Machado de Assis Papeis Avulsos

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Transcript of Machado de Assis Papeis Avulsos

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    Gayet (Montaigne, Des livres)

    Ex Libris Jos Mindl in

  • PAPEIS AVULSOS

  • OBRAS DO AUTOR

    MEMRIAS POSTHUMAS DE BKAZ CUBAS. 1 vol. PAPEIS AVULSOS . HELENA. YAY GARCIA RESURREIO A MO E A LUYA. HISTORIAS DA MEIA NOITE . CONTOS FLUMINENSES. AMERICANAS. PHALENAS. CHRYSALIDAS T SO\ TU, PURO AMOR .

  • MACHADO DE ASSIS

    PAPEIS AVULSOS O ALIENISTA THEORIA DO MEDALHO

    A CHINELA TURCA NA ARCA D. BENEDICTA O SEGREDO DO BONZO

    O ANNEL DE POLYCBATES O EMPRSTIMO A SERENSSIMA REPUBLICA

    O ESPELHO UMA VISITA DE ALCIBIADES VERBA TESTAMENTARIA

    RIO DE JANEIRO ' Typographla e Lithographia a vapor, Encadernao e Livraria

    LOMBAERTS & C.

    7 Rua dos Ourives 7 1882

  • ADVERTNCIA

    Este titulo de Papeis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor colligiu vrios escriptbs de ordem diversa para o fim de os no perder, A verdade essa, sem ser bem essa. Avulsos so elles, mas no vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. So pessoas de uma s familia, que a obrigao do pae fez sentar mesma mesa.

    Quanto ao gnero delles, no sei que diga que no seja intil. O livro est nas mos do leitor. Direi somente, que se ha aqui paginas que parecem meros contos, e outras que o no so, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nellas algum interesse, e das primeiras defendo-me com S. Joo e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalyptica, accrescentava (xvu, 9): " E aqui ha sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquella palavra. Quanto a Diderot, ningum ignora que elle, no s escrevia contos, e alguns deliciosos, mas at aconselhava a um amigo que os escrevesse tambm. E eis a razo do encyclopedista: que quando se faz um conto, o espirito

  • O ALIENISTA

    DE COMO 1TAOUAHY GANHOU UMA CASA DE ORATES.

    As chronicas da villa de Itaguahy dizem que em tempos remotos vivera alli um certo medieo, o Dr. Simo Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior, dos mdicos do Brazil, de Portugal e das Hespanhas. Estudara em Coimbra e Padua. Aos trinta e quatro annos regressou ao Brazil, no po-dendo el-rei alcanar delle que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou era Lisboa, expedindo os negcios da monarchia. *

    *A sciencia, disse elle a Sua Magestade, o meu emprego tmico; Itaguahy o meu universo.

    Dito isto, metteu-se em Itaguahy, e eatregou-se de corpo e alma ao 'estudo da sciencia, alter-

  • PAPEIS AVULSOS

    nando as curas com as leituras, e demonstrando os theoremas com cataplasmas. Aos quarenta annos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco annos, viuva de um juiz de fora, e no bonita nem sympathica. Um dos tios delle, caador de pacas perante o Eterno, e no menos franco, admirou-se de semelhante es-colha e disse-lhro. Simo Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condies physiologicas e anatmicas de primeira ordem, digeria com facili-dade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e ex-cellente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos, robustos, sos e intelligentes. Se alm dessas pren-das, nicas dignas da preoccupao de um sbio, D. Evarista era.jnal composta de feies, longe de lastimal-o, agradecia-o a Deus, porquanto no corria o risco de preterir os interesses da sciencia na con-f templao exclusiva, mida e vulgar da consorte.

    D. Evarista mentiu s esperanas do Dr. Baca-marte, no lhe deu filhos robustos nem mofinos. A indole natural da sciencia a longanimidade; o nosso medico esperou tres annos, depois quatro, de-pois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo pro-fundo da matria, releu todos os escriptores rabes e outros, que trouxera para Itaguahy, enviou con-

  • O ALIENISTA

    sultas s universidades italianas e allems, e acabou por aconselhar mulher um regimen alimentcio especial. A illustre dama, nutrida exclusivamente com a bella carne de porco de Itaguahy, no atten-deu s admoestaes do esposo; e sua resistncia, explicvel, mas inqualificvel, devemos a total extinco da dynastia dos Bacamartes.

    Mas a sciencia tem o ineffavel dom de curar todas as magoas; o nosso medico mergulhou intei-ramente no estudo e na pratica da medicina. Foi ento que um dos recantos desta lhe chamou espe-cialmente a atteno, o recanto psychico, o exame da pathologia cerebral. No havia na colnia, e

    1 ainda no reino, uma s autoridade em semelhante matria, mal explorada, ou quasi inexplorada. Simo Bacamarte comprehendeu que a sciencia lusitana, e particularmente a brazileira, podia cobrir-se de louros immarcessiveis, expresso usada por elle mesmo, mas em um arroubo de intimidade do-mestica; exteriormente era modesto, segundo con-vm aos sabedores.

    A sade da alma, bradou elle, a occupao mais digna do medico.

    Do verdadeiro medico, emendou Crispim Soares, boticrio da villa, e um dos seus amigos e comensaes

  • PAPEIS AVULSOS

    Avereanade Itaguahy, entre outros peccados de que arguida pelos chronistas, tinha o de no fazer caso dos dementes. Assim que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na prpria casa, e, no curado, mas descurado, at que a moite o vinha defraudar do beneficio da vida; os mansos andavam solta pela rua. Simo Bacamarte enten-deu desde logo reformar to ruim costume; pediu licena cmara para agasalhar e tratar no edifcio que ia construir todos os loucos de Itaguahy e das demais villas e cidades, mediante um estipendio, que a cmara lhe daria quando a famlia do enfermo o no podesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a villa, e encontrou grande resistncia, to certo que difficilmente se desarraigam hbitos absurdos, ou ainda maus. A ida de metter os loucos na mesma casa, vivendo em commum, pareceu em si mesma um symptoma de demncia, e no faltou quem o insinuasse prpria mulher do medico.

    Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigrio do logar, veja se seu marido d um passeio ao Kio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, no bom, vira o juizo.

    D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe que estava com desejos , um principal-

  • O ALIENISTA

    mente, o de vir ao Kio de Janeiro e comer tudo o que a elle lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquelle grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a inteno da esposa e redar-guiu-lhe sorrindo que no tivesse medo. Dalli foi cmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqncia, que a maioria re-solveu autorisal-o ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o trata-mento, alojamento e mantimento dos doudos pobres. A matria do imposto no foi fcil achal-a; tudo estava tributado em Itaguahy. Depois de longos es-tudos, assentou-se em permittir o uso de dous pen-nachos nos cavallos dos enterros. Quem quizesse em-plumar os cavallos de um coche mortuario pagaria dois tostes cmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do fallecimento e a da ultima beno na sepultura. O escrivo perdeu-se nos clculos arithmeticos do rendimento possvel da nova taxa; e um dos vereado-res, que no acreditava na empreza do medico, pediu que se relevasse o escrivo de um trabalho intil-

    Os clculos no so precisos, disse elle, porque o Dr. Bacamarte no arranja nada. Quem que viu agora metter todos os doudos dentro da mesma casa?

  • PAPEIS AVULSOS

    Enganava-se o digno magistrado; o medico arran-jou tudo. Uma vez empossado da licena comeou logo a construir a casa. Era na rua Nova, a mais bella rua de Itaguahy naquelle tempo, tinha cin-coenta j anel! as por lado, um pateo no centro, e numerosos cubculos para os hospedes. Como fosse grande arabista, achou no Koran que Mahomet declara veneraveis os doudos, pela considerao de que Allah lhes tira o juizo para que no pequem. A ida pareceu-lhe bonita e profunda, e elle a fez gravar no frontespicio da casa; mas, como tinha medo ao vigrio, e por tabeli ao bispo, attribuhr o pensamento a Benedicto VIII, merecendo com essa fraude, alis pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoo, a vida daquelle pontfice eminente.

    A Casa Verde foi o nome dado ao asylo, por allu-so cr das janellas, que pela primeira vez appa-reciam verdes em Itaguahy. Inaugurou-se com im-mensa pompa; de todas as villas e povoaes pr-ximas, e at remotas, e da prpria cidade do Kio de Janeiio, correu gente para assistir s ceremonias, que duraram sete dias. Muitos dementes j estavam recolhidos ; e os parentes tiveram occasio de ver o carinho paternal e a caridade christ com que elles iam ser tratados. D. Evarista, contentissima com a

  • O ALIENISTA

    gloria do marido, vestira-se luxuosamente, .cobriu-se de jias, flores e sedas. Ella foi uma verdadeira rainha naquelles dias memorveis; ningum deixou de ir visital-a duas e trez vezes, apezar dos costumes caseiros e recatados do sculo, e no s a cortejavam como a louvavam; porquanto, e este facto um documento altamenta honroso para a sociedade do tempo, porquanto viam nella a feliz esposa de um alto espirito, de um varo illustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

    Ao cabo de sete dias expiraram as festas publicas; Itaguahy tinha finalmente uma casa de Orates.

    II

    TORRENTE DE LOUCOS.

    Tres dias depois, numa expanso intima com o boticrio Crispim Soares, desvendou o alienista o mysterio do seu corao.

    A caridade, Sr. Soares, entra de certo no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das cousas, que assim que interpreto o dito de

  • PAPEIS AVULSOS

    S. Paulo aos Corinthios: Se eu conhecer quanto se pode saber, c no tiver caridade, no sou nada. O principal nesta minha obra da Casa Verde estu-dar profundamente a loucura, os seus diversos gros, classificar-lhe os casos, descobrir emfim a causa do phenomeno e o remdio universal. Este o mysterio do meu corao. Creio que com isto presto um bom servio humanidade.

