . menos culturais. Fundamental para a economia cultural da distância tem"

. sido a força condutora das trocas, do comércio e das merca:dorias, 'espe-cialmente na variedade de luxo (Curtin, 1984; Helms, 1988; Mintz,1985; Schafer, 1963). Não obstante, nem todas as estruturas do passado

, se caracterizam pelos mesmos pendo res, ou contingências, em re-trospectiva assumem a aparê[lcia de necessidade. A literacia não apare-

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ARJUN APPADURAI

ceu em toda a parte, tal como a peste bubónica ou a ideia de direitos de-mocráticos. Por isso é preciso considerar os padrões da Zongue durée,

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

to parece haver pleno acordo entre historiadores e sociólogos a trabalharna Europa ,e nos Estados Unidos: a maior transformação do lado da pro-

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em primeiro lugar, localmente, ou seja, dentro de esferas de interacçãomui(ü bem observadas e documentadas. Em relação ao consumo, a trans-formaçao a longo prazo não foi igualmente rápida em toda a parte, em-bora pareça cada vez mais tolo opor sociedades estáticas a sociedadesem mutação. A questão parece ser o ritmo e, a intensidade da mudança,bem como a alacridade com que é acolhida.

O que sabemos da Eurqpa permite-nos observar uma sociedade de leissumptuárias a lentamente numa sociedade de modas. Em

geral, todas as formas de consumo socialmente organizadas parecem girarem torno de alguma combinação destes três padrões: proibição, lei sump-tuária e moda. O primeiro padrão, típico das sociedades em pequenacab, com baixo índice de tecnologia, ritualistas, organiza o consumo atra- I

vés de uma lista as saz l onga de actos , e omissões, muitos dos quaisassociam cosmologia e etiqueta de um modo especial. Nestas sociedades,o que uma antropologia mais antiga chamava tabus regula muitas vezes i

o consumo de certas categorias sociais, certos contextos temporais, certos

artigos (Douglas e Isherwood, 1981). A vida social das coisas em socie-dades de pequena escala parece ser em grande medida regida pela forçada proibição. No entanto, depois de aprendermos mais com o registo ar- !

queológico, as pequenas sociedades em lugares a Melanés ia pare-cem caracterizar-se há muito tempo pOr" fluxos de longe, quer marítimos I

quer terrestres, de pelo menos alguns tipos de mercadoria. Nessas socie- I

dades, estruturas de interdição de vários tipos parecem ter consegu'idoacomodar novas mercadorias às estruturas de troca e de gestão existentes, 'em parte porque a explosão quantitativa associada ao mundo mercantilainda não emergiu. Mesmo nessas sociedades de baixa tecnologia, fluemdeterminadas conjunturas mercantis e o comércio pode criar alterações

!mprevistas das estruturas de valor (Sahlins, 1981). .Neste ponto, é tentador colocar a versão de Colin Campbell da per- I 7

gunta weberiana relativa às condições his.tóricas da ascensão do capita- \ ':

lismo. ou seja, fazê-la de modo a destacar o lado do consumo. Num pon- i f:

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102

cura terá tido lugar na Europa pouco depois do século xv (Campbell, .1987; Mukerji, 1983; McKendrick et aI., 1982; McCracken, 1988; Wil-liarns, 1982). Não há, 'porém, quanto à natUreza das con-dições que permiti ram a revolução do consumidor, excepto o sentido ge-neralizado de 'que esteve associada às relações entre as aristocraciastradicionais e as burguesias ascendentes no princípio da era moderna.

Mas será mais incisivo perguntar: quando e em que tipo de condições sedeu a revolução do consumidor?Virei ainda a sugerir que a ideia de revolução do consumidor é m cer-

tos aspectos inadequada para o presente electrónico. Mas pode ter algumvalor preliminar definir revolução do consumidor de um modo sufi'cien-temente restrito para suscitar a comparação e de um modo suficientementelato para evitar a pergunta tautológica, a saber, porque é que a história daEuropa (ou da Inglaterra) aconteceu só na Europa (ou na Inglaterra). Su-giro que se defina revoZúção do consumidor como um conjunto de acon-tecimentos cuja característica principal é uma passagem generalizada doreinado da lei sumptui ria para o reinado da moda. Desligamos deste modoas revoluções do consumidor de qualquer sequência temporal que tenhaa ver com sociedade em movimento, comér"cio sofisticado, segundo o mo-delo de Josiah Wedgwood, aumento de salários, comércio de massas econflitos de classe. Desliga também as revoluções do consumidor de se-quências e conjunturas históricas específicas de literacia, numéracia, saberespecializado, comércio livreiro e outras formas de informação mercanti-lizadado tipo relevante em Inglaterra, França e nos Estados Unidos dos

. , últimos três séculos. Pelo contrário, esta definição abre a possibilidade de".'" associar as transformações do consumo em larga escala às várias sequên-" cias e conjunturas destes factares. Assim, na Índia, os grandes armazéns

são uma evolução muito tardia, chegam depois de a publicidade já ser umaprática comercial estabelecida há pelo menos anos, ao contrárioda França, onde os grandes armazéns (Miller, 1; Williams, 1982) pa-recem ter precedido a forma moderna da indústria publicitária: em con-

103

 

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ARJUN APPADURAI I

, Ijunção com exposições nacionais e outros fenómenos de lazer e espectá- I

culo, A própria relação de conjuntura e sequência entre as revoluções do

. DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

mo, tanto antes c omo depois da grande expansão marí tima da Europa no.

século XVI.

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consumid or inglesa e francesa parece ser contestáveL No J a-pão, a seguir à Segunda Guerra Mundial, verifica-se que o consumo demassas emergiu substancialmente quando estas começaram a ver(em especial, séries de comédia americanas) e que a publicidade veio aseguir, como comentário pós-moderno a esse consumo e não como factorcausal primário (Ivy, 1989), Essas diferenças, como é óbvio, são de certo

modo produto de complexidades do fluxo cultural após 1800, através doqual muitos países desenvolveram sofisticadas técnicas de comercializa-ção antes de se econoínias industriais ·fortes. Portanto, separarmos a Inglaterra isabelina com a Índia, a comparação certa devia ser 'com a Índia do fim do século quando já se iniciara a disponibilidade !

. sumptuáriado soberanó mogol, imitada e ao mesmo tempo contestada por :toda a espécie grupos come'rciais e políticos do Norte da Índia (Bayly, ,1986). Do mesmo modo, o papel dos conflitos de classe e das lutas sump- .tuárias entre velhas e novas aristocracias pode ter pesos muito diferentes I

se compararmos o Japão e a Índia; onde a dissolução das ideias monár-quicas e o ascenso do capitalismo industrial têm relações causais e tem-porais internas muito diferentes. Poderíamos multiplicar estes exemplos.

A ideia metodológica geral é clára: assim como aprendemos, em par- "te pela polémica dá proto-industrialização, a não pressupor as ligaçõesentre as formas comerciais europeias e a ascensão do modo de produçãoe troca capitalistas, o mesmo s e passa com o consumo: o que temos queevitar é ir à procura de sequências preestabelecidas de mudança institu-cional, axiomaticamente definida como constitutiva da revolução do

,consumidor. Isso poderia promove r uma mllltiplicação dos cenários em .que emerge a sociedade de consumo, considerando-se que o resto domundo não é apenas um repetidor ou imitador dos precedentes conjun-

turais de Inglaterra ou Françà. Exploradas estas variações conjunturaisnas ligações entre classe, produção, comercialização e política em'lon-

gos sectores de determinada história, poderemos estar em melhor posi-ção para construir modelos de interacção globa-l no domínio do consu-

104

Comparando deste modo revoluções do consumidor, podemos man-ter a tensão entre a Zongue durée das localidades e a duração variáveidos vários processos mundiaIs operando uma distinção que já se revelouútil noutro c ontexto (cap. 3), a distinção entre história e genealogia. Ten-do cada uma destas palavras um ror de sentidos (conforme o jargão decada um), o meu é o seguinte: a história leva-nos para fora, a ligar pa-

drões de mudança a universos de interacçã o cada vez mais vastos; a ge-nealogia leva-nos para dentro, para disposições e estilos culrprais quepossam estar teimosamente inseridos nas instit uições locais e na históriados hábitos locais .. Assim, a história da relação ascética do Mahatma .Gandhi com o mundo da mercadoria pode levar tão longe quanto JohnRuskin, Henry David Thoreau e outros que, no Ocidente, articularamuma visãó pastoral, anti-industriaL Mas a genealogia da hostilidade deGandhi para com a mercadoria e o individualismo possessivo, em geral,leva provavelmente para dentro, para um prolongado desconforto índicocom ligações ao vasto campo das experiências sensoriais. Além disso,

relativamente a determinadas práticas ou instituições, história e genea-logia podem reforçar-se ao ponto de uma poder disfarçar a outra ou dese contradizerem mutuamerite, como no exemplo seguinte, tambem daÍndia: quando os Indianos começaram a entrar no mundo britânico oi-tocentista do v'estuário, adquiriram uma história que as elites indígenasacharam atraente, mas uma genealogia que foi mais perturbadora. Paraas elites brâmanes, por exemplo, a história do uso do chapéu ligava-as

. a uma narrati va do seu próprio passado cosmopolit a, colonial, mas a suagenealogia talvez fosse menos confortável, pois justapunha ideias muito

. diferentes sobre cabelos e como os cobrir, também crucial para os há- obitos brâmanes. No geral, em qualquer situação social e temporal IOca- .lizada, o estudo da Zongue durée relativamente ao consumo deve seracompanhado pela exp!oração simultânea das genealogias depráticas particulares. E provável que esta dupla historicizac;:ão revelemúltiplos fluxos processuais subjacentes a uma dada conjuntura e simul-

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ARJUN APPADURAI

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se refere ao estudo das revoluçõe s do : " ..\

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

produção, comercialização e consumo nas sociedades capitalistas, a rela-

ção da moda com aquilo a que Grant McCracken chamou

«pá tina» ainda não foi plenamente explorada. O problema da pátina, que

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De volta.à relação entre os pequenos cIclos dete,n:nmados pelas tecnIi

cas do corpo, que constituem o cerne de todas as pratIcas de consumo dUi

radouras, e pelas sequências mais abertas em que eles se inset ·

rem, é importante notar que o andamento destas periodicidades d1

pequena escala se pode situar em mais que a langue durée, com' os

cessos implícitos na história e genealogia a criarem múltiplas

dades para determinada prática (Halbwachs, 1980). Resulta ainda que,estudar as práticas de consumo de diferentes sociedades, devemos estai

preparados para encontrar uma de diferentes histórias e genealogiasl

presentes no mesmo momento. Assim, em França o consumo de perfume '

em 1880 (Corbin, 1986) pode apontar-se como um tipo de história da dis-

ciplina e estética física, ao passo que o consumo de carne corresponderá

a histórias e genealogias completamente diferentes. Quanto mais diversi-

ficada for uma sociedade; mais complexo será o conteúdo das suas inte-

racções com outras sociedades, mais fragmentada a história das suas prá-'

ticas de consumo, embora seja possível distinguir estilos, tendências e

padrões alargados. O movimento dos ritmos temporais de consumo curtOs '

para os longos é um movimento de mais para menos I

drão. Escrever a história da «distinção» no sentido de Bourdieu (1984) I

exige abertura ' a essa Nas secções que se seguem confi- II

nar-me-ei às sociedades em que a moda, pelo menos para algumas classes, I

se tornou um mecanismo dominante do consumo e em que a mercantili-

zação é. uma característica marcante da vida sociaL

Jf oda e nostalgia

Embora já muito se tenha dito sobre a moda (McCracken, 1988;. Mil-

ler, 1987; Simmel, 1957), ela ainda não está plenamente compreendida

como aspecto dos ritmos temporais das sociedades industriais e pós-indus-

tria is . E 'apesar de toda a gente saber que a rrioda é um elo crucial entre

106

McCracken propõe como termo geral p'ara tratar a propriedade de coisas

cuja idade se torna um indicador-chave de estatuto elevado, eI}cobre um

dilema mais fundo: o diiema de distinguir usar de gastar. Ou seja, se em

muitos casos usar é um sinal do tipo Certo de duração da vida das

coisas, o mero desmazelo ou decrepitude não o é. Enquanto propriedade

de objectos materiais, o uso é pois em si uma propriedade muito compli-

cada que requer considerável manutenção. Polir velhas pratas, }ímpar mo-

bílias antigas, remendar velhas roupas, envernizar soalhos antigos, tudo

isso entra nas práticas das classes altas em muitas sociedades ou, mais

exactamente, dos seus criados. Poderíamos dizer, parafraseando o conhe-

cido aforismo, «quanto à pátina, os criados dela». uma pá-

tina mal conservada torna-se por sua vez um sinal, ou de antecedentes po-

bres, patente contrafacção social (Goffman, 1951) ou, pior ainda, de

completa penúria. Em suma, a pátina é uma propriedade traiçoeira da vida

material, sempre aberta a falsificações e a maus tratos. A pátina dos ob-

jectos só assume o seu pleno significado num contexto adequado, tanto

de objectos e espaços para esses grupos de objectos como de pessoas quesaibam como indicar, com as suas práticas corporais, as suas relações com

esses objectos: vêm-nos ao espírito as casas rurais ingle sas bom

exemplo deste complexo conjunto de relações. Quando todas estas con-

dições estão reunidas, então a transposição da temporalidade, a subtil pas-

sagem da pátina do objecto para o seu dono ou real iza- se e a pró-

pria pessoa (ou família, ou grupo social) reveste-se da pátina invisjvel da

reprodução bem gerida, da continuidade temporal intacta. Mas a pátina,

a beleza da idade, não pode por si só gerar as associações temporais cor- '

'. rectas paIa os seres humanos. Aqui, como em muitas outras matérias que

envolvam vida material, o contexto é tudo. A distinção entre antiguidade

e sucata não é a pátina enquanto tal, mas a boa gestão sernióticado cori-

texto também que cuidar de um ritmo temporal delicado ,. em

especial quando a integraçãO nas elites se consegue de certo modo graças

107

 

ARJUN APPADURAI

à pátina. Como todas as coisas têm uma «biografia cultural» (Kopytoff,1986), mesmo os objectos que possuem a mais Ímutável pátina têm his-

o tórias possíveis, algumas das quais incl uem roubo, venda ou outros modos

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

mobília e design, jogam com muitos tipos de nostalgia, nostalgia de estilosde vida passados, conjuntos materiais, fases da vida (como ainfãncia),

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impr6prios de aquisição. Como sabem os novos-ricos, o importante é re-

gular o ritmo a que se reúnem objectos com pátina. Se for demasiado len-to, apenas os descendentes conhecerão os prazeres do esplendor que con-vém, se for demasiado veloz, vai ao encontrei odo de GeorrreBabbitt, mesmo rodeadodas coisas necessárias. Portanto, a gestão dos

mos temporais é essencial para a exploração da pátina.Como chave da vida material das aristocracias (e aspirantes a aris-tocracias), a pátina alimenta uma corrente mais profunda da vida socialdas coisas, que é a capacidade de certas coisas despertarem nostalgia,uma sintomatologia imortalizada por Marcel Proust. Os objectos compátina são perpétuas lembranças da passagem do tempoo omo uma lâ-mina de dois gumes, credenciais da «gente bem», mas também ameaça I

àmaneira como vivem. Sempre que a m aneira ari stocrátic a' de viver se. vê ameaça da, a pátina adquire um duplo significado: indica o esta tutoespecial do seu dono e a relação especial do dono com uma maneir°J. deviver que já não é possível. É essa maneira de viver que faz d:l pátina

um recurso verdadeiramente escasso, pois sempre indica que certa ma-neira de viver desapareceu para sempre. Contudo, este mesmo facto ser-ve de garantia contra os recém-chegados, pois eles podem adquirir ob-jectos com pátina, mas nunca a dos que têm legitimidade parachorar a perda de uma maneira de viver. Naturalmente, os bonstores podem prC'::urar mimar esta postura nostálgica, mas aí tanto o com-portamento como a sua revisão são uma questão mais rigorosamente re-gulamentada. É mais difícil fingir ter perdido lima coisa do que

Operdê-la

realmente ou afirmar tê-la encontrado. Aqui, o uso material não podedisfarçar a ruptura social.

O esforço para inculcar nostalgia é lima característica esscnci'11 dasmodernas técnicas de mercado, como se vêpelos gráficos e textos 1:1.0s· ca-tálogos de prendas nos Estados Unidos. Estes catálogos recorrem a um:J

série de dispositivos retóricos, mas particularmente no que toca a roupa,

108

paisagens (do tipo Currier e Ives), cenários (dó tipo cidade de província--NormanRockwell), etc. Muito se te m escrito sobre estas ques tões e dis-pomos de excelentes trabalhos sobre as relações entre nostalgia e au-tenticidade e colecções, brinquedos e panoramas (Breckenridge, 1989;Stewart, 1984). Mas o que não foi explorado foi o facto de essa nostalgia,no que toca às técnicas de mercado de massas, nãorecorrer em primeira

mão à evocação de um sentimento a que reagem os consum idores que per-deram realmen te qualquer coisa. Não, estas formas de para as omassas ensinam os consumidores a ter saudades de coisas que nunca per-deram (Halbwachs, 1980). Ou seja, criamO xperiências de duraçã o,sagem e perda que reescrevem as histórias vividas de indivíduos, famílias,grupos étnicos e classes. Criando experiências de perdas que nunca houve,estes anúncios engendram o que poderemos chamar «nostalgia imagina-da», a saudade de coisas que nunca foram. Esta nostalgia imaginada in-verte portanto a lógica temporal da fantasia (que orienta o sujeito para queimagine o que teria ou poderia ter aconteCido) e cria desejos muito mais

profundos do que a simples inveja, imitação ou cobiça poderiam suscitar.A torção final na lógica peculiar da nostalgia em políticas do consumo

de massas ir:nplica o que Frederic Jameson chamou «nostalgia do presen-te», expressão que us a para estudar certos filmes recentes que projectam

um futuro de cuja perspectiva o presente não só foi historicizado como

também confundido com algo que o espectador já perdeu (1989). A ideiade Jameson, esclarecedora no que toca a certas faixas do dnema e da li-teratura populares de hoje, pode-se alargar ao mundo do comércio de mas- .

: sas. A nostalgia do presente, a apresentação estilizada do presente como

", se já se tivesse desvanecido, caracteriza um vasto número de anúncios detelevisão, em particular os que se dirigem ao mercado juvenil. Surgiu todauma nova estética do vídeo, de um modo mais notável nas campanhasP_eP:i, je.ans Levi Ralph Lauren, em que cenas contemporâneassao llummadas, coreÕgrafadas e filmadas de modo a criar uma espécie deética de regresso ao futuro: frugal, surreal, com aspectos de ficção cien-

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tífica, ee m outros inequivocamente evocativo dos anos sessenta (ou cin-

quenta). Poderíamos considerar que muito desta estética se baseia numa

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

questão metodológica é simplesmente prestar atenção à regularidade pa-

radoxal com que, nas sociedades com consumo de massas, pátina é moda

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espécie de «histoire noire». Pôr assim o presente entre aspas torna-o já

objecto de uma sensibilidade histórica e assim estas imagens situam o

consumidor num presente já periodizado, .logo, presa ainda mais pronta

para a velocidade da. moda. Compra já, não porque fiques fora de moda

se não o fizeres, mas porque o teu tempo em breve vai ficar fora de moda.

Portanto, nostalgia e moda arrastam-se mutuamente ainda que não

queiram, não só por a nostalgia ser um instrumento astuto saído da caixa

de ferramentas da comercialização, como também por causa da contínua

. alteração de traços mínimos (que está no âmago da moda) que já adquiriu

a dimensão da reciclagem, especialmente nos Estados Unidos, o que é no-

tável. Vasculhar na -história tornou-se uma técnica corrente da publicida-

. de, em particular dos anúncios visuais e electrónicos, como modo de ape-

lar à nostalg ia genuína. dos grupos etários por passados que na realidade

conhecem pelas experiências alheias, mas ta:mbém como meio de subli-

nhar a fugacidade intrínseca dQ presente. Os catálogos que exploram a ex-

periência colonial para efeitos comerciais são um excelente exemplo desta

técnica (Smith, 1988). O sentimento inculcado, calculado para intensificaro tempo da compra jogando com a versão publicitária do fim da história,

é a novidade mais recente do pacote de nostalgia e fantasia nas técnicas

.de mercado modernas. Em vez de contar com o consumidor para fornecer

recordações enquanto o anunciante fornece o lubri ficante da nos talo-ja'" ,

agora o espectador apenas tem que trazer a faculdade da nostalgia para

uma i.magem que abasteça a memória de uma perda que ele não sofreu.

Esta relação pod eria chamar-se nostalgia de sofá, nostalgia sem experiên-

ci a vivida ou me mória histórica colectiva. Uma questão metodológica que

aqui se põe é deOíridole interpretativa: quando pensamos nestas imagens

a que os consumidores modernos reagem,te mos que distinguir entre si di-

ferentes texturas de temporalidade. Precisamos de discriminar entre a for-

ça da nostalgia na sua forma primária e a nostalgia sucedânea, de a

publicidade de massas cada vez mais se serve, e esperar que as

sam relacionar-se nos padrões de consumo de diferentes grupos. A outra

110

se alimentam e reforçam mutuamente. As técnicas de mercado não só

çonstroem o tempo, como já referimos, como influenciam a periodização

enquanto experiência de massas nas sociedades contemporâneas.

Regressemos brevemente à questão darepetição relativamente ao con-

sumo,já aflorada na análise anterior. Como podemos ligar o problema da

repetição às questões da fantasia, da nostalgia e do consumo nas socieda-

des de consumo contemporâneas? Na medida em que o consumo -é cada

vez mais levado a vasculhar histórias imagimidas, a repetição qão ·se ba-

seia simplesmente no funcionamento de simulacros no tempo, mas tam-

bém na força -dos simulacros do tempo. Não apenas o consumo cria tempo

através das suas periodicidades como o funcionamento da nostalgia suce-

dânea cria simulacros de períodos que constituem o fluxo do tempo, con-

cebido como perdido, ausente ou distante. Assim, a habituação ansiosa de

estilos, formas e géneros previsíveis, que fomenta o consumo como acti-

vidade multiplicadora em aberto é potenciada por uma construção do tem-

po implosiva, retrospectiva, em que a própria repetição é um artefacto de

nostalgia sucedâne a e momentos de percurso imaginados .

A mercantilização do tempo

O consumo não se limita a criar tempo, as revoluções do consumidor

são também responsáveis pela mercantilização do tempo sob várias for-

mas. A ideia geral nesta área deve-se, evidentemente, a E. P. Thompson

que, partindo de Karl Marx, demonstrou que as disciplinas do local de tra-

"-__: balho operário criam necessidades de regulamentação do trabalho pela

prévia reestruturação do próprio tempo. Dilatando a transformação do. tra-

balho em mercadoria, o temp o de trabalho torna-se uma dimensão abstrac-

ta do tempo vivido como fundamentalmente produtivo e industrial.

Thompson identifica a lógica que há-de levar depois às ideias taylorianas

sobre corpo, movimento e produtividade (Thompson, 1967). À moderna

111

 

ARJUN APPADURAI

ideia de produção tem pois no seu centro o tempo como entidade vendá-

vel, glosando a homilia de Benjamin Franklin, «tempo é dinheiro».

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALl7AÇÃO t® Wi:

Com efeito, há pouco por onde fugir aos ritmos da produção .inçlus-

trial, pois sempre que o lazer é efectivamente acessível e sociálmente ® t

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Mas temos menos reflexões fundamentais sobre a mercantilização do

tempo do ponto de vista do consumidor. Nas primeiras sociedades indus-

triais, em que o tempo industrial marca o ritmo do ciclo laboral, a produ-

ção define o trabalho e o c;ohsumo é tido por residual a par do lazer, que

vem a ser reconhecido logicamente como recompensa pelo tempo de pro-

dução bem empregado. O consumo evolui para marcador fenomenológico

do tempo que o trabalho deixa de fora, que o trabalho produz, que o tra-

balho justifica. As actividades de lazer transformam-se na própria defini-

ção de consumo discricionário (Rojek, 1987), o consumo no processo que

cria as condições para mais trabalho ou para a energia empresarial que a

produção requer. Assim, . o consumo é. visto como o intervalo necessário I 'entre períodos de produção. I

Mas, uma vez mercantilizado, o tempo afecta o consumo de uma ma-

neira nova. Primeiro, a porção de tempo sobre o qual se tem controlo dis-

cricionário toma-se um indicador classificar e distinguir vários tipos

de trabalho, classe e profissão. O tempo «livre», seja para operários, pro-

fissões liberais ou estudant es, é considerado acima de tudo tempo de con-sumo; e como o c onsum o discricionário requer tempo livre (tempo liberto

de restrições mercantilizadas) e dinheiro livre, pelo menos em certo grau,

,o consumo toma-se um marcador temporal do lazer, do tempo fora do tra-

balho. Transformado o consumo em formas contemporâneas de lazer em

que tanto o espaço como o tempo marcam a distância em relação ao tra-

balho, entramos no mundo do cruzeiro de luxo e dos pacotes de férias,

mercantilizados como «tempo fora do tempo». Mas quem quer que tenha

tirado férias dentro das circunstâncias altamente restritivas de uma soc ie-

dade industrial, sabe que o relógio mercantil do tempo produtivo nunca

pára. Isto leva por ao paradoxo cada vez mais característico do lazerindustrial: as férias frenéticas, tão atulhadas de actividades, cenários e o.p-

ções, com o propósito de criar um hipertempo de lazer, que acabam por

se tomar uma forma de trabalho - trabalho sempre ciente do seu

seguinte com o tempo de trabalho.

112

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aceitável, Q que é preciso não é apenas tempo livre, mas rendimento dis-

pOJ?ível. Para consumir, seja por subsistência seja por lazer, temos que

aprender a poupar dinheiro, esse valor fluido mais que Como sa-

lientou Mary Douglas, o dinheiro ameaça sempre escoar-se pelas frin-

chas das ' estruturas que construímos para barrar, poupar e restringir os

seus erráticos fluxos (1967). Nas sociedades industriais em que a dívida

do consumidor se tomou monstruosamente grande, as instituições finan-

ceiras exploraram a propensão dos consumidores para gastaf em de

poupar. Do ponto de vista do consumidor, não são meras vítimas de um

sistema explorador de empréstimos financeiros. A econom ia do crédito .

é também uma maneira de aumentar o poder de compra face a grandes

diferenças salariais, um crescimento explosivo do que é comprável,

grande intensificação na velocidade com que mudam as modas, etc. Dí-

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vida é expansão do lucro po r outros meios. Claro que, de certas pers- ' €)

pectivas, pagar grandes quantias em juros para honrar dívidas de con-

sumo .não é saudável. Mas para quem? O consumidor pode travar as suas

compras, as instituições financeiras fazem uma razia e há derramamento. oOO

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de sangue periódico sob a forma de grandes colapsos, como a recente

catástrofe das caixas económicas nos Estados Unidos ou os brutais au-

mentos das t'axas de juro que asfixiam temporariamente as despesas do

consumidor.

Com efeito, como atesta a imensa popularidade de revistas como Mo-ney, nos Estados Unidos, o consumo nas sociedades industriais complexas

é agora um exercício muito complicado que requer o conhecimento de

uma vasta série de mistérios fiscais e económicos, desde as volatilidades

do mercado bolsista até ao crédito para habitáção e à circulação monetá-

ria. Na década passada, m<;i.is consumidores americanos do que nuncaverain que se tomar versados nos mistérios da macroeconomia, pelo me-

nos . na medida em que são forçados a entrar para o labirinto · dos

empréstimos ao consumidor. Claro que há um grupo crescente na base,

nomeadamente os sem-abrigo, que já gastaram as fichas todas e agora têm

113

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ARJUN APPADURAI

que ficar a ver, ou morrer, nas filas laterais enquanto os seus amigos e co-

legas se debatem na roleta da gestão das dívidas de consumo. A relevânc ia

deste processo para o nosso estudo é que, em sociedades como os E stados

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

-se a função civilizadora da sociedade pós-industrial (Elias, 1978). Falar

de sociedades industriais contemporâneas como sociedades de consumo

é criar a de que elas são meras extensões dás anteriores revoluções

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Unidos, há uma luta emergente gigantesca, embora silencio·sa, entre con-

sumidores e emprestadores, em que se defrontam entendimentos ri vais do

futuro como mercadoria. Sempre que os bancos e outros financiadores es-

tão ansiosos por estimular o empréstimo (o seu maior desafio é minimizar

os maus empréstimos), o consumidor tem que definir um horizonte aberto

noqual descontar o futuro é obra extremamente traiçoeira. As p.olémicas

recentes, nos Estados Unidos, sobre reduções nas contribuições para a Se-

gurança Social revelam que a maior parte dos consumidores americanos

estão presos numa espécie de percepção dístorcida dos impostQs ?- que es-

. tão sujeitos. Boa parte desta confusão radica na deformação da sensação

do tempo operada pelas estruturas que normalmente organizam a dívida

do consumo. De notar entre elas é o tipo de linha de crédito baseada na

equidade interna, através da qual os consumidores podem simplesmente

assinar cheques de uma grande soma especificada que define a opinião do

banco sobre a sua capacidade para pagar. Isto implica pegar nas pequenas

periodicidades do cartão de crédito corrente e transforiná-las num sedutor

panorama de poder de compra flexível que em última análise aproveita

ao banco e ao comércio retalhista, ao mesmo tempo que condiciona cada

vez mais os rendimentos familiares ao serviço desses empréstimos.

Este aspecto da criação de disciplina temporal pelo lado do consumo

nas sociedades industriais avançadas não é um simples reflexo, ou inver-

são, da lógica da produção industrial. A mercantilização do fu-

turo, que está no âmago da actual dívida do consumidor, está intimamerite

liaada à estrutura das técnicas de mercado, moda e fantasia de que falárnos""a seccão anterior. Este consumo industrial mais recente assenta numa pe-

culiar entre fantasia e nostalgia que dá substância (e sustentação)

à incerteza do consumidor quanto às mercadorias, ao dinheiro e à relaçãoentre trabalho e lazer. Não se trata simplesmente de o consumo desempe-

nhar o principal papel em onde outrora ele foi da produção,

como afirmou Baudrillard (197SJ;'mais propriamente, o consumo tornou-

114

do consumidor. Mas hoje o consumo transforma a sensação do tempo de

uma maneira que o distingue fundamentalmente dos seus predecessores

dos séculos XVIII e XIX.

As grandes inovações em matéria de empréstimos tiveram portanto um

notável efeito cultural. Criaram um clima de circuito aberto em vez de cí-

clico para os empréstimos ao· consumidor e c om isso ligaram o emprésti-

mo ao longo sentido linear de uma vida inteira de ganhos potenciais e ao

sentido, igualmente· em aberto, do aumento do valor de ·bens como casas,

em vez de o manter ligado aos ciclos curtos intrinsecamente restritivos do

rendimento mensal ou anual. Nas modernas sociedades industriais, 6 con-

sumo tornou-se portanto, para um grande número de consumidores, o mo-

tor e não o horizonte do rendimento. Para um antropólogo, o mais ímpres-

sionante (à parte as muitas implicações para a poupança, á produtividade,

o investimento, a legitimidade geracional, etc.) é que as pequenas perio-

dicidades (normalmente diárias) do consumo ficaram subtilmente contex-

tualizadas num sentido linear, aberto, do próprio ritmo da vida do consu-

midor. O equivalente da disciplina do tempo de Thompson reina agora não

apenas no domínio da produ·ção, mas também no domínio do consumo.

Mas, estando o consumo atado a irregulares, compleXas e

muitas vezes longas, estas disciplinas temporais do consumo têm mais

força porque são menos transparentes do que as disciplinas da produção.

Quem tiver tentado percebera exacta lógica da carga financeira numa fac-

tura mensal do MasterCard saberá a que incerteza me refiro.

Mas não se trata simplesmente de o consumo se ter tomado a força mo-

" . triz da sociedade industrial. O facto é que consumo é agora a prática

social que leva as pessoas para aobra da fantasia (caps. 1 e 2). É a prática

. diária que traz fantasia e nostalgia juntas para um mundo de objectos mer-cantilizados. Na análise anterior, afirmei que uma espécie de nostalgia su-

cedânea - nostalgia sem memória - está cada vez mais n? centro dos

mercados de massas e que o jogo da pátina e da moda é por isso paradoxal.

115

 

ARJUN APPADURAI

Sugiro agora que a mercantili:zação do tempo por parte do consumo im-plica mais do que a simples expansão dos desejos, estilos, objectos e op-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

mais em aberto, situado em histórias e genealogias cuja conjuntura temque ser examinada, infelizmente, caso a caso. O estudo do consumo terá

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ções testemunhada em anteriores revoluções do consumidor. Temos agoraalgo que está para além de uma revolução do consumidor, algo a que po-demos chamar «revolução do consumo» em que o. consumo se tornou aprincipal função da sociedade industrial tardia. Não quero com isto dizerque não tenha havido importantes mudanças na produção ou nos locais,métodos, tecnologias e organizações do fabrico de mercadorias.

O consumo tornou-se actualmente uma fonna séria de trabalho, massó se por trabalho entendermos a produção disciplinada (especializada esemiespecializada) dos meios de subsistência do consumidor. O coraçãodeste trabalho é a disciplina social da imaginação, a disciplina de aprendera ligar fantasia e nostalgia com o desejo de novos montões de mercado-rias. Não estou a reduzir o trabalho a uma pálida metáfora, mero reflexoda sua forte ligação à produção. Estou a sugerir que aprender a navegarnos flu;<.os temporais abertos do crédito e compra, numa paisagem em quea nostalgia se divorciou da memória, implica uma nova forma de trabalho:

. o trabalho de ler mensagens de moda em pennanente mutação, o trabalho

de pagar dívidas, o trabalho de aprender a bem gerir finanças domésticasde uma nova complexidade e o trabalho de adquirir conhecimentos nascomplexidades da gestão do dinheiro. Este trabalho não visa sobretudo aprodução de mercadorias, visa .produzir as condições de consciência em

que pode ocorrer a compra. Agora, qualquer dona de casa sabe que go-vernar a casa é trabalho, tão real como qualquer outro. Agora, somos todosdonas de casa, trabalhamos todos os dias para praticar as disciplinas dacompra numa paisagem em que as estruturas temporais se tornaram radi-calmente polirrítmicas. Aprender todos estes ritmos (de corpos, produtos,modas, taxas de juro, prendas e estilos) e integrá-los não é apenas trabalho- é o mais duro dos trabalhos, éa obra da imaginação. Voltamos a Durk-heim e a Mauss e à natureza da consciênciacolectiva, mas agora com umadiferença. O trabalho de consumir é tão social como simbólico e não émenos trabalho por implica r a da imaginação. Mas, cada vezmais liberto das técnicas do corpo, o trabalho de consumir está por isso

116

que aten der condições históricas, sociais e culturais em que se desen-rola esse trabalho como preocupação central de sociedades contemporâ-neas, aliás muito diferentes.

Conclusão

Duas direcções muito diferentes, 'uma que vai beber a MafC Weber, aoutra a Norbert Elias, ColiÍl Campbell (1987) e Chris Rojek (1987), su-gerem que a chave das modernas formas de consumismoé o prazer, nãoo lazer (a alternativa crucial para Rojek) ou a satisfação (a alternativa cru-cial para Campbell). Esta opção pelo prazer como princípio organizadordo consumo moderno converge com a minha tese das duas secções ante- .riores deste capítulo, mas resta demonstrar como é que o tipo de prazerem que penso se relaciona cOm os meus. argumentos de tempo, trabalhoe corpo.

No que toca à sensação do tempo, o prazer que está no centro do con-sumo moderno não é o prazer da tensão entre fantasia e utilidade (comosugere Camp,bell) nem as tensões entre desejo individual e disciplinas co-lectivas (proposta de Rojek), embora estes contrastes sejam relevantespara uma explicação mais ampla do consumismo móderno. O prazer quetem sido inculcado nos indivíduos que agem como consumidores moder-nos, vamos encontrá-lo na tensão entre nostalgia e fantasia, em que o pre-sente é representado como se fosse já passado: Esta inculcação do prazer "do efêmero é o que disciplina o consumidor moderno. A 'valorização doefémero exprime-se avários níveis sociais e a: curta vida de pra-teleira dos produtos e estilos de VIda; a velocidactecom que muda a moda;a velocidade dos gastos; os polirritmos do crédito, da aquisição e da ofer-ta; a transitoriedade das imagens dos produtos na televisão; a aura de pe-riodização que paira sobre os produtos e os estilos de vida na iconografiados meios de comunicação de massas. O mais louvado aspecto do consu-

117

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ARJUN APPADURAI

mo moderno - a saber, a busca de novidade - é apenas um sintoma deuma disciplina de consumo mais profunda em que o desejo se organizaem torno da estética do efémero. Há bolsas de resistência em toda a parte,

CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

e genealogias que se cruzam (no mundo do presente) para consti-tmrem esta nova relação são profundamente variáveis, embora tra;am em

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enquanto os aristocratas deitam abaixo as suas tocas sumptuárias, as clas-ses operárias e outros grupos submetidos se apropriam e resistem à esté-tica de massas e enquanto os Estados de todo o mundo procuram a imor-talidade travando a cultural. Mas a força dominante que circulano seio das classes consumidoras do mundo parece ser a prática ética, es-tética e material do efémero.

·Se. a valorização do efémero for re alment e a chave para o consumomoderno, então as técnicas do corpo diferem onde antes contrastavam.como regimes sumptuários e de moda: Nos regi messumptuários, o corpo Ié o sítio onde se inscreve uma série de sinais e valores de identidade ediferença, bem como de duração (através dos ritos de passagem). Nos re- 'gimes de moda, o corpo é o sítio onde se inscreve um desejo generalizado .de consumir no contexto da estética do efémero. As técnicas do corpoapropriadas para este regime moderno de consumo pressupõem o queLaura Mulvey chamou escopofilia (gostar de olhar) (1975); uma série detécnicas (que vão das dietas às operações de mudança de sexo) para mudar

o corpo que tornem o próprio corpo do consumidor potencialmente efé-mero e manipuláve l; e um sistema de práticas de moda ligadas ao corpoem que a personificação (de outros sexos, classes, papéis e profissões),

. não a indexação, é a chave da distinção (Sawchuk, 1988).A noção de manipulação do corpo, bem como a minha tese geral sobre

o consumo como trabalho, levanta essa outra de saber como é que a es-tética do efémero, o prazer de olhar (particularmente em relação aos anún-cios de relevisão) e a manipulabilidade do corpo correspondem a uma coi-sa essencialmente nova; afinal, o consumo, em especial o consu mo no lar,implica sempre sacrifício, o prazer visual não é uma prerrogativa moderna

e manipular oorpo é tão velho como a ginástica em Esparta e as práticasióguicas na Índia antiga. O que é novo é a ligação sistemática egene'ra-

. \ liz.ada destes três factores num conjunto de práticas que envolvem umaradicalmente nova entre desejar, recordar, ser e comprar. As his-

118 II.;I'.I·

si a valorização do efémero. O consum o cria tempo, mas o mo-derno procura substituir a estética da duração pela estética do efémero.

Embora o exame completo da relação entre corpos, moda etemporalidade no capüalismo tardio esteja fora do âmbito deste capítulo,vale a pena faze'r uma sugestão, a concluir. No seu recente ensaio sobrea iconografia do sistema imunitário no discurso científico e popular con-

temporâneo nos Estados Unidos, Emily Martin (1992) inspirou-se na obrade David Harvey (1989) e outros para mostrar que, no contexto da flexi-bilidade que o capitalismo global actual exige, houve muita compressãode tempo e espaço e o corpo acaba a ser visto como um sítio caótico; hi-perflexível, pleno de contradições e conflitos. A tese que defendi neste ca-pítulo sugere que esta situação também pode ser encarada do ponto de vis-ta da lógica do consumo num capitalismo tardio altamente alobalizado e. . c .

Desta perspectiva, a estétiça do efémero torna-se a contrapar-tida da acumulação flexível e a obra da imaginação é ligar o efémero dosbens com os prazeres dos sentidos. O consumo torna-se assim o elo-chave

entre nostalgia do capiralismo e nostalgia capitalista.

119

 

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SEGUNDA PARTE

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a descolOnização do críquete indiano

Para uma ex-coI6nia, a descolonização é um diálogo com o passado

colonial e não o mero desmantelar dos hábitos e maneira de viver colo-niais. Nunca as complexidades e ambiguidades deste diálogo foram maisevidentes do que nas vicissitudes do críquete naqueles países que fizeramparte.do Império Britânico. No da Índia, os aspectos cultura is da des-colonização afectam profundamente todos os domínios da vida pública,desde a língua e as artes até às ideias de representação política e justiça

Em todos os grandes debatés públicos havidos na Índia con-temporânea, há sempre um nível subjacente, qu'e é a questão de saber oque fazer corri os farrapos e remendos da herança coloniaL Alguns desses

" " remendos são institucionais, outros são ideológicos e estéticos.'

Malcolm Muggeridge .disse uma vez, por piada, que «os Indianos são 'os últimos Ingleses vivos», assim captando o facto - verídico, pelo me-nos para as elites urbanizadas e ocidentalizad as da Índia - de haver, 'en:quanto a Inglaterra se ia progressivamente desnaturando à medida queperdia o império. aspectos da sua herança que foram ganhando raízes fun-

123

 

ARJUN APPADURAI

das nas colónias. Nas áreas política e económica, a relação especial entrea Índia e a Inglaterra já quase não tem significado, pois a Inglaterra pro-cura vencer o desastre económico e os Indianos cada vez se voltam mais

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

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.

para os Estados Unidos, o Médio Oriente e o resto do mundo asiático. Mashá urna parte da cultura indiana actual que parece para sempre inglesa: éo críquete. Vale pois a pena examinar a dinâmica da descolonização nestaesfera em que a necessidade de cortar as amarras com o passado colonialparece mais fraca.

