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    CARLA ALVES DE CARVALHO YAHN

    VERSOS, VEREDAS E VADIAÇÃO: uma viagem no mundo da

    Capoeira Angola

    ASSIS2012 

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    CARLA ALVES DE CARVALHO YAHN

    VERSOS, VEREDAS E VADIAÇÃO: uma viagem no mundo da

    Capoeira Angola

    Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências eLetras de Assis  –  UNESP  –  Universidade EstadualPaulista para a obtenção do título de Mestre emLetras (Área de Conhecimento: Literatura e VidaSocial)

    Orientador: Drº. Rubens Pereira dos Santos

    ASSIS2012

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    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da F.C.L. –  Assis –  UNESP

    Yahn, Carla Alves de CarvalhoY13v Versos, veredas e vadiação: uma viagem no mundo da

    Capoeira Angola / Carla Alves de Carvalho. Assis, 2012110 f. : il.

    Dissertação de Mestrado –  Faculdade de Ciências e Letrasde Assis –  Universidade Estadual Paulista.

    Orientador: Dr. Rubens Pereira dos Santos

    1. Capoeira. 2. Tradição oral. 3. Linguagem e cultura. 4.Poética. I. Título.

    CDD 796.8301.2

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    AGRADECIMENTOS

    Iê, viva meu Deus, gratidão pela vida, pela saúde, pela força, pela coragem, pela

    vontade, sem as quais não faria este trabalho.

    Iê, viva meu mestre de Capoeira Angola, Alexandre Zacarias e a todos os mestres que

    tive o privilégio de conhecer e construir uma relação de amizade e respeito, os quais me passaram tantos conhecimentos no que concerne à arte da Capoeira Angola e da vida.

    Iê, salve todos os meus amigos, que vivenciam a prática da Capoeira cotidianamente,

    alguns leram meu trabalho e me ajudaram me animando e encorajando quanto à minha

     produção.

    Iê, à mestra Janja, (Drª. Rosangela da UFBA) por ter aceito meu convite em compor

    esta banca, unindo seu saber de mestra de Capoeira e seu saber científico.

    Ao Drº. Rubens Pereira dos Santos por ter aceito a tarefa de ser meu orientador. Sua presteza e dedicação, bem como seu entusiasmo pela temática da poética oral a partir das

    cantigas de Capoeira Angola, foram decisivos para a realização deste trabalho.

    Ao Drº. Gilberto Martins, também da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, por ter

    aceitado meu convite em compor a banca que analisará este trabalho, bem como pelo

    empréstimo de uma parte do material bibliográfico que utilizei na sua elaboração.

    Ao Drº. Frederico Fernandes da Universidade de Londrina, por ter se prontificado em

     participar da minha banca de qualificação e por sempre ter se mostrado bastante atencioso e

    disposto a contribuir com esse trabalho.

    Por fim, não posso deixar de manifestar meus agradecimentos a meu companheiro

    Pedro Ivo pelas conversas na rede, trocas de saberes e esclarecimentos teóricos e filosóficos, a

     partir de conceitos discutidos por meio do conhecimento.

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    Capoeira me mandou Dizer que já chegouChegou para lutar

     Berimbau me confirmouVai ter briga de amorTristeza camará...

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    YAHN, C. A. C. Versos, veredas e vadiação: uma viagem no mundo da Capoeira

     Angola. 2012. 115 f. Dissertação (Mestrado em Letras).  –   Faculdade de Ciências e

    Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.

    RESUMO: Visa-se estudar as cantigas de Capoeira Angola e descobrir um pouco

    mais sobre seus mitos e ensinamentos que muitas vezes funcionam como instrumento de

    transmissão de uma tradição ancestral que resiste até hoje, que interage com a cultura e a

    oralidade brasileiras enriquecendo-as e, que diante dessa interação por meio de

    conhecimentos que são passados em situações múltiplas de comunicação forma novos

    capoeiristas angoleiros. Procura-se demonstrar como os cânticos da roda de capoeira

    denominados “ladainha”, “corrido” e “louvação” podem ser analisados como parte da poesia

    oral afrobrasileira, pois de antemão já se sabe que os mesmos possuem forma e conteúdo

    essencialmente enraizados na arte poética. Tais cânticos são providos de ritmo, rimas,

    musicalidades, gestos, olhares e ambiguidades de vários tipos inerentes ao contexto da roda

    onde se desenvolve o discurso do canto, revelando uma dupla faceta uma poética e outra

    dinâmica do mesmo fenômeno. Ainda procura-se ilustrar parte da representação que a

    Capoeira Angola tem no mundo atualmente. Convém destacar a cotidiana relação que se

    estabelece com o seu universo por meio de treinamentos e trocas coletivas. Experiências degrandes mestres e mestras da Capoeira Angola contribuíram para o desenvolvimento deste

    trabalho, pois como aqui tratamos de um saber específico, inevitavelmente em muitas etapas

    debruçamo-nos diante de seus detentores para então se entender pequenos pedaços de sua

    magia, que como já se sabe de antemão, é simples, porém reflete sentidos profundos.

    PALAVRAS-CHAVE: Capoeira Angola, tradição oral, poética, linguagem e cultura.

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    YAHN, C. A.C. Verses, paths and vagrancy: a journey into the world of Capoeira Angola.

    2012. 115 f. Dissertation (Master's degree in Letters). –  Faculdade de Ciências e Letras,

    Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.

    ABSTRACT: The aim is to study the songs of Capoeira Angola and discover a little

    more about their myths and teachings which often act as instrument of transmission of an

    ancestral tradition that endures until today, that interacts with the Brazilian culture and orality

    and enriching them, interacting through knowledge that are passed in multiple situations of

    communication creating new players of capoeira angola. It seeks to demonstrate how the

    chants of wheel called "ladainha", "louvação" and "corridos" can be analyzed as part of the

    oral poetry: struggling, because beforehand is already known that they have the form and

    content essentially rooted in the poetic art. Such songs are fitted with pace, rhymes, gestures,looks and ambiguities of various types inherent in the context of the wheel where develops the

    chant speech, revealing a dual facet a poetic and other dynamics of the same phenomenon. It

    still seeks to illustrate part of the representation that Capoeira Angola has in the world today.

    Everyday should highlight the relationship that is established with his universe through

    collective exchanges and trainings. Experiences of grandmasters and master of Capoeira

    Angola contributed to the development of this work, because here we treat a specific

    knowledge, inevitably in many steps focusing on their holders to then understand small piecesof their magic, which as already known beforehand, is simple, but reflects deep meanings.

    KEYWORDS: Capoeira, oral tradition, poetics, language and culture.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO 9

    CAPÍTULO I –  ORIGEM E (IN)DEFINIÇÕES 

    1.1. Capoeira Angola: suas possíveis origens

    15

    15

    CAPÍTULO II - CULTURA POPULAR? 23

    CAPÍTULO III –  ASPECTOS GERAIS DA RODA 37

    CAPÍTULO IV –  DIÁLOGOS DA TRADIÇÃO ORAL 62

    CAPÍTULO V –  AS CANTIGAS DA CAPOEIRA ANGOLA 79

    5.1. A Poética Oral 79

    5.2. As Cantigas e a Literatura 83

    CAPÍTULO VI –  O DISCURSO DO CANTADOR NA ATUALIDADE 94

    6.1. A relação de gênero na capoeira angola 94

    6.2. Vozes e vozes, uma breve comparação 96

    PARA TERMINAR (CONSIDERAÇÕES FINAIS) 103

    BIBLIOGRAFIA 108

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    INTRODUÇÃO

     N’Golo, Dança Guerreira... 

    A Capoeira Angola é uma manifestação artístico-cultural que abrange universos como

    a dança, a música, a literatura, teatro, arte marcial, outros. Brincadeira mandingueira que

    revela em si indiscutíveis origens africanas. Alguns estudiosos e mestres acreditam que ela

    teve sua origem no  Ngolo, ritual ancestral dos negros bantos do sul de Angola. O  Ngolo, ou

    “dança da zebra”, conhecido também como Mufico, Efico ou Efundula, é um ritual que marca

    a preparação à guerra e a passagem das meninas à vida adulta. Nessa dança ritualística  dois

    lutadores competem e o objetivo é atingir o rosto do adversário com o pé, o que condiz com

    os objetivos do jogo da Capoeira Angola. Nesse jogo, o vencedor pode escolher sua esposa

    entre as meninas iniciadas à vida adulta.

    Atualmente, a Capoeira Angola vem sendo praticada e buscada em diversas partes do

    mundo, porém não se deve perder de vista que ela é uma arte de origem africana que se

    desenvolveu no Brasil e que busca preservar certos fundamentos básicos que veremos mais

    adiante. Suas cantigas são em grande parte cantadas na língua portuguesa do Brasil, e há

    também palavras de origem banto, nomes em quimbundo e em ioruba, por exemplo. Nos

    depararemos mais à frente com vocábulos de origem africana presentes nas cantigas de

    Capoeira Angola, como, por exemplo, ginga1, mandinga2, axé 3, kalunga4, nagô5, gunga6 ,

    inquices7 , dentre muitos outros, algumas já absorvidas pela língua falada em nossa terra, e

    outras que ainda são pouco conhecidas quando fora do contexto da Capoeira Angola.

    1 Ginga era a rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII (1587-1663), é considerada heroína angolana, portanto esse nome no Brasil ganhou outra conotação, referindo-se também ao balanço de corpo, é um termo bastante usado tanto no futebol quanto na capoeira. Na atualidade o grupo de capoeira Nzinga (a rainha

    chamava-se Nzinga Mbandi Ngola), adota seu nome fazendo-lhe referência.2 Dedicaremos um tópico para tratar somente da mandinga dentro da capoeira, mas sabe-se que esse termo podefazer menção a  Rhynchospora hirsutaum, erva da família das ciperáceas, é nome de um idioma de um ramo delínguas do grupo nigero-congolês, sua cognação de feitiço e habilidades de capoeiristas será tratada mais adiante.3Segundo Prandi em sua introdução do livro  Herdeiras do axé  de 1997, axé é força vital, energia, princípio davida, força sagrada dos orixás. Axé é benção, cumprimento, votos de boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder.4 Kalunga ou Calunga pode se referir a um determinado local da margem do rio Paranã, os moradores da regiãoindicam uma planta do mesmo nome; outra variante refere-se a divindade ligada ao mar, e a ideia de morte.5 Nagô é um termo étnico que se dá a todo negro que se comunica na língua ioruba. Faz também referência aXangô, o rei Nagô dentro do Candomblé.6 Gunga provém do quimbundo ngunga, possui diversas variantes, vai desde nome mitológico à referencia ao pênis de crianças. Aqui entenderemos como berimbau de barriga, que em alguns grupos é o nome dado ao

     berimbau mestre.7 Os inquices, (de nkisi, plural minkisi, "sagrado" em quimbundo, termo usado para objetos, fetiches e estatuetasque contêm espíritos chamados mpungo), são divindades de origem angolana, cultuadas no Brasil peloscandomblés das nações angola e congo.