    Um excellente servio, corrigiu o boticrio. Sem este asylo, continuou o alienista, pouco po-

    deria fazer; elle d-me, porm, muito maior campo aos meus estudos.

    Muito maior, accrescentou o outro. E tinham razo. De todas as villas e arraiaes

    visinhos affluiam loucos Casa Verde. Eram fu-riosos, eram mansos, eram monomaniacos, era toda a familia dos desherdados do espirito. Ao cabo de quatro mezes, a Casa Verde era uma povoao. No bastaram os primeiros cubculos ; mandou-se anne-xar uma galeria de mais trinte e sete. O padre Lopes confessou que no imaginara a existncia de tantos doudos no mundo, e menos ainda o inexpli-cvel de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e villo, que todos os dias, depois do almoo fazia regularmente, um discurso acadmico, ornado

  • O ALIENISTA

    de tropos, de antitheses, de apostrophes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cicero, Apuleo e Tertuliano. O vigrio no queria acabar do crer. Que! um rapaz que elle vira, tres mezes antes, jogando peteca na rua!

    No digo que no, respondia-lhe o alienista; mas a verdade o que Vossa Reverendissima est vendo. Isto. todos os dias.

    Quanto a mim, tornou o vigrio, s se pde explicar pela confuso das lnguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escriptura; provavel-mente, confundidas antigamente as lnguas, fcil trocal-as agora, desde que a razo no trabalhe...

    Essa pde ser, com effeito, a explicao divina do phenomeno, concordou o alienista, depois de re-flectir um instante, mas no impossvel que haja tambm alguma razo humana, e puramente scien-tifica, e disso trato...

    V que seja, e fico ancioso. Realmente! Os loucos por amor eram tres ou quatro, mas s

    dous espantavam pelo curioso do delrio. O primeiro, um Falco, rapaz de vinte e cin 30 annos, suppunha-se estrella d'alva, abria os braos e alargava as pernas, para dar-lhes cprta feio de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol j tinha

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    ..saindo para elle recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, roda das salas ou do pa-teo, ao longo dos corredores, procura do fim do mundo. Era um desgraado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e sahiu-lhes no encalo; achou-os duas horas depois, ao p de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O cime satisfez-se, mas o vingado estava louco. E ento comeou aquella anci de ir ao fim do mundo cata dos fugitivos.

    A mania das grandezas tinha exemplares notveis. O mais notvel era um pobre diabo, filho de um al-gibebe, que narrava s paredes (porque no olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

    Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou David, David engendrou a purpura, a purpura engendrou o duque, o du-que engendrou o marquez, o marquez engendrou o conde, que sou eu.

    Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

    Deus engendrou um ovo, o ovo, etc. Outro da mesma espcie era um escrivo, que se

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    vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeas a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e no acabava mais. No fallo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se Joo de Deus, dizia agora ser o deus Joo, e promettia o reino dos cos a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que no dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma s palavra, todas as estrellas se despegariam do co e abrasariam a terra ; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia elle no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse scientifico.

    Que, na verdade, a pacincia do alienista era ainda mais extraordinria do que todas as manias hospedadas na Casa Verde ; nada menos que assom-brosa. Simo Bacamarte comeou por organisar um pessoal de administrao; e, aceitando essa ida ao boticrio Crispim Soares, aceitou-lhe tambm dous sobrinhos, a quem incumbiu da execuo de um re-gimento que lhes deu, approvado pela cmara, da distribuio da comida e da roupa, e assim tambm da escripta, etc. Era o melhor que podia fazer, para

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    somente cuidar do seu officio.A Casa Verde, disse elle ao vigrio, agora uma espcie de mundo, em que ha o governo temporal e o governo espiritual E o padre Lopes ria deste pio trocado, e accres-centava, com o nico fim de dizer tambm uma. chalaa: Deixe estar, deixe estar, que hei de man-dal-o denunciar ao papa.

    Uma vez desonerado da administrao, o alienista procedeu a uma vasta classificao dos seus enfer-mos. Dividiu-os primeiramente em duas classes prin-cipaes: os furiosos e os mansos; dahi passou s sub-classes, monomanias, delrios, allucinaes di-versas. Isto feito, comeou um estudo aturado e continuo; analysava os hbitos de cada louco, as horas de accesso, as averses, as sympathias, as palavras, os gestos, as tendncias; inquiria da vida dos enfermos, profisso, costumes, circumstancias da revelao mrbida, accidentes da infncia e da mo-cidade, doenas de outra espcie, antecedentes na famlia, uma devassa, emfim, como a no faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observao nova, uma descoberta interessante, um phenomeno extraordinrio. Ao mesmo tempo estu-dava o melhor regimen, as substancias medicamen-tosas, os meios curativos e os meios palliativos no

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    .s os que vinham nos seus amados rabes, como os que elle mesmo descobria, fora de sagacidade e pacincia. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o me-lhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; , ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questo, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma s palavra a D. Evarista.

    III

    DEUS SABE O QUE FAZ

    A illustre dama, no fim de dous mezes, achou-se a mais desgraada das mulheres; cahiu em pro-funda melancholia, ficou amarella, magra, comia pouco Suspirava a cada canto. No ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nelle o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que que tinha, res-pondeu tritemente que nada; depois atreveu-se um

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    pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava to viuva como d'antes. E accrescentou:

    Quem diria nunca que meia dzia de lun-ticos...

    No acabou a phrase; ou antes, acabou-a levan-tando os olhos ao tecto, os olhos, que eram a sua feio mais insinuante, negros, grandes, lavados de uma luz humida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em quo Simo Bacamarte a pediu em casamento. No dizem as chronicas se D. Evarista brandiu aquella arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a. sciencia, ou, pelo menos, decepar-lhe as mos; mas a. conjectura verosimil. Em todo caso, o alienista no lhe attribuiu outra inteno. E no se irritou o grande homem, no ficou sequer consternado. O metal de seus olhos no deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veiu quebrar a superfcie da fronte quieta como a gua de Botafogo. Talvez uni sorriso lhe descerrou os lbios, por entre os quaes filtrou esta palavra macia como o leo do Cntico :

    Consinto que vs dar um passeio ao Rio de-Janeiro.

    D. Evarista sentiu faltar-lhe o cho debaixo dos-

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    ps. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto no fosse sequer uma pallida sombra do que hoje , todavia era alguma cousa mais do que Ita-guahy. Ver o Rio de Janeiro, para ella, eqivalia ao sonho do hebreu captivo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquella povoao inte-rior, agora que ella perdera as ultimas esperanas de respirar os ares da nossa boa cidade ; e jus-tamente agora que elle a convidava a realisar os seus desejos de menina e moa. D. Evarista no pde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simo Bacamarte pegou-lhe na mo e sorriu, um sorriso tanto ou quanto philosophico, alm de con-jugai, em que parecia traduzir-se este pensamento : No ha remdio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a no amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se. E porque era homem estudioso tomou nota da obser-vao.

    Mas um dardo atravessou o corao de D. Eva-rista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido, que, se elle no ia, ella no iria tambm, porque no havia de metter-se sozinha pelas estradas.

    Ir com sua tia, redarguiu o alienista. Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mes-

  • 1 6 PAPEIS AVULSOS

    mo; mas no quizera pedil-o nem insinual-o, em primeiro logar porque seria impor grandes despezas ao marido, em segundo logar porque era melhor, mais methodico e racional que a proposta viesse delle.

    Oh! mas o dinheiro que ser preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convico.

    Que importa ? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda hontem o escripturario prestou-me contas. Queres ver?

    E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslum-brada. Era uma via-lactea de algarismos. E depois levou-a s arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cru-zados, dobres sobre dobres; era a opulencia. Em-quanto ella comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais prfida das alluses.

    Quem diria que meia dzia de lunticos... D. Evarista comprehendeu, sorriu e respondeu

    com muita resignao: Deus sabe o que faz ! Tres mezes depois effectuava-se a jornada. D. Eva-

    rista, a tia, a mulher do boticrio, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lis-

  • O ALIENISTA 17

    boa, e que de aventura achava-se em Itaguahy, cinco ou seis pagens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a populao viu dalli sahir em certa manh do mez de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Comquanto as lagrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, no che-garam a abalal-o. Homem de sciencia, e s de scien-cia, nada o consternava fora da sciencia; e se alguma cousa o preoccupava naquella occasio, se elle dei-xava correr pela multido um olhar inquieto e poli-cial, no era outra cousa mais do que a ida de que algum demente podia achar-se alli misturado com a gente de juizo.

    Adeus! soluaram emfim as damas e o bo-ticrio.

    E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado ; Simo Bacamarte alongava os seus pelo horisonte adiante, deixando ao cavallo a responsabilidade do regresso. Imagem vi-vaz do gnio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lagrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

  • 18 PAPEIS AVULSOS

    IV

    UMA THEORIA NOVA

    Ao passo que D. Evarista, em lagrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simo Bacamarte estu-dava por todos os lados uma certa ida arrojada e nova, prpria a alargar as bases da psychologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil as-sumptos, e virgulando as fallas de um olhar que mettia medo aos mais hericos.

    Um dia de manh, eram passadas tres semanas, estando Crispim Soares occupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

    Trata-se de negocio importante, segundo elle me disse, accrescentou o portador.