, O processo que foi gradualmente dando ao críquete ,a qualidade indí-gena na Índia colonial é mais acessível se distinguirmos entre formas cul-turais «duras» e «brandas». As formas culturais duras são as que chegamc0!ll um conjunto de ligações entre valor, significado e prática incorpora-da, difíceis de quebrare renitentes à transformação. As formas culturaisbrandas, pelo contrário, são as que permitem separar com relativa facili-dade a execução incorporada do significado e do valor e um relativo su-cesso na sua transformação a todos os níveis. Nos termos desta distinção, "direi que o críquete éuma forma cultural dura que muda quem estiver nelesociali zado mais depressa do que muda ele próprio. '

Urna razão para que o críquete não seja facilmente susceptível çie rein-terpretação quando transpõe barreiras sociais é que os valores que repre- !

senta S.10, no fundo, valores puritanos em que a rígida adesão a códigos" externos faz parte da disciplina da evolução moral inte'rna (James, 1963,capo 2). Um pouco corno os princípios do desenho da Bauhaus, daqui de-corre directamente a função (moral). Em certa medida, todos os desportoscom regras têm esta mesma dureza, mas podemos afirmar que ela estámais presente nas formas competitivas que alcançam integrar os valoresmorais da sociedade em que nasceram

Assim, o críquete, como forma cultural dura, devia resistir à indigeni-zação. E, com efeito, aO contrário do que seria de esperar, foi profunda-mente indigenizado e descolonizado e muitas vezes se diz que a Índia.so-fre de uma autêntica «febre» do críquete (Puri, 1'982). Há duas maneirasde explicar este enigma. A primeira, recentemente sugerida por AshisNandy (l989b) , é que há no desporto estruturas míticas, logo abaixo

124

"críquete na India) é que ocríquete foi indigenizado mediante um conjuntode processos complexos e contraditórios presentes quando emergiu do Im- O 1\

pério Britânico uma indiana. A tese desenvolvida neste capítulo (" ), é que a indigenização é muitas vezes produto de experiências colectivas ....... ,ie espectaculares com a modernidade e não necessariamente da afinidade U j

subcutânea de novas formas culturais com padrões existentes no repertó- Orio cultural. , ( ) .A indigenização de um desporto como o críquete tem muitas dimen- O

sões: tem algo a ve r com a corno um desporto é gerido, apoiado C)e publicitado; tem a lgo a ver com a origem de classe dos jogadores india-nos, logo, com a sua capacidade de mimar os valores da elite vitoriana'tem algo a ver com a dialécticà entre espírito de equipa e sentimentocional que é inerente ao desporto e implicitamente corrosiva dos laços doimpério; tem algo a ver com a maneira'como se cria e alimenta um reser-vatório de talentos fora das elites urbanas, de tal forma que o desporto

pode tomar-se internamente sustentável; tem alg'o a ver com a maneiracomo os meios de comunicação e a linguagem contribuem para libertar ocríquete da sua britanidade; e tem algo a ver coma construção pós-colo-nial de um público masculino capaz de conferir ao críquete o peso da com- ,petição física e do naci onalismo viríl. Estes processos interagem entre si '

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( )indigeni zam o críqu ete ,na Índia de um modo distinto do processo para-lelo noutras tolónias britânicas. (Para certo sentido da diáspora noconjunto do império, ver Allen, 1985.)

Como é óbvio, a história do críquete depende do ponto de vista que a -O

conta. As notáveis implicaç,ões da história do críquete nasCaràíbas estão 'Oimortalizadas na obra de C. L. R. James (1963; ver também Diawara, .o1990, e Birbalsingh, 1986). Os Australianos travaram um longo combate r '- eo:polado críquete - para se libertareI? maneira beata e pa-ternallsta como sao olhados pelos Ingleses. A Afnca do Sul encontra .o :...J

críquete maIs uma foma conflituosa de conciliar as suas genealogia;, '=

125

 

ARJUN APPADURAI

bóeres e inglesa. Mas é nas colónias ocupadas por pessoas negras e mo-renas que a história do críquete é mais dramática e 'subtil: nas Caraíbas,Paquistão, Índia eSri Lanka (sobre último, ver Roberts, 1985). Não

DIMENSÕES CULTURA.lS DA CLOBALlZAÇÃO 00

do campo de jogos podiam aceder a uma intimidade limitada com osseus superiores. O preço da admissão era a total dedicação ao desportoe, normalmOnte, um grande talento em campo. Na Inglaterra vitoriana,

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)

pretendo afirmar que o que o críquete implica em matéria de descoloni-zação, visto da perspectiva indiana, serve para todas as masé seguramente uma parte de uma história maior, a da construção de um

enquadramento cultural global para desporto de equipas.

o ecúmeno colonial

Não é exagero afirmar que o críquete esteve mais perto que qualquer

outra forma pública da tarefa de destilar, constituir e comunicar os va-lores das classes altas vitorianas em Inglaterra aos cavalheiros inglesesno âmbito das suas práticas físicas e a outros como meio de apreenderos códigos de classe da época. A sua história em Inglaterra remonta aoperíodo pré-colonial e é seguro que o desporto é de origem inglesa. Nasegunda metade do século XIX, altura em que adquiriu muito d a sua mor-fologia moderna, o críquete configurou-se também como a mais pode-

rosa condensação de valores de elite vitorianos. Estes valores, sobre osquais muito se tem escrito, podem resumir-se do seguinte modo. O crí-quete era uma actividade essencialmente masculina e exprimia os códi-

ogos que deviam reger todo o comportamento masculino: desportivismo,um sentido de jogo limpo, pleno controlo da expressão de sentimentosfortes dos jogadores no terreno, subordinação de sentimentos e interes-ses pessoais aos do grupo, lealdade inabalável à equipa.

Embora se tenha tornado um instrumento fundamental de socializa-ção para a elite vitoriana, o críquete encerra desde o início um paradoxosocial. Foi incensado como instrumento de formação da elite, mas, como o

todos os jogos complexos e fortes, confirmava e criava confrarias queo ranscendiam a classe. Por isso estava sempre aberto à entrada dos mem-

bros mais talentosos (e úteis) das classes média e baixa. Aqueles plebeusda Inglaterra vitoriana capazes de se submeter à disciplina social e moral

126

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o críquete foi uma via.limitada para a mobilidade social. Claro que, por

muito que jogasse críquete com ele, nunca um inglês iria confundir umOJ...jord Blue com um jogador profissional operário do Yorkshire. Mas

no campo (onde a cooperação era necessária), ficava de certo modo sus-pensa a brutalidade de classe inglesa. Houve também quem observasse

que a presença desses jogadores das classes baixas permitia à vi-toriana incorporar as técnicas de dureza necessárias para semprescindir da ideia de que o desportivismo exige um distancia mento pa-

trício da compet itividade. Os jogadores profissionais de classe baixa fa-ziam portanto o trabalho sujo subalterno de ganhar para que os su-periores de classe pudessem preservar a ilusão de um desporto fidalgo,não competitivo (Nandy, 1989b, pp. 19-20). Este panidoxo intrÍnseco-um desporto de elite cujo código de correcção ditava uma abertura aootalento e vocação de pessoas com origens humildes - é a chave da his-tória dos primórdios do críquete na Índia.

?urante quase todo o século XIX, o críquete foi um desporto segregado

na India, com ingleses e indianos a jogar em equipas opostas se acaso jo-gassem juntos. O críquete estava associado aos clubes, as principais ins-tituições sociais britânicas na

OÍndia. Os clubes indianos de críquete (e as

. equipas a eles associadas) foram em grande medida um produto do últimoquartel do século XIX, embora houvesse já desde os anos de 1840 algunsclubes parses sediados em Bombaim. Nesta como em outras matérias, osParses foram a comunidade que serviu de ponte entre os gostos culturais

. indianos e ingleses. As equipas parses da Índia fizeram digressões em In-\ oglaterra n,os anos de1880 e, em 1888-89, a primeira equipa inglesa per-

ocorreu a India (emb"ora a maioria dos jogos tenham sido contra equipas

compostas exclusivamente por ingleses, poucos foram contra equipas deindianos). Bombaim foi o berço do e continua-a terum papel de destaque na cultura do cnquete mdIano.

Embora nunca tenha havido uma política consciente de °apolo durante

127

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ARJUN APPADURAI

o regime colonial da Índia, o críquete desenvolveu-se como instrumentooficioso da política cultural do Estado. Isso ficou a dever-se em grandemedida ao empenhamento cultural dos jl1embros da elite vitoriana que

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

As biografias e autobiografias dos melhores jogadores indianos ,destaépoca, como.Vijay Hazare (1976; 1981), L. P. Jai (Raiji, 1976) e MushtaqAli (1981), todos com carreiras no críquete nos anos de· 1940, mo'stram o

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ocupavam postos-chave na administração, educação e jornalismo indianose que viam no críquete o meio óptimo para transmitir os ideais vitorianosde carácter e cultura física à colónia. Lorde Harris, governador de Bom-

baim de 1890 a 1893, foi talvez a figura crucial do patrocínio semioficialdo críquete na Índia e atrás dele veio uma sucessão de governadores, tanto

em Bombaim como nas outras circunscrições, que consideraram o eríque-te apto para desempenhar as seguintes funções: consolidar os vínculos doimpério; lubrificar os negócios de Estado entre várias «comunidades» in- I

dianas, que de outro modo poderiam degenerar em rebeliões comunitárias I.

(hindu-muçu'lmanas); e implantar o ideal inglês de masculinidade, carác-ter e .vigor nos grupos indianos considerados preguiçosos, irrequietos eamaneirados. Nesté aspecto, o críquete foi um dos muitos campos em quese edificou e reificou uma sociologia colonial. Nesta sociologia, a: Índiaera considerada um agregado de comunidades antagônicas, povoadas por

homens Ce mulheres) com uma série de defeitos psicológicos. O críquetefoi tido como ideal para social izar os nativos em novos modos de conduta

entre grupos e novos padrões de comportamento público. Ostensivamenteconotado com diversão e competição, o seu manual oficioso subjacenteera moral e político. Esta contradição subjacente entre equipas organiza-das por «comunidades» e o ideal de criar vínculos cívicos mais amplos

influenciou o desenvolvimento do críquete do princípio até ao presente edela trataremos com mais pormenor na secção seguinte deste capítulo.

No geral, entre 1870. e 1930, no auge do período do Raj, não há dú-vidas que, para os Indianos, jogar críquete era entrar nos mistériosdavida da classe alta inglesa. Orapor jogar com equipas de Inglaterra,constituídas por homens que se tinham conhecido ora em Eton e Harrow,

Oxford e Cambridge, ora nas viagens a Inglaterra, um pequeno segmen-

to da população indiana dada ao desporto foi iniciado nos mistérios mo-

rais e sociais e nos rituais do críquete vitoriano (Cashman, 1980; Doc-

ker, 1976).

128

claramente qüe estiveram expostos (a despeito das suas várias inserçõessociais) às opções de valores ligadas ao críquete vitoriano -: - desportivis-mo, recusa do individualismo, espírito de esquipa - bem como à hagio-arafia e lituraia do críquete de todo o império, mas especialmente de In-c .

glaterra.

Mas classe e raça conspiram de modos muito complexos novitoriano» CBreckenridge, 1986, p.196) e nas estruturas eduardinas que seseguiram. Afirmei já que o críquete vitoriano acarretava importantes distin-:-

ções de classe em Inglaterra, distinções que ainda hoje afectam as relaçõesentre cavalheiros e jogadores profissionais, treinadores e jogadores, críquetede província e de campeonato. Juntos, homens brancos de todas as classescontribuíram para criar e dar corpo a um código desportivo cujas dimensõesde moral patrícia eram fundamentais para as classes altas e em que a perícia«operária» apontava o papel das classes trabalhadoras no desporto. (Clarkee Clarke, 1982, pp. 82-83, dá um interessante tratamento das peculiares in-

flexões da ideia de masculinidade na ideologia desportiva inglesa.) A com-oplexidade deste modelo específico de discurso colonial ilustra também umavariante do num contexto diferente, foi considerado ambivalên-cia do discurso colonial CBhabha, 1994),

. Como em muitos outros sectores, entre os quais a arte, a alíngua e a conduta, é hoje bem claro que, durante o apogeu do colonia:'lismo moderno, se desenvolveu um complexo -sistema de hegemoniza-ção e hierarquização de valores e práticas, conjuntamente nas metrópo-lé!s e nas suas colónias (Cooper e Stoler, 1989). No caso do críquete na

:, \ Índia, a chave para os fluxos complexos que ligavam críquete, classe eraça no ecúmeno colonial foi a questão do patrocínio e do treino. Ambas

as biografias atrás referidas e uma excelente explicação sintética (Cas-hman, 1980, capo 2) tornam claro que-1\o período entre 1870 e 1930 oenvolvimento britânico no críquete indiài\ü foi muito complexo: ?ficiaisdo exército estacionados na Índia, homens de negócios de Inglaterra e

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ARJUN APPADURAI

funcionáfios públicos superiores, todos eles contribuíram para implantar I

a ideia do críquete em cenários indianos. Ao mesmo tempo, po- :

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

muitos jogadores indianos fora das grandes cidades coloniais no períodoanterior à Segunda Guerra Mundial, uma ou outra forma de subsíqio dascasas principescas foi a chave da sua entrada no mundo cosmopolita do

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ré!ll' os príncipes indianos chamaram à Índia jogadores profissionais in- I

gleses e australianos para treinarem as suas equipas.A fase do patrocínio dQS príncipes no críquete indiano é em certos as -

pectos a mais importante na análise da indigenização deste desporto. Pri-meiro, o críquete, enquanto desporto de elite, exigia tempo e dinheiro de

que as elites burguesas da Índia colonial não dispunham. Os príncipes, poroutro lado, depressa viram no críquete uma extensão da sua tradição reale integraram despOI:tos como o pólo, o tiro Com carabina, o golfe e o crí-quete nos seus repertórios aristocráticos tradicionais. Isso permitia-lhesoferecer aos súbditos um novo tipo de espectáculos (Docker, 1976, p. 27)e ligar-se à aristocracia inglesa de uma forma potencialmente nova e pro-veitosa, além de os deixar bem vistos junto das autoridades coloniais daÍndia (comO Lorde Harris) que favoreciam o críquete como meio de dis-ciplinar moralmente os orientais. Os príncipes que apoiavam o eríqueteeram muitas vezes membros menores da aristocracia indiana, pois era um

. desporto um tanto mais barato do que outras formas de patrocínio e es- ,pectó.culo real. O críquete tinha três atractivos como acessório do estilode vida e da ética da pequena nobreza indiana: (a) o seu papel, em especial 'no Norte, como arte viril da cultura aristocrática do lazer; (b) as creden-ciais'vitorianas, que abriam em Inglaterra portas que de outro modo esta-riam menos oleadas (como no caso de Ranjitsinhji); e (c) o seu papel deextensão utilitária de outros espectáculos públicos reais que eram umaparte importante dos deveres e da mística da realeza na Índia. Assim, aolon?o de todo esse século, pequenos e grandes príncipes de muitas partes I

da India importaram tre.inadores de Inglaterra, organizaram torneios e pré-mi os, subsidiaram equipas e treinadores, instalaram terrenos e campos, .

importaram equipamentos ec ompetêrtc ias e receberam equipas inglesas.Mais importante do que isso, os príncipes apoiaram directa e indirec-

tamente muitos jogadores (ou as suas famílias) de origens humildes 'queacabavam por conseguir vencer em cidades maiores, em equipas mais im-portant es e, por vezes, obter visibilidade nacional e internacional. Para

130

críquete de grande A esses jogadores foi pois possível conse-guir, através do críquete, uma certa mobil idade e introduzir um grau con-siderável de complexidade de classe no críquete indiano, complexidadeque ainda hoje persiste. . .

Os alicerces da indianização do críqueteforam

pois assentados me-diante o cruzamento complexo, hierárquico, de cavalheiros britânicos naÍndia, príncipes indianos, indianos com mobilidade à funçãopública e ao exército e, acima de tudo, profissionais brancos do críquete'(sobretudo de Inglaterra e da Austrália) que efectivamente treinaram osgrandes jogadores indianos das primeiras décadas do .§.éculo xx. Estes pro- .fissionais, dos quais se 'destacaram Frank Tarrant, Eill Hitch e .Grimmett, bem como alguns militares ingleses mais inseridos na socieda-de, reitores universitários e homens de negócios 'que treinaram promessasindianas, parecem ter sido os elos cruciais entre estrelato, aristocracia ecapacidade técnica no mundo do críquete indiano em geral. O que estes

treinadores profissionais conseguiram foi desenvolver as capacidades téc-nicas cruciais para que as fantasias promotoras dos príncipes indianos(que por sua, vez estavam presos às suas próprias fantasias de um ideal ·monárquico e aristocrático de império) se traduzisse m em equipas india-nas competitivas efectivamente compostas por Índianos. Embora não hajaprova irrefutável da interpretação que proponho, é altamente provável querapazes da província, como Mushtaq Ali. Vijay Hazare e LaIa Amarnath,teriam tido grandes dificuldades em entrar para 'o mundo selectivo do crí-quete mundial (ainda dominado pelos códigos desportivos ingleses e vi-torianos) sem a tradução do críquete numa prát ica de técnica física pores- .

tes profissionais brancos das classes baixas. Não se trata, portanto, damera reprodução na Índia de um enredo de clas se anglófono, mas de, nacirculação de príncipes, treinadores, oficiais do exércit o, reitoresejhgadores com uma origem de classe humilde, entre a Índia, a Inglaterrae a Austrália, se ter formado um complexo regime imperial de classe em

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ARJUN APPADURAI

:

que as hierarquias sociais' indiana e inglesa interligadas se aliaramproduzir, na década de 1930, um quadro não elitista de indianos quesentiam tão genuinamente jogad ores de críquete como «indianos»'. . \

A esta luz, o grande batedor nobre Ranjitsinhji (1872-1933) é

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBA.LIZAÇÃO

credenciais impecáveis de Ranji na sociedade, a sua total devoção às ins-tituições inglesas (desde a escola até à coroa) e a sua inabalável lealdadeao império. Assim, não apenas revolucionou o críquete e oferecia às mul-

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velmente uma triste excepção, pois pa ú ele o críquete e ogaram-se tão profundamente que nunca pôde aceitar a sério a ideia de ?críquete se r umjogo indiano. Era ojamsaheb de Nawanagar, um pequenoreino em Saurastra na costa ocidental da Índia. RanJ'i ocupa um lugar

I

rico nos anais do críquete e a inda hoje é cons iderado (a par de um punhadode outros, como W. G. Grace, Don Bradman e Gary Sobers) um dosres batedores de todos os tempos. Vale a pena passarmos uns momentoscom Ranji, pois ele exemplifica bem o que é o críquete colonial. Por ir:oJ,nia, talvez sido precisamente esta identificação profunda com o im-\pério e com a coroa que permitiu a Ranji tornar-se o supra-sumo, metáforaviva da forma «oriental» de excelência no

Ranji não foi simplesmente um grande batedor. Os círculos do críqueteviam nele um ericanto oriental peculiar. Sobre ele, disse o grande C. B.Fry: «Mexe-Se como se não tivesse ossos; não seria de admirar vermoscurvas castanhas queimar a relva onde tivesse passado um dos seus cortesou chamas azuis tremulando em torno do seu bastão no momento da ba-tida.» Neville Cardus dizia: «Quando lhe tocou bater, viu-se pela primeiravez uma estranha luz nos campos ingleses.» Clem Hill, o internacionalaustraliano, dizia simplesmente: «Ele é mais que um batedor, ele é um ma-labarista!» Bill Hitch, o rápido lançador do Surrey e da selecção inglesa,referia-se-lhe como «o mestre, o .mágico» (todas as citações em Mellow,1979, capo 9).

Ranji trouxe umgénio indiano especial à arte do batedor, donde a re-ferência amagia e malabarismo, a luzes estranhas e chamas azuis. Com

. ele representava o belo inverso do efemin ado, do preguiçoso e

falta de vigor que os Indianos representavam para muitos teóricos colo-niais (Hutchins, 1967, capo 3; Nandy, 1983). Em Ranji, a malandrice eraastúcia, o truque, magia, a fraqueza, subtileza e a efeminação transforma-ra-se em garbo. É claro que este encanto oriental teve muito a ver com as

132

tidões uma iguaria extraordinária sempre que jogava, como permitiu queos públicos ingleses lessem nas suas actuações uma oferenda leal doOriente misterioso aos campos de jogos de Eton. Ranji era o modelo con-sumado do inalês de cor. Mas não restam dúvidas de que RarUi pertenceu

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àquela geração de príncipes indianos para quem a lealdade à coroa era

uma extensão do orgulho de serem Indianos e vice-versa, embora .umaanálise recente sugira que os empenhamentos de Ranji podiam ser expre$-sões de profundas dúvidas e conflitos (Nand y, 1989b). A históriade Ranji é apenas um caso e>stremo de uma ironia mais geral: é que os .príncipes indianos que fomentavam o críquete como maneira de entrarempara o mundo patrício vitoriano, e que se opunham frontalmente ao mo-vimento nacionalista, foram quem de facto lançou as bases da mestria dos ..

indianos plebeus nesse desporto que nos anos trinta viria a florescer numorgulho empolado pela competência indiana no jogo.

Críquete, império e nação

Hoje, a e'xtraordinária popularidade do críquete na Índia está clara-mente ligada ao sentimento .nacionalista. Mas no princípio desta história,como já observámos, o críquete fomentou dois outros tipos de lealdade.O primeiro foi (e é ainda) para com as identidades religiosas (comunitá-rias). O segundo tipo de lealdade, um tanto mais abst ractame nte' instituído

. . no desporto, foi a lealdade ao império. A questão interessante aqui é saber",-- como emergiu a ideia de nação indiana da ideia de entida de desportiva de

destaque.Já no tempo em que os Parses organizaram os primeiros clubes, nos

meados século XIX, a inserção nas comu.nidades religiosas tomou.-se oprincípio <1btacado em torno do qual os IndIanos se agr upav am para Jogarcríquete. E este princípio organizador permaneceu até ser desaloj:H.lo na

 

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ARJUN APPAD URAI

. décad a de 1930. Hindus, parses, muçulmanos, europeus e, por fim, «o res-to» (um rótulo par a os grupos sem marca comunitária reunidos pelas equi-pas de críquete) organizaram-se em clubes de críquete. Desde o início quehouve grande polémica sobre os prós e contras desta organização comu-

DIAfENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

o princípio comunitário estava condenado a tornar-se ocioso à me-dida que aumentavam a seriedade e a qualidade do críquete na india.

O críquete inglês, pelo contrário, organizava-se em torno de um siste-ma em que a nação era a unidad e exemplar e os condados, não as co-

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nitária do críquete. Embora noutras zonas da Índia os grandes patronos do. desporto f-ossem os príncipes, que não queriám saber de princípios comu-'nitários quando recrutavam jogadores, nas circunscrições da Índia Britâ-nica os jogadores dividiam-se em grupos religiosos e étnicos, alguns dosquais eram antagonistas em aspectos mais gerais da vida pública. O crí-quete foi pois um domínio importante em que tanto os jogadores como asmultidões aprendiam a pensar-se como hindus, muçulmanos e parses, por I

contraposição aos europeus.Tem-se feito ITlUito bom trabalho em história que mostra que estas

categorias sociais foram criação e instrumento de uma sociologia colo-nial do poder (Appadurai, 1981; Cohn, 1987; Dirks, 1987; Freitag, 1989;Pandey, 1990; Prakash, 1990). Mas o facto é que elas penetraram pro-fundamente na concepção que os Indianos tinham de si próprios e navida política e cultural indiana. Embora seja verdade que as classifica-çõesdemográficas, o controlo das oferendas religiosas e a questão dos

eleitorados separados eram os principais domínios oficiais em que asmatérias de identidade comunitária se reificavam no âmbito de uma so-ciologia colonial da Índia, há que não subestimar o papel do críquete

. neste processo. Pelo menos na Índia Ocidental, os funcionários britâni-cos. como o governador Harris, olhavam o críquete com complacência,como válvula de escape da hostilidade comunitária e como meio de en-sinar os Indianos a viverem amistosamente com a diversidade comuni-tária. Ma s, profundamente mergulhados . nas suas próprias ficções defragmentação da sociedade indiana, o que não perceberam foi que nocampo de jogos (como noutro qualquer sítio) perpetuavam as concep-

ções comunitárias de identidade que nas cidades indianas poderiamt.er-

-se mais É assim ?aradoxo deBombmm, talvez a maIs cosmopo lita das cIdades ver o seuprincipal desporto de elite organizar-se segundo linhas comunitárias.

134

; ;

munidades, as suas circunscrições básicas. Por outras palavras, terri-tório e nação para Inglaterra, comunidade e diferenciação cultural paraa Índia (ver capo 6). Portanto, quando as equipas inglesas começam apercorrer a Índia, a questão foi construir uma equipa «indiana» que

fosse um adversário à altura. Nas primeiras digressões, nos anos de1890, estas equipas indianas contavam com uma maioria de' ingleses,mas à medida que mais indianos começaram a jogar e mais patroriose empresários a organizar equipas e torneios, era inevitável que fossem

buscar o talento indiano para construir uma equipa indiana de primeira

categoria. Este processo, que levou a que o críquete na Índia fosse sen-do cada vez mais representado por indianos, segue a história da evo-

lução do indiano como um movimento de massas, o quenão é de admirar. No contexto da Índia colonial, o críquete lança poisuma luz inesperada sobre a relação entre nação e império. Na medida

em que Inglaterra não era exactamente o mesmo que império', teria que

haver outras entidades paralelas nas colónias contra as quais .o Esta-do-nação inglês pudesse jogar: logo, foi preciso inventar a «Índia»,pelo menos para efeitos de críquete colonial. .

Contudo, e surpreendentemente, houve pouca comunicação explícitaentre os responsáveis pela organização do críquete na Índia numa basepan-indiana e o Partido do Congresso pan-indiano Ce outros) que (a partirda década de 1880) se empenharam profissionalmente na ideia de uma. na-

; ção indiana livre. A ideia de talento indiano, equipa indiana e' . indiana no críquete internaci()nal surgiu de um modo relativame.nte inde-

pendente, graças ao estímulo oficioso dos seus patronos é divulgadores.

Portanto, o nacionalismo do críqueteemerge como uma excrescência pa- 'radoxal, ai nda que lógica, do desenvolvimento do críquete em Inglaterra:Em vez de se r o desfiar da comunidade imaginada de políticos naciona-listas na Índia, o críquete de sentimento nacional foi oferta interna da em- o

135

 

ARJUN APPADURAI \

presa colonial, e por isso criou a necessidade de empresas cognatas na-e protonac ionais nas \

. Nao obstante, quando o cnquete se tornou mais popular, nas três pri-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

Vernacularização e meios de comunicação

Os meios· de comunicação desempenharam um papel crucial na indi-genização do c ríquete, desde l ogo através dos comentários desportivos em

',

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meiras décadas do século xx, e o movimento nacionalista, em particularcom o Mahatma Gandhi e o Congresso Nacional Indiano, ganhou imp6r- .tâncianesse mesmo período, o nacionalismo do críquete e explicitameritea política nacionalista tal entraram em contacto com a vida cdr-rente dos jovens indianos. Assim, N. K. P. Salve, um importante pOlítido

e empresário de críquete indiano, recorda como, nos primeiros anos trinth,ele e os seus amigos foram intimidados impedidos de jogar num bel'oterreno de críquete em Nagpur por um tal Mr. Thomas, um sargento an,-glo-i ndiano do campo que «parecia um búfalo africano doCabo, maciço e corpulento; aliás, possuía características ofensivas, rudese grosseiras» (1987, p. 5). Após diversos episódios assustadores etuosos com (a figura clássica do subalterno que mantinhados dos espaços sacrossantos do exercício imperial os moços nativos), 0,pai e os amigos de Salve,. todos influentes seguidores locais de Gandhi, '

intervieram a favor dos rapazes junto de um funcionário superior britânicode Nagpur e conquistaram-lhes o direito de usarem o campo quando nãoestivesse em uso oficial. De toda a narrativa que Salve faz desta históriadesprende-se um forte sentido do medo que ele tem do subalterno anglo--indiano, a atracção sensual de jogar num campo oficial, a ofensa por osIndianos não terem ace$SO a um espaço público e o sabor nacionalista doressentimento. É provável que o nacionalismo do críquete e a política na-c.ionalista oficial raramente andassem juntos nos debates ou movimentos·públicos conscientes,mas afectassem a experiência vivida do jogo, técni-ca, espaço e direitos de muitos jovens indianos nas pequenas cidades e

.. campos de jogos da Índia anterior à independênCia. Contudo, o aumentode uma consciência e de um entusiasmo pelo críquete não pode ser com-

preendido sem uma referência ao papel da língua e dos meios de comu-nicação.

136

língua inglesa emiti dos pela All-India Radio a partir de 1933. Quase sem-pre em inglês durante os anos trinta, quarenta e cinquenta (Cashman,1980, pp. 145-146), a partir dos anos sessenta o relato radiof6nico começaa ser cada vez mais' em hindi, tâmil e bengali, a par do ingfês. O comen-

tário radiof6nico multilingue é provavelmente o instrumento decisivo dasocialização do público indiano nas ' subtilezas do de.sporto. Einbora a co-bertura dos jogos internacionais (em que entram a Índia e outros países)

. se limite ao inglês, hindi, tâmil e bengali, outros encontros de primeiraclasse eram acompanhados por comentários radiofónicos em todas asprincipais línguas do subcontinente. Não foi feito qualquer estudo siste-mático do papel do c omentário vernacular do críquete na socialização dosindianos não urbanos na cultura cosmopolita deste desporto, ·mas ·é .evi-dente que se tratou de um factor decisivo na sua indigenização.

Através das rádios, que são acessíveis de todo o lado e atraem grandesmultidões nas est ações de ca minho-de-ferro, cafés e outros lugares públi-cos, os Indianos absorveram a terminologia inglesa do críquete, especial-mente a estrutura dos substantivos, numa série de padrões vernacularessintácticos. Esta espécie de gíria desportiva é crucial para a indigenizaçãodeste desporto, pois permite contactar com uma forma de arcano ao mes-mo tempo que a forma é linguisticamente domesticada. Assim, o vocabu-lário elementar. dos termos do críquete em inglês é conhecido em toda a

. Índia (e cada vez mais até aldeias). .As complexas experiências linguísticas que emergem no contexto das

;"'\ emissões radiofónicas vernaculares estão exemplificadas na narrativa deRichard Cashrrian que se segue. Durante o campeonato de 1972-73, depois

de Ajit Wadekar ter afastado Pocock da linha da frente por quatro, tevelugar uma conversa entre Laia Amarnath, o especialista, e o comentadorem hindi. O diálogo ilustra esta linguagem híbrida e alguns dos ri scos doseu uso:

 

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ARJUN APPADURAI

Comentador hindi: Lalaj i, aap wo back foot straight drive ke bare me kya ka- i

hena chahte hain? I

Amamath: back foot drive thi ... badi. sunder thi ... wristy thi. :

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO ,

Tanto para os espectadores como para os anunciantes, é o desporto te-

levisivo perfeito. .

A televisão está na charneira da privatização do lazer na Índia con-

temporânea (como em toda a parte). À medida que o espaço público

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Comentador. Han Badl nsky thl. Wadekar ko alsa nahm khelna chahiye .

Amarnath: Commentator sahíb, rí sky nahín wristy. Wrist se mari hui ..

[Tradução]

Comentador: LaIa, what would you like to say about th at straight drive offthe i

back foot?

Amarnath: Th at was a fron't and not a back foot drive .. it was beautiful... was

wristy.

Comentador: So that was ri sky. Wadekar shouldn'thave played like tha t.

Amarnath: Mr. Commentator, risky is not wristy. It was hit with the wrist...

Comentador: Laia, que gostaria de dizer sobre o lançamento vertical com

apoio do pé atrás?

Arnarnath: Do pé à frente, não atrás .. Foi lindo . . foi pulsado [wristy, soa rÚty] ...

Com.entador: Com que então foi arriscado [risky ]. O Wadekar não devia ter

jog;tdo. assim.

Amarnath: Senhor comentador, risky não é wristy. Foi batida com o pulso ..

(Cashma n, 1980, p. 147). . .

Embora a.tradução de Cashmannão seja inteiramente fiel, most ra mui-

to claramente que a vcrnacularização do críquete comporta as suasrastei-

ras linguísticas. O que Cashman não refere; porém, é que através da aná-

lise desses erros os locutores em hindi domesticam um termo esotérico docríquete como wristy.

A hegemonia jornalística do críquete (muitas vezes objecto de quei-

xas de adeptos de outros desportos) aumentou com a cheaada da tele vi-. b

são. Tendo um início muito modesto, com audiências reduzidas, no

final dos anos sessenta; hoje a televisãojá transformou por completo acultura do críquete na India. Como já salientaram diversos comenta'do-

res , o críquete é adequado para televisão, com as suas

. muitas pausas , a concentração espacial da acção e o formato alongad o.

138

-.

se vai tornando mais violento, desordeiro e desconfortável,' os que po -dem comprar um televisor consomem os espectáculos na companhia da

família e dos amigos. E isto aplica-se a duas grandes paixões das ma s-

sas: o desporto e o cinema. Num caso através da cobertura em directo

e no outro através de reposições e videocassetes, o estádio e a sala de

cinema estão a ser substituídos pela sala de estar como sala, de espec-

táculos. O's jogos internacionais ainda têm muito público, m'as as mul-

tidões que aparecem são mais voláteis. Desapareceu a complexa expe-

ri ência partilhada entre ricoS e pobres, o espectáculo do estádio é uma

experiência mais polarizada e irregular que muitos não preferem ao

frio, omnisciente,ecrã de televisão privado. Como em qualquer parte

do mundo no que tOca aespectáculos com escala de massas, o público

dos desafieis ao vivo faz ·parte do cenário numa exibição grandiosa en-

cenada em benefício dos espectadores de televisão. A multidão não

está lá para gozar a vitalidade do espectáculo, mas para dar dele tes-

temunho aos espectadores de televisão. O público de um espectáculo,do seu próprio ponto de vista, faz parte do espectáculo para os que fi-

cam em casa'. Também isto entra no processo de indigenização e des-

colonização.

A televisão reduz as equipas e as estrelas estrangeiras a um

aceitável, domestica visualmente a natureza exótica do desporto, em es-

pecial para aqueles que' antes só ouviam os relatos pela rádio. E, 'para

um país que tem nas estrelas de cinema as suas maiores celebridades, a

'-.,_. televisão confere autoridade cinemática aos desportos de espectáculo.

Numa civilização em que -ver (darsan) é o instrumento sagrado da co-

munhão, a televisão intensificou o estatuto de estrelas dos grandes jo -gadores indianos de críquete. Os internacionais indianos nunca foram

objecto de m aior adul ação do que ,na década de 1980, com intensas

transmissões dos grandes jogos pela televisão. A televi são ap rofundou

139

 

ARJUN APPADURAI

a paixão nacional pelo críquete que a rádio alimentara, mas tanto o co-mentário como a transmissão televisiva foram reforçados,do ponto de vista da recepção e participação do público, com um arandeaumento do número de livros, cobertura nos jornais e consumo ode re-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOB/tLl7AÇÃO

fornece não apenas um contacto vocabular como também uma ligaçãoentre este vocabulár io e o entusiasmo do ouvido ou vÍstodo

jogo, os lançamentos, o ritmo, a excitação física. A britanidáde da ter-minologia do críquete é levada para os mundos do hiridi, tâmil .

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vistas desportivas, não apenas em inglês como também nas línauas ver-. °

A proliferação de notícias, biografias das estrelas, comentários e li-teratura e.ducativa, especialmente nas zonas onde se joga mais, cons-

· titui um importantíssimo pano de fundo para a força especial da tele-visão. Enquanto este material vernacular é lido e ouvido por aquelesque não lêem pessoalmente, a rádio é ouvida e imaginada ao vivo e acobertura pela televisão faz a transição para o espectácl,llo. Estas for-mas mediatizadas criaram um público extrerpamente vasto, instruído

nas subtilezas do desporto em muitos e diferentes aspectos e pode tra- I.zer para o críquete paixões geradas na leitura, na audição e no visio-namento. .

.0 papel da literatura popular vernácula é crucial neste processo,pOIS o que esses livros, revistas e panfletos fazem é criar uma ponte

as línguas vernáculas e a língua inglesa, 'dar imagens e nomes de

Jogadores estrangeiros na escrita e na sintaxe índicas e reforçar o corpode termos de contacto (os termos ingleses transcritos para hindi, ma-

rata ou tâmil) ouvidos na rádio. Algum desse material é também ins-· e elaborados diagramas e textos verbais a acompanhar

essas Ilustraçoes que explicam os vários lançamentos, estilos rearas elógica do críquete aos leitores que possam não saber inglês. Est; pro-cesso de vernacularização, que analisei com grande pormenor num

d . . 1co.rpo e matenaIs em marata , fornece um repertório verbal que per-

mIte que um grande número de indianos sintam o críquete como uma

familiar, libertando assim este despor to da pró-

· p.na bntamdade que de início lhe conferira autoridade moral e misté-no.

. O rád!o (e mais na televisão) const i-tUI o p:J.sso na do vocabulano do críquete porque

140

e bengali, mas simultaneamente posta em contacto íntimo com a práticareal do jogo nas ruas, recreios e pátios dos Índia urbana e tam-bém nos terrenos livres de muitas aldeias. Por isso a aquisição da ter-minologia do nas línguas vernaculares reforça o sentido de

competência física no desporto que, por sua vez, recebe um impulso vi-goroso das transmissões regulares em televisão. Imita-se as grandes es-trelas do críquete, dá-se aos filhos os seus diminutivos e a terminologiado críquete, as jogadas e as estrelas, as regras e os ritmos, passam a fazerparte da ' pragmática vernacularcom um sentido de competência físicavivida. ' .

O vasto corpo de impresso em línguas vernáculas reforçaesta ligação entre controlo terminológico e excitação e excelência físicas'

porque fornece uma grande quantidade de informações, estatísticas e li-turgias que estendem o apoio à competência linguística e iconográfica

daqueles indianos que não se sentem inteiramente confortáveis no mun-do anglófono. Em muitos livros, revistas e panfletos em vernáculo, asregras, jogadas e terminologia do críquete (quase sempre transcritos di-rectamente do inglês por forma a que . continuem a fazer par t'e 'do ecú-me no linguístico internacional do críquete) trazem muitas vezes diagra-mas esquemáticos. Estudando maduramente as vidas e estilos 'dosjogadores, tanto indianos como estrangeiros, e integrando esse estudoem minuciosas discussões e diálogos.sobre questões de arbitragem e re- .

. gulamentação (como a arbitragem neutral), estes materiais prendem a"'-" terminologia do críquete ao corpo como lugar do uso e sentimento da

língua. Além disso; ao situarem estes materiais instrutivos nas notícias,

nas conversas, nas estrelas e nos acontecimentos de sensação que ro-deiam o críquete, dão-lhe entrada num mundo mais vasto de celebrida-des, controvérsias e contextos exteriores ao desporto, o que o integraainda mais no terreno linguisticamente familiar.

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ARJUN APPADURAI

A revista em língua hindi Kriket-Kriket é um excelente exemplo domundo do leito r vernáculo (ver Appadurai e Breckenridge,1991b), pOlS esta revista contém anúncios de literatura popular em hindi,de banda.s des'enhadas hindis, de vários produtos para o corpo, como lentes '

DIMENSÕE.S CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

tos por um escriba de serviço ou com a assistência de redactores profissionaisnão diminui a força que têm como instrumentos de compreensão do críquetcpara muitos leitores exteriores ao mundo anglófono. Ligando a vida de umaestrela a lugares, acontecimentos, escolas, professores, treinadores e outros

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de cootacto e loções indígenas, e álbuns fotográficos de estrelas do crí-que te. Há também anúncios de vários manuais de conselhos práticos emformato de bolso, muitos a explicar técnicas como as de electricidade ouestenografia, mas também sobre estranhos temas, como métodos para fa-zer óleo lubrificante para máquinas. Finalmente, uma profusão de fotos a

cores de estrelas do críquete e muitas notícias de desafios e torneiospeciais dão a sutura textual para uma colagem muito mais variada de ma-teriais que têm a vex com os estilos de vida e as fantasias modernas. Sendoas revistas como a Kriket-Kriket relativamente baratas no custo de produ-ção e no preço, a qualidade gráfica e do papel é má e podsso não é nadafácil distinguir os vários tipos de not ícias e artigos de opinião dos anúnciosde outros tipos de literatura e serviços. O efeito total é o de uma rede con-tínua de impressões verbais e visuais de cosmopolitismo em que ocríque-

te é o tecido de ligação. Outras revistas vernáculas são mais castas e me-nos interoculares do que esta, mas, tomadas em conjunto com outro

material impresso e especial mente com as experiências adjacentes da rá-dio, televisão e documentários cinematográficos dos jogos de críquete,não restam dúvidas de que a cultura do críquete consumida por leitoressemianglófonos é decididamente pós-colonial e poliglota., Talvez mais importantes ainda sejam as histórias em jornais e revistas,

bem como em livros, que contam as biografias desportivas de várias estrelasnovas e velhas. O que estaS histórias vernaculares fazem é situar a técnicao entusiasmo do desporto em narrativas linguisticamente acessíveis, tornan-do. assim compreensíveis não apenas as estrelas, mas vidaS desportivas tangí-,velS. Estas vidas para ler tornam':'se então a base de uma renovada intimidade

na recepção de rádio e na cobertura de televisão dos eventos desportivos e amagia física do mais rústico rapaz, a jogar com fraco equipamento e em terramaninha, fica ligada, ao nível da língua e do corpo, ao mundo dos es-pectáculos de críquete. O facto de muitos destes livros e serem fei-

142

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jogadores conhecidos, cria-se uma estrutura em que o críquete ga-nha vida e as suas estrelas se tornam' palpáveis (para um excelente exemplodisso mesmo, ver Shastri e Patil, 1982). .

A força geral do acesso aos meios de comunicação é portanto pode-rosamente sinestética. O críquete é lido, ouvido e visto e a força das ex-

periências de uma vida de críquete, de assistir de vez em quanpo a jogosao vivo e ver as estrelas e da eventualidade, mais previsível, do espectá-cuIa do críquete em televisão, tudo isso não apenas para vema-culizar o críquete como também para injectar os termos-chave' e os tro-pos-chave do críquete nas práticas físicas e nas fantasias relacionadas com'o ,corpo de muitos rapazes indianos. Imprensa, rádio e televisão refor9am--se mutuamente e criam um ambiente em que o críquete é ao me smo,tem-po maior que a vida (por causa das suas estrelas, dos espectáculos e daassociação ao faSCÍnio dos campeonatos do mundo e da vivência interna-cional) e próximo da vida, por ser transmitido, em biografias, manuais e

noticiários que já não são mediatizados pelo inglês. Quando os, indianosdas várias regiões linguísticas da Índia vêem e ouvem os relatos de crí- 'quete na televisão e na rádio, não são neófitos a por enten-der uma forma inglesa, mas sim espectadores culturalmente instruídospara quem o críquete foi prof1:mdamente vernaculizado. Assim se instalaum conjunto complexo de elos vivenciais e pedagógicos através do quala recepção do críquete se torna um instrumento essencial de subjectivida-de e acção no processo de descolonização. '

o império contra-ataca

,Do lado da recepção, a descolonização implica a aquisição de literaciacultural em críquete pelas massas e este lado da descolonização implica

143

 

ARJUN APPADURAI

o tipo de apropriação da competência que todos nos dispomos a aplaudir.Mas há também uma dimensão produtiva na descolonização e aqui entra-mos no mundo complexo do empresariato e do espectáculo, do apoio es-tatal e dos grandes lucros privados. .

