Trabalho Final Sociedades Camponesas_Família, Amizade e Patronagem
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UFRJ/ Museu Nacional/ PPGASProfessores Moacir Palmeira e John ComerfordTrabalho final do curso: Sociedades Camponesas, MNA-804
Família, Amizade e Patronagem
nas Sociedades Complexas:
o Caso dos Sarakatsani de Zagori
Aluna: Renata Barbosa Lacerda (UFRJ/ PPGSA)Monografia: CAMPBELL, J.K. Honour, Family and Patronage – A Study of Institutions and
Values in a Greek Mountain Community. New York: Oxford University Press, 1964.
1
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, se pretende fazer um esboço do quadro dinâmico das conexões entre
as estruturas formais de poder econômico e político e as relações interpessoais que o
sustentam, tendo como referencial metodológico Eric R. Wolf e como base etnográfica a
comunidade pastores gregos transumantes que se autodenomina de “Sarakatsani de Zagori” 1.
Para isso, será dada centralidade ao artigo “Parentesco, Amizade e Relações Patrono-Cliente
em Sociedades Complexas” (1966), no qual Wolf não se atém a modelos e definições mais
específicas de campesinato, mas tem como cerne as problemáticas teóricas que advém das
estruturas intersticiais das sociedades complexas, bem como as conexões e mútuas influências
entre estas e as estruturas formais, sincrônica e diacronicamente.
Entende-se as limitações desse referencial, uma vez que em muitos trabalhos, Wolf
objetivava estudar e definir o campesinato. Em “Tipos de Campesinato Latino-Americano”
(1955), Wolf lembra que “as definições são ferramentas do pensamento” e podem abranger
mais ou menos variedades tipológicas. No seu caso, porém, definiu de maneira mais estrita
tendo em vista as condições latino-americanas, restringindo o camponês como aquele: cuja
produção é voltada para a agricultura; que detém o controle efetivo da terra e de seus
processos de produção; cujo objetivo é sua subsistência, e não o reinvestimento.
Contudo, para os próprios Sarakatsani, o seu modo de vida diferencia-se dos
camponeses assim como dos comerciantes e burocratas. Ademais, não vivem do cultivo
agrícola (atividade que associam geralmente aos aldeões de Zagori aos quais se opõem), mas
sim do pastoreio. Outro fator complicador seria a questão do controle da terra, devido a sua
condição vulnerável de transumância. Entretanto, possuem controle efetivo de todo o
processo de produção e não reinvestem o dinheiro da venda de seus produtos.
Desse modo, tratar-se-á não destas definições, mas sim dos dados da comunidade que
explicitem a singularidade de suas relações com a sociedade mais ampla, buscando-se ao
mesmo tempo uma análise relacional das instituições envolvidas historicamente nesse quadro.
Referências adicionais a outros autores e temas discutidos no curso serão feitas em notas de
rodapé, de modo a não interferir nas diretrizes estabelecidas acima.
1 A maior parte do material etnográfico se refere a Neochori (nome fictício), uma das 43 aldeias de Zagori, de 1954 a 1955.
2
OS SARAKATSANI, A ALDEIA E A NAÇÃO
Os Sarakatsani possuem como ocupação o pastoreio e somam na Grécia em torno de
80 mil pessoas. Neste trabalho, se faz alusão aos Sarakatsani de Zagori, um distrito de relevo
montanhoso na cidade de Jannina (província Epirus), onde estão contabilizados em
aproximadamente 4 mil pessoas. Sua origem histórica é incerta, principalmente porque sua
migração sazonal – cujas condições climáticas e geográficas são a neve na montanha no
inverno e o calor da planície no verão – fez com que atravessassem as fronteiras do que hoje
são Grécia, Albânia, Iugoslávia e Turquia na época dos Impérios Bizantino e Otomano.
Mas há evidências de que, em sua forma de existência atual, os Sarakatsani possuem
uma unidade lingüística e cultural que os liga à história grega. Eles ainda possuem o que a
população urbana chama de “velhos costumes”, os quais eram mais generalizados desde
meados do século XIX, quando essa condição de pastores (em comunidades transumantes ou
em aldeias assentadas) era mais disseminada no meio rural. Somente no início do século XX os
grupos transumantes viraram exceção na Grécia, com o aumento dos assentamentos próximos
e da agricultura mais intensiva.