    Crispim empallideceu. Que negocio importante podia ser, se no alguma triste noticia da comitiva, e especialmente da mulher ? Porque este tpico deve ficar claramente definido, visto insistirem nelle os chronistas : Crispim amava a mulher, e, desde trinta annos, nunca estiveram separados um s dia. Assim

  • O ALIENISTA 19

    se explicam os monlogos que elle fazia agora, e que os fmulos lhe ouviam muita vez : Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesaria ? Bajulador, torpe bajulador ! S para adu-lar ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalho, vil, miservel. Dizes amen a tudo, no ? ahi tens o lucro, biltre! E muitos outros nomes feios, que um homem no deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o effeito do recado um nada. To depressa elle o recebeu como abriu mo das drogas e voou Casa Verde.

    Simo Bacamarte recebeu-o com a alegria pr-pria de um sbio, uma alegria abotoada de circums-peco at o pescoo.

    Estou muito contente, disse elle. Noticias do nosso povo? perguntou o boticrio

    com a voz tremula. O alienista fez um gesto magnifico, e respondeu : Trata-se de cousa mais alta, trata-se de uma

    experincia scientifica. Digo experincia, porque no me atrevo a assegurar desde j a minha ida; nem a sciencia outra cousa, Sr. Soares, se no uma in-vestigao constante. Trata-se, pois, de uma expe-rincia, mas uma experincia que vai mudar a face

  • gO P A P E I S AVULSOS

    da terra. A loucura, objecto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; co-meo a suspeitar que um continente.

    Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do botieario. Depois explicou compridamente a sua ida. No conceito delle a insania abrangia uma vasta superfcie de crebros; e desenvolveu isto com grande cpia de raciocnios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na historia e em Itaguahy; mas, como um raro espirito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguahy, e refugiou-se na historia. Assim, apontou com especialidade alguns personagens celebres, Scrates, que tinha um dem-nio familiar, Pascal, que via um abysmo esquerda, Mahomet, Caracalla, Domiciano, Caligula, etc, uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridculas. E porque o boticrio se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma cousa, e at accrescentou sentenciosamente:

    A ferocidade, Sr. Soares, o grotesco a serio. Gracioso, muito gracioso ! exclamou Crispim

    Soares levantando as mos ao co. Quanto idia de ampliar o territrio da lou-

    cura, achou-a o boticrio extravagante; mas a mo-

  • O ALIENISTA 21

    destia, principal adorno de seu espirito, no lhe soffreu confessar outra cousa alm de um nobre enthusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e accrescentou que era caso de matraca. Esta expresso no tem equivalente no estylo moderno. Naquelle tempo, Itaguahy, que como as demais villas, arraiaes e povoaes da colnia, no dispunha de imprensa, tinha dous modos de divulgar uma no-ticia : ou por meio de cartazes manuscriptos e pre-gados na porta da cmara e da matriz; ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contractava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma ma-traca na mo. De quando em quando tocava a ma-traca, reunia-se gente, e elle annunciava o que lhe incumbiam, um remdio para sezes, umas terras lavradias, um soneto, um donativo ecclesiastico, a melhor thesoura da villa, o mais bello discurso do anno, etc. O systema tinha inconvenientes para a paz publica; mas era conservado pela grande energia de divulgao que possua. Por exemplo, um dos vereadores, aquelle justamente que mais se op-puzera creao da Casa Verde, desfructava a reputao de perfeito educador de cobras e macacos, e alis nunca domesticra um s desses bichos;

  • 22 PAPEIS AVULSOS

    mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os mezes. E dizem as chronicas que alguma? pessoas affirmavam ter visto cascavis dansando no peito do vereador; affirmao perfeitamente falsa, mas s devida absoluta confiana no systema. Ver-dade, verdade; nem todas as instituies do antigo regimen, mereciam o desprezo do nosso sculo.

    Ha melhor do que annunciar a minha idia, pratical-a, respondeu o alienista insinuao do bo-ticrio.

    E o boticrio, no divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor co mear pela execuo.

    Sempre haver tempo de a dar matraca, concluiu elle.

    Simo Bacamarte reflectiu ainda um instante, e disse :

    Suppondo o espirito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, ver se posso extrahir a prola, que a razo ; por outros termos, demar-quemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades ; fora dahi insania, insania, e s insania.

    O vigrio Lopes, a quem elle confiou a nova theo-ria, declarou lisamente que no chegava a entendel-a,

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    que era uma obra absurda, e, se no era absurda, era de tal modo collossal que no merecia principio de execuo.

    Com a definio actual, que a de todos os tempos, accrescentou, a loucura e a razo esto per-perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra comea. Para que transpor a cerca ?

    Sobre o lbio fino e discreto do alienista roou a vaga sombra de uma inteno de riso, em que o des-dm vinha casado commiserao ; mas nenhuma palavra sahiu de suas egrgias entranhas. A sciencia contentou-se em estender a mo theologia, com tal segurana ,que a theologia no soube emfim se devia crer em si ou na outra. Itaguahy e o universo ficavam beira de uma revoluo.

    o TERROR.

    Quatro dias depois, a populao do Itaguahy ou-viu consternada a noticia de que um certo Costa fora recolhido Casa Verde.

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    Impossivel! Qual impossivel! foi recolhido hoje de manh.

    Mas, na verdade, elle no merecia... Ainda em cima! depois de tanto que elle fez...

    Costa era um dos cidados mais estimados de Itaguahy. Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de el-rei D. Joo V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver at o fim do mundo. To depressa recolheu a herana, como entrou a dividil-a em em-prstimos, sem usura, mil cruzados a um, dous mil a outro, trezentos a este, oitocentos aquelle, a tal ponto que, no fim de cinco annos, estava sem nada, Se a misria viesse de chofre, o pasmo de Itaguahy seria enorme ; mas veiu de vagar; elle foi passando da opulencia abastana, da abastana mediania, da mediania pobreza, da pobreza misria, gra-dualmente. Ao cabo daquelles cinco annos, pessoas que levavam o chapu ao cho, logo que elle asso-mava no fim da rua, agora batiam-lhe no hombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, di-ziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos cortezes eram justamente os que tinham ainda a divida em aberto; ao contrario, parece que os agazalhava com

  • O ALIENISTA 25

    maior prazer, e mais sublime resignao. Um dia, como um desses incurveis devedores lhe atirasse uma chalaa grossa, e elle se risse delia, observou um desaffeioado, com certa perfdia : Voc sup-porta esse sujeito para ver se elle lhe paga. Costa no se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a divida. No admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mo de uma estrella, que est no cu. Costa era perspicaz, entendeu que elle negava todo o merecimento ao acto, attribuindo-lhe a inten-o de rejeitar o que no vinham metter-lhe na algi-beira. Era tambm pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe no cabia um tallabo: pegou de algumas dobras, e' mandou-as de emprstimo ao devedor.

    Agora espero que... pensou elle sem con-cluir a phrase.

    Esse ultimo rasgo do Costa persuadiu a crdulos e incrdulos; ningum mais pz em duvida os senti-mentos cavalheirescos daquelle digno cidado. As necessidades mais acanhadas sahiram rua, vieram bater-lhe porta, com os seus chinellos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, roia a alma do Costa: era o conceito do desaffecto. Mas isso mesmo acabou; trez mezes depois veiu

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    este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com pro-messa de restituir-lh'os dahi a dous dias; era o residuo da grande herana, mas era tambm uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente no teve tempo de ser pago; cinco mezes depois era recolhido Casa Verde.

    Imagina-se a consternao de Itaguahy, quando soube do caso. No se fallou em Outra cousa, di-zia-se que o Costa ensandecera, ao almoo, outros que de madrugada; e contavam-se os accessos, que eram furiosos, sombrios, terriveis, ou mansos, e at engraados, conforme as verses. Muita gente correu Casa Verde, e achou o pobre Costa, tran-quillo, um pouco espantado, fallando com muita clareza, e perguntando porque motivo o tinham le-vado para alli. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte approvava esses sentimentos de estima e compaixo, mas accrescentava que a sciencia era a sciencia, e que elle no podia deixar na rua um mentecapto. A ultima pessoa que intercedeu por elle (porque depois do que vou contar ningum mais se atreveu a procurar o terrvel medico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem no estava no perfeito equilibrio das faculdades mentaes,

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    vista do modo como dissipara os cabedaes que... Isso, no! isso no! interrompeu a boa se-

    nhora com energia. Se elle gastou to depressa o que recebeu, a culpa no delle.

    No? No, senhor. Eu lhe digo como o negocio se

    passou. O defuncto meu tio no era mu homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapo ao Santssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe rou-bara um boi; imagine como ficou. A cara era um pimento; todo elle tremia, a boca escumava; lem-bra-me como se fosse hoje. Ento um homem feio, cabelludo, em mangas de camiza, chegou-se a elle e pediu gua. Meu tio (Deus lhe falle n'alma!) res-pondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O ho-mem olhou para elle, abriu a mo em ar de ameaa, e rogou esta praga: Todo o seu dinheiro no ha-de durar mais de sete annos e um dia, to certo como isto ser o sino salamo! E mostrou o sino salamo impresso no brao. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquelle maldito.

    Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhaes. Quando ella acabou, estendeu-lhe a mo polidamente, como se o fizesse

  • 23 PAPEIS AVULSOS

    prpria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir fallar ao primo. A misera acreditou; elle levou-a Casa Verde e encerrou-a na galeria dos allucinados.

    A noticia desta aleivosia do illustre Bacamarte lanou o terror alma da populao. Ningum que-ria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que no tinha outro crime seno o de interceder por um infeliz. Commenta-va-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outr'ora dirigira prima do Costa, a indignao do Costa e o desprezo da prima. E dahi a vingana. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que elle levava, pareciam desmentir uma tal hypothese. Historias! Tudo isso era natural-mente a capa do velhaco. E um dos mais crdulos chegou a murmurar que sabia de outras cousas, no as dizia, por no ter certeza plena, mas sabia, quasi que podia jurar.