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DIMENSÕES C[jLTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO ', - ' I

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patrocInlOdo cnquete apos a Segunda Guerra MundIal tenha SIdo emgrande. uma iniciativa comercial por parte das grandes empresas U(integrada nos seus orçamentos de relações públicas e publicidade), o ( )

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Sendo embora verdade que os indianos mais pobres e menos urbanospuderam entrar no mundo cosmopolita do críquete graças ao apoio real ouoficial no período anterior à Segunda Guerra Mundial, a base de classe re-lativamente ampla, mesmo das melhores equipas indianas, não teria duradoapós a guerra se não fosse o modelo, fascinante e assaz raro, do patrocíniodo críquete por parte das'grand es empresas, particularmente em Bombaim,mas também no resto da Índia. O patrocínio empresarial do críquete é umfacto intrigaI1te na sociologia do' desporto indiano. Os aspectos essenciaissão os seguintes: muita's empresas de prestígio optaram por contratar joga-dores excepcionais no princípio das suas carreiras, dar-lhes considerável li-berdade de manterem horários de treino rigorosos (<<sem descontos») paragarantir a sua boa forma, e o mais importante é que lhes asseguravam em- ,prego como membros regulares do seu pessoal depois de terminadas as car-reiras desportivas. Empregar jogadores foi considerado, no princípio, naBombaim dos anos cinquenta, uma forma lucrativa de publicidade social

que dava boa reputação à empresa por apoiar um desporto cada vez maispopular, algumas estrelas e a saúde da imagem nacional na competição in-ternacional. Dar emprego a jogadores de críquete significou a promoção do

, talento nas grandes cidades, mas no caso do Banco da Índia (uma grandeinstituição do sector público), foram recrutados excelentes jogadores e con-tratados para as agências de toda a Índia, de modo que este patrono, por si

só, foi responsável pelo fomento do críquete longe das suas sedes urbanas.O patrocínio empresarial do críquete é portanto responsável por providen-ciar não apenas meios de estabilidade quase profissionais a um desportocujos ideais mais profundos são amadores, como também pela iniciativa

continuada de ir buscar jovens co m aspirações às classes mais pobres e àszonas semi-rurais da Índia. .

Em contrapartida, o apoio empresarial significou que o Estado pôdefazer um investimento relativamente baixo no críquete e mesmo assim

144

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Estado indiano foi generoso com a suaextensão do' apoio mediático ao ( )

jogo. A aliança entre investimentos controlados pelo Estado - , através Odos meios de comunicação e da presença das forças de segurança,. dos Üinteresses comerciais privados que garantem aos jogadores segurança na

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carreira ede um complexo corpo público(embora

não governamental)...-

chamado Comissão de Controlo - forneceu as infra-estruturas da trans- Oformação do críquete numa grande paixão nacional ao longo das quatrodécadas que se seguiram à independência da Índia, em 1947'.,

( )

A fase da televisão na história do críquete indiano integra-se, eviden-temente, na intensa comercialização recente do críq!lete e na respectivamercantilização das suas estrelas. Como outras figuras do desporto no

mundo capitalista, as estrelas m,ais famosas do críquete indiano são hoje Umetamercadorias, à venda enquanto promovem a circulação de outrasmercadorias. O desporto está cada vez mais nas mãos dos publicitário.s,promotores e empresários, com a televisão, a rádio ea imprensa a alimen-

tarem a paixão nacional pelo desporto e pelas suas estrelas. Essa mercan.:tilização dos. espectáculos públicos parece à primeira vista ser simples-mente a expressão indiana de um processo mundial e por isso representar,

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não a descolonização ou a indigenização, mas a recolonização pelas forçasdo capital internacional. Mas sobre tudo a intenção agressivados capitalistas indianos de agarrarem opotencial do críquete para fins co-merciais.

Transformado em paixão nacional pelos processos do espectáculo, oetiquete tomou-se, nas décadas de setenta e oitenta, uma questão de en-tretenimento de massas e de mobilidade para algumas pessoas e assim se

revestiu de atractivos (Nandy, 1989b). As multidões de indianos vão mos-trando cada vez mais avidez de vitórias indianas nos jogos internacionaise subind.o o tom dos vitupérios nas derrotas, no país e no estrangeiro. Jo-gadores, treinadores e dirigentes caminbam, pois, sobre o arame, mais ten-

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ARJUN APPADURAI

so do que nunca. Vão colhendo os lucros do estrelato e da'comercializa- IIão, mas têm que ser cada vez mais solícitos para os críticos e as multi- Idões, que não toleram reveses mesmo temporários. E isso sign.ifica um au- 1

mento regular da pressão pela excelência técnica.A seguir a uma quebra acentuada desde os meados dos anos cinquenta

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

com um período em que o impacto dos meios de comunicação, da comer-. 'cialização e da paixão nacional consumiram quase por completo os"'Velhos

modos vitorianos associados ao críquete. O críquete é hoje agressivo, es-pectacular e muitas vezes pouco desportivo, com públicos sedentos de vi-tórias nacionais'e jogadores e promotores à caça-clos patacos. É difícil não

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até ao fim dos anos sessenta, o críquete indiano aIcançoualgumas vitóriasextraordinárias em 1971 sobre as Índias Ocidentais ea ambasnos campos do adversário. Embora a equipa de 1971 tenha sido aplaudidatanto pelas multidões como pelos críticos, houve quem sugerisse que as

vitórias deveram muito à sorte e à baixa de forma das equipas adversárias.Não obstante, 1971 marcou um ponto de viragem do críquete indiano soba direcção de Ajit Wadekar. Depois disso houve alguns reveses, no en-tanto os. jogadores indianos demonstraram que podiam bater os seus an-tigos senhores coloniaisI1os seus campos e os formidáveis jogadores ca-ribenhos nos deles. Estas vitórias de 1971 assinalam a inauguraçãopsicológica de uma nova ousadia no cnquete indiano.. Os anos setenta foram um período em que todas as egúipas interna-

cionais foram humilhadas pelas Índias Ocidentais, que pareciam demasia-do fortes para serem vencidas, com os seus batedores brilhantes, os seuslançadores extraordinariamente rápidos (e medonhos) e a sua velocidadeno campo. O críquete tomara-se o desporto do Caribe, com todos os outrosa esforçarem-se por também ficarem na Neste contexto, o mo-

. mento mais agradável do críquete indiano foi a vitória sobre uma forteequipa das Índias Ocidentais, no campeonato de 1983. Com a vitória, aÍndia confirmou-se como uma força mundial do críquete internacional,cuja verdadeira competição estava nas Índias Ocidentais e no Paquistãoe não na.Inglaterra nem na Austrália. África do Sul, Nova Zelândia e SriLanka estiveram sempre muito longe dos primeiros em críquete interna-cional. Em 1983, a Inglaterra surgiu como uma força do passado no crí-quete intem<l;cional (a despeito de ocasionais estrelas, como Ian Botham) .

e a Índia como uma das principais.Mas não é só importante que as antigas colónias negras e morenas do-

minem hoje o críquete mundial. É significativo que o seu triunfo coincida

146

coricluir que teria havido descolonização do críquete se o desportonão se tivesse libertado do seu tegumento moral vitoriano. E este processonão se restrincre às colónias: verificou-se que o thatcherismo, em Ingla-o

terra, fez mui to para apagar a ideologia do <Jair play» que outrora domi-

nara o críquete na pátria dele (MarshaIl, 1987). , .O críquet e pertence agora a um mundo moral e estético diferente, longe

do imaginad9 por Thomas. Arnold pára o râguebi. Nada marca tanto a mu-dança de ética como a chegada do fenómeno profissionalizado, estritamentecomercial, que é o campeonato mundial, World Series Cricket (WSC), um

pacote global de críquete subordinado aos meios de comunicação e criadopor uni australiano chamado Kerry Packer. O WSC de Packer foi a primeiragrande ameaça ao ecúmeno colonial do desporto amador e à ética pós-Se-

. gunda Guerra Mundial do críquete nacionalista, organizado' em tomo damaiorinovação neste desporto desde a guerra - o críquete de um d i a -

em que o jogo de um único dia (e não cinco ou mais dias) decide o resultado.O críquete de um dia estimula que se assumam riscos, promove a agressi-vidade e o brio e adequa-se perfeitamente à atenção intensa própria da fortepublicidade televisiva, a uma maior rotação de acontecimentos e cenários .O WSC de Packer preteriu a lealdade nacional em nome do entretenimentomediát ico e dos lucros econóffiicos rápidos para os jogadores . Jogadores dasÍndias Ocidentais, de Inglaterra, da Austrália e do Paquistão não perderamtempo a ver-lhe os atractivos. Mas na Índia os jogadores foram lentos a rea-gir, pois a estrutura do patrocínio dava-lhes muito mais segurança do qu e

gozavam os seus homólogos: Contudo, aousada iniciativa de Packer foi osinal de que o críquete passara para uma outra fase, pós-nacionalista, em

que o valo r de diversão, a cobertura jornalísti ca e a de jo -

gadores iriam transcender a lealdade nacional do início do perí?do pós-in-dependência e a ética vitoriana amadorística do período colonial.

147

 

ARJUN APPADURAI

Hoje, o críquete indiano representa uma complexa configuração decada uma destas transformações históricas. A estrutura de regras do jogoe os códigos de comportamento no campo ainda são nominalmente'regi-dos pelos valores vitorianos clássicos de contenção, desportivismo e ama-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALI7AÇÃO

monwealth, a fraternidade fluida de nações unidas pelo seu estatuto ante-rior de partes do Império Britânico. A Commonwealth tornou-se em gran-de medida uma comunidade de desportos (como a lvy League Lestedos Estados _Unidos). Politicamente, representa uma débil sombra das

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. dorismo. Ao mesmo tempo, a lealdade nacional é um poderoso contrapon-to destes ideais e a vüória a qualquer preço é a exigência das multidõese dos espectadores de televisão, Mas do ponto de vista dos jogadores epromotores, o código vitoriano e as preocupações nacionalistas subordi-

nam-se ao fluxo transnacional de talento, celebridade e dinheiro.A nova ética examina-se bem na r,ecentemente criada Taça da Austra-

lásia, acolhi da pelo minúsculo emirado árabe de Sharjah, que tem uma po-pulação considerável de imigrantes indianos e paquistaneses, Esta taça re-vela a lógica comercial e nacionalista do críquete contemporâneo, Numasequência final extremamente emocionante dojogo decisivo de 1986, vis-to por quinze milhões de espectadores de televisão, o Paquistão precisavade quatro runs para ganhar e realizou-as com uma batida da última bolada partida. No público que assistiu ao vivo havia estrelas de cinema e ou-tras celebridades da Índia e do Paquistão, bem como imigrantes do Sul da

Ásia que ganham a vida no Golfo.A taça Sharjah está muito longe do campo de jogos de Eton. O patro-cínio do dinheiro do petróleo, o público semiproletário de trabalhadoresda Índia e do Paquistão emigrados no Golfo Pérsico, as de cinemado subcontinente instaladas num campo de desportos criado com a riquezaislâmica do petróleo, uma imensa audiência de televisão no subcontinente,dinheiro de prémios e receitas de publicidade com abundância, críquete -sedento de sangue - eis, enfim, o golpe de misericórdia nos códigos vi-torianos do críquete das classes altas e um outro ecúmeno giqbal. Depoisde Sharjah, todo o críquete é cnquete à Trobriand, não por causa da radical

alteração das regras associada a essa famosa forma de cliquete; mas porcausa do assalto consumado a uma forma ritual subtraída à sua hegemoriiaprática inglesa de origem e ao seu tegumento moral vitoriano. Da pers-pectiva de Sharjah, são os de Eton que hoje-parecem de Trobriand.

Faz parte da descolonização do críquete a corrosão do mito da Com-

148

amenidades do império: No comércio, na política, na diplomacia, tornou--se uma farsa: nas Fiji, os imigrantes indianos são excluídos da vida local'os Cingaleses e Tâmiles matam-se uns aos outros no Sri Lankaas e9uipas de críquete cingalesas fazem digressões pela Índia; o Paquistão

e a lndia estão continuamente à beira da guerra; os novos países africanostravam uma série de guerras intestinas.

-No entanto, os Jogos da Commonwealth são uma grande e séria rea-lização internacional e o críqüete global, a essa luz, ainda é Common-wealth, Mas a Commonweal th hoje constituída pelo críquete é úmaordeira comunidade de colónias que uma adesão comum ao códigovitoriano e colonial mantém unidas. É uma realidade agonística em queuflla série de patologias (e sonhos) pós-coloniais se desenrolam na paisa- -gem de uma herança colonial comum. Deixou de ser um instrumento parasocializar homens negros e morenos na etiqueta pública do império e éagora um instrumento de mobilização do sentimento nacional ao serviçodo espectáculo e da mercantilização transnacionais.

A tensão peculiar entre nacionalismo e descolonização observa-sebem na diplomacia do entre a Índia e o Paquis tão, que -envo lvecompetição e cooperação a muitos níveis. O melhor exemplo de coope-ração !lo espírito da descolonização talvez seja o próprio processo com7"

plexo através do qual os políticos e burocratas ao mais alto nível dasduas nações antagonistas cooperaram, nos meados dos anos oitenta, paradesviar de Inglaterra para o subcontinente a sede da prestigiada Taça do '

-" \ Mundo, em 1987, com o apoio financeiro do Reliance Group -of lndus-

tries (uma das maiores e mais agressivas firmas de negócios da Índ-a

contemporânea) e o estímulo dos dirigentes dos dois países (Salve,1987). Mas em Sharjah, bem como em todas as idas à Índia, ao P*lÍs-tão ou a outro sítio desde a partilha, as partidas de críquete entre a Índiae o Paqui,stão são mal disfarçadas guerras nacionais. O críquete não é

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ARJUN APPADURAI

bem uma válvula de escape da hostilidade popular entreas duas popu-lações, é mais uma complexa arena onde se reencena a curiosade animosidade e fraternidade que caracteriza as relações entre os doisEstados-nações anteriormente unidos. Seja como for, a Inglaterra não

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

Contudo, estes factores não bastam para nos levar ao coração do pro-. b1ema: porque é que o críquete é uma paixão nacional? Porque é' que ele

não foi meramen te indigenizado e é o próprio símbolo de uma prática des-portiva que parece personificar a Índia? Porque é ele visto com enlevada

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faz parte da equação, quer na política tensa de Caxemira, nos caml-

pos de críque te de Sharjah. . IA recente cobertura jornalística' da Taça da Australásia em Sharjah

I(Tripathi, 1990) mostra que os países do Golfo trataram de aumentar a sua

proem.inência como autoridades no críquete internacional e anacional entre a Índia e o Paquistão foi deliberadamente destacada e conL

tida para criar um simulacro da tensão corrente em torno de Caxemira.quanto os exércitos se defrontam dos dois lados da fronteira deas equipas de críquete proporcionam um simulacro de guerra guarnecido 'de estrelas no campo de jogos.

Conclusão: os recursos da modernidade

Resta agora voltarmos às questões gerais enunciadas no iníciocapítulo. O exemplo do críquete sugere um pouco do que custa descolo:nizar a produção de cultura relativamente ao que antes qualifiquei demas culturais duras. Neste caso, e do ponto de vista india,no, as principais forças que desgastaram a moral vitoriana e adidáctica do críquete foram a indigenização do patrocínio, tanto no sen-tido de se encontrarem patronos indígenas cujos estilos pudessem acomoidar a fórmula como no de encontrar públicos que se deixassem atrairo espectáculo; apoio estatal através de vultosos subsídios aos meios demunicação; e interesse comercial, quer nas normais possibilidades con-temporâneas das formas de mercantilização, quer sob a forma, algo mais

rara, do patrocínio empresarial aos jogadores. No caso indiano, só vi-gorosa aliança de forças permitiu arrancar gradualmente o críquete aoquadro de valores vitoriano e animá-lo com as novas forças da comercia-lização e do espectáculo.

150

atenção em estádios de Sharjah a Madrasta, bem como no contexto de to-dos os ,meios de comunicação? Porque são as estrelas do críquete adora-das, talvez ainda mais do que as suas homólogas do cinema? .

Parte da resposta a estas perguntas reside sem dúvida nos elos profun-

dos entre as ideias de jogo na vida humana (Huizinga, 1950), de desportoorganizado mobilizador simultaneamente de fortes sentimentns de naçãoe de humanidade (MacAloon, 1984; 1990) e de desporto agonístico cali-brador da relação entre lazer e prazer nas modernâs sociedades industriais(Elias e Dunning, 1986; Hargreaves, 1982): Desta perspectiva; o críquetepode considerar-se uma forma agonística de jogo que captou decisiva-mente a imaginação indiana. Mas para explicar o lugar central que o crí ..

quete ocupa na imaginação indiana temos que compreender como é queele liga género, nação, fantasia e excitação física. É certo que nas classesaltas indianas, em particular na medida em qúé consigam isolar-se das

massas (seja em casa, seja em sítios especiais onde se vê críquete), as mu-lheres se tomaram jogadoras e aficionadas do críquete. Contudo, para ogrosso da nação, o críquete é uma actividade dominada por homens em

matéria de jogadores, directores, comentadores, adeptos e públicos de es-tádio. Os espectadores masculinos, mesmo quando não dominam as au-diências nos jogos ao vivo ou na televisão, são os preferidos do jogo por-que, nos espectáculos determinantes, jogos , internacionais ou grandesjogos de um dia, entram apenas homens. O olhar feminino indiano estáduas vezes longe, pois não só as mulheres vêem quase sempre homens ajogar como os espectadores masculinos também só vêem outros homensa jogar. Para o homem, ver críquete é uma actividade profundamente áb-

sorvente, ao nível do arrebatamento físico (Bourdieu, 1977), pois a ma ior

parte dos indianos com meJlOs de quarenta anos ou viram jogos de críque-,..

te, ou eles próprios entraram em alguma versão local do jogo, ou leramsobre ele e viram praticá-lo. Por isso, para o homem indiano, o prazer de

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ARJUN APPADURAI

ver ctiquete está, como em talvez nenhum outro desporto, enraizado noprazer físico de jogar, ou d·e se imaginar a jogar críquete.

Mas como o críquete, graças à convergência entre Estado,meios de comunicação e interesses do sector privado, acabou por se iden- I

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

técnicas corporais agonísticas capazes de conferir mais paixão ·e·intençãoà comuni?ade assim imaginada. Pode ser este o contributo especial dodesporto de espectadores (por oposição às muitas outras formas de culturapública) para a dinâmi.ca da descolonização.

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tificar com «Índia», com saber «indiano», com bravura «indiana», com es-pírito de equipa «indiano» e com vitórias «indianas», o prazer físico que ·está no âmago da experiência sensorial do homem faz também parte daerótica nacionalista. Es ta erótica, em especial para a juventude masc ulina

da classe operária e do lúmpen de toda a Índia, está profundamente ligadaà violência, não só·porque todos os desportos agonísticos despertam a pro-pensão agressiva, mas porque as exigências divisoras de classe, etnia, lín-gua e egião fazem da nação uma comunidade profundamente contestada.O prazer erótico de ver críquete é para os súbditos indianos homens o pra-

zer .de agir numa comunidade imaginada que em muitas outras áreas lheé violentamente negado. (Ver Mitra, 1986, para um ângulo ligeiramentediferente deste processo.) Este prazer nem é inteiramente catártico nemdelegado, porque o críquete está perto ou faz parte da experiência de mui-tos homens indianos. Mas é ampliado, politizado e espectacularizado sem

perder o que o liga à experiên cia vivida da competência física e aos vín- .culos combativos. Este conjunto de ligações entre género, fantasia, naçãoe excitação não ocorre sem um grupo complexo de contingências históri-·cas que incluem império, patrocínio, meios de comunicação e comércio.- contingências que montam o cenário para o entusiasmo· corporalizadoque se verifica na Índia pelo críquete.

. Podemos agora voltar ao enigma com que começámos. Como foi que

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o críquete, uma forma çultural dura fortemente agregadora de valores,sig-

nificado e prática física, se indianizou t.ão profundamente, ou, de um outro .1ponto de vista, desvitoria nizou?Porque no processo da sua vernaculari- · I

zação (através de livros, jornais, rádio e televisão) se tomou um emblema

da nacionaiidadeindiana, ao mesmo tempo que Se inscrevia, como prática,no corpo (masculino) dos indianos. Neste caso, a descolonização envolvenão apenas a criação de comunidades imaginadas por obra do capitalismo

. impresso, como sugeriu Anderson (-1983), como também a apropriação de

152

Como género, corpo erótica nacionalista podem entrar em forteconjuntura atravé.s de outros desportos (como o futebol e o hóquei, queainda hoje são muito populares na Índia), podemos ainda perguntar: por-quê o críquete? Aqui, devo dar um salto especulativo e sugerir que o çrÍ-

quete é um foco ideal de atenção nacional e paixão nacionalista porqueoferece a oportunidade de aceder ao que poderemos chamar «recursosda modernidade» a uma grande variedade de grupos no seio da s.ocie-dade indiana. Para esses grupos que constituem o EstadQ,em especialatravés do controlo da televisão, é um meio de se sentirem capazes demanipular o sentimento nacionalista. Aos tecnocratas, publicistas, jor-

e editores que control am directamente·os meios de comunicação ·na India, dá um sentido de competê ncia nó uso das técnicas de transmit ir .espectáculos desportivos por televisão, da manipulação da publicidadeno sector privado, de captar a atenção do público e, em geral, de serem

eles a dominar os meios de comunicação. Ao sector privado, o críquetefornece um meiá de associar lazer, estrelato e nacionalismo, conferindoassim um sentido de mestria nas técnicas de comercialização e promo-

ção. Para o público espectador, o críquete tem um sentido de literacia·cultural num desporto mundial (assOciado à noção de superioridade tec-nológica do Ocidente que ainda não desapareceu) e o prazer mais difusode se associar ao brilho social, cosmopolitism o e competitivi dade nacio-nal. Para o espectador de classe média-alta, traz o prazer privado de in-

·tegrar o estrelato e o sentimento naci onalista no ambiente seguro e sadio.. da sala de estar. Par<i a classe operária e a juventude lúmpen, oferece o. sentido de pertença ao grupo, violência potencial e excitação física que

caracteriza a paixão pelo futebol em Inglaterra. Aos espectadores rurais,leitores e o críquete vernacularizado) permiteuma sensaçao de controlo sobre as das estrelas, o destino das na-ções e a electricidade das cidades. Em todos estes casos, embora os fins

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ARJUN APPADURAI

da modernidade possam ser entendidos (e contestados) diversamentecomo paZ mundial, qtpacidades nacionais, fama individual e virilidadeou mobilidade de equipa, os recursos da modernidade · contidos n.o crí-

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O número na imaginação colonial

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quete implicam uma confluência de interesses vividos em que produto-res e cOnsumidores de críquete partilham o entusiasmo pela indianidadesem as suas muitas cicatrizes divisoras. Finalmente, embora talvez me-  .

nos conscientemente, o críquete dá a todos estes·grupos e agentes a sen-

sação de terem libertado o jogo dos hábitos ingleses levados para as co-lónias ao nível da língüa, do corpo e da acção, bem como da competição,da economia e do espectáculo. Se não houvesse críquete na Índia, teriasido preciso inventar outra coisa qualquer para que o público experimen-tasse os recursos da modernidade.

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No fim de 1990, nos últimos meses do regime de V. P. Sing h e nabulenta transição para um país governado por S. Chandrasekhar, a Índia

(especialmente o Norte de língua hindi) foi abalada por duas grandes ex- ·plosões. A primeira, ligada ao Relatório da Comissão MandaI, lançoumembros de diferentes castas uns contra os outros, de tal maneira quemuitos temeram pela derrocada da administração pública. A segunda, as-sociada à cidade santa de Ayodhya, opôs hindus e muçulmanos pelo con-trolo de um local sagrado. Estas questões entrecruzadas, cujas relaçõestêm sido muito notadas e analisadas, envolvem problemas de legitimidade(quais são os teus direitos?) e de classifi cação que grupo pertences eem que paisagem política se inscreve o teu grupo?). Este capítulo explora

\.." as raízes coloniais de uma dimensão da volátil política decomurüdade e

classificação na Índia contemporânea. Ao fazê-lo, segue na esteira de mui-tos autores recentes que relacionaram as políticas de casta e comunitáriacom a política da representatividade de grupo no século xx (Kothari,1989a, 1989b; Shah, 1989) e com o papel dos censos coloniais (Thapar,1989). Mas as ligações precisas e distintivas entre enumeração e classifi-

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ARJUN APPADURAII

da escola subalterna, como Ranajit Guha (1983), David ArnoldDipesh Chakrabarty (1983). Este elemento sob forma resI;-

dual num grande estudo da imaginação orienta!Ista na IndIa 1990)iO interesse de Cohn pelos censos prolonga-se .numa Importanite colectânea de textos (Barrier, 1981). Todos estes hIstonadore?

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇf.. O

tracções contabilísticas de pessoas e recursos, a todos os níveis imaginá- .veis e para todos os fins conceptíveis, criáram a sensação de haver con-trolo sobre a realidade indígena. Os números integravam-se recente ex-periência histórica da literacia para a elite colonial (Money, 1989;

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"

traram de diversas formas que, coloniai.s o ef:Ito\de reorientar importantes pratIcas mdIgenas segundo novasatribuindo pesos e valores diferentes às concepções de identidade de gru I

po, de físicas e de produtividade agrária existentes. Mastou-se menos atenção à questão dos números, da mensuração e quantlfi-\

cação desta iniciativa. . . \O vasto oceano de números à terr:, .aos colheItas,!.

florestas, castas, tribos, etc., colIgIdos sob dorrumo colomal desde cedo, \no século XIX, não foi uma iniciativa utilitária de feição refe- \rencial. O seu utilitarismo integrava-se num complexo de tecmcas mfor-macionais, justificativas e pedagógicas. em \determinados níveis do sistema, preenchendo formulanos burocratlcos idestinados a fornecer dados quantitativos em bruto, consideravam a sua :tarefa utilitária num sentido corrente, burocrático. Os números oficiais fo- i

ram muitas vezes utilizados para importantes fins pragmáticos, como es-tabelecer os impostos na agricultura, resolver conflitos com terrenos, de-cidir diversas opções militares e, mais para o fim do século, tentaradjudicar reivindicações indígenas de e deções Os números foram sem duvld,a para ISSO.

Mas o que é menos óbvio é que foram geradas estatIstIcas emtais que ultrapassavam de longe quaisquer finalidades UnIfi-

cadas. As estatísticas agrárias, por exemplo, não só estavam cheIas.de er-ros técnicos e de classificação como também estimulavam novas formasde nrática agrária e de auto-representação (Smith, 1985). .

embora as primeiras políticas coloniais de quantificação setenham pretendido utilitárias, diria que os núrrieros forammente assumindo um lugar cad a vez ma.is na de controloburocrático, tornando-se uma chave do lmaglI:l...'lpo colOnIal em que as abs-

15 8

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Thomas, 1987), que assim começou a acreditar que as quantificações sãosocialmente úteis. Fácil é provar que o significado destes n4meros era"

. muitas vezes inexistente ou auto-suficiente, sem se tornar um referenteprincipal para uma realidade complexa, exterior às actividades do Estado

colonial. A longo prazo, estas estratégias enilmerativas contrihuíram parainflamar identid ades e nacioriaJistas que na realidade mina-ram o domínio colonial. Temos pois que saber como é que a ideia de nú-mero, enquanto instrumento do controlo colonial, terá podido entrar naimaginação do Estado .

Relativamente à Inglaterra, para resporider a esta pergunta há que re-montar à história da numeracia, líteracia, fiscalismo público é pensamentoactuário nos séculos XVII e XVIII (Hacking, 1975, capo 12; r"982,1986;Brewer, 1989). É na realidade uma história muito complexa, mas no fimdo século XVIII, número, tal como paisagem, herança e povo, a fa-zer parte do léxico da imaginação política britânica (Ludden, 1993) e im-plantou-se firmemente a ideia de que um Estado poderoso não pode so-breviver sem fazer da enumeração uma técnica essencial de controlosocial. Assim, em Inglaterra o censo deu rápidos passos técnicos ao longode todo o século XIX e sem dúvida forneceu o esquema geral dos censosdo final do século XIX na Índia. Um panqrama do material dos censos bri-tânicos do século XIX (Lawton, 1978) sugere que, operando num quadrode classificações simples que os serviços partilhavam como povo, os cen-sos ingleses iüo tiveram os efeitos refractivos e generativos que tiveramna Índia. ' .

Embora não possa provar aqui, sem sombra de dúvida, que as opera- .

ções metropolitanas do censo britânico foram diferentes das levadas acabo na Índia, há três boas razões para supor que houve diferenças im-portantes. Primeiro, a base do censo britânico foi esmagadoramente terri-torial e ocupacional e não étnica ou racial 1

. Segundo, na medida em que

159

 

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os seus objectivos eram sociológicos, em Inglaterra, os censos ligavam-se'directamente às políticas .de representação, como na questão das zonas de-gradadas. Finalmente,. é .muito importante que tanto os planos de

·1DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

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bons dados numéricos tornariam mais fácil o arranque de projectos de U lcontrolo social ou de reforma nas colónias. 0

Esta hipótese levanta duas questões diferentes mas relacionadas entre ( )

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ingleses como franceses (bem como as ciências sociais embrionárias a queestavam associados) tendessem a reservar as suas investigações mais in-

. romissoras para as suas margens soc1ais: os pobres, os depravados, osloucos eos criminosos. Nas colónias, pelo contrário, toda a população era

considerada diferente de um modo problemático e essa diferença resideno próprio coração dei orientalismo (Nigam, 1990, p. 287). Além disso,na Índia, esta propensão orientali sta foi para ir .ao sualcontrapartida indígena na .aparente cardmalIdade da dIferença ?a \ideologia indígena de casta tal como esta aparece aos olhos oCIdentais.Neste sentido, as similitudes e diferenças entre os projectos coloniais bri-tânicos e estão ainda por discernir, mas é evidente que a icupação interna com os comportamentos desviantes e a marginalidade se \estendeu à administração de populações no (Armstrong, i1990; Rabinow, 1989). Embora houvesse llgaçoes claras e Importantes en- '·

tre acções de ·classificação, ciência, fotografia, criminologia, etc., na me-:trópole e nas colónias, não parece que as actividades enumerativas assu- !

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missem a mesma forma cultural em Inglaterra e na IndJa, quanto maIS nao 'fosse porque os Ingleses não se viam com.o edifício de comuni- Idades exóticas desprovidas de uma orgamzaçao dIgna desse nome. I

Num cenário colonial como a Índia, o ncontro com um conjunto de ,. I

grupos altámente diferenciado, religiosamente Outro, assentado Ina preocupação metropolitana da ocupação, classe e rehgIao, tudo ele- I

mentos proeminentes dos censos britânicos do século XIX. Criou-se assim I

uma situação em que a recolha de informação e de arquivos para essa in- ;. formação assumiu proporções enormes e os dados numéricos se tomaram i

. cruciais para esta tendência empirista.Por essa altura, o pensamento es- I

tatístico era aliado do proje,cto d: cívico, em Inglaterr.a em iFrança, em projectos de saude publIca, planeamento urbano, dIreIto penal [e demogr afia (Canguilheim, 1989; Ewald, Hacking, 1975, 1982,11986). Terá pois sido tent ador para os imaginar que .

160

si. Seria a Índia um caso especial ou limite relativamente ao papel da enu- Omeração, exoticização e dominação nas técnicas do moderno Estado-na- Oção? Diria que foi um caso especial, porque o olhar orientalista defron-tou-se na Índia com um sistema indígena de classificação que parecia O

virtualmente inventado por uma qualquer forma anterior e indígena de Oorientalismo. Não subscrevo a opinião de que os textos hindus constituemuma mera variação sobre textos orientalistas tardios, assim jus.;tificando astendência s de exo.ticização, por exempfo, dos códigos de leis coloniais.·Defender bem .esta posição levar-me-ia muito para fora deste contexto,mas quero simplesmente observar que também o essencialismo uma .questão de contexto e que a relação entre o estereotipismo hindu e o es-senciali smo britânico em rnatéria de casta não se. pode considerar fora de ·uma comparação exaustiva das formações estatais e religiosas em contex-.tos históricos muito diferentes. .

Não obstante, não seria acertado pretender que o orientalismo britâni-co não de parou, na Índia, com um imaginário social indígena que pareciavalorizar de forma notável a diferença de grupo. Na Índia, a casta, emborafosse em si uma parte muito complicada do imaginário social indiano e .tivesse sido refractada e reificada de muitas formas através das técnicasbritânicas de observação e controlo, não foi, porém, uma invenção da ima-ginação política dos Ingleses. Neste sentido, a depuração orientalista daÍndia trazia consigo uma força social que só pode ocorr er quando duas teo-rias' diferentes partilham um princípio essencütl: que os corpos de certosgrupos são portadores de diferença social e de estatuto moral. E por issoa Índia é um caso especial. Mas, vistado ângulo do presente, a podetambém ser considerada o 'caso liÍnite da tendência do moderno Estado--nação para ir buscar ideias existentes de diferença linguística, religiosae territorial para «produzir povo» (Balibar, 1990)2.

O papel dos números nos aparelhos complexos de recolha de informa-ções, como o aparelho colonial na Índia, tinha dois lados que, em retros·-·

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pectiva, há que distinguir. Um deles, podemos qualificá-lo de justificati-vo, o outro, de disciplinar. Uma parte muito grande da informação esta-tística reunida pelos funcionários britânicos na Índia não servía apenaspara tornar mais fácil aprender ou descobrir como governar os territóriosindianos. Estes dados estatísticos contribuíam também para analisar e en-

no contexto do discurso e da prática burocráticos, primeiro entre a

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

rencial directo na pragmática colonial, 'pois indicava m cara cterísticas domundo social indiano aos burocratas e aos políticos, mas este'objectivoreferencial tinha muitas vezes importância que o objectiv o retÓrico.E isso deve-se em parte ao facto de a mera vastidão dos números envol-vidos nos principais debates políticos do século XIX tornar intratável a sua.

dimensão estritamente referencial ou informacional. .

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Compa I1hia das Índias Orientais e o, parlamento inglês, mais tarde entreos funcionários da coroa na Índia e os seus patrões em Londres. (Smith,1985, é uma exposição clássica da lógica geral que interliga relatórios,

manuais eregistosda

Índia no séculoXIX.)

OS números eram uma parteI

fundamental do discurso do Estado colonial porqueos seus interlocutores 'metropolitanos se tinham tomado dependentes dos dados numéricos, por ,mais duvidoso que fosse o seu rigor e relevância para as grandes inicia- i

tivas administrativas relativas a recursos. A dimensão justificativa do usodos números na administração colonial, como é óbvio, está também rela- 'cionada com os diferentes níveis do Estado britânico na Índia, onde os nú- I

meros alimentavam uma série de conflitos instalados entre funcionários !indianos dos níveis inferiores da burocracia, percorrendo o sistema até aogovernador-geral da Índia, através de uma série de comissões, direcções- i

-gerais concorrentes e titulares de cargos que travavam um debate interno I

constante sobre a plausibilidade e relevância de várias classificações e dos 'números a elas ligados (Dirks, 1987, caps. 10 e 11; Hutchins, 1967, p. 181; :

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Presler, '1987, capo 2). I

Os números relativos a castas, aldeias, grupos religiosos, produtos, dis- !

tâncias e poços entravam numa linguagem de debate político em que o es- I

tatuto de referência rapidamente se tornou muito menos importante nestedo que era no seu papel discursivo de apoio ou subversão dos vários gestoscbssificativos e das teses organizativas neles baseadas. É importante notarque os números permitiam uma comparação entre tipos de lugares e pes-soas com outras diferenças, que eram formas concisas de transmitir gran-

des corpos de informação e que serviam como forma sumária de captar eapropriarC\l-racterísticas de outro modo recalcitrantes da paisagem huma-na e sociaCaa Índia. Não que os não servissem um objectivo refe-

162

Contudo, as destas estratégias numéricas pare-cem não ter sido mais importantes do que as suas funções pedaoóoicas edisciplinares. Relativamente a esta última, as ideias de Foucault bio-

política são' sem dúvida extremamente relevantes,. pois o Estado colonialparte integrante do corpo político indiano ao mesmo tem-p? que se empenhava em reinscrever a política do corpo indiano, espe-CIalmente no seu envolvimento com o sari, a prática de suspender o corpo 'de ganchos, os ritos de possessão e outras formas de manipulação do cor- ,po (Dirks, 1989; Mani, 1990). Voltarei mais tarde a este ponto. Mas a.

questão numérica complica de certo modo as coisas. É que não se trataaqui simplesmente das necessidades logísticas do Estado, mas tambémdas suas necessi"dades discursivas construídas fundamentalmente comonecessidades estatísticas. . .

Além disso, não se tratou apenas de fornecer o óleo numérico à engre-

nagem administrativa cuja forma discursiva fora construída através de umcomplexo desenvolvimento europeu que incluía pensamento proba-bilístico e prática cívica. Foi também uma questão de disciplinai o vastofuncionalismo do Estado colonial (ver também Smith, 1985, e Cohn,1987), bem como a população que estes funcionários cont rolare reformar, de maneira a que os números pudessem tornar-se indispensá-veis nas práticas e no estilo burocráticos. " ,

Número e política cadastral

O ponto de ruptura entre os momentos empirista e disciplinar da nu-merologia colonial observa-se nos muitos documentos técnicQs produzi-

163

 

ARJUN APPADURAI

dos nos meados do século XIX. Há muitas maneiras de conceptualizarudança incluindo a que nela vê «uma transformação do censo de ms-m , R.

trumento fiscal em instrumento de conhecimento», nas palavras de 1-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

tórica manifesta é técnica (isto é, positfvista, transparente e neutral) mascujo subtexto é contestatário (relativamente aos superiores) e disciQlinar

. .(relativamente aos inferiores).

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chard Smith (1985, p. 166), que identifica a ocorrência desta alteração noPunjab, por volta de 1850. Na análise, que se uso documentomais ou menos do mesmo período, da lndia OCIdental, para Ilustrar a for-mação do novo olhar numérico do Estado colo,nial nos meados do séculoXIX

Este documento, publicado com o título Relatório Conjunto de 1847,foi na verdade publicado em livro em 1975 pelo Departamento de RegistoFundiário do Estado de Maharashtra, na Índia Ocidental (Governo de Ma-harashtra, 1975). O subtítulo é Nonnas para a Mensuração e Classifica-ção para as Inspecções do Decão, Gujarate, Konkan"ea uma classe de documentos que mostram que a CompanhIa das IndIasOrientais procura normalizar as suas práticas de exploração de terrenosem toda a extensão dos seus territórios e racionalizar práticas geradas no"último quartel do século XVIII e primeira parte do século XIX, no calor da

conquista. É, por excelência, um documento de racionalizaçã? burocráti-ca, na sua intenção de criar e estandardizaras normas do rendImento fun-diário para toda a terra sujeita à jurisdição da na regi.ão De-cão. Mas contém também uma série de cartas e relatonos do pnncIplO dadécada de 1840 que revelam uma discussão séria entre o funcionalisI?o

, local e centràl sobre as minúcias da cartografia do terreno agrícola na ln-dia Ocidental e os seus objectivos mais vastos, como tributação e resolu-ção de conflitos. É um documento basilar da política cadastral.

Na esteira da caracterização que Ranajit Guha fez da «prosa de con-tra-insurreição» (Guha, 1983), podemos qualificar o Conjuntode exemplo clássico da prosa de dominação cadastral. E uma prosa com-posta em parte por regras, em parte por ordens, em parte por apêndices eem parte por cartas e petições, a ler como um todo. Nesta prosa, os deba tesinternos da burocracia fisc'al, a pragmática da formação de normas e a·re-tórica da utilidade açompanhavam sempre as recomendações finais dasautoridades aos das novas técnicas. São documentos cuja re-

164

O grosso do documento, como muitos outros do seu género, é verda-deiramente borgesiano, esforçando-se por encontrar métodos · e repre-sentações textuais próprios para captar a generalidade e as minúcias do

terreno agrícola indiano. A analogiacomo

clássico'de Jorge Luis Borges,a história do mapa que tinha que ser tão grande como o terreno que re-presentava, não é faqtasiosa, como demonstra esta queixa de um funcio-nário sobre uma técnica cartográfica anterior:

Por altura do levantamento do Decão por Mr. Pringle, prepararam-se uns re-gistos muito pormenoriz ados. e intrincados, chamados kaifiats, que; tambémach,ámos bem pôr de parte por serem inúteis e por, dado o seu comprimento ecomplexidad e exagerados, se tornarem mais obscuros que dos as-suntos de que tratam; e ainda por o seu volume tornar impossívela detecção de 'erros (nota de rodapé de 1975: os kaifiatspreparados para muitas das aldeias ins-

peccionadas por Mr. Pringle tinham para cima de 300 jardas de compI:imento)(Relatório Conjunto, p. 55).