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    Figura 1: copiada do freewebsite8  Nzinga Mbandi Ngola, a Rainha

    Ginga

    Arte afrobrasileira que se caracteriza por sua mandinga, por sua oralidade (cânticos,

    mitos e ensinamentos) e por sua aparência estética e lúdica, que camufla na dança e na

    teatralidade diversos movimentos que podem ser mortais, se executados. Ela não deve ser

    reduzida à luta (arte marcial), mesmo com sua grande eficiência como tal, ela também não

    deve ser reduzida à dança folclórica e muito menos a teatro de rua, pois, antes de tudo, ela

    funciona desde seu surgimento no Brasil como manifestação cultural de raiz africana que

     busca a liberdade de expressão, técnicas de defesa e ataque como forma de resistência ao

    opressor (o senhor, a polícia, por exemplo) e funciona também como um espaço onde os

    capoeiristas podem transcender o mundo do trabalho e dentro de seu cotidiano encontrar um

    momento para “vadiar” (cantar, movimentar -se, tocar um instrumento musical, brincar, ser

    feliz).

    A primeira vista este trabalho pode parecer reducionista por se deter no texto, mas ao

    maximum se tentará reconstruir a voz do cantador de Capoeira através dessa detenção textual

    utilizando recursos próprios da escrita que ajudam na noção de como a voz funciona na

    situação oral. Tais recursos serão possíveis por meio da acentuação, pontuação, transcrição da

    forma como se canta, respeitando o som e não a ortografia correta, dentre outros mecanismos

    que buscarão também descrever a performance da roda que engloba tais cânticos e os tornam

    8 http://mnoticias.8m.com/  

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    significativos dentro de um acontecimento que traz em si música, gestos, golpes, vozes,

    enfim: expressões do corpo, da “alma”e do rosto.  

    Quando se volta para uma tradição, seja ela ancestral, popular, erudita, clássica, tudo

    independe. Vale sentimento (sensibilidade), criação, retorno, voz, letras. Assim, por enquantoindefinível permanece o conceito do que venha a ser essa tal Capoeira Angola. Pois como

    diria Mestre Pedro Trindade Moraes, “ela é um mistério”. Talvez seus mitos  contribuam de

    forma a fortalecer suas narrativas e canções. Falaremos muito desses mitos correndo por essas

    letras. Mas a oralidade presente nesse universo de roda é inalcançável por esses dedos que

    tentam apalpá-la. Ela flui de forma a desaparecer no ar, é captada por ouvidos sensíveis e

    atentos que a escutam e reside apenas em forma de memória e sentimento. Agora, em algum

    lugar desse mundo alguém ecoa um cantar, um falar, um gesticular, um dançar, um brincar,

    um sentir Capoeira Angola. Por isso, é bastante difícil tentar defini-la aqui, pois ela acontece

    em ritual, convivência e também na rua.

    Segundo o Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, 1889-1981), figura lendária no

    mundo da Capoeira Angola, “a ginga que aprendera desde criança provinha de uma  mistura

    do batuque angolano e do candomblé dos jejes, africanos da Costa da mina, com a dança dos

    caboclos da Bahia” (Escola de Capoeira Os Angoleiros do Sertão). Mestre Pastinha defendeu

    essa tese até meados dos anos de 1960, pois depois disso recebeu em sua academia, localizada

    no Pelourinho, Salvador-BA, a visita do ilustre pintor que viveu em Angola e estudou Belas-

    Artes no Porto, Albano Neves e Sousa que lhe afirmou ter visto em Angola uma dança

    semelhante à Capoeira que o Mestre ensinava, e lá, essa dança chamava-se  N’golo. O pintor

    acreditou tanto na semelhança das duas danças que até mesmo pintou um painel em 1990,

    integrando a dança angolana na parte superior, e a brasileira na parte inferior de seu quadro

    (figura 2).

    Quando pequeno, mestre Pastinha sempre apanhava de um garoto mais forte,

    Honorato, maior de estatura do que ele. Um velho africano (mestre Benedito) que sempre via

    a cena um dia resolveu chamá-lo e ensinar-lhe a arte da Capoeira, depois denominada por

    Pastinha de Capoeira Angola. No casuá  (casa) desse africano o garoto aprendeu a ginga de

    corpo tão buscada hoje na roda. Era mais do que conhecimento que o velho ancião tentava

     passar? Talvez sentir o ritual na atualidade é uma das chaves para entender essa tradição que

    agrega tantas variantes e diversidades dentro do seu vasto universo. Porém, cabe-nos aqui

    analisar seus processos para entendermos seu papel na atual sociedade.

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    Figura 2: S/N, Albano Neves e Souza

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    Aqui dissertaremos e adentraremos na “malandragem” que vai além dos gestos, aquela

    que está na voz, na roupa, no chapéu, no som das cabaças, caxixis, no aço do arame do

     berimbau, no couro sagrado do tambor, nas mãos, nos pés, na cabeça e, principalmente, na

    alma e no coração. É importante desde já esclarecer que essa pesquisa é desenvolvida por uma pessoa que vive a Capoeira, que busca a cada dia aprender mais e amadurecer dentro desta

    arte. Boa parte dos conhecimentos aqui abordados terá por base o saber oral que é passado de

    maneira informal, ou seja, histórias contadas por pessoas que as viveram ou ouviram seus

    antepassados narrarem, depoimentos, pontos de vista e experiências de mestres capoeiristas

    que trazem como bagagem de vida o saber popular da arte da Capoeira Angola, que é passada

    também de maneira múltipla (de dentro, de academias, centros e escolas de Capoeira Angola;

    e de fora, em ruas e guetos diversos). Será realizado, além das ensaísticas interpretações das

    letras dos cânticos, um trabalho que buscará enfocar a Capoeira Angola como um todo, em

    que se destacarão seus fundamentos de roda, de comportamento e de rito. Além da recolha e

    do mergulho em seus saberes que se dá por meio da vivência em rodas, o que acarreta em

     percepções das várias situações possíveis dentro de cada acontecimento ou ritual vivido.

    Da Capoeira Angola, abordaremos um pouco sua possível origem, seu

    desenvolvimento e sua atual situação, daremos algumas hipóteses para uma possível definição

    (Arte?), trabalharemos dentro do campo da Cultura Popular para entendê-la como parte

    atuante de uma sociedade. Esboçaremos noções básicas de tradição para então passar a

    analisar as cantigas como forma de poética oral, tudo isso tendo por base a experiência dentro

    da prática da Capoeira Angola, pois como diria a canção: “eu sou angoleira”, assim esse

    trabalho apresenta o olhar de quem está dentro do movimento, vivenciando e aprendendo dia

    após dia. Sabe-se que tudo isso (conhecimentos de Capoeira) se constrói a partir da

    convivência direta entre pessoas que almejam descobrir um pouco mais sobre esse saber

    ancestral, então muito do que será tratado terá grande contribuição coletiva, como já foi

    destacado anteriormente, aqui temos por base o grupo Os Angoleiros do Sertão, do qual a

     pesquisadora faz parte.

    Em síntese, almeja-se analisar o discurso do capoeirista a partir de suas canções e, com

    isso, sugerir algumas possíveis interpretações da representatividade das letras das cantigas,

    dentro e fora da roda. Olharemos a função que elas desempenham no mundo de quem

    vivencia e aprecia seus saberes e encantos. Abordaremos o conceito de oralidade e,

    consequentemente, o de escrita. Trataremos desde a musicalidade, voz, gestos, performance

    até as peculiaridades existentes no mundo da Capoeira Angola. Com isso, a partir de ícones da

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    Capoeira, como Besouro, Bimba, Pastinha falaremos um pouco de mandinga, ritual e

    misticismo.

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    CAPÍTULO I –  ORIGEM E (IN)DEFINIÇÕES

    1.1. Capoeira Angola: suas possíveis origens

    Antes de ser “descoberta” pelos historiadores, há poucas décadas, a capoeira já tinha vivido suas aventuras nas páginas da literatura, dos cronistas, dosmemorialistas do passado imperial do Rio de Janeiro. E antes mesmo destes –  e de forma muito mais frequente  – , num passado remoto, a capoeira só eratestemunhada pela pena dos escrivães de Polícia. (SOARES, 2002, p. 35)

    Como já foi dito, este trabalho busca olhar para a Capoeira a partir de uma análise da

    oralidade por meio das suas cantigas, desta forma não nos aprofundaremos em nenhum

     período histórico específico, mas sim desenvolveremos um estudo panorâmico, abordando

    desde a possível origem da Capoeira até sua manifestação na atualidade. Portanto os períodos

    históricos aparecerão de forma secundária, já que é impossível falarmos de Capoeira sem

    contextualizá-la no tempo e no espaço principalmente quando é vista a partir de suas cantigas

    e de seus mestres. Assim, busca-se compreender um pouco do universo da Capoeira Angola a

     partir de seus mitos cantados em rodas e narrados pelo imaginário popular, porque “a

    atualidade, tomada fora da sua relação com o passado e o futuro, perde a unicidade,

    decompõe-se em fenômenos e coisas isoladas, torna-se um conglomerado abstrato”(BAKHTIN, 1988, p. 263). Porém, sem perder de vista a ideia de Bakhtin, de que para se

    compreender integralmente a atualidade é necessário ter conhecimento de seu passado e

     prever um possível futuro, pode-se problematizar a impotência dessa previsão do futuro. Ao

    futuro pertence uma realidade de outro tipo, mais efêmera, o “será” não tem aquela mesma

    materialidade e solidez, aquele peso real que são próprios do “é” e do “foi”. Portanto, seremos

     bastante cuidadosos nesse aspecto e buscaremos fazer uma previsão dentro da lógica atual da

    Capoeira.Em documentário intitulado Besouro Preto, Mestre Moraes destaca que antes de virem

    ao Brasil, os negros africanos já possuíam técnicas marciais e bélicas, pois há tempos

    anteriores ao descobrimento do Brasil, numa África tribal, os negros já tinham a necessidade

    de defesa, tanto em relação às tribos rivais quanto em relação aos perseguidores e

    exploradores estrangeiros. No Cancioneiro Geral  de Garcia de Resende, na estância 58, é

    descrita a prática de negros de tribos rivais que se caçavam e se vendiam:

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    Hunos aos outros se vede,& haa muitos mercadores,Que nisso soomente entedem,& hos enganãm, & prendem,& trazemaos tratadores.