    Voc, que intimo delle, no nos podia dizer o que ha, o que houve, que motivo...

    Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos attonitos, era para elle uma consagrao publica. No havia

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    duvidar; toda a povoao sabia emfim que o privado do alienista era elle, Crispim, o boticrio, o collabo-rador do grande homem e das grandes cousas; dahi a corrida botica. Tudo isso dizia o caro jocundo e o riso discreto do boticrio, o riso e o si-lencio, porque elle no respondia nada; um, dous, trez monosyllabos, quando muito, soltos, seccos, en-capados no fiel sorriso, constante e mido, cheio de mysterios scientificos, que elle no podia, sem des-douro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

    Ha cousa, pensavam os mais desconfiados. Um desses limitou-se a> pensal-o, deu de hombros

    e foi embora. Tinha negcios pessoaes. Acabava de construir uma casa sumptuosa. S a casa bastava para deter e chamar toda a gente; mas havia mais, a mobilia, que elle mandara vir da Hungria e da Hollanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janellas viviam abertas, e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albar-das,tinha tido sempre o sonho de uma casa magnfica, jardim pomposo, mobilia rara. No deixou o negocio das albardas, mas repousava delle na contemplao da casa nova, a primeira de Itaguahy, mais grandiosa

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    do que a Casa Verde,mais nobre do que a da cmara. Entre a gente illustre da povoao havia choro e ran-ger de dentes, quando se pensava, ou se fallava, ou se louvava a casa do albardeiro, um simples albar-deiro, Deus do ceu !

    L est elle embasbacado, diziam os transeun-tes, de manh.

    De manh, com effeito, era costume do Matheus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, at que vinham chamal-o para almoar. Os visinhos, embora o comprimentassem com certo respeito, riam-se por traz delle, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Matheus seria muito mais econmico, e estaria riqussimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigramma inintelligivel, mas que fazia rir s bandeiras despregadas.

    Agora l est o Matheus a ser contemplado, diziam tarde.

    A razo deste outro dito era que, de tarde, quando as famlias sahiam a passeio (jantavam cedo) usava o Matheus postar-se janella, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, attitude senhoril, e assim ficava duas e tres horas at que anoi-tecia de todo. Pode crer-se que a inteno do Ma-

  • O ALIENISTA 31

    theus era ser admirado e invejado, posto que elle no a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticrio, nem ao padre Lopes, seus grandes amigos. E entre-tanto no foi outra a allegao do boticrio, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que elle Bacamarte des-cubrira e estudava desde algum tempo. Aquillo de contemplar a casa...

    No, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares. No? Hade perdoar-me, mas talvez no saiba que

    elle de manh examina a obra, no a admira; de tarde, s-o os outros que o admiram a elle e obra. E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo at o cahir da noite.

    Uma volpia scientifica alumiou os olhos de Si-mo Bacamarte. Ou elle no conhecia todos os cos-tumes do albardeiro, ou nada mais quiz, interro-gando o Crispim, do que confirmar alguma noticia incerta ou suspeita vaga. A explicao satisfel-o; mas como tinha as alegrias prprias de um sbio, concen-tradas, nada viu o boticrio que fizesse suspeitar uma inteno sinistra. Ao contrario, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o brao para irem a passeio. Deus 1 era a primeira vez que Simo Bacamarte dava ao

  • 32 PAPEIS AVULSOS

    seu privado tamanha honra; Crispim ficou tremulo, atarantado, disse que sim, que estava prompto. Che-garam duas ou tres pessoas de fora, Crispim man-dou-as mentalmente a todos os diabos; no s atra. zavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma dellas, para acompanhal-o, e o dis-pensasse a elle. Que impacincia! que afflico! Emfim, sahiram. O alienista guiou para os lados da casa do albaideiro, viu-o janella, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, exami-nando as attitudes, a expresso do rosto. O pobre Matheus, apenas notou que era objecto da curiosi-dade ou admirao do primeiro vulto de Itaguahy, redobrou de expresso,deu outro relevo s attitudes... Triste! triste! no fez mais do que condemnar-se; no dia seguinte, foi recolhido Casa Verde.

    A Casa Verde um crcere privado, disse um medico sem clinica.

    Nunca uma opinio pegou e grassou to rapida-mente. Crcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguahy, a medo, verdade, porque durante a semana que se seguiu captura do pobre Matheus, vinte e tantas pessoas, duas . ou tres de considerao, foram recolhidas Casa Verde. O alienista dizia que s

  • O ALIENISTA 33

    eram admittidos os casos pathologicos, mas pouca gente lhe dava credito. Succediam-se as verses populares. Vingana, cobia de dinheiro, castigo de Deus, monomania do prprio medico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguahy qualquer germen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e mingua daquella cidade, mil outras explicaes, que no explicavam nada, tal era o producto dirio da imaginao publica.

    Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienis-ta, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, ou quasi toda, que algumas semanas antes partira de Itaguahy. O alienista foi recebel-a, com o boticrio, o padre Lopes, os vereadores, e vrios outros magistrados. O momento em que D. Evarista poz os olhos na pessoa do marido considerado pelos chronistas de tempo como um dos mais sublimes da historia moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrgias. D. Evarista soltou um grito, balbu-ciou uma palavra, e atirou-se ao consorte, de um gesto que no se pode melhor definir do que com-parando-o a uma mistura de ona e rola. No assim

  • 34 PAPEIS AVULSOS

    o illustre Bacamarte; frio como um diagnostico, sem desengonar por um instante a rigidez scientifia, estendeu os braos dona, que caiu nelles, e des-maiou. Curto incidente ; ao cabo de dous minutos, D. Evarista recebia os comprimentos dos amigos, e o prestito punha-se em marcha,

    D. Evarista era a esperana de Itaguahy 5 conta^ va-se com ella para minorar o flagello da Casa Verde. Dahi as acl^ maes publicas, a immensa gente que atulhava as ruas, as fiammulas, as flreg e da-mascos s janellas. Com o brao apoiado no do pa-dre Lopes,porque o eminente Bacamarte confiara a mulher ao vigrio, e acompanhava-os a passo medi-tativo,^ D. Evarista voltava a cabea a ura lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigrio in-dagava do Rio de Janeiro, que elle no vira desde o vice--r-einado anterior; e D. Evarista respondia, ertr thqsiasmada, que era a cousa majs bella qua podia haver no mundo. O Passeio Publico estava acabado, um paraso, onde ella fra muitas vezes, e a rua das Bellas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah ! o chfr fariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas, feitas de metal e despejando gua pela bocca fr$, Uma cousa galantissima. O vigrio dizia que sim, que o, Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito.

  • Q ALJENTST-A 35.

    v

    Se j o era n'outro tempo! No admira, maior do que Itaguahy, e de mais a mais sede do go-verno... Mas ho se pde dizer que Itaguahy fosse feio; tinha bellas casas, a casa do Matheus, a Cpsa Verde..,

    A propsito de Casa, Verde, disse o ppdre Lopes escorregando habilmente para o assumptQ d^ - occa--sio, a senhora vem achal-a muito cheia de gente,

    Sjra? E' verdade. L est o Matheus.- Q albardeiro? O albardeiro *, est o Costa, a prima do Costa,

    e Fulano, e Sicrano, e... Tudo isso doudo ? Ou quasi doudo, obtemperou o padre. ^- Mas ento? O yigario derreou os cantos da boca, maneira de

    quem *o sabe pada, ou no quer dizer tudo; res-posta vaga, que se no pode repetir a outra pessoa, por falta de texto. D. Evarista achou realmente ex-traordinrio que toda aquella gente ensajjdecesse; um ou outro, v; mas todos? Entretanto, custay}-lhe duvidar; o marido era qm sbio, no reco-lheria ningum Casa Verde sem prova evidente de loucp.ra.

  • 36 PAPEIS AVULSOS

    Sem duvida... sem duvida... ia pontuando o vigrio.

    Tres horas depois, cerca de cincoenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simo Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o as-sumpto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metaphoras, amplificaes, aplogos. Ella era a esposa do novo Hippocrates, a musa da sciencia, anjo, divina, aurora, caridade, vida, conso-lao; trazia nos olhos duas estrellas, segundo a verso modesta de Crispim Soares, e dous soes, no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas cousas um tanto enfastiado, mas sem visvel impa-cincia. Quando muito dizia ao ouvido da mulher, que a rhetorica permittia taes arrojos sem signifi-cao. D. Evarista fazia esforos para adherir a esta opinio do marido; mas, ainda descontando tres quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco an-nos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nasci-mento de D. Evarista era explicado pelo mais sin-gular dos reptos. Deus, disse elle, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e

  • O ALIENISTA 37

    essa prola da coroa divina (e o orador arrastava triumphalmente esta phrase de uma ponta a outra da mesa) Deus quiz vencer a Deus, e creou D. Eva-rista.