A despeito desta queixa de 1840 sobre os absurdosborgesi anos dosesforços cartográficos anteriores, a tensão entre economia Tepre-sentativa e pormenorização não desaparece. Ao longo de toda a década

de 1840, prossegue a luta entre as autoridades fiscais do Decão e asFinanças, que têm aspirações algo mais sinópticas e panópticas nassuas inspecções. Primeiro, há a relação entre mensuração e classifica-

ção, que é por sua vez objec to explícito de análise em muitas das cartas

e relatórios que conduzem ao Relatório 'Conjunto, onde foram fixadas

'\., as regras básicasde inspecçãp' paiá: esta região e para as décadas sub-

'sequentes. No que toca à medição, os funcionários britânicos directa-

mente responsáveis pela tributação entendiam-na como um problema

de adaptar os métodos trigonométricos, topográficos e agrimensórios

para criar mapas que consideravam exactos e funcionais. Pretendiam

«multiplicar as cópias destes mapas de maneira económica e 'rigorosa,

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bem como precaver-se de futuras tentativas fraudulentas de alteração»,e portanto estes funcionários sugeriram que «deviam ser litografados»(Relatório Conjunto, pp . 9-10). A sua de rigor nas medi-ções incorporava já as ideias estatísticas existentes sobre percentagens

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

ximos das variações locais e do rigor e justiça no terreno levassem a malas obsessivasnecessidadespanóp 'ticas dos níveis mais elevados oa bu-rocracia. Ilustrando literalmente a força do «suplemento» textual (à ma-neira desconstrucionista), as tabelas miméricas, valores e mapas permi-

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de ·erro e «margem de erro», que queriam reduzir.Estes funcionários reconheciam que a classificação é uma questão

muito mais ingrata do que a mensuração; mas no respeitante à mensura-

ção, eram ingenuamente positivistas: «Estes resultados têm um carácterabsoluto e invariável e podem ser atingidos de muitas maneiras comsegurança» (p.l O). A classificação de campos com vista a uma tributaçãojusta levantava um ror de problemas quanto à tipificação da' variação parafins de classif icação, de mo do que a ciassificação podia ser suficientemen-te para se aplicar a uma vasta região mas suficientemente específicapara albergar importantes variações de terreno. A solução resultante im-plicava uma classificação dos solos em nove fases, um complexo sistemade notação para os inspectores no terreno e um intrincado algoritmo paraa tradução desta variação qmilitativa em valores quantitativos relevantes ,para a tributação do rendimento.

Por outras palavras, as disciplinas detalhadas de mensuração e classi-ficação (uma com base nas práticas icónicas de trigonometria e inspecção,em geral, a outra nas ideias numéricas e estatísticas de margem e percen-tagem de erro) foram as técnicas gémeas através das quais se concebeuuma política fiscal equitativa, assente e m princípios de aplicabilidade ge-ral que fossem simultaneamente tão sensíveis quanto possível às varianteslocais. Esta mentalidade - generalidade da aplicação e sensibilidade a 'variações mínimas - ' correspondia à principal tensão não só nas inspec-,ções cadastrais como em todas as aspirações informacionais do Estado co-lonial. Como explicarei adiante, esta mentalidade é também o elo crucial

entre a Lógica cadastral da primeira metade do século e'os censos demo-gráficos da segunda, em termos de enumeração e exoticização.

As discussões que rodearam o relatório de 1847 revelam também atensão emergente entre as variedades de conhecimento que constituíamo empirismo orientalista. Não é de admirar que os funcionários mais pró-

166

tiam que a contingênci q - a pura confusão narrativa das descri'ções emprosa da paisagem colonial - fosse domestitada no idioma abstracto

completo e frio do número. Claro que os núrrieros podiam se;

contestados, mas esta luta tinha qualidade instrumental, mUlto longe docalor da novidade, da luz da fotografia e do realismo colonial das etno-grafias administrativas.

Estaspropriedade s eram de particular valor para aqueles que procura- 'vam domar as próprias di versidades do terreno e das pessoas que outrosaspectos do episteme oriental corno a fotografia, os diários de viagem, asgravuras e exposições muito fizeram por criar. Em 1840, o tenente Win-gate, superior responsável pela tradução das' necessidades tributárias do

, Estado colonial em práticas técnicas e burocrátiCas 10caÚnente exequíveis 'para o Decão, escreveu ao comissário do fi sco de Poona, s'eu superior ime-diato, exprimindo claramente a sua frustração ante a volubilidade dos in-

teresses da burocracia central: «A presen te inspecção, além do ' mais, foiinstituída com objectivos puramente fiscais ' e a questão de a subordinaraos da Geografia e Topografia foi agora levantada pela primeira vez. Por-'tanto, não se poderá com justiça objectar, quanto ao plano de operações,que não inclui o cumprimento de objectivos não contemplados ao tempoda sua formação» (p. 69).

O funcionário do nível superior se guinte da burocracia fiscal, emboramenos directo do que Wingate, torna também claro que está confuso coma relação entre as necessidades fiscais e,as necessidades «científicas» dos

superiores. Colocado entre dois níveis importantes da burocracia,

"acrescenta, ao concluir urna importante carta, que «sejam quais forem osmotivos que levem um funcionário do Fisco a desejar um mapa, os queforam já fornecidos na última inspecção sob as ordens do Major Jopp eos que estão agora a sair da Inspecção Fiscal do Decão, de que anexo umexemplar, parecem-me amplamente suficientes; e se for necess'árió algo

167

 

ARJUN APPADURAI

mais preciso ou detalhado, deve ser, concluo, para alguma espécie de

ciência especulativa, sobre cuja necessidade não me compete fornecer

opinião» (pp. 81-82).

Documentos como o Relatório Conjunto foram cruciais para discipli-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

ponentes: montou o cenário para o usó generalizado de técnicas enume-

rativas padronizadoras para controlar as variações materiais no te)Teno;

tratou as características físicas da paisagem, bem como a sua produtivi-

dade e variabilidade ecológica enquanto separável (em certa medida) dos

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nar os nív.eis inferiores, especialmente os funcionários nativos, nas práti-

cas empiristas do governo colonial. Na colecção de mapas, medidas e es-

tatísticas de tod,a a espéci e, estes documentos e as regras neles contidas e

debatidas mostram que os funcionários europeus mais novos se preocu-

pavam sobretudo em garantir que os padrões da prática administrativa co-

lonial fossem respeitados até às mais minuciosas técnicas corporais dos i.

agrimensores. Estas técnicas podem considerar-se técnicas disciplinares

aplicadas tanto ao funcionalismo europeu inferior como aos seus subor-

di nados indianos. Mas 'ha via uma diferença importante. Enquanto os pri-

.meiros podiam não reconhecer a sua sujeição ao regime do número nos

idiomas da' ciência, do patri otismo e da hegemonia imperial (com que se

identificavam racialmente), para os funcionários indianos estas práticas

eram uma inscrição directa no seu corpoe no seu espírito de práticas as-

sociadas ao poder estrangeiro dos seus dirigentes. Neste como noutros

aspectos do controlo da mão-de-obra e recursos coloniais, nem todas assubalternidades eram idênticas.

Na realidade, o vasto aparelho de inspecção fiscal fazia parte de um

sistema complexo de disciplina e vigilância mediante o qual era instilada

nos funcionários nativos toda uma série de hábitos numéricos (ligados

a hábitos de descrição, iconografia e distinção); estes hábitos, por sua

vez, implicavam o número através de um grupo complexo de papéis,

incluindo os de classificação, ordenação, aproximação e identificação.

A aritmética política do colonialismo era ensinada muito literalmente no

terreno e traduzida para algoritmos capazes de tornar habituais futuras

actividades numéricas e de instilar a descrição burocrática com umafra-estrutura numero ógica.

Em cada uma destas importantes vias, a prosa do controlo cadastral

lançou as bases e constituiu um ensaio para o discurso posterior relativo

às comunidades humanas e sua enumeração. Este ensaio teve três com-

168

complexos direitos sociais implíci tos no se u uso e significado para os fn -

dianos rurais; e constituiu uma preparação pedag'ógiCa para o tipo de re-

gime dis,ciplinar que mais tarde seri a necessário aos inspectorés dos cen-

sos demográficos e a colectores de dados de todos os níveis.

O númerO (e a ideologia estatística subjacen te ao número) concatenou

estes textos cadastrais e forneceu os elos essenc iais entre estes fextos e os

debates que eles relatam, as práticas que se destinavam a disciplinar. As-

sim, através de uma leitura atenta destes documentos técnicos aparente-

mente simples, podemos destrinçar as tensões e fracturas ideológicas, bem

como as práticas de ensino e vigilância, em que não se trata apenas de «a

terra é para mandar» (Neale, 1969). O gov erno coloni al tinha uma função ·

pedagógica e isciplinar, de modo que «a terra é pata ensinaf»: medir e

c1assificàr aterra foi a base educ ativa da cultura do número em que a es-

tatística se tomou o discurso legitimado r do apêndice (conferindo peso in-

directo à porção verbal do texto) ao mesmo tempo que deu aos funcioná-rios superiores um sentido pedagógico e disciplinar do controlo não

apenas sobre o território onde procuravam governar, mas também sobre

os funcionários nativos necessários para levar a cabo essa governação.

Pelo que respeita aos nativos, o regime do número, como ressalta de todas

as páginas desses documentos, existe de certo modo para contrariar o há-

bito de mentir que a maior parte dos nativos, tanto agricultores co mo agri-

mensores, consideram constitucionaL

. Temos portanto parte da resposta à pergunta com que começámos, a

"-,saber, que papel especial tem a enumeração dos corpos no domínio colo-

nial? Sugeri que os números eram um aspecto volúvel do imaginário e

função colonial de um modo justificativo e ped agógico, bem como de um

modo mais restritamente referencial. A história do domínio britânico no

século XIX pode ler-se, de certo modo, como um deslocamento do uso

mais funcional do número no que foi chamado militarismo fiscal do

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tado britânico nos assuntos internos (Brewer, 1989) para um papel maispedagógico e disciplinar. Os corpos indianos não só foram sendo gradúal-mente categorizados como lhes foram atribuídos valores quantitativos(Bayly, 1988, pp. 88-89), cada vez mais associados ao ' que lan Hacking

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

Contagem colonial de corpos

Estas práticas enumerativas, no cenário de uma sociedade largamenteagrícola que o Estado mogol tinha praticamente já preparado, em

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chamou <<nominalismo dinâmico» (1986), ou seja, a criação de novos ti-pos de personalidade mediante actividades categorizadoras oficialmenteimpostas .

O número desempenhou um papel essencial neste nOmin alismo tão di-nâmico do panorama colonial, de certo modo por trazer consigo uma lin-guagem partilhada à transferência ·de informação , ao debate e à equi va-lência linguística entre centro e periferia e às disc ussões entre um imensoexército de burocracias na Índia. O número fazia pois parteda tarefa de traduzir a experiência colonial em termos apreensíveis pelametrópole, termos que poderiam abarcar as peculiaridades etnológicassuscitadas pelos vários discursos orientalistas. As glosas numéricas cons-tituem uma espécie de metalinguagem do discurso burocrático colonial noqual se podem arrumar entendimentos mais exóticos; num tempo em queenumerar populações e controlar e reformar a sociedade era moeda cor-

rente na Europa. Estas glosas numéricas, que aparecem a acompanhar da-dos de descrição e recomendações discursivas, devem considerar-se umquadro normalizador das realidades discursivas mais estranhas que os tre-chos verbais de muitos textos coloniais precisavam de construir. Este qua-dro normalizador funciona em três dos níveis por Foucault: co-nhecimento e poder, texto e práxis, leitura e dominação. Segundo adistinção de Richard Smith (1985) entre governo-por-registo e governo--por-relatório. vê-se que os números nos registos forneciam o lastro em-pírico ao esforço descritivo do olhar colonial, ao passo que os númerosnos relatórios forneciam um quadro mais normalizador, equilibrando os

aspectos contestátário e polifónico das secções narrativas destes relató-rios, em que algumas das tensões da «prosa da contra-insurreição» erampartilhadas (Guha, 1983).

170

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medida, para o controlo cadastral, teve outra importante consequência.Não foram um mero ensaio de práticas de contagem para os censos na-cionais indianos após 1870. Realizaram também uma importante tarefa,até hoje quase ignorada. O enorme aparelho de disposições fiscais, ins-pecções agrárias e mudanças jurídicas e burocráticas da primeira metadedo século XIX fez mais do que mercantilizar a terra (Cohn, 1969): trans-formou «senhores em senhorios» e camponeses em agrários '(Prakash,1990); e transformou as estruturas recíprocas de dádiva e de honra em tí-tulos vendáveis, semioticamente comercializáveis, que fo- 'ram postos no mercado sem deixarem de possuir a força metonímica queos ligava.às pessoas nomeadas. Arrancou também os grupos sociais àssuas complexas estruturas de grupo localizadas e às práticas agrícolas emque tinham estado inseridos, fosse no contexto dO «colonato silencioso»dos inams do Sul da Índia (Frykenberg, 1977; Dirks, 1987), dos inams de

Maharashtra (Preston, 1989), dos jornaleiros escravos de Bihar (Prakash,1990) ou dos lulahas de Uttar Pradesh (Pandey, 1990). A imensa diver-sidade de castas, seitas, tribos e outros agrupamentos práticos da paisagemindiana transformou-se numa vasta pai sagem categorial liberta das espe-cificidades do .campo.

Esta alteração em duas fases principais, uma associada aoperíodo anterior a 1870, durante o qual as questõesde ocupação e tribu-tação da terra são projectos coloniais dominantes, outra no período entre1870 e 1931, época do grande Censo Pan-Indiano, cujo projecto dominan-

. te é' a enumeraç ão das comunidades humanas . Os anos que vão de cerca, ....\

de 1840 a 1870 assinalam a transição de uma para outra destas orientaçõesprincipais. O primeiro período instala as condições para0 segundo, poisé dominado por uma preocupação pela base física e ecológica da produ-tividade e rendimento da terra; como já afirmei, a época libertaem certa medida esta variabilidade do mundo social e humano a ela as-

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saciado, no contexto dos esforços para travar uma batalha pela estandar-dização contra a variação no terreno. No segundo período, tão bem ex-plorado por Rashmi Pant (1987) no contexto das Províncias do Noroestee de Oudh, ocorre o movimento inverso e os grupos humanos (castas) sãotratados em grande medida abstraindo dos contextos regionais e territo-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

tatísticas empíricas à gestão do exótico esteve na base de uma orientação-política mais geral, a saber, muito do que era preciso conhecera população indiana só poderia tornar-se inteligível mediante a enumera-ção detalhada da população em termos de_ asta.

Embora a história subsequente do Censo Pan.-Indiano mostre que hou-

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coloniais eram concomitantemente afectados pelas contradições internas(a pressão para a especificidade e generalização dos nomes -das castas noCenso Pan-Indiano, por exemplo), por incoerências entre os diferentes

projectos coloniais e, acima de tudo, pelo facto de as operações burocrá-ticas coloniais não transformarem necessariamente as práticas ou as men-talidades no terreno. Voltarei aeste tema no final do capítulo, numa aná-lise do súbdito colonial.

O ensaio fundamental de Pant analisa o modo como a casta se torna umasede crucial de actividades do censo nacional após 1870, ao contrário de ou-tras sedes. A par do ensaio de Smith (1985), a tese dePant permite-nos verque a prática burocrática colonial, como lugar de acção e his-toricamente configurado por direito próprio, contribuiu para criar uma re-lação especial e forte entre essencialização, disciplina, vigilância, objecti-

ficação e consciência de grupo nas últimas décadas do século XIX.

Os números desempenharam um papel crucial nesta conjuntura e o pri-meiro panorama estatístico fo i um factor determinante na gravitação docenso para a casta como sede-chave da classificação social, pois a castasurge como a chave da variabilidade social indiana, bem como da men-talidade indiana. Pant, que parte da obra anterior de Smith, salienta que ouso da casta para «diferenciar uma corrente de dados» começou por seraplicado ao domínio das estatíst icas de género nesta região (1987, p. 148).Especificamente, defende-se, no relatório de 1872 do CensoPan-Indianopara as Províncias do Noroeste e de Oudh que certas hipóteses sobre a taxa

dos sexos relativamenteaoinfanticídio feminino só se podia explicarpor-referência à casta. Este intuito de explicar e controlar comportament05exóticos é uma prova crucial de que empirismo e exoticização não eramaspectos desligados do imaginário colonial na Índia. ligação das es-

172

vena prática' enormes dificuldades e anomalias no esforço de construirpara toda a Índia uma grelha de castas nomeadas e enumeradas, o princí-pio só nos anos de 1930 foi abandonado. Como demonstra Pant, «pelo vi-

rar do século, o estatuto epistemológico de casta como sede do reconhe-cimento de unidades qualificadas e socialmente eficazes da pOpulaçãoindiana já estava instaurado, assim o confirmam os Relatórios dos Censosde 1911-1931» (p. 149). Mas há também que notar que, como a recolhade dados sobre casta criou um fluxo de informação enorme e difícil deprocessar, já na década de 1860 apenas as «maiorias numéricas» tiveramdestaque nos re"latórios dos censos. A preocupação com as maiorias nu-méricas nasceu pois como princípio para organizar a informação dos cen-sos. Este princípio burocrático aparentemente inócuo é, como é óbvio, abase lógica das ideias de grupos majoritários e minoritários que mais tarde

a políti ca hindu-muçulmaria na Índia colonial e a política de castasna lndia durante todo o século XX e até hoje.Embora seja certo que a casta enquanto tropo e.ssencial para taxono--

mizar a paisagem indiana é um produto relativamente tardio do domíniocolonial (Pant, 1987), a essencialização mais generalizadados grupos in- _dianos remonta pelo menos ao início do século XIX. quando não antes,como demonstrou Gyan Pandey com as castas dos tecelões de Uttar Pra-desh (Pandey, 1990). Até às últimas décadas do século XIX, porém, a es-sencialização dos grupos no discurso orientalista e administrativo esteve

- muito separada das práticas e!lumerativas do Estado, excepto na medidaem que se ligavam directamente a objectivos fiscais localizados. Uma

análise do censo colonial de 1823 no Sul da Índia (Ludden, 1988) mostraque o interesse do final do século XIX pela classi ficação e en'Umeração so-cial vem muito de trás. Mas este primeiro censo, no geral,'pà rece prag-mático, localista e relacional no seu tratamento dos grupos e não de aspi-

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rações abstractas, uniforrriistas ou enciclopédicas. Foi um censo aindaorientado para o fisco e não para o conhecimento, para usar os termos de

Smith.Depois de 1870: porém, não só os números passaram a fazer parte in-

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

número como instrumento directo do controlo social. Nestes regimes pré--coloniais, as actividades enumerativas andavam ligadas à tributação,con-tabilidade e rendimento fundiário, mas o elo que liga enumeração iden-tidade de grupo parece na verdade fl1:uito débil. Quando o havia, semprepareceu ligado a formações sociais muito específicas, como as akharas

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tegrante do imaginário colonial e das ideologias práticas dos seus funcio-nários inferiores como os grupos sociais indianos ficaram funcional e di s-cursivamente libertos das paisagens agrárias locais, à deriva numa vastaenciclopédia social pan-indiana. Esta libertação ficou a dever-se ao sen-tido crescente de que a morfologia social de casta poderia fornecer, atra-

. vés do censo, uma grelha geral para .organizar o conhecimento da popu-. ·lação indiana. São estas as condições da força especial do censo indiano

a seguir a'1870, que se destinava a quantificar classificações anteriormen-te estabelecidas, mas que na realidade teve apenas o efeito c.ontrário: es-timular a auto mobilização destes grupos pa ra uma sé rie de formas políti-

cas translocais mais vastas.. É também este o lugar para notar a diferença fundamenta l entre os Bri-tânicos e os seus predecessores mogóis: se se esforçaram por cartografare medir a terra sob o seu controlo para efeitos fiscais (Habib, 1963), ge-

rando assim uma grande parte do vocabulário tributário ainda hoje vigentena Índia e no Paquistão, os Mogóis não realizaram porém, que se saiba,qualquer censo de pessoas, facto apontado por Irfan Habib como a prin-cipal razão da dificuldade em calcular a população da Índia mogol (Habib,·1982, p. 163): A enumeração de várias coisas por certo fazia parte do ima-ginário do Estado mogol, bem como o reconhecimento das identidades degrupo, mas não a enumeração das identidades de grupo. Quanto às outras .grandes formações políticas pré-coloniais do subcontinente, como o reinode Vijayanagara, parecem não ter seguido os processos lineares, centrali-zadores, arquivi stas dos Mogóis e estar orientadas no sentido do número

enquanto cosmopolítica de nomes, territórios, honras, quotas e relações,muito mais subtil (Breckenridge, 1983). Neste sentido, os Estados nãomogóis do subcontinente indiano anteriores ao domínio colonial, incluin-do aqueles que. como os Maratas, geriram domínios políticos elaborada-mente monet::lrizados (Perlin, 1987), parecem não se ter interessado pelo

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II·

(associ-ações de luta e ginástica), e não à enumeração da população em ge-ral (Freitag, 1990).

Para que este último esforço totalizadór entrasse no imaginário do Es-

tado, o passo crucial intermédio foi essencializar e taxonomizar o anteriororientalismo (de tipo europeu), a que se seguiu o hábito apli-cado à terra na primeira metade do século XIX e por fim a ideiJ de repre-sentação política, ligada não a cidadãos e indivíduos essencialmente seme-

mas a comunidades concebidas como i.ntrinsecamente espec iais . Na

India, nos séculos XVIII e XIX, o olhar orientalista que essencializa e exoti-ciza estabelece o elo crucial entre classificações demográficas e políticas decasta e de comunidade. E aqui chegamos finalmente ao coraçã o da tese, tan-to no que respeita às diferenças entre o regime colonial da Índia (e suas con-trapartidas metropolitanas, bem como OS seus predecessores indígenas)

como ao elo que liga políticas classificativas coloniais e políticas democrá- .ticas contemporâneas. A enumeração do corpo social, concebido comoagregados de indivíduos cujos corpos eram intrinsecamente colectivos eexóticos, cria o cenário em que a diferença de grupo é o princípio centralda política. Ligara ideia de representação à ideia de comunidades· caracte-rizadas por comunalismos bio-raciais (internamente) e diferenças bio-ra-ciais (externamente) surge como o marcador basilcu;- da IT:ludança colonialde política no moderno Estado-nação. , .

O que ocorreu na colónia foi uma conjuntura que nunca se verificou .", na metrópole: a ideia de que as técnicas de mensuração são um modo cru- .': cial de normaiizar a variação.no solo e no território, a par da ideia de que

a representação numérica é a chave para normalizar a patologia da dife-rença que representava o corpo social indiano. Assim, a ideia de «homem

médio» (o de Quetelet) insinuou-se através da estatística(como calcanhar de Aquiles epistemológico) e transitou para o domínio

175

 

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da diferença de grupo. Instala-se assim uma extensão. orientalista da ideiametropolitana de representação numérica de grupos (entendidos comosendo compostos por indivíduos médios) e da ideia de eleitorados sepa-rados, que é uma evolução natural dessa outra, a de a Índia ser uma terrade grupos (tanto para fins civis como políticos) e de os agrupamentos so-ciais indianos serem intrinsecamente especiais. Assim, sob o do.mínio co-

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V{!

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO U'0mo depois de 1931 ,quando a casta deixou de ser uma preocupação central I,,)dos censos na Índia, a ideia de política como contrário das comu.!1idades ( )

essencializadas e enumeradas (este último é um conceito que devo a Ka- Uviraj, 1994) já se tinha apoderado da organização regional e local e pas- l )sava portanto a dispensar o estímulo do censo para continuar a dominar

Upolítica indiana. Como observou Shah (1989), houve um esforço regular

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lonial, pelo menos na Índia britânica, a dimensão nuÍnérica da classifica-ção traz em si semente de uma contradição especial, pois foi levada aexistir num mundo concebido como uma das incomensuráveis diferençasde grupo.

Nacionalismo, representação e número

A abordagem comunitarista, que mais tarde (na primeira do sé-culo xx) terá a sua mais importante manifestação nos eleitorados separa-dos para hindus e muçulmanos (Hasan, 1979; Pandey, 1990; Robinson,.1974),de modo algum se restringiu a estes. Assentava nas ideias anterio-res da casta como princípio básico de uma morfologia geral da população

indiana (conhecida pelos censos) e outras ainda mais antigas sobre a ca-I

pacidade da enumeração para captar a natureza variável e tratável da terra i

e dos recursos da Índia. Esta abordagem comunitarista foi t ambém crucialpara a definição da dinâmica de ideias de maioria e minoria como termosculturalmente codificados para os grupos dominantes e submetidos do Sulda Índia (Frykenberg, 1987; Saraswathi, 1974; Washbrook, 1976, capo 6)

e noutros pontos. É portanto plausível afirmar, como Rajni Kothari(1989a, 1989b) e outros, que o próprio tecido da democracia indiana con-tinua a ser adversamente afectado pela ideia da votação em bloco nume-ricamente dortlÍnada, por oposição às ideias mais clássicas do voto indi-

vidual de cada burguês como cidadão democrático.Embora saia do âmbito deste capítulo demonstrar em pormenor de quemodo a importância cognitiva da casta nos censos indianos dos anos de1870 antecipa a comunitária deste século, há que notar que, mes-

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(e resultante) nestas décadas passadas para inverter a política pós-1931 de Ueliminação da contagem de castas para os censos. ()

Hannah Pitkin (1967) e outros escreveram eloquentementesobre as re- . r. )

lações complexas entre representação nos seus sentidos moral, estético epolítico. Não preciso repetir aq ui esta genealogia ocidental, ekcepto para '._1notar que muito cedo na história do Iluminismo a ideià de democracia fi - C>

cou ligada a uma ideia de soberania represéntativa dos súbditos. Portanto, l,,)

como salientou Robert Frykenberg (1987) para o contexto indiano, a po- '.Jlítica eleitoral tornou-se simultaneamente uma política de representação U(do povo para o povo - um jogo de espelhos em que o Estado se torna · í.,• )

. virtualmente invisível) e uma política de representatividade, ou seja, umapolítica de estatísticas em que alguns corpos podem valer por outros cor-pos por causa do princípio numérico da metonímia, em vez dos variados ( )

princípios cosmopolíticos de representação que caracterizavam as ideias (Jde direito divino em muitas organizações sociais pré-modernas.No século ·XIX e princípio do século xx, o Estado colonial da Índia

achou-se numa interessante contradição por procurar usar as ideias de re-presentação e de representatividade nos níveis inferiores da ordem políticaindiana, com princípios paternalistas, monárquicos e qualitativ<?s no topo.A história da governação da Índia por indianos (que se confinou a um tipode corpos ao nível da aldeia e do distrito durante a maior parte da segunda

-"" metade dó século XIX) foi-se transformando regularmente na lógica do na-cionalisrilO indiano, que adoptou a lógica colonial de representatividade

e a usou para anexar a idCia democrática de representação como repre-sentacão de si.A;sim, a corpos, que servira os propósitos do governo co-

lonial nos níveis inferiores na segunda metade do sécu lo XiX, fo i-se

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ARJUN APPADURAI

fomando na ideia de representação dos próprios Indianos(governo próprio) .à medida que o nacionalismo se tomava u.mde massas. Claro que, em retrospectiva, como Partha ChatteIJee nos ajudoua ver, o nacionalismo sofreu por partilhar a temática de base do pensamentocolonialista, não podendo por isso gerar uma críticaplena do mesmo (Chat-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

te na conjuntura complexa das variáveis que constituiu o projecto do Es-tado colonial avançado estas duas formas de nominalismo dinâru.ico sejuntaram para criar uma or ganização centrada em tomo de comunidadesenumeradas conscientes. Quando estas comunidades se integraram tam-bém num discurso oficial mais amplo de espaço, tempo, recursos e rela-

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terjee, 1986). Portanto, a dos números, especialmente no

a casta e comunidade, não só é a morte da política-democrática na lndiacomo estas identidades mais antigas se tomaram politizadas de uma forma

radicalmente diferente de outras concepções locais da relação entre a ordemdos jatis e a lógica do Estado. O processo que permitiu que identidades hin-duse muçulmanas separadas se construíssem ao nível mais amplo, e queas transformou não apenas em comunidades imaginadas mas também emcomunidades mais não é que a patologia mais visível da trans-ferência da política de representação numérica numa sociedade em que arepresentação e a identidade de grupo não tinham uma relação numérica es-

pecial com a administração.'. Mas dizer que o governo colonial, fosse dos Ingleses naÍndia ou de outros regimes europeus noutros pontos do mundo, não foi oúnico a gerar comunidades enumeradas. Grandes estados extra-europeus,como os Otomanos, os Mogóis e várias dinastias chinesas, tiveram preo-cupações numéricas. Onde está a diferença colonial? Para o Estado colo-nial avançado, os números faziam parte de um imaginário complexo noqual as necessidades utilitárias do militarismo fiscal no s istema mundial,a lóaica classificativa da etnologia orientalista, a presença-sombra d as

idei:s democráticas ocidentais de representação numérica e a passagemde uma biopolítica classificativa a outra numérica criaram

uma lóaica evolutiva que atinoiu um ponto crítico conjuntural nas últimasb o -

três décadas do séculD-XIX e nas primeiras duas do século xx.O líquido foi algo de fundamentalmente diferehte. de todos

os outros complexos aparelhos de Estado relativamente à política do corpoe à construção das comunidades como corpos. Em palavras simples, ou-tros re2:imes podem ter tido preocupações numéricas e podem tê-lastambém cl:lssificativas. Mas as duas estiveram sempre separadas e somen':

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ções que era também extremamente numérico, gerou-se uma aritméticapolítica colonial em que as actividades de essencializar e enumerar comu-nidades humanas se tornaram não só concorrentes como inimagináveis

uma sem a outra.Esta aritmét ica é uma parte in;portante da biopolítica (pelo -me-nos em termos de Britânicos na India)e não só por ter tido a ver com abs-tracções numéricas enquanto outros regimes estatais tinham objectivos nu- .méricos mais concretos (como impostos, corveias .e similàres). O modernoEstado colonial junta a visão exoticizante do orientalismo com o discursofarniliarizante das estatísticas. Neste processo, o orpo do súbdito colonialtoma-se simultaneamente estranho e dócil. A sua estranheza reside no factode passar a ser visto como sede de prát icas cruéis e insólitas e de subjecti-vidades bizarras. Mas as contagens do corpo colonial criam não só tipos eclasses (indo os primeiros no sentido das diferenças domesticadoras) comotambém corpos homogéneos (dentro de categorias) porque o número, pela -sua natureza, aplana idiossincrasias e cria limites em tomo destes corpos ho-mogéneos, já que cerceia performativamente a sua extensão. Neste sentido,as estatísticas estão para os corpos e tipos sociais como os mapas para osterritórios: aplanam e delimitam. O vÍnculo.entre colonialismo e orientalis-mo sai portanto muito reforçado, não nas sedes de classificação e tipificação(como tantas vezes se tem sugerido), mas nas sedes de enumeração, ondeos corpos são contados, homogen eizados e cerceados na sua extensão. As-

'\ sim, o corpo rebelde do súbdito colonial (o corpo dojejum, do festim, dofaquirismo, das abluções, das-piras e das sangraduras) é recuperado através

da linguagem dos números que permite restituir esses mesmos corpos, jácontados e contabilizados, aos projectos áridos do fisco, higiene, educação,serviço militar e lealdade.

Até aqui pode ler-se na minha tese que o projecto colonial de es;;en-

179

 

ARJUN APPADURAI

, cialização, enumeração e apropriação da paisagem social foi um completosucesso, Mas na realidade não é assim e há uma quantidade de fontes quecomprovam que 'os projectos do Estado colonial de modo algum foramcompletamente eficazes, em especial no que respeita à colonização da

DIMENSÕES CULTURAIS'DA GLOBALIZAÇÃO

tivos dos discursos da identidade de grupo, outras, como as relativasa educação, direito e reforma moral, foram responsáveis pela criaçãodo que se pode chamar um súbdito colonial burguês, concebido comoindivíduo. Este problema não se pode resolver aqui, mas é preciso re-

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vários tipos 'de escrita autobiográfica e ficcional, em muitos tipos diferen-tes de formação e expressão doméstica e em vários modos de prática cor-

poral e religiosa, os indianos de muitas classes prosseguiram práticas e re-produziram entendimentos altamente predadores do governo colonial.Além disso, indianos e indianas remodelam deliberadamente as suas con-cepções do corpo, da sociedade, do país e do destino em movimentos deprotesto, de crítica interna e clara revolta contra as autoridades coloniais,Na verdade, é a estas várias fontes que a esistência local vai buscar ener-gias - energias e espaços (que vão desde os grupos de oração eassocia-çÕes atléticas às ordens ascéticas, e mercantis) para constituir a base socialdo movimento nacionalista. Estas energias permitiram a uma pessoa cOmoGandhi e a muitas outras figuras menos conhecidas reconquistar a basesocial e moral aos Ingleses (e ao discurso do próprio orientalismo). Estas

reflexões trazem-nos de volta a um problema já levantado, a saber, o dosúbdito colonial relativamente aos projectos enumerativos e classificati-vos do Estado.

Claro não se pode fazer uma generalização fácil do grau em queo esforço de organizar o projecto colonial em torno da ideia de comu-nidades essencializadas e enumeradas abriu caminho à consciênciaprática dos súbditos coloniais na Índia. Mas é bastante fácil dizer queos result<ldos devem ter variado conforme as diversas dimensões daposição do súbdito colonial: o seu sexo, a sua proximidade ou distânciado olhar colonial, o seu envolvimento ou desinteresse pela política co-

lonial, a sua participação ou distanciamento do próprio aparelho buro-" crático. É também verdade que várias pessoas e grupos indianos per-

maneceram (na memórÍf!, quando não na realidade empírica) ligadós àlocalidade, seja o que for que a visão global via ou dizia, Por isso, em-

bora certas componentes do Estado colonial fossem propagadores ac-

180

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gistá-Io cómo uma questão importante que toda a interpretação das co-munidades enumeradas acabará po r ter que enfrentar.

Mesmo nos vários espaços da panóptica colonial que permaneceram

livres (fossem sob a acção dos súbditos coloniais resistentes ou das inca-pacidades e contradições do fanatismo colonial), é um facto que o olharcolonial e as técnicas a ele associadas deixaram uma marca indelével naconsciência política indiana. Parte desta herança indelével vê-sd ná ques-tão dos números. É a enumeração, associada a novas formas de categori-zação, que cria o vínculo entre o esforço orientalizante do Estadoco, que via a Índia como um museu ou jardim zoológico da 'diferença edas diferenças, e o projecto de reforma que implicava a limpeza dos cor-pos nativos preguiçosos, indolentes, frágeis, femininos, parafazer deles corpos viris, musculados, morais e leais que fosse possível des-locar para as subjectividades próprias do colonialismo (Arnold, 1988).Com Gandhi, temos uma revolta do corpo indiano, um redespertar do euindiano e uma reconstituição do corpo leal no corpo rebelde e leitor desinais do protesto nacionalista de massas (Amin, 1984; Bondurant, 1958).Mas 'o facto de Gandhi ter que morrer depois de ter visto queimar e avil-tar-se mutuamente corpos definidos como «hindu» e «muçUlmano» recor-da-nos que o seu êxito contr<l: o projecto colonial de enumeração e a ideiade corpo político não foi e não está completado.

O corpo queimado de Ro'op Kanwar (associado à renascente cons-ciência rajput dos homens urbanos nas pequenas povoações do Rajas-tão), as auto-imolações de homens e mulheres jovens da classe média

"após o RelatórÍD da Comissão MandaI revitalizaram-se e corpos doskar sewaks em Ayodhya e de muçulmanos em Lucknow e noutros lu-gares sugerem que as ideias indígenas de diferença se transformaramnuma política mortal de comunidade, processo com muitas fontes his- 'tóricas. Só que este rastilho cultural e histórico não arderia com a in te n-

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ARJUN APPADURAI

sidade que hoje vemos se não fosse o contacto com as técnicas do Es-

tado-nação moderno, em especial as que têm a ver com o número. O tipo

de subjectividade que os Indianos devem às contradições do colonialis-

} mo permanece, pois, obscuro e perigoso.

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TERCEIRA PARTE

Locais pós-nacionais

 

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A vida depois do primordialismo

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. o mundo contemporâneo está cheio de exemplos de consciência étnica

estreitamente ligados ao nacionalismo e à violência 1. Já não serve ver a

etnia apenas como mais um princípio de identidade de grupo, mais um dis-

positivo cultural para a prossecução dos interesses de grupo ou uma com-

binação dialéctica das duas coisas. Precisamos de explicar a etnicidade

que explora a sua modernidade2

. Talvez o ind icador mais claro da etnici-

dade moderna seja o facto de ela reunir os grupos que, por mera difusão

espacial e força numérica, são muito mais vastos do que os grupos étnicos

da antropolog ía tradicional. Tâmiles, Sérvios, Malaios, Bascos e

outros, todos são grupos muito grandes; todos reivindicam categoria na-

cional e todos se encontram envolvidos em confrontos violentos com es-

; truturas estatais existentes e outros grandes agrupamentos étnicos. Esta

'o,matriz - '- grandes dimensões"aspiração nacionalista e violência - carac-

. teriza estas novas etnicidades. É a essa matriz que este c apítulO é dedica-

do, embora eu reconheça que o termo pode ser relevante

para agrupamen tos mais pequenos, menos . voláteis e mais

instrumentalmente.

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ARJUN APPADURAI

A caixa negra do primordialismo

A tese primordialista, sob quase todas as suas formas (Apter, 1965; I

Isaacs, 1975; Shils,.1957), de pouco serve para explicar as etnicidades do II

DIMENSÕES CULTURAIS .DA GLOBALIZAÇÃO

nização, em especiàl quando aplicada às nOvas naç6es pós-coloniais pelospolitólogos americanos, é em grande medida responsável pela definição des-te sintoma antimodemo de primordialismo. Nos esforços recentes para expli-car a violência étnica, os dois alvos explicativos da teoria primordialista fun-diram-se subtilmente, de modo que o primordialismo da resistência à

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século XX. Esta tese distrai-nos de certos factos importantes, especialmen- I

te os relativos às novas etnicidades da Ásia e da Europa na década de oi-tenta. Para descamar esta afirmação, proponho o esqueleto de uma nova

abordagem dos movimentos étnicos, em particular nos seus momentosviolentos e destrutivos. Sem dúxar de defender que a tese primordiaTistatem falhas profundas e vendo na etnia uma forma historicamente consti-tuída de classificação social normalmente mal entendida e naturalizadacomo motor primordial da vida ·social, part o de um importante trabalhoanterior de antropologia (Comaroff e Comaroff, 1992b; Barth, 1969;

Geertz, 1963lO primeiro passo a dar é enunciara tese primordialista. Essencialmen-

te, diz o seguinte: todos os sentimentos de grupo que implicam um forte .\

sentido de identidade de grupo, o sentido nós, suscitam esses laços que

unem as pequenas colectividades íntimas, normalmente baseadas no pa- Irentesco ou nas suas extensões. As ideias de identidade colectiva baseadas \na afirmação do sangue, do solo ou da língua retiram a sua força afectivade sentimentos que cegam os grupos pequenos. Esta tese enganosamente

. . simples tem certas qualidades especiais que merecem ser notadas. Costu-ma ser citada para explicar certos aspectos da política, nomeadamente os

que mostram os grupos apostados em determinadas formas de comporta-mento que, nos termos do modelo, são consideradas irracionais.

Temo s aqui o colapso de dois pólos de irracionalidade muito diferentes.Um pólo, o que mais apela ao nosso bom-senso, é o pólo da violência de gru-

po, do etnocídio e do terror. O outro pólo é constituído pelas formas de

portamento que parecem antimodernas, quer se trate de uma participação in-dolente nas eleições, de corrupção na burocracia, de resistência às modernas

. -,écn icas de educação ou da recusa em acatar medidas do Estado moderno,Cbde o controlo de nascimentos ao monolinguismo. A teoria da moder-

186

identificados. A ligação de certos fundamentalismos religiosos a actos deviolência política emprestou renovada credibilidade a estes dois sintomas tão

diferentes de primordialismo. As bombas no World Trade Center, em NovaI()rque, despoletaram com toda a força várias formas populares de (teorizaçãoprimordialista.

A perspectiva primordialista sobre questões de mobiliza,ção de grupoassoCia ideias ontogenéticas e filogenéticas do desenvolvimento humano..Ou seja, assim como a psicologia ocidental considera que o indivíduo trazno fundo de si um núcleo afectivo que raramente se transforma e pode .sempre inflamar-se, também as colectividades sociais possuiriam umaconsciência colectiva cujas raízes históricas se encontram num passa·dodistante e não mudam facilmente, estando potencialmente abertas à igni-

ção por novas contingências históricas e políticas. Não é de admirar quese faça muito calmamente esta ligação da infância dos indivíduos e daimaturidade dos grupos às na9ões do mundo extra-ocidental, embora a ex-plosão dos conflitos étnicos na Europa de Leste (e até no ocidente euro- .peu) esteja a esbate r a linha que separa o Ocidente na tese .O facto de a velha linguagem da modernização ter sido substituída por umnovo discurso sobre os obstáculos à sociedade civil e à democracia sus-tentada não deve obscurecer a persistência da te seprimordia lista. A rápidaprocura de palavras como tribo e tribalismo na imprensa americana põeponto final no assunto.

Que tem de errado a tese primordialista? Um dos problemas é lógico

e jaz enterrado nos pressupostos universalistas do primordialismo, emparticular nas suas formas mais radicais, derivadas do Iluminismo. Setodas as sociedades e nações são compostas por unidades mais pequenasbaseadas em vínculos primordiais e se há animosidades étnicas enterra-

187

 

ARJUN APPADURAI

das em todas as esferas nacionais, porque é que somente algumas ex-plodem em fúria primordialista explícita? É uma pergunta comparativae grande parte da literatura de política comparativa das três últimas dé-cadas tentou responder-lhe, umas vezes reportando-se a factores estru-turais, outras a factores culturais. Estas respostas têm-se revelado geral-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

Indonésia, França, Estados Unidos, Egipto, África do Sul. Queteona comparativa nos mostrará o que há de comum a tão diferentes casosde turbulênCia étnica? •

Uma variante da resposta comparativista é histórica e adequa-se ao es-forço desenvolvimentista da causa primordialista. Esta versão da tese diz

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mente falhadas porque é cada vez mais visível que o problema e asolução são desconfortavelmente cúmplices. Sejamos mais concretos:

há cada vez mais indícios deque

os modelos ocidentais de participaçãopolítica, educação, mobilização e económico, calculadospara distanciar as novas nações dos seus mais retrógrados primordialis-

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mos, tiveram precisamente o efeito oposto. São remédios que cada vez I

mais parecem criar distúrbios iatrogénicos. Este argumento, que tem I

todo o mérito, assumiu algumas formas moderadas (Brass, 1994; Tam-biah, 1986), mas também formas radicais (Kothari, 1989c; N andy, I

1989a). Mas, por mais que queiramos culpar o contexto político das fa-lhas do que já se chamou desenvolvimento político (isto é, maturaçãolonge dos perigos do pr1!TIordialismo), há demasiados indícios de que édifícil desagregar a cura-da doença. O melhor exemplo disso talvez seja

a maneira como as forças armadas em todo o Terceiro Mundo são bru-tais, corruptas, incivis e em constante expansão.