    Muitos se vendem na terra,Se tem hunos com outros guerraServemse de béstas dellesPollas nõ aver entrelles,A mais terra he chaõ sem serra.(RESENDE, 1917, P. 23)

     Neste português arcaico o cronista relata a prática de captura entre negros africanos de

    etnias diferentes, o que sugere que antes de vir ao Brasil trazidos como escravos esses negros

     já necessitavam de habilidades de combate físico. Com isso podemos destacar a visão de

    mestre Moraes que de certa forma coloca em questionamento um dos argumentos que Mestre

    Bimba usava, no que consta no livro de Pires, Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá (três

     personagens da Capoeira Baiana) de 2002, quando o autor a partir de sua pesquisa feita em

    Salvador relata que mestre Bimba defendia a nacionalidade da Capoeira por conta de seu

    surgimento mediante a necessidade de se produzir meios de defesa e ataque por estes negros

    no contexto em que se encontravam em solo brasileiro, fugindo e combatendo os ditos

    capitães do mato e feitores (homens ou bandeirantes contratados para capturar negros

    fugitivos).Por mais que a Capoeira Angola se assemelhe à “dança da zebra”, como vimos na

    introdução deste trabalho e como tenta demonstrar Albano Neves em seus esboços e pinturas,

    as vezes pode ser arriscado admitirmos que ela tenha se originado somente dessa dança

    ritualista africana. Sua origem provável deve ter se dado mediante a junção de vários

    elementos que a transformaram em luta, como, a situação do negro no Brasil Colonial,

    Imperial e Republicano. E, pelo que se tem visto, pouquíssimos são os quadros e textos que

    descrevem os movimentos desses antigos jogos combativos, o que dificulta nossa tentativa dedar-se uma certeza quanto a ligação extrema dessas duas artes como uma sendo parte da

    outra, até mesmo porque grandes mudanças socioculturais se deram com o passar do tempo na

    África, no Brasil e no mundo.

    Para mestre Pastinha “a Capoeira teria sua origem em Angola, mas traria as

    contribuições de congoleses, moçambicanos e indígenas” (PIRES, 2002, 74), na   voz do

     próprio mestre: “do índio, no quilombo dos Palmares, no contato com eles nas fazendas de

    cana, a Capoeira ganhou novos golpes, principalmente as defesas, como a negativa, a queda

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     para trás, a defesa com as mãos” (Vídeo sobre mestre Pastinha, arquivo privado de Fred

    Abreu).

    O primeiro estudioso a publicar teses que defendem a origem da Capoeira no  N’golo 

    foi Câmara Cascudo, em seu livro Folclore do Brasil de 1967. Albano Neves explicou aofolclorista em grande carta suas ideias em relação à origem da Capoeira, nessa carta descreve

    com profundidade o ritual da “dança da zebra”, em que o vencedor da luta tem o direito de

    escolher sua noiva entre as meninas que participam do ritual sem pagar dote. Pelo fato do

     N’golo ser uma luta de mãos abertas, ter o uso de golpes com os pés enquanto as mãos estão

    no chão, ter o jogo de corpo com base na cintura, como deixa-nos transparecer as pinturas de

    Albano, é impossível se negar a semelhança que ele tem com a Capoeira e Cascudo apresenta

    na obra Folclore do Brasil a trajetória do N’golo até se transformar em Capoeira Angola.

    Se formos tomar por base as teorias que acreditam que a Capoeira surgiu nos

    quilombos, podemos afirmar que os negros trazidos principalmente da costa ocidental

    africana, em sua maioria de grupos Bantos e Sudaneses, pela situação em que se encontravam

    fugiam e em lugares isolados desenvolviam técnicas e meios de resistência ao sistema

    opressor escravagista. Um desses meios de resistência foi justamente essa fuga para os

    quilombos. Podemos destacar o quilombo de Palmares, aqui já citado na ideia de mestre

    Pastinha, liderado por Zumbi como o mais significativo, pois perdurou cerca de cem anos e

    resistiu a inúmeros ataques, tanto de capitães do mato, quanto de feitores. No período

    colonial, as torturas aos negros africanos eram extremamente perversas e cruéis, havia desde

    mutilações, nos chamados castigos exemplos, até queimaduras, furos em seios, chibatadas

    etc., e como se sabe, desde o transporte nos navios negreiros até a sua chegada e instalação

    em solo brasileiro, o negro já sofria torturas.

    Assim como no Brasil Imperial, a Capoeira também foi severamente perseguida no

     período de instalação do governo republicano, sendo um dos principais alvos de repressão

     policial no início da República, tanto que no Código de 1890, por meio do Decreto Nº 847,

    sob o título “Dos Vadios e Capoeiras”, teve a seguinte sanção:  

    Art. 402 Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios de destreza e agilidadecorporal conhecido pela denominação de capoeiragem. Pena de 2 a 6 mesesde reclusão.Parágrafo Único: É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira à alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeçasimpor-se-á pena em dobro.

    Mesmo com sua proibição por conta das Maltas e de seu caráter marginal, geralmenteassociado a periculosidade por parte de uma sociedade branca e burguesa, a

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    Capoeira não acabou. Ela continuou acontecendo de forma clandestina às margens dessa

    sociedade principalmente nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro. Era grandemente

     perseguida pela polícia, sendo comum a deportação de capoeiristas para ilhas presídios.Os capoeiristas então inventaram alguns meios de burlar a repressão policial, como a

    criação do toque do berimbau chamado de cavalaria, que funcionava como um aviso, um

    sinal de alerta indicando a vinda dos policiais. Quando o toque de cavalaria era tocado, os

    capoeiristas saiam em disparada para não serem detidos. Outro mecanismo de defesa contra o

     poder policial adotado pelos capoeiristas foi a criação de codinomes e apelidos de capoeira,

     pois assim ficaria mais difícil para a polícia identificar quem fazia parte da “vadiagem”.

    Porém, cabe uma ressalva de que os apelidos também se davam por conta dos feitos dos

    capoeiristas e por sua personalidade, como, por exemplo, Querido de Deus, Cobrinha Verde,

    Doze Homens, Caiçara, Pé de Onça, Camafeu de Oxossi, Alfinete. Da mesma forma que os

    capoeiras criavam mecanismos para dificultar a perseguição policial, a polícia, por sua vez,

    também tinha suas estratégias de perseguição. Quando desconfiava ser algum homem

    capoeirista, simulava um ataque, se a pessoa fizesse algum movimento de esquiva ou de

    ataque característico da movimentação da capoeira, esta pessoa sofria a tentativa de prisão por

     parte destes “praças” no linguajar da época.

    Ao mesmo tempo em que a perseguição e a proibição eram constantes, a Capoeira foi,

    aos poucos, ganhando espaços dentro da sociedade no início do século XX, principalmente

    nos meios militares e intelectuais. A partir disso, a Capoeira começou a ser vista com certa

    aceitação, pois era tida  por “esporte” por esses meios, e então poderia ser considerado

    genuinamente brasileiro, chegando a ser neste contexto a Ginástica Nacional, contanto

    defendia-se que ela havia sido criada em solo brasileiro pelos negros vindos da África, talvez

     pela busca da nacionalização brasileira. O que nos faz perceber o quanto ela era reduzida

     pelos que a viam apenas como esporte e desconsideravam sua complexidade social, cultural e

    artística,

    Há teorias, como podemos observar no artigo de Luiz Carlos Soares, “Os escravos de

    ganho no Rio de Janeiro do século XIX”, publicado na  Revista Brasileira de História, que a

    Capoeira também se manifesta nas cidades, por meio dos escravos de ganho, que exerciam

    diversas funções, eles podiam ser desde barbeiros, garotos de recados, comerciantes

    ambulantes até carregadores (de pessoas e/ou objetos): “no Brasil do século XIX, a escravidão

    de ganho foi não só uma forma de exploração do trabalho cativo, mas também um regime detrabalho típico do ambiente urbano.” (SOARES, 1988, p. 107). 

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    Porém, não entraremos nessa discussão, mas destacaremos que se tratando de grandes

    cidades a Capoeira se desenvolveu principalmente em Salvador, Recife e Rio de Janeiro naépoca do Brasil Imperial. Foi mais fortemente repreendida no Rio de Janeiro por causa das

    Maltas e Bandas que eram fortemente organizadas por capoeiristas. Essas organizações eram

    o terror da burguesia e o trabalho da polícia. Eram conhecidos por “desordeiros” ou “vadios”.  

    Ainda no período da ilegalidade, os capoeiristas viviam o que Antonio Candido chama

    de “dialética da malandragem”, ou seja, é a situação de estar no limiar da ordem e da

    desordem, pois ao mesmo tempo em que os capoeiras praticavam um ato criminalizado e

    ilegal, estavam em contato e resistiam aos poderes abusivos da polícia.

    Antes da legalização da Capoeira sua aprendizagem se dava de maneira marginal, nas

    ruas, esquinas e praças públicas, nas feiras, nos fundos de quintais, em terreiros, e nas rodas

    de final de semana, e, como diz Mestre Waldemar Rodrigues da Paixão (1916-1990):

    “Naquele tempo não existia academia tinha outra roda no Periperi e a academia era onde

    tivesse uma sombra boa, fazia aquele ringue e então vinha capoeirista de tudo quanto era

    lugar”9. A atividade era sempre comandada por um mestre antigo, detentor de maior

    conhecimento, como acontece ainda hoje nas tradicionais rodas de Capoeira Angola. Segundo

    relato do mestre Canjiquinha (1925-1994) “A gente jogava Capoeira nos dias de domingo,

    não tinha academia e quando aparecia a polícia a gente tinha que sair correndo” (VIEIRA,

    1995, p. 103).