    D. Evarista baixou os olhos com exemplar mo-dstia. Duas senhoras, achando a cortezanice exces-siva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaas, e, provavel-mente, de sangue. O atrevimento foi grande, pen-saram as duas damas.. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episdio trgico, ou que o adiasse, ao menos, para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma dellas, a mais piedosa, chegou a admittir, comsigo mesma, que D. Evarista no me-recia nenhuma desconfiana, to longe estava de ser attrahente ou bonita. Uma simples agua-morna. Verdade que, se todos os gostos fossem eguaes, o que seria do amarello ? E esta idia fel-a tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito, e, levantados to-dos, foi ter cora elle e fallou-lhe do discurso. No lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magnificos. Seria delle mesmo a idia relativa ao nascimento de D. Evarista, ou tel-a-hia encon-

  • 38 PAPIS AVULSOS

    trado em algum autor que...? No, senhor; era delle mesmo; acho-a naquella occasio e parecera-lhe adequada a um arroubo oratrio. De resto, suas idias eram antes arrojadas do que temas ou jocosas. Dava para o pico. Uma vez, por exemplo, compz uma ode queda do marquez de Pombal, em que dizia que esse ministro era o drago asperrim do Nada, esmagado pelas garras vingadoras do Todo ; e assim outras, mais ou menos fora do commum; gostava das idias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

    Pobre moo! pensou o alienista. E continuou comsigo : Trata-se de um caso de leso cerebral; phenomeno sem gravidade, mas digno de estudo...

    D. Evarista ficou estupefacta quando soube, tres dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moo que tinha idas to bonitas! As duas senhoras attribuiram o acto a cimes do alienista. No podia ser outra cousa; realmente a declarao do moo fra audaciosa de mais.

    Cimes ? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos Jos Borges do Couto Leme, pessoa estimavel, o Chico das Cambraias, folgazo emrito, o escrivo Fabricio, e ainda outros? O terror accen-tuou-se. No se sabia j quem estava so, nem quem

  • O ALIENISTA 39

    estava doudo. As mulheres, quando os maridos saiam, mandavam accender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns no andavam fora sem um ou dous Capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos, chegou a ser preso a duzentos passos da villa. Era um rapaz de trinta annos, amvel, conversado, polido, to polido que no comprimentava algum sem levar o chapu ao cho; na rua, acon-tecia-lhe correr uma distancia de dez a vinte braas para ir apertar a mo a um homem grave, a uma senhora, s vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocao das cortezias. De resto, devia as boas relaes da sociedade, no s aos dotes pessoaes, que eram raros, como nobre tenacidade com que nunca desanimava deante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado n*uma casa, no a deixava mais, nem os da casa o deixavam a elle, to gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apezar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia, que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da villa, mas foi logo apanhado e conduzido Casa Verde.

  • 40 PAPEIS AVULSOS

    Devemos acabar com isto! No pde continuar! Abaixo a tyrania ! Dspota ! violento ! Golias ! No eram gritos na rua, eram suspiros em casa

    mas no tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avisinhava-se a rebellio. A ida de uma petio ao governo para que Simo Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeas, antes que o barbeiro Porfirio a expendesse na loja, com grandes gestos de indignao. Note-se, e essa uma das laudas mais puras desta sombria historia,note-se que o Porfirio, desde que a Casa Verde comeara a povoar-se to extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela applicao assidua de sanguesugas que dalli lhe pediam: mas o interesse particular,, dizia elle, deve ceder ao interesse publico. E accres-centava: preciso derrubar o tyranno! Note-se mais que elle soltou esse grito justamente no dia em Simo Bacamarte fizera recolher Casa Verde um homem que trazia com elle uma demanda, o Coelho.

    No me diro em que que o Coelho doudo ? bradou o Porfirio.

    E ningum lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma de-

  • O ALIENISTA 41

    manda que elle trazia com o barbeiro, acerca de uns chos da villa, era filha da obscuridade de um alvar, e no da cobia ou dio. Um excellente caracter o Coelho. Os nicos desafeioados que tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou alle-gando andar com pressa, mal o viam de longe dobra-vam as esquinas, entravam nas lojas,etc. Na verdade, elle amava a boa palestra, a palestra comprida, gos-tada a sorvos largos, e assim que nunca estava s, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas no desdenhando ps outros. O padre Lopes, que cul-tivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que no declamasse e emendasse este trecho:

    La bocca soley dal fero pasb Quel seccatore...

    mas uns sabiam do dio do padre, e outros pensavam que isto era uma orao em latim.

  • 42 PAPEIS AVULSOS

    VI

    A RBELL10

    Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representao cmara. A cmara recusou aceital-a, declarando que a Casa Verde era uma instituio publica, e que a sciencia no podia ser emendada por votao administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

    Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, o conselho que vos damos.

    A irritao dos agitadoras foi enorme. O barbeiro declarou que iam d'alli levantar a bandeira da re-. bellio, e destruir a Casa Verde ; que Itaguahy no podia continuar a servir de cadver aos estudos e experincias de um dspota; que muitas pessoas estimaveis, algumas distinctas, outras humildes mas dignas de apreo, jaziam nos cubiculos da Casa Verde; que o despotismo scientifico do alienista complicava-se do espirito de ganncia, visto que os loucos, ou suppostos taes, no eram tratados de graa : as familias,e em falta dellas a cmara, paga-vam ao alienista...

    E' falso, interrompeu o presidente.

  • O ALIENISTA 43

    Falso? Ha cerca de duas semanas recebemos um

    officio do illustre medico, em que nos declara que, tratando de fazer experincias de alto valor psycho-logico, desiste do estipendio votado pela Cmara, bem como nada receber das farailias dos enfermos.

    A noticia deste acto to nobre, to puro, suspen-deu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio sciencia o instigava; e para demonstrar o erro era preciso alguma cousa mais do que arruaas e clamores. Isto disse o presidente, com applauso de toda a cmara. O barbeiro, depois de alguns instan-tes de concentrao,declarou que estava investido de um mandato publico, e no restituiria a paz a Ita-guahy antes de vr por terra a Casa Verde, essa Bastilha da razo humana , expresso que ouvira a um poeta local, e que elle repetiu com muita em-phasis. Disse, e a um signal todos sairam com elle

    Imagine-se a situao dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, rebellio, luta, ao sangue. Para accrescentar ao mal, um dos vereadores, que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominao dada pelo barbeiro Casa Verde Bastilha da razo humana , achou-a to elegante, que mu-

  • PAPEIS AVULSOS

    dou de parecer. Disse que entendia de bom aviso de-cretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enrgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexo :

    Nada tenho que ver com a sciencia; mas se tantos homens em quem suppomos juizo so reclusos por dementes, quem nos affirma que o alienado no o alienista ?

    Sebastio Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra, e fallou ainda por algum tempo com prudncia, mas com firmesa. Os collegas esta'-vam attonitos; o presidente pediu-lhe que,ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito lei, no aventasse as suas idas na rua, para no dar corpo e alma rebellio, que era por ora um turbilho de tomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco a effeito da outra : Sebastio Freitas prometteu sus-pender qualquer aco, reservando-se o direito de pedir pelos meios legaes a reduco da Casa Verde. E repetia comsigo, namorado: Bastilha da razo humana!

    Entretanto, a arruaa crescia. J no eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o bar-beiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada,

  • O ALIENISTA 45

    porque ella deu o nome revolta; chamavam-lhe o Cangica, e o movimento ficou celebre com o nome de revolta dos Cangicas. A aco podia ser restricta, visto que muita gente, ou por medo, ou por hbitos de educao, no descia rua; mas o sentimento era unanime, ou quasi unanime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, dada a differena de Paris a Itaguahy,podiam sei comparados aos que tomaram a Bastilha.

    D. Evarista teve noticia da rebellio antes que ella chegasse; veiu dar-lh'a uma de suas crias. Ella provava nessa occasio um vestido de seda, um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro, e no quiz crer.

    Hade ser alguma patuscada, dizia ella mu-dando a posio de um alfinete. Benedicta, v se a barra est boa.

    Est, sinh, respondia a mucama de cocaras no cho, est boa. Sinh vira um bocadinho. Assim. Est muito boa.

    No patuscada, no, senhora; elles esto gritando : Morra o Dr. Bacamarte ! o tyranno ! dizia o moleque assustado.

    Cala a boca, tolo! Benedicta, olha ahi do lado esquerdo; no parece que a costura est um pouco

  • 46 PAPEIS AVULSOS

    envidada ? A risca azul no segue at abaixo; est muito feio assim; preciso descozer para ficar egualzinho e...

    _ Morra o Dr. Bacamarte! morra o tyrannp.! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebellio que desembocava na rua Nova.

    D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante no deu um passo, no fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu ins-tinctivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista no dera credito, teye um instante de triumpho, um certo movimento s-bito, imperceptvel, entranhado, de satisfao moral, ao ver que a realidade vinha jurar por elle.

    T Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto,

    D. Evarista, se no resistia facilmente s commo: es de prazer, sabia entestar com os momentos' de perigo? No desmaiou; correu sala interior onde o marido estudava. Quando ella alli entrou, precipitada, o illustre medico escrutava uni texto de Averres; os olhos delle, empanados pela cogita-: o, subiam do livro ao tecto e baixavam do tetio ao livro, cegos para a readade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentaes. D. Evarista cha-

  • O ALIENISTA 47

    mou pelo marido duas vezes, sem que elle lhe desse atteno; terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

    Voc no ouve estes gritos ? perguntou; a digna esposa em lagrimas.

    O alienista attendeu ento; os gritos approximaT yam-se, terrveis, ameaadores; elle comprehendeu tudo, Levantou-se da cadeira de espald^r em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranquillo, foi deposital-o na estante. Como a intro-duco do volume desconcertasse um pouco a linha dos dous tomos contguos, Simo Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito minimo, e, alis, interessante. Depois disse mulher que se recolhesse, que no fizesse nada.

    No, no, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de voc...

    Simo Bacamarte teimou que no, que no era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe em nome da vida que ficasse. A infeliz dama curvou a cabea, obediente e chorosa.