Esses costumes persistem hoje, mas sua estrutura interna passou por mudanças
importantes que acabaram por alterar também suas relações com a sociedade grega como um
todo. A isso se alia o fato de a aldeia ser, desde o século XV, a unidade sociopolítica mais
importante na Grécia rural, pois funciona, através de seus oficiais eleitos, como a ligação
imediata entre a hierarquia burocrática e as relações interpessoais dominantes no local.
No início do Império Otomano, os cultivadores de Zagori se tornaram meeiros e
tiveram que lutar pelo reconhecimento dos seus direitos de posse. Através da formação de
uma confederação entre 46 aldeias no século XVIII, conquistaram o direito de coletar os
impostos para o governo e sua autonomia jurídica e administrativa. Em compensação, as
autoridades turcas ganharam aliados fiéis e dependentes no controle político e econômico
territorial.
Ao final do século XVIII, os aldeões de Zagori tinham acumulado riquezas através da
emigração temporária dos filhos não urgentemente necessários em casa – prática comum na
Grécia, mas dependia dos privilégios de auto-administração (somente anulada em 1866) de
modo a ter segurança para emigrar e acumular riquezas – para as cidades mais prósperas do
Império. Nestas, estabeleciam negócios ou viravam profissionais liberais. O caráter aberto de
3
comunidades de Zagori transparece na mobilização dos laços de parentesco desses migrantes,
que se tornaram fundamentais na transmissão de serviços e bens.2
Com esses privilégios e direitos recíprocos entre aldeia e Império, houve um processo
de diferenciação de status social dentre esses camponeses, formando-se um grupo de notáveis
ricos que comunicavam as queixas de suas aldeias diretamente ao Sultão, informavam-no dos
movimentos do governador local de Jannina e subornavam oficiais de alta patente no interesse
da confederação. Assim, esses aldeões passaram cada vez mais a ter interesses externos à
própria aldeia, adquirindo um aspecto cada vez mais cosmopolita ao invés de camponês – o
cultivo passou a ser atividade mais circunscrita às famílias de baixo status –, preferindo, desde
o século XIX, arrendar as terras de pastoreio para as famílias ricas de Sarakatsani.
O chefe dessas famílias (tselingas), que tinha um poder excepcional frente aos demais
pastores que trabalhavam para ele, recebia dos mesmos um valor pelo uso da terra
proporcional ao rebanho familiar. O núcleo desse grupo de cooperação eram famílias de
parentes ou afins, mas também havia homens (não-parentes) associados como trabalhadores
assalariados. Este sistema cooperativo de dependência (tselingato, em um stani, ou complexo
dos recursos materiais) levou muitas vezes à relação de patronagem, na qual os aldeões eram
informados pelos Sarakatsani dos movimentos dos saqueadores que iam às suas casas ou os
pastores podiam ser mediadores na negociação de seqüestros de aldeões.
Já as aldeias das planícies, apesar da riqueza em termos de agricultura, foram
consideravelmente despovoadas no início do século XIX devido a administração caprichosa dos
proprietários privados e dos distúrbios na ordem civil. Isso fez com que muitos proprietários
das grandes extensões de terras não-cultivadas alugassem-nas no inverno para os Sarakatsani
por um pagamento nominal e pela exigência de que eles pastoreassem suas ovelhas.
Assim, a economia transumante de ovelhas foi favorecida por esses fatores ao longo
do século XIX. Mas em 1922, a derrota militar na Ásia Menor trouxe refugiados gregos que
foram reassentados através da divisão das propriedades em terras de posse camponesa e da
constituição de novas aldeias pelo governo. Com isso, as terras de pastoreio de inverno (nas
planícies) praticamente desapareceram, o que ameaçou a base do pastoreio transumante e fez
com que as famílias ricas Sarakatsani reduzissem drasticamente os seus rebanhos de ovelhas.
2 É interessante notar que Ernestine Friedl faz uma observação semelhante quanto ao parentesco para os vasilika da Boécia, o que nos leva a crer, juntamente com as observações de J.K. Campbell, ter sido um fenômeno comum dentre os gregos das aldeias ao estabelecerem essas “conexões entre o urbano e o rural” e com as instituições formais do primeiro (FRIEDL, apud WOLF, 1966, p.107).
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Como resposta, e procurando proteger a posição dos pastores, promulgou-se uma lei
em 1930 que determinava os direitos de locação, passando a ser tarefa do governo definir o
preço do aluguel, além de que ao pastor ficava garantido o retorno à mesma terra usada no
inverno anterior. A quantidade de terras de inverno continuou a decrescer, mas agora num
passo menor. Já nas montanhas de Zagori, houve um maior esvaziamento das terras de
pastoreio, uma vez que a emigração temporária de homens durante o Império Otomano
passaram a ser permanentes, e agora são famílias inteiras de aldeões que se deslocam para as
cidades do reino grego.
