A estrategia cientifica segundo Poincaré e Einsten

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    Cincias

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    A Alberto Luiz da Rocha BarrosIn memoriam

    Confluncias

    ENRI POINCAR e Albert Einstein, apesar das significativas divergnciasde suas respectivas filosofias do conhecimento cientfico (o primeiroconciliava a seu modo elementos de empirismo e convencionalismo, en-

    quanto o segundo professava um realismo e um racionalismo crticos), tinhamem comum a convico (entre outras), de central importncia para o assunto queaqui nos ocupa, de que as idias cientficas, na elaborao das teorias fsicas ematemticas, so construes livres do pensamento. Neste sentido, entendiamque elas no so induzidas de maneira lgica e unvoca, necessria e compulsria,a partir dos dados da experincia, e alm disso que elas no esto inscritas numaestrutura inata ou a priori do pensamento. nesse espao de liberdade que entraa idia da criao no trabalho cientfico que conduz descoberta. Da maneiramais clara, Poincar e Einstein, ambos insistiram nesse aspecto que era, para eles,a caracterstica mais importante da atividade do conhecimento, e que se situavaefetivamente no centro de suas epistemologias.

    importante, de fato, apreender diretamente, na medida do possvel, asrelaes efetivas entre os problemas oriundos da filosofia do conhecimento e aatividade do conhecimento em si. O conhecimento cientfico no se reduz a seuscontedos seguros, a suas proposies e seus efeitos; compreende em suas di-menses o prprio trabalho do pensamento que o estabelece. Sob este aspecto, o

    testemunho de criadores cientficos excepcionais como Poincar e Einstein evi-dentemente insubstituvel. tanto mais significativo que ambos esses cientistastenham sido verdadeiros filsofos, de modo que sua feio espiritual os levava apr filosoficamente para si prprios questes de natureza filosfica (Paty,1993;[a]; [c]).

    No domnio do pensamento cientfico o tema da inveno, da criao,surgiu de fato diretamente relacionado a todas as outras questes filosficas postaspela cincia enquanto pensamento, atividade intelectual eminentemente racio-nal, que tem a sua sede, antes de qualquer comunicao ou juzo consensual, em

    A criao cientficasegundo Poincar e EinsteinM ICHEL P ATY

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    inteligncias singulares, subjetivas. Considera-se, em particular, que a atividade cria-dora do pensamento racional condicionada pela inteligibilidade dos objetos

    que so propostos sua compreenso e a seus julgamentos. A este respeito, no sepode deixar de remeter, ainda que brevemente, a Descartes e aos filsofos quedepois dele se preocuparam com as condies da possibilidade de um conhecimen-to racional, seja para critic-las, como Hume, seja para estabelec-las, como Kant.

    Contudo, a filosofia a dos filsofos e a dos cientistas (ousavants ) emgeral no se preocupou tanto com a dimenso criadora do pensamento cientfico:de um lado, provavelmente, graas a uma concepo de cincia que via esta lti-ma como as formas j acabadas, verdadeiras ou certas, e no como um traba-lho em constante reelaborao; mas tambm, sem dvida, devido aparente con-tradio entre o interesse por verdades objetivas e a atribuio de importncia ssubjetividades que so sua fonte (e que no fundo no deixam de ser sua sede).Evocaremos, ento, certas doutrinas filosficas anteriores ao perodo que nosinteressa, o de Poincar e Einstein. Por outro lado, paralelamente relativa indi-ferena filosfica por tudo o que concerne inveno e criao cientficas, cons-tata-se ao longo do sculo XIX, com os novos avanos dos conhecimentos cient-ficos, notadamente na matemtica e na fsica, o estabelecimento de condiesintelectuais propcias para a considerao desse problema.

    Tais apresentaes permitiro que vejamos como os pensamentos de Poincare Einstein sobre a criao cientfica se situam na confluncia dessas novas perspec-tivas (em suas lies sobre a natureza das proposies da cincia) com o pensa-mento crtico da filosofia, ainda que este apontasse para outros projetos. A agudaconscincia do sentido de suas prprias pesquisas lhes ter favorecido o olharreflexivo, levando-os a questionar o trabalho de seu prprio pensamento, fazen-do a juno, ao que parece ainda indita, entre a experincia criadora e a reflexosobre suas condies filosficas. Depois da apresentao dessa experincia tal comoeles prprios a puderam relatar, examinaremos como a relacionaram a suas res-pectivas concepes filosficas, testemunhando afinal em favor da inscrio racio-nal da inveno e da criao cientficas, e portanto em favor de seu pleno alcancefilosfico.

    Inveno e inteligibilidadeOs filsofos, e entre eles freqentemente aqueles que foram ao mesmo tempo

    pesquisadores cientficos (os cientistas-filsofos), interessavam-se sobretudo, apropsito da cincia, pela natureza desta sob a forma daquilo que determina a sua

    verdade e aponta o erro. Sendo criadores eles prprios, pareciam dar bem poucaateno a seus prprios atos de inveno ou descoberta enquanto atos de criao,e em geral no se consideravam como tais. Os problemas que os preocupavameram principalmente a compreenso e a inteligibilidade das proposies enuncia-das, bem como a sua justificao lgica e racional.

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    O prprio Descartes um bom testemunho do movimento desse pensa-mento filosfico, cioso de alcanar a justificativa das razes em busca de verdades,

    sem se preocupar o bastante com as circunstncias das descobertas e com as viaspelas quais o esprito chega a forjar as certezas e se deixa iluminar pela evidncia.Para ele, a razo deveria suspeitar da imaginao, e a doutrina do conhecimentoevitar que esta ltima tomasse a dianteira. Ainda assim, Descartes, mais que qual-quer outro, dava grande importncia intuio pois, a seu ver, era atravs delaque se produzia a iluminao da evidncia que constitua, para ele, o momento dacompreenso, prolongado pela reflexo que apela deduo e memria, e serelaciona evidncia pela constituio de certezas. Mas tratava-se de uma intui-o racional entendida antes de mais nada como uma funo sinttica do entendi-mento (Paty, 1997).

    Nas Regras para a direo do esprito , Descartes estabeleceu aquelas quepara ele deveriam ser as condies da inteligibilidade; elas incluam as condiesda inveno (que a seu ver eram sobretudo da ordem da descoberta), j que todacompreenso por parte de um sujeito , em certa medida, reinveno; assim, ele asremetia desde logo ao enunciado do mtodo (Descartes,1628). A ponto de sustera redao dasRegulae , deixando-as inacabadas, para expor quase dez anos depoisum Discurso do mtodo plenamente organizado(1). Com isso ele se voltou para aexperincia do conhecimento, buscando compreender a os fundamentos da cer-teza a que essas regras conduziam. Os objetos desse conhecimento, sempre porta-dores de elementos novos (para ns), eram considerados como j presentes em

    toda eternidade: ao descobrir,alcanamos a verdade , de essncia eterna e divina.Descartes, portanto, no negava a inveno como capacidade do intelecto,

    mas pretendia submet-la a critrios normativos, ao mtodo. Neste sentido,sua atitude com relao s suas prprias inovaes caracterstica. Se ele declaravaque as curvas mecnicas (ou transcendentes) no pertenciam suaGeometria (Descartes,1637b), livro que acompanhava oDiscurso do mtodo como sua ilus-trao, isso era devido definio por ele proposta das curvas geomtricas (oualgbricas), a saber, que poderiam ser engendradas por uma s transformaofinita e contnua de um ponto a outro a partir de uma linha reta ou de um crculo.Mas isto no o impediu de estudar as curvas mecnicas por exemplo, a ciclide(2) , dando mostras da maior inventividade, inclusive desenvolvendo reflexesantecipadoras de certos aspectos do clculo diferencial e integral.

    Na verdade, para ele no se tratava de descoberta, mas sobretudo deexperin- cia , no sentido de fazer a experincia, ou o exerccio, da razo. A descoberta propria-mente dita que ele mesmo reconheceu foi a do mtodo. O que a seu ver merecia aqualificao de descoberta ou de inveno era, pode-se dizer, da ordem do meta-cientfico, ou seja, do filosfico (tomando estes termos no seu sentido atual).E suailuminao no outono de1619, determinante de sua vocao, foi precisamente destaordem, transcendente ao generalizar pela filosofia as suas inovaes matemticas(3).

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    Se temos privilegiado Descartes, porque ele foi, entre os pensadores cls-sicos, aquele que primeiro se preocupou com a atividade do pensamento racional

    no mbito da singularidade de uma subjetividade (Paty,1997). Seria necessriomencionar em seguida as doutrinas que se dedicaram a descrever os processoscognitivos ou a estabelecer as suas condies, incluindo as impresses dos senti-dos e da sensibilidade na formao das idias, de Locke a Condillac, Berkeley,Diderot, dAlembert, Hume, Kant... e aos pensadores seguintes, do sculo XIX (de Ampre a Helmholtz, Mach, Pierce, W. James...), at os dois autores que oranos ocupam.

    Mas no a nossa inteno fazer uma histria das idias sobre a criaocientfica. Notemos apenas que os filsofos que se interessaram pelacriao emgeral se reportaram s atividades que provm diretamente daimaginao , ouseja, dasartes , em conformidade, afinal de contas, com a classificao tradicionaldas atividades mentais segundo as trs faculdades da alma: memria, razo,imaginao(4). verdade que Diderot, por exemplo, situava tambm a imagina-o entre as primeiras fontes do pensamento das cincias da natureza, mas aopreo de favorecer exclusivamente as cincias empricas, apoiando-se sobre o re-curso s analogias, que levavam induo baconiana, depreciando a matemtica ea fsica racional, que ele considerava um domnio acabado(5).

    Como regra geral, no sculo XIX as cincias eram consideradas em funode seus objetivos concebidos segundo suas relaes verdadeiras, o que suben-tende a idia de uma classificao natural (Ampre,1834: 4), e essa preocupa-o quase exclusiva relegava a um segundo plano, ou mesmo ocultava, a questodas vias pelas quais elas eram trazidas luz atravs do trabalho do pensamentodos cientistas. Os contedos cientficos importavam antes de mais nada, e a cin-cia era freqentemente concebida de modo normativo, conforme um esquemade pensamento ressaltado e sistematizado pela filosofia positivista (Comte,1830-1842). Interessando em particular aos contedos da matemtica e da fsica,subjacente idia da descoberta, estava anaturalidade da coisa descoberta , jpresente em potencial, mas ainda no identificada, que nos dada , ao termo deum processo de pensamento, e que sobretudo no realmenteinventada . Ou,caso fosse, no o seria seno a ttulo de pensamento ancilar de uma ordem que oultrapassava, e era esta a ordem que interessava filosofia.