    Abaixo a Casa Verde ! bradavam os Cangicas. O alienista caminhou para a varanda da frente, e

    chegou alli no momento em que a rebellio tambm chegava e parada, defronte, com as suas trezentas ca-

  • 48 PAPEIS AVULSOS

    becas rutilantes de civismo e sombrias de desespero. Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas* o vulto do alienista assomou na varanda. Simo Ba-camarte fez um signal pedindo para fallar; os revol-tosos cobriram-lhe a voz com brados de indignao. Ento, o barbeiro agitando o chapo, afim de impor silencio turba, conseguiu aquietar os amigos, e de-clarou ao alienista que podia fallar, mas accrescentou que no abusasse da pacincia do povo como fizera at ento.

    Direi pouco, ou at no direi nada, se fr pre-ciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

    No pedimos nada, replicou fremente o bar-beiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida' ou pelo menos despojada dos infelizes que l esto.

    No entendo. Entendeis bem, tyranno; queremos dar liber-

    dade s victimas do vosso dio, capricho, ganncia... O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande ho-

    mem no era cousa visivel aos olhos da multido; era uma contraco leve de dous ou tres msculos, nada mais. Sorriu e respondeu :

    Meus senhores, a sciencia cousa seria, e me-rece ser tratada com seriedade. No dou razo dos meus actos de alienista a ningum, salvo aos mestres

  • O ALIENISTA 49

    e a Deus. Se querei emendar a administrao da Casa Verde, estou prompt' a ouvir-vos; mas se exi-gis que me negue a mim mesmo, no ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vs, em commisso dos outros, a vir ver commigo os loucos reclusos; mas no o fao, porque seria dar-vos razo do meu systema, o que no farei a leigos, nem a re-beldes.

    Disse isto o alienista, e a multido ficou attonita; era claro que no esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multido com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapo, convidou os amigos demo lio da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe res-ponderam. Foi nesse momento decisivo que o bar-beiro sentiu despontar em si a ambio do governo ; pareceu-lhe ento que, demolindo a Casa Verde, e derrocando a influencia do alienista, chegaria a apo-derar-se da cmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguahy. Desde alguns an-nos que elle forcejava por ver o seu nome incluido nos pellouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por no ter uma posio compatvel com

    4

  • 50 PAPEIS AVULSOS

    to grande cargo. A occasio era agora ou nunca. Demais fora to longe na rruaa, que a derrota sena a priso, ou talvez a forca, ou o degredo. In-felizmente, a resposta do alienista diminura o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignao, e quiz bradar-lhes : Canalha ! covardes ! mas conteve-se, e rompeu deste modo :

    Meus amigos, lutemos at o fim ! A salvao de Itaguahy est nas vossas mos dignas e hericas. Destruamos o crcere de vossos filhos e pes, de vossas mes e irms, de vossos parentes e amigos, e de vs mesmos. Ou morrereis a po e gua, talvez a chicote, na masmorra daquelle indigno.

    A multido agitou-se, murmurou, bradou, amea-ou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira syncope, e ameaava arrazar a Casa Verde.

    Vamos! bradou Porfirio agitando o chapo. Vamos! repetiram todos. Deteve-os um incidente : era um corpo de drages

    que, a marche-marche, entrava na rua Nova.

  • O ALIENISTA 51

    vu

    0 INESPERADO.

    Chegados os drages em frente aos Cangicas, houve um instante de estupefaco; os Cangicas no queriam crer que a fora publica fosse mandada contra elles; mas o barbeiro comprehendeu tudo e esperou. Os drages pararam, o capito intimou multido que se dispersasse; mas, comquanto uma parte delia estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:

    No nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadveres, podeis tomal-os; mas s os cadveres; no levareis a nossa honra, o nosso credito, os nossos direitos, e com elles a salvao da Itaguahy.

    Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro ; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse tambm um excesso de confiana na absteno das armas por parte dos dra-ges ; confiana que o capito dissipou logo, man-dando carregar sobre os Cangicas. O momento foi indescriptivel. A multido urrou furiosa; alguns, trepando s janellas das casas, ou correndo pela.rua

  • 52 PAPEIS AVULSOS

    fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bu-fando de clera, indignada^ animada pela exhortao do barbeiro. A derrota dos Cangicas estava immi-nente, quando um tero dos drages, qualquer que fosse o motivo, as chronicas no o declaram, pas-sou subitamente para o lado da rebelli. Este ines-perado reforo deu alma aos Cangicas, ao mesmo tempo que lanou o desanimo s fileiras da legali-dade. Os soldados fieis no tiveram coragem de ata car os seus prprios camaradas, e, um a um, foram" passando para elles, de modo que ao cabo de alguns minutos, o aspecto das cousas era totalmente outro. O capito estava de um lado, com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaava de morte. No teve remdio, declarou-se vencido e en-tregou a espada ao barbeiro.

    A revoluo triumphante no perdeu um s mi-nuto ; recolheu os feridos s casas prximas, e guiou para a cmara. Povo e tropa fraternisavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguahy, ao illustre Porfirio. Este ia na frente, empunhando to des-tramente a espada, como se ella fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A victoria cingia* lhe a fronte de um nimbo mysterioso. A dignidade de governo comeava a enrijar-lhe os quadris

  • O ALIENISTA 53

    Os vereadores, s janellas, vendo a multido e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multido, e sem mais exame, entraram e votaram uma petio ao vice-rei para que mandasse dar um mez de soldo aos drages, cujo denodo salvou Itaguahy do abysmo a que o tinha lanado uma cafila de rebeldes. Esta phrase foi proposta por Sebastio Freitas, o vereador dissidente, cuja defeza dos Cangicas tanto escandalisra os collegas. Mas bem depressa a illuso se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos verea-dores e ao alienista vieram dar-lhes notcia da triste realidade. O presidente no desanimou: Qualquer que seja a nossa sorte, disse elle, lembremo-nos que estamos ao servio de Sua Magestade e do povo. Sebastio Freitas insinuou que melhor se poderia servir a coroa e villa sahindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a cmara rejeitou esse alvitre.

    D'ahi a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereana, e intimava a cmara a sua queda. A cmara no re-sistiu, entregou-se, e foi dalli para a cadeia. Ento os amigos do barbeiro propozeram-lhe que assu-misse o governo da villa, em nome de Sua Mages-tade. Porfirio aceitou o encargo, embora no des-

  • 54 PAPEIS AVULSOS

    conhecesse (accrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que no podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que elles promptamente an-nuiram. O barbeiro veiu janella, e communicou ao povo essas resolues, que o povo ratficou, accla-mando o barbeiro. Este tomou a denominao de Protector da villa em nome de Sua Magestade e do povo. Expediram-se logo varias ordens im-portantes, communicaes officiaes do novo governo, uma exposio minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obedincia s ordens de Sua Mages-tade ; finalmente, uma proclamao ao povo, curta, mas enrgica:

    Itaguahyenses!

    Uma cmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Magestade e do povo. A opinio publica tinha-a condemnado; um punhado de cidados, fortemente apoiados pelos bravos dra-ges de Sua Magestade, acaba de a dissolver igno-miniosamente, e por unanime consenso da villa, foi-me confiado o mando supremo, at que Sua Ma-gestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu

  • O ALIENISTA 55

    real servio. Itaguahyenses! no vos peo se no que me rodeeis de confiana, que me auxilieis em res-taurar a paz e a fazenda publica, to desbaratada pela cmara que ora findou s vossas mos. Contai com o meu sacrifcio, e ficai certos de que a coroa ser por ns.

    O Protector da villa em nome de Sua Ma-gestade e do povo

    PORFIRIO CAETANO DAS NEVES.

    Toda a gente advertiu no absoluto silencio desta proclamao acerca da Casa Verde; e, segundo uns, no podia haver mais vivo indicio dos projectos te-nebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves successos, o alienista mettera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre ellas duas senhoras, sendo um dos homens aparentado com o Protector. No era um repto, um acto intencional; mas todos o interpre-taram dessa maneira, e a villa respirou com a esperana de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros, e destruido o terrvel crcere.

    O dia acabou alegremente. Emquanto o arauto

  • 56 PAPEIS AVULSOS

    da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamao, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defeza do illustre Porfirio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiana na aco do governo. O barbeiro fez expedir um acto declarando feriado aquelle dia, e entabolou negociaes com o vigrio para a celebrao de um Te-Deum, to con-veniente era aos olhos delle a conjunco do poder temporal com o espiritual; mas o padre Lopes recu-sou abertamente o seu concurso.

    Em todo caso, Vossa Reverendissima no se alistar entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro dando physionomia um aspecto tenebroso.

    Ao que o padre Lopes respondeu, sem responder: Como alistar-me, se o novo governo no tem

    inimigos ? O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o

    capito, os vereadores e os principaes da villa, toda a gente o acclamava. Os mesmos principaes, se o no acclamavam, no tinham saido contra elle. Nenhum dos almotacs deixou de rir receber as suas ordens. No geral, as famlias abenoavam o nome daquelle que ia emfim libertar Itaguahy da Casa Verde e do terrvel Simo Bacamarte.

  • O ALIENISTA 57

    VIII

    AS ANGUSTIAS DO BOTICRIO.

