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O POCP AINDA PODE FAZER A DIFERENÇA ?
“Performance management must make difference and “account for something” .
In Search of Results (OCDE, 1997)
1. Um processo de reforma que se tem atrasado.
A introdução na Administração Pública de uma contabilidade digráfica, que
ponha em relevo a dimensão patrimonial e de modo geral os direitos e obrigações de
cada entidade pública e do universo consolidado das administrações, garantindo apoio
às decisões de gestão, articulada com a tradicional contabilidade unigráfica,
unicamente preocupada com as entradas e saídas de fundos e essencialmente
relevante para a previsão e execução orçamental, tem feito parte de todos os
programas relevantes de modernização das administração públicas de vários países,
designadamente da OCDE, nas últimas décadas, estando largamente coberta por
trabalhos de académicos e de especialistas (Blondal, 2005; Christensen, 2007; Cortes,
2004; Hugues e Minovski, 2004; Helden, 2007; Ouda, 2003, 2004, 2005), tendo sido
impulsionada por organizações internacionais, como o FMI (Premchand, 1995) e a
OCDE (OCDE,1994) e objecto de conferências internacionais periodicamente
realizadas, conhecidas pelo acrónimo CIGAR, uma das quais se realizou em Coimbra
em 2007. Está estreitamente associada a tentativas de medir os outputs e outcomes
da Administração Pública (Hussenot, 1983;OCDE, 1997; Maingot, 2001).
É frequente entre nós relacionar-se esta introdução com a disseminação das
ideias do New Public Management (Marques, 2007), tendo estado certamente a sua
introdução em outros países ligada ao progresso de um conjunto de ideias veiculadas
por aquele movimento e havendo autores que defendem que, sendo tecnicamente
possível introduzi-la em outros contextos, só se retirarão todos os frutos possíveis da
sua adopção num ambiente de reformas (Ouda, 2004).
Também frequentemente se afirma que em Portugal esta introdução está
associada à aprovação em 1992 da Reforma da Administração Financeira do Estado1,
a qual obrigava à adopção por parte dos Fundos e Serviços Autónomos do Plano
1 DL 155/92, de 28-7.
1
Oficial de Contabilidade (POC) aprovado em 19892. Apontou-se inicialmente para que
os organismos no regime geral de autonomia administrativa dispusessem de um
sistema de informação, designado por Sistema de Informação para Gestão
Orçamental (SIGO) com três módulos, um de recursos humanos (GRH), um de
informação financeira (SIC) e um de gestão patrimonial (GRP) gerido pela Direcção-
Geral da Contabilidade Pública como o apoio do Instituto de Informática do Ministério
das Finanças (Silva, 1991), e para que só os organismos no regime excepcional de
autonomia administrativa e financeira dispusessem de uma contabilidade baseada no
POC. Veio-se subsequentemente a compreender-se ser conveniente definir critérios
gerais para a adaptação do POC às entidades públicas, à aprovação em 1997 do
Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP)3 e, por um lado, englobar os serviços
integrados, por outro lado, generalizar a aplicação à administração local4 (Caiado e
Pinto, 1997, Geraldes, 2003).
Não é contudo despiciendo recordar a aplicação logo em 1947 de uma
contabilidade de tipo empresarial aos estabelecimentos fabris militares5, o próprio
interesse que a possibilidade de elaboração de um Balanço do Estado suscitou na
década de 19506 e, num período mais recente a sua adopção por necessidades de
gestão por parte de entidades sem estatuto formal de empresa pública7 ou a quem, em
conexão com a atribuição casuística de um estatuto de instituto público quase
empresarial, era imposta a aplicação do POC8.