    É somente na década de 1930 que a Capoeira vai ser legalizada. Por mais que as

    tentativas de legalização tenham sido mais marcantes no Rio de Janeiro, é na Bahia que o fato

    se sucede primeiramente, talvez pela imagem que a Capoeira carioca tinha ligada à

    malandragem, ao ócio e à violência promovida pelas maltas. O caráter esportivo da Capoeira

     possibilitou seu embranquecimento, e, por conseguinte, sua descriminalização, esta última se

    deu lentamente e ainda se dá na atualidade.

    É nesse momento que a importante figura do mestre Bimba, Manoel dos Reis

    Machado (1899-1974), realizou grandes mudanças na prática da Capoeira. Mestre Bimba foi

    o criador da Luta Regional Baiana, ele adota golpes de artes marciais orientais, retira o

    atabaque da bateria, e passa a adotar uma sonoridade mais concisa, com apenas dois pandeiros

    e um único berimbau. No seu disco curso de Capoeira Regional, podemos apreciar a rica

    musicalidade de mestre Bimba, que mostra toques batidos a sua maneira, como São Bento

    9 www.capoeirabayonne.com/mestre_waldemar_paroles.html acesso em 13/10/11.

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    Grande,  Iuna, Benguela,  Amazonas, Cavalaria, Idalina e Santa Maria. Além dos corridos e

    quadras cantados com a entoada forte e segura de mestre Bimba. É inegável a beleza do seu

    coro feminino, com voz bem alta e cadenciada pelo tom grave do mestre. Raro hoje um grupo

    de Capoeira que faça música como o fez mestre Bimba, atualmente mestre Ananias (1925) é oque mais se aproxima dessa maneira de proporcionar a música na Capoeira, claro que com

    suas diferenças, pois ele adota duas congas ao invés do atabaque comum na bateria de

    Capoeira Angola, e não adota apenas dois pandeiros e um berimbau, mas sim a bateria

    completa da Capoeira Angola com a ressalva das congas. Portanto, a aproximação é mais

    expressiva na forma de entoar o cântico e o responder do coral.

    Mais do que essa caracterização musical mestre Bimba coloca a Capoeira dentro da

    academia e cria o cerimonial de formatura. Iam treinar com mestre Bimba geralmente

    estudantes ou aquele que tivesse carteira de trabalho registrada ou comprovasse que tinha

    alguma ocupação. O mestre tentou, dessa forma, descriminalizar a atividade da Capoeira,

    valorizá-la como forma de educação física e formação. Porém, essa atitude acarretou no tal

    embranquecimento, pois como pode ser visto no documentário  Mestre Bimba: a capoeira

    iluminada, produzido pela Lumen, os frequentadores de sua academia no Centro de Salvador

    eram em maioria estudantes do curso de medicina da Universidade de Salvador, que, como

     pode ser visto no documentário, não contavam com nenhum negro, porém cabe a ressalva de

    que no Terreiro do lobo, mestre Bimba também teve alunos negros e da classe subalterna.

    As mudanças criadas pelo mestre Bimba não foram bem aceitas por todos os

    capoeiristas, pois havia os que se preocupavam com a descaracterização e o desenraizamento

    da Capoeira a partir das transformações que mestre Bimba vinha propondo. Esses eram os

    “angolas”, como os chamava o mestre Bimba. Muitos dos “angolas” tinham por fundamento

    manter as tradições da Capoeira, como a ancestralidade principalmente. Foi Vicente Ferreira

    Pastinha (1889-1981), mestre Pastinha que nomeou a Capoeira que busca manter as

    características que lhes são próprias, aquelas da tradição como Capoeira Angola, segundo ele,

    no seu livro Capoeira Angola, esta arte “se assemelha a uma dança graciosa em que a ginga

    maliciosa mostra a extraordinária flexibilidade dos capoeiristas. Mas, capoeira angola é, antes

    de tudo, luta e luta violenta” (PASTINHA, 1988, p.21). 

    Mas isso não quer dizer que alguns “angolas” não participavam das lutas nos ringues

    armados na atual Praça da Sé, na época palco chamado de “Stadium Odeon”. Lá mestre

    Bimba era “bamba”, pois venceu muitas lutas e desafiadores nesse espaço que também

    contribuiu à aceitação da Capoeira como luta nacional, o que gerou uma certa distorção de suaimagem original. Além da Capoeira no ringue, mestre Bimba também promoveu a

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    Capoeira em apresentações artísticas, esta com um caráter mais lúdico e menos combativo.

    Mestre Pastinha era contr a a Capoeira no ringue, pois defendia sua graciosidade: “é lógico

    que nos referimos a Capoeira Angola, a legítima Capoeira trazida pelos africanos e não à

    mistura de Capoeira com Box, luta livre americana, judô, jiu-jitsu etc. que lhe tiram ascaracterísticas, não passando de uma modalidade mista de luta” (ibidem).  

    Em suma, havia certa diferença ideológica entre essas duas potências da Capoeira na

    Bahia. Porém, esses dois mestres buscaram cada qual a seu modo, descriminalizar a prática da

    Capoeira. Mestre Pastinha era apoiado por pessoas como Jorge Amado, que assumia na época

    uma postura esquerdista e comunista. Já mestre Bimba, com sua defesa da Capoeira Nacional,

    esteve com o presidente Vargas, conforme os registros fotográficos evidenciados na pesquisa

    de PIRES (2002). Porém, cumpri dissertar que ambos os mestres nunca tiveram ligação

     partidária direta e ambos se queixam da falta de apoio que havia por parte do governo de

    maneira geral, eles brigaram por espaços culturais, políticos e econômicos da sociedade, “o

    comércio da Capoeira tornou-se um fato fundamental. A retirada da Capoeira do código penal

    em 1934 foi uma tarefa que significou colocá-la no âmbito das relações fundamentais do

    sistema capitalista, o que resultou na criação das academias de Capoeir a” (PIRES, 2002, 91),

    desta forma, eles tentam fugir das práticas criminais e comercializar a Capoeira como bem de

    consumo cultural como formas de ganho e sustento.

    A Capoeira Angola e Regional hoje se disseminaram por todo o país, já estando

    totalmente fundidas e enraizadas na cultura nacional, ambas competem dentro de suas

     próprias linhagens e entre si mesmas, Angola e Regional, por um mercado em que mestres

     buscam oportunidades de trabalhos em realizações de projetos culturais, educacionais e

    artísticos, Workshops no Brasil e Exterior, cursos, presenças em eventos, mas claro que este

    último, principalmente, não é só regido por uma relação de competitividade, mas também por

    relações de amizades e contatos.

    A Capoeira Angola (a qual tratamos neste trabalho) na atualidade busca manter as suas

    raízes culturais e seus fundamentos tradicionais, como a musicalidade, a mandinga, a

    teatralidade, a brincadeira, o ritmo, a memória, a ginga, o respeito mútuo entre os homens e as

    mulheres, tanto no ritual da roda como na roda da vida. Devemos destacar que a Capoeira

    hoje em dia é bem mais aceita pela sociedade se formos comparar sua aceitação há pouco

    tempo atrás, não que o preconceito tenha acabado, mas diminuído de forma significativa. Na

    verdade, isso deve ter se dado por conta dos esforços de mestre Pastinha e Bimba, mas

     pensando na Capoeira Angola, também por conta do próprio negro que se fortaleceu,fortaleceu seus saberes e sua cultura, como forma de afirmação social e identitária.

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    Se a Capoeira antes era uma prática criminalizada, hoje é patrimônio cultural brasileiro. Sua

    manifestação causava medo, mas atualmente atrai mais e mais apreciadores, e é impulsionada

     pela lei nº 10 639 que busca incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade

    da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências; sancionada em janeiro de 2003 pelo ex-presidente Lula, já gera alguns resultados, pois atualmente busca-se

    com esse apoio aprender-se mais sobre a cultura e a história afro-brasileira e a conviver e

    respeitar as diferenças culturais e religiosas que existem em nossa terra.

    É importante dizer que atualmente há estilos diversos de Capoeira, a Capoeira se

    disseminou de tal forma que é complicado falar em apenas dois estilos, ou seja, Angola e

    Regional, sua prática tem diversas funcionalidades na atualidade, há grupos que buscam

     preservar os fundamentos de mestre Bimba, porém há muitos outros que a destorce tornando-

    a apenas atração turística com vistas no lucro mercadológico ou como forma de

    sobrevivência. Aqui nossa pesquisa se volta mais para a Capoeira Angola quando se refere à

    atualidade, por conta da pesquisadora se encontrar dentro dessa denominação. Basicamente a

    diferença entre a Capoeira Angola (que também apresenta vertentes diversas) e a Regional e

    suas inúmeras vertentes é que estas geralmente possuem um caráter predominantemente

    esportivo, de ginástica com movimentos acrobáticos de grande impacto, como saltos, por

    exemplo, o que a coloca dentro da cultura de massa e a torna marketing em propagandas de

    cereais matinais, seriados e novelas televisivas; e aquela possui movimentos de resistência e

    domínio, quase sempre tendo algum apoio sobre o chão, funcionando mais como ritual do que

    como espetáculo. Lembrando que isso se dizendo, grosso modo,  algo que é bem mais

     profundo e complexo e que não é o enfoque primeiro deste trabalho, ditas dessa maneira as

    diferenças podem soar reducionistas e demasiado simplificadas.

    De maneira bastante simplificada, pode-se afirmar que a Capoeira Angola defende o

    respeito aos mestres antigos e aos seus ancestrais, mantém muito da tradição ritualística dos

    negros africanos e, com os seus três cânticos (ladainha, louvação e corrido) ela é veículo do

    saber dos antigos e de seus “mitos” por meio da oralidade que é fundamental em seu ritual e

    se manifesta por meio de suas cantigas, lembrando que dentro dela também podemos nos

    deparar com variantes que a diferencia de um grupo para outro a partir de simbologias ou até

    alegorias, e crenças, como veremos no decorrer deste trabalho.

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    CAPÍTULO II - CULTURA POPULAR OU CULTURA TRADICIONAL?