    Ou ainda, uma vez que seus contedos de conhecimento, seussaberes , eramtidos como objetos de inveno de uma subjetividade, era preciso esforar-se talera o principal objetivo da cincia no sentido de eliminar esse coeficiente indi-

    vidual que se encontra em todo indivduo no ato de conhecimento, mesmo queisto signifique admitir que no final das contas sempre resta na verdade da cinciauma irredutvel dimenso humana (Rey,1911: 34).

    O interesse pelos processos mentais com relao s impresses dos sentidose pela descrio psicolgica das funes intelectuais aumentou consideravelmente

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    na segunda metade do sculo XIX, no bojo do desenvolvimento de pesquisassobre a fisiologia da percepo notadamente com Hermann von Helmholtz

    (1882-1895; 1921; 1977) , sobre a psicofisiologia das sensaes com ErnstMach (1986) , e o advento da psicologia, qual de bom grado se referem tantoos cientistas quanto os filsofos William James, Thodore Ribot(6), Henri Ber-gson, seu discpulo Edouard Le Roy etc. Essa circunstncia contribuiu tambm,inegavelmente, para favorecer a distenso epistemolgica entre o conceitual e oemprico, como se v, por exemplo, nas epistemologias dos prprios Helmholtz eMach. Favoreceu, da mesma forma, sobretudo pelo vis da psicologia, o interessepelos processos de inveno no pensamento comum e no pensamento cientfico.

    No entanto, o que mais atraa ateno eram os mecanismos do pensamentoconsiderados por si ss, em detrimento dos efeitos dessa inveno sobre o conhe-cimento. A maioria desses pensadores professava uma filosofia empirista oupragmatista, e, embora concebessem a existncia de uma inveno de formasar- tificiais no nosso conhecimento, estas para eles permaneciam secundrias comrelao prtica e ao. As teorias no eram mais que folhas provisrias darvore dos conhecimentos foi mais ou menos assim o que escreveu Ernst Mach,neste ponto preocupado sobretudo com a crtica dos conceitos indevidamenteerigidos em absolutos (Mach,1883; 1886; 1906 ).

    Quanto a William James(1907; 1909; 1912; 1917) , filsofo do pragmatismopuro, do empirismo radical da prtica, na expresso de Rey (1911: 79) , era porequvoco que o acusavam de pr a utilidade acima do conhecimento. Bergson,que justamente lhe atribua a inteno contrria, reconhecia em sua doutrina aoriginalidade de ver, numa verdade nova, uma inveno, ao contrrio dasoutras, que veriam a to somente uma descoberta(7). No que concerne aJames, essa concepo se relaciona em parte com uma concepo particular de

    verdade. Conforme sua doutrina, para retomar as palavras de Bergson (1934 in 1959: 1447), a verdade de ordem intelectual uma inveno humana que tem oefeito de utilizar a realidade, em vez de a ela nos introduzir. Com relao aonosso problema, essa idia de uma verdade que se constitui para frente, submeti-da s correntes da realidade, tende a esvazi-la de um sentido preciso numadada situao, de modo a faz-la perder, em particular, qualquer possibilidade deser caracterizada racionalmente.

    A filosofia de Bergson, no obstante a sua essncia inteiramente distinta e,alm disso, a sua insatisfao perante tal concepo de realidade, consonantecom o pragmatismo puro de James sob muitos aspectos. Ambos tm em comumparticularmente um antiintelectualismo, e as verdades que importam para elesso mais sentidas e vividas do que pensadas. A filosofia bergsoniana da conscin-cia, fundada na experincia interior, tem um papel importante na inveno, naintuio e na imaginao criadoras. Se Bergson (1934 in 1959: 1445) criticava aconcepo kantiana de uma verdade j dada na manifestao do real, ele via na

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    atividade mental criadora antes de mais nada um exemplo dessa crescentematerializao do imaterial que caracterstica da atividade vital, sendo portan-

    to um potencial da natureza em devir(8). Entretanto, talvez mais que os outros,apesar de sua minimizao das idias tericas, Bergson se atinha aos efeitos doesforo mental voluntrio sobre a formao e a organizao das idias. Retomare-mos adiante algumas de suas observaes, de acordo com aquilo que veremos emPoincar e Einstein.

    O filsofo Abel Rey, por sua vez, falava da inveno da cincia, em parti-cular da inveno matemtica, e da matemtica como invenes primordiais

    da razo terica, insistindosobre a distncia entre tama-nho potencial de possibilida-des, tamanha criao de rela-es virtuais e uma cincia doreal (Rey, 1911: 71-72 ). Defato, ele retomava as concep-es de Poincar sobre a ma-temtica como criao arbi-

    trria do esprito, (...) a mais impressionante manifestao de sua prpriafecundidade, que este ltimo inventou por ocasio da experincia (Rey,1911: 76). Apresentando a matemtica tal como a temos, enquanto concepoarbitrria do esprito, usada na experincia e assim desenvolvida na direo que

    conhecemos, segundo a concepo de Poincar, Rey pretendia sublinhar a dife-rena entre esta ltima e aquela dos pragmatistas: para Poincar, a cincia e arazo vm em primeiro lugar e ultrapassam de muito o campo da utilidade(9).

    Outros filsofos tambm deram lugar a estas dimenses, como mileMeyerson (1931), que se dedicou a penetrar o enigma do caminho do pensa-mento na atividade cientfica, bem como no pensamento comum. Contempor-neo de Einstein, pode-se dizer que Meyerson encerra o perodo aberto pela filo-sofia sobre a inveno das idias cientficas. Tambm a ele voltaremos adiante, emnossas concluses.

    O universo filosfico tinha assim aberto o caminho para a idia de umainveno das formas tericas, mas raramente concebendo que se poderia tratar ade um campo de investigao para a prpria filosofia. Viam-na sobretudo comouma dimenso ou uma circunstncia que deveria ser levada em conta, seja parainsistir sobre a sua fragilidade ou o seu carter relativo, seja para reforar as regrasda cientificidade, tendo esta perdido, por assim dizer, as suas bases naturais(10). assim que, na linhagem do positivismo e do pragmatismo, mas associados aologicismo, o empirismo e o positivismo lgicos que floresceram no sculo XX,bem como seus herdeiros, dissidentes ou no, tentaram esvaziar da filosofia ainveno e a criao cientficas como momentos irracionais, necessrios, mas

    ... ele retomava as concepesde Poincar sobre a matemtica comocriao arbitrria do esprito ...

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    incontrolveis e passageiros(11) . Outros construram ento para o conhecimen-to, sobre essa no mans land filosfica, doutrinas daa-racionalidade (12). Mas

    essa seria uma outra histria.

    O distanciamento dos objetos de pensamento

    No foi por acaso que a tomada de conscincia sobre a inveno na atividadecientfica s teve incio no sculo XIX (e bem mais para os seus finais): sem dvi-da, foram decisivos os acontecimentos que a partir de ento se deram na matem-tica e na fsica. Com efeito, foi a poca em que se afrouxou o lao at ento aper-tado entre a matemtica e a natureza, com a inveno das matemticas que pare-ciam contradizer a evidncia da experincia comum tais como as geometriasno-euclidianas ou ainda puramente abstratas ou formais.

    A fsica, a partir do mesmo perodo, tambm se desenvolveu atravs da ela-borao de teorias cada vez mais matematizadas, recorrendo a grandezas de ex-presso simblica abstrata maneira matemtica, cujo carter de construo tor-nava-se mais visvel do que nas formulaes anteriores. A constituio da fsicaterica nos seus diversos domnios (a tica, a eletricidade, o magnetismo, atermodinmica), pela sua matematizao analtica ao modo da fsica matemtica,de que a Mecnica analtica de Lagrange (1788) representava a mais perfeitaexpresso para a mecnica, deixava entrever com crescente evidncia a distnciaentre os domnios da experincia imediata e a abstrao da teoria formalizada. A

    mecnica de Hamilton retomava a de Lagrange sob uma roupagem terica econceitual bem diferente, na qual as grandezas no correspondiam mais a concei-tos fundados sobre noes comuns. Passou-se a admitir como princpio fsico

    fundamental uma propriedade aparentemente muito formal , como o princpiodo mnimo de ao na sua expresso variacional dada por Hamilton.

    Mesmo os dados fenomnicos mais importantes escapavam operao deconhecimento direta, demandando a constituio de abstraes intermedirias,conceitos ou grandezas inseparveis da matemtica usada para conceb-las, taiscomo as noes de campo, energia, potencial...

    Em termodinmica, se o primeiro princpio (a conservao da energia) ain-da estava conforme as concepes anteriores da fsica, fundadas sobre a mecnica,o segundo, formulado aproximadamente ao mesmo tempo, revelava a sua natu-reza claramente abstrata e interpretativa. Osegundo princpio da termodinmica ,a saber, o aumento da entropia com o tempo nos sistemas fechados exprimindoa irreversibilidade das transformaes apresentava-se sob uma forma afastada daintuio fsica imediata antes de sua traduo nos termos da mecnica estatstica(13). Da em diante j no se tratava de uma descrio direta dos fenmenos taiscomo a mecnica ainda os concebia. A entropia, com efeito, era uma funoconstruda, exprimindo uma propriedade estrutural entre as grandezas, difcil de

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    conceber simplesmente, demandando uma interpretao fsica que no pareciadireta nem evidente como era o caso, pensava-se, de outros conceitos e princpios

    da fsica.Mas, tambm estes ltimos eram ento questionados, assim como os da

    matemtica, mesmo os mais geralmente aceitos, como por exemplo, na fsica, oespao e a geometria, o tempo e a simultaneidade, ou os princpios da mecnicanewtoniana. Notava-se que eles eram modificveis e passveis de evoluo: j noeram concebidos como absolutos e naturais, percebendo-se o seu carter de cons-trues do pensamento. Na matemtica, evocaremos ainda a noo de conjunto,que parecia muito abstrata, e que se revelaria de considervel importncia: tam-bm o foi para o pensamento matemtico e epistemolgico de Poincar.

