UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE FURG INSTITUTO DE ... · S471a Seminário Nacional de...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE FURG INSTITUTO DE LETRAS E ARTES ILA ANAIS DE TEXTOS COMPLETOS DO 6º SEMINÁRIO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Rio Grande/RS

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

    INSTITUTO DE LETRAS E ARTES – ILA

    ANAIS DE TEXTOS COMPLETOS DO 6º SEMINÁRIO NACIONAL

    DE LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

    Rio Grande/RS

  • ANAIS DE TEXTOS COMPLETOS DO 6º SENALLP

    Organizadora:

    Kelli da Rosa Ribeiro

    Rio Grande/RS

    6º Seminário Nacional de Linguística e Ensino de Língua Portuguesa

    Maio de 2017

  • Comissão científica

    Profª. Drª. Alessandra Avila Martins

    Profª. Drª. Dulce Cassol Tagliani

    Profª. Drª. Kelli da Rosa Ribeiro

    Profª. Drª. Luciana Pilatti Telles

    Profª. Drª. Silvana Schwab do Nascimento

    Profª. Drª. Tatiana Schwochow Pimpão

    Editoração

    Profª. Drª. Kelli da Rosa Ribeiro

    Kamaia Rodrigues

    Ivan de Oliveira da Silva

  • FICHA CATALOGRÁFICA

    S471a Seminário Nacional de Linguística e Ensino de Língua Portuguesa

    (6 : 2017 : Rio Grande)

    Anais de textos completos do 6º Seminário Nacional de

    Linguística e Ensino de Língua Portuguesa, 29 a 31 maio de 2017

    [recurso eletrônico] / Organizadora Kelli da Rosa Ribeiro – Rio

    Grande: Ed. da FURG, 2017.

    652 p.

    Modo de acesso: http://www.senallp.furg.br/

    ISBN: 978-85-7566-527-5

    1. Linguística 2. Língua portuguesa - Ensino I. Ribeiro, Kelli

    da Rosa II. Título

    CDU: 801

    Catalogação na fonte: Bibliotecária Vanessa Dias Santiago – CRB10/1583

    http://www.senallp.furg.br/http://www.senallp.furg.br/

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE

    Reitora

    Profª. Drª. Cleuza Maria Sobral Dias

    Vice-reitor

    Prof. Dr. Danilo Giroldo

    Pró-Reitora de Ensino de Graduação

    Renato Duro

    Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduação

    Eduardo Resende Secchi

    Pró-Reitora de Extensão e Cultura

    Daniel Procincula Prado

    Núcleo de Tecnologia da Informação

    Júlio Cesar Medina Madruga

    INSTITUTO DE LETRAS E ARTES

    Diretora

    Profª. Drª. Elaine Nogueira

    Vice-diretora

    Profª. Drª. Roseli Aparecida da Silva Neri

    CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LINGUÍSTICA E ENSINO

    DE LÍNGUA PORTUGUESA

    Coordenadora

    Profª. Drª. Silvana Schwab do Nascimento

    Vice-coordenadora

    Profª. Drª. Kelli da Rosa Ribeiro

    COORDENAÇÃO DO 6º SENALLP

    Profª. Drª. Kelli da Rosa Ribeiro

  • CONVIDADOS

    Palestrantes

    Prof. Dr. Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP)

    Profª. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)

    Profª. Dra. Carmem Luci da Costa Silva (UFRGS)

    Profª. Dra. Verli Fátima Petri da Silveira (UFSM)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Faraco (UFPR)

    Ministrantes de Minicursos

    Profª. Dra. Luciana Pilatti Telles (FURG)

    Profª. Dra. Luciene Bassols Brisolara (FURG)

    Profª. Dra. Marisa Amaral (FURG)

    Profª. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)

    Profª. Dra. Carolina Knack (FURG)

    Profª. Dra. Maria Cristina Brisolara (FURG)

    Prof. Msc. Rodrigo Feijó (PPGL/UCPel)

    Profª. Dra. Eliana Tavares (FURG)

    Profª. Dra. Sara Regina Cabral (UFSM)

    Profª. Dra. Cristiane Fuzer (UFSM)

    Prof. Márcio Aurélio Friedrich (FURG)

    COMISSÃO ORGANIZADORA

    Profª. Dra. Alessandra Avila Martins

    Profª. Dra. Dulce Cassol Tagliani

    Profª. Dra. Kelli da Rosa Ribeiro

    Profª. Dra. Luciana Pilatti Telles

    Profª. Dra. Silvana Schwab do Nascimento

    Profª. Dra. Tatiana Schwochow Pimpão

  • MONITORES

    Rafaela Pedroso de Oliveira

    Sabrina da Rosa Gomes

    Vitória Emanuely Kistt do Amaral

    Leilane Dias Munhóz

    Pedro Gustavo Moreira

    Raissa Guerra Baumel

    Ivan de Oliveira da Silva

    Leandro Duarte

    Daniel Rosa Ramires

    Fernanda Richter

    Annabela Berudi Leal

    Ademiro Silva da Paixão

    Graziela Gonçalves Lucas

    Katiuscia Medeiros Collares

    Hayane Cassales Fernandes

    Luísa dos Santos Monte

    Joice Kelle Mülling Padilha

    Ingrid Alves da Rocha Cunha

    Jane Maria Souza de Lima

    Mayara de Souza de Paiva

    Kamaia Rodrigues

    Lara Braz Domingues

    Zarí Morais da Trindade

    Franklin Furtado Ieck

    Keller Matos Rocha

    Rosane Jaehn Troina

    Rose Meri Bazareli Vaz

  • SUMÁRIO

    POSIÇÃO-SUJEITO: UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE O CURSO DE PEDAGOGIA DA

    UFSM ............................................................................................................................................ 1

    RELAÇÕES METAFÓRICAS NA INFERÊNCIA DE EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS EM

    PORTUGUÊS COMO L2 ............................................................................................................. 9

    O FUNCIONAMENTO DA NOÇÃO DE SUJEITO-CORPO NO DISCURSO DO E SOBRE O

    ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ..................................................................... 25

    A LINGUÍSTICA DO TEXTO NA SALA DE AULA: OS OEPRADORES

    ARGUMENTATIVOS NA PRODUÇÃO TEXTUAL .............................................................. 37

    A ORELHA DE VAN GOGH, DE MOACYR SCLIAR, .......................................................... 48

    E SUA TRADUÇÃO AO ESPANHOL, SEGUINDO AS NOÇÕES ........................................ 48

    DAS NORMAS INICIAIS E OPERACIONAIS, DE GIDEON TOURY .................................. 48

    ASPECTOS LINGUÍSTICOS E ENTONACIONAIS NA FALA DE HOMOSSEXUAIS ....... 60

    O GÊNERO RESUMO COMO PRÁTICA DISCURSIVA NO MEIO ACADÊMICO ............ 72

    A DISCIPLINA DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ADICIONAL “NEGÓCIOS E

    COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL”: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DOS ESTUDOS DE

    LETRAMENTO ACADÊMICO ................................................................................................. 86

    COMPORTAMENTOS EM EXEMPLA DE LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA

    PORTUGUESA: UMA QUESTÃO DE VALOR .................................................................... 107

    REFLEXÕES SOBRE LITERATURA SURDA - IMPORTÂNCIA DA LITERATURA COMO

    FERRAMENTA NO ENSINO DE ALUNOS SURDOS ADULTOS...................................... 118

    LIVROS DE LITERATURA SURDA – ANALISE E COMPARAÇÃO DE DUAS OBRAS

    SOBRE A MESMA TEMÁTICA ............................................................................................. 134

    PROGRESSÃO E MANUTENÇÃO TEMÁTICA: DESENVOLVENDO A COMPREENSÃO

    LEITORA ATRAVÉS DE UM JOGO VIRTUAL ................................................................... 142

    ENUNCIAÇÃO, SUBJETIVIDADE E ARGUMENTAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE O

    ETHOS EM TEXTOS JORNALÍSTICOS ............................................................................... 155

    O PAPEL DA TRANSGRESSÃO NO DISCURSO ................................................................ 168

    O TEXTO/GÊNERO TEXTUAL COMO OBJETO DE ENSINO .......................................... 179

    NAS AULAS DE LÍNGUA ...................................................................................................... 179

    AUDIODESCRIÇÃO DIDÁTICA: INSTRUMENTALIZANDO O PROFESSOR PARA O

    TRABALHO COM ALUNOS CEGOS NO ENSINO REGULAR.......................................... 190

    USO DE FERRAMENTAS TECNOLÓGICAS NO DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO E

    DA PERCEPÇÃO DA PROGRESSÃO TEMÁTICA NO TEXTO ......................................... 204

    COMPREENSÃO DE EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS EM PORTUGUÊS COMO L2 E

    SIMILARIDADE FORMAL ENTRE EIS. .............................................................................. 220

    HISTÓRIA DA COLÔNIA DE FÉRIAS DOS SURDOS EM CAPÃO DA CANOA ............ 233

    LÍNGUA, SUJEITO E HISTÓRIA ........................................................................................... 242

    "UMA TÁTICA BOA PRA ISSO": UM ESQUETE CÔMICO-PRECONCEITUOSO SOBRE

    COMO RESOLVER O PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL .......................... 249

  • EDUCAÇÃO SUPERIOR: TECNOLOGIA ALIADA AO ENSINO DA LÍNGUA

    BRASILEIRA DE SINAIS ....................................................................................................... 262

    ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA: RELATO DE UMA PRÁTICA DE ENSINO DE

    LÍNGUA EM ESPAÇO (NÃO) ESCOLAR ............................................................................. 270

    MULTIMÍDIAS E INTERAÇÃO: LIVRO DIGITAL COMO TECNOLOGIA DE APOIO À

    APRENDIZAGEM NA GRADUAÇÃO .................................................................................. 287

    OFICINA DE ESCRITA NAS AULAS DE PORTUGUÊS ATRAVÉS DO GÊNERO

    CRÔNICA ................................................................................................................................. 298

    QUANDO A PALAVRA ALHEIA SE TORNA A MINHA PALAVRA: REFLEXÕES SOBRE

    ENUNCIADO E PROJETO DE DISCURSO NO GÊNERO RESPOSTA DE PROVA

    DISSERTATIVA ...................................................................................................................... 308

    JOGOS VIRTUAIS PARA ALUNOS DE 2º ANO INICIAL COM DIFICULDADES DE

    COMPREENSÃO LEITORA ................................................................................................... 327

    ATIVIDADE DE ESCRITA EM UMA ESCOLA PÚBLICA DO ENSINO BÁSICO ........... 338

    MUITO ALÉM DO CENÁRIO: AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO ........ 348