Criada uma Comissão de Normalização Contabilística da Administração
Pública9 (independente da Comissão de Normalização Contabilística), que vem
acompanhando a implementação do POCP e formulando doutrina, os estudos
académicos já produzidos levam a concluir que é nos fundos e serviços autónomos
que se vem generalizando a aplicação do POCP, potenciada aliás pela definição de
2 DL 408/89, de 21-11, que revogou o primeiro POC, aprovado pelo DL 47/77, de 7-2.3 DL 232/97, de 3-9.4 Através do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais (POCAL), aprovado pelo DL 54-A/99, de 22-2.5 L 2020, de 19-3-1947de Março de 1947.6 Baptista (1953).7 Como sucedeu com o primeiro Plano Oficial de Contas dos Serviços de Saúde, aprovado por despacho de 15-9-1980 do Ministro dos Assuntos Sociais, tendo sido aprovado em 12-7-1990, por despacho do Secretário de Estado da Administração da Saúde um novo Plano, já adequado ao POC do DL 410/89.8 Tivemos acesso, antes da aprovação da RAFE , a um “Plano de Contabilidade para os Matadouros” (documento provisório) que o Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas (IROMA), sucessor da Junta Nacional de Produtos Pecuários, projectava fazer aplicar em 1992, bem como a planos de contabilidade baseados no POC, aplicados em 1992 pelo ICEP – Investimentos, Comércio e Turismo de Portugal, Instituto de Vinho do Porto, Casa do Douro e Administração do Porto de Lisboa.9 DL 68/98, de 20-3.
2
planos de contabilidade sectoriais10 (Araújo, 2005, Gonçalves, 2006; Vieira, 2008). Tal
vem ocorrendo sem dificuldades, atendendo quer à ocorrência de fusões e extinções,
quer à mudança de regimes jurídicos que obrigaram a descontinuar o POC11, quer até
à inadequação do POCP a certas realidades12.
Já a aplicação do POCP aos serviços integrados parece ter sido
sucessivamente adiada por problemas ligados ao desenvolvimento de aplicações,
apontando o actual “Calendário de disseminação do POCP / GERFIP” para a sua
conclusão em 201313. A propósito, referia o Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do
Estado de 2008 que “Apesar do Ministro das Finanças considerar a recomendação
parcialmente acolhida, a situação actual é praticamente idêntica à que se observava
no ano anterior. Com efeito, as previsões anualmente avançadas para a
implementação do POCP, conforme se pode constatar a partir do Parecer sobre a
CGE/200114, têm vindo a ser sucessivamente adiadas, não estando ainda este Plano
de Contas, aprovado no final de 1997, a ser aplicado pela maioria dos serviços” e
ainda que “Nesse Parecer [o da CGE/2001], com base na informação então prestada
pelas competentes entidades, foi referido 2006 como o ano previsto para a conclusão
da implementação do POCP”.
O atraso da implementação do POCP no conjunto do universo sujeito ao
processo político de aprovação do Orçamento do Estado e consequente aprovação da
Conta Geral do Estado, de que nos ocupamos na presente comunicação15 tem
consequências pelo menos em três domínios:
- em primeiro lugar na capacidade de gestão e de prestação de contas dos
organismos, se bem que se corra o risco de que acabe por ser entendido como mais
um “instrumento de gestão” a publicar no portal da INTERNET, e, em casos pontuais,
na comunicação social, sem influência efectiva nas decisões de gestão tomadas, não
passando de um mero instrumento de prestação de contas numa altura em que se 10 Neste momento dispõe-se designadamente do Plano de Contabilidade das Instituições do Sistema de Solidariedade e de Segurança Social (POCISSSS), aprovado pelo DL 12/2002, de 25-1, do Plano Oficial de Contabilidade do Ministério da Saúde, aprovado pela PRT 898/2000, de 20-9, que sucede ao anterior Plano Oficial de Contas dos Serviços de Saúde, e do Plano Oficial de Contabilidade para o Ministério da Educação, aprovado pela PRT 794/2000, de 30-5.11 Caso do Instituto Nacional de Estatística que perdeu a autonomia financeira e que não estando implementado o POCP nos serviços integrados, teve de descontinuar a contabilidade patrimonial.12 Caso do Fundo de Turismo, que aplicava o Plano de Contas do Sistema Bancário.13 Circular DGCP / Instituto de Informática, Série A, n.º 1315, de 5 de Janeiro de 2005 e Calendário de disseminação do POCP / GERFIP, actualizado, de 21 de Junho de 2011, www.dgo.pt.14 Dizia também o Tribunal de Contas: “Nesse Parecer [o da CGE de 2001], com base na informação então prestada pelas competentes entidades, foi referido 2006 como o ano previsto para a conclusão da implementação do POCP”.15 Não nos referiremos ao POCAL e à consolidação de contas no âmbito das autarquias locais, de que se tem ocupado Susana Jorge.