A partir de 1937, com Metaxas, o novo Primeiro Ministro da Grécia, cujo propósito era
controlar as comunidades de camponeses enquanto elementos potencialmente
desordenadores do Estado, outras mudanças foram visíveis. Além de maior punição a roubos e
assassinatos, a regulamentação da vida social dos aldeões e pastores foi delimitada pela lei
“Concerning the settlement os Pastoralists” (1938).
Esta lei conferiu aos pastores semi-nômades o status de cidadãos formais das aldeias
de verão ou de inverno, conquistando os direitos de pastoreio nas suas terras comunais.Mas,
como a maioria se tornou cidadã das aldeias de verão – pois as de inverno alegaram que não
havia terras de pastoreio suficiente para todos – a maioria ainda não têm direitos políticos
garantidos nas planícies, ficando, com isso, excluídos do corpo político da aldeia de inverno e
mais vulneráveis ao alto custo de arrendamento de terras cada vez mais escassas. Ao mesmo
tempo, os direitos de voto recém-adquiridos integraram grande parte dos Sarakatsani no
sistema de patronagem de Zagori – antes essas relações interpessoais se restringiam ao
tselingato, não os ligavam diretamente ao Estado através das instituições formais da aldeia.
A cidadania dos Sarakatsani não agradou os aldeões de Zagori, pois estavam perdendo
população para as cidades e passavam a compartilhar direitos com pastores, em sua visão,
não-civilizados e não-escolarizados; além disso, essa lei tornou o contato físico entre esses dois
grupos mais intenso – até porque os pastores compraram casas na aldeia ou construíram seus
grupos de cabanas nos arredores da aldeia –, aumentando a inimizade e desprezo mútuos.
Entretanto, o desprezo explícito dos aldeões fez com que os Sarakatsani adquirissem
certos hábitos da aldeia, principalmente com relação ao consumo não mais só voltado para a
subsistência, mas também para bens de luxo que sustentassem o prestígio social de suas
famílias. Com isso, desde a década de 1930, ocorreu um crescente endividamento com os
comerciantes de queijo e lojistas das cidades, com quem estabeleceriam relações de
patronagem.5
Outra mudança significativa da estrutura interna dos Sarakatsani que se seguiu às leis
de 1930 e 1937, foi a redução do poder dos tselingas ao se proteger legalmente cada pastor.
Isto, por sua vez, favoreceu o aumento do rebanho pelos mais pobres, tornando mais
igualitária a distribuição de riqueza na comunidade. Nas aldeias de verão onde a maioria se
tornou cidadã, o stani se reduziu às necessidades simples do gerenciamento das ovelhas,
limitando-se a poucas famílias (de afins ou parentes) e, assim, a um rebanho menor. Por outro
lado, no inverno há maior demanda por trabalhadores devido ao parto e ordenha de ovelhas e,
simultaneamente, menos terra de pastoreio, o que exigiu maiores stanis (relativamente aos de
verão) e possibilitou relações de dependência com famílias associadas à company (stani) se o
núcleo tivesse terras à sua disposição.
Para finalizar, uma alteração interessante ocorreu nas esferas de hostilidade dentro da
comunidade – relação da qual se abordará mais à frente. Antes do governo Metaxas, era
comum o roubo de ovelhas como um tipo de instituição informal da hostilidade entre não-
parentes, que se dava com nitidez em três diferentes áreas: com os vizinhos imediatos se
expressava constantemente a hostilidade mais em atitudes do que ações; com os vizinhos um
pouco mais distantes, se praticava o roubo de ovelhas em pequena escala (uma ou duas
ovelhas); na área mais distante, se roubava numa escala ambiciosa (em torno de cinquenta
ovelhas), mas era mais raro pelas dificuldades impostas pela ação.
A partir de 1937, devido ao medo da intensa punição policial, esse costume foi
interrompido. Porém, passou a haver uma relativa falta de grama para o pastoreio devido ao
aumento significativo da quantidade de ovelhas na época. Com isso em mente, se continuou a
instituição de trocas competitivas recíprocas com o roubo de grama; entretanto, como esta só
pode ser feita com os vizinhos imediatos para não ser flagrado – com os quais dificilmente se
terá como vizinho novamente, já que as terras são realocadas todo ano –, as esferas de
hostilidade continuaram, mas se tornaram menos nítidas. Assim, as práticas mudaram, mas a
estrutura interna da comunidade permaneceu em seus aspectos mais peculiares.