    Desde ento se ps o problema da natureza desses conceitos e de suas pro-posies e princpios, de seu estatuto. Para uns, eles se reduziam a proposiesempricas. Para outros, tratava-se de proposies de carter racional, mas que jno eram a priori e imutveis. Elas eram racionais enquanto propostas pelo pen-samento para estruturar os dados da experincia, mas sempre seria possvelreformul-las. Quanto ao seu estatuto propriamente dito, restava optar se eramcriaes do pensamento a partir ou no dos dados primrios, hipteses ou seleode convenes.

    No era preciso muito mais para se pensar que, no fundo, todos os elemen-tos tericos, inclusive os que pareciam mais naturais, fossem, e assim eram, na

    verdade desde sempre, construdos mentalmente sem que tivessem sido jamaisdados em correspondncia direta com os objetos e os fenmenos do mundofsico. Pense-se no tempo e na durao, no espao contnuo, no ponto materialsem dimenso, e em outros conceitos do gnero, expressos de modo quantitativoexato por grandezas matemticas adequadas. Tais abstraes so elaboraes dopensamento, postas em correspondncia com os elementos supostos do mundoreal, e justificadas pelo xito dessa relao. Esta correspondncia, porm, no dizrespeito aos elementos isolados, tericos por um lado, factuais por outro, mas aossistemas que formam esses elementos atravs de suas relaes mtuas, a saber,para os elementos conceituais, ateoria prpria, e, para os elementos factuais, o

    dado da experincia (este tambm global) apropriado a essa relao. Assim, as teorias passam a ser construdas, inventadas e postas por uma

    deciso do pensamento. Tal deciso, decerto, orientada, no caso da fsica, parauma representao descritiva e explicativa dos fenmenos da natureza e, no casoda matemtica, para a consistncia interna de seus contedos prprios. Em outraspalavras, a construo, que resulta de uma inveno, , nos dois casos, submetidaa restries. Mas nem por isso deixa de ser uma inveno, uma criao.

    Apesar de a abertura em direo a tais idias, em razo de evidncias adqui-ridas, esse campo de reflexo tem sido muito pouco estudado pela filosofia no

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    curso do sculo que agora termina, predominantemente inspirada, no que dizrespeito ao conhecimento, no positivismo e no empirismo lgicos. Ainda que

    admitindo a existncia do momento de inveno, de criao, no processo deelaborao cientfica, consideravam-no como algo que escapa ao racional e im-porta somente para a psicologia (ou, mais tarde, para a sociologia). A distinoentre um contexto de descoberta e um contexto de justificao, este consi-derado como o nico digno de ateno por parte da filosofia, permaneceu larga-mente aceita at bem recentemente. Mesmo Imre Lakatos considerava necessrioreconstruir racionalmente os contedos cientficos depois de sua descoberta, oque significava consider-los como muito pouco racionais no seu surgimento(Lakatos, 1978). Assim, a inveno cientfica escapava totalmente filosofia doconhecimento (14).

    No era esta a posio de Poincar, ainda que os positivistas lgicos o con-siderassem um de seus principais inspiradores, nem a de Einstein, que sempreinsistiu no aspecto de criao livre (no sentido lgico) pelo pensamento humanode proposies e conceitos cientficos. Nossos dois cientistas-filsofos, neste sen-tido, so excees. Em todo caso, foi no contexto indicado de tomada de conscin-cia epistemolgica da distncia entre as proposies tericas e os dados imedia-tos que eles desenvolveram suas prprias concepes sobre a inveno e a cria-o cientficas.

    Poincar e a inveno das funes fuchsianas

    No muito freqente que os cientistas, em seu trabalho de pesquisa, mes-mo quando se preocupam com o significado de idias produzidas por seu pensa-mento, voltem atrs para repassar o processo de inveno e o momento criadorque eles experimentaram, tentando descrev-los ou deles prestar contas. Em ge-ral, preferem explicar as suas descobertas reorganizando-as de outra maneira, quelhes parea racionalmente justificada. Substituem o andamento real de seu pen-samento e suas experincias por outro que posteriormente lhes parece mais lgi-co e oportuno, observou o fsico Edmond Bouty, e, concluindo: J fazem damatria de ensinamento (Bouty, 1920: 56). O que conta, para a maioria, oedifcio ulteriormente reestruturado que resulta de obras provisrias.

    Mesmo Poincar, que em contraste com essa posio afirmava que o cerneda sua filosofia do conhecimento era o tema da inveno cientfica (Poincar,1913), raramente se dedicou ao exerccio de tentar repassar a gnese de suasidias. Ele o fez pelo menos a propsito de uma de suas maiores descobertasmatemticas, a das funes fuchsianas; a descrio que ele deixou a respeito setornou clebre. verdade que ele a apresentou em conferncia na Sociedade dePsicologia de Paris a psicologia, juntamente com a sociologia, ocupavam entoo proscnio, como cincias humanas jovens e promissoras, e ainda no destacadasda filosofia. J eram, no fundo, a filosofia e a psicologia cognitivas...

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    Poincar procurou, assim, sob o ttulo A inveno matemtica, analisar asrie de pensamentos que o conduziu a imaginar esses novos seres matemticos

    (15). Ainda que em parte psicolgica, a descrio no estranha pesquisa racio-nal de uma abordagem filosfica. Tentaremos, a partir desse relato, seguir passo apasso a racionalidade na inveno, ou a criao cientfica, esclarecendo-a em se-guida atravs das concepes epistemolgicas que Poincar exps alhures.

    O relato de Poincar apresenta uma srie de vrias fases de um trabalhomental antes consciente, depois inconsciente, posteriormente novamente conscien-te e de novo inconsciente etc. Ressaltemos desde j que, mesmo nos momentosde trabalho inconsciente do esprito, esse trabalho preparado por uma atividaderacional anterior.

    O processo toma o seu ponto de partida num problema que Poincar colo-cou inicialmente, a partir da leitura dos trabalhos de Lazarus Fuchs, que lhe forarecomendada por seu professor Charles Hermite, assim como na questo postaem concurso em 1878 pela Academia de Cincias de Paris, sobre a teoria dasequaes diferenciais lineares de uma varivel(16). Poincar pensava a princpioque uma certa classe de funes, como solues de equaes diferenciais lineares,no poderia existir: essa formulao do problema determinou o primeiro mo-mento de um trabalho voluntrio e consciente, mas que no parecia chegar a umaconcluso: Desde h quinze dias, eu procurava demonstrar que no poderiahaver qualquer funo anloga que depois eu viria a chamar de funes fuchsianas.(...) Eu experimentava um grande nmero de combinaes e no chegava a ne-nhum resultado (Poincar, 1908c in 1918: 50).

    Depois dessa fase de trabalho consciente e intensa reflexo, sobreveio ou-tra, correspondendo a um estado de conscincia subliminar, em seus prpriostermos, depois de uma noite de insnia consecutiva ingesto de caf preto... A descrio torna-se ento psicolgica, mas nem por isso deixa de remeter ao movi-mento do pensamento em geral: este se ocupava de escolher as combinaes deidias, e acabou evidenciando a existncia de uma classe de funes fuchsianas,derivadas da srie geomtrica. Poincar as remeteu em seguida a outras classesde funes que formam as atualmente chamadas funes automrficas.

    Poincar indica ter feito, depois da fase do estado no-consciente de seupensamento, a experincia de um tipo dedesdobramento , como se o seueu , cons-ciente, mas inativo, observasse o seu eu inconsciente (coisa rara, no dizer deHadamard (1945) , que viria a comentar esse excepcional testemunho). Assim, ele

    via seu prprio eu como a sede de uma atividade viva e desordenada, as idias(cuja natureza no especificada no relato) surgindo em profuso e se contra-pondo umas s outras. Eu as sentia como que colidindo entre si, conta ele, atque duas delas se engancharam, por assim dizer, formando uma combinao est-

    vel (Poincar,1908c, 1918: 62-63). Na manh seguinte, tinha estabelecido aexistncia das funes fuchsianas derivadas da srie hipergeomtrica, que ele logo

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    descreveria do seguinte modo: A funo fuchsiana para a geometria deLobatchewski o que a funo duplamente peridica para a de Euclides (Poincar,

    1890b). Uma segunda fase, longa, de trabalho consciente, levou-o em seguida descoberta de uma outra classe de funes transcendentes, as sries e funestetafuchsianas, generalizando uma propriedade particular das funes elpticas.

    Seguiu-se a esse perodo uma nova experincia de descoberta imediata efortuita, ligada a um trabalho inconsciente. Durante uma excurso geolgica nocaminho de Caen a Coutances, quando pensava em coisa completamente diversa,ao subir no estribo de um nibus, como relatou, ocorreu-me a idia, sem queaparentemente nada em meus pensamentos anteriores me preparasse para isso, deque as transformaes de que eu me tinha utilizado para definir as funesfuchsianas eram idnticas s da geometria no-euclidiana (Poincar,1908c, 1918:51-52). Foi uma certeza imediata, que no atrapalhou a conversao logo reto-mada e que ele pde mais tarde verificar saciedade. Um terceiro perodo detrabalho sobre tema bem diferente (um problema de aritmtica), sem maioresresultados, foi mais uma vez seguido de uma iluminao sbita, com a certeza deque as transformaes aritmticas das formas quadrticas ternrias indefinidaseram idnticas s da geometria no-euclidiana. Ele concebeu assim uma genera-lizao de funes fuchsianas para alm da srie hipergeomtrica. Uma ltimadificuldade ento o deteve, tambm resolvida no termo de um processo inconsci-ente da mesma natureza que os precedentes (Poincar,1908c, 1918: 51-52).

    Tal como relatado, o trabalho do pensamento nas fases inconscientessemiconscientes fica bastante obscuro, o que na verdade nada tem de surpreen-dente. As idias que se engancharam so proposies novas, sem equivalenteanterior: elas ganham aqui, como em outros relatos e anlises de experincias decompreenso ou criao(17), a forma de smbolos ou signos, como diria maistarde Albert Einstein, imagens mentais abstratas servindo como elementos dopensamento que joga ao combin-las, num jogo que pretende ser anlogo acertas conexes lgicas que so objeto de pesquisa (entre os conceitos que ossignos representam) (Einstein,1945).