    AUTOANÁLISE INICIAL DAS INTERFERÊNCIAS HISPÂNICAS NA PRODUÇÃO E

    PERCEPÇÃO DO PORTUGUÊS COMO L3 APRENDIDO INFORMALMENTE POR UMA

    HISPANO-FALANTE: ALGUNS FENÔMENOS DO VOCALISMO E DO

    CONSONANTISMO ................................................................................................................ 359

    LETRAMENTO(S) NA ESFERA ACADÊMICA: ANÁLISE, PRODUÇÃO E ENSINO DE

    GÊNEROS DISCURSIVOS ..................................................................................................... 370

    PRODUÇÃO TEXTUAL NA UNIVERSIDADE: AS INTERAÇÕES EM TORNO DA

    REESCRITA ............................................................................................................................. 379

    LEITURA EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: LIMITES E POSSIBILIDADES ................ 389

    CINELIBRAS: O CINEMA COMO DISPOSITIVO DE APRENDIZAGEM DA LÍNGUA

    BRASILEIRA DE SINAIS NOS CURSOS DE ENGENHARIA DA UFPEL ........................ 403

    A LINGUÍSTICA DO TEXTO E A PESQUISA-AÇÃO EM SALA DE AULA: A

    SITUACIONALIDADE E OS ARTICULADORES DISCURSIVO-ARGUMENTATIVOS NA

    PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO ............................................. 415

    MICROCRÔNICAS VERBO-VISUAIS E O ENGAJAMENTO DO LEITOR EM UM JOGO

    LÚDICO DE NATUREZA lingüística ..................................................................................... 430

    O DISCURSO NA ESFERA TECNOLÓGICA: A LÍNGUA EM MOVIMENTO ................. 446

    BIBLIOTECAS ESCOLARES: POLÍTICAS PÚBLICAS E SEUS DESDOBRAMENTOS EM

    ESCOLAS DO MUNICÍPIO DE ARAGUAÍNA/TO .............................................................. 463

    A INFORMATIVIDADE NA CONSTRUÇÃO DO TEXTO ARGUMENTATIVO: A

    ESCRITA ALICERÇADA PELA SEQUÊNCIA DIDÁTICA ................................................. 474

    ETHOS, ENUNCIAÇÃO E LINGUÍSTICA TEXTUAL: ESBOÇO DE UMA IMAGEM

    DISCURSIVA EM DUAS NOTÍCIAS ESPORTIVAS EM LINGUA PORTUGUESA E EM

    LÍNGUA ESPANHOLA ........................................................................................................... 491

    DIÁRIOS DE LEITURA COMPARTILHADA: UMA EXPERIÊNCIA DE

    (RE)SIGNIFICAÇÃO LITERÁRIA EM GRUPOS DE FACEBOOK ..................................... 503

    A ESCOLA COMO ESPAÇO DE SILENCIAMENTO DA LÍNGUA MATERNA ............... 514

    SUJEITO QUALIFICADO E DESQUALIFICADO PELA LÍNGUA: SENTIDOS DO

    PORTUGUÊS CORRETO DO SENSO COMUM ................................................................... 523

  • O DESENVOLVIMENTO DA COMPREENSÃO LEITORA DE ALUNOS DO ENSINO

    FUNDAMENTAL POR MEIO DE SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS, COM APOIO EM

    TECNOLOGIAS ....................................................................................................................... 532

    TEXTO MULTIMODAL: SIGNIFICADO SIM, ENFEITE NÃO! ......................................... 560

    O ARGUMENTO DE AUTORIDADE COMO RECURSO NA REDAÇÃO DO ENEM...... 568

    PENSAR A LITERATURA, E PENSAR COM A LITERATURA ......................................... 582

    SIMPÓSIO TEMÁTICO EM REFLEXÃO: ESTUDOS E DESCRIÇÕES DO PORTUGUÊS

    BRASILEIRO EM SINCRONIAS PASSADAS ...................................................................... 590

    LINGUÍSTICA DO TEXTO E ESCOLA BÁSICA: POSSIBILIDADES PARA O ENSINO E

    APRENDIZAGEM EM LÍNGUA MATERNA ....................................................................... 598

    A RELAÇÃO DOS ELEMENTOS VISUAIS NO ESPAÇO URBANO E MACABÉA EM A

    HORA DA ESTRELA DE CLARICE LISPECTOR .................................................................. 610

    PEDAGOGIA CARTONERA: ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO DE PRODUÇÃO

    TEXTUAL ................................................................................................................................ 621

    TV INES: O PROTAGONISMO DA COMUNIDADE SURDA EM PRODUÇÕES

    AUDIOVISUAIS NA INTERNET ........................................................................................... 639

  • 1

    POSIÇÃO-SUJEITO: UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE O CURSO DE

    PEDAGOGIA DA UFSM

    Adriele Delgado Dias (UFSM)

    Introdução

    Minha formação em Pedagogia, pela Universidade Federal de Santa Maria

    (UFSM), instigou-me a buscar mais conhecimentos que se referem aos estudos da língua

    e da linguagem, pois acredito que no curso de Pedagogia esta questão é pouco explorada.

    Isso me fez pensar e repensar sobre o objetivo do curso, sendo ele um curso de licenciatura

    que forma sujeitos “aptos” a trabalhar no ensino e aprendizagem da aquisição da língua e

    da linguagem, no ler e escrever.

    Sendo assim, partindo das minhas inquietudes como professora formada pela

    UFSM, e, com o intuito de ampliar meus estudos para minha pesquisa de Mestrado, que

    busca compreender como os estudos da língua e da linguagem se fazem presentes no

    curso de Pedagogia da UFSM, é que se delineia este trabalho que tem por objetivo

    compreender como o ementário da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”, do Curso de

    Pedagogia da UFSM, certifica o perfil de professor que está assentado no objetivo geral

    desse curso. Dessa forma, escolhemos esta disciplina por observarmos que no seu

    programa estão expostos temas referentes a questões especificamente linguísticas, como:

    Sociolinguística, Psicolinguística e Linguística Aplicada.

    Para então realizarmos a análise deste trabalho, utilizamos os pressupostos

    teóricos da Análise de Discurso (AD) para permear os conceitos necessários na

    compreensão desta pesquisa. Com isso, descrevemos as noções de discurso, ideologia,

    sujeito, posição- sujeito e formações discursivas, baseado nos estudos de Michel Pêcheux

    e Eni Orlandi.

  • 2

    A Análise de Discurso

    A Análise de Discurso surgiu nos anos 60, na França, como campo teórico e

    analítico fundada por Michel Pêcheux e, no Brasil, nos anos 80, postulada por Eni

    Orlandi.

    A AD se situa na relação entre o linguístico e o histórico, estabelecendo o discurso

    como objeto de estudo que conjuga aspectos linguísticos com aspectos histórico-

    ideológicos. Para tanto, Pêcheux começou questionar a concepção de língua como um

    sistema, porque entende que a língua possui uma exterioridade, no qual os sujeitos a põem

    em funcionamento, e, essa exterioridade dá passagem para se considerar a história da e

    na língua como fato de discurso.

    Para Orlandi (2005), a AD vai constituir-se como um lugar teórico propício ao

    estudo a partir de três grandes áreas do conhecimento: a Linguística, a Psicanálise e o

    Marxismo, pois somente assim é possível contemplar a significação do discurso. A autora

    ainda salienta que a Análise de Discurso:

    Concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade

    natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a

    permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do

    homem e da realidade em que ele vive. (ORLANDI, 2005, p. 15)

    Dessa forma, o entendimento de discurso está na noção de um objeto teórico

    constituído por sentidos produzidos historicamente nas práticas sociais, pois ele configura

    o lugar onde se pode observar a relação entre língua e ideologia. Sendo assim, o discurso

    funciona como um lugar de mediação, pois é nele que os sentidos são produzidos.

    E segundo Orlandi (2005, p. 21), “o discurso é efeito de sentidos entre locutores”,

    em que constantemente a posição-sujeito é redefinida, nas práticas sociais, pelas

    condições de produção do discurso. Com isso, entendemos que o sujeito não se desvincula

    da ideologia, pois ele é um sujeito socializado, ou seja, ele discursiva de acordo com suas

    marcas do social, do ideológico e do histórico, em que ora é assujeitado pela ideologia

    que o domina, ora pelo seu próprio inconsciente.

    Sendo assim, compreendemos que “a ideologia interpela os indivíduos em

    sujeitos” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 167). Dessa forma, não existe um discurso sem

    sujeito e nem sujeito sem ideologia, pois o sujeito sempre se inscreve em uma ideologia,

    colocando suas posições no discurso.

    Orlandi (2005) nos explicita que o sujeito só tem acesso a parte do que diz, sendo

    atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário. Ele é sujeito à

  • 3

    língua e à história, pois é afetado por elas quando produz sentidos, e ele necessita disso,

    pois se não produz sentidos, não se constitui como sujeito.

    Sendo assim, a autora apresenta a ideia de “posição” que um sujeito discursivo

    tem frente a outros, pois é o lugar que o sujeito ocupa que o coloca como sujeito de sua

    fala. “É a posição que deve e pode ocupar todo indivíduo para ser sujeito do que diz”

    (ORLANDI, 2005, p. 49). Ou seja:

    O modo como o sujeito ocupa seu lugar, enquanto posição, não lhe é acessível,

    ele não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso) que o constitui. Da

    mesma maneira, a língua também não é transparente nem o mundo diretamente

    apreensível quando se trata da significação pois o vivido dos sujeitos é

    informado, constituído pela estrutura da ideologia. (PÊCHEUX, 1975 apud

    ORLANDI, 2005, p. 49)

    Com isso, os sujeitos são intercambiáveis, pois quando nos colocamos em uma

    determinada posição, em determinada situação, há um sentido relativo à formação

    discursiva em que nos inscrevemos.

    Pois “não é uma forma de subjetividade mas um ‘lugar’ que ocupa para ser sujeito

    do que diz” (ORLANDI, 2005, p. 49). E para isso, podemos dizer que um mesmo

    indivíduo assume-se como diferentes sujeitos em diferentes formações discursivas. Por

    exemplo, quando uma mulher fala da posição de mãe, questionando seu filho sobre o

    horário de chegada em casa, o sentido do enunciado é construído a partir da posição de

    mãe assumida.