A COMUNIDADE
Apesar de tais mudanças gerais, podemos observar que vários elementos centrais da
organização e cultura Sarakatsani não se alteraram, e continuam a dar um caráter específico às
suas relações com as estruturas formais da Grécia. Um desses fatores é o fato dessa
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comunidade permanecer um sistema social demarcado, cujos limites são reconhecidos tanto
pelos “de fora” quanto pelos seus membros, tendo “identidade estrutural ao longo do tempo”
Por exemplo, a população das cidades gregas se refere aos Sarakatsanis como Vlachs,
ou seja, pastores que guiam seus animais alternadamente para baixo (planícies) e para o alto
(montanhas) seguindo o ritmo das estações. Os aldeões de Zagori se referem a eles como um
grupo não-civilizado que não respeita a lei e a ordem.
“Por dentro”, os próprios Sarakatsani têm um forte senso de solidariedade e de
comunidade em oposição aos aldeões – inclusive a maioria se autodenomina de “Nós,
Sarakatsanis de Zagori” –, além de definir o comportamento de seus membros de acordo com
sexo e idade (e os correspondentes papéis familiares), sendo a comunidade o lócus onde as
avaliações públicas sobre os indivíduos e famílias são constantemente realizadas por meio de
índices da classificação da reputação pela honra.
Ainda que não seja uma comunidade corporada no sentido dado em “Comunidades
Camponesas Corporadas Fechadas na Mesoamérica e em Java Central” – corpo de direitos
perpétuos a posse, ou jurisdição comunitária sobre seus recursos –, pode-se considerá-la uma
comunidade relativamente fechada, pois restringe o pertencimento às pessoas nascidas e
criadas na mesma e desestimula “a participação mais próxima dos membros nas relações
sociais da sociedade mais ampla” (WOLF, 1957, p.146).
Por conseguinte, ela é fechada por endogamia e pela condição compartilhada da
ocupação pastoril. Não é considerado membro pleno aquele que muda a ocupação ou o meio
de vida material (por meio da educação ou riqueza), ou casa-se com aldeões (em torno de 5%
dos casamentos de Sarakatsanos), o que é visto com desaprovação, logo acarretando perda de
prestígio.
Contudo, seu fechamento não impossibilitou que determinados hábitos fossem
incorporados e valorizados a partir da intensificação da hostilidade com os habitantes das
aldeias de Zagori, como foi mencionado na seção anterior. Antes, por exemplo, as mulheres
eram as encarregadas pela produção de toda a vestimenta e pelos cobertores nos momentos
em que não estavam ocupadas com outras atividades de pastoreio. Hoje, porém, são os
alfaiates profissionais da aldeia ou da cidade que costuram suas roupas, mas o tecido continua
sendo feito pelas mulheres Sarakatsan. Os sapatos, blusas e roupas de algodão são compradas
em lojas de Jannina e outras cidades, pelos chefes de família ou pelas mulheres mais velhas.
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É importante enfatizar também que esta comunidade não é territorial, uma vez a
condição de transumância torna difícil sua delimitação e restrição a uma única área geográfica.
Na verdade, é uma comunidade altamente dispersa geograficamente e fortemente baseada no
parentesco, na divisão essencial entre parentes e não-parentes, e é a extensão dos parentes
por diferentes vizinhanças que confere aos indivíduos a noção de participarem da vida da
comunidade como um todo 3.
Porém, a sua unidade básica não é o sistema de parentesco, mas sim a família, a qual é
o verdadeiro grupo corporado dos Sarakatsani. Assemelham-se nisto às aldeias de Zagori, pois
o traço dominante do sistema social é o isolamento da família, estando as famílias não
conectadas por parentesco ou casamento relacionadas através de instituições de hostilidade e
competição mútuas, de forma a garantir sua subsistência e prestígio social.
Não se trata, portanto, de um grupo social organizado que possa defender seus
interesses comuns de forma sistemática. Ao lado da intensa rivalidade e desconfiança internas,
encontra-se o fator já mencionado da migração sazonal e o intenso cuidado dos animais que
dificultam encontros periódicos entre membros para discutirem questões da comunidade.