    Antes de retomar o relato de Poincar, destacamos que as novas funes

    transcendentes, automrficas, fornecem as solues para numerosas equaesdiferenciais lineares algbricas, ou seja, com coeficientes racionais. A construodessas funes se deu por extenso de propriedades das funes obtidas a partirda propriedade das equaes correspondentes, de respeitar certos grupos de trans-formaes.

    Completemos agora esse relato de uma inveno matemtica pelo examede anlises epistemolgicas no qual Poincar apresentou as proposies da mate-mtica (e tambm da fsica), que esclarecem mais profundamente os caminhosda racionalidade na criao cientfica que ora investigamos. Mas, antes, devemosnos ater a uma outra experincia de inveno, desta vez na fsica, acompanhan-

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    do o processo atravs do qual Einstein foi levado a estabelecer a teoria da relativi-dade, que apoiaremos tambm, depois, com suas anlises epistemolgicas. Assim

    cruzando os fios desse paralelo, poderemos apreender melhor o parentescoentre essas experincias intelectuais e tambm entre suas concepes correspon-dentes sobre elementos dos atos de criao racional.

    Einstein e a inveno das teorias da relatividade

    Einstein formulou sua teoria da relatividade em dois momento, quecorrespondem a duas formas: a teoria da relatividade restrita, alcanada em1905(mas ruminada ao longo de quase dez anos); e a teoria da relatividade geral,cuja primeira idia lhe ocorreu em1907, e que foi apresentada em sua formaacabada em1915 (18) . Essas duas etapas de sua teoria, que correspondem de fatoa duas teorias distintas, ainda que a segunda possa ser vista como um prolonga-mento ou uma radicalizao da primeira, constitueminvenes cientficas no ple-no sentido da expresso. No pretendemos aqui analis-las completamente, en-quanto tais, dando conta do processo de sua gnese em toda a sua complexidade:seria tarefa difcil, qui impossvel, se a pretendssemos exaustiva, e os aspectospsicolgicos, em particular, permanecero inacessveis. Limitar-nos-emos a inves-tigar a os elementos significativos da racionalidade prpria a esse trabalho dopensamento, bem como o salto lgico que constitui a criao cientfica.

    A criao, mesmo quando se d no domnio cientfico, transcende a

    racionalidade linear tanto quanto a lgica, e mesmo somente a partir dos pontosde vista filosfico ou epistemolgico, no devemos nos ater a estas da maneiracomo as poderamos reconstituir depois com todos os sedimentos de interpre-taes e reestruturaes tericas. O aporte do trabalho de Einstein nos dois casosera, tal como os problemas que ele estudava, de natureza racional, como o foitambm a sua resposta particular (e o mesmo vale, em geral, para as invenescientficas de outros pesquisadores). Toda a questo est em saber se o caminhoda criao que vai da formulao do problema at a sua soluo tambm dessanatureza, e at que ponto, bem como se possvel seguir o fio dessa racionalidade.

    No que diz respeito gnese da relatividade restrita, da qual sabemos ter

    sido elaborada a partir de dificuldades da teoria eletromagntica, ainda que seuaporte tenha mais tarde ultrapassado essa teoria em particular, o prprio Einsteinapresentou diversas vezes preciosas indicaes, no exaustivas, mas coerentes en-tre si. Em suas Notas autobiogrficas, redigidas em1946, ele indica como napoca em que [ele] era estudante, o tema que mais [o] fascinava era sem dvida ateoria de Maxwell(19). Desde seu segundo ano no Polytechnicum de Zurique,ele reencontr[ou] o problema da luz, do ter e do movimento da Terra, pro-blema que nunca mais o abandonaria. Tambm se sabe, atravs de outra reminis-cncia, mais antiga e de difuso restrita (trata-se de uma conferncia pronunciadaem1922, em Kioto, no curso de sua viagem ao Japo, e s publicada em ingls h

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    bem pouco tempo), como lhe ocorreu a idia da teoria da relatividade. Foi hcerca de dezessete anos, declarou ele em1922, que a idia de tentar desenvol-

    ver o princpio da relatividade me ocorreu ao esprito (Eistein,1922). Essa idiaoriginou-se no problema da tica dos corpos em movimento. Tratava-se doproblema do ter e da possibilidade de demonstrar o movimento da Terra comrelao a este.

    Dispomos, alm disso, de alguns raros testemunhos contemporneos diretos,como cartas a amigos guardadas ou redescobertas, que confirmam essa preocu-pao: podemos acompanhar nessa correspondncia a partir de setembro de1899, a Mileva Maric, sua futura esposa, depois em1901 a seu colega MarcelGrossmann, em seguida a Michele Besso, o amigo doBureau des brevets ointeresse constante de Einstein pelos problemas que o conduziram teoria darelatividade restrita em1905 (20) . Aludindo mais tarde a esse perodo, ele ressal-taria a convico que tinha na poca de que, em face dos problemas daeletrodinmica, somente a descoberta de um princpio formal para o movimen-to, a exemplo da termodinmica, poderia conduzir a resultados seguros(Einstein, 1946, grifo meu).

    Tambm sabemos que um fenmeno fsico especfico tem um lugar estrat-gico na reflexo e no encaminhamento das idias de Einstein: O fenmeno dainduo eletromagntica me permite formular o postulado de um princpio derelatividade (restrita) (Einstein, 1946, grifo meu). A importncia desse fenme-no em seu pensamento confirmada por outros textos (21): ele constitui umaespcie de arqutipo da relao entre os fenmenos eletromagnticos e a relativi-dade dos movimentos. Em resumo, o campo magntico e o campo eltrico exer-cem um sobre o outro uma ao recproca cujo efeito resultante sempre omesmo, no importando qual dos dois posto em movimento e qual permaneceem repouso. No entanto, observou Einstein, a teoria eletromagntica ento dis-ponvel a de Maxwell e Lorenz explicava o surgimento de uma corrente nocircuito eletromagntico fechado por dois processos diferentes segundo cada umdos casos: o ter em repouso absoluto, lugar e apoio suposto desses campos,introduzia de fato uma assimetria na natureza dos fenmenos (induo magnticanum caso, fora eletromotriz no outro).

    A idia de que estivessem em jogo dois casos essencialmente distintos erapara mim insuportvel, escreveu Einstein(1946): no poderia ser seno umadiferena de pontos de vista, e no uma diferena real. A seus olhos, a teoriatratava de fenmenos fsicos reais , e deveria partir de um ponto de vista particularsobre eles. Sua formulao do problema terico estava, portanto, orientada porum programa de objetividade que, num certo sentido, sobredeterminava o seupensamento fsico em relao a uma simples preocupao com os dados empricose as equaes (quer dizer, com aquilo que hoje freqentemente chamado deuma modelizao ). Mas nem por isso ela deixava de pertencer ao campo da

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    racionalidade. O confronto entre a exigncia metaterica (que, de fato, entranhaa sua concepo mesma da teoria) e o estado de coisas encontrado fazia com que

    ele assim explicitasse duas idias tericas correlatas e expusesse o seu carter fun-damental: o de um princpio de relatividade estendido da mecnica aoeletromagnetismo, e o de umainvariabilidade das leis dos movimentos relativos.No se nota aqui nada alm de uma linha de raciocnio conscientemente percor-rida, que estabelece as condies de uma formulao particular original dasdificuldades da teoria eletromagntica(22): a saber, em final de contas, o con-fronto entre duas proposies fsicas de cunho terico tomadas como princpios:o princpio da relatividade e o da constncia da velocidade da luz (expresso, paraEinstein, daquilo que a teoria eletromagntica de Maxwell tem de mais funda-mental).

    Do confronto das duas proposies surgiu a soluo, que consiste em refor-mar o espao e o tempo. O fio de uma racionalidade direta j no parece suficien-te, aqui, para guiar sozinho o movimento do pensamento: adificuldade era defato um obstculo real, que demandava, para que se seguisse adiante, um verda-deiro salto conceitual. Einstein nada mais nos disse a esse respeito, e sem dvidano teria sabido reproduzir exatamente a seqncia de reflexes que acompa-nhou a tomada de conscincia da dificuldade. No conhecemos seno o momen-to da sada:o espao e o tempo , que servem para exprimir os fenmenos fsicos e osmovimentos dos corpos, deviam ser concebidos como grandezas plenamente fsi- cas , portanto submetidas elas mesmas aos dois princpios , o que deveria conduzir

    mudana da sua definio.Como a reflexo de Einstein passou do enunciado da dificuldade a uma tal

    soluo, que corresponde, de fato, inverso do problema? Deixando de consi-derar os dois princpios como irreconciliveis (a velocidade da luz, enquanto es-tremecimento do ter, no poderia ser a mesma em todos os referenciais de inr-cia, o que contrariava o princpio da relatividade), ele os admitiu como funda-mentais e reconstruiu sobre eles toda a fsica. Ou melhor, toda a teoria do movi-mento enquanto tal, ou seja, toda a cinemtica, e as modificaes da fsica propria-mente dita (pois no se tratava nesse momento de uma reconstruo, mas de umajuste) viriam em seguida.

    que os dois princpios irreconciliveis no estavam sozinhos, mas consti-tuam um complexo conceitual com as propriedades que os acompanhavam. Oobstculo que se erguia perante o pensamento pode ser visto como um n deconceitos imbricados, no qual nada permite primeira vista a identificao dos fiosque possibilitam a resoluo do novelo embaraado. Somente um tipo de apreensosinttica imediata, mais intuitiva do que analtica, deu a ver, de sbito, depois de

    vrias semanas de esforos infrutferos, uma via de sada, os fios a serem puxados.