3
discute já a forma de passar do accrual accounting ao accrual bugeting (Blondal, 2005)
ou de ter em conta o impacto dos orçamentos nas gerações futuras (Cortés, 2004) 16
- em segundo lugar, na total falta de percepção política e pública da relevância
global da passagem à contabilidade patrimonial, uma vez que, conforme previsão que
fez vencimento desde o anteprojecto da comissão coordenada por Jorge Costa Santos
e se manteve na Lei de Enquadramento Orçamental finalmente publicada e nas suas
sucessivas revisões e alterações, só se prevê a publicação obrigatória na Conta Geral
do Estado das contas patrimoniais dos organismos quando a disseminação do POCP
estiver concluída e de facto tem servido de pretexto para a não publicação das contas
já disponíveis17;
- last but not the least, o ter-se perdido a homologia com o plano contabilístico
aplicável à generalidade das entidades, quando o POC foi descontinuado e substituído
pelo Sistema de Normalização Contabilística (SNC)18 que inclui até um plano para
entidades sem fins lucrativos, sendo que este apresenta diferenças conceptuais e
sobretudo terminológicas significativas em relação ao POC e, por maioria de razão,
em relação ao POCP.
Existiam já alertas em relação as possíveis repercussões do progresso do
movimento de normalização contabilística dinamizado pelo IFAC nas soluções
plasmadas no POCP (Geraldes, 2003), mas a reacção dominante parece ter sido a
perfilhada por António Pires Caiado em artigo de 2004 (que continua publicado, sem
data, no Portal da Comissão de Normalização Contabilística da Administração
Pública): “A nível dos países que integram a União Europeia constata – se que não
existe normalização em matéria de contabilidade pública, pelo que a comparabilidade
entre as respectivas contas dos países não está ainda assegurada. A proposta de
normalização, a nível mundial, levada a cabo pela IFAC, vai necessariamente
enfrentar obstáculos em muitos países porque não se torna fácil alterar procedimentos
contabilísticos implementados ao longo dos tempos, havendo que contar com a normal
e compreensível resistência à mudança. Adoptando uma posição realística, não
16 Preocupação acolhida na Lei de Enquadramento Orçamental desde a sua revisão pela L 48/2004, de20-8 e plasmada no seu Artigo 10º. 17 L 91/2001, de 20-8, no nº 6 do Artigo 75º “A apresentação dos mapas XXX a XXXI, previstos no n.o 4, apenas será obrigatória quando todos os serviços a que se referem tiverem adoptado o Plano Oficial de Contabilidade Pública, devendo os balanços apresentados nos mapas XXX a XXXII distinguir o património dos serviços e instituições abrangidos do património afecto por ou a outros serviços e instituições” e no nº 8 do Artigo 76º : 8 — A apresentação dos elementos relativos a compromissos assumidos apenas será obrigatória quando todos os serviços a que se referem tiverem adoptado o Plano Oficial de Contabilidade Pública.”18 DL 158/2009, de 13-7.
4
parece curial que se admita a introdução de modificações significativas na fase actual
do percurso da contabilidade pública, não só devido ao consequente desperdício de
recursos já consumidos mas também ao sentimento de frustração que iria provocar em
muitas pessoas que têm tomado atitudes activas perante o POCP” (Caiado, 2004).
No entanto a própria Comissão, no seu Relatório de Actividades de 2008,
refere: “A concepção do Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP) baseou-se no
plano de contas para o sector privado (POC) adaptado às necessidades informativas
específicas do sector público, assegurando a informação contabilística indispensável
ao controlo da regularidade financeira e da execução do Orçamento. Com a aprovação
do SNC, considera-se que a introdução de mudanças no normativo contabilístico do
sector público nacional para acompanhar as alterações previstas para o sector privado
implica uma abordagem mais delicada, tendo em conta as diferenças de experiência
na aplicação prática dos normativos contabilísticos dos dois sectores, e com a
salvaguarda das especificidades do sector público. A CNCAP iniciou o
acompanhamento da evolução das actividades do International Public Sector
Accounting Standards Board (IPSASB), nomeadamente aquelas previstas no seu
“Plano Estratégico e Operacional 2007-2009”, com vista à emissão de uma Estrutura
Conceptual para o sector público e para uma maior convergência com as normas
emitidas pelo IASB3. Esta convergência traduz-se numa actualização das NICSP já
existentes e na preparação de novas normas. Aproveitando a utilização das NICSP
num sistema de normalização contabilístico para o sector público, oportunamente a
CNACP pretende desencadear os procedimentos legislativos necessários para
introduzir normas específicas para este sector com vista à adaptação do modelo de
normalização do SNC à realidade das entidades do sector público.” (www.cncap.pt).