Os encontros informais geralmente ocorrem no verão, especialmente nas cafeterias
de Zagori, quando há menos demanda de trabalho e maiores oportunidades de visitar
parentes distantes, freqüentar festas, casamentos – e, conseqüentemente, há maior incidência
de brigas com não-parentes com quem tem grandes chances de se encontrarem nesses
eventos. No inverno, há maior dispersão geográfica da comunidade e, devido aos problemas
de clima e do parto das ovelhas, um grande isolamento dos pastores e seus stanis.
Outro elemento que impede uma organização formal que defenda seus interesses
comuns é que, devido a sua ignorância em assuntos legais, precisariam aceitar uma autoridade
especialista externa à comunidade para negociar com os oficiais. Com base na experiência de
1950 da “Association of Nomad Pastoralists”, que contava com um secretário aldeão, tal
3 Nesse ponto, cabe fazer uma associação com o “mapa genealógico” dos Tiv (África), para os quais o direito sobre a terra se dá somente durante o período do cultivo, possuindo um mapa em constante mudança e que se refere mais às relações sociais no espaço do que a uma área estabelecida por contrato. É interessante observar também como a forma particular de perceber a terra e a relação dos pastores com ela se reflete em inúmeras disputas judiciais ao enfrentarem donos de propriedade privada e a própria administração da aldeia, num eterno embate entre suas convenções sociais de semi-nômades e as regulamentações burocráticas sobre a vida da aldeia. Essas regulamentações seguem a concepção ocidental do século XX sobre a posse da terra como uma entidade mensurável e divisível em parcelas, as quais são ligadas às pessoas através do direito (uma relação entre pessoas). (BOHANNAN, 1967)
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organização é inviável, pois jamais poderiam entregar a soberania familiar a não-parentes ou
especialistas externos à comunidade (ao menos sem causar profunda desconfiança e brigas).
O PARENTESCO E A FAMÍLIA
O parentesco para os Sarakatsani se caracteriza como um sistema de relações
pessoais, que se apresenta como extensão da família nuclear, a entidade funcional dentro dos
círculos de parentes e na conexão destes círculos. Mas o parentesco não é um grupo
corporado que monopoliza recursos e pessoal comuns, e tampouco é baseado na
descendência unilinear. Ou seja, não é a descendência a um ancestral comum, mas a filiação à
família do pai e da mãe que determina status, direitos, obrigações e pertencimento ao grupo
familiar.
Mesmo havendo preferência e valorização às qualidades da linhagem do pai, não se
configura um princípio de descendência patrilinear. Portanto, o comportamento familiar
passado, tanto pela linhagem da mãe quanto do pai, tem peso nas avaliações de reputação
presentes e futuras dos Sarakatsani – o que se percebe pela importância dada ao nome na
hierarquia de prestígio –, ainda que não tanto quanto as condutas presentes dos familiares.
Ademais, a definição do parentesco está sempre referida a um grupo de irmãos na
estrutura bilateral. Nesse sistema, se reconhece como parentes – ainda que de forma flexível,
contingente algumas vezes à reputação e distância física – aqueles que descendem dos quatro
avós e de seus irmãos e irmãs de uma pessoa, exceto: bisnetos de irmãos, os filhos dos primos
de 2º grau, os netos dos primos de 1º grau. Assim, o reconhecimento de parentesco é amplo
na sua própria geração, mas tende a diminuir com a idade e com os novos papéis sociais do
indivíduo ao formar uma nova família, voltando-se para seus descendentes imediatos.
Essa bilateralidade de parentesco implica numa equivalência de obrigações morais
com parentes colaterais, que se traduz em: “favores verdadeiros”, baseados em sentimentos
naturais (e não contratuais) que nunca interferem nos interesses de sua família, tais como
hospitalidade e abrigo, informação sobre os assuntos alheios e fofocas, suporte físico em
brigas presenciadas pelo parente; assistência e cooperação com base contratual 4 que
4 A cooperação entre parentes é essencial numa comunidade em que desconfia fortemente em não-parentes, impossibilitando sua cooperação. No caso dos Sarakatsani, portanto, a relação de confiança dentre parentes possibilita a sua cooperação no domínio público, especialmente quando se refere a irmãos ou primos de 1º grau.
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demandam a riqueza material de parentes, através de empréstimos, pastoreio dos animais do
parente etc. As últimas envolvem o cálculo e uma expectativa de retorno ou retribuição.