    O que compreendemos é que todos os enunciados fazem parte do discurso; um

    sujeito pode ter uma posição social em cada momento, por exemplo, podemos ser

    professora, filha, estudante, etc, de acordo com a situação em que estamos inseridos. E

    segundo Courtine (1999),

    [...] são posições de sujeito que regulam o próprio ato da enunciação: o

    interdiscurso, sabe-se, fornece, sob a forma de citação, recitação ou

    preconstruído, os objetos do discurso em que a enunciação se sustenta ao

    mesmo tempo que organiza a identificação enunciativa (através do regramento

    das marcas pessoais, dos tempos, dos aspectos, das modalidades...) constitutiva

    da produção da formulação por um sujeito enunciador. (COURTINE, 1999, p.

    20, grifos do autor)

    A Análise de Discurso parte da ideia de que o sujeito não é fonte do sentido, mas

    que se forma a partir de uma rede de memória acionada pelas formações discursivas que

    representam no seu discurso diferentes posições-sujeito, ou seja, a formação discursiva,

    como lugar da interpelação ideológica do sujeito, configura uma matriz de sentido.

  • 4

    Para tanto, Pêcheux e Fuchs (1997) afirmam que

    É impossível identificar ideologia e discurso [...], mas que se deve conceber o

    discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade

    ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva pertence, assim

    pensamos, ao gênero ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações

    ideológicas [...] comportam necessariamente, como um de seus componentes,

    uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode

    e deve ser dito [...] a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa

    certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa

    relação de classes. (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 166)

    Com isso, tem-se que no discurso a ideologia se revela através de sua

    materialidade ideológica, que, por sua vez, se materializa nas Formações Discursivas

    (FDs), em que segundo Pêcheux (1997) o sujeito do discurso se inscreve por meio da

    forma-sujeito de acordo com as posições e as condições de produção dadas. O autor, ainda

    expõe que a forma-sujeito “tende a absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso,

    isto é, ela simula o interdiscurso1 no intradiscurso2, de modo que o interdiscurso aparece

    como o puro ‘já-dito’3 do intra-discurso, no qual ele se articula por ‘co-referência’ ”

    (PÊCHEUX, 1997, p. 167, grifos do autor).

    Nesse sentido, Orlandi (2005) apresenta duas observações referentes às FDs.

    Primeiro que os sentidos derivam das formações discursivas que as palavras se inscrevem,

    e segundo, que é pela identificação da FD que se podem compreender os diferentes

    sentidos.

    Pêcheux (1997), afirma que o lugar do sujeito não é vazio, mas preenchido pela

    forma-sujeito de uma determinada FD, pois é pela forma-sujeito que um indivíduo se

    inscreve em uma determinada formação discursiva, se identificando e constituindo como

    sujeito.

    O autor explica que formação discursiva é aquilo que, numa formação ideológica

    dada, determina o que pode e deve ser dito. Assim as palavras recebem seu sentido da

    formação discursiva na qual são produzidas, pois “os indivíduos são ‘interpelados’ em

    sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que

    representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”

    (PÊCHEUX, 1997, p. 161, grifos do autor).

    1 Orlandi (2005, p. 32-33) expõe que “o interdiscurso – representada como um eixo vertical onde teríamos

    todos os dizeres já ditos – e esquecidos – em uma estratificação que, em seu conjunto, representa o dizível”. 2 A mesma autora, explica o intradiscurso como um eixo horizontal, “que seria o eixo da formulação, isto

    é, aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas” (ORLANDI, 2005, p. 33). 3 Fala-se em “já-dito”, pois entendemos que todo o discurso é produzido por meio de discursos anteriores

    de outro alguém.

  • 5

    Para tanto, Pêcheux e Fuchs (1997) afirmam que:

    [...] uma formação discursiva existe historicamente no interior de determinadas

    relações de classes; pode fornecer elementos que se integram em novas

    formações discursivas, constituindo-se no interior de novas relações

    ideológicas, que colocam em jogo novas formações ideológicas. (PÊCHEUX

    e FUCHS, 1997, p. 167-168)

    Isso significa que o funcionamento da ideologia com a interpelação dos indivíduos

    em sujeitos ocorre por meio das formações ideológicas, fornecendo a cada sujeito a sua

    realidade enquanto sistema de evidências e de significações que são percebidas, aceitas e

    experimentadas.

    Olhar Reflexivo

    Partindo do interesse de investigar de que forma os estudos da língua e da

    linguagem estão presentes no curso de Pedagogia da UFSM, e ainda, respondendo as

    minhas inquietudes, é que se faz este trabalho, o qual buscamos analisar a posição de

    sujeito na disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita” do curso de Pedagogia da já referida

    universidade, contrapondo com a posição de sujeito detalhada no objetivo geral do curso.

    Para Foucault (2001) uma disciplina é determinada por um domínio de objetos,

    conjuntos e métodos. Ou seja, uma disciplina é um conjunto de discursos que se constrói

    em um campo de enunciação, com uma regulação e funcionamento específicos, pela

    discursivização dos conhecimentos a partir de determinadas FDs. Esse espaço de

    enunciação distribui os conhecimentos de um modo particular, e, essas configurações

    específicas dos discursos em suas relações com outros discursos e com o conhecimento

    irão incidir em relação à história e à memória das línguas, do saber sobre elas produzidas,

    das instituições e do sujeito.

    No curso de Pedagogia, várias são as disciplinas que prevê o conhecimento

    linguístico. Mas para o momento, tomamos apenas uma disciplina, no qual fizemos um

    recorte dos seus objetivos, pois esta trata sobre questões da aquisição da linguagem. Para

    tanto, seguem abaixo as transcrições - fiéis às escrituras da ementa da disciplina e do site

    do curso.

    RECORTE 1- Objetivos da ementa da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”:

    • Analisar o processo de construção do conhecimento e as teorias que o embasam,

    procurando estabelecer uma relação dialética entre desenvolvimento, ensino e

  • 6

    aprendizagem, que contribuam para a aquisição e desenvolvimento da linguagem

    escrita e da leitura.

    RECORTE 2- Objetivo geral do curso de Pedagogia da UFSM:

    • O curso tem como objetivo geral formar professores/profissionais em nível

    superior para a docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino

    Fundamental. Os alunos são capacitados para atuar nas diferentes modalidades

    de ensino e/ou nas demais áreas nas quais sejam previstos conhecimentos

    pedagógicos.

    Nessa etapa, Orlandi explica que o analista é preparado para começar “a

    vislumbrar a configuração das formações discursivas que estão dominando a prática

    discursiva em questão” (ORLANDI, 2005, p. 78). De acordo com a autora, as formações

    discursivas permitem compreender o processo de produção dos sentidos, estabelecendo

    regularidades no funcionamento do discurso e determinando o que pode e deve ser dito.

    Dessa forma, ainda segundo Orlandi (2005), o próximo passo requer relacionar as

    formações discursivas com as formações ideológicas que rege essas relações. E em nossa

    pesquisa identificamos saberes que se inscrevem em pelo menos duas formações

    discursivas:

    FD1: FD na qual se inscrevem sujeitos que adquirem conhecimentos teóricos

    referentes à aquisição e desenvolvimento da linguagem e da escrita.

    FD2: FD na qual se inscrevem sujeitos que são aptos e preparados para atuar como

    professores.

    Nesta análise, ao observarmos a ementa da disciplina “Oralidade, Leitura e

    Escrita”, o que se torna sobressalente é a presença do verbo no infinitivo que introduz o

    objetivo da mesma. Isso nos revelou a ausência do cunho de formação docente, já que de

    acordo com o objetivo geral do curso de Pedagogia, este é um curso de licenciatura, que

    forma professores aptos a trabalhar com o ensino e aprendizagem da leitura e escrita.

    Na FD1 encontramos um sujeito que apenas conhece teorias, porém não está hábil

    a transmiti-las atuando como profissional capacitado para tal, pois ele ainda é um

    professor em formação.

  • 7

    Já na FD2 o que encontramos é um sujeito que se forma docente, capaz de atuar

    como tal tanto na Educação Infantil, quanto nos Anos Iniciais de uma escola.

    Dessa forma, ao analisarmos o objetivo do curso de Pedagogia da UFSM e a

    ementa da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”, consideramos que o sujeito

    pressuposto no objetivo geral do curso é um sujeito-professor, pois se espera que o curso

    forme profissionais docentes, aptos a atuar com tal. Já o sujeito que encontramos presente

    no objetivo da disciplina é um sujeito que ocupa uma posição que apenas adquiri

    informações e estuda conhecimentos teóricos referentes à aquisição da língua e da

    linguagem, porém não é hábil a trabalhá-las de forma prática, ou seja, não as aplica como

    professor em sala de aula.

    Com isso, “o resultado da análise é uma interpretação” (MAZIÉRE, 2007, p. 25),

    a qual podemos dizer que a posição de sujeito do objetivo do curso se difere da posição

    de sujeito da ementa. Contudo, o que nos inquieta é como que um curso formador de

    professores, não possui na ementa de suas disciplinas o mesmo objetivo geral que no do

    curso. Obviamente, não queremos dizer que as disciplinas do curso de Pedagogia devam

    estar todas baseadas na prática do professor, até porque sabemos da importância das

    teorias para nossa formação, mas sim, que elas mantenham uma relação dialética com o

    princípio docente do curso.

    Apontamentos Finais

    Este encaminhamento final, reflexivo da prática analítica deste trabalho, explica

    o que tal análise representou para a analista. Com isso, analisamos e refletimos sobre as

    posições de sujeito presentes no ementário da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita” do

    Curso de Pedagogia da UFSM, assim como, do objetivo geral do Curso.

    Portanto, ao partirmos do pressuposto de que o sujeito se constitui a partir de uma

    formação ideológica é que compreendemos a posição-sujeito presentes na disciplina e no

    curso. Ou seja, identificamos com esta análise diferentes sujeitos, em que o sujeito

    presente no objetivo geral do curso difere do sujeito presente no ementário da disciplina.

    Concordamos assim, com Orlandi (2012) que

    [...] a particularidade do método em análise de discurso, também vista no que

    significa entremeio4, é a de ser aberto, dinâmico (não positivista), não sendo

    4 Para Orlandi (2012), “entremeio significa, sobretudo, não pensar nas relações hierarquizadas, ou

    instrumentalizadas, ou aplicações. Trata-se da transversalidade de disciplinas pensadas como, segundo M.

    Pêcheux (1969), empréstimos que se usam como metáforas, o nosso contexto científico” (ORLANDI, 2012,

    p. 11, grifos da autora).

  • 8

    tomado como aplicação automática da teoria, mas como mediação entre teoria

    e análise, na busca dos procedimentos próprios ao objeto que se analisa.