    Entre as propriedades que sustentavam os dois princpios, uma saltou vista, proposio implcita que os estreitava. Einstein a indica em suas retrospec-

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    tivas: era a regra de adio galileana das velocidades. A partir da, no havia maisapenas duas, mas trs proposies que, tomadas em conjunto, eram irreconcili-

    veis. Tal foi o fio que permitiu o desfecho: se fosse suprimida a regra das velocida-des, os dois princpios poderiam ser conciliados, mediante uma outra regra decomposio a ser buscada. Era preciso ter a idia mencionada acima da inversode perspectiva terica, e tambm pensar no espao e no tempo como grandezasfsicas, contrariamente a suas definies absolutas admitidas por Newton. Eis atoda uma rede de reflexes, incluindo a crtica dos conceitos fsicos (e a influn-cia, entre outras, da anlise de Mach), que deve ter tido um papel relevante, pormeio de um apelo sinttico da intuio. No trabalho terico sobre essas grande-zas, uma vez ultrapassado o obstculo, o lugar ocupado pela questo da simulta-neidade e pela crtica de seu carter absoluto revelador da complexidade dessasnoes em conjunto, ligando-se alm disso tomada de conscincia da impossi-bilidade de aes instantneas distncia.

    Podemos identificar com bastante preciso o que foi, em Einstein, o mo-mento da inveno de sua soluo (soluo da dificuldade identificada), que de-terminou sua descoberta da teoria da relatividade. Esta comporta, a partir da or-denao das relaes entre os conceitos fsicos, e em primeiro lugar entre os espa-os e os tempos, uma parte dededuo (as equaes de transformao que fazema passagem de um referencial de inrcia a outro), depois do momento deintuio sinttica que abriu o caminho, e a reconstruo das grandezas no percurso dessecaminho a partir de ento balizado.

    Mas onde se situa oato propriamente criador ? Bem se nota que ele caracte-riza todo o movimento do pensamento , desde a prpria fixao de um alvo para si,pela escolha de suas prprias razes, atravs de uma formulao dos problemas condicionada por uma certa exigncia deinteligibilidade , depois a identificao das dificuldades a superar e, em seguida, a formulao de um princpio de uma soluo , at as modalidades do trabalho mais comum (no que ele tem de essencial-mente demonstrativo e dedutivo) de estabelecimento das relaes de grandezasque so o corpo da teoria. Esse trabalho de criao utiliza o raciocnio (que noencerra apenas deduo, mas tambm construtivo ao constituir os objetos) tan-to quanto a intuio , termo pelo qual designamos aqui uma percepo (intelec-tual) sinttica de um complexo de conceitos. Acrescentemos ainda que oracioc- nio , mais explcito, e aintuio , concebida neste sentido, no so dois modos depensamento em oposio, j que na escolha de seus caminhos o raciocnio freqentemente guiado pela intuio (o que evidente no caso em estudo).

    Pode-se seguir de maneira semelhante a gnese, no pensamento de Einstein,da teoria da relatividade geral como extenso do princpio da relatividade e gene-ralizao da teoria da relatividade restrita a quaisquer movimentos. A constitui-o de tal teoria tambm comporta diversas fases, que podemos retraar maisfacilmente que no caso anterior. Cada uma delas foi pontuada por publicaes

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    importantes, e as reflexes e as observaes do autor que acompanhavam seuandamento ou dele faziam a retrospectiva, em nmero bem maior, esclarecem

    certos aspectos caractersticos de seu trabalho, em particular as suas intenesprogramticas.

    Mas tampouco a isto significaria que uma reconstituio completa seja pos-svel. Se um fio de racionalidade clara corre ao longo do trabalho de elaboraodessa teoria de um novo gnero (uma teoria das invarincias conducente a umaespcie de geometria da gravitao), ele se perde em diversas retomadas nos nscomplexos que somente uma intuio de gnio e a aquisio de uma habilidadeno manejo do formalismo matemtico poderiam resolver. A criao, talvez aquimais do que em qualquer outro caso, torna-se manifesta, e Einstein tinha plenaconscincia desse aspecto.

    A conscincia desse salto explcito do pensamento criador para edificar, doincio at o fim (ou quase isso) uma teoria fsica que parecia ento radicalmentenova foi fundamental para seu pensamento fsico e epistemolgico. Esta conscin-cia radicalizou a sua concepo da natureza do trabalho terico e reorientou emparte a sua maneira de abordar os problemas fsicos, modificando sua concepodo papel da matemtica. Este exprimia a partir de ento melhor que tudo, a seu ver,o salto criador necessrio representao terica da realidade fsica. na matem-tica que reside o princpio criador chegou ele a escrever, a esse propsito (Einstein,1933). No entanto, esta fase, cujo sentido no nos deve iludir (o trabalho mate-mtico permite realizar umademanda fsica) (Paty,1993: captulo5), foi precedi-da por outras, em que a inteligncia criadora se apoiava, mais classicamente, comoa anterior, sobre um pensamento dos fenmenos, de seus princpios e conceitos.

    Na origem da teoria da relatividade geral, encontravam-se duas considera-es de natureza conceitual, ambas ligadas com uma crtica da inrcia, proprieda-de fundamental dos corpos materiais e de seu movimento. A primeira concernia natureza dos referenciais de inrcia , animados por movimentos retilneos e uni-formes uns em relao aos outros, aos quais apenas se aplicava o princpio derelatividade da primeira teoria (relatividade restrita aos movimentos inerciais). A escolha desse tipo de movimento arbitrria, observou Einstein, porque ns

    que escolhemos os movimentos inerciais dentre todos aqueles que existem nanatureza. Reencontra-se aqui a exigncia deobjetividade para as teorias: com essadiferena frente anterior (a induo eletromagntica no caso da relatividaderestrita), sem o apoio de qualquer evidncia dada pelos fenmenos. Para Einstein,ela no deixava de corresponder a uma exigncia fundamental, filosfica , sobre anatureza e sua representao. Seguia-se da a necessidade de estender o princpiode relatividade a quaisquer movimentos, superando o privilgio concedido aosmovimentos inerciais.

    A outra considerao, formulada ao mesmo tempo que a primeira, tratavado conceito de massa inercial , que caracteriza, de fato, tal como a relatividade

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    restrita o estabelecia, no somente os corpos, mas tambm as trocas de energia:apesar de o lao que estabelecia entre a energia e a inrcia, a teoria da relatividade

    restrita se calava acerca da relao entre a inrcia e o peso. O efeito dessequestionamento foi a formulao do princpio da igualdade da massa inercial e damassa gravitacional (o princpio de equivalncia).

    Na gnese das idias de Einstein, esta segunda razo parece ter sido a quemais suscitou a sua reflexo, fazendo com que ele tomasse conscincia do carterimperativo da primeira (todos os fenmenos podiam ser tratados no quadro darelatividade restrita, exceto a gravitao, devido sua ligao com os movimentosacelerados). Ela se traduzia para ele numa experincia de pensamento(Gedenkenexperiment ), que eleprprio qualificou mais tardecomo o pensamentomais fe-liz da [sua] vida, resumido naseguinte frase: Se algum cainum movimento de queda li-

    vre, ele no sente o prpriopeso (23). Isso equivale atranscrever a igualdade (a iden-tidade) da massa inercial e damassa gravitacional numa equivalncia entre um campo de gravidade, ou degravitao, homogneo, e um movimento uniformemente acelerado. Einstein

    assim se dava conta de que no se tratava tanto de incorporar o campo de gravitao teoria da relatividade (restrita), mas sobretudo de utiliz-lo como meio de ultra-passar a covarincia privilegiada dos movimentos inerciais, generalizando-a a to-dos os tipos de movimentos. Ele esperava que tal generalizao lhe fornecessede um s golpe a soluo do problema da gravitao (Einstein,1946). A essn-cia da teoria da relatividade geral se encontrava, portanto, nesse pensamento, e oartigo de 1907 esboava, em concluso ao que fora exposto da teoria da relativi-dade restrita, o programa de sua pesquisa nessa direo.

    possvel seguir quase que passo a passo seus esforos para realizar esseprojeto at a instaurao da teoria da relatividade geral no final do ano de1915(24). Mencionemos aqui apenas, ainda que no o possamos detalhar, o primeiromomento matemtico da inveno, que data de1912: Einstein percebia entoa insuficincia do espao euclidiano e a necessidade de uma formalizao mate-mtica do problema da covarincia geral sobre o modo de espao-tempo(relativista) de Minkowski, estendido com a ajuda do clculo tensorial absolutode Ricci e Levi-Civitta (Paty,1993: captulo 5). Era-lhe agora necessrio criarpela matemtica, chegando s equaes que em todos os pontos do espao-tempo apresentavam a mtrica no-euclidiana em funo do campo de gravitaonesse ponto.

    ... a essncia da teoriada relatividade geral se encontrava,

    portanto, nesse pensamento ...

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    Induo natural ou criao livre?Papel da intuio

    Pode-se dizer, num certo sentido, que Einstein descobriu, atravs de suasexperincias com as geometrias no-euclidianas para a relatividade geral, aquiloque Poincar tinha exprimido a propsito dasanalogias matemticas e da livre inveno (25): contudo, muito raramente se levou em considerao o lao entreessas duas idias, em sua natureza fundamental, naquilo que concerne fsica. A concepo empirista de uma induo concebida como necessidade lgica a partirdos fenmenos ainda predominava na maioria dos fsicos (Pierre Duhem e algunsoutros eram raras excees). Mesmo Poincar, que criticava o empirismo na ma-temtica bem como o apriorismo, tinha a respeito da fsica uma atitude menosradical, mais empirista em sua prtica assim como em suas concepes (Paty,1996a;[c]). De todo modo, a distncia que ele via entre o domnio da natureza e suasformas tericas (escolhidas por conveno) lhe permitia apoiar sobre estas todasas possibilidades da inveno matemtica. Ele pensava, por exemplo, naeletrodinmica relativista, em termos de invariantes e de grupos de transforma-es, e foi alm disso o primeiro a praticar esse mtodo(26).

    Devemos agora, portanto, retornar s concepes epistemolgicas e filosfi-cas de Poincar e Einstein, que se relacionam aos elementos destacados na evocaode suas experincias criadoras de formas racionais, de conhecimentos cientficos.

    A intuio em Poincar No retomaremos aqui as

    anlises de Poincar, a partir dagnese e da natureza da geo-metria, assim como dos prin-cpios, generalizados e trans-formados de proposies factuaisem enunciados normativos, queele concluiu com a crtica aoempirismo e ao apriorismokantiano, bem como com aafirmao do seu convencio-nalismo (p. ex. Poincar,1902).Insistiremos sobretudo na suaconcepo da intuio , noocentral da sua filosofia doconhecimento.