    A cultura popular [...] manifesta-se como forma singular de resistência:

    resistência astuciosa vinculada à idéia de jogo, trampolinagem, trapaçaria,todos mecanismos de recusa estratégica e tática à assimilação. Cultura popular que prevê a existência de um usuário capaz de fazer com, de utilizar,com esperteza e sabedoria, os referenciais culturais socialmente produzidose transformá-los em recursos próprios, resultados de uma arte de fazer. (BORELLI, 1996, p. 36)

    Como já se observou, a Capoeira Angola é um movimento bastante complexo que não

    se define com facilidade. Entretanto a princípio colocaremos sua prática dentro do conceito de

    Cultura Popular, pensando-a mais como Cultura Tradicional, para um bom entendimento do

    que ela pode representar no mundo das artes e da cultura em geral. Porém, não podemos

    deixar de lembrar que os estudos relativos a culturas populares tornaram-se visíveis há apenas

    algumas décadas, tendo seu florescimento na década de 60 (ABIB, 2004, 28) e o conceito é

     bastante divergente e pode ter sentidos bastante opostos. Por isso, a tarefa aqui não é simples,

    deve-se ter certa tomada de posição partindo de um ponto de vista bem direcionado. Aqui

    entenderemos Cultura Popular segundo pensamentos de CANCLINI:

    Do lado do popular, é necessário preocupar-se menos com o que se extinguedo que com o que se transforma. Nunca houve tantos artesãos, nem músicos populares, nem semelhante difusão do folclore, porque seus produtosmantêm funções tradicionais e desenvolvem outras modernas: atraemturistas e consumidores urbanos que encontram nos bens folclóricos signosde distinção, referências personalizadas que os bens industriais nãooferecem. (CANCLINI, 2000, p. 22)

    A prática da Capoeira Angola é ampla e muitos são seus mestres, e por mais que sua

    existência seja múltipla ela agrega saberes normativos que revelam sua ordem. Por mais quehaja tantas vertentes da mesma denominação Capoeira Angola, e por mais que diversos

     possam ser seus ritos de roda, ela tem algo que resiste em comunidade, como, por exemplo, a

    sequência ritualística onde se canta ladainha, louvação e corridos. Talvez essa resistência seja

    uma das chaves para entendermos o caráter transcendental que acontece em roda. Quando

    mestre Pastinha fala no tópico “A Capoeira na atualidade”, em seu livro Capoeira Angola, é

     bastante claro e simples:

     Não lhe falta o prestígio nem a compreensão das autoridades e do nosso povo. Em suas academias encontram-se discípulos de todas as idades e

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    classes sociais. O capoeirista não é mais visto como um desordeiro  –  é umdesportista, a semelhança de outros que praticam o Box, a luta livreamericana, o judô etc. [...] Mas, a Capoeira Angola é, ainda folclorenacional. Os serviços de turismo, na Bahia, colocam como pontoobrigatório, em seus programas, uma visita às Academias de Capoeira.

    (PASTINHA, 1988, p. 23)

    De lá para cá muita coisa se transformou na Capoeira da Bahia. Agora os próprios

    mestres regem seus negócios, muitos organizam encontros internacionais onde traçam um

     percurso em regiões chave como o fez mestre Renê no evento: para contar certo, tem que ver

    de perto! Com programação extensa de 15/07 a 31/07/2011 em que o grupo pôde conhecer

    Ilha de Maré, Ilha de Itaparica, Pelourinho, Mercado Modelo, fundação Pierre Verger, dentre

    muitos outros pontos. A Capoeira, principalmente na Bahia, é um veículo de Cultura Popular,

    entendendo-a como Tradicional que atrai turistas, pesquisadores e praticantes de todo mundo.

    Tanto a fala de mestre Pastinha citada acima, como eventos com caráter turístico organizados

     por mestres podem revelar uma captura dependendo de onde se olha tais posicionamentos.

    Se olharmos de maneira distanciada poderemos sim reconhecer que ocorre uma

    captura por parte desses mestres (que são muitos), em especial mestre Pastinha, nunca negou

    que a Capoeira era uma prática exercida por malandros e marginais, porém tentou

    descriminalizá-la e colocá-la como atração folclórica, turística e como esporte. Não podemos

    deixar de lembrar que nesta mesma época havia aqueles capoeiristas que não aderiram a tal

    concepção da Capoeira e mantiveram-se vadios por opção (mestre Traíra, mestre Waldemar).

    Pires em  Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá  observa que para mestre Pastinha “a

     prática dos grupos de capoeiras do passado não aparece como ‘resistência’ e sim como algo

    que impedia a capoeira de ascender socialmente” (2002, p. 65) tal a possível captura, o desejo

    de ascensão, de reconhecimento por parte da sociedade, e não a capoeira como afirmação de

    uma classe já estabelecida.

    Porém, esse desejo de querer sair da marginalidade pode ser visto, se aproximarmos

    nosso olhar da realidade de vida em que mestre Pastinha vivia como uma forma de reparar

    sofrimentos e preconceitos que despotencializaram sua prática. Não é à toa que o mestre ficou

    vinte anos afastado dela. Mesmo com a tentativa de encarar a Capoeira como prática cultural

    que estaria sendo utilizada de forma ruim por parte de arruaceiros, Pires confirma que mestre

    Pastinha “teria feito parte dos agrupamentos de capoeiras que, ele mais tarde, classificaria de

    desordeiros e arruaceiros.” O próprio mestre Pastinha reconhece a periculosidade da

    Capoeira: “mas o que serve para defesa também serve para o ataque. A Capoeira é tão

    agressiva quanto perigosa” (1967, p. 80). 

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    A Capoeira Angola é uma espécie de “personificação” da resistência, aqui se entende

     por resistência luta e permanência, desta forma, em diferentes fases de sua existência ela teve

    formas distintas de combate, se no período colonial e imperial ela resistia a partir do disfarce,

    luta disfarçada de dança, e na voz de mestre Pastinha: “os negro africanos, no Brasil colônia,eram escravos e nessa condição tão desumana não lhes era permitido o uso de qualquer

    espécie de armas ou práticas de meio de defesa pessoal que viessem por em risco a segurança

    dos seus senhores” (PASTINHA, 1988, p. 22) a partir da década de 1930 ela vai lentamente se

    deparar com outros mecanismos para continuar funcionando como meio de luta, luta política e

    social a partir de sua prática cultural, e é a partir daí que se traz a tese de que atualmente ela

    tem por arma a voz, a oralidade, as cantigas. Sim, podemos pensar que atualmente a maior

    forma de um angoleiro se apresentar, expor seus sentimentos é por meio de sua voz. A prática

    física da Capoeira atualmente é recomendada, o poder público a vê com bons olhos, pois os

    tempos mudaram, ela não funcionaria jamais como arma de guerra em nossos dias, algo que

    era diferente em tempos remotos, porém hoje além de funcionar como defesa pessoal, ela

     preserva o poder da voz, quando um cantador grita seu “Iê” e exprime sua visão de mundo ele

    muitas vezes faz uma crítica social, ele dá um recado, homenageia alguém, detém o ato

    comunicativo que pode ser inúmero dependendo da situação de roda como veremos mais

    adiante.

    Escolheu-se o termo resistência porque desde sua origem até o seu desdobrar atual a

    Capoeira se faz acontecer. Na rua, na academia, na leitura e no mundo, ela nunca esteve tão

    fortalecida. A Capoeira Angola é espaço de criação, construção e inspiração. Nela tudo é

     possível, mas nem tudo se deve. É ética e democrática dentro do ritual do respeito ao sagrado

    e ao mestre. O sagrado concretiza-se na voz, na entoada, no ritmo e na fala. A fala é sempre

    múltipla e mutável. Pode ser gestual, pode ser musical, teatral, marginal, central, original,

    nova, antiga. Ela varia na situação de roda e de jogo, mas ainda resiste quando observamos

    rodas diversas com uma mesma estrutura: ladainha, louvação e corridos, que podem ser

     primeiramente entendidos como subgêneros do gênero cantigas de Capoeira Angola. É nessas

    cantigas que acontece parte da resistência, como se tentou ilustrar anteriormente. Nesta

    vertente que compõe a subjacência da Angola, a voz poética manifesta-se. O cantador tem seu

    momento e seu espaço para fazer um apelo, dar seu recado, demonstrar sua visão de mundo,

    revelar valores ancestrais e compartilhar sentimentos. É nesse ritual que corpos dançam,

    cantam, lutam, produzem sons, transpiram, depositam sua contribuição, seu axé. Assim, pode-

    se dizer que o movimento acontece e cabe-nos, então, não manter e muito menos resgatar essa

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    cultura, mas sim analisar seus processos para melhor entendê-la, pois ela por si só já se

    mantém.

    Busca-se notar as transformações dessa cultura tradicional, como ela acontece na

    atualidade a partir de suas origens e evolução, questionaremos se a resistência é outra emrelação a essa prática que acontecia em outros espaços e tempos, sua função social hoje não é

    a mesma de antigamente, mas mantém um desempenho comum? O vídeo, os gravadores, a

    televisão por cabo, a transmissão via satélite, a internet, enfim, todo o conjunto de

    transformações tecnológicas e culturais não apaga o folclore, pois muitas de suas

    manifestações se desenvolvem transformando-se. É o caso da Capoeira Angola.

     Não podemos esquecer que há certo apoio por parte de políticas públicas à prática e

    desenvolvimento da Capoeira, são diversos os objetivos dessas políticas, vai desde atrair o

    turismo (principalmente em Salvador), até segundo Canclini (2000, 217) criar empregos,

    fomentar a exportação de bens tradicionais, aproveitar o prestígio histórico e popular do

    folclore para solidificar a hegemonia e a unidade nacional sob a forma de um patrimônio que

     parece transcender as divisões entre classes e etnias:

    Todos esses usos da cultura tradicional seriam impossíveis sem umfenômeno básico: a continuidade da produção de artesãos, músicos, bailarinos e poetas populares, interessados em manter sua herança e em

    renová-la. A preservação dessas formas de vida, de organização e pensamentos se explicam por razões culturais, mas também, como dissemos, pelos interesses econômicos dos produtores que tentam sobreviver ouaumentar sua renda. (CANCLINI, 2000, p. 217-218)

    Por mais que as novas mídias contribuam para a divulgação e para o registro da

    Capoeira Angola, elas não são necessárias para que a Capoeira aconteça. A tecnologia

    audiovisual ajuda na pesquisa, mas não passa o sentimento que é potencializado pelo hic et

    nunc. A Capoeira Angola não cabe na Cultura de Massa sem que sofra distorções, e não é arte

    erudita. Antes, é mais seguro enquadrá-la no campo da Cultura Popular, mas como esseconceito é bastante amplo e abarca noções que nada se referem à prática da Capoeira Angola,

    aqui será mais seguro se aludir o termo usado por Canclini (2000) de Cultura Tradicional.

    Aqui deixaremos de lado as inúmeras definições que o conceito de Cultura Popular pode

    apresentar e focalizaremos a capoeira como algo que manifesta saberes e práticas que se

    fundem no cotidiano, algo mutável que constrói e reconstrói tradições de grupos.