    (ORLANDI, 2012, p. 12, grifos da autora)

    O que concluímos, então, nesta análise foi uma posição-sujeito incômoda e

    contraditória. Em que, no objetivo geral do Curso de Pedagogia identificamos um sujeito-

    professor, que supõe um docente em formação, enquanto que no ementário da disciplina

    identificamos um sujeito que apenas adquire informações, que conhece teorias que

    embasam o processo de construção do conhecimento, referentes à aquisição da linguagem

    escrita e da leitura, porém, estes conhecimentos não preveem possíveis aplicações no

    fazer docente.

    Nesse sentido, de acordo com Orlandi (2006), compreendemos que as diferentes

    posições de sujeito representam as diferentes formações discursivas que atravessam a

    história, pois “cada texto tem, assim, uma certa unidade discursiva com que ele se

    inscreve em um tipo de discurso determinado” (ORLANDI, 2006, p. 60).

    Portanto, a posição-sujeito existente no objetivo do curso possui uma formação

    histórica e ideológica distinta da posição-sujeito existente no ementário da disciplina, já

    que identificamos um sujeito-professor e um sujeito que apenas conhece teorias e não as

    aplica.

    Enfim, é importante ressaltar que este trabalho nos possibilitou vislumbrar outras

    análises referentes ao Curso de Pedagogia, em que, como curso de licenciatura que

    objetiva formar professores, necessita de alguns estudos mais avançados no que se refere

    ao estudo da língua e da linguagem. Nesse sentido, o que queremos dizer é que para um

    professor em formação é necessário saber como o processo de aquisição em linguagem

    ocorre, pois ele deve saber atuar e intervir neste processo como um mediador do

    conhecimento.

    Referências

    COURTINE, Jean J. O chapéu de Clémentis. In: Os múltiplos territórios da Análise do

    Discurso/ Freda Indursky e Maria Cristina Leandro Ferreira, organizadoras. -- Porto

    Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 1999.

    FOUCAULT, Michael. A ordem do discurso. 7ªed. São Paulo: Loyola, 2001.

    MAZIÉRE, Francine. A análise do discurso: história e práticas; tradução Marcos

    Marcionilo. – São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

  • 9

    ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:

    Pontes Editores, 2005.

    ____Discurso e leitura. – 7.ed. - São Paulo: Cotez, 2006.

    ____Discurso em Análise: Sujeito, Sentido e Ideologia. Campinas, SP: Pontes Editores,

    2012.

    PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso:

    atualização e perspectivas (1975). In: Por uma Análise Automática do Discurso: uma

    introdução à obra de Michel Pêcheux/ organizadores Françoise Gadet; Tony Hak;

    tradutores Bethania S. Mariani... [et al.] -- 3. ed. -- Campinas, SP: Editora da Unicamp,

    1997.

    PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio; tradução

    Eni Pulcinelli Orlandi [et al.] -- 3. ed. -- Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. UFSM- Pedagogia Diurno. Santa

    Maria, 2016. Disponível em: http://w3.ufsm.br/ce/index.php/graduacao/pedagogia-

    diurno. Acesso em: 01/03/2017.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. UFSM- Portal do Ementário. Santa

    Maria, 2016. Disponível em: https://portal.ufsm.br/ementario/curso.html?idCurso=1061.

    Acesso em: 01/03/2017.

    RELAÇÕES METAFÓRICAS NA INFERÊNCIA DE EXPRESSÕES

    IDIOMÁTICAS EM PORTUGUÊS COMO L2

    Alessandra Baldo (UFPel)

    Priscila Costa Machado (UFPel)

    Introdução

    A compreensão de como as expressões idiomáticas (EIs) são processadas têm sido

    o foco de muitos estudos no âmbito da ciência linguística, como também em outras áreas

    de conhecimento. Teorias para explicar esse processo são encontradas e desenvolvidas

    tanto na linguística formal como na linguística gerativa, tanto na linguística cognitiva

    como na linguística textual, sem considerar, aqui, áreas interdisciplinares.

    O estudo pioneiro de Gibbs e O’Brian (1990) introduz, na linguística cognitiva, a

    ideia de uma relação entre as EIs de uma língua e as metáforas conceptuais, conceito que

    serve de pilar para a Teoria das Metáforas Conceptuais de Lakoff e Johnson (1980; 2003).

    http://w3.ufsm.br/ce/index.php/graduacao/pedagogia-diurnohttp://w3.ufsm.br/ce/index.php/graduacao/pedagogia-diurnohttps://portal.ufsm.br/ementario/curso.html?idCurso=1061

  • 10

    Os autores sustentaram, a partir de uma série de experimentos a ser descrita na seção

    seguinte, que, enquanto os participantes elaboraram imagens mentais díspares entre eles

    para explicar as expressões literais, houve consistência das imagens referentes às

    expressões idiomáticas, e que isso se devia à influência restritiva das metáforas

    conceptuais. Mais recentemente, Kazemi et al (2013) também encontraram semelhanças

    nas imagens mentais referentes a expressões idiomáticas por falantes persas, aprendizes

    de farsi como L2. A descrição desses estudos está na seção seguinte, à qual segue uma

    breve explicação sobre conceitos-chave da Teoria da Metáfora Conceptual de Lakoff e

    Johnson (1980; 2013) utilizados nesta pesquisa.

    Cabe notar que nos estudos de Gibbs e O’Brian e Kazemi mencionados no

    parágrafo anterior, o instrumento principal de coleta de dados foram questionários, a fim

    de ser possível uma classificação das imagens inferidas pelos sujeitos frente as expressões

    idiomáticas sob análise. Diferentemente, no estudo aqui relatado foram utilizados

    protocolos verbais, com o objetivo de obter descrições livres do processo inferencial dos

    participantes frente a expressões idiomáticas desconhecidas na L2. O objetivo era

    verificar se a mudança do método de coleta de dados resultaria em uma diferença nos

    resultados encontrados com relação à presença subjacente de metáforas conceptuais em

    expressões idiomáticas, quando em comparação com os achados dos estudos

    supracitados. Para tanto, solicitou-se a dez estudantes de espanhol como L1, aprendizes

    de português como L2, que descrevessem o seu processo inferencial de três expressões

    idiomáticas relacionadas aos itens lexicais mãos, pés e dedos. É importante destacar que

    nenhuma das três EIs possui equivalente em espanhol, o que deveria tornar, a princípio,

    o processo de compreensão das EIs pelos sujeitos mais complexo. As descrições

    ocorreram em sessões individuais e não houve delimitação de tempo, sendo gravadas e

    posteriormente transcritas. A descrição completa da metodologia é exibida na quarta parte

    do artigo.

    Os dados são apresentados e analisados na quinta parte do artigo, enquanto as

    considerações finais, na qual os resultados do estudo são avaliados à luz de trabalhos de

    pesquisa de natureza semelhante, constituem a sexta e última parte do texto.

    Estudos: compreensão de EIs pela linguística cognitiva

    Iniciamos a sessão por Gibbs e O’Brian (op. cit.), e não somente por serem os

    primeiros a investigarem a aplicabilidade da noção de metáforas conceptuais a expressões

    convencionais de uma língua, mas também, e principalmente, pelo impacto do trabalho

  • 11

    dos autores no desencadeamento de uma mudança na compreensão, pelos linguistas

    cognitivos, dos mecanismos subjacentes a essas expressões. Atualmente, qualquer

    histórico sobre teorias relativas a expressões idiomáticas (EIs) inclui necessariamente as

    noções de metáforas conceptuais e imagens mentais, conceitos-chave na pesquisa dos

    autores.

    Gibbs e O’Brian (op. cit) elaboraram três experimentos cujo objetivo comum era

    investigar em que medida as imagens mentais de 25 expressões idiomáticas (EIs) em

    língua inglesa criadas por 24 falantes nativos de inglês eram similares. As EIs foram

    subdivididas igualmente em cinco temas: raiva, exercício de controle ou autoridade,

    habilidade de manter segredo, insanidade e revelação. No primeiro experimento, os

    sujeitos descreveram, via protocolos verbais, as imagens mentais associadas a cada uma

    das expressões, e em seguida responderam a questões detalhadas sobre essas imagens,

    relacionadas à causa, intencionalidade, modo, consequência, consequência negativa e

    possibilidade de reversibilidade. Como resultado, os autores encontraram um nível

    significativo de similaridade entre as imagens verbais criadas para as EIs, a despeito de

    diferenças na composição lexical dessas.

    O segundo e o terceiro experimento foram experimentos-controle. O segundo

    visava a descartar a possibilidade de que a uniformidade das imagens mentais verificadas

    no Experimento 1 tivesse ocorrido somente devido ao conhecimento prévio das EIs pelos

    sujeitos. Os pesquisadores solicitaram a 24 falantes nativos de inglês – diferentes dos do

    primeiro estudo – que criassem imagens mentais para paráfrases literais das definições

    das EIs, respondendo às mesmas questões relativas a essas imagens empregadas no

    experimento 1. Se esse fosse o caso, argumentaram os linguistas, os sujeitos criariam

    imagens mentais semelhantes às do primeiro experimento. Contudo, e conforme

    esperado, as imagens mentais nesse contexto foram bastante díspares entre os sujeitos,

    mostrando que as imagens convencionais associadas com as EIs não eram somente

    baseadas nos significados figurativos.

    Já o terceiro experimento buscava descobrir se a consistência das imagens mentais

    verificadas no experimento 1 não teria sido causada simplesmente porque as pessoas

    costumam criar imagens mentais semelhantes para enunciados, sejam eles idiomáticos ou

    não. Para verificar essa hipótese, os pesquisadores transformaram cada uma das EIs em

    frases literais – modificando a última parte da expressão, como “spill the beans” para

    “spill the peas” 5 – e solicitaram a outros diferentes 24 sujeitos que construíssem imagens

    5 “Spill the beans” significa literalmente “derramar os feijões”, e, idiomaticamente, “revelar um

    segredo”; “spill the peas” significa “derramar as ervilhas”, e não possui significado idiomático.

  • 12

    mentais para tais enunciados, respondendo na sequência a questões sobre essas imagens

    – as mesmas dos experimentos 1 e 2. Novamente conforme previsto, houve pouca

    consistência entre as imagens gerais dos sujeitos para os diferentes grupos de frases

    literais, as quais não eram restringidas por metáforas conceptuais, resultado em contraste

    direto com o obtido no Experimento 1.