    Henri Poincar (1854-1912)

    R e p r o

    d u o

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    Para ele, a intuio necessria a todo trabalho criador, em qualquer cin-cia. Ela se apresenta, certamente, sob formas as mais variadas, que vo desde o

    apelo aos sentidos e imaginao, a induo a partir dos fatos, at por fim ainduo matemtica ligada intuio do nmero puro (Poincar, 1900) sen-do esta ltima prxima das intuies kantianasa priori . Mas ele acrescenta umcomplemento indispensvel lgica que, por si s, no basta, nem para o ensino,nem para o trabalho de pesquisa: til para que o estudante aprenda a amar amatemtica, a intuio(...) o ainda mais para o cientista criador. Pois elaque faz ver o alvo de longe, que permite a viso de conjunto sem a qual noexistiriainveno (Poincar, 1900).

    Devemos evocar aqui o que Poincar denomina analogias matemticas,que exprimem as relaes verdadeiras, as relaes de estrutura, na profundidadedos fatos matemticos ou fsicos; elas justificam e permitem a passagem, por umaextenso criadora, do particular ao geral. No que diz respeito fsica, a extensodos princpios permite atingir plenamente a fsica terica e matemtica(27). Todoo ofcio do matemtico ou do fsico consiste em saber descobrir as analogias

    verdadeiras, profundas, que os olhos no vem e que a razo adivinha, graas aoesprito matemtico, que desdenha da matria para se ater apenas forma pura.

    A analogia neste sentido inseparvel do movimento do pensamento que escapa simples comparao e induo empirista, para inventar livremente.

    Nessa inveno, para Poincar, aintuio que detm o papel principal,tanto na matemtica quanto na fsica: Inventar discernir, escolher, e aintuio de ordem matemtica que permite adivinhar as harmonias e as relaesocultas (Poincar,1908c, 1918: 47-48). Mas, no escolher seno num nicosentido em particular, pois as combinaes estreis no se fixaro no esprito domatemtico criador, que se ater a construir aquelas que forem teis, em minorianfima com relao a todas as combinaes possveis: diramos, talvez maisexatamente, que inventar ver. E ver nos remete intuio, que deve ser objetode formao, exerccio, para atingir um nvel superior s intuies diretamentesensveis. O grau elevado de desenvolvimento dessa intuio permite a capacida-de de inventar e de ser criador.

    Poincar enfatizava, entre os matemticos, o esprito de intuio, poroposio ao esprito de anlise. Em larga medida, para ele, aintuio se opunha lgica , e sabido que ele se sentia mais prximo da primeira (Poincar,1889).

    A primeira funo do ensino de matemtica era, a seu ver, desenvolver essa facul-dade. Isso porque o gemetra puro deve possuir a arte de escolher entre todas ascombinaes possveis dos termos propostos razo, e essa arte dada pelaintuio, no pela lgica: atravs da lgica que se faz demonstraes, mas atravs da intuio que se faz invenes. Sem esta ltima, acrescenta ele, ogemetra seria como um escritor que dominaria totalmente a gramtica masno teria idias. Mas a intuio tambm se impe ao se relacionar o mundo

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    matemtico com o mundo real, pois s ele pode transpor o abismo que separa osmbolo da realidade.

    Assim, no mesmo texto, de1889, A lgica e a intuio na cincia matem-tica e no ensino, em que este ope o esprito de anlise e oesprito de intuio duas tendncias daquilo que poderamos chamar de estilo dos matemticos Poincar admite que os matemticos que tm e louvam a preferncia poresprito de anlise e raciocnio lgico tambm deveriam desenvolver algum tipode intuio. que, para ele, mesmo na Anlise pura, se s a lgica (...) pode dara certeza [e] o instrumento da demonstrao, ainda a intuio [que] oinstrumento da inveno.

    Essa intuio pura, dirigida para as formas, relaciona-se intuio do

    nmero puro, por oposio a uma intuio mais sensvel. ela que permite queo analista sinta o princpio de unidade interna das entidades abstratas nas quaisse baseia o pensamento, segundo a funo de percepo sinttica atribuda demaneira geral intuio. Citando o exemplo do matemtico Charles Hermite,notrio analista, Poincar relembra a metfora com a qual este caracterizava essegnero de intuio que trabalha com base em entidades formais: As entidadesmais abstratas eram para ele como seres vivos. a apreenso imediata do seuprincpio de unidade (o no sei que princpio de unidade interna sentido pelocriador, sem projeo numa imagem sensvel), que lhe permite compreend-las elhe faculta a capacidade de inveno: ela tem, neste sentido, o mesmo papel que aintuio mais sensvel. Sendo assim, Poincar mantm a diferena entre a intui-o pura dos analistas e a intuio sensvel: elas no tm o mesmo objeto eremetem a duas diferentes faculdades de nossa alma, que so como doisprojetores voltados para dois mundos estranhos um para o outro, e correspondema duas modalidades distintas da inveno.

    O prprio Poincar se situava prximo segunda, a faculdade de intuiosensvel que a seu ver era, apesar de tudo, o instrumento mais comum da in-

    veno na matemtica (Poincar,1889). Os matemticos de esprito intuitivoneste sentido se apoiam geralmente, em seu trabalho de anlise, em imagens nosomente geomtricas, mas tambm fsicas. Estas podem estimular a intuio (sen-

    svel) matemtica, ajudando-a a encontrar a soluo antes de ter os meios dademonstrao, e a ver de um s golpe o que a deduo pura no lhes mostrariaseno sucessivamente. As analogias fsicas permitem pressentir as verdadesmatemticas que escapam ainda ao rigor do raciocnio, como, por exemplo, ocor-reu a Flix Klein ao usar as propriedades das correntes eltricas para resolver certaquesto relativa s superfcies de Riemann (Poincar,1889). O rigor no sentidodo analista viria mais tarde: pelo menos o resultado obtido, e disto no se duvi-da, embora ainda sem a obteno da certeza matemtica. desta maneira queso feitas quase todas as descobertas importantes.

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    Einstein e a liberdade lgica

    Einstein tinha encontrado na epistemologia de Ernst Mach a idia do carterrelativo e provisrio dos conceitos e das teorias; na filosofia de David Hume, acrtica da induo liberando a relao entre os fenmenos e os conceitos; e nade Immanuel Kant, a idia de que a realidade do mundo exterior, posta diantede ns como um enigma, nos inteligvel, havendo a necessidade, para pensar,de conceitos e categorias independentes da experincia (Einstein,1936).

    Elaborando sua prpria concepo da relao entre as representaes teri-cas e os dados da experincia e as impresses dos sentidos, ele encontrou tambmnos escritos de Henri Poincar elementos de reflexo que lhe permitiram escapardos limites do apriorismo kantiano ultrapassando tambm aquilo que faltava

    crtica de Hume: notadamente a idia do livre arbtrio no raciocnio. Mas quandoPoincar fazia desta considerao a pedra angular do seu convencionalismo,Einstein a integrava a uma perspectiva racionalista, ao preo de uma transforma-o da soluo kantiana. Ele estimava poder-se dizer mais ainda do que Kant:que os conceitos que aparecem em nossos pensamentos e em nossas expresseslingsticas so considerados de um ponto de vista lgico criaes livres dopensamento, conceitos esses que no podem ser obtidos pela induo a partirda experincia dos sentidos (Einstein, 1944). Porque um abismo (intransponvellogicamente) se abre entre o mundo da experincia sensria [e] o dos concei-tos e das proposies, que so na verdade invenes livres (28). No temosespontaneamente a conscincia disto, devido ao hbito adquirido de associ-losentre si. essa liberdade lgica que permite construir conceitos e representa-es tericas, segundo a escolha das regras que parecerem mais adequadas.

    Essa idia est no cerne das epistemologias de Poincar e Einstein, de suasrespectivas concepes da relao entre o pensamento racional e o mundo real, ede seu pensamento sobre a criao cientfica.

    Os processos criativos do pensamento racional

    Poincar

    Para Poincar, em grande parte, o trabalho cientfico consiste em selecionarentre os fatos, que se oferecem multitudinrios, aqueles que so os mais ricos designificao isto somente porque o crebro do cientista, que no passa de umponto no universo, jamais poder conter o universo inteiro. Eis a o fsico ou omatemtico que, incapaz de simplesmente reproduzir o que, alm do mais,seria sem dvida insuficiente para compreender encara a necessidade de inven-tar. Ater-se a relaes de semelhana superficial entre os fatos no produziria nadaseno banalidade e repetio, sem que se encontrasse o acesso s relaes signifi-cativas.

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    As similitudes portadoras de sentido (que so as analogias matemticas,para Poincar) transcendem as diferenas materiais; quanto mais distantes forem

    os fatos cuja relao se verifica fecunda, mais essencial ser a propriedade que elesrevelam o que tambm corresponde a um carter esttico(29). A fecundidadeda relao entre os fatos, matemticos ou fsicos, marcada pelo fato de elesfazerem aparecer uma ordem entre os elementos que antes pareciam no-relacio-nados, ou abandonados ao acaso, e por conduzirem ao conhecimento de uma lei.

    A formao de tais combinaes fecundas advm do processo de inveno mate-mtica; atingir aquilo que Poincar com freqncia remete harmonia,referindo-se beleza intelectual e elegncia matemtica (Poincar,1908ain 1918: 15-17).

    O que Poincar chama de harmonia, corresponde instantaneidade da evi-dncia para o esprito, que atingida, no final das contas, atravs da inteligibilidade para ele assim como para Descartes (30), dois sculos e meio antes. Quantomais vermos esse conjunto claramente e de um s golpe, escreveu ele, melhorperceberemos suas analogias com outros objetos vizinhos, e em conseqncia maischances teremos de descobrir as generalizaes possveis (Poincar,1908b in 1918: 26). E um raciocnio meio intuitivo permite ver simultaneamente, em ra-zo de sua brevidade, suas diversas partes, de modo que se percebe imediatamenteaquilo que deve ser modificado para que se adapte a todos os problemas de natu-reza semelhante que possam vir a se apresentar (Poincar,1908b in 1918: 26).