    Vinte e quatro horas depois dos successos nar-rados no capitulo anterior, o barbeiro saiu do pa lacio do governo foi a denominao dada casa da cmara , com dous ajudantes de ordens, e diri-giu-se residncia de Simo Bacamarte. No igno-rava elle que era mais decoroso ao governo mandal-o chamar; o receio, porm, de que o alienista no obe-decesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

    No descrevo o terror do boticrio ao ouvir dizer que o barbeiro ia casa do alienista. Vae pren-del-o, pensou elle. E redobraram-lhe as angustias. Com effeito, a tortura moral do boticrio naquelles dias de revoluo excede a toda a deScripo possivel. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: a privana do alienista chamava-o ao lado deste, a victoria do barbeiro attrahia-o ao barbeiro. J a simples noticia da sublevao tinha-lhe sacu-dido fortemente a alma, porque elle sabia a unani-midade do dio ao alienista ; mas a victoria final foi tambm o golpe final. A esposa, senhora mscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar

  • 58 PAPEIS AVULSOS

    delle era ao lado de Simo Bacamarte; ao passo que o corao lhe bradava que no, que a causa do alie-nista estava perdida, e que ningum, por acto pr-prio, se amarra a um cadver. Fel-o Cato, ver-dade, sed victa Catoni, pensava elle, relembrando algumas palestras habituaes do padre Lopes; mas Cato no se atou a uma causa vencida, elle era a prpria causa vencida, a causa da republica; o seu acto, portanto, foi de egosta, de um miservel egosta; minha situao outra. Insistindo, porm, a mulher, no achou Crispim Soares outra sahida em tal crise seno adoecer ; declarou-se doente, e met-teu-se na cama.

    L vai o Porfirio casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

    Vai prende!-o, pensou o boticrio. Uma ida traz outra ; o boticrio imaginou que,

    uma vez preso o alienista, viriam tambm buscal-o a elle, na qualidade de complice. Esta ida foi o me-lhor dos visicatorios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sahir; e apesar de todos os esforos e protestos da consorte, vestiu-se e sahiu. Os velhos chronistas so unanimes em dizer que a certeza de que o marido ia collocar-se nobremente ao

  • O ALIENISTA 59

    lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticrio; e notam, com muita perspiccia, o im-menso poder moral de uma illuso; porquanto, o boticrio caminhou resolutamente ao palcio do go-verno, no casa do alienista. Alli chegando, mos-trou-se admirado de no ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adheso, no o tendo feito desde a vspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funccionarios que lhe ouviam esta declarao, sabedores da intimidade do boticrio com o alienista, comprehenderam toda a importncia da adheso nova, e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; affimaram-lhe que o barbeiro no tardava; Sua Senhoria tinha ido Casa Verde, a negocio importante, mas no tardava. Deram-lhe ca" deira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do illustre Porfirio era a de todos os patriotas; ao que o boticrio ia repetindo que sim, que nunca pensara outra cousa, que isso mesmo mandaria declarar Sua Magestade.

  • 6 0 PAPEIS AVULSOS

    IX

    DOUS LINDOS CASOS.

    No se demorou o alienista em receber o bar-beiro; declarou-lhe que no tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. S uma cousa pedia, que o no constrangesse a assistir pessoal-mente destruio da Casa Verde.

    Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em attribuir ao governo intenes vandalicas. Com razo ou sem ella, a opinio cr que a maior parte dos doudos alli mettidos esto em seu perfeito juizo, mas o governo reconhece que a questo puramente scientifica, e no cogita em resolver com posturas as questes scientificas. Demais, a Casa Verde uma instituio publica; tal a aceitamos das mos da cmara dissol-vida. Ha,entretanto,por fora que ha de haver um alvitre intermdio que restita o socego ao espirito publico.

    O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra cousa, o arrazamento do hospcio, a priso delle, o desterro, tudo, menos...

    O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou grave-

  • O ALIENISTA 61

    mente o barbeiro, vem de no attender grave res-ponsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade, que lhe d em tal caso legitima in-dignao, pde exigir do governo certa ordem de actos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, no os deve praticar, ao menos integral-mente, e tal a nossa situao. A generosa revolu-o que hontem derrubou uma cmara villipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrazamento da Casa Verde; mas pde entrar no animo do go-verno eliminar a loucura ? No. E se o governo no a pode eliminar, est ao menos apto para discri-minal-a, reconhecel-a? Tambm no; matria de sciencia. Logo, em assumpto to melindroso, o go-verno no pde, no deve, no quer dispensar o con-curso de Vossa Senhoria. O que lhe pede que de certa maneira demos alguma satisfao ao povo. Unamo-nos, e o povo saber obedecer. Um dos alvi-tres aceitveis, se Vossa Senhoria no indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aquelles enfermos que estiverem quasi curados, e bem assim os ma-nacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerncia e benig-nidade.

    Quantos mortos e feridos houve hontem no

  • 02 PAPEIS AVULSOS

    conflicto? perguntou Simo Bacamarte, depois de uns tres minutos.

    O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas1* res-pondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

    Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou trez vezes o alienista.

    E em seguida declarou que o alvitre lhe no pa-recia bom, mas que elle ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe varias perguntas acerca dos successos da vspera,* ataque, defeza, adheso dos drages, resistncia da cmara, e tc , ao que o barbeiro ia respondendo -cora grande abundncia, insistindo principalmente no descrdito em que a camai;a cahira. O barbeiro confessou que o novo governo no tinha ainda por si a confiana dos principaes da villa, mas o alie-nista podia fazer muito nesse ponto. O governo, con-cluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar, no j com a sympathia, seno com a benevolncia do mais alto espirito de Itaguahy, e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera physio-nomia daquelle grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento, nem modstia, mas impassvel como um deus de pedra.

    Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o

  • O ALIENISTA 03

    alienista, depois de acompanhar o barbeiro at porta: Eis ahi dous lindos casos de doena cerebral. Os symptmas de duplicidade e descaramento deste barbeiro so positivos. Quanto toleima dos que o acclamaram no preciso outra prova alm dos onze mortos e vinte e cinco feridos. Dous lindos casos!

    Viva o illustre Porfirio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro porta.

    O aljenista espiou pela janella, e ainda ouviu este resto de uma pequena falia do barbeiro s trinta pessoas que o acclamavam.

    .. porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execuo das vontades do povo. Confiai era mim; e tudo se far pela melhor maneira. S vos recommendo ordem. A ordem, meus amigos, a base do governo...

    Viva o illustre Porfirio! bradaram as trinta vozes, agitando os chapos.

    Dous lindos casos! murmurou o alienista.

  • 64 PAPEISZAVULSOS

    X

    A. RESTAURAO.

    Dentro de cinco dias, o alienista metteu na Casa Verde cerca de cincoenta acclamadores do novo .go-verno. O povo indignou-se. O governo, atarantado, no sabia reagir. Joo Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfirio estava ven-dido ao ouro de Simo Bacamarte, phrase que' congregou em torno de Joo Pina a gente mais reso-luta da villa. Porfirio, vendo o antigo rival da na-valha testa da insurreio, comprehendeu que a sua perda era irremedivel, se no desse um grande golpe; expediu dous decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. Joo Pina mostrou claramente, com grandes phrases, que o acto de Porfirio era um simples apparato, um engodo, em que o povo no devia crer. Duas horas depois cabia Porfirio ignominiosamente, e Joo Pina as-sumia a difficil tarefa do governo. Como achasse-nas gavetas as minutas da proclamao, da exposi-o ao vice-rei e de outros actos inaugura es do go-verno anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; accrescentam os chronistas, e alis sub

  • O ALIENISTA '65

    entende-se, que elle lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro fallra de uma cmara corrupta, fal-lou este de um intruso eivado das ms doutrinas francezas, e contrario aos sacrosantos interesses de Sua Magestade, etc.

    Nisto entrou na villa uma fora mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfirio, e bem assim a de uns cincoenta e tantos indivduos, que declarou mentecaptos; e no s lhe deram esses, como afianaram entregar-lhe mais desenove sequa-zes do barbeiro, que convaleciam das feridas apa-nhadas na primeira rebellio.

    Este ponto da crise de Itaguahy marca tambm o grau mximo da influencia de Simo Bacamarte. Tudo quanto quiz, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do illustre medico achamol-a na promptido com que os vereadores, restituidos a seus logares, consentiram em que Sebastio Freitas tambm fosse recolhido ao hospcio. O alienista, sa-bendo da extraordinria inconsistncia das opinies desse vereador, entendeu que era um caso patholo-gico, e pediu-o. A mesma cousa aconteceu ao boti-crio. O alienista, desde que lhe fallaram da mo-mentnea adheso de Crispim Soares rebellio dos

    5

  • 60 PAPEIS AVULSOS

    Cangicas, comparou-a approvao que sempre re-cebera delle, ainda na vspera, c mandou captural-o. Crispim Soares no negou o facto, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebellio triumphante, e deu como prova a ausncia de nenhum outro acto seu, accrescentando que voltara logo cama, doente. Simo Bacamarte no o contrariou; disse, porm, aos circumstantes que o terror tambm pae da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterisados.

    Mas a prova mais evidente da influencia de Simo Bacamarte foi a docilidade com que a cmara lhe entregou o prprio presidente. Este digno ma-, gistrado tinha declarado em plena sesso, que no se contentava, para laval-o da affronta dos Cangicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretario da cmara, enthusiasmado de tamanha energia. Simo Bacamarte comeou por metter o secretario na Casa Verde, e foi d'alli cmara, qual declarou que o presidente estava padecendo da demncia dos touros , um gnero que elle pre-tendia estudar, com grande vantagem para os povos. A cmara a principio hesitou, mas acabou cedendo.