    O estudo de Kazemi et al (2013) é uma quase-replicação do experimento 1 de

    Gibbs e O’Brian (op. cit.), com as seguintes diferenças: (i) os sujeitos eram falantes

    nativos de farsi e estudantes de persa como L2, provenientes de diferentes regiões do Irã,

    cada uma com seus dialetos característicos de Farsi; (ii) havia 20 expressões idiomáticas

    em persa, subdividas em cinco grupos: raiva, correr riscos, insanidade, vaidade e

    loquacidade. Essas diferenças metodológicas estavam relacionadas com os objetivos dos

    pesquisadores, que eram verificar se os resultados sobre a consistência de imagens verbais

    em expressões idiomáticas obtidos por Gibbs e O’Brian poderiam ser generalizados para

    outras comunidades de fala, como também explorar se as pessoas em diferentes

    sociedades, culturas e línguas compreenderiam as EIs do mesmo modo. Os autores, a

    partir da aplicação da teoria das metáforas conceptuais, tiveram confirmadas as duas

    questões de pesquisa.

    Assim, frente às evidências obtidas pelos três experimentos, a conclusão geral dos

    pesquisadores foi de que as EIs não são metáforas mortas e não possuem significados

    predeterminados. Pelo contrário, eles argumentam que “o significado de muitas EIs são

    determinados pelo conhecimento tácito dos falantes das metáforas conceptuais

    subjacentes ao significado dessas frases figuradas”(p. 36).

    Dado que, conforme se pode observar no parágrafo precedente, é necessário

    conhecer os fundamentos da Teoria da Metáfora Conceptual (TMC) para compreender o

    estudo aqui relatado, na seção seguinte apresentamos conceitos-chave da TMC que serão

    empregados na análise dos dados, a ser apresentada posteriormente.

    Linguística Cognitiva: Teoria da Metáfora Conceptual

    A tese principal que sustenta a Teoria da Metáfora Conceptual de Lakoff e

    Johnson (1980, 2003) é a compreensão de que a metáfora não é somente uma questão de

    linguagem, mas sim de que os processos do pensamento são em grande parte metafóricos

    – ou seja, o sistema conceptual humano é metaforicamente estruturado e definido. Assim,

    o conceito dicionarizado de “metáfora” como um “tropo em que a significação natural de

  • 13

    uma palavra é substituída por outra, só aplicável por comparação subentendida”6 é

    distinto do conceito de metáfora conceptual.

    Em outras palavras, empregamos metáforas conceptuais em nossa linguagem

    cotidiana porque essas refletem o modo como nossos pensamentos estão estruturados, e

    essa estrutura é formada, em grande parte, pelas experiências que vivenciamos desde o

    início da vida. Um dos exemplos clássicos dos autores para mostrar essa tese é a metáfora

    conceptual “DISCUSSÃO é GUERRA”,7 da qual derivam enunciados correntes na

    linguagem cotidiana, como “seus argumentos são indefensáveis; o candidato perdeu

    muitos pontos após a discussão sobre violência urbana; nenhum dos debatedores aceitou

    render-se ao ponto de vista do outro”. Nesse contexto, esclarecem os linguistas, a

    explicação para a compreensão da metáfora conceptual não está no fato de “discussão”

    ser parecido com “guerra’, mas sim no fato de DISCUSSÃO estar parcialmente

    estruturado e compreendido em termos de GUERRA em nosso sistema conceptual.

    (LAKOFF e JOHNSON, 2003, p. 5-7).

    Um segundo conceito fundamental reavaliado pelos autores a partir da Teoria da

    Metáfora Conceptual é o de metonímia, especialmente os casos de sinédoque, ou seja, os

    que estabelecem relações “parte-todo”. Após diferenciarem os dois conceitos – enquanto

    as metáforas consistem no uso de uma entidade em termos de outra, com a função

    primeira de compreensão, as metonímias consistem no uso de uma entidade para fazer

    referência a outra, com o objetivo primeiro de referências –, eles concluem que se trata,

    portanto, de fenômenos distintos.

    Essa conclusão, entretanto, não os impede de afirmarem que o recurso referencial

    da metonímia também possui a função de compreensão, e, nesse sentido, funcionaria do

    mesmo modo que a metáfora conceptual em termos de estruturação de pensamento e de

    linguagem. Um dos exemplos empregados pelos linguistas para ilustrar essa noção é a

    relação metonímica “A FACE (ROSTO/CARA)8 PELO TODO”, e suas manifestações

    nos enunciados “Ela é só um rosto bonito” e “precisamos de novas caras por aqui”, em

    que cada um faz referência a um aspecto diverso da parte que é representada pelo todo.

    Em outras palavras, os autores argumentam que a escolha dos diferentes aspectos

    das partes empregadas para representar o todo, na linguagem do dia a dia, é motivada

    6 https://dicionariodoaurelio.com/metafora 7 As metáforas conceptuais são apresentadas através de um mapeamento estruturado, no qual as

    letras maiúsculas representam DOMÍNIO-ALVO É DOMÍNIO-FONTE, os dois sendo, respectivamente,

    “discussão” e “guerra”. 8 Por se tratar de tradução livre, a palavra “face” em inglês foi traduzida por “rosto” e “cara”, respectivamente, já que esses são os termos empregados nos enunciados em português correspondentes.

    https://dicionariodoaurelio.com/metafora

  • 14

    pelo aspecto específico que desejamos salientar, o que significa que os conceitos

    metonímicos estruturam não apenas a linguagem, mas também nosso pensamento,

    atitudes e ações, sendo fundamentados em nossas experiências – exatamente como as

    metáforas conceptuais. (LAKOFF e JOHNSON, 2003, p. 37-38)

    Metodologia

    Dez estudantes de português como L2, intercambistas em uma universidade do

    Rio Grande do Sul, participaram voluntariamente do estudo. Todos eram falantes de

    espanhol como L1: sete colombianos, um peruano, um chileno e um venezuelano. Para a

    obtenção dos dados, foram selecionadas três expressões idiomáticas com as palavras

    mãos, pés e dedos, com o objetivo de manter uma relação semântica entre elas: EI1: passar

    a mão na cabeça; EI 2: ficar cheio de dedos; EI 3: ser uma mão na roda. As EIs foram

    classificadas, de acordo com Laufer (2000), como pertencentes à categoria 4, ou seja, sem

    correspondência com expressões idiomáticas na L1 dos aprendizes.

    A coleta de dados se deu em sessões individuais, por meio de protocolos verbais

    de pausa e retrospectivos, que consistem em solicitar que o sujeito verbalize o que está

    pensando no momento em que busca realizar a tarefa solicitada (protocolo de pausa), e

    logo após tê-la realizado (protocolo retrospectivo), o que possibilitou ao pesquisador

    obter informações sobre os processos cognitivos empregados durante as inferências das

    EIs (ERICSON e SIMON, 1993; CAMPS, 2003; AFFLERBACH e YOUNG,2009).

    Todas as verbalizações foram gravadas em áudio, e os dados, posteriormente transcritos,

    a fim de verificar a presença – ou não – de metáforas conceptuais semelhantes.

    As EIs foram apresentadas aos sujeitos em uma folha, e solicitava-se aos

    participantes que verbalizassem todo e qualquer processo cognitivo empregado na

    tentativa de inferir seus significados, como analogia com EIs na L1 ou na L2, analogia

    com imagens, inferência por palavra específica da EI, ou mesmo interpretação literal da

    EI. Embora a maioria dos sujeitos buscasse, de algum modo, a atribuição de significado

    às EIs, alguns deles não conseguiram fazer qualquer tipo de inferência, o que ficou

    registrado como “desistência de realização de inferência” na análise de dados.

  • 15

    Apresentação e Análise de Dados

    Os dados estão dispostos em tabelas, com o objetivo de facilitar a visualização.

    Nas Tabelas de 1 a 3 encontram-se a síntese das respostas produzidas pelos sujeitos à

    indagação sobre o significado das EIs.

    Devido à simplificação dos protocolos dos sujeitos, empregamos o sinal de

    reticências entre aspas – (...) – para indicar supressão da transcrição original. É importante

    notar que a presença de um traço nas tabelas indica que o sujeito ou não elaborou qualquer

    significado para a EI, ou tentou inicialmente inferir algum significado, mas desistiu.

    Houve também casos em que os participantes pensaram em dois possíveis significados

    para as EIs, sem definirem qual dos dois seria o mais apropriado, e nessas situações

    consideramos ambas as definições. Um último esclarecimento é relativo às interferências

    do pesquisador durante as entrevistas de coletas de dados, identificadas com um “P” nas

    transcrições.

    Após a análise das tabelas específicas, os dados relativos ao processo inferencial

    das três EIs sob análise será disposto em uma única tabela, objetivando a uma discussão

    global dos resultados encontrados.

    Análise Individual das Expressões Idiomáticas: EIs e relações de sentido

    EI 1: passar a mão na cabeça

    Na Tabela 1 estão apresentados os conceitos aferidos à EI “passar a mão na

    cabeça” pelos participantes. Dois, entre os dez sujeitos, não conseguiram atribuir qualquer

    significado à EI. Entre os oito que o fizeram, foi possível verificar o seguinte padrão nas

    respostas: seis deles relacionaram a expressão com os conceitos de preocupação e/ou

    reflexão; dois deles, com carinho, e um deles, com surpresa. 9

    Tabela 1: Conceitos e relações de sentido para a EI 1

    Expressão “passar a mão na cabeça”

    Sujeito

    Inferência da EI Relações de sentido

    Passar à mão na cabeça =

    Suj. 1

    -Como preocupação, talvez.

    P: Preocupação? Por que tu pensa isso?

    “Passar a mão na cabeça”.

    Preocupação

    9 É importante notar que o Sujeito 10 entende como aceitáveis tanto o conceito de carinho como de

    preocupação.

  • 16

    P: Tu pensa no gesto?

    -Sim (...) Como pensar bastante numa

    situação.

    Suj. 2 -Nunca escutei. Eu acho que pode ser fazer

    carinho.

    Carinho

    Suj; 3 -Nunca escutei essa expressão aqui, mas eu

    relaciono com o espanhol que usamos para

    uma preocupação, quando algo está

    ocorrendo. Algo está passando, “passar a

    mão na cabeça”... mas não é falado, é mais

    uma ação, uma ação. Mas também tem

    pessoas que falam, para referir à

    preocupação.

    Preocupação

    Suj. 4 -Eu nunca escutei, mas acho que é: quando

    alguém fica preocupado, passa a mão na

    cabeça.

    Preocupação

    Suj. 5 -Pode ser de adivinhação porque depois

    que tu viu um fato acontecer tu fica

    surpreso e passa a mão na cabeça.