    Convm especificar que a invocao da analogia, freqente em Poincar,concerne essencialmente ao resultado final. A analogia apenas a lio que se tira,quando as relaes vm tona e sua fecundidade se manifesta. sempre a ana-logia matemtica que est a em jogo, indicando a estrutura e a unidade profun-das dos elementos relacionados na descoberta. No trabalho criativo, em que ope-ra a faculdade da intuio essa intuio que permite enxergar o alvo de longe,que oferece a viso de conjunto sem a qual no haveria inveno (Poincar,1897) , as propriedades a serem consideradas se apresentam ao entendimentosob sua forma prpria, sobre a qual o raciocnio trabalha diretamente.

    Nesse processo ao inconsciente, com efeito, que Poincar atribui a tarefa

    de estabelecer as combinaes de idias teis, por eliminao e escolha. O traba-lho preparatrio de fixar a ateno num determinado problema deslancha aatividade inconsciente, em que o pensamento consciente define e indica mais oumenos a direo geral. Para representar essa atividade inconsciente, que operasobre as idias elementares a serem combinadas entre si, ele recorria metforasobre os tomos retorcidos de Epicuro, arremessados em todos os sentidos ecombinando-se entre si nossa revelia, sendo que apenas a combinao retida seofereceria depois ao pensamento consciente.

    Para Poincar, o inconsciente sabe escolher, sabe descobrir. Ele seperguntava inclusive se o eu subliminar [no seria] superior ao eu consciente,

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    numa hiptese antes examinada pelo filsofo mile Boutroux(31). JacquesHadamard, por sua vez, iria contestar o sentido dessa expresso, preferindo a

    idia de uma cooperao entre os dois (Hadamard,1945). Poincar se inclinava aconsiderar que o eu subliminar privilegia os fenmenos que afetam a sensibili-dade na direo da harmonia, da beleza matemtica, essa sensibilidade estticacorrespondente na matemtica s solues oriundas da lei que se est procurando(Poincar, 1908c: 53-59). Mas o problema de saber mais exatamente o que enco-brem os termos que remetem s consideraes estticas permanece em aberto,exceto por tratar-se nas cincias como nas artes de formar ou exprimir signifi-caes fortes.

    Einstein

    Einstein concebia a experinciada criao cientfica como uma formaparticular da experincia mais geral do

    pensamento . Segundo ele, o ato depensar pe em jogo, alm das ima-gens resultantes das impresses dossentidos, os conceitos, todo o nossopensamento [sendo] um jogo livre comos conceitos (Einstein, 1946: 6-7).Entretanto, embora o pensamento deum indivduo se forme graas aoaprendizado e ao uso social das palavras(Einstein,1941), ele julgava, por expe-rincia prpria, que o pensamentoconceitual se desenrola em largamedida sem fazer uso de signos (pala-

    vras). E tambm considerava, em con-sonncia com o que dizia Poincar sobrea inveno cientfica, que ele se efetuade fato, num grau elevado, de maneirainconsciente (Einstein,1946: 6-7).

    Alm disso, ele ligava o pensamento cientfico, seja em se tratando de suaformao no indivduo ou da criao, experincia do espanto, tal como elerelata ter experimentado na infncia, aos quatro ou cinco anos de idade, ao vergirar a agulha de uma bssola; ou ainda, mais tarde, ao descobrir num livro asdemonstraes da geometria de Euclides (Eistein,1946: 8-11). O filsofo Baruchde Espinosa, cerca de trs sculos antes, tivera uma experincia semelhante deiluminao de sua inteligncia a propsito da mdia proporcional(32).

    A experincia do conhecimento, para Einstein, era ao mesmo tempo a daaquisio da intuio(33): a intuio fsica para aquilo que lhe dizia respeito, que

    Albert Einstein (1879-1955)

    R e p r o

    d u o

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    constitua o que ele ainda denominava seu instinto cientfico, que freqen-temente evocava a propsito do sentido de tal conceito, assim como a propsito

    dos debates sobre a direo que deveria tomar, a seus olhos, a teoria fsica. Essaintuio, qual ele requeria, desde seus anos de estudante, que distinguisseclaramente o que importante do ponto de vista fundamental, por meio do quese pode assegurar as bases, daquele resto de erudio mais ou menos suprflua,opera na racionalidade, no estgio da inveno como no da avaliao e no dacrtica por exemplo, sobre a fsica quntica (Paty,1994 [c]). Em todo caso,antes da anlise vem o estgio dainveno propriamente dita, na qual aintuio desempenha o papel principal.

    Trabalhar com as idias sempre, para Einstein, trabalhar com a racio-nalidade. No se pode, no entanto, fazer da intuio, e da inveno na qual desem-penha um papel to grande, uma descrio normativa: ela advm da experinciasingular, e se liga atividade mental em geral. uma viso imediata, a partir daqual se pode reconstituir logicamente as razes, mas que repousa sobre as experin-cias anteriores do pensamento, e os processos mentais relativos ateno a umproblema seguem geralmente um caminho indireto(34). Sua experincia, acimaevocada, mostra que o importante, neste sentido, estar impregnado da conside-rao do problema, t-lo volvido e revolvido at chegar a uma formulao racio-nal que porte em si a virtualidade da soluo.

    Pois o pensamento guiado por uma certa maneira de dispor seus elemen-tos de informao: chegar soluo de um problema formar uma imagem claraao final do processo, escolhendo entre os elementos deixando-se guiar pela intui-o. Vale o mesmo para os conceitos, que fazem o pensamento, e a partir dosquais se forma uma representao inteligvel do mundo, e para as palavras dalinguagem: tais signos so ligados s impresses sensveis por certas regras, se-gundo uma correspondncia relativamente estvel (Einstein,1936; 1941). Nacincia, o sistema de conceitos que visa a uma representao das experincias dossentidos , no que concerne lgica, um jogo livre com os smbolos segundoas regras do jogo dadas arbitrariamente (quanto lgica). O mesmo se podedizer tambm sobre o pensamento de todos os dias(35).

    A experincia do pensamento dos conceitos, em particular do pensamentocientfico, faz intervir um pensamento ao mesmo tempo consciente e semiconsci-ente, para o qual o conceito funciona como um signo particular, sem se identifi-car a uma palavra. No necessrio, indica Einstein(1946), que um conceitoseja relacionado a um signo (uma palavra) perceptvel pelos sentidos e reprodutvel;mas quando o caso, o pensamento se torna comunicvel. Para ele, o pensa-mento se desenrola em larga medida sem fazer uso de signos (palavras), de fato,num grau elevado, de maneira inconsciente.

    Analisando seu prprio caso, ele assinalou, ao responder ao questionrio deJacques Hadamard sobre a psicologia da inveno no domnio matemtico

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    (Hadamard, 1945), que as palavras e a linguagem, escritas ou faladas, no pare-cem desempenhar o menor papel no mecanismo do meu pensamento (Einstein,

    1945). Sobre o funcionamento deste, ele ofereceu ento as seguintes informa-es: As entidades psquicas que servem de elementos ao pensamento so certossignos ou imagens mais ou menos claras, que podem ser reproduzidas e combina-das vontade, e que esto em relao com conceitos lgicos do problemaposto. A atividade mental, o jogo bastante vago sobre esses elementos ou sig-nos (que, no caso, so de tipo visual e s vezes motor), sustentada emocional-mente pelo desejo de enfim atingir os conceitos logicamente relacionados, e o

    jogo sobre os elementos em questo visa ser anlogo a certas conexes lgicasque estamos pesquisando. Somente num estgio secundrio, quando as associa-es encontradas entre os elementos so bastante estveis e podem ser reproduzidas vontade, partimos a custo em busca de palavras ou outros signos convencio-nais que possam exprimir a soluo nos termos do problema (Einstein,1945).

    O lingista Roman Jakobson assinalou a concordncia entre a descriofeita por Einstein do gnero dos signos que entram no processo de pensamento eaquela que ele mesmo poderia propor, a saber, que os signos so um apoionecessrio do pensamento, e que o pensamento interior, sobretudo quando criador, prefere [ linguagem comum] os sistemas de signos que so mais flex-

    veis, menos padronizados do que a linguagem e que do mais liberdade e dina-mismo ao pensamento criador (Jacobson,1980).

    ConclusesO tema da criao cientfica, tal como o encontramos na experincia vivida

    de cientistas que tambm foram filsofos, como Poincar e Einstein, parece liga-do, de um lado, a processos de pensamento em que a racionalidade, mesmo seno for total, permanece essencial e passvel de ser apreendida em diversasseqncias, entre uma problematizao inicial e a obteno de resultados; deoutro lado, a problemas epistemolgicos fundamentais sobre a constituio e anatureza do conhecimento cientfico. assim natural que esse tema pertena dedireito ao domnio da investigao filosfica e que no possamos nos contentarem remet-lo psicologia ou ao estabelecimento de consensos sociais cristaliza-dos em paradigmas.

    Sobre o primeiro aspecto, mesmo nos momentos em que o fio de um racio-cnio no se deixa ver, e quando ele se perde nos ns complexos que o pensamentoparece vencer a saltos, tudo indica que a atividade inconsciente do esprito dirigida por uma ateno, um esforo, uma vontade. Poincar atribua ao incons-ciente a tarefa de estabelecer as combinaes de idias que so teis, por elimina-o e por escolha (Poincar,1908c in 1918).

    Retomando a comparao feita por Poincar entre as idias elementares eos tomos entregues ao acaso, Hadamard imaginou o esprito, em sua primeira

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    reflexo sobre um problema, discutindo os elementos de idias, e estes ltimos,no perodo inconsciente, continuando seu percurso de maneira desordenada: Essa

    desordem pode ter grande valor, porque os raros confrontos que so teis, sendode natureza excepcional e produzindo-se entre idias que so muito afastadas,sero provavelmente os mais importantes(36). uma imagem que se aproximada idia de parentescos profundos, mas no aparentes, entre elementos conceituaisdistanciados, que recobrem as analogias matemticas no sentido desenvolvidopor Poincar. Elas sero aqui apreendidas em seu prprio movimento.

    A elegncia matemtica a forma daquilo que d, nos termos de Poincar,a harmonia e a beleza intelectual(37), que correspondem instantaneidadeda evidncia, qual, afinal, para Poincar e para Einstein, assim como para Des-cartes trs sculos atrs (Paty, [a]), se liga a inteligibilidade.