    Dahi em diante foi uma collecta desenfreada. U^

  • O ALIENISTA 67

    homem no podia dar nascena ou curso mais simples merttira do mundo, ainda daquellas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que no fosse logo mettido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagrammas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que pem todo o seu cuidado na tafularia, um pu outro almotac enfunado, ningum escapava aos emissrios do alienista. Elle respeitava as namo-radas e no poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e as se-gundas a um vicio. Se um homem era avaro ou prdigo ia do mesmo modo para a Casa Verde; dahi a allegao de que no havia regra para a completa sanidade mental. Alguns chronistas crem que Si-mo Bacamarte, nem sempre procedia com lisura, e citam era abono da affirmao (que no sei se pde ser aceita) o facto de ter alcanado da cmara uma postura autorisando o uso de um anel de prata no dedo pollegar da mo esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradiccional, decla-rasse ter nas veias duas ou tres onas de sangue godo. Dizem esses chronistas que o fim secreto da insinuao cmara foi enriquecer um ourives, amigoe:compadre delle; mas, comquanto seja certo

  • 68 PAPEIS AVULSOS

    que o ourives viu prosperar o negocio depois da nova ordenao municipal, no o menos que essa pos-tura deu Casa Verde uma multido de inquilinos; pelo que, no se pde definir, sem temeridade, o ver-dadeiro fim do illustre medico. Quanto razo de-terminativa da captura e aposentao na Casa Verde, de todos quantos usaram do annel, um dos pontos mais obscuros da historia de Itaguahy; a opinio mais verosimil que elles foram recolhidos por an-darem a gesticular, ta, nas ruas, em casa, na egreja. Ningum ignora que os doudos gesticulam muito. Em todo caso uma simples conjectura ; de positivo nada ha.

    Onde que este homem vae parar ? diziam os principaes da terra. Ah! se ns tivssemos apoiado os Cangicas...

    Um dia de manh, dia em que a cmara devia dar um grande baile, a villa inteira ficou abalada com a noticia de que a prpria esposa do alienista fora mettida na Casa Verde. Ningum acreditou; devia ser inveno de algum gaiato. E no era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida s duas horas da noite. O padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do facto.

    J ha algum tempo que eu desconfiava, disse

  • O ALIENISTA 69

    gravemente o marido. A modstia com que ella vi-vera em ambos os matrimnios no podia conciliar-se com o furor das sedas, velludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde ento comecei a observal-a. Suas conversas eram todas sobre esses objectos; se eu lhe fallava das antigas cortes, inquiria logo da frma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava, na minha ausncia, antes de me dizer o objecto da visita, descrevia-me o trajo, approvando umas cousas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reve-rendissima hade lembrar-se, propz-se a fazer an-nualmente um vestido para a imagem de Nossa Se-nhora da matriz. Tudo isto eram symptomas graves; esta noite, porm, declarou-se a total demncia. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vesturio que levaria ao baile da cmara municipal; s hesi-tava entre um collar de granada e outro de saphyra. Ante-hontem perguntou-me qual delles levaria ; res-pondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Hontem repetiu a pergunta, ao almoo; pouco depois de jantar fui achal-a calada e pensativa. Que tem? perguntei-lhe. Queria levar o collar de granada, mas acho o de saphyra to bonito! Pois leve o de saphyra. Ah! mas onde fica o de granada ? Em-

  • 70 PAPEIS AVULSOS

    fim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deita-mo-nos. Alta noite, seria hora e meia, accordo e no a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dous collares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a de-mncia ; recolhi-a logo.

    O padre Lopes no se satisfez com a resposta, mas no objectou nada. O alienista, porm, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de mania sumptuaria, no incurvel, e em todo caso digno de estudo.

    Conto pl-a boa dentro de seis semanas, con-cluiu elle.

    A abnegao do illustre medico deu-lhe grande realce. Conjecturas, invenes, desconfianas, tudo cahiu por terra, desde que elle no duvidou recolher Casa Verde a prpria mulher, a quem amava com todas as foras da alma. Ningum mais tinha o di-reito de resistir-lhe, menos ainda o de attribuir-Ihe intuitos alheios sciencia. Era um grande lio* mem austero, Hippocrates forrado de Cato.

  • O ALIENISTA 71

    XI

    0 ASSOMBRO DE ITAGUAHY.

    E agora prepare-se o leitor para o mesmo assom-bro em que ficou a villa, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

    Todos? Todos. E' impossivel; alguns, sim, mas todos... Todos. Assim o disse elle no officio que man-

    dou hoje de manh cmara. De facto, o alienista officira cmara expondo:

    '-*- Io, que verificara das estatsticas da villa e da Casa Verde, que quatro quintos da populao esta-v

    vam aposentados naquelle estabelecimento ; 2o, que ' esta dsiocao de populao levra-o a examinar os fundamentos da sua theoria das molstias cerebraes, theoria que exclua do domnio da razo todos os casos em que o equilbrio das faculdades, no fosse perfeito e absoluto; 3o, que desse exame e do facto estatstico resultar para elle a convico de que a verdadeira doutrina no era aquella, mas a opposta,

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    e portanto que se devia admittir como normal e exemplar o desequilbrio das faculdades, e como hypotheses pathologicas todos os casos em que aquelle equilbrio fosse ininterrupto; 4o, que vista disso, declarava cmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agazalhar nella as pessoas que se achassem nas condies agora expostas; 5o, que tratando de descobrir a verdade scientifica, no se pouparia a esforos de toda a natureza, espe-rando da cmara egual dedicao; 6o, que restituia cmara e aos particulares a somma do estipendio recebido para alojamento dos suppostos loucos, des-contada a parte effectivamente gasta com a alimen-tao, roupa, etc.; o que a cmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

    O assombro de Itaguahy foi grande; no foi me-nor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, dansas, luminrias, musicas, tudo houve para celebrar to fausto acontecimento. No des-crevo as festas por no interessarem ao nosso prop-sito ; mas foram esplendidas, tocantes e prolongadas.

    E vo assim as cousas humanas! No meio do, regosijo produzido pelo officio de Simo Bacamarte, ningum advertia na phrase final do 4o, uma phrase cheia de experincias futuras.

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    XII

    0 FINAL DO 4 o .

    Apagaram-se as luminrias, reconstituiram-se as famlias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Rei-nava a ordem, a cmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma presso externa; o prprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus logares. O barbeiro Porfirio, ensinado pelos acontecimentos, tendo provado tudo, como o poeta disse de Napoleo, e mais alguma cousa, porque Napoleo no provou a Casa Verde, o barbeiro achou prefervel a gloria obscura da navalha e da tesoura s calami-dades brilhantes do poder; foi, certo, processado; mas a populao da villa implorou a clemncia de Sua Magestade; dahi o perdo. Joo Pina foi absol-vido, attendendo-se a que elle derrocara um rebelde. Os chronistas pensam que deste facto que nasceu o nosso adagio: ladro que furta a ladro, tem cem annos de perdo; adagio immoral, verdade, mas grandemente til.

    No s findaram as queixas contra o alienista?

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    mas at nenhum resentimnto ficou dos actos que elle praticara; accrescend" que os reclusos da Casa Verde, desde que elle os declarara plenamente ajui-zados, sentiram-se tomados de profundo reconheci-mento e frvido enthusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestao, e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as chronicas que D. Eva-rista a principio tivera idia de separar-se do con-sorte, mas a dr de perder a companhia de to grande, homem venceu qualquer resentimento de amor-prprio, e o casal veiu a ser ainda mais feliz do que antes.

    No menos intima ficou a amizade do alienista e do boticrio. Este concluiu do officio de Simo Ba-camarte que a prudncia a primeira das virtudes em tempos de revoluo, e apreciou muito a magna-nimidade do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, estendeu-lhe a mo de amigo velho.

    E' um grande homem, disse elle mulher, referindo aquella circumstancia.

    No preciso fallar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente no-meados neste escripto; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hbitos anteriores. O pro-

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    prio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara erhphaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne medico cujo altssimo g-nio, elevando as azas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espritos da terra.

    Agradeo as suas palavras, retorquiu-lhe o alie-nista, e ainda me no arrependo de o haver resti-tuido liberdade.

    Entretanto, a cmara, que respondera ao officio de Simo Bacamarte, com a resalva de que opportu-namente estatuiria era relao ao final do 4o, tratou emfim de legislar sobre elle. Foi adoptada, sem debate, uma postura autorisando o alienista a agazalhar na Casa Verde as pessoas qne se achassem no gozo do perfeito equilbrio das faculdades men-taes. E porque a experincia da cmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ella a clusula, de que a auto-risao era provisria, limitada a um anno, para o fim de ser experimentada a nova theoria psycholo-gica, podendo a cmara, antes mesmo daquelle prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconse-lhada por motivos de ordem publica. O vereador Freitas propz tambm a declarao de que em ne-nhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asylo dos alienados: clusula que foi aceita, votada e

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    includa na postura, apezar das reclamaes do vereador Galvo. O argumento principal deste ma-gistrado que a cmara, legislando sobre uma experincia scientifica, no podia excluir as pessoas dos seus membros das conseqncias da lei; a ex-cepo era odiosa e ridicula. Mal proferira estas duras palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audcia e insensatez do collega; este, porm, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a excepo.

    A vereana, concluiu elle, no nos d nenhum poder especial nem nos elimina do espirito humano.

    Simo Bacamarte aceitou a postura com todas as restrices. Quanto excluso dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse com-' pellido a recolhel-os Casa Verde; a clausula,porm, era a melhor prova de que elles no padeciam do perfeito equilbrio das faculdades mentaes. No acontecia o mesmo ao vereador Galvo, cujo acerto na objeco feita, e cuja moderao na resposta dada s invectivas dos collegas mostravam da parte delle um crebro bem organisado ; pelo que, rogava c-mara que lh'o entregasse. A camara,sentindo-se ainda aggravada pelo proceder do vereador Galvo,estimou o pedido do aiienista,e votou unanimemente a entrega..

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    Comprehende-se que, pe