Para os teóricos afectos (ainda que implicitamente) à tese primordia-lista, uma maneira de sair deste embaraço é a teoria do período-de-dureza(defendida por vários economistas americanos durante a primeira vaga deliberalização da antiga União Soviética). É também evidente no discursoque Václav HaveI pronunciou no fim do primeiro ano da sua presidênciada então Checoslováquia, em que se sugeria que as sociedades da Europade Leste terão que passar por um doloroso período de desintoxicação que

Ipode trazer a recorrência das febres primordialistas. Esta afirmação com- ' i

porta curiosas afinidades com as posições marxistas sobre a ditadura doproletariado, o período anterior à dissolução do Estado, passado o qual ahumanidade socialista passa a governar-se a si própria. A tese compara..:

encontra dificuldades, porque as explosões étnicas carac-toda uma série de comunidades, por exemplo, Índia, Checos-

188

que os países que tiveram tempo para processar o projecto ilumin'ista' depolítica - baseado na' ideia do indivíduo instruído, pós-ét-

nICO, preVIdente, a viver em função do mercado livre .e partic ipando numagenuína sociedade c iv i l - são realmente capazes de prevenir os males doprimordialismo. São, par excellance, as sociedades que desbravaram maisprofundamente e durarite mais tempo diferentes,versões do modelo da so-ciedade civil, as sociedades da Europa Ocidental (sociedades da OTAN

anteriores a 1989) e os Estados Unidos. Membros potenciais deste Clube 'são as sociedades agressivamente pró-capitalistas da Ásia e da América

Latina, como o Japão, Singapura, Taiwan, Coreia, Chile, Argentina , B'rasile umas quaI1tas mais. Claro que uma mirada rápida a este grupo nas duasúltimas décadas do século xx sugere que a experiência dificilmente saiuilesa do envolvimento activo dos Estados Unidos em várias formas de

subsídio económico, político e ideológico a essas sociedádes, de modoq.ue as suas experiências de superação do primordialismo não podem con-SIderar-se um sucesso da vitalidade endógena do programa iluminista.Seja como for, em muitas destas sociedades parece haver a necessidadede uma forte dose de 'autoritarismo estatal a famosa e dis- .tinção de Jea nne Kirkp,atrick entre Estados autoritár ios e Estados totalitá-rios). se não for possível instruir aS sociedades para saírem do pri-mordlahsmo, poder-se-á sempre tirar-lho à força. Neste ponto, o caminhopara a democracia fica pejado de corpos de democratas. Não podemos'

"- apresentar os Estados duros para mostruário do caminho que .vai do pri-

" mofdialismo paia a modernidade. " " ,Mesmo as sociedades que atravessaram os mais longos períodos de

harmoni a étnica, ou, por outras palavras, que conseguiram o plu-ralismo cultural, parece que, de uma maneira ou de outra, abriram pelascosturas: cons idere-se a "Índia, a ex-União Soviética , o Sri La nka, o Re ino

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Unido e o Egipto. São sociedades que diferem em muitos aspectos. Cadauma delas tem gravadas linhas de clivagem étnica, mas todas se encon-tram hoje fracturadas, não apenas ao longo destas linhas previsíveis mastambém ao longo de outras. Em Inglaterra, os esforços para promover omulticulturalismo e melhorar as chamadas relações de raça falharam cla-ramente, em parte no contexto do que hoje parece uma caricatura de umaeconomia do Terceiro Mundo. Na Índia, a divisão hindu-muçulmana é

DIMENSÕESCULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

conflito étnico'-pois a tese assenta basicamente em considerar infantis cer-tas populações e comunidades e baseia-se.implicitamente numa e.5Péciede teoria bacteriana do conflito étnico nas democracias ocidentais. Ouseja, considera-se que estas democracias são fundamentalmente adultas. ,mas se. encontram agora em risco porque acolheram popula<jões (normal-mente do Terceiro Mundó) portadoras do vírus primordial- isto é, o ví-rus que as liga a formas infantis de paréntesco, língua, religião e memória

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oJIacrora um dos vários movimentos étnicos e separatistas, atravessado pelosr:aior es conf litos de casta jamais vistos na história do sub continente e que

foram desencadeados pelo Relatório da Comissão Mandai nos primeirosanos da década de 1990. No sii Lanka, (Y.) conflitos entre Tâmiles e Cin- I

vão produúndo uma colheita crescente de outras linhas degem entre porta-vozes cingaleses e tâmiles que parecem gerar novos pn-

mordialismos (mouriscos, crioulos, budistas e outros). No momento emque termino este livro, monges budistas de todo o Sri Lanka desfilam pe-las ruas de Colombo em protesto contra os novos e ousados planos de des-

.. centralização do novo presidente do país, Chandrika Kumaratunga. . .De tudo isto restam umas quantas democracias capitalistas europeias

(como a Alemanha e a França), os Estados Unidos e o Japão como Estadosque pa recem não es tar ameaçados por conflitos étnicos .. Contudo, mesmonestes casos, as perspectivas não são claras: veja-se o problema dos co- . Ireanos no Japão, dos afro-americanos e hispano-americanos nos Estados

. Unidos, dos iranianos, turcos e outras populações de trabalhadores con-vidados em França e na Alemanha. Isto sugere que mesmo as mais estan-ques democracias capitálistas não estão eternamente a salvo do que podeconsiderar-se o vírus primordialista. Movimentos racistas, fascistas e fun- .damcntaJis ta s de direita na Europa e nos Estados Unidos por certo se :lÍl-guram mais primordiais nos seus comportamentos do que as minorias ra-ciais que abertamente abominam. De qualquer modo, os Estados Unidos,a Alemanha, o Japão e a França diferem enormemente na sua história de

Estados-nacões modernos e no seu empenho pela pluralidade políticacomo princípio fundamental da participação política. Estes factos tornamcrucial que se identifiquem os limites da abordagem primordialista ao .

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e as toma dadas à violência e mal equipadas para a participação em so-ciedades cívicas adultas.

Resumamos o principal escolho da perspectiva primordialista. Dada aadesão generalizada à ideia de democracia num grande número de socie-dades depois da Guerra Mundial, incluindo as do bloco socialis-ta, que dão grande relevo ao projecto da modernidade (tecnologia, ciênciamoderna, participação das massas na política, investimentos maciços naeducação superior e imensa propaganda às novas ideias de cidadania, tan-to nos regimes capitalistas como socialistas), porque estão os primor-dialismos étnicos mais vivos hoje do que nunca? À parte dizermos que aoperação foi um sucesso mas o paciente morreu, parece que a tese primor-dialista não é capaz de explicar a intensificação e difusão do sentimentoétnico num mundo entregue às diversas versões do projecto das Luzes.

duas opções: culpar os receptores da teoria (que a receberamcom as roupagens de urna série de discursos nacionais e internacionais dedesenvolvimento e modernização, em geral agressivamente apoiados pe-los aparelhos do Estado-nação moderno) ou repensar a própria perspectivaprimordialista. Espero que o que disse até aqui justifique a segunda pro-posta.

A política do afecto

Subjacentes à maioria dos modelos primord ialistas não estãoos pressupostos que enunciei atrás, mas também uma teoria do afecto quetemos hoje várias exCelentes razões para pôr em causa. O primeiro con-

191

 

ARJUN APPADURAI

junto de razões, que já expus e não irei aqui desenvolvertem sido identificado por muitos críticos marxistas e naclOnallstas do de-senvolvimento capitalista. Consiste em considerar que o projecto de de-

. senvolvimento tal como foi imposto .ao mundo extra-ocidental tem nor-malmente suscitado a criação de novas elites e novos fossos entre castase classes que poderiam não ter surgido, à parte os vários projectos neo- I

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO ·· 0

Gramsci, Raymond Williams e outros que se interessaram pela transfor-mação das ideologias em senso prático, e Destaquei 0 va-lor desta perspectiva e a minha confiança nela no capítulo 1. Salientandoa negociação e a contestação em todas as organizações sociais complexas,estes pensadores (bem como os seus pares da Escola de Birmingham, em

Inglaterra, e a escola subalterna de historiadores na Índia) mostraram-nos

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colonialistas nos novos Estados. A modernização é tida por responsáveldas várias fricções nas expectativas emergentes e das contradições básicas

entre participação económica e política. Estas contradições alimentam afrustração das massas, que é traduzida por de todaa espécie em discurso e acção etniciZados. De _ma manelra subs-crevo este argumento, embora pense que não tem a finura suficiente paraeXplicar as conjunturas específicas que fazem eclod.ir aem determinadas sociedades. Além de que estas teonas nao estao mtelra-mente livres da ideia de que há sempre um substrato real de afecto pri-mordialista que é um rastilho perpetuamente à espera de ser explorado pe--

los interesses políticos específicos num dado momento da d e · l ·

qualquer Estado-nação. . . . . I

O segundo conjunto de razões para duvidar da perspectivalista sobre o papel do afectona política vem de um vasto corpo detura derivado da teoria política continental e de algumas das suas vanantes

americanas nas duas últimas décadas: Trata-se da literatura que versa não, o funcionamento mecânico do homúnculo primordial que dita a polítiça

de grupo, especialmente no Terceiro Mundo, mas a da teoria so-cial e política que salienta o papel da imaginação em polítlca_ Esta ten-dência, larQ:amente associada à obra de Benedict Anderson (1983), tem assuas também na venerável tradição das obras que destacam a auto-nomia da ideolooia na vida política (remontando a outra das tendênciasdo pensamento ;roteiformede Ma x Weber por oposição às . suas ideiasevolucionistas, primordialistasY Está também associada ao trabalho. deCornelius Castoriadis sobre o imaginário (1987), de Claude Lefort sobreideologia (1986), de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe sobre(1985)_ Estes trabalhos, por sua vez, vão beber às obras de AntonIo ·

192

uma nova via para a consciência subalterna. Nesta perspectiva, enrique-cida por trabalhos recentes sobre as estratégias do quotidiano (De Certeau,

1984), demonstra- se que a consciência popular não é tanto um sintoma re-flexo de ideologi as da identidad e enterradas e semiconscientes, como uma

estratégia conscientemente elaborada de ironia e de sátira capaz de criticara ordem estabelecida se m deixar de ensaiar estilos de política identitária(Hebdige,.1979).

Ao mesmo tempo, a obra algo diferente de James Scott (1985) sobreas «armas dos fracos», que vai beber à obra anterior de economia: moralde E. P. Thom·psori e outros, começou a mostrar que essas ordens eagru- .pamentos sociais, aparentemente vítimas · passivas de forças maiores decontrolo e dominação, foram não obstante capazes de formas subtis de re-

sistência e de «saída» (nos termos de Albert Hirschrrian [1970]) que apa-rentavam ser, de todo o modo, primordialistas. Comum a muitos destestrabalhos, que divergem noutros aspectos, é a ideia de que as·do futuro desempenham uni papel muito maior do que as ideias .do pas-sado nas acniais políticas de grupo, embora as projecções primordialistaspara o passado não sejam irrelevantes para a política contemporânea da

. imaginação.Reconhecendo que imaginação eacção são muito mais vitais para a

mobilização de grupo do que até agora imaginávamos, mais facilmente..... podemos interpor a invenção tradição crítica de Eric Hobsbawm e Te- .

. rence Ranger (1983), que meteu mais um prego no caixão da perspectivaprimordialista. Embora tenha havido críticas sérias a esta influente tese(sobretudo à tendência para tomar certas tradições por «autênticas» e ou-tras por «inventadas»), ela alertou-nos para a ideia de que, entre o pano-rama de discursos sobre tradição e as sensibilidades e motivações dos ac-

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ARJUN APPADURAI

tores está um discurso histórico que não sai das profundezasdo psiquismo individual ou das brumas.venerandas da tradição, mas sim

do jogo específico, historicamente situado, das opiniões pública e de gru-po acerca do passado. Um contributo importante deste trabalho é apontaro facto de muitos dos grupos nacionais e políticos no mundo contempo-râneo terem a ver não com o mecanismo do sentimento primordial, mas

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

multiculturalismo em Inglaterra estranhamente oco e sustenta osimplícitos e explícitos que Margaret Thatcher pôde encenar nas Maldivas,John Major na Guerra do Golfo, bem como os grupos de ódio faséista eracista em Inglaterra. .

Foi este tipo de rnobilização que caracterizei no capítulo 1 como cul-turalista, isto é, que envolve etnicidades mobilizadas por, ou em relação

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com o que venho chamando «a obra da imaginação». Voltarei adiante aotema da imaginação. .

A grande ironia de muito deste trabalho é que mostra, sem sombra de dú-vida, que muitas' vezes a criação de sentimentos primordiais, longe deconstitu.ir um obstáculo ao Estado modernizador, está bem perto do âmagode um projecto de Estado-nação moderno. Assim, muitos fundamentalis-mos raciais, religiosos e culturais são deliberadamente fomentados por vá-rios Estados-nações, ou seus partidos, num esforço para suprimir dissen-ções internas, para formar súbditos homogéneos do Estado e paramaximizar a vigilância e o controlo das diversas populações sob a sua al-çada. Neste contexto, os Estados-nações modernos inspirarn-se muitas ve-ze s nos aparelhos c1as sificativos e disciplinares que herdaram dos dir igen-te s coloniais e que, no contexto pós-colonial, têm efeitos substanci almen tein rl3.matórios. Um exemplo excelente disto mesmo é a política do númerona Índia colonial e a política de casta na recente controvérsia sobre o Re-lató riO da Comissão MandaI na Índia (ver capo 6). Do mesmo modo , tra-balhos recentes sobre política cultural no Japão (Kelly, 1990; Ivy, 1995) I

mostram que o Estado e os grandes interesses comerciais muito fizerampor construir e potenciar um discurso de niponidade e de tradição (juru-saro ), num esforço para explorar a ideia de um Japão repositório de uma

forma única, hombgénea, de diferença cultural. Em Inglaterra, a indústriasucessória tem trabalhado no sentido de criar uma paisagem de herança, 'de conservação, dos monumentos e do espaço histórico inglês à medida '

que o papel britânico de potência mundial se desvanecia consideravel -men te . Es te discurso da britanidade é apenas a fase mais recente do «co- I

lonialismo interno» (Hechter, 1975) que serviu para criar uma ideia he-gemóni c::l de britanidade. Esta ideia, ainda reinante, toma o discurso do

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com, práticas do Estado-nação moderno. Culturalismo sugere 'algo maisque etnicidade ou cultura, termos que partilham um mesmo sentido do na-tural, do inconsciente 'e do tácito na identidade de grupo. Mas quandó se

produzem num campo de classificação, de mediatização de massas, de

mobilização e de legitimidade dominado pela política ao nívef do Esta-do-nação, as identidades adaptam as diferenças culturais como seu objec-to consciente. Estes movimentos podem assu.[O.Ír várias forrÍlas: pódem di- .rigir-se prioritariamente para a expressão, autonomia e esforços desobrevivência cultural ou podem ter forma principalmente negativa, ca-racterizada em grande medida pelo ódio, pelo racismo e pelo desejo dedominar ou eliminar outros grupos. É uma distinção fundamental, porqueos movimentos culturalistas pela autonomia e pela dignidade que impli-cam grupos muito tempo dominados (como os afro-americanos nos Esta-

dos Unidos e os dalitas na Índia) usam muitas vezes as mesmas cores dapaleta daqueles a que se opõem, pois são de certo modo racistas ou anti-democráticos.. Embora a etnicidade moderna seja, neste sentido, e estejaintimamente ligada às práticas do Estado-nação, vale também a pena notarque um importante grupo de movimentos culturalistas é hoje transnacio-nal, dado que muitas etnias nacionais, por causa das migrações interna-cionais, operam fora dos confins de um só Estado-nação. Estes movimen-

1..,," tos culturalistas transnacionais estão intimamente ligados ao que chamoesferas públicas da diáspora. . ' .

O último e talvez menos óbvio dos recentes que tor-na difícil defender a tese primordialista aplicada à política étnica é a no-ção, muito desenvol vida na' passada pela antropologia cultura l, deque as emoções não são materi ais pré-culturais em bruto qúe constituem

195

 

ARJUN APPADURAI

um substrato universal, trans-social. Embora não seja possível, dentro, dOIâmbito deste capítulo, definir os contornos desta posição, o seu .ânguloprincipal é que o afecto é, em muitos e importantes aspectos, aprendido:o que entristece ou alegra, como exprimi-lo em diferentes contextos e sea expressão dos afectos é ou não um simples escoamento de sentimentos,Íntimos (muitas vezes tidos por universais), são tudo questõe's que foram:

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALI7AÇÃO ( ) ,

Otodo isenta de problemas: a questão de saber como os esquemas culturais Oe políticos inserem na experiência física, motivando assim fortemente U":os sujeitos, está ainda em estudo. O que parece claro é que é pouco'com-pensador separar o mundo da emoção e do afecto do mundo da linguagem Oe da representação de si e estes, pelo contrário, reagem notoriamente Oa macroconcepções de civilidade e dignidade enquanto construídas por in- O

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ricamente problematizadas (Lutze Abu-Lughod, 1990). Este corpo de tra-balhos foi longe na demonstração de qüe as emoções são culturalment<

construídas e socialmente situadas e que os aspectos universais doafecto ,não, nos dizem nada, de muito revelador. 'Este labor assenta muito bem numa outra tendência que opera na re- '

cente antropologia cultural (Asad, 1983; Van der Veer, 1989) e que mos-tra que várias formas de experiência sensorial e de técnica corporalemergem em regimes de conhecimento e poder historicamen-te constituídos. Esta tendência, que também foi influenciada pelas opi- ,niões de Michel Foucault sobre as relações historicamente constituídasentre conhecimento e poder, baseia-se na obra clássica de Marcel Maus s i

(1973) sobre as técnicas do corpo e nas sugestões de Pierre Bourdieu '

(1977) e outros sobre a experi ência corporizada e sua emergência dent ro I

de estrutur:lS culturais específicas de hábito e experiência. O que este ,trab:llho propõe é que, longe de representarem a projecção dos estadose experiências corporais sobre grandes telas de acção e representação,as técnicas corporais e as disposições afectivas representam precisa men-te o oposto, a saber, a inscrição nos hábitos e disciplinas físicos do au-tocontrolo e práticas de disciplina de grupo, muitas vezes ligadas ao Es-tado e seus interesses. A análise do críquete indiano no capítulo 5 cabe

directamente nesta tradição.Por outro lado, este trabalho recebe apoio não apenas das perspectivas

de Foucault e outros sobre o processo histórico através do qual o corpo é

transformado, apropriado e mobilizado, mas também da obra de NorbertElias e seus discípulos, que mostra que certos e poderosos sentidos docomportamento físico e da civilidade são produto directo das ideias cor-teses e burguesas de dignidade e distinção. Esta orientação geral não é de

196

teresses e ideólogos que exercem o poder sobre ordens sociais inteiras. OA cadeia causal, se não fica invertida, fica pelo menos problematizada.

Em vez de seguir de sentimentos íntimos para demonstrações externas que Y

se agregam um nível acima em formas de acção e representaçã<v mais vas- Otas, este conjunto de trabalhos opera de cima para baixo, ou de macro para ( )

micro, sugerindo que o poder é em grande medida uma questão de incutir Odisciplinas de civilidade, dignidade e controlo corporal em larga no

()nível íntimo dos sujeitos corporalizados. A literatura antropológica, em-bora ainda nao seja conclusiva e não esteja de modo algum livre de pro-blemas, sugere que os sentimentos e percepções dos sujeitos actuantes sósão plenamente compreensíveis dentro de estruturas culturais específicasde significado e estilo e quadros históricos mais vastos de poder e disci-

plina. Põe portanto seriamente em questão a ideia de uma camada de sen-timentos primordiais que estivesse à espreita abaixo da superfície das for-mas culturais, das ordens sociais e dos momentos históricos.

Contudo, as multidões e os indivíduos que as constituem por certo pa-reCem apresentar o paradoxo da ira espontânea e da pontaria coordenadacontra as vítimas. A mistura de combustibilidade e coordenação é o cernedo mistério das multidões e da revolta e tem desafiado os observadoresjá desde Gustave Le Bon. É obviamente um aspecto fundamental da vio-lência étnica. Nos textos que parecem estar por trás de muita violência ét-nica (pois raramente essa violência é inteiramente caótica) nota-se clara- 'mente uma espécie de ordem que seria demasiado fácil atribuir àcontingência de planos secretos, agentes externos e cálculos ocultos sub-jacentes ao frenesim de grupo O desafio é captar o fre-nesim da violência étnica sem a reduzir a nuêleo banal e universal dos sen-

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timentos íntimos primordiais. Precisamos de manter um senü'do da raiva

197

 

ARJUN APPADURAI

psíquica e corporalizada, como da intuição de que os sentimentos de

violência étnica (como quaisquer outros sentimentos) só fazem sentido

. dentro de grandes for mações de ideologia, imaginação e disciplina. Parece

'uma missão impossível, mas na secção seguinte sugiro que o tropo da im-

plosão é uma tentativa de sair da ratoeira primordialista.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

gica das anteriores posições realistas centradas no Estado (Keohane,

1986), como também o estou de que mesmo as posições neo'-realistas

não vão tão longe que possam abranger os muitos processos, eventos e

estruturas que operar quase sempre fora das interacções estra-

tégicas dos.Estados-nações. Por isso simpatizo com a abordagem arejada

de James Rosenau (1990), que apela a uma visão inteiramente' nova da

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Implosões étnicas

Já que a perspec tiva primordialista é tantas vezes enganadora, será im-

portante e ncontrar uma perspectiva igualmente geral que nos permita ir para

além dela. A alternativa é um modelo de implosão étnica, um trapo delibe-

. radamente proposto contra as conotações de explosão, tantas vezes associa-

da à posição primordialista. Tanto quanto sei, a ideia de implosão só recen-

temente está a ser usada no contexto dos movimentos sociais, um tanto

no contexto da violência de Estado e das formações de refu-

giados nos Estados fracos (Zolberg et al., 1989? pp. 256-257). Ligando

ide ias de Jam es Scott e AlbertHirschman, Aristide Zolberg e colegas afir-

mam que os camponeses que tentam abrigar-se das acções predatórias do

. Estado podem ver-se encurra lados pelo Estado e assim forçadosàviolência:

«Deste modo, a retirada do Estado pode desencadear uma violenta implo-

são, uma divisão entre governantes e governados que dá origem a grupos

de solidariedade primária c ompetindo entre si numa busca desesperada de I

segurança» (p. 257). Este uso críptico da imagem da implosão é sugestivo

e relacion::l-se com a utilização mais deliberada que farei do termo,

Antes de passar a especificar com precisão como é que o modelo da

implosão proporciona uma abordagem mais l,Ítil dos confrontos étnicos

do que o modelo primordialista, tenho que montar mais amplamente o

cenário para esta abordagem. No geral, aceito a ideia de que o mundo

em que hoje vivemos é global e transnacional num sentido não previsto

pelos modelos anteriores de estudo da política internacional, como já'es-

clareci n::! primeira parte deste livro. Não só estou convencido das vir-

tudes do neo-realismo de Robert Keohane e outros e da sua crítica enér-

193

política global e destaca 'a imagem da turbulência, em especial a que foi ·

desenvolvida por físicos e matemáticos. Com base na ideia de bifurca-

ção e nas ideias correlatas de complexidade, caos e no s sis-temas complexos, Rosehau defende que a dinâmica da políticq. mundial

contemporânea só se explica se virmos que há na moderna política mUI1-

dial dois sistemas em jogo bifurcado: o sistema multicêntrico e o sistema

estatocêntrico.

A grande mensagem de Rosenau é que estrutura e processo na polí-

tica actual são artefactos da interacção turbulenta destes dois sistemas

bifurcados, cada um dos quais afecta o outro de muitas maneiras, a mui-

tos níveis e de formas que tornam os acontecimentos extremamente di-

fíceis de prever. Paraexplicar as estruturas eventualistas no mundo mul-

ticêntrico de que fala, Rosenau sugere que substituamos a ideia de

evento pela imagem da «cascata», sequências de acção no mundo mul- .

ticêntrico qu e «criam aceleração, paragem, inversão de marcha .e nova

aceleração quando as suas repercussões alastram a todo o sistema. e aos

subsistemas » (p. 299), A lista de cascatas que Rosenau identifica é uma

componente crucial do que poderíamos chamar estrutura das exteriori-

dades, em parte responsáveis pela forma e data de determinadas confla-

grações étnicas, Como nem todos os micro-eventos ·associados à vida

quotidiana em localidades etnicamente sensíveis levam a violência ét-

\ _ nica, o concei to de casca ta torna:-seútil para compreendermos porque é' q ue certo acto de profanação religiosa, certo atentado terrorista, certo

discúrso inflamatório acende a violência étnica em larga escala. Aideia

de turbulência global como modelo, da política mundial parece também

a urna série de outros modelos, como a ideia de Lash e Urry

de «capitalismo desorganizado» (Lash e Urry, 1987), os recentes ensaios

199

 

ARJUN APPADURAI

de Robertsoi1 e Arnasón sobre glopalização (Robertson, 1990; Arnason,1990) e os meus próprios esforços para re-situar a política da diferençacultural num quadro de disjurituras dentro da economia cultural global(ver capo 2).

Mas parece longa a jornada, desde as ideias de turbulência global e de·imacrens de cascata e fluxo até à actualidade, da violência étnica a à bru-c "

talidade humana concreta. Para encurtar essa distância, vou buscar dois

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZÂÇÃO

descendente corrupta do seu pai e a emergência paralela doMQM (Mo-. hajir Qaumi Movement) como principal partido da formação daidentida-de mohajir. Estas leituras, por sU,a vez, puderam inflamar a força social eeconómica patane em Carachi e alimentar uma hostilidade crescente con-tra o partido de Bhutto nà cidade, especialmente entre aqueles que, comoos Patanes, não dispunham de uma voz política forte na política regionaldo Sinde. Assim, a delicada e mortal interpretação Ce interpenetração) de

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termos recentemente propostos por Tambiah (1990) num esforço paraidentificar a dinâmica do comportamento das multidões no contexto da

violência étnica: focalização e reavaliação. Tambiah desenvolveu estestermos no contexto de uma leitura atenta dos motins de Carachi, em 1985,entre pataries e mohajires (Biaris), sendo estes últimos paquistaneses emi-grados oriundos da Índia Oriental:

Por focalização entendo o processo de progressivo desnudamento de incidentese disputas locais na sua especificidade de contexto, agregando-os e assim estreitan-

. do a sua riqueza concreta. Reavaliação refere-se ao processo paralelo de assimilar. especificidades a uma ou interesse mais lato, colectivci, mais resistente e por- ·

tanto menos preso ao contexto. Os processos de focalização e reavaliação contri-buem portanto para uma progressiva polarização e dicotomização das questões e dos

militantes, de forma que os actos extremos de violência de grupos e bandos se tor-nam em pouco tempo manifestações fechadas, encarnações e reencarnações devisões alegadamente irresolúveis entre patanes e biaris, siques e hindus, cingalesese tâmiles ou malaios ecnin eses (Tambiah, 1990, p, 750).

Os processos de focalização e reavaliação que Tambiah identifica sãoainda mais reveladores quando colocados dentro do que podemos consi-derar as cascatas de eventos (no sentido de Rosenau) que ligavam Carachie os seus arrabaldes a desenvolvimentOs da política regional e nacionalno Paquistão e na política mundial tal como os Paquistaneses a entendiam;Entre essas cascatas inclui-se a vitória de Benazir Bhutto nas eleições para

primeiro-ministro, a leitura desta vitória em Carachi e noutros lugarescomo uma vitória do Sinde sobre o Punjab em política regional, a projec-ção, por vários partidos pró-Zia, da fraqueza de Bhutto como mulher e

200

eventos nas ruas de Carachi, que se desenrolou num drama rapidamentelido em termos empolados, poderia não ter tido as várias feições que as-

sumiu se não 'fossem os efeitos implosivos de sequências de acção maisvastas na política de rua de Carachi. Claro que estes mesmos têmreverberações para fora e para cima, através de outras cascatas de acon;. .tecimentos que criaram a sensação de Bhutt<tser incapaz de manter a or-dem civil. Esta percepção, mobilizada juntamente com outras imagens emanipulações políticas, foi uma das razões da sua posterior queda, em1990, queda essa associada a grandes alterações na 'política do subconti-nente e na percepção da Índia e dos Estados Unidos, no período a seguirà Guerra do Golfo.

Claro que este é um retrato simplificado em que intro-

duzir muitas outras exterioridades, como o tom estridente anti-indiano eanti-hindu que Bhutto adoptou nos seus discursos sobre a Zona Livre deCaxemira, num esforço para desfazer a sua imagem de mulher fraca e pes-soa que tinha sido branda com os Mohajires no contexto dos motinsCarachi de 1985. A situação em Carachi foi-se tornando mais contida emais implosiva no período posterior a 1985 em 1995, Carachi é um ce-nário de guerra civil e violência étnica como Mogadíscio, a Beirute dosanos oitenta, a um passo da Cabul dos anos noventa. Bhut to voltou ao po- .

, der depois de ter sido derrotada em eleições anteriores e enfren ta uma vez" 'mais uma Carachi volátil e um mandato nacional altamente inseguro.

Muitas coisas aconteceram em Carachi desde 1985 e uma série de violen-

tas batalhas entre as forças do Estado e a juventude armada do MQM cus-tou em Carachi, a mais de oitocentas pessoas entre Janeiro e Ju-nho de 1995. .

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ARJUN APPADURAI

Muito se poder ia dizer sobre a história de violência em Carachi nessadécada com relevância para as teses gerais deste livro e os interesses es-pecíficos deste capítulo . Como cidade, Carachi é um exemplo tremenda-mente deprimente do tipo de conflito urbano de que falo no capítulo 9,que produz localidade em condições de terror e luta armada quotidianas.Desde os meados dos anos de 1980 o MQM, que começou por serfruto do sentimento de ofensa partilhado pelos errúgrantes vindos do Pa-quistão para a Índia' Oriental, tem estado profundamente dividido e a sua

D,lMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

níveis para a leitura de significados gerais em eventos locais e contingen-tes, assim como fornecem o álibi para a inscrição em manipulações étni-cas e conspirações, de enredos de longa data tirados de acontecimentos,de rua aparentemente triviais.

Mas esta ligação tem também uma dimensão diacrónica. Afinal, aperspectiva primordialista era a mais forte (embora a mais errónea) paraexplicar a política do afecto, logo, a violenta intensidade dos confrontosétnicos. Um a nova perspectiva do tipo que aqui propomos há-de propor-

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direcção funciona agora no exílio, em Inglaterra. É portanto um excelenteexemplo de um movimento de diáspora, transnacional e anti-Estado quenão exige aut onomia nacional. A própria Benazir Bhutto usou da lingua-gem do terrorismo e dajihad contra o MQM, esfumando assim a fronteiraentre a políticasubcontinental(o MQM é muitas vezes considerado liaado

. . b .

à India,terra natal dos Mohajires) ea política nacional do Paquistão.Todos os bdos do conflito - o Estado, as diferentes facções do MQM

e o partido no poder, o Partid.o Popular Paquistanês - passaram do uso, das pequenas armas para o de lança-morteiros, tanques e ninhos de me-

tralhadoras. Não há indicação mais clara da implosão da política global enacional no mundo urbano de Carachi do que esta citação de um senhorda guerra local, dirigente de uma facção dissidente do MQM no bairro de

Landhi: «Eles que façam uma província ou um país separado, ou o quequiserem. Esta zona continuará a ser o meuEstado» (Hanif, p. 40).

A guerra urbana de Carachi está ligada à política regional, estatal, na-cional e global através do tráfico de droga, da política crirrúnosa, dos es-forços estatais para en umerar as grandes populações étnicas (ver capo 6)e do meio milhão de' emigrantes que todos os anos chegam a esta cidadejá sobrepovoad a por doze milhões de almas.

. Mas este não é o lugar para um estudo pormenorizado da violência ét-nica em Carachi. O principal é que a focalização e a reavaliação vão bus-car a sua energia aos macro-eventos e processos (cascatas) que ligam a

política global à rrúcropolítica das ruas e dos bairros. Sincronicamente,.es-tas fornec.em o material os de focalização ereavalJaçao. Ou seja, fornecem matenal a lmagmaçao'de agentes a vfuio s,

202

cionar uma etiologia alternativa do que Raymond Willi ams chamaria «es-, truturado sentimento» na violência étnica. Os macro-'eventos ou cascatas

. . . ". ' ,penetram em estruturas altamente localizadas de sentimentos p,or serem

. arrastados para o diséurso e para as narrativas da localidade em

casuais e comentários à boca pequena do tipo que muitas vezes acompa-nha a leitura colectiva de jornais em muitos b'airros e em muitas soleirasde porta do mundo. Ao mesmo tempo, as narrativas e enredos locais em

cujos termos a vida corrente e os seus conflitos são lidos e interpretadossão atravessadas por um subtexto de possibilidades interpretativas que éproduto directo do trabalho de imaginar localmente eventos maiores,re-

gionais, nacionais e globais.O problema destas leituras locais é que são muitas vezes silenciosas e

literalmente inobserváveis, excepto nos mínimos comentários de passa-gem sobre acontecimentos mundiais ou nacionais que ocorrem nas con-versas de casas de chá, cinemas e locais urbanos de reunião. Integram oincessante murmúrio do discurso político urbano e as suas cadência s cons-tantes e monótonas. Mas as pessoas e os grupos a este nível muito localgeram essas estruturas de sentimento que, com o tempo, fornecem o cam-

po discursivo de que se apoderam os rumores eXplosivos, os dramas e os, discursos da revolta

""'\. Esta perspectiva não requer um pressupostoprimordialista para expli-

car as estruturas locais de seÍltimentos que conferem aos motins étnicose à acção colectiva a sua força brutal e inexplicável. Estes sentiment os lo-cais são produto de interacções, a longo prazo, de cascatas dos aconteci-mentos locais e globais que erguem estruturas de sentimentos sociaIs e .

203

 

ARjUN APPADURAI

históricos e que fazem parte do ambiente em que, gradualmente, torna

possível enca rar um vizinho como inimigo, um traIdor e:-

trariaeiro e um comerciante local como explorador capitalIsta sem escru-

vez activada esta imiologia de imagens, o processo de que fala

Tambiah avança e podemos ter a certeza de que haverá novos episódios

recordação, interpretação e sofrimento depois de aplacada a re-

volta, abrirão de novo o caminho para novas estruturas locais de sentimen-

tos.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

está ligada à relação entre aparência e realidade. Quando o vizinho co-

merciante revela ser, no seu coração, um croata, quando o mestre-.escola

afinal é simpatizante dos Rutus, quando se descobre que o m elhor amigo

afinal é muçulmano e não sérvio, quando o vizinho do meu tio até é um

latifundiário odiado, o que daí decorre parece ser uma sensação de pro-

fundo embuste categorial, isto é, a mentira sobre a identidade de grupo

tal como a definem os Estados, os censos, os meios de comunicação e

outras grandes forças.

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Mas não se pode negar que conceitos como cascata, reavaliação, fo-

calização e implosão parecem demasiado abstractos, demasiado mecani-

cistas, demasiado gerais para captarem a contingência bruta, a violência

crua, a sede elec triza nte de sangue, o instinto para a degradação que pa-

recem acompanhar o terror étnico em lugares como o Ruanda e a Bósnia,

. Carachi e Colombo. Quando a violação, a tortura, o canibalismo e o uso

brutal de sangue, fezes e partes do corpo entram para o cenário da limpeza

étnica, defrontamo-nos com os limites não apenas da ciência social mas

da própria linguagem. Será possível dizer algo de útil sobre este género

de violência no mundo globalizado que este livro descreve?

Avento uma hipótese contra a minha própria paralisia interpretativa

quando posto perante a horrenda violência de grupo das guerras étnicas .. 1

actuais4. O pior tipo de violência nestas guerras parece ter algo a ver coma relação distorcida entre as relações quotidianas cara a cara e as identi-

dades em larga escala produzidas pelos Estados-n'ações modernos e com-

plicadas pelas grandes diásporas. Mais exactamente, o que há de mais hor-

rível nas violações, degradação, tortura e morticínio das novas guerras

étnicas é que ocorrem, em muitos casos, entre sujeitos que se conheciam,

ou julgavam co nhecer-se. O nosso horror é suscitado mera intimidade

que frequentemente enquadra a nova violência étnica. E horror perante o

vizinho que se tornou assassino/torcionário/violador. Que tem esta intimi-

. dade a ver com os meios de comunicação, a política estatal e os macro-

-eventos globais?A raiva dos que matam, mutilam e violam parece ligada a uma

profunda sensação de traição que aponta para as esta traição

204

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No fundo, esta sensação de traição gira em torno da identidade trocada

num mundo em que a aposta associada a estas identidades

e.

alta. A raiva que essa traição parece inspirar pode, evidentemente, esten-

der-se a multidões de pessoas que podem não ter sido íntimas e as.sim se

vai tornando cada vez mais mecânica e impessoal, mas eu diria que se man-

tém animada por um sentimento de violação da ideia de ter conhecido o Ou-

tro e de raiva contra quem ele revela realmente ser. A sensação de mentira,

ou de traição, logo, de confiança violada, raiva e ódio, tem tudo a ver com

um mundo em que as identidades em larga escala forçosamente" entram na

imaginação local e se tornam locutoras dominantes nos trâmites da vida cor-

rente. A litera tura primár ia mais próxima dos mais brutais episódios da vio-

lência étnica con temporânea é emitida na língua do impostor, do agente se-

creto, da pessoa falsa. Este discurso traz consigo a incerteza quanto às

categorias e à intimidade entre as pessoas - característica fundamental da

nova violência.

.Rá muitos exemplos de violência política contemporânea que confir-

mam este ponto de vista. Tem a sua genealogia nos casosfamosos da mar-

cação dos judeus alemães .como impostores pelos nazis (Anderson. 1983,

p. 149). Se examinarmos os .dados dos momentos reais de maior brutali..,

" dade nos episódios recentes de violência . de grupo (Das, 1995; Malkki,

" 1995; Sutton, 1995) , vemos 'que a revelação das odiadas e odiosas iden-

tidades oficiais para além das máscaras físicas das pessoas reais (e conhe-

cidas) parece crucial para a perpetração das piores formas de mutilação emaus tratos. Inversamente, a exposição dos nomes, hi stórias e memórias

individuais de pessoas específicas por trás dos cadáveres das 'vítimas de

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ARJUN APPADURAI

categorização adversa é usada para provocar os mais fortes sentimentos.Estes processos recíprocos - expor impostores e restituir as pessoas reaisatravés de comemorações personalizadas - parecem estar no cerne daviolência física das batalhas étnicas actuais. Recordar e esquecer é vitalpara o naCionalismo (Anderson, 1983), mas .ainda mais vital pa ra a suabrutal política corporalizada. Esta visão da peculiar e e spantosa brutali-dade da guerra étnica e racial não exclui outros factores que normalmentefiguram nas teorias da violência étnica: frustração económica, manipula-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

gração e dos meios de comunicação' de massas. Ess?-s exterioridades não

aumentam necessariamente o potencial de violência. Excepto 'por maisurna contradição que aJecta todos os. Estados-nações em princípió e amaior parte deles na prática. Trata-se da contradição entre a ideia de quecada Estado-nação pode verdadeiramente representar apenas urna etnia e,a realidade que os Estados-nações historicamente implicam, que é · umaamálgama de muitas identidades. Mesmo quando as identidades de lonaa

data foram esquecidas ou enterradas, a combinação entre migrações e

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ção pelos políticos, receios de mudança religiosa, .aspirações a autodeter-

minação étnica, bodes expiatórios para tempos de crise e similares. Todosestes factores por certo explicam a dinâmica geral do conflito étnico emmuitos cenários sociais e históricos. Mas parecem incapazes de explicara pura brutalidade do etnocídio e da guerra étnica modernos e o seu sen-tido contingencial de fuga. Esta hipótese sobre violência relacionada commentira, intimidade e identidade pretende explicar a transformação depessoas comuns em assassinos, torCionários e violadores e a representaçãode amigos, vizinhos e colegas de trabalho como objectos do mais fundoódio e rai va.

Se a hipótese da mentira é plausível; ela tem muito a ver com as iden-tidades em larga escala criadas, transformadas e reificadas pelos moder-

nos aparelhos de Estado (muitas vezes num campo transnacional de diás-pora) e difundidas pelos meios de comunicação. Quando estas identidadessão convincentemente retratadas como lealdades primárias (em boa ver-dade primordiais) por políticos, chefes religiosos e meios de comunica-ção, então a gente comum toma o gosto por agir corno se apenas este tipode identidade interessasse e estivessem rodeados por um' mundo de fingi-dores. Estas representações da identidade (e da identificação) parecemainda mais plausíveis num mundo de migrantes e meios de comunicaçãode maSS:lS capaz de subverter as certezas de todos os dias que vêm do co-nhecimento pessoal do Outro étnicoS,

Nem todos os movimentos culturalistas levam à violência entre gruposétnicos, mas o - na medida em que envolve identidades mo-bilizadas ao Estado-nação- está sujeito às exterioridades da mi-

206

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diatização de massas assegura a sua reconstrução numa nova escala e em

níveis mais alargados. Já agora, é por isso que a política'de recordar e es-quecer (.logo, da história e da historiografia).é tão importante pará os con-flitos étnicos ligados ao nacionalismo (Van der Veer, 1994). Os movimen-tos culturalistas entre minorias e grupos historicamente dominadostendem a entrar num diálogo consciente com das maio-rias numéricas. Quando competem por um bocado da nação (e dos recur-sos do Estado), estes culturalismos entram 'inevitavelmente no espaço daviolência potencial. . . . " .

Esta proposta difere fundament'llmente da perspectiva primordiaIlsta.Não vê o substrato de sentimento étnico como o alicerce da explicaçãodas explosões étnicas. Pelo contrário, sugere que as estruturas do senti-

mento étnico são elas próprias produtos complexos da imaginação local(mediatizando uma variedade fascinante de cascatas à medid a quese deslocam pela localidade). Os episódios de violência étnica podem por-

tanto ser considerados implosivos em dois sentidos: no sentido estruturalrepresentando a retracção para políticas locais de pressão e agitaçãoarenas políticas cada vez maiores; e no sentido hjstórico, em que a Íma-ginação política local está cada vez mais sujeita ao fluxo de grandes'acon-

; tecimentos (cascatas) ao longo do tempo, acontecimentos que influ encia m .'a interpretação das ocorrênCias mundanas e vão criando gradualmente um ' .

repertório de sentimen tos étnicos adversos. sentimen tos podem pa-

recer primordiais à primeira vista, mas são por certo produto de processosde acção, comunicação, interpretação e comentário de há muito tempo.Uma vez ocorridos estes eventos, é muito mais fácil ver as suas dimensões'

207

 

ARJUN APPADURAI

explosivas à 'medida que 'se expandem, inflamando outros sec tores e ar-

rastando outras questões para o vórtice da fúria étnica. Mas esta dimensão

explosiva, potenciada e potericiadora dos processos de focalização e rea-

valiação, não deve ocultar-nos as suas condições iniciais. Estas condições

explicam-se melhor nos termos da ideia de.implosão proposta neste capí-

tulo do que pelas muitas versões da perspectiva primordialista que satis-

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO \, )

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.0o familiar ao controlo sanitário e do controlo da imigração à política da

língua, ligaram práticas corporais concretas (fala, higiene, movimento, ( )

saúde) a identidades de grupo em grande escala, aumentando assim o al- ,-_,v 'cance potencial das experiências corporalizadas de afinidade de grupo. Fi- O

nalmente, tanto nos quadros estatais democráticos como nos não demo-

cráticos, a linguagem dos direitos e garantias, na generalidade, ficou· O

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fazem a nossa sede de explicações definitivas, em especial

do aparentemente irracional.