Vê-se que as obrigações aos parentes colaterais não são consideradas tão importantes
quanto aquelas voltadas para a família nuclear, na qual o princípio da obrigação parental guia
a atitude do homem no sentido de proteção aos recursos corporados da família (materiais ou
não), havendo, por conseguinte, certo isolamento da família nuclear perante os parentes
colaterais. Da mesma forma, ainda que haja obrigação de defender as ações de outro parente
em público, se este se desviar dos valores da comunidade, o primeiro é forçado a abandoná-lo
antes que a sua proximidade de parentesco interfira na sua própria reputação e de sua família.
A riqueza da família nuclear constitui-se pela colaboração do homem (pela herança) e
da mulher (dote), conforme a estrutura bilateral. A propriedade corporada é um estoque
comum de animais (ovelhas e cabras), dinheiro, bens, os quais devem ser distribuídos de modo
equivalente pelos filhos, para que os mesmos possam constituir sua própria família ao se
casarem. As filhas recebem sua parte em dote quando casam 5, mas os filhos casados
continuam a viver no grupo familiar estendido onde a riqueza da família ainda é tida em
comum, e só iniciam o processo de separação quando o primeiro filho do primogênito nasce. O
filho mais novo, entretanto, recebe uma parcela um pouco maior para poder cuidar dos pais.
Há uma complementaridade estrutural dos papéis dos pais, possibilitando a
manutenção da solidariedade moral da família ao longo de seu desenvolvimento. A honra dos
filhos e filhas depende diretamente da honra da mãe. Assim, observa-se que a reputação está
associada ao seu potencialmente elo mais fraco: o sexo feminino e o seu comportamento
sexual – no caso dos Sarakatsani, está associado com a idéia de uma sensualidade natural da
mulher que sempre ameaça a família –, da mesma forma que em outras comunidades do
Mediterrâneo europeu.
Já o pai tem o papel de liderar e representar a família no mundo externo, devendo
seguir a conduta ideal de masculinidade para proteger a honra da família, além de ter amigos
(no sentido instrumental) nos locais certos, ser um bom negociador e um pastor habilidoso.
Desse modo, o papel da mãe, pela sua conduta passada, precede logicamente a
5 De acordo com Ernestine Friedl, na Grécia, cada filho tem direito a uma parcela igual da propriedade por lei, e é costume em Vasilika, como entre os Sarakatsani, a herança ser dada aos filhos homens e os dotes às mulheres. Os dotes são um mecanismo de contribuir bilateralmente ao patrimônio dos descendentes do casal. Entretanto, no caso de Vasilika, os dotes são dados em forma de terra e dinheiro (para enxoval). (FRIEDL, 1967). No caso dos Sarakatsani, os dotes são geralmente em ovelhas, mas recentemente têm sido complementados com dinheiro, ampliando a gama de pretendentes mulheres de status mais baixo.
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responsabilidade mútua que todos os membros possuem de se comportarem de forma a
garantir a reputação da família frente à das outras, numa espécie de jogo da honra.
Assim, há identificação mútua de interesses pelos membros da família, que se dá pela
interação competitiva com todas as pessoas que não são membros da família, especialmente
aqueles que não possuem nenhum vínculo de parentesco. Dessa hostilidade mútua advém a
solidariedade dos grupos familiares corporados, solidariedade esta simbolizada pela idéia de
sangue.
Cabe afirmar que essa solidariedade se coloca acima das possíveis intrigas que possam
ocorrer dentro da família nuclear, até mesmo porque a rivalidade e a competição são
desestimuladas dentro da mesma através de determinados recursos, como o fato de que é a
ordem de nascimento que indica a ordem de casamentos. Além disso, a posição de chefe de
família é tratada apenas como uma tarefa especializada dentre outras, sendo que as decisões
importantes são feitas por consenso de opinião, e não por autoridade. A família se vê como
unidade, e sabe que qualquer desvio à honra de um membro da família recai sobre a
reputação de honra de todos.
Por não se tratar de um grupo de parentesco corporado, o mercado matrimonial se dá
tendo em vista a distribuição de alianças de parentes que demarcam a posição da família na
comunidade sendo uma importante escolha que se dá entre famílias, de acordo com seu
acesso diferencial de recursos de prestígio (o que leva em conta tanto a riqueza material
quanto a reputação de honra). Assim, de acordo com esses recursos, cada família tem uma
capacidade de manobra social que se reflete na escolha matrimonial.