    Ainda a partir da leitura do livro de Canclini, Cultura híbrida, se buscará afirmar que a

    tendência da modernização não é simplesmente provocar o enfraquecimento da prática daCapoeira, pelo contrário, cabe-nos neste trabalho perguntar-se como ela está se

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    transformando e como interage com as forças da modernidade. Por mais que possa parecer

    contraditório, assim como as tradições, a Capoeira Angola se reinstala para além das cidades:

    em um sistema interurbano e internacional de circulação cultural, a partir disso pensa-se que é

    impossível compreender a tradição sem compreender a inovação. A tradição da CapoeiraAngola será pensada aqui como organismo projetado em direção ao passado para legitimar e

    entender o presente, como já se tentou esclarecer.

    Por mais que a Capoeira tenha sido uma prática criada pelos negros vindos da África

    ao Brasil como escravos, atualmente é possível afirmar que ela é constituída por processos

    híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de

    diversas classes e nações. Os relatos de mitos dentro da roda são cantados e contados com

    múltiplas variantes, os cantadores lhes dão ênfases diversas e os atualizam, dessa forma

    renovam-se seus valores e o imaginário continua aberto e criativo.

    A interação da Capoeira com a modernização permite sua renovação, o que não

    aconteceria se ela se fechasse apenas nas suas relações ancestrais. E, segundo Canclini, “nem

    a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais é ficar

    de fora da modernidade” (2000, p. 239), assim ocorre um jogo de equilíbrio, em que a

    ancestralidade está presente, mas se reconfigura dentro da modernidade, ela resiste em

    essência, principalmente no que se refere a sua performance de maneira geral, e se transforma

     por conta dos processos de modernização que ocorrem no mundo.

    A Capoeira Angola hoje, se entendida como cultura tradicional, exige desfazer-se da

     pressuposição de que ela permanece como o era em seus primórdios, e, de que acontece de

    maneira autossuficiente, isolada dos agentes modernos que hoje se podem observar em seu

    meio e que podem ser identificados nas relações econômicas tanto no mercado do Brasil

    quanto no transnacional de bens simbólicos. Isso porque na atualidade é inegável que ela

    transita num campo de redes de dependência que a liga ao mercado, ao turismo, à industria

    cultural, por mais que mantenha em si, e em seus fundamentos seus referentes ancestrais.

    Mas, isso se dá, também, porque dentro do rito temos a perseverança e a diversidade dos

    elementos tradicionais da Capoeira.

    As formas híbridas que a Capoeira pode estabelecer na sua existência são visíveis

    quando investigamos sua prát ica e examinamos seus procedimentos que a une sincreticamente

    a diversas modalidades de cultura urbana. Isso pensando em sua inegável diversidade e

    heterogeneidade dentro do mundo, mas sem perder de vista sua força tradicional que se

    mostra presente em seu ritual, esse que acontece em grupos e locais diversos, mantendo ofundamento defendido por muitos mestres. Para Canclini, “A cultura tradicional se

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    encontra exposta a uma interação crescente com a informação, a comunicação e os

    entretenimentos produzidos industrial e maciçamente” (CANCLINI, 2000, p. 253). Portanto,

    tenta-se incluir na análise deste trabalho a reorganização da Capoeira Angola em políticas e

    movimentos que a subordinam e reformulam no contexto atual.Partindo ainda do sentido de resistência que a roda possibilita, torna-se a dissertar

    sobre a continuidade e a transformação que se dá na tradição ancestral ensinada através dos

    tempos. Por mais que essas duas ideias, a de resistência e de transformação, possam parecer

    contraditórias, se aposta que não são. Elas funcionam como dois fatos que estão presentes

    dentro do mundo da Capoeira, como já dissemos, são dois extremos que acarretam num

    equilíbrio imaginário. Para falar da resistência que ocorre na prática dessa cultura tradicional

    denominada Capoeira, cumpre dizer que o “vínculo criador -comunidade” apresentado por

    Antonio Candido em  Literatura e Sociedade, de 1965, é esclarecedor e nos será útil neste

    texto, pois como argumenta:

    à medida que remontamos na história temos a impressão duma presençacada vez maior do coletivo nas obras [...]; forças sociais condicionantesguiam o artista em grau maior ou menor [...], determinando a ocasião daobra ser produzida [...]; julgando a necessidade dela ser produzida [...]; sevai ou não se tornar um bem coletivo.(CANDIDO, 1965, p.30)

    Desta maneira, entende-se que a voz artística que ecoa muitas vezes como forma de

    resistência, pode ser de alguma maneira guiada por forças sociais condicionantes, que podem,

    muitas vezes, ditar ao grupo que resista, por conta da situação em que a obra oral se encontra

    dentro de um dado sistema sociocultural. Por exemplo, se antes se cantava “vamos jogar

    capoeira enquanto a polícia não vem/ e quando a polícia chegar quebra a polícia também”,

    isso se dava por conta da condição em que o grupo se encontrava. Atualmente, cantam-se

    inúmeras cantigas, como por exemplo: “deu cinco horas/ galo começa a cantar/ gáveaassoviar/ ai meu bem é hora”, que expressam condições outras e bem diversas que muitas

    vezes podem ser regidas por “forças sociais condicionantes”, ou que podem ser consideradas

    a atualização como força viva da tradição em contextos outros, criando em cada ocasião

    sentidos que exprimem partes de uma tradição oral dentro da comunidade que resiste de

    várias maneiras, sejam elas individuais ou coletivas, mas que ainda revelam forças alheias a

    essa tradição.

    Todavia, há grupos que resistem mesmo sem reconhecimento ou valorização dasociedade como um todo, seres que resistem no ir treinar sozinhos, ouvindo um

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    disco clássico no mundo da Capoeira, inspirando-se em tradições passadas para manifestar-se

    no presente, porém mantendo vivo o dizer artístico do capoeirista, em que na voz de mestre

    Claudio fala de si: “Sou eu angoleiro que vem do sertão/ Com chapéu de coro e berimbau na

    mão”. E por aí vai numa infinidade de falas, ditos, sons, gestos, sentidos performáticos quetrazem à tona formas de criação coletiva em roda com estética própria, em que o improviso

    aparece de maneira natural por conta da experiência que o possibilita. Muitas coisas

    acontecem na roda de Capoeira, ela abarca o sagrado e depara-se com o profano, pessoas se

    machucam, são felizes, buscam aventuras, brincam, vivem, jogam-se nela, podem senti-la,

    crescem e nascem nela encontrando ali sua espiritualidade e contato com o sagrado. Antes de

     jogar o angoleiro agacha no chão, e no pé do berimbau faz sua oração, alguns se concentram,

    alguns se benzem, alguns tiram “sarro” do parceiro de jogo, outros beijam o chão, outros

    fazem sua mandinga no chão e assim vai numa infinidade de gestos. Quando se está ao pé do

     berimbau numa ladainha, geralmente seu tempo diante desta situação é maior, isso acontece

    com os dois que abrirão o jogo da Capoeira, ou aqueles que reiniciarão a roda:

    Iêêê...

    Vou fazer o meu pedido (bis)Aiaiai, para o meu São BeneditoPorque ele é um santo negro

    Ehhhh, Santo negro eu acreditoMeu santo Benedito (bis)Colega véioÉ meu santo protetorMe proteja nessa rodaAiaiai, nesse lugar que eu estouFaca de ponta não me furaEhhh,e jamais vai me furáOlho grosso não enxergaE jamais enxergará,Arma de fogo não me queimaAiaiai, São Benedito apagaráMeu santo Benedito (bis)É meu santo protetorProtegeu o negro escravoQue era carente de carinho e de amorCamará...(ladainha cantada por mestre Claudio)

    Assim fica claro que a funcionalidade da ladainha acima é de proteção, é uma oração,

    eis outro aspecto que iremos observar em dadas cantigas: sua funcionalidade, que também é

    variada. Na ladainha cantada por mestre Claudio podemos perceber que a oração que eleva aSão Benedito, seu protetor, é bastante semelhante a oração a são Jorge. Mestre

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    Claudio dá continuidade a uma tradição oral e cria sua própria oração em forma de ladainha,

    então da ladainha citada acima podemos afirmar que sua funcionalidade é a de elevar uma

    oração e de tal maneira buscar proteção.

    Dependendo da situação (para quê e quando se canta) e do discurso (quem canta e paraquem canta) o vínculo pode ser bastante uniforme. A presença da voz é direcionada não só

     pela tradição, mas também pela necessidade presente da circularidade formada pelos meios

    de grupalidade e comunidade, ou seja, ela não tem como parâmetro somente a tradição, mas

    sim a necessidade atual do grupo, quando um cantador canta, ela transforma a tradição de

    forma a suprir as expectativas do presente, ela canta o passado e o traz para o presente da

    roda, do grupo. É diferente um angoleiro (quem vive Capoeira Angola) interpretar um dizer e

    uma pessoa desprovida de saberes específicos da ritualidade da roda tentar fazê-lo. O

    angoleiro infere muito do universo que faz parte. Por isso há rodas e rodas. Quando o intuito

    é aproximar saberes, o procedimento é aberto e dinâmico. O cantador versa livremente e

    dialoga com seu público. Narra fatos da comunidade ali presente, gira em torno da roda por

    meio da voz, é detentor do discurso, provoca o jogo de perguntas e respostas e pode ser

    desafiado se houver outro cantador que tome a voz poética para expor suas ideias. A noção

    dos repentes nordestinos está presente aqui, ou a noção de cantos de desafio, em que um

    cantador provoca ou elogia o outro (as possibilidades são inúmeras), e ambos vão dialogando

    através do versar. Como, por exemplo, acontece na cantiga de domínio público abaixo:

    Eu não vou na sua casaPra você não ir na minhaVocê tem a boca grandeVai comer minha galinha

    Daí segue uma possível resposta:

    Eu não vou na sua casa

    Por que tem muita ladeiraSeu cachorro é muito bravoSua mulher é faladeira

    E assim segue, num jogo contínuo de perguntas e respostas, num jogo de improviso

    que faz parte de toda a arte performática, pois o cantador improvisa de acordo com o

    movimento da roda, quem chega, quem sai, quem escuta, e todo esse jogo de improviso tem

     por base um vocabulário pré-trabalhado –  o que contribui muito ao bom andamento do ato de

    improvisar, pois os versos correm dentro de uma situação variada de vocábulos e sons, tudo