Etnicidade moderna

Quero sublinhar, ain da que cripticamente, o que há de moderno (na

minha acepção, de culturalista) nestes movimentos étnicos contempo-

râneos. Os grandes movimentos étnicos actuais, muitas vezes violen-

tos, requerem uma nova compreensão das relações entre história e ac-

ção, afecto e política, factores de largo espectro e factores locais. ,

Venho sugerindo ao longo deste capítulo que uma maneira de satisfa-

zer estes requisitos é resistir à dialéctica exterior-interior que a manei-

ra de pensar primordialista nos impõe e pens ar antes em termos de uma

dialéctica da implosão e da explosão no tempo como chave da dinâ-

mica peculiar da etnicidade moderna.

Vistos deste' ângulo, os movimentos étnicos modernos ( culturalismos)

podem ser relacionados com a crise do Estado-nação através de toda uma

série de interessantes pontos de contacto. Primeiro, todos os Estados-na-

ções modernos adoptaram e conceberam a ideia de que uma organização

social legítima tem que ser resultante de afinidades naturais de algum tipo.

Assim, no momento em que muitos Estados-nações entram numa crise de

legitimação e. enfrentam as exigências de grupos migrantes, elas conti-nuam à operar no quadro de um legado em que a autodeterminação. na- '

cional tem que assentar numa qualquer tradição de afinidades naturais.

Em segundo lugar, os (por mais resultantes) do Es-

tado-nação moderno, da saudepubhca aos censos, do planeamen-

208

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ligada inextricavelmente a estas identidade,s em larga' escala. Os projectos

étnicos actuais definem-se cada vez mais

por estas três característica? dacultura do Est<ido-nação moderno. Os grupos étnicos podem imaginar o

seu futuro, mas mesmo' aqui (como nas observações de Marx as pes-

soas serem autoras da sua própria história) podem não fazer exactamente

o que lhes apetece. Os Estados perdem o seu monopólio sobre a ideiade

nação e é compreensível que toda a espécie de grupos tendam a usar aló-

gita danação para captar algum ou todo o Estado, algumas ou todas as

garantias que o Estado dá. Esta lógica ganha a sua máxima força mobili-

zadora quando o corpo encontra o Estado, isto é, nos projectos aque cha-

mamos étnicos e muitas vezes tomamos erradamente por

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o patriotismo e os ·seus futurosIiIlií

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. Precisamos de nos pensarpara além da nação 1. Isto não é sugerir que

só o pensamento nos levará para além da nação ou que a nação é em

grande medida uma coisa pensada ou imaginada . Pelo contrário, é su-

gerir que o papel das práticas intelectuais .é identificar a corrente crise

da nação e, identificando-a, providenciar parte do aparelho de reconhe-

cimento para formas sociais pós-nacionais. Embora a ideia de estarmos

a entrar num mundo pós-nacional pareça ter recebido o seu primeiro

alento dos estudos literários, é agora um tema recorrente (embora hesi-

tante) nos estudos de pós-colonialismo, de política global e de política

providencialista internacional. Mas a maior parte dos autores que afir-

maram ou advogaram que precisamos de pensar pós-nacionalmente não

perguntaram exactamente quais as formas sociais emergentes que nos

obrigam a fazê-lo ou de que maneira. Esta última tarefa é o ponto

cipaI deste capítulo.

211

 

ARJUN

Colónias pós-discursivas

Para aqueles de nós que se criaram varões nos sectores de elite domundo .pós-colonial, o nacionalismo foi a nossa razão e principal justifi-cação das.nossas ambições, estratégias e sentido de bem-estar moral. Ago-

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ra, quase meio século depois de muitas novas nações terem alcançado aindependência, . a forma nação é at acada, e de muitos pontos de vista.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBAL/ZAÇÃO

como discurso requer um alargamento'correspondente da esfera da pós--colónia, estendendo-apara além .dos espaços geooráficos do anterior. . o . .mundo coJonial. Ao levantar a questão do pós-nacional, pretendo sugerirque a viagem do espaço da antiga colónia (um espaço colorido, um espaçode cor) para o espaço da pós-colónia é um a viagem que nos leva ao co- 'ração da branquitude. Ou seja, leva-nos para a Ainérica, um espaço pós-nacional marcado pela sua branquitude, mas marcado também 'pelo com-

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Como álibi ideológico do Estado territorial, é o último refúgio do totali-

tarismo étnico. Em críticas importantes do pós-colonialismo (Mbembe,1992), o discurso revéla-se profundamente implicado . nos discursos do

- ' ipróprio colonialismo. Te m servido muitas vezes de veículo para as dúvi-das encenadas dos heróis das novas nações '- Sukamo, Jomo Kenyatta,Jawaharlal Nehru, Gainal AbdeI Nasser - que brincavam aos naciona-lismos enquanto a esfera pública das suas sociedades começ.ava a arder.Portanto, para intelectuais pós-coloniais como eu, a questão é: o patrio-tismo tem futuro? E a que raças e sexos pertence esse futuro?

Responder a esta pergunta não exige somente um compromisso coma problemática da forma nação, da comunidade imaginada (Anderson,

1991), da produção de povo (Balibar, 1991), da narratividade das nações(Bhabha, 1990) e da lógica colonial do discurso nacionalista (Chatterjee,1986). Requer também um exame atento dos discursos do e dosdiscursos contidos no hífen que liga Estado a nação (cap. 2; Mbembe et

al., 1992). O que se segue é uma exploração de uma das dimensões destehífen.

Há hoje no Ocidente académico uma perturbadora tendência para di-vorciar o estudo das formas discursivas do estudo de outras formas insti- .tucionais e o estudo dos discu rsos literários· dos discursos mundanos dasburocracias, exércitos, empresas privadas e organizações não governa-mentais. Este capítulo pugna, de certo modo, pelo alargamento do campodos estudos do discurso: se a formação pós-colonial é em parte uma for-mação discursiva, é também verdade que a discursividade se tomou de-masiado exclusivamente o signo e o espaço da colónia e da pós-colónianos esruó os culturais contemporâneos. Alargar o sentido do que conta

212

promisso incómodo com os povos da diáspora, as tecnologias móveis e

as nacionalidades extravagantes. .

o tropa da tribo

A despeito das provas em contrário, os tempos vão maus para o pa-triotismo. Corpos mutilados e arame farpado na Europa de Leste, violên-.cia xenófoba em França, acenar de bandeiras nos rituais políticos dos anosde eleições áqui, nos Estados Unidos - tudo isso parece' sugerir que avontade de morrer pela pátria ainda é uma moda global. Mas o patriotismo

é um sentimento instável que só avança ao nível do Estado-nação. Abaixodesse nível é facilmente suplantado por lealdades Íntimas, acima des-se nível dá origem a palavras de ordem vazias, raras vezes confirmadaspelo desejo de se Sacrificar ou de matar. Portanto, para pensarmos Q futurodo patriotismo temos que indagar primeiro da saúde do Estado-nação.

As minhas dúvidas sobre patriotismo estão ligadas à biografia do meupai, em que patriotismo e nacionaHsmo eram já termOs divergentes. Como

correspondente de guerra da Reuters em Banguecoque, e m 1940, conhe-ceu um nacionalista indiano exilado, Subhas Chandr'a Bose, que cindiu de

" e. po: da da Bose escapara à vigi-lancla bntamca na Indla com o apOlO actlvo dos Japoneses e fundara, no

. Sueste Asiático, urri governo-no-exílio. O exérci to que Bose formou comoficiais e recrutas indianos que os Japoneses tinham feito prisioneiros cha-mava-se Exército Nacional Indiano. Este exército indiano foi redonda-mente desfeiteado pelo Exército Britânico da Índia em Assam (em solo '

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indiano, como o meu pai nunca se cansava de notar), em 1944 e ôgovernoprovisório da Azad Hind (Índia Livre) em que o meu pai foi ministro daPublicidade e Propaganda em breve ruiu com a derrota potências do I

Eixo.o meu pai regressou à Índia em 1945, ele e os seus camaradas,

parentes pobres da história da luta nacionalista pela independência india-na, não foram heróis bem-vindos. Eram patriotas, mas o sentimento anti- '

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO .

da violência, as identidades e identificações fundamentais· giram agoraapenas parcialmente em torno das realidades e das imagens de lugar. Nareivindicação sique do Calistão, nos sentimentos franco-canadianos peloQuebeque, na exigência palestianiana de autodeterminação, as imagens daterra natal são apenas uma parte da da soberan ia popular 'e não[eflectem necessariamente uma meta territorial. A violência e o terror querodeiam o colapso de muitos Estados-n.ações existentes não são sinais da

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britânico de Bose e as suas ligações às potências do Eixo" tomaram-no em- ,baraçoso, tanto para a não-violência de Gandhi como para a anglofilia

fabiana de Nehru. No final das suas vidas, o meu pai e os seus camaradasforam patriotas párias, nacjonalistas"reles. A minha irmã, irmãos e eu cres-cemos em Bombaim entalados entre o antigo patriotismo, estilo Bose, eo nacionalismo burguês, estilo Nehru. Anossa Índia, com as suas ligaçõesjaponesas e os seus modos antiocidentais, tinha o aroma inorninável da . I

traição relativamente'à confortável aliança dos Nehru com osten e ao acordo burguês entre a não-violência gandhiana e o socialismonehruviano. A desconfiança que o meu pai votava à dinastia Nehru pre-dispôs-nos a imaginar uma estranha Índia desterritorializada, inventadaem Taiwan e Singapura, Banguecoque e Kuala Lumpur, assaz inde-

pendente de Nova Deli e dos Nehru, do Partido do Congresso e dos na-cionalismos em voga. Por isso tem para mim um atractivo especial a hi-pótese de o casamento entre nações e Estados ter sido sempre umcasamento de conveniência e de o patriotismo precisar de encontrar novosobjectos de desejo.

Um facto importante que explica as tensões da união entre nação e Es-tado é que a índole nacionalista, que nunca cabe bem no gargalo do Estadoterritorial, esti hoje também em diáspora. Transportada nos repertórios depopulações de refugiados, turistas, trabalhadores convidados, intelectuaistransnacionais, cientistas e estrangeiros ilegais com crescente mobilidade,cada vez mais se liberta das ideias de fronteira espacial e soberania terri-torial. Esta revolução dos fundamentos do nacionalismo entrou em nóspraticamente' sem darmos por isso. Onde o solo e o lugar foram a chaveda ligação entre filiação territorial e monopólio do Estado sobre os meios

inversão de algo de biológico ou inato, obscuro ou primordial (Comaroffe Comaroff, 1992b). Que faremos então desta renovada sede de sangueem nome da nação? ,

Os nacionalismos modernos implicam comunidades de cidadãos noEstado-nação definido territorialmente, que partilham a experiência colec-tiva, não' do 'contactocara a cara ou da subordinação comum a um mo-narca, mas da leitUra em conjunto de livros; panfletos, jornais, mapas eoutros textos modernos (Habermas, 1989; Calhoun, 1992). Dentro evés destas experiências colectivas do que Benedict Anderson (l991)cha-

ma «capitalismo impresso» e qu'e outros vêem cada vez mais como «ca-pitalismo electrónico», como a televisão e o cinema (Warner, 1992; Lee,1993), os cidadãos imaginam 'que pertencem a uma sociedade nacionaL

Nesta perspectiva, o Estado-nação moderno não nasce de factos naturais- como língua, sangue, solo e raça -; mas sim de um produto culturalessencial, um produto da imaginação colectiva: Esta perspectiva distan-cia-se, mas não o' suficiente, da teoria dominante do nacionalismo, das deJ. G. Herder e Giuseppe Mazzini e, assim sendo, de toda a espécie de na-cionalismos de direita que vêem nas nações produtos do destino naturaldos povos, quer radiquem na língua, na raça, no solo ou na religião. Emmuitas destas teorias da nação imaginada há sempre a sugestão de que o .

' " sangue, o parentesco, a raça e o solo são de certo modo menos imaginadose mais naturais do que a imaginação do interesse colectivoou da solida-riedade. O tropo da tribo reactiva este biologismo oculto, em grande me-dida porque falta ainda articular alternativas forçosas ele. As conjun-turas históricas relativas à leitura e à publicidade, textos e su asmediações linguísticas , às nações e suas narrativas só agora estão a ser jus-

215

 

ARJUN APPADURAI

tapostas para formular o diacrítico especial e específico do imaginário na-cional e das suas esferas públicas (Lee, 1993).

Os dirigentes das novas nações que se fórmaram na Ásia e Áfricaapós a Segunda Guerra Mundial - Nasser, Nehru, Sukarno - ficariammuito desgostosos se vissem com que frequência as ideias de tribalismoe nacionalismo surgem juntas no discurso público recente do Ocidente.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

cada nacionalismo que parece ter um destino natural há um outro que éum .subproduto reacti vo.

Se a violência em nome de sérvios e molucanos, khmeres e lituanos,alemães e judeus nos leva a pensar que todas essas identidades corremfundo nas trevas, bas.ta-nos voltar-nos ' para os motins na Índiaocasionados pelo relatório de uma comissão governamental que recomen-

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Estes dirigentes gastaram grande parte da sua energia retórica in stando os

seus súbditos a que abandonassem o que consideravam lealdades primor-diais - à família, tribo, casta e região - no interesse de frágeis abstrac-ções a que chamavam «Egipto», «Índia» e «Indonésia». Compreenderamque as novas nações precisavam de subverter e anexar as lealdades pri-

. márias ligadas a colectividades mais íntimas. Assentaram as suas ideiassobre novas nações no fio de um paradoxo, o de que as nações modernasse destinam a ser de aloum modo abertas, universais e emancipadoras emo ,

virtude do seu empenho especial nas virtudes cívicas, sendo as suas na-ções, não obstante, e em aspectos diferentes e até melhores queoutras nações. Em muitas coisas estes dirigentes sabiam o que tendemosa esquecer, isto é, que as nações, em especial as' de quadro multiétnico,

são projectos colectivos ténues, não factos naturais eternos. Contudo, con-tribuíram também para criar uma falsa divisão entre a artificialidade danação e os factos que falsamente projectaram como primordiais: tribo, fa-mília, região'. .

Na sua preocupação de controlo, classificação e vigilância dos súb-ditos, o Estado-nação muitas vezes criou, revitalizou ou fracturou iden-tidades étnicas que antes eram fluidas, negociáveis ou nascentes. Claroque os termos usados para mobilizar a violência étnica hoje podem teruma longa história. Mas as realidades a que se referem -. língua servo--croata, costumes bascos, cozinha lituana - foram sobret)Jdo cristaliza-

das no século XIX é princípio do século XX. Nacionalismo e etnicidadealimentam-se portanto mutuamente quando os nacionalistascategorias étnicas que, por sua vez, levam outros a construir contra-et-nicidades e então, em tempos de crise política, estas requerem contra--Estados baseados nos contranacionalismos acabados de descobrir. Por

216

dava que se reservasse uma grande percentagem de empregos públicospara certas castas definidas pelo censo e pela constituição como «atrasa-

Houve agitação e carnificina e não poucas mortes e suicídios noNorte da Índia por causa de rótulos como «mais uma casta atrasada» saf-

. dos das distinções terminológicas do censo indiano e seus protocolos ecalões especializados. É espantoso que alguém morra ou mate por títulosassoCiados a ser membro de mais uma casta atrasada. Contudo, este casonão é uma excepção: na sua macabra banalidade burocrática, mostra comoas necessidades técnicas dos censos e da legislação da Segurança Social,combinadas com as tácticas cínicas da política eleitoral, podem arrastar

. os grupos pa ra identificações e medos quase raciais. A ques tão não é tãodiferente como possa ·parecer para rótulos aparentemente tão naturais

como judeu, árabe, alemão e hindu, todos ligados a pessoas que escolhemestes rótulos, a outras que são forçadas a eles e a outras ainda que, atravésda sua erudição filológica, mantêm de pé a história destes nomes ou ar-ranjam maneiras hábeis de branquear problemas turvos de língua e histó-ria, raça e crença. Claro que nem todos os Estados-nações são hegemóni-cos, nem todas as formas subalternas de acção impotentes para resistir aestas pressões e seduções. Mas parece justo afirmar que há poucas formasde consciência popular e acção subalterna isentas, face à mobilização ét-nica, de formas pensadas e campos políticos produzidos pelas acções e

\ discursos do s Estados-nações. . , ," ' . '

Por isso as minorias, em muitas partes do mundo, são tão artificiaiscomo as maiorias que parecem ameaçadas por elas. Os brancos nos Esta-dos Unido s, os hindus na Índia. os ingleses na tudoexemplos de como o qualificativo político e administrativo de 'bünoriasdado a alguns grupos (negros e hispânicos nos Estados Unidos, celtas e

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ARJUN APPADURAI

paquistan eses no Reino Unido,' muçulmanos e cristãos na Índia) servepara empurrar as maiorias (silenciosas ou vocais) ao abrigo de rótulos comvida' curta mas história longa. Muitas vezes, as novas etnias não são maisvelhas do que os Estados-nações a que começaram a resistir. Os muçul- I

manos da Bósnia estão a ser relutantemente guetizados, embora tanto sér-vios como croatas temam a possibilidade de um Estado islâmico na Eu-ropa. Muitas vezes as minorias fazem-se à nascença.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

contingências que incendeiam a paixão étnica. Os siques, até há pouco

tempo baluarte do exército indiano e, historicamente, a arma com,que aÍndia hindu combateu o regime muçulmano, sentem-se hoje ameaçados

pelo hinduísmo e parecem querer aceitar auxílio e socorro do Paquistão.Os muçulmanos da Bósnia-Herzegovina foram relutantemente forçados

a revitalizar -as suas filiações islâmicas. Longe activarem sentimentos

tribais de longa data, os muçulmanos bósnios estão divididos entre a

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Os movimentos étnicos recentes envolvem milhares, por vezes mi-lhões de pessoas espalhadas por vastos te rritórios ' e com frequência se-paradas por grandes distâncias. Quer consideremos os vínculos dos sér-vios divididos por grandes porções da Bósnia-He rzegovina, ou os curdosdispersos pelo Irão, Iraque eTurquia, ou os siques espalhados por Lon-dres, Vanc ouver e Califórnia, bem como no Punjab indiano, ·os novosetnonacionalismos são acções de mobilização complexas, em grande es-cala, altamente coordenadas, com base em novos fluxos logístico? e empropaganda que passa as fronteiras dos Estados. Não podem ser consi-derados tribais se por tal entendermos que .são levanta mentos espontâ- .neos de grupos fortemente coesos, espacialmente segregados, natural-mente aliados . No caso que hoje mais nos assusta, o · que poderia

chamar-se tribalismo sérvio não é uma coisa nada simples, dado que hápelo menos 2,8 milhões de famílias jugoslavas que produziram cerca de1 4 milhões ·de casamentos mistos entre sérvios e croatas (Hobsbawm,

. 1992). A que tribose pode dizer que pertencem estas ·famílias? Na nossapreocupação horrorizada perante as tropas de choque do etnonacionalis-mo, perdemos de vista os sentimentos confusos dos civis, as lealdadesrompidas das famílias 'que têm dentro da mesma casa membros de gru-pos antagonistas e os anseios dos que sustentam que não há inimizadede base entre séryios, muçulmanos e croatas na Bósnia-Herzegovina.

É mais difícil explicar como é que os princípios de filiação étnica, por

mais duvidosa que seja a sua proveniência e frágil a sua genealogia, po-dem rapidamente mobilizar grandes grupos para a acção violenta.O que parece claro é que o modelo tribal, na medida em que sugere

pJ. ixões precor:cebidas à espera de explodir, dá uma bofetada na cara das

218

concepção de muçulmanos europeus (expressão recentemente usada por

Ejub Ganic,vice-presidente da.Bósnia) e uma ideia de si como parte in-tegrante de um islão transnacional, já activamente envolvido ,na guerra

bósnia. Os bósnios ricos que vivem no estrangeiro, em paísés como aTurquia, andam já a comprar armas para a defesa dos' muçulmanos da

Bósnia. Para: nos libertarmos do tropo da tribo como fonte primordialdesses nacionalismos que nós, nos Estados Unidos, achamos menos cí-vicos do que o nosso, precisamos de construir uma teoria da mobilização

étnica em larga escala que reconheça explicitamente e interprete as suaspropriedades pós-nacionais.

Formações pós-nacionais

Muitos etnonacionalismos recentes e violentos são mais implosivos doque explosivos. Ou seja, em vez de radicarem no substrato ou afecto pri-mordial que há no fundo de cada um de nós e que é trazido à superfíciepara entrar em compromissos sociais e acções de grupo de maior alcance,o que se passa é muitas vezes o inverso. Os ·efeitos das interacções em

larga escala entre e no seio dos Estados-nações, muitas vezes estimulados" por notícias de eventos em locais ainda mais distantes, serve para desen-

"' cadear em cascata (Rosenau,1990) as complexidades da política regional,

local e de ba.irro até estas potenciarem questões locais e implodirem em

i.ncluindo O antes era iden-tidade etmcafrza (slque ·i!lhmdu, armem a e aZerbeIja, servIa e croat a) tor-na-se quente quando as localidades implodem sob a pressão de aconteci-

219

 

ARJUN APPADURAI

mentos e processos distantes,-no espaço e no tempo, do sítio da implosão.

Entre os muçulmanos da Bósnia, a temperatura destas identidades muda

à nossa vista quando eles se afastados de uma ideia de si secular,

europeísta, p'ara uma postura mais fundamentalista. São empurrados não

só pelas ameaças sérvias à sua sobrevivência, mas também pela pressão.

de outros muçulmanos na Arábia Saudita, Egipto e Sudão, que afirmam

. DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

que tudo o que tenha a ver com soberania nacional, como quando parecem

motivados por razões de purificação étnica e genocídio; por exemPlo, °miciónalismo sérvio parece operar no medo e no ódio ao seu Outro étnico

muito mais do que no sentido de um património territorial sagrado. Ou po-

dem ser simplesme_nte idiomas e símbolos em torno dos quais muitos gru-

pos conseguem articular o seu desejo de fugir ao regime estatal específico

considerado ameaçador para a sua sobrevivência. Os Palestinianos estão

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que os muçulmanos da Bósnia estão agora a pagar o preço de terem re-

nunciado à sua identidade islâmica sob o domínio comunista. Os dirigen-

tes dos muçulmanos da Bósnia começaram por declarar explicitamente

que, se não receberem rapidamente auxílio das potências ocidentais, po- ·

dem ter qúe se voltar para os modelos palestinianosde terror e extremis-

mo.Uma maneira importante de explicar os casos em que as identidades

frias aquecem e as implosões num lugar geram explosões noutros é recor-

dar que o Estado-nação de modo algum é a única equipa em jogo no que

se refere à lealdades translocais. A violência que hoje rodeia a identidade

política em todo o mundo reflectea ansiedade acessória da busca de prin-

cípios de solidariedade não territorial. Os movimentos que agora vemos

na Sérvia e no Sri Lanka, nos montes Karavakh e na Namíbia, no Punjabe nO Quebeque, são o que poderíamos chamar «nacionalismos de Tróia>; .

Estes nacionalismos contêm na verdade ligações transnacionais, subna-

.. cionais e, mais generalizadamente, identidades e aspirações não nacio-

nais. Como são muitas vezes produto da diáspora, tanto forçada como vo-

luntária, de intelectuais com mobilidade e de trabalhadores, de diálogos

com Estados inimigos e Estados de acolhimento, muito·poucos dos novos

nacionalismos podem separar-se da angústia do deslocamento, da nostal-

gia do exílio, das remessas de fundos ou da brutalidade dos pediçios de

asilo. Haitianos em Miami, tâmiles em Boston, marroquinos em França,

molucanos na Holanda, s'ão os portadores destas novas lealdades transna-cionais e pós.,.nacionais.

O nacionalismo territorial é o álibi destes movimentos e não necessa-

riamente a sua motivação básica ou o seu objectivo final. Pelo contrário,

estas motivações e objectivos básicos podem ser muito mais negros do

220

mais preocupados e m tirar Israel de cima das costas do que com a especial .

magia geográfica da Margem Ocidental. .Embora haja no mundo actual muitos movimentos - bas-

cos, tâmiles, quebequenses, sérvios - que parecem determinados a en-

cerrar nação Estado juntos sob a mesma rubrica étnica, mais ·impress io-

nante ainda é o caso das muitas minorias que sofre ram o

deslocamento e a diáspora forçada sem articularem um desejo forte de um

Estado-nação seu: os arménios na Turquia. os refugiados hutus do Burun-

di que vivem na Tanzânia .e os hindus de Caxemira no exílio em Deli são

uns quantos exemplos de que o deslocamento nem sempre gera a fantasia

da construção do Estado. Embora muitos movimentos anti-Estado girem

em torno de imagens da terra, solo e lugar natal e do retorno do exílio;estas imagens reflectem a pobreza da sua (e nossa) linguagem política,

mais do que a hegemonia do nacionalismo territorial. Por outras palavras,

não emergiu ainda um idioma que capte os interesses colectivos de muitos

grupos em solidariedades tninslocais, mobilizações transfronteiriças e

mobilizações pós-nacionais. Esses interesses são muitos e têm voz, mas

estão ainda presos no imaginário linguístico do Estado territorial. E essa

incapacidade de muitos grupos desterritorializados para pensarem numa

maneira de sair do imaginário do Estado-nação é por si só a causa de m uita

\ violência global, porquemuitos movimentos de emancipação e identidade

são forçados, na sua luta contra Os Estados-nações existentes, a adoptar

precisamente aquele imaginário a que procuram fugir. Os movimentos

pós-nacionais e não nacionais. forçados, pela própria lógica dos Esta-

dos-nações efectivamente existé?ttes, a tornar-se antinacionais ou anti-Es-

tado e assim inspirar o próprio poder de Estado· que ·os força a

221

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ARJUN APPADURAI

'na língua do contranacionalismo, A este círculo vicioso só se escapa quan-do for encontrada uma linguagem que capte as formas de fidelidade com-plexas, não territoriais, pós-nacionais

. Muito se 'tem dito em anos recentes sobre a velocidade com que a in-formação viaja pelo rriundo, a intensidade com que as notícias de uma ci-dade brilham' nos ecrãs de televisão de uma outra, o modo como as ma-nipulações financeiras numa bolsa afectam os ministros das Finanças de

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

cada vez mais uma questão de linhas de produção sistemáticas transna-cionais, de transferência de gostos, preços e exposição. Tome-se a-varie-dade de movimentos verdes que começaram a organizar-se transnacional-mente em tomo de biopolíticas específicas. Considere-se o mundo dosrefugiados. Durante muito tempo tomámos as questões e organizações derefugiados como parte da babugem e dos destroços da vida política, flu-tuando entre as certezas e as est<tbilidades dos Estados-nações. Portanto,

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outro continente. Muito se tem dito também sobre a necessidade de atacar

os problemas globais como a sida, a poluição e o terrorismo com formasconcertadas de acção internacional. A vaga democrática e a pandemia dasida são em certa medida causadas pelo mesmo tipo de contacto interso-

cietal e de tráfego humano transnacional.Da perspectiva da Guerra Fria, o mu'rido pode ter-se tornado bipolar.

Mas também se tornou multicêntrico, para usar a expressão de James Ro- i

senau (1990). Adaptando metáforas da teoria do caos, Rosenau demons- Itrou que a legitimidade dos Estados-nações tem vindo a decrescer, que as .. \organizações internacionais e transnacionais de todos os tipos têm Iferado e que as políticas locais e os processos globais se afectam recIpro-

camente de um modo caótico mas não imprevisíve l, muitas vezes fora dasinteracções dos Estados-nações .Para apreciar estas complexidades, precisamos de fazer mais do que

. aqeilo que ciências sociais se chama comparação, pondo um país ouculrura ao lado do outro como se tivessem vida e pensamento inde- I

pendentes:?. Precisamos de lançar um novo olhar a toda uma série de or-ganiz:J.ções, movimentos, ideologias e redes de que a multinacional cl ás -sica é apen as um . exemplo. Consideremos movimentos filantrópicostransnacionais como o Habitat for Humanity (cujos voluntários procuramconstruir novos ambientes com outros voluntários em locais muito di stan-tes). Tomemos as várias organizações terroristas internacionais que mo-

bi lizam homens (e por vezes mulheres), dinheiro, equipamentos, camposde treino e paixão num desconcertante cruzamento de combinações iéleo -lÓ2:icas e étnicas. Veja-se a moda internacional, que não é apenas

de mercados globais e canibalismo de estilos internacionais, mas

222

o que não somos capazes de ver é que os campos de refugiados, a buro-

cracia dos refugiados, os movimentos de auxílio a refugiados; os serviçosde refugiados dos Estados-nações e as filantropias transnacion'\Ís para re-fugiados, tudo isso faz parte da estruturapermcmente da ordem emergentepós-nacional. Outro exéelente exemplo, mais perto de nós, talvez, é O '

grande númeio de organizações, movimentos e redes de' filantropia cris-tãs, como a World Vision, qu e há muito apagaram as fronteiras entre asfunções evangélicas, de desenvolvimento e de manutenção da paz emmuitas partes do mundo. Talvez o màis estudado destes exemplos sejao movimento olímpico, por certo o mai s importante caso moderno de ummovimento nascido no contexto das preocupações europeias pela paz

mundialna última parte do séculoXIX

Este movimento, com a sua formapeculiar de jogo dialéctico entre fidelidades nacionais e transnacionais(MacAloon, 1981; Kang, MacAloon e DaMatta, 1988) representa apenaso mais espectacular de uma série de sedes e formações em que será vertidoo futuro incerto do Estado-nação.

Em todos estes casos, o que vemos não são apenas slogans internacio-nais, ou grupos de interesses, ou transferência de imagens, Assistimos aonascimento de uma série de formações sociais complexas, pós-nacionais.Estas formações estão agora orga nizadas em torno deprincípios de finan-ças, recrutamento, coordenação, comunicação e reprodução que são fun-damentalmente pós-nacionais e não apenas multinacionais ou internacio-

nais. A moderna empresa multi nacio nal cl ássica é um exemplo algoeng anoso do que é mais importante nestas form as novas, precisamenteporque assenta fundamentalmente na organização jurídic a, fiscal, ambien-tal e humana do Estado-nação ao mesmo tempo que maxi miú t as possi-

, 223

 

ARJUN APPADURAI

bilidades de ope'rar dentro e, através de estruturas nacionais, explorandosempre a sua legitimidade. As novas formas de organização são mais di-

. versificadas, mais fluidas, mais ad hoc, mais provisórias, menos coeren-' tes menos e simplesmente menos implicadas nas vantagens, o .relativas do Estado-nação. Muitas delas constituíram-se explicitamentepara monitorizar as actividades do Estado-nação: a Amnistia Intemacionat \

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO ü

exemplos, que continuamos a ver como formas de organização excepcio-nais ou párias, são simultaneamente exemplos e incubadoras de mna or-dem global pós:-nacional.,

o coração das alvas

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é um exe'mplo excelente. Outras, em geral associadas às Nações Unidas, ,trabalham para conter os excessos dos Estados-nações, por exemplo;pres-tando assistência aos refugiados, vigiando acordos de paz, organizandoprogramas contra a fome e realizando o desagradável trabalho associado 'aos oceanos e às tarifas, à saúde pública e ao trabalho.

Outras ainda, como a Oxfam, são exemplos de organizações globaisque operam fora da rede para-oficial· das Nações Unidas e dependem do ,crescimento das organizações não governamentais (ONG) em muitos pon-tos do mundo desenvolvido. Estas ONG"a operar numa série de áreas que I

vão da tecnoloaia e ambiente até à saúde e às artes, passaram de menoso

de em 1909 para mais de duas mil nos primeiros anos setenta.Constituem muitas vezes importantes alfobres de auto-ajuda que crescem I

a partir de um sentido da limitada capacidade dos paraaarantir as coisas básicas da vida em sociedades como a India, ao mesmootempo que contribuem para formar essa mesma percepção.

, E outras organizações há, a que costumamos chamar fundamentalistas,como a Fraternidade Muçulmana no Médio Oriente, a Igreja da Unifica-ção e toda uma série de organizações cristãs, hindus e muçulmanas, queconstituem movimentos globais para todo o serviço com o fito de aliviaro sofrimento Dara além das fronteiras nacionais, ao mesmo tempo que mo- ..bilizam 1eald;des de primeira ordem para além das fronteiras do Estado. ,Alguns destes movimentos evangellcos (como o grupo radical hindu Co - .

nhecido comoAnanda Marg, que foi tido por responsável do assaSsinatode diplom3.tas indianos no estrangeiro) opõem-se agressivamente aminados Estados-nações e são muitas vezes tr3.tados como sediciosos. Ou-tros, como a Igreja da Unificação, limitam-se a trabalhar em redor do Es-t3.do-n3.ção sem porem directamente em questão a sua jurisdição. Estes

224

A expressão pós-nacional, usada até aqui sem comentários, tem di-versas implicações que podem agora ser examinadas mais atentamente.A primeira é temporal e histórica e sugere que estamos em via;> de avan-çar para uma ordem global em que o Estado-nação se tornou obsoleto eoutras forrna.ções delealdad'e e identidade tomaram o seu lugar. A se-gunda é a ideia de que o que está a emergir são formas alternativaspara a organização do tráfego global de recursos, imagens e ideias -formas que ou contestam activamente o Estado-nação, ou constituem al-ternativas pacíficas de lealdades p olíticas em larga escala. A terceira im-plicação é ti possibilidade de que, enquanto as nações puderem continuara existir, a erosão regular das capacidades do Estado-nação p ara monop-

olizar a lealdade estimula a difusão de for mas nacionais plenamente di-vorciadas dos Estados territoriais. São sentidos relevantes do termo pós-

-nacional, mas nenhum deles implica que o Estado-nação na sua fOrIDa

territorial clássica está já fora de jogo. É certo que está em crise e queparte desta crise é uma relação cada vez mais violenta entre o Estado--nação e os Outros pós-nacionais.

Os Estados Unidos são um lugar particularmente notório para consi-derarmos estas afirmações porquanto, perante os factos, conseguiram

, manter com grande sucesso a imagem de uma ordem nacional que é si-. "-" multaneamente civil, plural e próspera. Parecem nutrir um conjunto vi- .

brante e complexo de esferas'públicas, entre as quais que foramqualificadas como públicos «alternativos», «parciais » ou «contra» (Ber-, lant e Freeman, 1992; Fraser, 1992;-Hansen, 1993; Robbins, 1993; Co-

Black Public Sphere, 1995). Continuam a ser imensamente ricospelos padrões globais e,embora as suas formas de violência pública

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ARJUN APPADURAI

jam muitas e preocupantes, o seu aparelho de Estado não é, na genera-liÇlade, dependente de formas de tortura, prisão e repressão violenta. I

Acrescentando o-facto de, nos Estados Unidos, o multiculturalismopa-

recer assumir formas predomi nantemen te não violentas, perante I

uma grande potência incontestada que domina a nova ordem mundial, "-que recebe imigrantes aos milhares e que surge como um exemplo triun- !fante de Estado-n ação' territorial clássico. Qualquer análise da emergên- I

cia de uma ordem global-pós-nacional terá que contemplar a sua maior

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃ O

lonial, académica e de diáspora (com a vantagem do perfil do exílio e doespaço de deslocamento) e as feias realidades de ser racializado, minori-tarizado e tribalizado nos meus encontros quotidianos, a teoria colide coma prática.

Um livro recentemente publicado pela Random House é Tribes: HowRace, Religion, and Identity Determine Success in the New Global Eco"nomy (Kotkin, 1993). Escrito por Joel Kotkin, «autoridade internacional-mente reconhecida em tendências globais, económicas, políticas e so-

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falsificação aparente: os Estados Unidos. Esta última secção lança as ba-

. ses par a essa reflexão .Até há poucos anos, gostava de viver nesse espaço particular conce-

dido aos «estrangeiros», em especial anglófonos, instruídos, como euprio, com leves vestígios de pronúncia britânica. Como uma vez me disseabonatoriamente uma negra numa paragem de autocarro em Chicago, euera das Índias Orientais. Foi em 1972. Mas desde essa boa conversa de 'há três décadas, foi-se-me tornando cada vez mais difícil considerar-me, 'armado com o meu passaporte indiano e os meus modos anglófonos, decerto modo imune à política de identidade racial dos Estados Unidos. Ape-s::!r de quase três décadas de estrangeiro residente nos Estados Unidos, ca-

sado com uma americana anglo-saxónica e pai de um adolescente bicul-tural, o meu' passaporte indiano afigura-se um cartão de identidade umtanto frouxo. A rede das políticas -raciais est'ende-se agora mais longe doque nunca nos Estados Unidos urbanos.

A cor da minha pele e o seu papel na política das minorias. bem comoencontros de rua com o ódio racial prepararam-me para reabrir os laçosent re e os Estados Unidos, entre biculturalismo e patriotismo, en-tre as iden tidades da diáspora e as (in)stabilidades decorrentes dos passa-portes e C3.rtas verdes. As lealdades pós-nacionais não são irrelevantesp::!ra o problema da diversidade dos Estados Unidos. Com efeito, se estáa formar-se uma ordem pós-nacional e a americanidade mUda de sentido,todo o problema da diversidade da vida americana terá que ser repens·ado.Não é apenas a força de certas deduções me suscita es ta recomen-dação. Enquanto oscilo entre o distanciamento de uma identidade pós-co-

216

I

ciais», como proclama a sobrecapa, traça as· conexões entre etnia e sucesso

.. As cinco tribos de. Kotkin -' "ju deus, chineses, japoneses,mgleses e mdlanos - são um estranho grupo, mas representam o primor-dialismo com rosto high-tech. São os capitalistas párias de MaxWeber nacorrid a do fim do século xx. Livros como este recordam queos naturais das Indias Orientais ainda são lima tribo, como os judeus e ou- .tros, a explorar o filão 'primordial para abrirem caminho para a dominação 'global. Portanto, o tropo da tribo pode alterar as suas premissas eter grandes tribos globais, uma imagem que procura abarcar os dois lados,a intimidade primordial e as estratégias da alta tecnologia. Por mais diás-poras que passem, como passaram os judeus, os sul-asiáticos estão con-

denados a permanec er uma tribo, para sempre fornecedores e negociantesnum mundo de mercados abertos, contratos justos e oportunidades paratodos.

Para aqueles de nós que se mud aram das antigas colónias para a «fan-tasia nacional» (Berlant, 1991) da América há portanto a sedução da duplapertença, de nos tornarmos americanos sem deixarmos de pertencer àdiáspora, de uma ligação expansiva a um espáço ilimitado de fantasia.Mas, se podemos construir a nossa identidade, não fazê-

\. , -lo exactamente como nos convém. À medida que muito s de nós vão sen-do racializados, biologizados, minoritarizados e ribalizados de aI aum_ . 'b

modo reduzidos em vez de capacitados pelo nosso corpo e pela nossa his-tória, o nosso particular di acrítico torna-se a nossa prisão e o tropa da tribosepara-nos de uma outra América inespecífica, longe do cl amor da tribo,pudica, cívica e branca, uma terra onde não somos bem-vindos.

227

 

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ARJUN APPADURAI

E assim estamos de volta ao idioma e à imagem absorvente do triba- :lismo. Aplicado a Nova Iorque, Miami, Los Angeles (por oposição a Sa-rajevo, Sowe,to ou Colombo), o tropo do tribalismo esconde e propicia um Iracismo difuso para com esses Outros (por exemplo, hispânicos; iranianos i

e afro-americanos) que se insinuaram no corpo político da América. Per- Imite-nos manter a ideia de uma ameri.canidade que precede Ce subsiste,

de tudo) os hífenes que contribuem para ele e manter uma distinção

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

No mundo pós-nacional que vemos emergir, a diáspora vai a favor, nãocontra, a corrente da identidade. do movimento e da reprodução. Toda Çt

gente tem parentes a trabalhar fora. Muitas pessoas encontram exílios semsequer se mexerem para muito longe - croatas na Bósnia, hindus em Ca-xemira, muçulmanos na Índia. Mas outros vêm-se inscritos em padrões demigração repetida. Os indianos que foram para a África Oriental noXIX e princípio do século XX viram-se expulsos do U ganda, Quéni a e Tan-

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entre americanos tribais (os negros, morenos e amarelos) e outros ameri-

canos. Este tropo facilita a fantasia de que a sociedade civil nos EstadosUnidos tem um destino especial no que toca ao multiculturillismo pacífico- multiculturalismo inteligente para nós, etnicidade sanguinária ou tri-balismo acéfalo para eles.

Desenvolveu-se um conjunto especial de laços entre democracia,e prosperidade no pensamento social americano. Com base num com-

plexo diálogo entré ciência política (a única ciência social genuinamentemade in America sem contrapartidas ou antecedentes europeus óbvios) econstitucionalismo vernáculo, estabeleceu-se um confortável equilíbrio entreas ideias de di versidade cultural e uma ou outra versão do melting pot. Osci-lando entre a National Geographic e o Reader's Digest, esta anódina polari-dade revelou-se notavelmente duradoura e gratificante. Alberga, por vezesna mesma página e na mesma respiração, um sentido de que a pluralidade éa índole americana e que há uma americanidade que de certo modo contém etranscende a pluralidade. Este segundo acordo pós-Guerra Civil com a dife-rença está agora nas últimas e o debate sobre multiculturalismo do politica-mente correcto é o seu peculiar Waterloo de pacotilha. De pacotilha porquerecusa insistentemente reconhecer que o desafio do pluralismo da diáspora éaO'ora O'lobal e que as soluções americanas não podem ser tidas por isoladas.o .Peculiar porque n5.o houve reconhecimento sistemático de que a política domulticulturalismo está agora inteiramente integrada no nacionalismo extra-

territorial de populações que amam a América, mas não estão necessaria-mente ligadas aos Estados Unidos. A verdade crua é que nem o pensamentopopular nem o pensamento acadéinico deste país a diferença entre ser I

uma têlTa de imigrantes e ser um 'nó da rede de diásporas. .