Como dentre os Sarakatsani a virgindade das mulheres é fortemente responsável pela
honra familiar – sendo a crítica às virtudes da mãe a forma mais eficiente de denegrir uma
família –, a escolha da noiva é fundamental, assim como a avaliação do prestígio de sua família
e parentes próximos.
As proibições de casamento com relação a parentes (inclusive parentes espirituais)
simbolizam e dividem uma categoria de relações sociais baseadas na confiança, além de
obrigarem as famílias a considerarem pessoas que não são parentes, logo inimigas, como
parentes afins em potencial 6. Assim, as hierarquizações de prestígio feitas pela avaliação
6 Para evitar causar ofensas à família da pretendente e recolher informações acerca dela, geralmente se pede para um parente ser o mediador entre as famílias, como negociador de casamento. O ideal é que seja um parente de ambas as famílias, para que possa barganhar o dote e apresentar as virtudes do “noivo” de forma desinteressada.
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pública dos Sarakatsani acabam definindo quem é mais adequado para o casamento, ainda
que a barreira da desconfiança com os anteriormente não-parentes nunca de fato acabe – mas
cuja relação pode permitir futura cooperação (na company) devido aos interesses comuns nos
filhos do casal e, até mesmo, dependendo do status social do parente afim, importantes
relações de influência e patronagem.
Assim sendo, há uma ambivalência entre afins que se manifesta na distribuição
espacial dos parentes. Devido à desconfiança entre eles, se prefere que vivam em outras
vizinhanças, para evitar brigas e fofocas sobre assuntos privados. Este distanciamento pode ter
uso prático por favorecer a troca de informações que influenciam o prestígio das famílias, mas
também tem um grande valor por resultar numa maior consciência individual do
pertencimento à comunidade como um todo. E é claro, numa comunidade hostil, estando
cercados por relações de cálculo e desconfiança, os Sarakatsani consideram a visita aos
parentes, ainda que distantes, como uma oportunidade de se liberarem das pressões das
representações de papéis familiares perante os não-parentes.
AMIZADE
A amizade “verdadeira”, emocional, para os Sarakatsani, só é permitida entre parentes
devido à profunda desconfiança com relação a não-parentes, o que reflete como a estrutura
da comunidade, sendo relativamente fechada, inibe as relações e a cooperação dentre seus
próprios membros e com as pessoas externas a ela, até porque isso ameaçaria a exclusividade
das obrigações perante a família e, em menor medida, aos parentes em geral. Esse
fechamento acaba levando à tendência de nivelar as diferenças internas – o que pode ser visto
na composição das famílias Sarakatsani, uma vez que a grande maioria se situa numa posição
equivalente de status – mas isso não significa uma solidariedade em termos de cordialidade,
podendo se traduzir numa grande rivalidade para se manter essa igualdade de oportunidades
e recursos, levando à inveja e à desconfiança.
Frente a isso, as relações de amizade, ainda que restritas a parentes, podem oferecer
um alívio às pressões da competitividade de prestígio. A amizade emocional, por exemplo,
pode ser um escape a essas pressões, e é vista principalmente entre primos que são filhos do
irmão da mãe ou do irmão do pai, pois geralmente estes irmãos e irmãs não têm relação de
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cooperação, tem um laço de proteção da honra da irmã, além de viverem em outras
vizinhanças de inverno ou verão.
Encontrar um primo com quem se tem uma amizade emocional significa conversar
livremente com pessoas preocupadas com a sua sorte ou azar. Por não temerem que seus
segredos ou medos relativos ao cumprimento de seus papéis sociais caiam no âmbito público
através de fofocas ou difamações que reduzam seu prestígio, os Sarakatsani podem falar
livremente sobre assuntos dos mais variados, desde a família até as medidas opressivas dos
burocratas do governo.
Em contraposição, a outra classe de primos de 1º grau são aqueles que vivem na
mesma vizinhança de verão e que cooperam ou já cooperaram no pastoreio. Estes possuem
uma relação de parentesco que pode se assemelhar à amizade instrumental, uma vez que há
um elemento de cálculo com o objetivo de aumentar a eficiência do pastoreio, ainda que seja
o fato de serem parentes próximos que dê a carga afetiva responsável pela continuidade ao
relacionamento. Portanto, esta última relação na verdade está fortemente cercada das
obrigações de parentesco, sendo neste caso não uma relação propriamente de amizade.