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    dentro de um jogo de rimas e risos, em que a situação é a regente do tom e do rumo das

    canções. O elogio, a declaração de afetos também são bastante recorrentes:

    Escute aqui meu camará

    Ouça o que vou lhe dizerVocê é meu grande amigoQuero cantar com você

    E o outro responde:

    Olha meu bom colegaSua fala já valeuUma pedra deu na outraO teu coração no meu

    Ou referindo-se ao público:

    Pimenta maduraque dá sementeMoça bonitaOlhando pra gente

    Cantigas de amor também são bastante recorrentes:

    O galho da limeiraA enchente carregouA maré já deu passagemVou buscar o meu amor

    Da sua casa pra minhaCorre um riacho no meioEu daqui dou um suspiroVocê de lá suspiro e meio

    E assim a voz prossegue numa infinidade de situações de roda, mais adiante veremos

    em maior detalhe a multiplicidade das cantigas e seu papel não só na roda, mas na sociedade

    atual, funcionando como instrumento de resistência, de luta, de reconstrução artística, de

    expressão cultural e social, de criação, dentre outros. Borelli ajuda a esclarecer esse pensamento quando diz que a cultura popular não se afirma apenas pelas origens, tradições,

    raízes,

    mas por uma posição construída de forma complexa e conflituosa –  frente aohegemônico. Nesse sentido, o popular não deve ser concebido como todohomogêneo que se opõe, monopoliticamente, a outro, erudito, culto ou demassa. Pelo contrário, para Gramsci, o folclore, por exemplo, está presenteem todas as esferas que compõem a cultura na sociedade; entretanto, e paradoxalmente, o mesmo folclore constitui-se como concepção de mundo emanifestação de caráter coletivo específicos das classes populares.  

    (BORELLI, 1996, p. 35)

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    Se focalizarmos a prática da Capoeira Angola como algo que está presente em

    camadas diferentes da sociedade, mesmo com sua essência marginal (nasce dos negros

    escravizados que viviam às margens da sociedade) poderemos compreender como existe uma

    grande diversidade de grupos e ritos no mundo da Capoeira Angola hoje. Ela agrega valores einterpretações múltiplas. É livre, nela ninguém precisa aceitar certas crenças ancestrais, a

    religiosidade de quem baixa no pé do berimbau, no “altar” bateria de Capoeira Angola, é

    subjetiva, cada um sabe de si, ela é repleta de mandinga, floreios e trocas. Numa mesma roda

     podemos ter extremidades sociais que vão variar em termos de poder aquisitivo, grau escolar

    e de diversidades de crenças, saberes e história.

    Mas com isso partiremos da figura do malandro que se aproxima à do capoeirista

    angoleiro, aquele que usa chapéu panamá e sapato de couro, aquele que canta, ginga,

    ultrapassa na brincadeira seu oponente, aquele que esbanja malícia e manha. Manha de se

    safar, de criar, de dialogar. Essa figura já foi muito lembrada em páginas da Literatura

    Brasileira, de forma pejorativa ou não. Aqui não trataremos da figura do malandro-capoeira

    representada na literatura, mas antes buscaremos ouvir a voz do angoleiro a partir de seus

    cantares, que acontecem no ritual tradicional da roda. Como hoje essa figura do malandro-

    capoeira já se disseminou, podemos encontrar tribos diversas que buscam a ginga da Capoeira

    Angola. Cada corpo tem a sua ginga e sua voz, cada cantador tem o seu modo de falar, o

    discurso dentro da roda é múltiplo, varia conforme a subjetividade do mestre que a dirige,

    conforme a composição formal dos instrumentos, muito variada de grupo para grupo, mas

    isso não é suficiente para afirmarmos que a Capoeira Angola não tenha sua própria

    identidade, mesmo como seu indiscutível caráter permutável.

    Assim como a Cultura Popular, aquela folclórica e tradicional, a Capoeira Angola não

    deve ser territorializada. Por mais que seja mais expressiva em determinadas cidades ela

    guarda em si um “quê” universalizante. Esse quê pode ser entendido no sentido da grande

    diversidade expressa em seu mundo, no sentido da multiplicidade de sua composição estética,

    no seu desejo em busca do belo e da expressividade, na sua independência frente aos meios de

    dominação hegemônicos, nas suas ambiguidades presentes em seus corridos, ladainhas e

    louvações, como veremos adiante em maior profundidade. Cabe ressaltar, para que não haja

    contradições que essa movência da Capoeira, e sua não territorialização é pensada a partir da

    resistência no sentido de prática, ou seja, ela resiste em diversos locais do mundo como

    Capoeira Angola, luta, dança, brincadeira, sendo que em dados grupos ela pode ter uma

    dessas modalidades prevalecendo mais do que em outros, portanto insiste-se que o termoresistência aqui apresenta um sentido móvel, e não um sentido fixo e estático, mas

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    uma resistência que se transforma dentro de situações diversas de comunicação e de vida, mas

    que se mantém a partir de fundamentos tradicionais, segundo Canclini, todo “grupo que quer

    diferenciar-se e afirmar sua identidade faz uso tácito ou hermético de códigos de identificação

    fundamentais para a coesão interna e para proteger-se frente a estranhos.” (2000, p. 164)  Nesta linha, a Capoeira Angola vista como componente da Cultura Popular, ajuda na

    visualização da sua diferença em relação a outras artes, como a literária, por exemplo, para

    então, com as heterogeneidades presentes em ambas, fazer-se um trabalho de diálogos e

    reconhecimentos do outro que, aparentemente oposto, estabelece semelhanças e

    dessemelhanças que contribuem para o trabalho de interpretação e análise de ambos. Mas,

     para tanto, deve-se considerar o campo literário como algo vasto, que une inúmeras formas de

    expressão poéticas orais e escritas, capazes de estabelecer diálogos entre si, e,

    conseguintemente, relacionarem-se de maneira a ampliar as possíveis intertextualidades de

    vozes aparentemente opostas. O termo intertextualidade, com bases em KOCH, BENTES e

    CAVALCANTE, é aqui compreendido como operação produtora de sentido no interior de um

    dado universo discursivo, mas sem perder de vista que ela também se dá entre domínios

    discursivos diferentes, como é o caso das cantigas de Capoeira Angola e a Literatura: “no

     processo de produção de um discurso, há uma relação intertextual com outros discursos

    relativamente autônomos” (KOCH, BENTES e CAVALCANTE, 2007, p. 15) aqui

    entenderemos esse processo também como relações interartísticas que se expressam de forma

    semelhante ou que falam de algo em comum, compreendendo texto como tudo aquilo que tece

    alguma comunicação, seja ela visual ou auditiva.

    Segundo Ecléa Bosi, a Cultura Popular tem suas raízes na vivência cotidiana do

    homem da rua (1986, p. 77), tal pensamento contribui de maneira significativa ao trabalho

    desenvolvido aqui. Em essência, a Capoeira Angola é também arte de rua, por mais que se

    expresse também em Escolas e Grupos organizados. Se ela prega em seus fundamentos a

    liberdade, ela agrega por isso, como já foi dito, uma grande diversidade. Desde o tempo do

    Império ela existiu como forma de luta e combate. Era a arte das maltas cariocas, da dança

    dos perigos portenhos tanto de Recife como de Salvador, foi se fortalecendo e se

    disseminando por todo Brasil, se transformando e chegando aos nossos dias como algo

     bastante peculiar dentro da Cultura Popular Brasileira, ou, de forma mais cautelosa, dentro da

    Cultura Tradicional Afrobrasileira.

    A Capoeira Angola confirma pensamentos como o de Borelli (1996, p. 51), que

     baseada em Morin (1977, p. 11-85), defende o caráter planetário da Cultura Popular,entendida a partir do século XX, como algo que se internacionaliza e reafirma

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    valores ao invés de excluí-los. Claro que nisso há um grande perigo, o da distorção desses

    valores, mas que, por sua vez, condiz com o aspecto permutável e transitório da Cultura

    Popular. Que pode manter uma tradição mesmo com suas possíveis adequações em universos

    e realidades estranhos, onde a resistência se dá de maneira a adequar-se com a realidade dedado grupo.

    Segundo Ecléa Bosi, o folclore, entendido como Cultura Popular, é uma forma de

    educação informal e, se pensarmos nisso dentro da prática da Capoeira Angola faz bastante

    sentido, e essa ideia nos é bem útil. Por mais que hoje em dia os ensinamentos da Capoeira

    Angola possam ser passados de diversas formas: oficinas, textos escritos, vídeos, conferências

    e muitas outras formas, em essência eles são passados a partir de relações cotidianas de

    convivência e trocas. Há dentro da sua prática figuras que carregam em si conhecimentos e

    valores que lhes foram passados e cabe a elas recodificá-los de acordo com sua vivência

    coletiva, essas figuras muitas vezes são os mestres de Capoeira Angola.

    Com a modernidade e a urbanidade, a Capoeira se afirma e se fortalece. Ela acontece

    também (ela também é manifesta nos sertões e espaços rurais de nosso País) no espaço das

    grandes cidades, isso se dá principalmente por meio da grande difusão que teve com

    migrações, com as gravações de CDs e DVDs, com as divulgações em sites, blogs e youtube;

    mas não se pode esquecer de que há aqueles mestres e estudiosos que acreditam que a

    Capoeira já nasceu num contexto urbano, nas cidades portuárias, porém há também aqueles

    que defendem sua origem nos quilombos, mas aqui cabe reconhecê-la como algo que surgiu

    tanto no sertão, na ruralidade quanto nas cidades simultaneamente, e, hoje, com as novas

    tecnologias pode conectar-se dentro de uma comunidade da Capoeira que não possui mais

     barreiras.

    Sua oralidade, através de contação de histórias por meio das cantigas, das rodas de

    conversas e dos encontros de corpos predispostos a interagir dentro de um mesmo universo de

    saberes e experiências traz à tona a necessidade ainda primária do hic et nunc. Por mais que

    ela, inevitavelmente, aconteça dentro da modernidade, ela ainda mantém em alguns aspectos

    sua característica tradicional, a necessidade da convivência grupal real (em contraponto com a

    virtual que também acontece), o espaço dos cheiros, das vozes que passam dentro do ritual

    uma emoção diferente de quando se assiste um DVD, ainda é fundamental para a

    comunidade.