    Surpresa

    Suj. 6 -É ter responsabilidade pelos teus atos (...)

    É tentar fazer ele refletir sobre seus atos.

    Responsabilidade, reflexão

    Suj.7 -Ah, no, porque também quando eu quero

    talvez me sentir minha cabeça ou quando

    minha cabeça dói.

    Pode ser quando estou preocupada. Ou

    quando estou estressada. Não saberia dizer.

    ---------------

    Suj. 8 --------------- ---------------

    Suj. 9 -Passar a mão na cabeça eu acho que deve

    ser pensar (...) meditar sobre alguma coisa,

    algo assim. (...) Porque eu acho que se fala

    essa expressão não significa o que é

    literalmente, então passar a mão na cabeça

    eu acho que deve ser..me soa mais tipo

    Pensar, refletir

  • 17

    ‘fica ai na tua cabeça, pensando’, ou

    alguma coisa do tipo.

    Suj. 10 -Fazer carinho. Eu entenderia como fazer

    um carinho, passar a mão na cabeça (...) E

    também penso assim de preocupação. Só

    isso, mais não sei.

    Carinho

    e/ou

    Preocupação

    A relação entre a EI com os conceitos tanto de carinho, estabelecida pelos Sujeitos

    2 e 10, como de surpresa, pelo sujeito 5, parecem ser originárias mais de uma

    interpretação literal da expressão. Esse entendimento nos parece plausível na medida o

    ato de passar a mão na cabeça de alguém é vinculado, na cultura ocidental, a um ato de

    carinho. De modo semelhante, testemunhar algo que cause surpresa ser seguido pelo ato

    de passar a mão na sua própria cabeça, que foi a interpretação do Sujeito 5, é uma imagem

    fácil de ser construída, a partir de nossas vivências e experiências. Na continuação da

    explicação oferecida pelo participante para a sua resposta, não parece restarem dúvidas

    de que sua definição da EI seguiu esse raciocínio: “imaginei (que seria surpresa) porque

    no espanhol pode ser quase igual – quer dizer, nos filmes e nos seriados as pessoas passam

    a mão na cabeça por surpresa, admiração por causa de algum fato”. Não parece haver,

    assim, estabelecimento de relação metafórica nas definições das EIs.

    Situação diferente, entretanto, é verificada nas respostas dos seis sujeitos que

    relacionaram a expressão à de preocupação e reflexão. Pela noção “TODO PELA

    PARTE”, conforme concebida pela linguística cognitiva, temos aqui uma entidade,

    “cabeça”, que é empregada para representar parte dela – ou seja, o local específico em

    que se concentram as preocupações e reflexões.

    Considerando que, dos nove processos inferenciais relativos à EI “passar a mão

    na cabeça”, seis deles puderam ser agrupados em torno dos campos semânticos

    relacionados “preocupação” e “reflexão”, os dados parecem apontam para a presença

    significativa dessa relação metonímica pelos participantes.

    EI 2: ficar cheio de dedos

    Pela Tabela 2 é possível visualizar as relações metafóricas de sentido

    estabelecidas pelos sujeitos para a EI 2: duas delas foram agrupadas na relação mais geral

    de “possuir algo”, embora uma diga respeito a possuir opções, e outra a possuir coisas.

    Em uma terceira resposta, aparece a ligação entre “estar cheio de dedos” e “ser julgado”,

    já que, no entender do entrevistado, seriam os dedos de outras pessoas que estariam

  • 18

    apontando para você, de modo a julgá-lo por algo que você fez. Em uma quarta resposta,

    tem-se a relação entre “muitos dedos” e “muita ajuda”. Além disso, um dos participantes

    não conseguiu estabelecer qualquer sentido para a EI,

    Enquanto não identificamos um padrão de relações de sentido nos protocolos

    verbais relativos a essas inferências, os cinco processos inferenciais da EI restantes

    apresentam uma semelhança entre si no que tange a relação entre “cheio de dedos” e

    “cheio de tarefas”, conforme mostram os trechos selecionados das transcrições dos

    protocolos na Tabela 2.

    Tabela 2: Conceitos e relações de sentido para a EI 2

    Expressão “Ficar cheio de dedos”

    Sujeito

    Conceito da EI Relações de sentido:

    Ficar cheio de dedos =

    Suj. 1 -Talvez ter muitas alternativas, muitas

    opções.

    P: Sim, e por que tu pensa isso?

    -Não sei...

    P: Talvez porque tu pode contar nos

    dedos?

    -Não sei, acho que sim.

    Opção, alternativa

    Suj. 2 -Nunca escutei. Talvez ter muitas coisas,

    ter muitos presentes.

    P: Por que tu pensa isso?

    -Não sei, penso no meu aniversário e eu

    cheia de presentes. É o que vem na cabeça.

    P: Te vem essa ideia de quantidade?

    -Sim.

    Ter muitas coisas

    Suj; 3 -A única coisa que me vem na cabeça...

    “ficar cheio de dedos”... é como, por

    exemplo, ficar cheio de tarefas, de

    situações.

    P: De tarefas?

    -Sim, muitos compromissos, algo assim.

    Ficar atarefado

    Suj. 4 -Ficar com muitas coisas pra fazer, talvez. Ficar atarefado

  • 19

    P: E essa ideia de vem de onde?

    -Da expressão, dedos podem ser tarefas...

    P: Tipo, cada dedo é uma tarefa, para

    numerar...?

    -Sim!

    Suj. 5 -Não sei, pode ser que tem muita ajuda de

    muitas pessoas ou pode ser que também

    tenha muitos dedos que não ajudam em

    nada.

    P: E por que essa ideia?

    -Uma mão com muitos dedos e muitas

    pessoas oferecendo os dedos para poder

    ajudar.

    Pessoas para ajudar

    Suj. 6 -Essa ai eu não ouvi, talvez seja dedos

    apontando para ti, ser julgado. (...) Eu fiz

    uma coisa e todo mundo fica olhando, dedos

    apontando.

    Ser julgado

    Suj.7 -Pode ser uma pessoa que quer fazer muitas

    coisas?

    ..como a gente faz as coisas com as mãos,

    estar cheio de dedos pode ter essa ideia de

    fazer várias coisas?

    -Sim.

    Fazer tarefas

    Suj. 8 -Ficar cheio de dedos...acho que uma pessoa

    que faz muitas coisas. Ter a capacidade de

    fazer muitas coisas no tempo, ser rápida.

    Fazer tarefas

    Suj. 9 - (...)Não sei essa...não sei.

    P: Nem ideia?

    -Nem ideia, não passa nada pela minha

    cabeça.

    ---------------

    Suj. 10 P: Nunca ouviu nada parecido?

    -Não.. não sei, também poderia dar ideia de

    fazer várias coisas, o fato de ter vários

    dedos.

    Fazer tarefas

  • 20

    Pela análise dos dados, parece plausível afirmar que a relação entre “cheio de

    dedos” e “cheio de tarefas” tem origem no seguinte raciocínio estabelecido pelos

    participantes: os dedos representavam tarefas a serem cumpridas, o que acarreta que

    quanto mais dedos uma pessoa possui, mais tarefas ela tem a cumprir.

    Com base nisso, a visualização da metáfora conceptual “TAREFAS são DEDOS”

    parece apropriada, na medida em que temos “dedos” como domínio-fonte, e “tarefas”

    como domínio-alvo. Ainda que, com relação à EI 1 “passar a mão na cabeça”, houve um

    percentual menor de respostas semelhantes entre os sujeitos, essas foram, de qualquer

    modo, a maioria: cinco inferências, de um total de nove, considerando que um dos sujeitos

    não sugeriu qualquer significado para a EI.

    EI 3: ser uma mão na roda

    Entre as três expressões analisadas, foi na EI 3 que um padrão de relações de

    sentido foi mais significativamente verificado. A análise dos dez protocolos verbais

    mostrou que seis sujeitos relacionaram “mão na roda” com “ajuda”, por diferentes linhas

    de raciocínio, dois relacionaram a “obstáculo”, e dois não conseguiram pensar em

    possíveis significados para a EI, como pode ser verificado na Tabela 3 que segue.

    Tabela 3: Conceitos e relações de sentido para a EI 3

    Expressão “Ser uma mão na roda”

    Sujeito

    Conceito da EI Relações de sentido:

    Ser uma mão na roda =

    Suj. 1 -Acho que é uma pessoa que ajuda outras

    pessoas. “Ser uma mão na roda”... Eu relaciono

    roda com uma situação e a mão vai e ajuda.

    P: É uma pessoa que ajuda?

    -Sim, que ajuda numa situação.

    Ajuda

    Suj. 2 -Não sei tampouco.

    P: Não conhece nada parecido?

    -Não. E não imagino nada...

    ---------------

    Suj; 3 -Acho que tem algo a ver com alguém que evita

    avançar (...) perturba algum processo.

    E: Sim, e por que esta ideia?

    Obstáculo

  • 21

    -Porque na minha cabeça, o movimento da

    roda, a mão interrompe este momento.

    Suj. 4 -Não sei, não consigo pensar em nada...

    E: Nenhuma imagem? Nada?

    -Não...

    ---------------

    Suj. 5 -Nunca ouvi. Uma mão na roda poderia ser uma

    ajuda, porque a mão ajuda a roda a seguir

    girando.

    Ajuda

    Suj. 6 -Ser parte de um grupo e nesse grupo tu ajuda,

    tu contribui para que as coisas andem.

    P: Por que essa ideia?

    -Porque eu imagino uma roda gigante e um

    monte de pessoas tentando empurrar a roda, os

    amigos.

    Ajuda

    Suj.7 -Ser como uma mão na roda, pode ser como

    ajudar alguém?

    P: Ajudar? Por que tu pensa isso?

    -...não sei, porque eu imagino uma roda e que

    precisa funcionar, rodar. Então precisa de mãos

    para funcionar.

    Ajuda

    Suj. 8 -Ser uma mão na roda… que não quer intervir

    em alguma coisa? Que não quer fazer parte de

    alguma coisa, intervir em alguma situação.

    P: Por que tu pensa isso?

    -A roda gira, faz movimento, ser uma mão na

    roda é não querer que algo continue, ou intervir

    em alguma coisa.

    Obstáculo

    Suj. 9 - (…) Não sei, eu associo, acho que pode ser a

    pessoa que tem algum tipo de solução para

    alguma coisa.

    Solução, ajuda

    Suj. 10 -Roda, não sei a que se refere.

    P: A roda de um automóvel, a roda de uma

    bicicleta.

    -Pode ser uma roda de pessoas?

    Ajuda

  • 22

    P: Poderia ser, tu pensa nisso?