À data em que concluímos o presente texto não estavam publicados no Portal
da Comissão os seus Relatórios de Actividades de 2009 e de 2010. Contudo, autores
há que apontam para a necessidade de uma profunda profunda reformulação do
POCP (Fernandes, 2009). Sendo admissível que esta reformulação seja desenvolvida
em paralelo com a conclusão da disseminação do POCP, convirá chamar a atenção
para alguns traços do Plano vigente e para algumas áreas críticas em que a sua
efectiva aplicação se poderia ter traduzido em efectivos benefícios, enquanto que a
sua ausência não deixou de comprometer gravemente a racionalidade das decisões
tomadas.
5
2. Opções metodológicas do POCP e suas consequências.
Não entrando na polémica sobre se o POCP deveria ou não ter tido desde o início
uma estrutura conceptual, é de reter o seguinte:
- o POCP utiliza conceitos, terminologia e estrutura de contas muito próximos dos do
agora descontinuado POC;
- o POCP utiliza (e muito bem) as contas de Classe 0 para a articulação com a
contabilidade da execução orçamental e prevê a utilização da Classe 9 para o
desenvolvimento de uma contabilidade analítica que o plano aliás não regula;
- o POCP aplica-se a “entidades” que são as que estão legalmente obrigadas a
apresentar contas e que podem ter “subentidades”, sendo de referir contudo que a
articulação das Universidades com Faculdades e outras estruturas tem sido tratada
recorrendo à figura de "consolidação de contas", não regulada pelo POCP (Gonçalves,
2006);
- o POCP parece considerar, para fins contabilísticos, património da entidade e
integrantes do seu balanço os bens com que esta opera, independentemente do título
jurídico que os coloca a sua disposição19;
- é esse o critério assumido pelo POCP para os bens de domínio público, que integram
os balanços e são valorizados ( apesar de, não sendo alienáveis, não terem valor de
venda), mas que, contraditoriamente, não são amortizáveis20;
- a partir da aplicação do POCP é possível determinar algo correspondente à situação
líquida da entidade, as suas posições credoras e devedoras perante terceiros, e, bem
assim, calcular custos, abrindo caminho para a organização de uma contabilidade
analítica.
O POCP apresenta algumas limitações e soluções que o diferenciam bastante da
contabilidade empresarial:
19 Como aliás a Lei de Enquadramento Orçamental veio reforçar, na parte final do nº 6 do Artigo 75º “… devendo os balanços apresentados nos mapas XXX a XXXII distinguir o património dos serviços e instituições abrangidos do património afecto por ou a outros serviços e instituições”20 O que faz evidentemente sentido para os bens de domínio público natural, de difícil ou impossível valorização, salvo eventualmente através da capitalização do valor potencial do fluxo financeiro decorrente da concessão de licenças de utilização, mas não para os bens de domínio público artificial dos quais, se se contabiliza o valor, também se deveria contabilizar o desgaste.
6
- desde logo, não contém nenhum plano de agregação que permita por exemplo
construir um Balanço do Estado (isto é dos serviços sem personalidade jurídica)21 ou
um Balanço consolidado do sector público administrativo central (isto é, da
Administração Central mais Segurança Social) muito embora a Lei de Enquadramento
Orçamental o tenha vindo a exigir, não sob a forma de um balanço da pessoa colectiva
“Estado” mas como um balanço consolidado dos serviços integrados22 o que não é a
mesma coisa;
- as receitas fiscais, ainda que não geradas pelo organismo nem consignadas a este,
são consideradas proveitos seus, quando seria desejável que a possibilidade de criar
subentidades contabilisticas levasse por exemplo a Administração Fiscal a criar uma
para cada imposto e outra para a administração propriamente dita
- as transferências do Estado para o organismo, se autónomo, são levadas a
proveitos, e os pagamentos feitos anualmente pelo Tesouro a seu pedido, se não
autónomo, são considerados também como proveitos.