    Assim, a Capoeira Angola entendida como uma manifestação da Cultura Tradicional

    que se desenvolve e/ou se transforma constantemente, sem deixar de lado seu preceito decontinuidade (tradição), e que, segundo Bakhtin “sempre, em todas as etapas do seu

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    desenvolvimento, tem resistido à cultura oficial e tem produzido o seu ponto de vista

     particular sobre o mundo e suas próprias formas para refleti-lo” (1988, p. 429). Portanto, ela

     produz espaços de convivência e de criação que podem dialogar a todo tempo com o mundo.

    Os conhecimentos passados na roda refletem a grande roda da vida, a roda de capoeira é umreflexo do universo, é uma camada da grande camada circular que abriga universos dentro de

    um cosmo, que também se vê dentro de cosmos. Nela aprende-se como entrar e como sair de

    situações variáveis, aprende-se a defesa, o ataque, a malícia, a perspicácia, a manha, a ginga,

    aprende-se a ouvir, aprende-se a falar, aprende-se esperar, e, o mais difícil, aprende-se a

    mandingar. Mas dedicaremos um tópico especial para a mandinga.

     Nesse tópico de Cultura Popular e Cultura Tradicional convém citarmos novamente a

    ideia de “vínculo criador -comunidade” de Antonio Candido contida em  Literatura e

    Sociedade. Lá encontramos algumas chaves para a linhagem de pensamentos aqui seguida,

    como, por exemplo, a questão da obra de arte. Pode-se com firmeza e segurança afirmar a

    expressão da Capoeira Angola como algo pautado em elementos de arte. Começa-se pelo seu

    desejo de beleza, sobre o qual já falamos. Mas, além disso, tal vínculo ajuda-nos a confirmar

    o valor artístico dessa tal Capoeira Angola. Entende-se que a Cultura Popular estabelece um

    vínculo criador-comunidade bastante significativo, é a situação do hic et nunc, que se firma na

     proximidade entre a voz e o ouvinte, entre os gestos e as reações do público, entre a

    espontaneidade e os risos, dentre muitas outras relações que se dão dentro dessa condição do

    “aqui e agora”. 

     Na roda fica bastante clara essa aproximação de corpos, é na roda que as trocas se

    concretizam, é lá que a voz ecoa, portanto é nessa corrente circular que energias circulam e

    mais do que vida e encontros, a arte se faz presente. Ela se faz presente na manifestação

    cultural por meio da espontaneidade, mas também por meio da elaboração do ritual. O ritual

     possui valor estético e vai além do plano terreno, migra para outros planos, busca outros

    sentidos, e seu veículo principal para transcender a normalidade da vida é a música, os cantos,

    a composição dos corpos, o vínculo firmado dentro de uma roda, que por sua vez é simbólico,

     pode-se imaginar desde a serpente engolindo seu próprio rabo até a volta ao mundo, são

    infinitas possibilidades de interpretar o símbolo da circularidade e é dentro desse símbolo

    mítico-artístico que se constrói a obra da Capoeira Angola, que, como arte, não tem uma

    função específica, transcende ao som, às rimas, aos movimentos físicos, à dança, ao gesto,

     pois tudo faz parte de um mesmo ritmo, ritmo marcado dentro dessa mesma junção, nas

    subjacências da Capoeira Angola.

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    Mas como Cultura Popular ela integra rituais múltiplos e diversidades que

    transformam sua forma de ocorrer. Como tal, ela acontece na rua de maneira bem diferente do

    que aconteceria num teatro, assim como numa escola, numa produção audiovisual, ela está no

    mundo e para o mundo; e se refletirmos ainda sobre o termo Cultura Popular, podemosafirmá-lo como algo que “vem do povo”, mas pode ser desfrutado por quem quer que seja,

    independente de credo ou classe. Na sua simplicidade, ocorrem os sentidos estéticos que

    muitas vezes já serviram de inspiração à arte erudita, como por exemplo no poema  Batuque 

    de Guimarães Rosa (1997). A Cultura Popular, entendida aqui por uma Cultura Tradicional

    manifesta-se como arte, como diálogo, como cotidiano, como vida. Assim, a Capoeira Angola

     pode ser considerada parte da Cultura Popular, mas é importante frisar que ela jamais se

    resumirá a isso, pois dentro da sociedade ela pode assumir inúmeras funções partindo do

     pressuposto caráter artístico que traz em sua performance:

    O que chamamos de arte não é apenas aquilo que culmina em grandes obras,mas um espaço onde a sociedade realiza sua produção visual. É nessesentido amplo que o trabalho artístico, sua circulação e seu consumoconfiguram um lugar apropriado para compreender as classificações segundoas quais se organiza o social. (CANCLINI, 2000, p. 246)

    Inúmeras são as possibilidades de definir a Capoeira: manifestação artística de cunho

     popular, Cultura Popular Tradicional, tradição afrobrasileira composta por música, dança,

    teatro de rua, luta baiana, brincadeira, mecanismo de defesa, de ataque, resistência, arte

    marcial, diálogo de corpos, roda de repentes, arte marginal, esporte, malícia, ginga de corpo,

    malandragem, tradição ancestral, coisa de vadios, poética oral, atração turística, macumba,

    terapia, dentre muitas outras possibilidades, porém aqui, tentaremos olhá-la como uma forma

    artística específica, dinâmica e com diversas funcionalidades de acordo com o contexto em

    que se enquadra. Ela faz jus a um bom vadio, que vive nela como um camaleão, de bom pode

    ser mal, pode ser multicor, multiforme, pode ser um simples camaleão dependendo de onde é

    visto.

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    CAPÍTULO III –  ASPECTOS GERAIS DA RODA

    É  

    no coração da música oral que se formam as constantes do verso  

    (BOSI, 1977, p. 85)

    A roda da Capoeira Angola geralmente é composta por três berimbaus, instrumento

    que foi e continua sendo tema de ladainhas e corridos, como a tradicional faixa “B-A-BA do

     berimbau” cantada por mestre Pastinha, no disco Eternamente:

    Eu vou ler o bê-a-baBê-a-ba do berimbauA moeda e o arameCom dois pedaços de pau

    A cabaça e o caxixiAí está o berimbauO berimbau é um instrumentoQue toca numa corda sóVai tocar são Bento GrandeToca Angola em tom maiorAgora acabei de verBerimbau é o maior.(PASTINHA, S/D, Disco)

    A partir dessa ladainha fica mais fácil visualizarmos o berimbau, instrumento

    ancestral, de aparência rústica e som baseado em efeitos e dobras, segundo mestre Pastinha, o berimbau feito de cabaça10  possui influência indígena. Mário de Andrade fez um estudo

    dedicado apenas ao berimbau de boca, aqui falamos do berimbau usado no Brasil em rodas de

    Capoeira, lembrando que ele também pode aparecer em espetáculos artísticos variados, ele é o

    conhecido berimbau de barriga, que pode apresentar influências afro-indígenas. Dentre os três

     berimbaus presentes numa roda temos o  Berra-boi ou Gunga  (o nome varia dependendo do

    grupo), mestre Claudio Costa, mestre do grupo Os Angoleiros do Sertão, defende o termo

     Berra-boi,  pois afirma que mestre Waldemar da Paixão assim o denominava e argumentaainda que se o berimbau médio não tem nome próprio, os outros dois deveriam então se

    chamar grande, médio e pequeno, argumento este bastante pertinente, que defende a

    nomeação dos três berimbaus sem diferenciação.

    Mas voltando ao  Berra-boi, esse berimbau “comanda” a roda. Ele é o berimbau

    mestre, possui a cabaça maior “que se casa” com a verga, esta que pode ser de tamanho um

     pouco variado e é derivada principalmente das madeiras de biriba (verga encontrada na região

    nordeste do Brasil), e, de que se constata até este momento da pesquisa, amendoim e candeia,

    10 Cucúrbita lagenaria, Linneu. Planta de vegetação rasteira encontrada em solo nacional.

  • 8/18/2019 Yahn Cac Me Assis

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    encontradas no Oeste Paulista. Este berimbau, segundo relato do Mestre Manoel, conhecido

    como “Manel”, nascido em Caxias-RJ, e morador da Maré, o  Berra-boi deve ser entregue,

     para uma pessoa responsável, que tenha percepção do mundo dentro e fora da roda

    (CAPOEIRA ANGOLA, 2007, DVD/Paris). Geralmente quem segura o  Berra-boi  é umMestre, e, se a roda tiver um mestre antigo, sábio, provido de axé, e com o chamado “dendê”

    (o que dá sabor, graça, tempero), ele conduzirá a roda, ele será o cantador, muitas vezes ele

    escolherá quem vai jogar, quem vai cantar e, provavelmente ele fechará a roda.

    O berimbau Gunga é o intermediário entre o timbre grave do  Berra-boi  e o timbre

    agudo da Viola, seu tom é soprano e sua função é segurar a harmonia entre os outros dois

     berimbaus. A Viola é o berimbau de “cabacinha”, seu timbre é bem agudo e sua função é

    repicar dialogando com o  Berra-boi. Esses três berimbaus de barriga, (existe ou existiu o

     berimbau de boca no Brasil, como contam os mestres antigos), são tocados geralmente

    acompanhados de um caxixi que, como define Waldeloir Rego, “é um pequeno chocalho feito

    de palha trançada com a base de cabaça, cortada em forma circular e a parte superior reta,

    terminando com uma alça da mesma palha, para se apoiar os dedos durante o toque” (REGO,

    1968, 87), traço da influência indígena, quando para tocar o berimbau ele é segurado pela

    mesma mão que segura a baqueta (um dos dois pedaços de pau que é falado na ladainha), e o

    tocador deve ter na outra mão um dobrão (moeda antiga, também citada na ladainha) ou uma

     pedra.

    Cabe ressaltar que adotaremos o termo  Berra-boi por questões de opinião, didáticas e

    de grupo, a pesquisadora faz parte da Escola de Capoeira Os Angoleiros do Sertão  fundada

    em Feira de Santana-BA, em meados dos anos 80, pelo Mestre Cláudio Costa, e que vem se

    desenvolvendo no estado de São Paulo desde 1986. Recentemente, sob a responsabilidade do

    Contramestre Xandão, a Escola vem desenvolvendo trabalhos junto a Faculdade de Ciências e

    Letras de Assis  –   UNESP, com projeto de extensão, atuando das mais diversas formas no

    contexto acadêmico.

    Quanto aos berimbaus, segundo linhagem do Grupo em pesquisa, o responsável que

    estiver segurand