228

zânia na década de 1980, foram encontrar novos empregos e novas pos-

sibilidades em Inglaterra e nos Estados Unidos e estão agora a reconside-rar a hipótese de voltar à África OrientaL Do mesmo modo, chinesesde Hong Kong que estão a comprar propriedades em Vancouver, os co-

. merciantes gujarates do Uganda que abrem motéis em Nova Jérsia equiosques de jornais em Nova Iorque e os motoristas de táxi siques deChicago e Filadélfia, são todos exemplos de um novo mundo em que adiáspora é a ordem das coisas eé difícil encontrar vidas assentes. Os Es-tados Unidos, que continuam a considerar-se uma terra de imigrante's,vêem-se varridos por estas diásporas globais, deixaram de ser um espaçofechado onde o melting pot opere a sua magia, são mais uma encruzilhada

da diáspora. As pessoas vêm para cá em busca de fortuna, mas já não gos-tam de deixar a sua terra. A febre da democracia global e a queda do im-pério soviético significam que a maior parte dos grupos que desejam re-negociar os seus laços com a identidade da diáspora a partir das suasposições americanas são agora livres de o fazer: po r isso os judeus ame-ricanos de origem polaca fazem excursões àEuropa de Leste subordinadasao tema do Holocausto, os médicos indianos do Michigan abrem clínicasde oftalmologia em Nova Deli, os palestinianos de Detroit participam napolítica da Margem Ocidental.

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A fonna da transnação

A fórmula da hifenização (como em ítalo-americanos, asiáti,co-ameri- .canos e a fro-americanos) está a chega r ao ponto de saturação e o lado di-

229

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ARJUN APPADURAI

reito do hífen tem dificuldade em conter a rebeldia do lado esquerdo. Num:

momento em que a legitimidade dos Estados-nações no seu próprio conJ

texto territorial está cada vez mais ameaçada, a ideia de nação floresce

transnacionalmente. A salvo das depredações dos seus Estados natais, as

comunidades da diáspora tornam-se duplamente leais às suas nações de

_ origem, logo, ambivalentes quanto à sua lealdade à América. A política

de identidade étnica dos Estados Unidos está inseparavelmente ligada à

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇXO

i

A questão é: pode construir-se uma política pós-nacional em 'tomo des-

te facto cultural? Muitas sociedades enfrentam agora influxos de imigran-

tes e refugiados, desejados e indesejados. Outras expulsam grupos em ac-

ções de limpeza étnica destinadas a produzir os próprios povos cuja

preexistência a nação deveria ratificar. Mas a América pode ser a única· a

ter-se organizado em torno de uma ideologia política moderna em que o

pluralismo é fundamental para'a condução da vida democrática. Por uma

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difusão global de identidades nacionais originariamente locais. Para cada

Estado-nação que exportou um número significativo dos seus nacionaispara os Estados Unidos como refugiados, turistas ou estudantes, há uma

transnação deslocalizada que retém um vínculo ideológico especial com

um lugar de origem putativo, mas que pOl; outro lado pertence co1ectiva- 1\ "

mente à diáspora3. Nenhuma cQn"cepção de americanida de é capaz de con-

I

ter esta grande variedade de transnações. t

Neste cenário, o americano hifenizado pode passar a ser duas vezes I

fenizado (asiático-americano-japonês ou nativo-ameriçano-iroquês, ou

afro-americano-jamaicano, ou h ispano-ameri cano-boli viano) à medida

que as identidades da diáspora ganham mobilidade e se tornam mais pro-

teiformes. Ou talvez seja precisO inverter os lados do hífen e passemos a

uma federação de diásporas: americano-italianos, americano-haitianos, I

americano-irlandeses, americano-africanos. A dupla cidadania pode au-

mentar se as sociedadeS de onde viemos permanecerem abertas ou se se

abrirem mais. Podemos reconhecer que a diversidade da diáspora coloca I

efectivamente a lealdape a uma transmição não territorial em primeiro,

embora reconheça que há uma maneira americana especial de se relacio- I

nar com estas diásporas globais. Enquanto espaço cultural, a América não

precisará de competir com toda uma série de identidades globàis e leal- I

bdes d:l diáspora. Po?e chegara ser vista como um modelo de disposição

de um dado locLls territorial (entre outros) de cruzamento de comunidades '

d:l diáspora. Neste sentido, o problema americano assemelha-se ao de ou-tras democracias industriais ricas, como a Suécia, a Alemanha, a Holanda

e :l enfrentam o desafio de enquadrar os universalismos do

o pluralismo da diáspora.

23 0

outra via da sua experiência, esta sociedade gerou também uma poderosa

fábula de si, como terra de imigrantes. No mundo da diáspora pós-nacional "de hoje, a América é convidada a fundir estas duas doutrinas, a;enfrentar

as necessidades do pluralismo e da imigração, a construir a sociedade em

tomo da diversidade da diáspora.

Mas imagens como mosaico, arco-íris, manta de retalhos e outros tro-

pos da complexidade-na-diversidade não dão os recursos imaginativos.

para esta tarefa, em especial se se multiplicam os receios de tribalismo.

As tribos não fazem mantas de retalhos, embora por vezes façam confe-

derações. Na di scussão, seja ela sobre imigração, educação bilingue, câ-

none académico ou desfavorecidos, estas imagens liberais procuraram

conter a tensão entre o impulso centrípeto da americanidade e o impulso

centrífugo da diversidade da diáspora na vida americana. O combate pela

"discriminação positiva, quotas, Segurança Social e aborto na América de

hoje sugere que a do mosaico é incapaz de conter a contradição

entre identidades de grupo que os Americanos tolerarão (até certo pon\o)

na vida cultural e as identidades individuais que continuam a ser o prin-

cípio não negociável subjacente às ideias americanas de sucesso, mobili-

dade ejustiça.,

, Que fazer? Poderá haver mn lugar especial para a América na' nova

"'-, ordem pós'-nacional, ,um lugar que não parta do isolacionismo nem da do-

minação base aiternativa. Os Unidos têm tod:as as

condições para serem uma espécie de laboratório e uma zona de comérciolivre de geração, circulação, importação e experimentação de materiais

para um mundo organizado em torno da diversidade da diáspora.,Em certo

sentido, é uma experiência que está já a decorrer. Os Estados Unidos são

231

 

ARJUN APPADURAI

já uma enorme e fascinante feira da ladra para o resto do mundo . Dão aosjaponeses férias de golfe e imobiliário; ideologias e técnicas de gestão à

Europa e à Índia; ideias para telenovelas ao Brasil e ao Médio Oriente;primeiros-ministros à Jugoslávia; economias 'do lado da oferta à Polónia,Rússia e a quem mais quiser tentar; fundamentalismo cristão à Coreia; earquite.ctura pós-moderna a Hong Kong. Fornecendo também um conjun-to de imagens - Rambo no Afeganistão, «We Are the World», George

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃ.O

canos gostam de pensar que os Ch(neses simplesmente asvirtudes da livre-iniciativa; os Polacos, a economia do lado da oferta;os Haitianos e Filipinos, a democracia; e toda a gente, os direitos huma-

nos. Raramente prestamos atenção aos complicados termos, tradições eestilos culturais em que estas ideias são vertidas e depois tra nsformadas ·até se tomarem irreconhecíveis. Por isso, durante os acontecimentos his-tóricos da Praça Tiananmen, em 1989, quando pareceu que os Chineses

O I.[

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Bernard Shaw em Bagdade, Coke goes to Barcelona, Perot goes to Wash-

ington - que ligam direitos humanos, consumismo, antiestatismo e visi-bilidade mediática, podemos dizer que os Estados Unidos são em parteresponsáveis pelas idiossincrasias que servem lutas por autodeterminaçãoem muitas e diferentes partes do mundo. Por isso .é que uma camisola daUniversidade do Iowa não é apenas um símbolo pateta nas selvas de Mo-çambique ou nas barricadas de Beirute: é que ela capta um anseio de viverà americana que paira no ar, mesmo nos mais intensos contextos de opo-sição aos Estados Unidos. A política cultural da nacionalidade. extrava-gante é um exemplo deste anseio contraditório nos Estados Unidos (Ber-lant e Freeman, 1992). O resto deste anseio é provocado por políticas

estatais autoritárias, por grandes indústrias de armamento, pelo olho in- .sistentemente esfomeado da comunicação electrónica e pelo desesperodas economias falidas.

Claro .que estes produtos e ideias não são concepções imaculadas deum misterioso saber americano, são justamente o resultado de um am-biente complexo em que ideias e intelectuais se encontram numa sériede cenários especiais (como laboratórios, bibliotecas, salas de aula, es-túdios de música, seminários de. gestão e campanhas políticas) para ge-rar, reformular e pôr de novo em circulação formas culturais de diásporafundamentalmente pós-nacionais. O papel dos músicos, estúdios de som 'e produtoras discográficas americanos na criação do ritmo para o mundo

é um excelente exemplo deste tipo de mentalidade empresarial dedoméstica e vocação exterior. Os Americanos detestam admitir esta ma-neira parcelar , aleatória, flexível e oportunista como os pro-dutos c reprodutos americanos circulam por todo o mundo. Os Ameri-

232

se tinham tornado democráticos da noite .para o dia, não faltaram provas

de que na China os diferentes grupos compreendiam que os seus pro-

blemas eram internamente variados e ligados a diversas especificidade sda histófÍa e do estilo cultural chinês. '

Quando os Americanos vêem transformações e complicações culturaisdo seu vocabulário e est ilo democrático, . se por acaso as notam, ficamaborrecidos, desiludidos. Como lêem maIo modo como outros tratam oque para nós continua a ser a receita nacional do sucesso, os Americanos

. cometem mais um acto de distorção .narcisista: imaginamos que estas in-venções pecUliarmente americanas (democracia, capitalismo, l ivre-inici a-tiva, direitos humanos) estão automática e instrinsecamente interligadas .

e que a nossa saga nacional detém a chave do segredo. Na migração dasnossas palavras vemos a vitória dos nossos mitos. Cremos na conversãoterminal.

A «vitória» americana na Guerra Fria não tem necessariamente que se

tomar pirrónica. O facto é que os Estados Unidos, de um ponto de vistacultural, são já uma vasta zona de comércio livre, cheia de ideias, tecno-logias, estilos e idiomas (da McDonald's à HarvardBusiness 'School, àDream Team e à anticrese) que o resto do mundo acha fascinantes. Esta

zona de comércio livre assenta numa economia volátil; as principais ci-dades da faixa fronteiriça americana (Los Angeles, Miami, Nova Iorque,

, Derroit) estão agora fortemente militarizadas. Mas estes factos têm pouca

relevância para os que chegam, por breve ou muito tempo, a esta zona de

comércio livre. Alguns, vêm em fuga de muito maior violência urbana,perseguições do Estado e dificuldaqes económicas, vêm como migran tes . .definitivos, legais ou ilegais. Outros vêm por pouco tempo, compr?r ves-

233

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ARJUNAPPADURAI

tuário, entreteni mento, em préstimos, armas ou lições rápidas de economiiade mercado I'ivre ou de administração da sociedade civil. A própria

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dia, a básica imprevisibilidade, a inventiva dinâmica, a mera vitalidadecultural desta zona de comércio livre é oque atrai aos Estados Unidos todka espécie de diásporas. \

Para os Estados Unidos, desempenhar um papel de relevo na políticacultural de um mundo pós-nacional tem escolhos internos muito

. xos. Pode significar dar espaço à legitimidade dos direitos culturais,

DIMENSÕESCULTURAIS DA

GLOBALlZAÇÃO

bem corno os cientistas; as mulheres, e os hispânicos. Alguns de nóscontinuarão ainda a .querer viver - e morrer - pelos. Estados Vnidos.Mas muitas destas novas soberanias são intrinsecamente pós-nacionais.

É certo que representam mais motivos humanos de filiação do que a fi-liação estatal, ou partidária, e bases de debate e interalianças mais inte-ressantes. Os voluntários de Ross Perot, em 1992, deram-nos um brevee intenso vislumbre da força do patriotismo totalmente divor:ciado departidos, governo ou Estado. A América ainda pode construir outra

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rei tos para manter a diferença cultural com protecção e garantias oficiais:Pode significar urna dolorosa cisão com uma concepção.da economia

. . I

americana fundamentalmente fordiana, industrial, .como sabemos que sãoos agentes da informação global, os fornecedores de serviços, os médicosda moda. Pode significar adoptar e integrar na vida pessoal o que até aqui

Ise confinava ao mundo da Broadway, de Hollywood e da Disneylândia:a importação de exper iências, a produção de fantasias, o de idenJtidades, a exportação de modas, a cunhagem de pluralidades. Pode signi-:

. ficar distingui r a nossa ligação à América da nossa vontade de morrer pe-;los Estados Unidos. Esta ideia converge com a seguinte proposta de'LlUren Berlant:

o indi víduo que quiser evitar a loucura melancólica da abstracção de si que ,

é a cidadania e resistir à tentação de vencer sozinho o contexto político materialem que vive tem que desenvolver tácticas de recusa da sua interarticulação, velha '

j ;í de qu a trocentos anos, entre os Estados Unidos e a América, a nação e a utopia

(i 991, p. 217).

Ou sej::t, pode ser tempo. de repensar o monopatriotismo, o patriotis-mo dirigido exclusivamente ao hífen entre nação e Estado, e permitir ".que os problemas materiais que enfrentamos -::- défice, .ambiente, abor-to , racismo, drogas e emprego - definam os grupos sociais e ideias pe-

• • I

las quais estamos dispostos a viver - e a morrer. A nação extravagante i

pode ser apenas o primeiro de uma série de novos patriotismos de que I

outros podem ser os reformados, os desempregados e os deficientes, I

234

rativa de significado duradouro, uma narrativa dos usos da lealdade de-pois do fim do Estado-nação. Nesta narrativa, os terri tórios c/elimitadospoderiam dar lugar a redes de diáspora, as nações a transnaçõ'es, e o pró-prio patriotismo poderia tornar-se plural, serial, contextual e móvel. Te-

mos aqui urna direcção para o futuro do patriotismo num mundo pós--colonial. Não é provável queo patriotismo - cOmo a históriá- acabe,

. mas o seu objecto pode ser susceptível de transformação, em teoria e na 'prática

Resta agora perguntar o que é que transnações e transnacionalismo têma ver com a pós-nacion alidade e as suas possibilidades. Esta relação exige,por direito próprio, um tra tamento minucioso, mas impõem-se umas quan-

tas observações. Quando as populações são destenitorializadas e incom-pletamente nacionalizadas, quando as nações cindem e voltam acombi-.

. nar-se, quando ?S Estados enfrentam dificuldades insuperáveis. na tarefade produzir «o povo», as transnações são os mais importantes palcos so-ciais para encenar a crise do patriotismo.

. Os resultados são seguramente contraditórios: Deslocamento e exí-lio, migração e terror criam fortes apegos a ideias de terra natal que pa-recem mais territoriais do que. nunca. Mas também é possível detectar

em muitas dessas transnações(umas étnicas, outras religiosas,.umas fi -lantrópicas, outras militaristas) os elementos de um imaginário pós-na-

cional. Estes elementos, para quem quiser apressar a falência do Esta-do-nação, com todas as suas contradições, requerem estímulo e crítici1 .Deste modo, as formas sociais transn,bonais podem não só gerar an-seios pós-nacionais como, daí- existência a movimentos, organizações ,

235

 

iI ..I,

ARJUN APPADURAI

espaços, pós-nacionais. Nestes espaços pós-nacionais, a incapacidade do I

Estado-nação para tolerar a diversidade (pois procura a homogeneidade !

dos seus cidadãos, a simult aneidade da sua presença, a consensual idade I

da sua narrativa e a esta.bilidade dos seus cidadãos) talvez possa ser ven- i

cida. !

. !

9

A, produção de localidade

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236

Este capítulo trata de algumas interrogações que surgiram' durante ·

a elaboração de uma série de textos sobre fluxos culturais globais. Co-

meço por três dessas perguntas. Qual o lugar da localidade nos esque-

mas em torno dos fluxos culturais globais? A antropologia detém al-

gum privilégio retórico especial num mundo em qu e a localidade

parece ter perdido as suas amarras ontológicas? Pode a relaçã9 mutua-

mente constitutiva entre antropologia e localidade sobreviver num

mundo extremamente deslocalizado? A minha posição não radica di-

rectamente num interesse'pela produção do espaço (Lefebvre, 1991) ou

pelas ansied,ades , disciplinar es da antropologia enquanto tal, embora

ambas as coisas informem grandemente a minha resposta a estas per-

, guntas. Prefiro travar um debate continuado sobre o futuro d o Estado- ."\

-nação (cap. 8). O que pretendo saber éo que pode significar locali-

dade numa situação em que o Estado-nação enfrente determinado tipo

de desestabilização transnacional.

Considero a localidade mais relacional e contextual do que escalar ou

, espacial. Vejo-a como uma qualidade fenomenológica complexa consti-

237

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ARJUN APPADURAI

tuída por uma série de vínculos entre o sentido da imediatidade social, a

tecnologia da interactividad,e e a relatividade dos contextos. Esta qualida-

de fenomenológica, que se, exprime em certos tipos de acção, socia-lidade

e reprodutibilidade, é o principal predicado da localidade como cateGoria. o

(ou obJecto) que procuro explorar. Pelo contrário, uso o termo bairro para

referir as formas sociais efectivamente existentes em que a localidade en- ;

quanto dimensão ou valor se realiza de vários ,modos. Os bairros, nesta '

acepção, são comunidades situadas caracterizadas pela sua realidade, es- I

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

buindo assim para o sentimento endémi co de ansiedade e instabilidade da

vida social.

Muito do chamàdó registo etnográfico pode ser reescrito e des-

te ponto de vista. No primeiro caso, uma grande parte dos chamados ri-tos de passagem está relacionada com a produção do que poderemos

chamar sujeitos locais, agentes que-pertencem efectivamente a uma co-

munidade situada de paren'tes, vizinhos, amigos e inimigos. As

nias de bapti,smo e tonsura, sacrifíci o e segregação, circuncisão e priva-

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pacial ou virtual, e pelo seu potencial para a reprodução social 1•

, No âmbito desta reflexão, faço mais duas perguntas: como é que a lo-

calidade, enquanto aspecto da vida social, se relaciona com os bairros en-

quanto formas sociais substantivas? Terá a história recente, e em especial

a crise global do Estado-nação, alterado substancialmente a relação da lo-

calidade com os bairros? Um modo mais simples de caracterizar estes

múltiplos objectivos é perguntar: que pode significar a localidade num

mundo em que a loca lização espacial, a in teracção quot idiana e a escala

social nem sempre são isomórficas? · .

Locali::,ar o sujeito .

Um dos grarides clichés da teoria social (que remonta a Tónnies, We -

ber e Durkheim) é que, nas sociedades modernas, a localidade enqu'anto

ou diacrítico da vida social está sitiada. Mas a localidade é

um facto social intrinsecamente frágil. Mesmo nas situações mais íntimas;

espacialmente confinadas, geogr'l-ficamente isoladas, a localidade tem que

ser com cuidado c0I1tra diversos tipos de riscos. Estes riscos têm

. sido conceptu3.lizados de formas diferentes conforme as épocas e os lu-

gares. Em muitas sociedades, as fronteiras são zonas de perigo que reque-

rem particular manutenção ritual; noutras sociedades, as relações sociaissão intri nsecamente físseis, criando uma tendência persistente para a dis-

solução dos b irros. Noutras situações ainda, a ecologia e a tecnologia di-

t3m que as casas e os espaços habitados estejam sempre a mudar, contri-

23 8

,

ção são técnicas sociais complexas para a inscrição da localidade nos

corpos. Vendo-as de maneira um tanto diferente, são modos de incor-

porar a localidade, bem como de localizar os corpos em

definidas social e espacialmente. O simbolismo espacial dos ritos, de

passagem tem talvez recebido menos atenção do que o seu simbolIsmo

físico e social. Esses ritos não são simples técnicas mecânicas de agre-

gação social, são técnicas sociais de produção de «nativos», categoria .

que analisei noutra sede (Appadurai, 1988).

O que é verdade para a produção de sujeitos locais no registo etnográfico .

é-o para o processo que produz materialmente a localidade. A construção

de casas, a organização de caminhos e passagens, a feitura e refeitura de

campos e hortas, a cartografia e negociação de espaços trans-humahos e ter-renos de caça-recolecção é a preocupação incessante, muitas vezes monó-

tona, de muitas pequenas comunidades estudadas pelos antropólogos. Estas

técnicas de produção espacial de localidade estao copiosamente documen-

tadas. Mas normalmente não são consideradas casos de produção de loca-

lidade, quer como propriedade geral da vida social, quer como validação

particular dessa propriedade. Divididos descritivamente em tecnologias de

construção de habitação, horticultura e similares, estes resultados materiais

. têm sido tomados como fins em si e não como momentos de uma tecnologia

(e teleologia) geral de localização.

A produção de localidade nas sociedades historicamente estudadas pelos

(em ilhas e aldei.as e de caça) nã,o

e SImplesmente uma q\lestao de produzlI bem como os pro-'

prios bairros que contextualizam estas subjectividades. Como amplarriente

239

 

ARJUN APPADURAI

tuída por uma ·série de vínculos entre o sentido da imediatidade social, a

tecnologia da interactividade e a relatividade dos contextos. Esta qualida-

de fenomenológica, que se exprime em certos tipos de acção, socia1idade

e reprodutibilidade, é o principal predicado da localidade como cateGoria.

(ou obJecto) que procuro explorar. Pe lo contrário, uso o termo bairro para

referir as formas sociais efectivamente existentes em que a localidade en-

quanto dimensão ou valor se realiza de vários ,modos. Os bairros, nesta

acepção, são comunidades situadas caracterizadas pela sua realidade, es-

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

buindo assim para o sentimento endémico de ansiedade e instabilidade da

vida social.

Muito do chamàdci registo etnográfico pode ser reescrito e relido des-

te ponto de vista. No primeiro caso, uma grande parte dos chamados ri -tos de passagem está relacionada com a produção do que poderemos

chamar sujeitos locais, agentes que- pertencem efectivamente a uma co:-

munidade situada de parentes, vizinhos, amigos e inimigos . As cerimó-

nias de bapti.smo e tonsura, sacrifício e segregação, circuncisão e priva-

ção são técnicas sociais complexas para a inscrição da localidade nos

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pacial ou virtual, e pelo seu potencial para a reprodução social!.

. No âmbito desta reflexãó; faço mais duas perguntas: como é que a lo-

calidade, enquanto aspecto da vida social, se relaciona com os bairros en-

quanto formas sociais substantivas? Terá a história recente, e em especial

a crise global do Estado-nação, alterado substancialmente a relação da lo-

calidade com os bairros? Um modo mais simples de caracterizar estes

múltiplos objectivos é perguntar: que pode significar a nu m

mundo em que a localização espacial, a· nteracção quotidiana e a escala

social nem sempre são isomórficas?

Locali::.aro

sujeito .

Um dos grandes clichés da teoria social (que remonta a Tonnies, We-

ber e Durkheim) é que, üas sociedades modernas, a localidade enqu·anto

propriedade ou diacrítico da vida social está sitiada. Mas a localidade é

um facto social intrinsecamente frágil. Mesmo nas situações mais íntimas;

espaci:::lmenre confinadas, geograficamente isoladas, a focalidade tem que

ser m:lntida com cuidado contra diversos tipos de riscos. Estes riscos têm

. sido conceptu:llizados de formas dife rentes conforme as épo cas e os lu-

gares. Em muitas sociedades, as fronteiras são zonas de perigo que reque-

rem particul::J.r manutenção ritual; noutras sociedades, as relações sociais

são intrinsecamente físseis, criando uma tendência persistente para a dis-

solução dos birros. Noutras situações ainda, a ecologia e a tecnologia di-

t3m que as c:::sas e os espaços habitados estejam sempre a mudar, contri-

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corpos . Vendo-as de maneira um tanto diferente, são modos de incor-porar a localidade, bem como de localizar os corpos em

definidas social e espacialmente. O simbolismo espacial dos ritos· de

passagem tem talvez recebido menos atenção do que o seu simbolIsmo

físico e social. Esses ritos não são simples técnicas mecânicas de agre-

gação social, são técnicas sociais de produção de «nativos», categoria .

que analisei noutra sede {Appadurai, 1988).

O que é verdade para a produção de sujeitos locais no registo etnográfico .

é-o para o processo que produz materialmente a localidade. A construção

de casas, a organização de caminhos e passagens, a feitura e refeitura de

campos e hortas, a cartografia e negociação de espaços trans-humanos e ter-

renos de caça-recolecção é a preocupação incessante, muitas vezes monó-

tona, de muitas pequenas comunidades estudadas pelos antropólogos. Estas

técnicas de produção espacial de localidade estao copiosamente documen-

tadas. Mas normalmente não são consideradas casos de produção de loca-

lidade, quer como propriedade geral da vida social, quer como validação

particular dessa propriedade. Divididos descritivamente em tecnologias de

construção de habitação, horticultura e similares, estes resultados materiais

.têm sido tomados como fins em si e não como momentos de uma tecnologia

(e teleologia) geral de localização . . . . .

A produção de localidade nas sociedades historicamente estudadas pelos

(em ilhas e aldei.as e de caça)e SImplesmente uma qpestao de prodUZIr bem como os pro-·

prios bairros que contextualizam estas subjectividades. Como amplamente

239

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ARJUN APPADURAI

de, IO.gO., a etnO.grafia tem sido. invO.luntariamente cúmplice desta acti- \

vidade. É uma cO.isa que se refere a saber e representação. e não. a culpa

O.uviO.lência. O prO.jectO. etnO.gráficO. é peculiarmente isO.m órficO. dO.S rprópriO.s saberes que prO.cura descO.brir e dO.cumentar, pO.is tan to' O. prO.- \

jectO. etnO.aráficO. cO.mO. O.sprO.jectO.s sO.ciais qUe prO.cura descrever têm

a de IO.c alidade cO.mO. seu ·fim O.rientadO.r2

. NãO recO.nhecer

que estv acto em ambO.s o.s prO.jectO.s implica apen.as a:ções e

mais mO.nótO.nO.s e discretO.s (cO.nstruçãO. de habItaçaO., baptlsmO. de

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

Os contextos da localidade

FO.quei até agora a IO.c al idade como prO.priedade fenO.menO.lógica da

vida social, urna estrutura de sentimento. produzida pO.r determinadas for-

mas de activi-dade intenciO.n al e que produz certos tipO.s de efeito material.

Mas' este aspecto' dimensiO.nal da IO.caliqade não se pode separar dos ce-

náriO.s reais O.nde e através dos quais a vida sO.cial se reprO.duz. Para fazer

. a ligação. entre localidade como propriedade da vida social e O.S bairros

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' I

)

crianças, rituais de balizagem, rituais de saudação., purificação. espiri-

tual) é não. recO.nhecer cO.nstitutivamente as garantias de adequação.

pecial da etnO.grafia a determinados tipO.s de e sua

falta de reflexividade cO.mO. projectO. de cO.nhecImentO. e reprO.duçaO..

Arrastadas para a própria IO.calizaçãO. que prO.curam dO.cumentar, a

mai O.r parte das descrições etnO.gráficas tO.maram a IO.calidade cO.m O. I

base, não. cómO. figura, sem recO.nh ecerem a sua fragiliqade O.U a sua

ética como propriedade da vida social. Surge assim uma cO.labO. raçãO.

não. prO.blem atizada cO.m a sensação. de inércia em que a IO.c alidade,

cO.mO. estrutura de sentimento., sO.bretudO. assenta.

O valO.r decO.nceber de nO.vO. a etnO.grafia (e de reler a etnO.grafia an-

teriO.r) desta perspec tiva é triplo.: (1) a história da etnO.grafia deixa de serlima história dO.s bai rrO.s e passa a ser uma história das técnic as de prO.du -

çãO. de IO.calidade; (2) abre uma nO.va maneira de pensar. a.cO.mplexa .

. -produção. de categO. rias indígenas por intelectuais, admlDIstraqores, lm-

guistas, mi ssiO.náriO.s e etnólO.gO.s O.rgânicO.s que rO.deia grandes pO.rções da

história mO. nO.gráfica da antrO.pO.lO.gia; (3).permite que a etnO.grafi a do. mO.-

demo. e da prO.duçãO. de IO.calidade em cO.ndições modernas faça parte do.

cO.ntributO. mais geral do. registO. etnO.gráficO. tout cour!oJuntO.s , estes três

efeitos pO.der5.O. proteger do. usO. fácil de váriO.s trO.pO.s ·antagónicO.s (O.utrO.ra

e hO.je, antes e depois, pequeno. e grande, cO.nfinadO. O.U não. cO.nfinadO., es-

tável e luido., quente e fri p) que implicitamente O.põem etnO.grafias do e

. no presente a etnO.grafias do e no. passado..

242

cO.mo formas sO.ciais, temos que fazer urna exposição. mais cuidadO.sa do

problema do. cO.ntexto . A produção de bairros tem sempre bape

e por isso cO.ntextual. Ou seja, O.S bairros intrinsecamente O. que são

pO.rque se O.põem a O.utra cO.i sa e de ri va m de O.utros bairrO.s já prO.duzidO.s .

Na cO.nsciência prática de muitas cO.munidades humanas, essa O.utra cO.i sa

é muitas vezes conceptualizada ecologicamente cO.mO. flO.resta O.U estepe,

oc eano O.U deserto. , pântano O.U rio.. Estes sinais eCO.lógicO.s marcam muitas

vezes limites que ao mesmo. tempo assinalam o cO.meçO. das fO.rças e ca-

tegO.rias não. humanas ou das forças que se recO.nh ece cO.mO. humanas mas

são. bárbaras O.U demO.níacas. Estes cO.ntextO.s, contra O.S quais se produzem

e se figuram O.S bairrO.s, são frequentemente cO.nsiderados terrenO.s eCO.ló-

gicos, sociais e cO.smO.lógicO.s.Será indicado. dar aqui uma nO.ta sobre O. lado sO.cial do. cO.ntextO. dos

bairros '- O.U seja, a existência de O.utrO.s bairrO.s - que evO.ca a ideia de

etnopaisagem (cap. 3), termo. que usei para afastar a ideia de que as iden-

tidades de grupO. implicam necessariamente que as culturas têm que ser ·

cO.nsideradas fO.rmas espacialmente delimitadas, histO.ricamente inocentes

ou etnicamente hO.mogéneas. Na acepção que empreguei estava implícita

a ideia de que a etnO.paisagem ganha destaque especialmente no. fim do.

século. Xx, quando O. mO.vimentO. humano., a vO.latilidade das imagens e a

. identidade cO.nsciente prO.dutO.ra de actividades dO.s EstadO.s-nações em-

prestam uma característica fundamentalmente instável e perspectivada à

vida sO.cial. .'\E no. entant6>és bairros são sempre, em certa medida, etnO.paisagens,

porquanto implicam os projectosé tnicO.s de OutrO.s e a cO.nsciência desses

243

 

7 .

ARJUN APPADURAI

projectos. Ou seja, determinados bairros reconhecem por vezes que a sualócrica é uma lógica geral com que Outros constroem também vidas-mun-o . .

dos reconhecíveis, sociais, humanas, situadas. Este saber pode codificar--se na pragmática dos rituais associados à limpeza de matas, ao arranjode hortas, à construção de casas, coisas que trazem sempre implícito umsentido da teleologia da construção de localidade" Em sociedades maiscomplexas que geralmente associamos a literacia, classes sacerdotais e or-dens superiores de controlo e disseminação de ideias fortes, esses conhe-

ÜDIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO ' '' l\ .,....

tante, por mais fundo que vá nas particularidades do lugar, solo e técnicaritual, a descrição invariavelmente contém ou implica uma teoria do con-texto - uma teoria, por outras palavras, daquilo que, contra quê, apesardo que, e em relação a que se produz um bairro. O problema da relaçãoentre bairro e contexto requer muito mais atenção do que aqui podemosdar-lhe. Passo a esboçar as dimensões gerais,deste problema. O principaldilema é que os bairros são contextos e ao mesmo tempo requerem e pro-

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cimentos estão codificados, como no caso do ritual associado à coloniza-ção de novas aldeias pelos brâmanes na Índia pré-colonial. ' . _' . A construcão de localidade tem sempre um momento de colomzaçao,um momento> histórico e fonotípico em que há um reconhecimento for-mal de que a produção de um bairro requer acção deliberada,.arriscáda,até violenta, 'relativamente ao solo, às florestas, aos animais e aos outros'seres humanos. Muita da violência associada aos rituais de, fundação(Bloch, 1986) é o reconhecimento da força necessária para arrancar umalocalidade a povos e lugares anteriormente' descontrolados. Por outras pa-lavras'(De Certeau, 1984), a transformação espaços em lugares requer

um momento consciente que pode depois ser recordado como relativa-mente rotineiro. A produção de bairros é intrinsecamente colonizadora , nosentido em que implica a afirmação do poder socialmente (muitas vezesritualmente) organizado 'sobre os lugares e cenários considerados poten- .cialmente caóticos ou rebeldes. A ansiedade que caracteriza muitos rituaisde habitação, ou instalação é um reconhecimento da violênciaimplícita nesses actos de colonização. Alguma desta ansiedade perdura na

, repetição ritual desses momentos muito depois do evento fundador de co-lonização. Neste sentido, a produção de um bairro é intrinsecamente umexercício de poder sobre um qualquer ambiente hostil ou recalcitrante, quepode assumir a forma de um outro bairro. . ' "

. Muito do material narrativo descoberto por etnógrafos a trabalhar empequenas comunidades, e muito das suas descrições de rituais de agricul-tura, construção de casas e transição social, salienta a pura fragilidade ma-terial que acompanha a produção e manutenção de localidade. Não obs-

duzem contextos. Os bairros são contextos no sentido em que fornecem

o quadro ou cenário onde várias formas de acção humana (produtiva, re-interpretativa, performativa) podem iniciar-se e r eavzar-se sig- , O

mficatIvamente. Como as vidas-mundos significativas requerem padrões O !de acção legíveis e reprodutíveis, são como textos e or isso exigem um' f )

ou muitos contextos. De um outro ponto cÍe vista, um bairro é um contexto, ( ) ,ou um conjunto de contextos, em que uma acção social significativa podeser gerada e interpretada. Neste sentido, os bairros são contextos e os con-textos são bairros. Um bairro é um centro de interpretação multípÍice . ,

Na medida em que os bairros são imaginados, produzidos e mantidoscontra uma qualquer base (social, material, ambiental), requerem e pro-

duzem também contextos contra os quais toma forma a sua inteligibilida-. de. A dimensão geradora de contextos dos bairros é uma impor-tante porque. permite arrancar com uma perspectiva teorétieq sobre arelação entre realidades locais e globais. Como? A maneira comq os bair-ros são produzidos e eproduzidos requer a construção contínua, tanto prá-tica como discursiva, de uma etnopaisagem' (necessariamente não local)em que se imagina que decorrem as práticas e os projectos:

Em uma dimensão, em um momento e de 'urna perspectiva, os bair- 'ros, enquanto contextos existentes, são pressupostos par a a produção ' de

", sujeitos locais .ou seja, são necessários lugares e espaços existentes

dentro de um bairro espaciotemporal historicamente produzido e comuma série de rituais, categorias sociais, profissionais qualificados e pú-blicos informados para os novos membros (?ebés,. es-tranhos, escravos, convIdados, parentes afins) sejam feItostemporária ou permanentemente sujeitos iocais. Vemos aqui' a localida-

245

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ARJUN APPADURAI

de na sua dimensão de dado, de normalidade, de hábito. Nesta dimensão,

um bairro parece ser simplesmente um conjunto de contextos

mente récebidos, materialmente integrados, socialmente apropriados,

naturalmente sem problemas: os pais dão filhos, as hortas dão legumes,

bruxedo dá doença, caça dá carne, mulheresdãobebés, sangue dá sé-

men, xamãs dão visões, epor aí fora. Estes contextos concertados pare-

cem fornecer à produção técnica de sujeitos locais um cenário se m pro-

blemas de um modo regular e regulado.

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO

Considere-se a relação gera l entre vários grupos de lanomâm is das flo-

restas húmidas do Brasil e Venezuela. A relação entre

ções populacionais, guerra predatória e competição sexual pode ser vista

um processo em que determinadas aldeias ianomâmis (bairros), nas

e pelas suas acções, preoc upações e estratégias, produzem efectivamente

um conjunto mais vasto de contextos para si e para outros. Cria-se assim

um terntório geral d e movimento, interacção e colonização ianomâmi em

que determinada aldeia reage a um contexto material mais amplo do que

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Mas à medida que estes sujeitos locais entram nas actividades sociaisde produção, representação e reprodução (bem como na obra da cultura),

contribuem, em geral involuntariamente, para a criação de contextos que

podem exceder os limites materiais e conceptuais existentes no bairro. As

aspirações de afinidade estendem as redes matrimoniais a novas aldeias;

as expedições de pesca produzem melhoramentos do que é entendido

como águas navegáveis .e ricas em peixe, as expedições de caça alargam

o sentido de floresta como quadro ecológico reactivo; os conflitos sociais

forçam novas estratégias de saída e recolonização;as actividades de co-

mércio .produzem novos mundos-mercadoria, logo, novas parcerias com

agrupamentos regionais ainda desconhecidos; a guerra traz novas alianças

diplomáticas com vizinhos anteriormente hostis. E todas estas possibili-

dades contribuem para subtis alterações de língua, visão do mundo, prá-

ticaritual e ideia de si colectiva. Resumindo: à medida que os sujeitos 10-

'cais vão desenvolvendo a tarefa continuada de reproduzir o seu bairro, as

continoências da história, ambiente e imaginação contêm o potencial de.

novos . contextos (materiais, sociais . e imaginativos) a produzir. Deste

modo, atr:J.vés dos caprichos da acção social dos sujeitos locais, o bairro

enquanto contexto produz o .contexto de bairro. Com o tempo, es ta dia-

léctica altera as condições de produção da localidade enquanto tal. Por ou-

traspalavras, é assim que os sujeitos da história se tornam sujeitos histó-

. ricos para que nenhuma comunidade humana, por mais estável, estática,confinada ou" isolada na aparência, possa ser proveitosamente considerada

história fria ou marginal. Esta observação converge com a de

Marshall Sahlins sobre a dinâmica da mudança conjuntural (1985).

246

ela própria, ao mesmo tempo que contribui para a criação desse cóntextomais vasto. Numa perspectiva de larga ·esca!iJ., a rede geral espaço e

tempo em que os lanbmâmis produzem e geram contextos recíprocos para

actos espeCíficos de localização (construção de aldeias) produz também

alguns dos contextos em que o conjunto dos Ianomâmis enfrenta os Es-

tados-nações Brasil e Venezuela. Neste sentido, as actividades iariomanis

de produção de localidade são não apenas determinadas pelo contexto

como geradoras de contexto. E isto aplica-se a todas as actividades de pro-

dução de localidade. .

.' Portanto, os bairros parecem paradoxais porque tanto constituem como

requerem contextos. Enquanto etnopaisagens, os bairros implicam inevita-

velmente uma consciência relacional de outros bairros, mas ao mesmo tem-

po actuam como bairros com autonomia de interpretação, valor e prática

material. Assím, a localidade enquanto facto relacional não é o mesmo que

a localidade como valor prático na produção quotidiana de sujeitos e na co-

lonização do espaço. A produção de loc alidi:lde é inevitavelmente e até certo

ponto geradora de contexto. O que define esta medida é muito substancial-

mente uma questão de relações entre os contextos que os bairros criam e

os que encontram. É uma questão de poder social e das diferentes escalas

\ de organização e controlo em que se integram determinados espaços (e lu-

gares) .

Embora as práticas' e projectos dos lanomâmis sejam produtoras decontexto para o Estado brasileiro, é ainda mais verdade que estas práticas

do Estado-nação brasileiro implicam forças, de intervenção duras,

esmagadoras, mesmo, exploração ambiental em larga escala e migração

247

 

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ARJUN APPADURAI

e colonização promovidas pelo Estado com que os Ianomâmis se confron-

tamem termos de enorme desigualdade. Neste sentido, a que voltarei na

secção seguinte ' sobre as condições da produção de localidade na era do

Estado-nação, os Ianomâmis estão a ser regularmente localizados no sen-

tido de fixados, explorados, talvez mesmo depurados ,no contexto da or-

O'anização social brasileira. Assim, enquanto ainda estão em posição deo . ' , .

,gerar contextos à medida que produzem e, reproduzem os seus propnos

bairros, são cada vez mais prisioneiros das actividades produtoras de con-

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO IJU

pecíficas. Os sociolinguistas, especi almente os que vêm da etnografia da Ufala (Hymes, 1974), são a melhor fonte para esta abordagem

LlA estrutura do contexto não pode nem deve ser tirada inteiramente

ua e da morfologia dos textos. A produção de texto e a produção

, de contexto têm lógicas diferentes e características metapragmátícas. Os

contextos são produzidos na imbricação complexa das práticas discur-

sivas e não discursivas e, po r isso, o sentido em que contextos implicam

o

Uoutros contextos, de forma a que cada um deles implique uma rede glo-, .

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texto do Estado-nação, que vai fazendo com que os seus esforços por pro-duzir localidade pareçam débeis ou mesmo condenados.

Este exemplo tem aplicabilidade geral. A capacidade dos bairros para

produzirem contextos (dentro dos quais as suas actividades localizadoras

adquirem significado e potencial histórico) e de produzir sujeitos locais é

profundamente afectada pelas capacidades produtoras de localidade das

formações sociais de maior (Estados-nações, reinos, impérios mis-

sionários e cartéis comerciais) de determinar a forma geral de todos os

bairros-ao alcance do seu poder. Assim, o poder é sempre uma caracte-

rística-chave das relações contextuais dos bairros, e mesmo o «primeiro

contacto» implica sempre narrativas diferentes de pioneirismo para osdois lados envolvidos.