    -Não sei, para mim ser uma mão na roda seria

    uma pessoa que te ajuda (...) que te salva, sei lá,

    que está preocupada com você.

    O primeiro aspecto que chama a atenção, na análise dos dados, é que a totalidade

    das respostas relacionou a EI ou com a noção de ajuda ou com o seu oposto, a noção de

    obstáculo. Nenhuma outra relação de sentido foi estabelecida. Além disso, das oito

    relações de sentido estabelecidas, somente uma delas entendeu que a palavra roda dizia

    respeito a uma “roda de pessoas”, as demais tendo interpretado o vocábulo a partir da

    perspectiva de uma engrenagem dentro de um sistema maior, que precisa estar girando

    para que tudo funcione bem.

    Levando esses dados em consideração, e tendo o conceito de metáfora conceptual

    da teoria de Lakoff e Johnson (op. cit.) em primeiro plano, podemos estabelecer a

    metáfora “MÃO é AJUDA” e a metonímia “PARTE PELO TODO”, nas substituições

    que os sujeitos fazem da palavra “roda” por “sistema”. Assim, da união dessas duas

    metáforas, os sujeitos depreenderam tanto que colocar a mão na roda poderia significar

    auxiliar, pois daria continuidade à atividade em desenvolvimento pelo sistema, fazendo

    “girar a roda”, ou, de modo contrário, poderia representar um obstáculo, pois impediria a

    continuidade dessa atividade, fazendo “parar a roda”.

    Relação entre Expressões Idiomáticas, Relações de Sentido e Metáfora Conceptual

    Como mencionado no início desta seção, a análise das relações de sentido das três

    EIs são apresentadas na Tabela 4, a fim de facilitar a visualização dos resultados

    encontrados. Além disso, as metáforas e metonímias conceptuais subjacentes às três EIs,

    a partir das relações de sentido estabelecidas pelos participantes, também estão agrupadas

    na mesma Tabela.

    Tabela 4 - Análise das Relações de Sentido nas EIS 1, 2 e 3

    Sujeitos EI1 EI2 EI3

    Passar a mão na cabeça

    =

    Ficar cheio de dedos

    =

    Ser uma mão na

    roda =

  • 23

    1 Preocupação Ter opções,

    alternativas

    Ajuda

    2 Carinho Ter muitas coisas ----------

    3 Preocupação Ficar muito atarefado Obstáculo

    4 Preocupação Ficar muito atarefado ----------

    5 Surpresa Pessoas para ajudar Ajuda

    6 Responsabilidade,

    reflexão

    Ser julgado Ajuda

    7 ---------- Fazer várias tarefas Ajuda

    8 ---------- Fazer várias tarefas Obstáculo

    9 Pensar, refletir ________________ Solução, ajuda

    10 Carinho

    e/ou

    Preocupação

    Fazer várias tarefas Ajuda

    TOTAL

    (relações

    de sentido)

    6 – Preocupar-se, refletir

    2 – Carinho

    2 – Sem resposta

    5 – Fazer várias

    tarefas

    1 – Ter ajuda para

    realizar uma tarefa

    2 – Ter opções,

    coisas

    1 – Ser julgado

    1 – Sem resposta

    6 – Ajuda

    2 - Obstáculo

    2 – Sem resposta

    Metáforas

    e

    metonímias

    conceptuais

    observadas

    “TODO pela PARTE”

    (cabeça por preocupação

    e/ou reflexão)

    “TAREFAS são

    DEDOS”

    “MÃO é AJUDA”

    “PARTE pelo

    TODO” = (roda por

    sistema)

    Considerações Finais

    Neste artigo, descrevemos os achados parciais de um projeto de pesquisa em

    andamento que investiga os processos de compreensão de expressões idiomáticas (EIs)

    por falantes de português como segunda língua tendo como base teórica a teoria das

    metáforas conceptuais de Lakoff e Johnson (op. cit.). Primeiramente apresentamos os

  • 24

    processos inferenciais de dez falantes de espanhol como L1 frente a três EIs que não

    possuíam equivalentes em sua língua materna, a fim de avaliar as relações de sentido por

    eles estabelecidas, e, por fim, as possíveis metáforas conceptuais subjacentes a essas

    relações de sentido.

    O objetivo principal do estudo era avaliar em que medida a tese defendida por

    Gibbs e O´Brian (op. cit.) de que as EIs são motivadas por metáforas conceptuais, não

    cabendo, assim, a explicação de que seriam “metáforas mortas”, poderia ser ratificada.

    Como mostramos na seção de apresentação e análise de dados, essa tese pôde ser somente

    parcialmente confirmada, já que, conforme sintetizado na Tabela 4, mesmo tendo

    encontrado um padrão de respostas inferenciais em todas as três EIs, houve também

    processos inferenciais que levaram a metáforas conceptuais de natureza diversa.

    É fundamental, de qualquer modo, considerar as diferenças metodológicas entre

    o estudo aqui relatado e os experimentos de Gibbs e O’Brian (op. cit.), descritos em

    detalhes no início deste texto. Nesse sentido, duas diferenças são essenciais: a seleção dos

    participantes – enquanto no primeiro estudo tratava-se de falantes da mesma língua das

    EIs, as quais já eram conhecidas por eles, nesse tratava-se de falantes de uma L2 cujas

    EIs eram desconhecidas – e o método de coleta de dados – questionários semi-

    estruturados nos experimentos dos autores americanos, e protocolos verbais nesse estudo.

    Além disso, embora todos falassem a mesma L1, também é importante destacar

    que os participantes deste estudo eram provenientes de diferentes regiões ou mesmo de

    diferentes países em que a L1 era falada, o que certamente resultava em backgrounds

    linguísticos diversos.

    Consideradas essas diferenças, o fato de ter sido possível verificar uniformidade

    na maior parte das respostas não parece um achado de pouca significância, ainda que essa

    uniformidade não tenha sido total. Na verdade, o fato de termos encontrado metáforas (e

    metonímias) conceptuais subjacentes aos processos inferenciais dos participantes por si

    só já aponta para a pertinência da tese defendida por Gibbs e O’Brian (op. cit.), e ratificada

    por Kazemi et al (op.cit.).

    Um número maior de dados é necessário para podermos confirmar esses

    resultados preliminares, naturalmente, e as próximas ações da pesquisa concentram-se em

    entrevistas com mais participantes, incluindo também falantes cujas L1s não sejam

    espanhol, a fim de verificar se esse padrão de respostas se mantém. Esperamos em breve

    apresentar os novos resultados, com nova discussão, a fim de continuar contribuindo para

    a compreensão desse fenômeno tão rico e complexo da linguagem como são as expressões

    idiomáticas.

  • 25

    Referências

    AFFLERBACH, Peter; CHO, Byeong-Young. Responsive comprehension strategies in

    new and traditional forms of reading. In: ISRAEL, Susan E; DUFFY, Gerald G. (eds).

    Handbook of research on reading comprehension. Nova Iorque: Routledge, 2009.

    CAMPS, Joaquim. Concurrent and retrospective verbal protocols as tools to better

    understand the role of attention in second language tasks. International Journal of

    Applied Linguistics. v. 13, 200.

    ERICSSON, Anders K.; SIMON, Herbert A. Protocol analysis: verbal report as data.

    MIT Press, Cambridge, MA, 1993.

    _________; COLSTON. H. The cognitive psychological reality of image schemas and

    their transformations . Cognitive Linguistics , 6 , 1995, p. 347 − 378 .

    GIBBS, Raymond W.; O'BRIAN, Jennifer. Idioms and mental imagery: The

    metaphorical motivation for idiomatic meaning. Cognition, 36, 1990.

    KAZEMI, Seyyed Ali; ARAGHI, Seyyed Mahdi; BAHRAMY, Masoumeh. The Role of

    Conceptual Metaphor in Idioms and Mental Imagery in Persian Speakers. International

    Journal of Basic and Applied Linguistics, v. 2, n. 1, 2013.

    LAKOFF, George. LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we Live by.

    Chicago: Chicago University Press, 1980.

    ________. Metaphors we Live by. 2ª ed. Chicago: Chicago University Press, 2003.

    LAUFER, Batia. Avoidance of Idioms in a Second Language: the effect of L1-L2 degree

    of similarity. Studia Linguistica, v. 54, n. 2, 2000, p. 186-196.

    O FUNCIONAMENTO DA NOÇÃO DE SUJEITO-CORPO NO DISCURSO DO

    E SOBRE O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

    Andressa Marchesan (UFSM)

    Introdução

    O presente trabalho é uma primeira investida no desenvolvimento do projeto de

    dissertação de mestrado iniciado neste ano. O objetivo principal é propor uma reflexão

    sobre a noção de sujeito tal como é trabalhada na Análise de Discurso peucheuxtiana em

  • 26

    suas relações com o corpo que representa o sujeito e que é representado nele e por ele.

    Para tanto vamos nos propor investigar os funcionamentos da noção de “sujeito-corpo”

    no discurso do e sobre o Estatuto da pessoa com deficiência, perguntando que corpo é

    esse? O diferente no corpo e na constituição do sujeito? Como ele aparece ou não aparece

    no discurso em estudo? Para tanto elegemos, como objeto de estudo o Estatuto da Pessoa

    com Deficiência e buscaremos elementos dentro e fora do Estatuto para viabilizar nossas

    análises, esses elementos poderão vir do próprio estatuto ou da mídia ou de outros

    documentos legais/jurídicos.

    Investigaremos os ditos e os não ditos, observando como se realizam os modos de

    nomear o sujeito que tem um corpo no interior do discurso do Estatuto, ou seja, um

    predomínio de nomeações e de ausências delas. Essas nomeações podem estar explícitas

    ou implícitas, mas em nossa primeira leitura já se mostraram bem diferentes daquelas

    presentes no Estatuto da criança e do adolescente e/ou no Estatuto do idoso. Nestes dois

    documentos pudemos observar que as nomeações apresentam o corpo de forma explícita

    e reiterada, enquanto que no Estatuto da pessoa com deficiência as nomeações não

    aparecem ou quando aparecem apresentam-se de forma sutil e implícita.

    É a Análise de Discurso (AD) de linha francesa fundada por Michel Pêcheux e

    desenvolvida no Brasil a partir de Eni Orlandi que dá sustentação teórico-metodológica

    para esse trabalho, pois se preocupa com o “funcionamento da linguagem, que põe em

    relação sujeitos e sentidos afetados pela língua” (ORLANDI, 2015a, p. 19). A AD surge

    no ano de 1969, na França, quando Michel Pêcheux propõe um novo olhar sobre a

    linguagem, considerando o discurso como objeto de análise.