Este último ponto pode parecer natural, mas se pensarmos bem premeia os
organismos mais gastadores ou que, tendo autonomia, têm mais poder de negociação
para exigir e, eventualmente, conseguir, transferências desnecessárias.
Ora, tendo maior volume de proveitos, também terão maiores “resultados”.
Fugir a esta forma “circular” de valorizar a produção dos organismos públicos pela
inscrição do valor posto pelo Orçamento à disposição dos próprios organismos, e
chegar ao apuramento de verdadeiros “resultados” tem sido preocupação de muitos
trabalhos de académicos ou de especialistas (Hussenot, 1986, OCDE, 1997, Maingot,
2001) sendo de destacar na realidade portuguesa as preocupações manifestadas nos
relatórios da Comissão para a Qualidade e Racionalização da Administração Pública
(1994), do ECORDEP (2001), no documento preparado pela Estrutura de Missão para
o Acompanhamento da Reforma da Administração Pública para o XV Governo
Constitucional (Durão Barroso) 23, e, mais recentemente, no documento preparado
pelo Conselho Coordenador da Avaliação de Serviços para apoio à construção dos
QUAR.
21 Caiado e Pinto, 1997.22 L 91/2001, nº 4 do Artigo 75º “Mapa XXX— balanço e demonstração de resultados, do subsector dos serviços integrados; Mapa XXXI— balanço e demonstração de resultados, dos serviços e fundos autónomos; Mapa XXXII— balanço e demonstração de resultados, do sistema de solidariedade e segurança social.”23 Documento integrado na RCM 53/2004, publicada em 21-4.
7
3. Três áreas críticas em que o POCP teria podido / poderá ainda fazer a diferença
3.1 . A consideração dos custos de utilização de bens imóveis
Na falta de uma previsão do POCP que permita ficcionar como entidade contabilística
o Património do Estado, cada organismo integrado na pessoa colectiva Estado deve
contabilizar no seu balanço o património que lhe está afecto e na sua conta de
exploração a respectiva depreciação, concorrendo para o cálculo do custo do seu
funcionamento e, caso se disponha de contabilidade analítica, do custo unitário dos
serviços prestados24.
Porém desde muito cedo o próprio coordenador da comissão que elaborara o POCP,
António Nogueira Leite, viria a defender, designadamente como Secretário de Estado
do Estado de Tesouro e Finanças, que os organismos do Estado deveriam pagar-lhe
uma renda pelos imóveis que fossem propriedade daquele. Mais tarde Carlos Costa
Pina, também Secretário de Estado do Tesouro e Finanças assumiu a proposta,
promovendo mesmo a inscrição na Lei do Orçamento de disposição permissiva.
Evidentemente que no caso de serviços não-personalizados jurídica não poderia ser
celebrado um verdadeiro contrato de arrendamento – haveria juridicamente confusão
entre as qualidades de senhorio e de inquilino – mas em termos de receita e despesa
orçamental é sempre possível criar fluxos escriturais. O que não é admissível é
considerar simultaneamente os imóveis utilizados como imobilizado da entidade
contabilizando a sua depreciação como custo sem expressão orçamental, e como
imobilizado de uma entidade alheia, pela qual se paga uma renda com expressão
orçamental.
Talvez porque houve a percepção de que o POCP demoraria a implementar, talvez
por ser necessário reavaliar os edifícios afectos aos organismos, muitos deles já
historicamente amortizados, talvez por se ter a percepção que uma simples revelação
do montante dos custos não incitaria os dirigentes a reduzir os espaços ocupados a
não ser que tivessem de pagar por eles, esqueceu – se a reforma da contabilidade
em curso (digráfica e patrimonial, mas invisível e sem impacto nas decisões de
24 Não entraremos na discussão das possibilidades da contabilidade analítica, matéria da qual entre outros se tem ocupado João Carlos Fonseca.