Entretanto, pode-se falar em amizade instrumental com as relações estratégicas
estabelecidas com pessoas influentes externas à comunidade, com um mínimo teor afetivo,
podendo estabelecê-la pela troca de presentes ou favores, necessário para estabelecer uma
confiança sustentada pela promessa de apoio mútuo. Assim, a amizade instrumental para os
Sarakatsani é estabelecida entre pessoas de status diferentes, geralmente com um patrono,
com quem possuem uma relação interessada de modo a obter acesso a recursos como acesso
a empréstimos, certificados de quitação de pagamentos de pastoreio, assistência legal etc.
Ele pode ser inferior ao patrono, mas isso não compromete seu orgulho porque a
pessoa é externa à comunidade e ele tira vantagem da situação. Ademais, o sarakatsan ganha
prestígio quanto mais amigos instrumentais tiver, porque é visto como um bom protetor de
sua família, como foi mencionado no caso do pai, que deve ter habilidade para estabelecer
amizades nos lugares certos.
A PATRONAGEM E A RELAÇÃO COMUNIDADE-SOCIEDADE
A partir das considerações feitas sobre a família, o parentesco, a amizade e a própria
estrutura da comunidade Sarakatsani, pode-se apontar alguns caminhos para compreender as
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relações de patronagem e de influência que conectam tais instituições informais com a
sociedade mais ampla.
Primeiramente, a flexibilidade do sistema de parentesco permite que se considere
como parente alguém distante no grau de sangue, mas que pela riqueza ou influência na
comunidade se possa estender o sistema, incluindo até primos d 3º e 4º grau. O primo
distante, por sua vez, considera essa aproximação positiva, pois isso só aumenta o seu
prestígio, tanto dentro da comunidade quanto com relação às personalidades influentes
externas.
Ademais, o parentesco mesmo em seus limites costumeiros, tem papel importante
para além das trocas de favores entre parentes, pois pode servir de mediação a outras pessoas
com poder político ou econômico fora da aldeia, através de seus próprios patronos e
padrinhos 7. Há, assim, uma forte semelhança entre este “parentesco efetivo” e a amizade
instrumental já analisada.
A amizade instrumental, por outro lado, vincula, através do contato do pai ou do irmão
mais velho, uma família nuclear a uma personalidade da aldeia, tanto direta quanto
indiretamente – quando os membros da díade estabelecida fornecem ligações com outras
pessoas, como ocorre muitas vezes com os patronos que são advogados e entram em contato
com o Presidente da vila ou outros amigos de mesmo status (juízes, médicos, oficiais da
burocracia governamental etc.).
Portanto, os direitos de cidadania conferidos aos Sarakatsani em 1938 tiveram como
principal conseqüência formar uma espécie de rede de amizades instrumentais simétricas
(quando dentro da comunidade) e assimétricas com a aldeia de Zagori. Numa situação em que
a comunidade se vê constantemente excluída do processo político formal – especialmente nas
aldeias das planícies de inverno, onde a maioria não tem direitos de cidadania –, e que seu
estilo de vida exige cada vez mais recursos – de subsistência e de bens para atender às
demandas do prestígio social – se enxerga nas relações pessoais com figuras externas
poderosas a possibilidade de fazerem seus interesses serem atendidos por um poder
impessoal (tanto no âmbito comercial quanto político).
7 Com relação aos padrinhos, percebe-se que os parentes espirituais também se tornam uma fonte importante para obtenção de recursos, sendo comum pedir a um homem de status superior para patrocinar o seu casamento de modo a firmar um vínculo que o leve a ser padrinho de seus filhos e criar, com isso, uma relação estável de troca de favores, uma vez que o padrinho tem obrigações morais e espirituais com seus afilhados – o que pode se estender, ainda que de forma sutil, aos pais destes.
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As relações de patronagem permitem, através desse mecanismo de tornar relações
impessoais em pessoais, formais em informais, a participação dos Sarakatsani na sociedade
mais ampla. E, fundamental dizer, permite o próprio funcionamento dessa estrutura formal, o
que fica claro quanto à máquina burocrática que se estende através de instituições formais
desde o governo central da Grécia às aldeias e que, pela sua incapacidade de distribuir
eficazmente bens e serviços a todas as comunidades, precisa ligar-se às instituições
suplementares.
Para concluir, os traços estruturais socioeconômicos e sociopolíticos da comunidade
Sarakatsani não são inerentes a uma comunidade estática do “passado”, mas são resultados da
interação dinâmica entre comunidade e nação, a qual produziu a própria relação de
patronagem que entrecorta aquela em suas relações familiares, nas disputas entre famílias de
não-parentes e nas relações de amizade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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