A economia política que liga os bairros aos contextos é portanto me-

todolóO'icae historicamente complexa. As nossas ideias de contexto de-. orivam em, grande medida da linguística. Até há pouco tempo, o contexto ·

era definido de um modo oportunista para dar sentido a determinadas

frases, rituais) actuações e outros tipos de texto. Embora a produção de

textos tenha sido cuidadosamente estudada de diferentes pontos de vista

(Bauman e Briggs, 1990; Hanks, 1989), a estrutura e morfologia dos

contextos só ultimamente' se tornou alvo de uma atenção sistemática

(Duranti e Goodwin, 1992). Para além da linguística antropologica, o

coritexto continua a ser uma ideia mal definida, um conceito inerte

dicador de um ambiente inerte. Quando os antropólogos sociais apelam I

ao contexto, é geralmente num sentido mal compreendido do quadro so-

ciaI em que é possível entender plenamente acções ou representações es-

248

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. bal de contextos, é diferente do sentido em que os textos imp licam ou,. ,tros textos e por fim todos os textos. Não é provável que as reiações in- ""'"

tertextuais, de que sabe mos já bastante, operem do mesmo modo que as

relações intercontextuaís. Por fim, e para nosso temor, prevê-se que te-

remos que encontrar maneiras de lioO'ar as teorias daintertextualidade àsU

teorias de intercontextualidade. Uma teoria da globalização forte,de UITl ',('"'

o

ponto de vista sociocultural, talvez exij a uma coisa que de certeza não · U

temos: uma teoria das relações intercontextuais que integramo ' nosso '

sentido actual dos intertextos. Mas esse é verdadeiramente outro projec-

to.

A relação entre bairro como contexto e o contexto de bairro,

zada pelas acções dos sujeitos locais históricos, exige novas complexida-

des no tipo de mundo em que agora vivemos. Neste novo tipo de mundo,

a produção de bairros ocorre cada vez mais em condições em que o sis-

tema dos Estados-nações é a charneira normativa para a produção de ac-

tividades locais e translocais. Esta situação, em que as relações de poder

que afectam a produção de ,localidade são fundamentalmente translocais,

é o tema central da próxima secção.

A produção global de localidade

Tudo o que analisámos até agor a como conjunto de problemas estru- .

turais (localidade e bairros, texto e contexto, etnopaisagens e vidas-mun-

dos) tem que ser agora explicitamente historicizado. Indiquei já que a re-

249

 

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ARJUN APPADURAI

lação de localidade (e de bairro) com os contextos é histórica e dialécticae que a dimensão geradora de contextos dos lugares (na sua qualidade deetnopaisagens) é distinta das características provedoras de contexto (nasua qualidade de bairros). Como é que estas afirmações ajudam a com-preender o que acontece'à produção de localidade no ' mundo contempo-

râneo?,O entendimento contemporâneo da globalização (Balibar e Wallerstein,

1991; Featherstone, 1990; King, 1991; Robertson, 1992; Rosenau, 1990)

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALI7AÇJ..O

tratamento alargado que está para além do âmbito deste capítulo: Maspodemos delinear alguns elementos de uma abordagem a este problema.

Em termos simples, a tarefa de produzir localidadé (como uma estru-tura de sentimento, uma propriedade da vida social e uma ideologia de co-munidade situada) é cada vez mais uma luta. É uma luta com muitas di-mensões de que destacarei três: (1) o aumento regular dos esforços domoderno Estado-nação para definir todos os bairros sob o signo das suasformas de lealdade e filiação; (2) a crescente disjuntura entre território,subjectividade e movimento social colectivo; e (3) a progressiva erosão,

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pensar e da organização do capitalismo para algo diferente, a difusão da for-ma nação, em especial se ditada pela concomitante difusão do colonialismoe do capitalismo impresso. Se há problema que parece agora dominar as

ciências humanas, é o do nacionalismo e do Estado-nação-(Anderson, 1991;Bhabha, 1990; Chatteijee, 1986, 1993; Gellner, 1983; Hobsbawm, 1990).

Na realidade, só o tempo dirá se as nossas preocupações actuais com oEstado-nação se justificam, mas os primórdios de um tratamento antropo- 'I[

, lógico desta questão são evidentes no contributo crescente dado pelos an-tropólogos à problemática do Estado-nação (Borneman, 1992; Moore,1993; Handler, 1988; Herzfeld, 1982; Kapferer, 1988; Tambiah, 1986; Ur-

bao e Sherzer, 1991; Van der Veer, 1994). Alg uns destes trabalhos consi-deram explicitamente o contexto global das formações nacionais culturais(Hannerz, 1992; Basch et aI., 1994; Foster, 1991; Friedman, 1990; Gupta,e Ferguson, 1992; Rouse, 1991; Sahlins, 1992). Mas falta ainda apareceruma estrutura que relacione o global, o nacional e o local.

Nesta secção, espero alargar as minhas ideias sobre sujeitos locais econtextos localizados e esboçar os contornos de uma tese sobre os pro-blemas especiais que assaltam a produção de localidade num mundo dediáspora, desterritorializado e transnacional (Deleuze e Guattari, 1987).É um mundo em que a comunicação electrónica está a transformar as

re lo.ções entre informação e mediatização e em gueos Estados-naçõeslut:lm por manter o controlo sobre as suas populações perante uma sériede movimentos e organizações e transnacionais. Um bom

exame dos desafios à produção de localidade neste mundo exigiria um

250

devida principalmente força e à forma da mediatização eleqtrónica, darelação entre bairros espaciais e virtuais. Para tornaras coisas ainda maiscomplexas, estas três dimensões são por sua vez interactivas.

O assenta a sua legitimidade na intensidade da sua pre-sença significativa num corpo contínuo de território delimitado. Opera po-liciando as fronteiras, produzindo povo (Balibar, 1991), construindo cida-dãos, definindo capitais, monumentos, Cidades, águaS e solos e construindo ,,'os seus locais de memória e comemoração, como cemitérios e cenotáfios,mausoléus e museus. O Estado-nação leva a todo o seu território o projectobizarramente contraditório de criar um espaço liso, contíguo e homogéneo

de nacionalidade e simultaneamente um conjunto de lugares e espaços (pri-sões, quartéis, aeroportos, estações de rádio, repartições públicas, parques,paradas, vias processionais) calculados para distinções e divisões in- .temas necessárias à cerimónia, vigilância, disciplina e mobilização do Es-tado. Estes são também os espaços e lugares que criam e perpetuam as dis-tinções entre governantes e governados, criminosos e agentes da ordem,multidões e líderes, actores e observadores. '

Mediante aparelhos tão diversos como museus e centros de saúde, cor-'- , reios e esquadras, cabinas de portagem e de telefone, o Estado-nação cria

uma vasta rede de técnicas formais ÍIlformais de nacionalização de todo

o espaço considerado sob a sua autoridade soberana. Claro que os Estadosvariam quanto à forma de penetrar nos recessos da vida quotidiana. Sub-versão, evasão e re sistência, por vezes escatológica (Mbembc, 1992), ou-tras irónica (Comaroff e Comaroff, 1992a), outras ainda c'!andestinas

251

 

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(Scott, 1990), umas vezes espontâneas e outras planeada s, são muito 1rentes. Com efeito, a incapacidade do Estado-nação para conter e defimras vidas dos seus cidadãos está escrita a letras gordas no crescimento. daseconomias paralelas, nos exércitos e polícias privados e semiprivados, nosnacionalismos secessionistas e numa série de organizações n'ão governa-

. mentais que proporcionam alternativas ao controlo nacional dos meios de

subsistência e justiça'-Os Estados variam também quanto à natureza e à extensão dos seus I

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

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de é um sítio de nostalgias, celebrações e comemorações apropriadas na-cionalmente ou uma condição necessária da produção de Os Übairros enquanto formações sociais representam ansiedade :para os Es-tados-nações, pois contêm normalmente espaços grandes ou residuáisonde as técnicas pró-nação (controlo de nascimentos, uniformidade lin-guística, disciplina económica, eficiência nas comunicações e lealdadepolítica) serão provavelmente fracas ou contestadas. Ao mesmo tempo,

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os bairros são fonte de trabalhadores políticos e funcionários de partido,soldados,técnicos ( )

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interesses vida local e nas formas culturais em que investem as suas. Imais profundas paranóias de soberania e controlo. Cuspir na rua é muitoperigoso em Singapura e na Papua-Nova Guiné; os ajuntamentos são umproblema no Haiti e nos Camarões; desrespeitar o imperador não é bom ,no Japão; e incitar sentimentos pró-muçulmanos é mal visto na-India con- I

temporânea. A lista poderia continuar: os Estados-nações têm os seus lo-cais próprios de sacralidade, os seus testes especiais de lealdade e traição,as suas medidas especiais de submissão e desordem. Estão ligados a pro-blemas reais e detectados de ilegalidade, de ideologias reinantes de libe-ralização ou o seu oposto, de compromisso relativo com a respeitabilidadeinternacional, de repulsas de profundidade variável pelos regimes anteces-sores imediatos e de certas histórias de antagonismo ou colaboração étni-cos. No mundo posterior a 1989, seja ele como for, não parece haver laçosmuito fiáveis entre ideologias de Estado-providência, economia de mer-cado, poderio militar e pureza étnica. Contudo, quer pensemos nas turbu-lentas socied:ldes pós-comunistas da Europa de Leste, nas agressivas ci-dades-Estados do Extremo Oriente (como Taiwan, Singapura e HongKong), nas complexas organizações da América Latina, naseconomias de Estado falidas da maior parte da Africa Subsariana ou nosturbulentos Estados fundamentalistas de quase todo o Médio Oriente e Sulda Ásia, todos o mesmo tipo de desafios à produção de

bairros por sujeitos locais. .Do ponto de vista do nacionalismo moderno, os bairros existem prin-

cipalmente para incubar e reproduzir nacionais - e não paraa produção de sujeitos locais. Para o Estado-nação mocterno,a localida-

252

bairros não são dispensáveis, ,mesmo sendo potencialmente traiçoeiros.Para o projecto do Estado-nação, os bairros representam uma fonte pe-rene de entropia e vazio de poder. Têm que ser quase tão bem policiadoscomo as fronteiras.. · .

A tarefa de produzir báirros - vidas'-mundos constituídas por associa-ções relativamente estáveis, por histórias relativamente conhecidas e par-tilhadas e POI; espaços e lugares colectivamenté atravessados e legíveis -vê-se muitas vezes a braços com os projectos do Estado-naçã03

. E isto emparte por causa de os compromissos e apegos (por vezes incorrectamenteclassificados como «primordiais») que caracterizam as subjectividades lo-

cais serem mais prementes, mais continuados e por vezes mais distracti-vos do que o Estado-nação pode permitir-se. É também porque as memó-rias e apegos que os locais têm aos seus letreirQs de loja e nomesde ruas, caminhos e enfiadas de ruas favoritos, tempos e lugares de ajun-tamento e fuga são muitas vezes incompatíveis com as necessidades doEstado-nação para a vida pública regulamentada. Além disso, é inerenteà naturez,a da vida local desenvolver-se de certo modo ao invés dos outrosbairros, produzindo os seus próprios contextos de alteridade (espacial, so-

"'-'" cial e técnica), contextosqu e podem não satisfazer as necessidades de es-. tandardização espacial e social que são requisito prévio do cidadão nacio-

nal disciplinado.Os bairros são cenários ideais para a sua própria reprodução, processo

fundamentalmente oposto ao imaginário do Estado-nação em que os bair-ros se destinam a ser instâncias e exemplares de um modo generalizável

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de pertença a um imaginário territorial mai s vasto. Os modos de localiza-ção mais próprios do Estado-nação têm características disciplinares: nasaúde pública e limpeza de ruas, nas prisões e regeneração de bairros dalata, nos campos de refugiados e repartições de todo o tipo, o Estado-na-ção localiza por ordem, por decreto e por vezes com recurso ao uso de-clarado da força. Esta espécie de localização cr ia graves constrangimentosou mesmo obstáculos directos à sobrevivência da localidade geradora decontexto e não à localidade determinada pelo contexto.

Mas o isomorfismo de pessoas, território e soberania legítima que

DIMENSÕES CULTURAIS. DACÚJBAUZAÇÃO

lhadores especializados (soldados das Nações Unidas, tecnólogos do petró--leo, especialistas em desenvolvimento e trabalhadores agrícolas). E aindaoutras formas de movimento, particularmente na África Subsariana, impli-cam grandes secas e fomes, muitas vezes ligadas a alianças desastrosas en-tre Estados corruptos e entidades internaciónais e globais oportunistas. Nou-tras comunidades ainda, a lógica do movimento vem das indústrias do lazer,.que criam sítios e locais turísticos em todo o mundo. A etnografia desteslocais turísticos começa agora a ser escrita com pormenor, mas o pouco quesabemos sugere que muitos desses locais criam condições complexas de

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constitui a carta normativa do Estado-nação moderno está por sua vez

ameaçado pelas formas de circulação de pes soas características do mundocontemporâneo. É hoje geralmente aceite que o movimento humano, nomundo contemporâneo; é mais vezes defin idor da vida social do que é ex-cepcional. O trabalho, tanto o mais sofisticad o trabalho intelectual comoo mais humilde trabalho proletário, leva as pessoas a migrar, frequente- I

mente mais que uma vez ao longo da vida. As medidas dos Estados-na-ções, particularmente as relativas a populações consideradas potencial-mente subversivas, criam uma máquina de movimento perpétuo em queos refugiados de uma nação se mudam para outra dando origem a novas

instabilid:ldes que podem causar mais desassos sego social e mais saídas.Assim, as necessidades de produção de povo de um Estado-nação podem.significar agitação étnica e social para os seus vizinhos, criando círculos

. intermináveis de limpeza étnica, m igração forçada, xenofobia, paran óiade Estado e nova limpeza étnica. A Europ a de Leste em geral e a Bósnia--Herzegovina em particular são talvez os exemplos mais trágicos e com-plexos deste processo de dominó dos refugiados estatais. Em muitos des-te s casos, pessoas e comunidades inteiras são metidas -em guetos, camposde refugiados, campos de concentração ou reservas, por vezes sem que I

gué m sequer Se desloque.

Outras fonnas de movimento humano são as criadas pela realidade ouilusão da oportunidade económica, o que se ap lica a muita da migração àsiá-

-1i.ca para as zonas ricas em petróleo do Médio Oriente. Mas outras form as

movimento são criadas por grupos permanentemente instáveis de traba-

254

-produção e reprodução de localidade em que laços de casamento, trabalho,negócios e lazer juntam várias populações circulantes com outras locaiscriando bairros que, em certo sentido, pertencem a d eterminados Estádos--nações, mas são de outro ponto de vista o que podemos chamar translo-

- calidades. O desafio de produzir um bairro nestes ambientes da ins-- tabilidade inerente das relações sociais, da forte tendência p ara a própria

subjectividade local sermercantilizad a ed a tendência dos Estados-nações, -que por vezes obtêm importantes rendimentos desses sítios, para obliterara dinâmica interna local mediante modos de credenciaçãoe produção de imagens impostos de fora.

Uma versão muito mais negra do problem a de produzir um bairro ob-serva-se nos campos de refugiados quase permanentes que hoje caracte-rizam muitas zonas de conflito no mundo, como os Territórios Ocupados -na Palestina, os campos na fronteira cambojano-tailandesa, os muitoscampos organizados pelas Nações Unidas na, Somália e os campos de re-fugiados afegãos no Noroeste do Paquistão. Combinando as piores carac-terísticas dos bairros de lata urbanos, campos de concentração, prisões eguetos, há lug_res onde, não obstante, se contratam e celebram casamen-

" , tos, começam e terminam vidas, se fazem e horiram contratos, se lançame interro mpem carreiras, se faz e gastá dinheiro, se produz e troca merca-

doria. Esses campos de refugiados são os exemplos mais duros de condi-ções de incerteza, pobreza, deslocamento e desespero em que pode serproduzida localidade. Há os exemplos extremos de bairros produzidospelo contexto em vez de geradores de contexto . S50 bai rros cujas vidas-

255

 

ARJUN APPADURAI

-mundos são produzidas nas' mais negras circunstânc ias, sendo as prisões iI

e os campos de concentração os seus exemplos mais bárbaros, I

Mas mesmo estes exemplos brutais apenas levam ao extremo o moral

quotidiano de muitas cidades. Nas condições de agitação étnica e conflito Iurbano que caracterizam cidades como Belfast e Los Angeles, Ahmeda- I

bad e Sarajevo, ' Mogadíscio e Joanesburgo, as zonas urbanas transfor- :

mam-se em campos armados e são inteiramente determinadas por forças ,

implosivas (cap. 7) que introduzem nos bairros as mais violentas e pro- '

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DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBAÚZAÇÃO O')

nome, pois não são mais que palcos, quintas, sítios e casernas para popu-1 Oções com um empenho perigosamente diminuto na produçãode-locali-dade.

Não vá esta visão parecer demasiado negra, há que 'notar que a própria

natureza destes dramas urbanos desagradáveis leva indivídu'os e grupos a

locais mais pacíficos para onde desejam transportar a sua energia, habili-

tações e paixão pela paz. Os melhores momentos da vida urbana nos Es-

tados Unidos e na Europa devem-se aos migrantesque fogem de lugares

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blemáticas repercussões dos processQs regionais, nacionais e globais mais :vastos. Claro que há muitas diferenças importantes entre estas cidades, as

suas histórias, as suas populações e a sua cultura política. Mas, juntas, re-

presentam umá nova fase da vida das,cidades, onde a concentração de po-

pulações étnicas, o acesso aarmamento pesado e as condições de sobre- ,

população na vida cívica criam formas de guerra futuristas (que fazem I ,

lembrar filmes como Road Warrior, Blade Runner e muitos outros) e onde I

a desolação geral da paisagem nacional e global transpôs muitas e bizarras

inimizades raciais, religiosas e linguísticas para cenários de constante ter-

ror humano.

Estes novos conflitos urbanos estão em certa medida divorciados das

suas ecologias regionais e nacionais e voltados para guerras com impulso

próprio, implosivas, entre forças criminosas , paramilitares , e milícias civis

com ligações obscuras a forças transnacionais religiosas, económicas e

políticas. Há, evidentemente, muitas causas para estas formas de colapso

urbano no Primeiro e no Terceiro Mundo, mas elas devem-se em parte à

erosão regular da capacidade dessas cidades para controlar os meios da

sua própria reprodução. É difícil não associàr uma parte significativa des-

tes problemas à mera circulação de pessoas, muitas vezes em resultado ,

de guerras, fome e limpeza étnica, que foi o que atirou essas pessoas para I

essas cidades. A produção de localidade nestas formações urbanas enfren- '

ta os respectivos problemas de populações deslocadas e 'das, de políticas oficiais que restringem os bairros como produtores de

e de sujeitos locais que não pode m ser outra coisa senão cidadãos

nacio-';;'ais . Nos casos mais severos, esses bairros quase não merecem o

256

muito piores do que Chicago, Detroit, Los Angeles e Miami. Contudo, sa-bemos que a produção de localidade na Los Angeles Sul e Centro, no lado

ocidental de Chicago e em zonas semelhantes das grandes cidades ame-

ricanas é um processo altamente conflituoso. .

O terceiro e último factor a tratar aqui é o papel dos meios de

nicação de massas, especialmente na sua forma electrónica, na criação

de novos tipos de disjuntura entre, bairros espaciais e bairros virtuais.,

Esta disjuntura tem potencial utópico e distópico e não há um a maneira

fácil de dizer como vão actuar esses factores re lativamente ao futuro da

produção de localidade. Çom efeito, os próprios meios de comunicação

electrónicos variam hoje internamente e constituem um a família com-plexa de 'meios tecnológicos de produção e disseminação de ,notícias e

diversão. Os filmes tendem a ser dominados pelos grandes intere sses co-

, merciais de uns poucos centros mundiais (Hollywood, Nova Iorque,

Hong !<ong, embora vão aparecendo em outras partes da Eu-

ropa, Asia e Africa (como Cidade do México, Banguecoque e Madrasta)

grandes sedes secundárias de cinema comercial. O cinema de arte-e-en-

saio (que 'assenta em parte numa rede transnacional em crescimento de

festivais de cinema, exposições e leilões comerciais) disirihui-se ao

mesmo tempo mais e menos no mundo, mas os filmes mistos (como

Cães Danados, Jogo de Lágrimas, ou ainda Salaam Bombay e El Ma-

riachi) vão aumentando.

A televisão, tanto na sua forma de difusão tradicional como através das

novas formas de redes por satélite, ocupa cada vez mais os esp<l:ços de exi-

bição de cinema e entra por florestas de antenas, muitas vezes em bairros

25 7

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ARJUN APPADURAI

de barracas que são dos mais pobres do mundo, como os do Rio de Janeiroe São Paulo. A relação entre ver cinema numa sala videocassetes no am-biente doméstico cria por Si só importantes mudanças, já apontadas comosinal do fim do cinema corrio forma clássica de espectáculo (Hansen,1991). Ao mesmo tempo, o acesso de pequenas comunidades, por vezesno Quarto Mundo, a tecnologias de produção de vídeo tornou possível aessas comunidades criar estratégias nacionais e globais mais eficazes deauto-representação e sobrevivência cultural (Ginsburg, 1993; Turner,1992). Máquinas de fax, correio electrónico e outras formas de comuni- I

I

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

impostos, eleições e outros diacríticos políticos convencionais, mas pelo, ao e ao hardware necessários para ligar as grandes redes

de computadores. Assim o acesso a estes bairrós vir-tuaI.s (electrónicos) tende a confinar-se a membros da intelligentsia inter-

que, mediante o açesso a tecnologias de computador nas univer-SIdades, laboratórios e bibliotecas, podem basear,os projectos sociais e?olíticos em tecnologias construídas para resolver problemas de fluxo deInformação. Informa ção e opinião fluem concomitantemente através des-

e, .embora a morfologia social destes bairros electrónicos sejadrfIcIl de claSSIficar e a sua longevidade difícil de prever, são claramente

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cação mediatizada por computador criaram novas possibilidades para for-mas transnacionais de comunicação, passando muitas vezes à margem davigilância intermédÍa do Estado-nação e de outros grandes conglomeradosmediáticos. Claro que cada um destes progressos interage com os outros,criando novas e complicadas conexões entre produtores, audiências e pú-blicos - locais e nacionais, na estabilidade e na diáspora.

É imposs ível singrar no meio desta confusa de mudanças nosambientes mediáticos que rodeiam a produção de bairros. Mas há muitasformas novas de comunidade e de comunicação que hoje afectam a capa-cidade dos bairros para serem produtores de contexto em vez de predo-

minantemente determinados pelo contexto. O muito falado impacto dasnotícias da CNN e de idênticas formas globais e instantâneas de mediati-zação, bem como o papel das tecnologias de fax nos levantamentos de-mocráticos na China, Europa de Leste e União Soviética em 1989 (e de-pois), tornaram possível aos dirigentes e aos Estados-nações, bem comoàs várias forças de oposição, comunicar muito rapidamente pelas linhaslocais e mesmo nacionais. A velocidade dessa comunicação complica-seainda mais com as comunidades de painel electrónico, como as que a In-ternet possibilita e que permitem o debate, o diálogo e a construção de re-lações entre vários indivíduos separados territorialmente que, apesar dis-so, estão a formar comunidades de imaginação e interesses dirigidos às

posições e às vozes da diáspora.Estas novas formas de comunicação electronicamente mediatizada co-

meçam a criar bairros virtuais, já não limitados por território, passapórtes"

258

II

\ .que .trocam informação e vínculos construtivos afectam

mUltas areas da Vida, da filantropia ao casamento.bai,:r0s virtuais parecem representar, de tudo, apenas a au-

senCIa de VInculos frontais, contiguidade espacial e interacções sociaismúltiplas que a ide ia de bairro essencialmente implicaria. Mas nã o deve-mos apressar-nos a opor bairros altamente espacúllizados aos bairros vir-tuais da comunica ção electrónica internacional. A relação entre estas duasformas de,. é c.onsideravelmente mais complexa. Numa primeirafase, os vlrtual s.são capazes de mobilizar ideias, opiniões, capitaise laços SOClaIS que mUltas vezes voltam aos bairros vividos sob a formad.e monetário, armas para nacionalismos locais e apoio a várias po-sIçoes em esferas públicas altamente localizadas. Por exemplo, nó con-texto da destruição do Babri Masid, em Ayodhya, por extremistas hindus,a 6 de Dezembro de 1992, houve uma intensa mobilização por computa-dor, fax e redes electrónicas que muito rapidamente criou círculos de de-bate e troca de informações entre pessoas interessadas nos Estados Uni-dos, Canadá, Inglaterrae várias partes da Índia. Estes círculos electrónicos\.foram explorados por indianos nos Estados Unidos em defesa'cios dOls do grande debate sobre fundamentalismo e harmonia co-munitária na India contemporânea.

Ao mesmo tempo, prosseguindo com o exemplo da comunidademarina de indianos, tanto os grupos progressistas, secularistas, como 'tcl-

suas contrapartidas do lado revivalista hindu (membros do Vishwa Hindu

259

 

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ARJUN APPADURAI

Parishad e simpatizantes dos partidos Bharatiya Janata e Bajrang Dal, porvezes referenciados como parivar ou família Sangh), mobilizam estesbairros virtuais no interesse de projectos políticos intensamente localiza-dores na Índia. Os motins que abalaram muitas cidades indianas após o 6de Dezembro de 1992 já não podem ser vistos fora da mobilização elec-trónica da diáspora indiana, cujos membros podem agora envolver-se di-rectamente nos acontecimentos da Índia por meios electrónicos. Não setrata inteiramente de uma questão de nacionalismo à distância do género

DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO

Os indianos dos Estados Unidos estão hoje empenhados de diversasmaneiras na política do multiculturalismo nos Estados Unidos (Bqatta-charjee, 1992). Este empenhamento é profundamente inflectido e afec-tado pelo seu envolvi mento na política incendiária nas suascasas,cida-

des e parentes na Índia e também noutros sítios onde vivem e tr.ab.alhamamigos e parentes indianos - inglaterra, África, Hong Kong e MédioOriente. Por isso a política da diáspora, pelo menos na década de oitenta,foi decisivamente. afectada pelas transformações electrónicas globais.

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recentemente criticado por Benedict Anderson (Anderson, 1994). Faztudo parte das novas relações, tantas vezes conflituosas, entre bairros, fi-

delidades translocais e a lógica do Estado-nação.Estes «novos patriotismos» (cap. 8) não são apenas um prolongamento

das d·scussões nacionalistas e antinacionalistas por outros meios, emborahaja muito de nacionalismo prostético e política de nostalgia no relacio-namento dos exilados com o seu país de origem. Envolvem também váriasformas novas e confusas de ligação entre nacionalismos da diáspora, co-municações políticàs deslocalizadas é compromissos políticos revitaliza-dos de ambos os lados do processo da diáspora.

Este último factor reflecte o modo como as diásporas vão mudando à luz

das formas novas da comunicação electrónica. Os indianos nos Estados Uni-dos estão em contacto directo com acontecimentos na Índia que implicamviolência étnica, legitimidade do Estado e política partidária, e estes mesmosdiálogos criam novas formas de associação, de conversa e de mobilização na-

política «minoritária» que eles prosseguem nos Estados Unidos. Assim, mui-tos daqueles que mais agressivamente vivem a política indiana por meioselectrónicos são também os que mais esforços desenvolvem para reorganizarvários tipos de políticas de ·diáspora nas cidades e regiões dos Estados Uni-dos. Além disso, a mobilização de mulheres indianas contra a violência do-méstica e acolab oração de grupos indianos progressistas com os seus homó-

logos empenhados na Palestina e na África do Sul sugerem que estes bairrosvirtuais electrónicos oferecem aos indianos formas novas de participar ·na

produção de localidade nas cidades e subúrbios onde residem como profes-sores, taxistas, engenheiros e empresários, americanos. .

260

Mais do que simples oposição entre bairros espaciais e virtuais, o queemergiu foi um novo e significativo elemento da produção de,localida-de. O fluxo global de imagens, notícias e opinião pública fornece parteda literacia cultural e política militante ·que as pessoas da diáspora tra-zem para os seus bairros espaciais. Em certos aspectos, estes fluxos glo-bais potenciam a força intensa e explosiva que produz os bairros espa-ciais.

Ao contrário das press ões muito negativas que o Estado-naç.ão exerce ·sobre a produção de contexto por sujeitos locais, a mediatização electr6-nica da comunidade no mund o da diás pora cria um sentido mais compli-cado, disjunto, híbrido da subjectividade local. Como estaselectrónicas costumam inteO'raros membros mais cultos da elitê das co-o .

munidades de diáspora, não afectam directamente as preocupaçõesdos migrantes menos instruídos e menos privilegiados. Migrantes menosfavorecidos preocupam-se geralmente com os aspectos práticos do empre-0'0 e da residência nos novos ambientes, mas não ficam isolados destesb ..

fluxosglobais. Um motorista de táxi sique em Chicago pode s er incapazde participar na política do Punjab Internet; mas pode ouvir cassetesdas fogosas canções e sermões devotos pronunciados no Templo Doura-

" , do, no Punjab. Os seus homólogos no Haiti, Paquistão e Irão podem usar

o rádio eo leitor de cassetes pa ra ouvir o que quiserem escolher do imenso

fluxo global de audiocassetes especialmente dedicadas à música e aos dis-cursos de carácter popular e devoto.

Os diferentes grupos indianos nos Estados Unidos ouvem tambémdiscursos e sermões de toda uma série de políticos, académicos, homens

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ARJUN APPADURAI

santos e empresários itinerantes do subcontin'ente quando se encontram I

em digressão pelos Estados Unidos. Também lêem lndia West, lndiaAbroad e outros grandes jornais que notícias da política ameri-

cana e da indiana nas mesmas páginas. Participam, através da televisão

por cabo, do vídeo e de outras tecnologias no ruído corrente do entrete-

nimento à indiana produzido nos, e para os, Estados Unidos. Assim, a obra .

da imaginação (cap. 1) que produz e alimenta a subjectividade local é um

confuso palimpsesto de considerações' altamente locais e altamente trans-

locais.

DIMENSÕES CULTURAIS DAGLOBALIZAÇ ÃO

bairro.s reais deparar invariavel mente com a corrosão do contexto, quan-

maIS não seja na tendência do mundo material para resistir desíg-

nIOS normais da acção humana. O segundo sentido surge quando os bair-

ros são submetidos airhpulsos de produção de contexto de organizações

hierárquicas mais complexas, especialmente as do Estado-nação. A re-

lação entre estas distintas formas de fragilidade é em si hist6rica, pois

é a interacção a longo prazo dos bairros que cria essas relações hierár-

quicas complexas, processo que normalmente é estudado sob rubricas

como a formação do Estado. Esta dialéctica histórica recorda-nos que a

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. Os três factores que mais directamente afectam a produção de locali-dade no mundo aCtual - o os fluxos da diáspora e as co-

munidades electrónicas e virtuais - articulam-se por sua vez de formas

variáveis, confusas, por vezes contraditórias, que dependem do cenário

cultural, histórico, ecológico e de classe em que se encontrarem. Por sua

vez, esta variabilidade é em parte produto do modo como as etnopaisaoens. . o

actUaIS mteragerri irregularmente com as finanças, os meios de comuni-

cação e os imaginários tecnológicos (cap: 2). O modo como estas forças

se articulam em Port Moresby é diferente da sua articulação em Peshawar,

e este, por sua vez, é diferente em Berlim ou em Los Ange1es. Mas estes '

são todos lugares onde o combate enrre os imaginários do Estado-nação,das comunidades instáveis e dos meios de comunicação electrónicos glo-

bais estão em pleno progresso.

O resultado, com todas estas variações conjunturais, é um 'novo e imenso

conjunto de desafios à produção de localidade em todos os sentidos de que

fala este capítulo. Os problemas da reprodução cultUral num mundo aloba-

lizado somente em parte podem referir-se em lermos de problemas raça

e classe, género e poder, embora tudo isso tenha uma importância crucial.

Um bcto ainda mais importante éque a produção de localidade - sempre,

como já defendi, um resultado frágil e difícil- é mais do que nunca atra-

vessada por contradições, desestabilizada pelo movimento humano e des-

Ioc3da pela formação de novos tipos de bairro virtual.

A localidade é portanto frágil em dois sentidos. O primeiro, com que

comecei este capítulo, decorre do' facto de a reprodução material dos

262

localidade como dimensão da vida social e como valor articulado de de-

terminados bairros não é um padrão transcendente que certas sociedades

perdem ou de que se desviam. Pelo contrário, a localidade é sempre

emergente de práticas de sujeitos locais em bàirros específicos. As pos- .

sibilidades da sua realização como estrutura de sentimentos são pois tão

variáveis e incompletas como as relações entre os bairros que consti-

tuem casos práticos .

As muitas populações deslocadas, desterritorializadas e em trânsito

que constituem as etnopaisagens actuais estão empenhadas na construção

da localidade como estrutura de sentimentos, muitas vezes perante a ero-

são, dispersão e implosão dos bairros enquanto formações sociais coesas.

Esta disjuntura entre bairros como formações sociais e localidade como

,propriedade da vida social não é isenta de precedentes históricos, uma vez

que o comércio longínquo, as migrações forçadas e as partidas por moti-

vos políticos abundam no registo histórico. O que é novo é a disjuntura

entre estes processos e os discursos e práticas mediatizadospelos meios

.de comunicação de massas (incluindo os da liberalização económica, do

\ multicultu ralismo, dos direitos humanos e das reivind icações dos refugia-

" ' dos) que hoje rodeiam o Estado-nação. Esta disjuntura, como qualquer ou-

tra, aponta para algo de conjuntural. A tarefa de teorizar a reiação entre

estas disjunturas (cap. 2) e conjunturas que'explicam a produção g lobali-zada da diferença parece agora mais e mais temível. Em tal teo-

ria, não é provável que haja algo de me;amente local. .

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1. Aqui e agora

1 A ausência de citações específicas no texto deste ensaio'não deve dar a impressão de que foí ima-culadamente concebido. Este capítulo introdutório, como o livro que se lhe segue, parte de muitas cor-rentes das ciências sociais e humanas ao longo dos últimos vinte anos. Muitas dessas dívidas ficarãopatentes nas notas aos capítulos que se seguem.

2 Para um tratamento mais completo desta ideia, ver o ensaio introdutório de Appadurai e Brec-kenridge sobre «Modernidade Pública na Índia» em Consuming Modemity: Public Culture in a South

Asian World, ed. Caro A. Breckenridge (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995), pp. 1-20.Esta colectânea de ensaios exemplifica uma estratégia para o estudodo moderno global num sítio es-pecífico.

2. Disjuntura e diferença na economia cultural global

Uma grande excepção é Frederic Jameson, cuja obra sobre a rebção entre pós-modernismo e ,capitalismo tardio inspirou este ensaio em muitos aspectos. Contudo, o debate entre JamesCin e Aijaz

Ahmaóem Social Ta t mostra que a criação de uma narraúva marxista globalizante sobr e questões cul-turais é território verdadeiramente difícil (Jameson, 1986; Ahmad, 1987). Os meus esforços neste con-

texto vão no senúdo de iniciar uma reestrunmição da riarrativa marxista (deslacando desfasamento e,',

, , disjunturas) que muitos marxistas podérão achar detestável. T al reestruturação tem {jue evitar os peri- 'gos da diferença obliterante no seio do Terceiro Mundo, elidindo o referente social (como certos pós--moderno s franceses parecem inclinados a fazer) e mantendo a autoridade narrativa da tradição marx is-ta, para favorecer uma maior atenção à fragmentação, e diferença globais.

2 A ideia de emopaisagem é tratada com mais relevo 3. '

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3. Etnopaisa·gens globais: notas e .perguntaspara uma antropologia transnacional

1 I::stas ideias sobre a economia cultural de um mundo em movimento, bem como a lógica de ter-mos como elnopaisagem, estão mais desenvolvidas no capítulo 2.

2 Não é este o lugar para uma revisão alargada do campo emergente que são os estudos culturais .A sua linhagem britânica foi cuidadosamente explorada porHall (1986) e Johnson (1986). Mas é claroque esta tradição brilãnica, tão associada à Escolil de Birmingliam, agora em diáspora, está a assumir

novas formas nOS Estados Unidos ao entrar em contacto com a antropo lo gia cultural americana, o novo

hi storicismo e os estudos de linguagem e meios de comunicação na tradição americana .

3 A análise que se segue vai beber em muito a Appadurai e Breckenridge (199Ia).

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DIMENSÕES CULTURAISç i

GLOBALIZAçi/r. ' . -'.

3 Em muitos aspectos, este capítulo é um diálogo com ia importante colectâpea çlirigidaford Geertz. Old Socielies and New Stales: The Questfor iloaemity in Asia AFica 0%3).zido sob os auspícios da Comissão para o E studo Comparado das NovaS Nações. da : pniversidade

Chicago. este volume ensaios de sociólogos. antropólogos e politólogos e repreúnta um mo-'mento importante de trabalho sobre o tema da modernizaçao. Profundamente

ciado pela herança de Max Weber e subsequentes esforços de Edward Shils e Talcott Parsons parain-,terpretar Weber nos· Estados Unidos, os ensaios da colectânea represe ntam em geral.um

positivo pela modernização que eu não partilho. Alguns dos ensaios adoptam também üin sentido"de'substrato nas sociedades asiáticas e africanas que é o alvo directo minhas obserVa-ções críticas neste capítulo. Outros contributos. nomeadamente o de Clifford Geertz. têm o cuidado de -referir que o que parecem primórdios da vida social - língua. raça. parentesco - n'ão passam dissomesmo. aparências. Geertz considera-as integraaas na retórica da natureza. da históna e das raízes'a

apelo. posição primordialistatem

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S. Jogar com a modernidade: a descolonizaçãodo indiano

1 Estes materiais incluem as revistas em língua marata Chaukar. Ashlapailu. Krikel Bharali eShatka r. que têm as suas homólogas em tâm;l, hindu e bengali. Estas revistas contêm mexericos sobreas do críquete, rece nsões a livros em inglês sobre críquete, notícias e análises do críquete em

In glaterra e noutros pontos da Commonwealth e por vezes de outros desportos, bemc.omo d<! cinema e outras formas de diversão popular. Aí. tanto nos textos como nos anúncios. o críque-te é portanto vernacularizado textualmente e ao mes mo tempo trazido para o esplendor da vida cosmo-polii:!: lJma ànálise pormenorizada.destes materiais exige um estudo separado. Estas revistas, mais li-vros sobre jogadores de críquete como Shalak aani Shalkar (autobiografias em marata de Ravi Shastrie Sandip Patil organizadas por um redactor), constituem a base linguística e a descolonização pela lei-tura do críquete. Estou profundamente grato a Lee Schlesinger. que vasculhou para mim algum deste

mate i-aI na; li vrarias e vias travessas de Poona.

6. O número na imaginação colonial

I Por lerritorial re firo-me ao interesse do ce nso nos bairros. distritos e regiões (Luddcn. 1991).2 D,;vo este contraste entre casos especiais e limitativos a Dipesh Chakrabarty. a quem devo tam-

bém ter-me que este problema é fundamental para a minha te se.

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7. A vida depois doprimordialismo

_ l '_ Ver sões anteriores deste foram· apresentidas no Centro de Assuntos Internacionais da

' Universidad(;! l:Íe Harvard, no programa para o Estudo Comparado das Transformações Sociais na Uni- .doMic higan e no Ct;:ntro de Estud.os Asiáticos da Universidade dt;: Amestercüo. Agradeço

aos pres<}ntes em cada uma destas ocasiões as suas perguntas pertinentes e críticas úteis.2 Aqui. leriho o prazer de atender uma chamada de Fredrik Barth. cujo trabalho sobre grupos étnicos

e fronteiras (19.69) continua a ser um es tudo clássico do contexto social dos proces sos étllicos, para maisestudas sobre as rel:!çÕ<!s entre globalização e a mobilizaçã o da idenúd.1de étnica (Barth. 1995). Para umesfcrçó ;u;ter.or.l! premonitório de ligação da etnicidade. à ordem internacional. ver Enloe. 19 86.

266

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que muitos políticos dos novos Estados fazem A aiW:la grande acei-tação. Um exemplo entre muitos. mais de duas décadas após o ap_recimento do volume de Geertz. éThe Primordial Cha/lenge: Elhnicity in lhe Contemporary .World (1986), dirigido por JohnStack. Mos-

tra a persistência da ideia do primordial como fac (o, não apenas como aparência ou tropo, na vida socialdos grupos étnicos. . .

4 Esta teoria da extrema violência hoje frequentemente' associada aos choques étnicos é aqui es- .boçada no seu formato mais preliminar. Ao desenvolvê-Ia. baseei-me numa série de forites e interpre-tações. Notáveis entre estas foram as formulações específicas de Benedict Anderson sobre racismo eviolência em lmagined Communities (983). O trabalho de Ashis Nandy e Veena violênciacomunitária no Sul da Ásia na década de oitenta (Das, 1990) e o trabalho mais recente de Das sobre odiscurso militante sique na Índia a partir do fim dos anós setenta (1995) deram-me valiosas perspecti-vas sob re o modo como a violência é localizada, narrativizadae personalizada. Finalmente, um refres-cante ensaio de Donald Sutton (995) sobre o canibalismo entre os camponeses contra-pcvolucionáriosna China. em 1968. abre um vislumbre poderoso sobre o modo como as formas mais extremas de vio-

lência política podem li gar-se à política e administração ao nível do Estado. A brilhante etnografia deLiisa Malkki sobre os refugioldos hUlUS na Tanzânia (995) foi um a dolorosa insp iraç'ão. No seu con-junto. estes trabalhos (e muitos outros) deram corpo à ideia de que causar danos brutais no Outro'incor-porado (por exemplo. no corpo dos Outros) está estreitamente ligado à relação entre identidades indi-viduais c rótulos e categorias extralocais. O desenvolvimento completo desta tese sobre raiva. traição.categorias promovidas .pelo Estado e conhecimento íntimo entre as pessoas tem que-esperar por outraocasião. Foi Sherry Ortner que me persuadiu de que este capítulo, bem como este li vro,"'precisava deum tratamento sério do tema da violência étnica.

5 Há que observar aqui que a minha opinião não deve ser estritamente identificada com uma pers-pectiva da violência étnica contemporãnea centrada no Estado. Simpatizo co m a tese, geral de RobertDesjarlais e Albert Kleinman (1994). segundo os quais nem toda a violência contemporânea se pode

atribuir às técnicas disciplinares do Estado-naçã.o moderno. É sem dúvida uma grande incer-teza e anomia o que alimenta as piores cenas de violência étniéado mundo. A nOção de incerteza. em

vez de conhecimento.corrio caracterís tica da economia moral da violência. precisa na realidade de uma

exploração sistemática. De momento. vale a pena notar que me smo nas situações em que distúrbio'mo-ralocolapso epistemológico e incerteza social são galopantes. os factos violentos mostram muitas vezeso relevo das técnicas estatais de identificaçãoe dos dramas politicamente encenadoscujos per-

não vêem nem -denunciam e arranjam bodes expiatórios (ver. por exemplo·,\Vaal. 1994, so-bre o genocíd io no Ruanda).

267