    Os psiclogos Paul Souriau e F. Paulhan, que se interessaram pela inveno citados por Hadamard , defendiam a esse respeito pontos de vista contrrios:Souriau (1881) considerava que ela se produzia por acaso, enquanto Paulhan(1904) nela via, mais classicamente, o efeito da reflexo. Para Hadamard(1945) ,a atividade mental inconsciente, a seu ver essencial para o processo, no se efetuade modo algum por acaso: A descoberta, escreveu ele, depende necessaria-mente da ao preliminar mais ou menos intensa do consciente, assinalando oque Poincar tinha dito sobre a ao diretora da conscincia sobre o inconsciente,definindo mais ou menos a direo geral na qual o inconsciente deve trabalhar.

    Essa diretividade do consciente sobre o inconsciente traada por outrosfilsofos nos termos mais precisos de um tipo de esquema geral dos processos dopensamento. Thodore Ribot propunha uma espcie de algebrizao dos signosmentais em funo do problema considerado em seus termos racionais: resolve-seum problema supondo-o j resolvido, e busca-se qual a combinao de elemen-tos que permite a soluo: chega-se primeiro ao resultado, depois volta-se atrspara estabelecer o fio que a ele conduziu (Ribot,1900). Retomando essa idia emsua reflexo sobre o esforo intelectual (Bergson1919, in 1959: 947) acrescen-tou que o todo se apresenta como um esquema, e a inveno consiste precisa-mente em converter o esquema em imagem, e a imagem contm os meios

    pelos quais o efeito foi atingido (Bergson,1919 in 1959: 958) Transcrevendonesses conceitos a observao do psiclogo Paulhan(1901) de que a invenoliterria e potica vai do abstrato ao concreto, Bergson escreveu que a inven-o, artstica ou cientfica, vai do todo s partes e do esquema imagem.

    Para Bergson, o esforo mental supe elementos intelectuais em vias deorganizao, com uma tendncia ao monoidesmo, que um estado caracte-rstico da ateno: a unidade (mas no a simplicidade) assim traada a de umaidia diretriz comum a um grande nmero de elementos organizados. Ele acres-centa: a prpria unidade da vida. Esse esforo intelectual sobre as imagensque no tm em entre si seno semelhana interior, como uma identidade de

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    significao (Bergson,1919 in 1959: 958), lembra as analogias matemticas dePoincar.

    Num sentido bem parecido, Meyerson se interrogava sobre os esquemasque a razo segue ao constituir as imagens da realidade, tais como, por exemplo,as da fsica, ou pelo menos sobre as tendncias a que o esprito do pesquisadorobedece, e que a razo procura fazer com que prevaleam...(38). Ele relacio-nava sua enquete insuficincia das concepes apriorstica e empirista no queconcerne aquisio das cincias, em particular da matemtica, e ao conhecimen-to dos verdadeiros domnios da reflexo matemtica. Se ele os via, por sua vez,num movimento do diverso em direo ao idntico, isso no representa umareconstituio ou uma reduo s formas da racionalidade que nos parecem fami-liares com a cincia atual, e seu propsito de interrogar as formas histricas doconhecimento era similar, para ele, ao dos antroplogos que se preocupam emcompreender a lgica prpria da mentalidade primitiva como os esquemas departicipao de Lvy-Bruhl (Meyerson,1931 v. 1: 81). Sob a diversidade dasformas de raciocnio ele descobria um esquema comum a qualquer pensamentohumano. Seja qual for a teoria envolvida, o problema assim abordado fica posto.

    As descries dos filsofos mencionados e singularmente as de Bergson tendem ento igualmente a mostrar a importnciaepistemolgica dos processosdo pensamento criador. Afinal de contas, por meio de tais criaes que os objetosdo pensamento so postos, como representaes do mundo, por mais provisriasque sejam, e tambm por isso que a cincia existe. Parece claro, deste modo,que no basta analisar as formas sob as quais ela comunicada e ratificada, masque tambm importa saber como os elementos do conhecimento surgem com anovidade daquilo que, at ento inexistente, , num certo momento, inventado ecriado.

    Notas

    1 Descartes, 1637a. A partir, contudo, do esboo, muito avanado mas igualmenteabandonado, do Mundo ou Tratado da luz (Descartes, 1633).

    2 Descartes, Cartas ao Padre Marin Mersenne, 27 de maio de 1638 e 23 de agosto de1638, in Descartes, 1964-1974 (AT), v. 2, p. 134-137; 307-320.

    3 Ver a apresentao que o prprio Descartes fez noDiscurso do mtodo (Descartes, 1637a).

    4 Veja-se, p. ex., o Sistema figurado dos conhecimentos que acompanha a publicaodo primeiro volume daEncyclopdie de dAlembert & Diderot (1751-1780), com oDiscurso preliminar de dAlembert (1751).

    5 Ver, p. ex., Diderot, 1753. Cf. Paty, 1977, captulo 4, p. 175-179.

    6 Thodore Ribot, pioneiro da psicologia cientfica, diretor daRevue Philosophique , au-

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    tor de um Ensaio sobre a imaginao criadora (Ribot, 1900), professava pontos de vista bastante prximos dos de Poincar. Ns o reencontraremos nas nossas conclu-ses.

    7 Em seu texto Sobre o pragmatismo de William James.In : Bergson (1934), 1959, p.1447.

    8 Ver seu texto sobre O esforo intelectual, em Bergson (1919), 1959, p. 930-959.

    9 Rey, 1911, p. 78. Abrindo caminho a partir da para a inveno; ver tambm, p. ex., LeRoy, 1905.

    10 Ver, mas tardiamente, Lalande, 1948.

    11 Ver em especial Reichenbach, 1938, mas tambm Popper, 1935; 1972. Sobre esse

    ponto, ver Paty, 1993 [a], captulo 1.12 Aqui entendida no sentido privativo, como se diz agnstico. Ver o anarquismo

    epistemolgico de Paul Feyerabend (1975), ou as redues sociolgicas em voga apartir de Thomas Kuhn (1970).

    13 Essas formulaes foram obra de William Thomson (Lorde Kelvin), Rudolf Clausius,Ludwig Boltzmann, Willard J, Gibbs... Pierre Duhem (1905) enfatiza esse carterabstrato, que ele via desde ento como caracterstico das teorias fsicas.

    14 As obras mais recentes que levam em conta o papel da imaginao na pesquisa cient-fica ressaltam o seu aspecto psicolgico, mas deixam sombra a sua funo para aracionalidade, a no ser para remeter a uma dimenso esttica que permanece vaga:

    ver em particular Holton (1978) e Miller (1984).

    15 Poincar (1908c), in 1908a, ed. 1918, p. 43-63, em particular p. 50-63; ver Hadamard,1945, p. 22-23.

    16 Sobre os trabalhos de Poincar correspondentes, ver Poincar, 1880a; 1880b; 1916-1965, v. 2; 1997, assim como a sua correspondncia com L. Fuchs (Poincar, 1916-1965, v. 11).

    17 Ver, em especial, Hadamard, 1945, e Jakobsonin Hadamard, 1945, p. 93.

    18 Os textos fundadores dessas teorias foram republicados na edio crtica das obrascompletas de Einstein atualmente disponvel: Einstein, 1987-1998, v. 2, 3, 7. Parauma traduo francesa dos textos principais, ver Einstein, 1989-1993, v. 2, 3. Consul-te-se ainda a correspondncia, distribuda em vrios volumes dessas edies.

    19 Einstein, 1946, p. 32. Ela devia seu carter revolucionrio, comenta Einstein, aofato de fazer a passagem da idia de ao distncia de campo.

    20 Einstein, 1987-1998, v. 1; Einstein & Besso, 1979. Cf. Paty, 1993 [a], cap. 2.

    21 Em particular o manuscrito Einstein, 1920. Para uma anlise correspondente, verPaty, 1993 [a], captulos 2 e 3.

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    22 Sobre o que est epistemologicamente subjacente formulao de uma dificuldade(e no, por exemplo, uma anomalia), ver Paty, 1993 [a]; 1996b.

    23 Einstein, 1922, 1946. Esse pensamento lhe ocorreu em novembro de 1907, segundo Abraham Pais, 1982, p. 178).

    24 Ver Pais, 1981, e a coleo Einstein Studies , organizada por Don Howard e JohnStachel (em particular Howard & Stachel, 1989 e Eisenstaedt & Kox, 1992).

    25 Ver adiante.

    26 Paty, 1996a. Sobre o empirismo de Poincar na fsica, cf. Paty, [c]. Sobre os diversossignificados da fsica matemtica para Poincar, cf. Paty, 1999.

    27 Poincar (1897), in 1991, p. 22-28. Sobre o significado da analogia matemtica em

    Poincar, cf. Paty [b]. Sobre a fsica matemtica no sentido dado por Poincar, cf.Paty, 1999. Sobre o caso da eletrodinmica e sua transformao por Poincar numateoria da fsica matemtica, cf. Paty, 1996a.

    28 Einstein, 1944. Ver Paty, 1993 [a], captulo 9.

    29 Poincar, 1908a, Livro 1, captulo 1, A escolha dos fatos, ed. 1918, p. 11.

    30 Descartes, 1628. Cf. Paty, 1997.

    31 Boutroux, citado por Hadamard, 1945. Emile Boutroux era cunhado de Poincar eamigo de William James.

    32 Ver o seu Breve tratado (Espinosa, 1656). Cf. Paty, 1986, p. 294.33 Em alemo,Einfuhlung . Einstein, 1946c, p. 14-15.

    34 Ver, para indicaes detalhadas, Paty, 1993, p. 383.

    35 Einstein, 1944. Ver a observao antes feita, no mesmo sentido, por Helmholtz, 1971,em texto de 1894 sobre A origem e a interpretao correta das impresses dos nos-sos sentidos: As imagens memorizadas das impresses dos sentidos podem tornar-se elementos na combinao de idias, embora tais impresses no possam ser descri-tas pelas palavras, e portanto conceitualizadas.

    36 Hadamard, 1945, ed. francesa, p. 52-53.

    37 Le choix des faits,in Poincar (1908a), ed. 1918, p. 15-17.

    38 Meyerson, 1931, v. 1, p. xix. Ver Meyerson, 1921.

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