    Ela se faz no entremeio da história, da linguística e da psicanálise. Sua

    singularidade acontece ao pensar a relação da ideologia com a língua e pensar o sujeito,

    enquanto um ser dotado de inconsciente e afetado pela ideologia. Ao fundar a AD, Michel

    Pêcheux desloca a dicotomia língua/fala proposta por Saussure, para língua/discurso. A

    AD também desconstrói o sujeito ideal proposto por Chomsky, pensa um sujeito que é

    dotado de inconsciente e que sem a ideologia o interpelando não teria existência. Esse

    sujeito não é ideal, assim como a língua que é um sistema sujeito a falhas e equívocos.

    “Não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia” (ORLANDI, 2015a, p. 15

    apud PÊCHEUX, 1975). É através da “prática discursiva que o sujeito se manifesta

    enquanto tal” (PETRI, 2004, p. 33). Algumas das noções que mobilizaremos durante a

    elaboração da dissertação serão: sujeito, formações imaginárias, formações discursivas,

    interpretação, discurso sobre e discurso de, também a história da palavra deficiência e a

    delimitação e o percurso do corpo.

  • 27

    Sobre o sujeito e as formações discursivas

    A primeira noção a ser definida é a noção de sujeito. Iniciamos com uma

    afirmação de Orlandi (2015a) que rege essa noção: “o indivíduo é interpelado em sujeito

    pela ideologia para que se produza o dizer” (p. 44). O sujeito é interpelado pela ideologia

    e dotado de inconsciente. A ideologia “é a condição para a constituição do sujeito e dos

    sentidos” (ORLANDI, 2015a, p. 44). Portanto, se não houver a ideologia, não há sujeito.

    Além disso, os sujeitos são possibilidades de tomadas de posição. “Quando falo

    a partir da posição de ‘mãe’, por exemplo, o que digo deriva seu sentido, em relação à

    formação discursiva em que estou inscrevendo minhas palavras” (ORLANDI, 2015a, p.

    47), em outro momento pode-se falar na posição de filha. Percebemos que a formação

    discursiva determina o que pode e deve ser dito em uma dada posição sujeito.

    O sujeito é “posição entre outras, subjetivando-se a medida mesmo que se projeta

    de sua situação (lugar) no mundo para sua posição no discurso” (ORLANDI, 2002, p.

    65). O sujeito é capaz de assumir diferentes posições dependendo da formação discursiva

    na qual inscreve suas palavras, e assim, subjetiva-se ao se projetar em sua posição no

    discurso, por exemplo, posso assumir a posição de acadêmica, filha, amiga, colega, etc.

    É a formação discursiva que “regula o dizer das diferentes posições-sujeito que

    nela convivem” (CAZARIN, 2004, p. 20). Por isso, a relevância desta noção que, segundo

    Orlandi é “aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma posição

    dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”

    (2015a, p. 41). É através da formação discursiva que o sujeito identifica-se mais ou menos

    com os saberes advindos da formação ideológica que o domina tal como ela se apresenta

    em saberes através do discurso.

    “O sujeito não está no centro de si mesmo e tampouco é a fonte do sentido; e o

    lugar onde está não tem centro, mas é uma estrutura” (FERREIRA, 2010, p. 8). O sujeito

    está condicionado por uma estrutura, que tem como singularidade não ter suas fronteiras

    fechadas e não ter seus territórios homogêneos (FERREIRA, 2010).

    Com a AD o sujeito passa a produzir seu discurso, o sujeito o faz a partir de

    determinadas posições sujeito ideológicas. Essa visão “individualizada”, entretanto, não

    transforma esse sujeito em uma figura capaz de decidir livremente seu discurso, porque

    se trata de um sujeito que é constituído socialmente. Todavia, por não ter consciência do

    seu assujeitamento, o sujeito mantém a ilusão de ser plenamente responsável por seu

  • 28

    discurso (CAZARIN, 2004). O sujeito é descentrado, ou seja, ele não é fonte do sentido

    que produz e é somente parte de um processo. Eni Orlandi explicita esse descentramento:

    O sujeito da linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e

    também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o

    afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo

    inconsciente e pela ideologia (ORLANDI, 2015a, p. 18).

    A partir das palavras da autora podemos compreender que o sujeito, na AD, não é

    livre para decidir seu discurso, pois ao produzi-lo, o faz a partir de determinadas posições-

    sujeito, contudo mantém a ilusão de ser o dono do que diz devido a sua não consciência

    de seu assujeitamento, ou seja, para o sujeito apaga-se o fato dele entrar nas práticas-

    discursivas já existentes. Para constituir-se como sujeito, este deve se submeter à língua

    e a história, para produzir sentidos.

    Ao dizer o sujeito se inscreve na história e quando se inscreve na história, ele faz

    transferência de sentidos. Se é sujeito através do assujeitamento à língua, na história. Ao

    dizer se é afetado pelo simbólico. Ele submete-se a língua para se subjetivar, inserido em

    sua experiência de mundo e determinado a dar sentido, significar-se “em um gesto, um

    movimento sócio-historicamente situado, em que se reflete sua interpelação pela

    ideologia” (ORLANDI, 2002, p. 68).

    Os sentidos e os sujeitos não estão nem fixados eternamente, nem podem ser

    quaisquer uns, porque é histórico é que muda e se mantém. A AD trabalha entre o possível

    e o historicamente determinado. O sujeito capitalista é simultaneamente livre e submisso,

    determinado pela exterioridade e determinador do que diz (ORLANDI, 2002). Os modos

    de individuação do sujeito pelo Estado, que são estabelecidos pelas instituições e pelos

    discursos, resultam em um sujeito com direitos e deveres.

    A ideologia afeta o sujeito na estrutura e é nesta estrutura que o sujeito funciona.

    Quando o sujeito é só individualizado, deixa-se de fora o simbólico, o histórico e a

    ideologia, que são justamente as noções centrais que tornam possível a interpelação do

    indivíduo em sujeito. O caráter do assujeitamento, o indivíduo assujeitar-se pelo

    simbólico pela ideologia, e a possível resistência do sujeito aos modos que o Estado o

    individualiza, esses momentos não estão separados, porém são distintos (ORLANDI,

    2002).

    Baseando-se em Petri (2004) iremos tratar da constituição do sujeito, que produz

    um efeito de unidade, tendo como base uma ilusão necessária: o sujeito tem a ilusão de

    ser a fonte do seu dizer e ele esquece que todo discurso é sustentado pelo já-dito, aquilo

    que não se origina em nós, isso é caracterizado por Pêcheux e Fuchs (1997, p. 168) como

  • 29

    o “esquecimento nº 1”, e o sujeito tem a ilusão que domina e sabe exatamente o que diz

    e de que controla os sentidos, isso se caracteriza como o “esquecimento nº 2”.

    Os esquecimentos possibilitam a circulação do sujeito em um “espaço imaginário

    que assegura ao sujeito falante seus deslocamentos no interior do reformulável”

    (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 178), ou seja, a circulação do sujeito nesse espaço

    imaginário, que são os esquecimentos, é necessária, pois assegura seus deslocamentos no

    interior do reformulável, sem que o sujeito se dê conta disso.

    O sujeito sob o efeito dessas duas ilusões acredita que seu discurso está revelando

    sua intenção particular de dizer algo, pois para ele seu discurso não representa uma

    posição-sujeito inscrita em uma dada formação discursiva, que determina o que pode e

    deve ser dito e o que convém ser dito em um dado discurso, e ele também acredita que

    pode controlar o sentido, pois ele pertence a uma formação imaginária na qual se produz

    uma imagem de si mesmo e do outro, seu interlocutor e “essa formação imaginária é que

    lhe garante ‘a impressão de realidade’” (PETRI, 2004, p. 45).

    A AD não trabalha com a noção psicológica de sujeito. Sob o modo do imaginário,

    atravessado pela língua e pela história, o sujeito só tem acesso à parte do que ele diz, em

    sua constituição ele é materialmente dividido: “ele é sujeito de e é sujeito à” (ORLANDI,

    2015a, p. 46), sujeito de direitos e sujeito a deveres, é sujeito à língua e à história, pois

    para constituir-se é afetado por ambas.

    A delimitação do corpo

    Além de trazer à baila as noções de sujeito e de formações discursivas,

    apontaremos a delimitação do corpo. Este tem sido estudado e observado por diversas

    áreas do conhecimento. A AD no Brasil vem preservando a relação entre linguagem,

    história e ideologia e a concepção de um sujeito interpelado pela ideologia e afetado pelo

    inconsciente. É por esse viés que “encontramos espaço para inscrever o corpo como um

    objeto discursivo” (FERREIRA, 2013a, p. 77).

    Baseando-se em Orlandi (2016), refletiremos sobre a relação entre sujeito e corpo,

    pensando o corpo em sua materialidade significativa enquanto corpo de um sujeito e não

    como corpo empírico. Em sua materialidade, os sujeitos textualizam seu corpo pela

    maneira de como estão neles significados e se deslocam na sociedade e na história,

    podemos ter corpos segregados, corpos legítimos, corpos integrados. A partir do que a

    autora explicita poderíamos afirmar que o sujeito com deficiência tem o corpo segregado,

    visto socialmente como “anormal”, “excluído” pelos considerados socialmente como

    “normais”.

  • 30

    O corpo do sujeito está ligado ao corpo social. O corpo não escapa à determinação

    histórica e nem a interpelação ideológica do sujeito. O sujeito relaciona-se com o seu

    corpo atravessado pelo discurso social que o significa. Não há como pensar o sujeito sem

    o corpo e nem o corpo sem o sujeito e os sentidos.

    Conforme Ferreira (2013a) é possível encontrar algumas referências ao corpo nas

    obras de Michel Pêcheux, ainda que esparsamente. Pêcheux revela que não se deve negar

    o desejo de aparência, a necessidade universal de um mundo “semanticamente normal,

    isto é, normatizado, que começa com a relação de cada um com seu próprio corpo e seus

    arredores imediatos” (2008, p. 34). Segundo Ferreira (2013b), essa necessidade da

    normalidade surge a fim de responder aos apelos de uma sociedade capitalista estabilizada

    que se fixa nesses parâmetros para obter sucesso. Assim como a língua e a ideologia

    podem apresentar falhas, o corpo também pode apresentá-las. Na AD o corpo está

    associado à noção de ideologia, pois mais do que um simples objeto teórico, o corpo é

    um dispositivo de visualização, um modo de ver o sujeito, sua hi