8
gestão) a favor da contabilidade tradicional (unigráfica, e de fluxos, mas politicamente
visível e altamente condicionante das decisões de gestão).
Entretanto os governos mais recentes promoveram a venda de numerosos imóveis do
Estado…ao Estado, isto é ao grupo Parpública25, para aproveitar as possibilidades de
gerar receitas orçamentais, que, reduzindo o valor do património do Estado e
permitiram reduzir o défice dos anos em que as operações tiveram lugar, uma vez que
o Eurostat as considerava “acima da linha”. Deste modo à internalização dos
custos por via orçamental, incentivando os dirigentes máximos dos serviços a
disponibilizar instalações, juntaram-se os incentivos da contabilidade criativa.
Quando for descerrada a cortina que desde há anos envolve o POCP e decretada a
sua “inauguração oficial” perceber-se-á que, pelo menos a nível do subsector Estado
acabámos por montar uma contabilidade patrimonial sem património, o que, se os
balanços das entidades com contabilidade já implementada tivessem vindo a ser
publicados, teria sido politicamente muito mais difícil e teria alertado a opinião pública
para que a aparente contenção dos défices se fazia com prejuízo das gerações
futuras.
3.2. A contabilização da aceitação de bens imóveis em pagamento de dívidas fiscais
Por um conjunto de alterações de 1996 ao Código de Processo Tributário
(CPT), agora sucedido pelo Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT),
que se inspirou na política então defendida pela equipa do Ministério das Finanças de,
recusando perdões fiscais, facilitar o cumprimento das obrigações tributárias, passou a
legislação a admitir um mais amplo recurso à possibilidade de pagamento de dívidas
fiscais mediante a dação de bens, designadamente imóveis, em pagamento. Durante
o período de vigência do QARESD (Quadro de Acção para a Recuperação de
Empresas em Situação Financeira Difícil) ou seja entre 1996 e 1998, esta
possibilidade foi amplamente utilizada evitando a liquidação de empresas e a venda ao
desbarato dos respectivos activos. E uma vez que a lei a prevê, não tem a
administração fiscal deixado de ser confrontada com ela em momentos posteriores.
Cedo se veio a perceber que a administração fiscal resistia a apagar dos livros
a dívida juridicamente paga (e portanto, extinta) através de dação26, ficando clarificado
25 Que em alguns casos já os transferiu para fundos de subscrição pública, pelo que uma eventual extinção do grupo Parpública não os reintegrará no património do Estado.26 Também no domínio da conversão de créditos em capital e da alienação de créditos se registaram dificuldades que não dissecaremos aqui. O Relatório de Actividades de 2007 da CNACP refere a emissão de parecer a pedido da DGCI.
9
no Relatório do Grupo de Trabalho de Preparação da Legislação Complementar da Lei
de Enquadramento Orçamental (Ministério das Finanças, 1999) que se tratava do
ingresso de bens no activo imobilizado do Estado com contrapartida na extinção de
créditos por liquidações tributárias, tendo sido preparada uma Portaria que dava
concretização a esse entendimento, a qual veio a ser publicada sob o nº 1122/2000 (2ª
Série)27.
No entanto a Administração Fiscal, cujo negócio é a cobrança em dinheiro
continuou a resistir, e tanto para os funcionários que se consideravam despojados de
um valor que deveria ser reflectido no cumprimento de objectivos, e, no caso de
dações realizadas em processo executivo, no do Fundo de Equilíbrio Tributário, como
para os Governos, colocados perante metas orçamentais exigentes e perante a
tentação de lançar o valor não regularizado como receita orçamental de anos de
quebra de receitas, este tratamento contabilístico, o único compatível com a adopção
de uma contabilidade patrimonial, equivalia a um suplício de Tântalo. Ainda se terá
perspectivado a aquisição dos bens pelo grupo Parpública (em bom rigor a inerente
receita não seria já classificada como receita fiscal mas como receita de venda de
bens de investimento) mas de facto a solução acabou por ser a recusa sistemática de
propostas de dação porque se não traduziam em entradas de fundos.
Deste modo, a invisibilidade da contabilidade patrimonial leva ou à criação de
obstáculos ao cumprimento das obrigações tributárias em contexto de falta de liquidez
e de retracção do crédito bancário ou a um incentivo à fraude na contabilização de
receitas orçamentais, injectando contabilisticamente o valor dos bens aceites em
pagamento na conta em dinheiro do Tesouro. Nenhuma destas alternativas é
desejável, muito menos no contexto de dificuldades económicas e financeiras e de
escrutínio da verdade das contas públicas que o País atravessa.
3.3. O apuramento dos compromissos com os fornecedores.
Embora a publicação na Conta Geral do Estado da informação sobre compromissos
só seja também obrigatória após completada a disseminação do POCP, o Programa
“Pagar a tempo e horas”, o registo de compromissos junto do Tribunal de Contas e
outras iniciativas sugere que o POCP não é um instrumento fiável de registo de
compromissos, como não o é o próprio Sistema de Informação Contabilística (SIC).
27 Em 28 de Julho de 2011.
10
No Parecer do Tribunal de Contas relativo à CGE / 2008, pode ler-se “O SIC, sendo a
base principal da informação remetida, não obstante incluir um subsistema referente à
contabilidade de compromissos, encontra-se vocacionado para o controlo
administrativo da despesa na óptica de caixa. Quanto ao registo dos compromissos
assumidos verifica-se que a cultura vigente nos serviços perspectiva a sua
contabilização, não no momento em que o encargo é assumido, mas apenas aquando
da verificação das condições formais e materiais para se poder efectuar o respectivo
pagamento. O conceito de encargos assumidos e não pagos respeita a dívidas
presentes, cujos documentos comprovativos já foram aceites pelo devedor, ou casos
em que já se verificaram as transacções físicas geradoras da dívida, não tendo ainda
sido recebidos os respectivos comprovativos, situação que implica o recurso a registos
extra - contabilísticos complementares para identificação e apuramento dos encargos.”
Entendemos que a responsabilidade desta situação é em parte das instruções que,
insistindo em que não podem ser assumidos compromissos acima das possibilidades
orçamentais, omitem que, caso sejam assumidos compromissos sem cabimento, estes
devem ser registados no SIC e no POCP sob pena de se incorrerem nas penalidades
previstas para a falsificação de documentos. Ainda recentemente, perante escândalos
graves de ocultação de facturas a Direcção-Geral do Orçamento, reiterando, e muito
bem, a ilegalidade da assunção de compromissos sem cabimento orçamental voltou a
omitir este aspecto28.
Sem dúvida alguma este é um domínio em que o POCP não vem cumprindo a sua
função.
4. Para além de “disseminar o POCP” é imprescindível disseminar o próprio conhecimento do processo.
Enquanto que as matérias relativas à contabilidade em geral merecem largo interesse
e debate do público em geral, o esforço de concepção e actualização da contabilidade
pública patrimonial está apenas a ser seguido por uma pequena população integrada
por técnicos do Ministério das Finanças, do Tribunal de Contas e das entidades da
Administração Pública e por alguns membros da comunidade académica.
Torna-se necessário, para além de disseminar o POCP, disseminar o próprio
conhecimento do processo de implementação. Talvez, em última instância, que seja a
28 Circular nº 1368, Série A, de 9-9-2011 “Instruções sobre cabimentos, compromissos e pagamentos em atraso” .
11
falta de um maior número de stakeholders entre a população em geral e dentro do
sistema político que permitiu que o processo se tenha arrastado durante tanto tempo.
E afinal o POCP teria sido útil para todos compreendermos para onde íamos: “..o País
precisa – entre outras ferramentas – de ter um sistema patrimonial nas contas
públicas”, dizia ainda há poucos dias José da Silva Lopes29.
Nuno Ivo Gonçalves
Setembro de 2011
29 Jornal de Negócios de 22-9-2011.
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Resumo
O autor considera excessivo o atraso de implementação do POCP e aponta como
consequências deste atraso a falta de impacto sobre a gestão dos organismos e
sobre a opinião pública bem como a descontinuação do POC sem estar previsto um
ajustamento do POCP.
Depois de apontar diversos traços específicos do POCP indica áreas em que a sua
falta se tem feito particularmente sentir.
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