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Coordenadores da Srie Antonio David Cattani PPGS/UFRGS Brasil Jean-Louis Laville LSCI - Centre National de la Recherche Scientifique Frana Conselho Editorial Alain Caill Universit de Paris-Nanterre

Frana

Benot Lvesque Universit du Qubec Montral Jos Luis Coraggio Universidad General Sarmiento

Canad

Argentina

Laurent Fraisse LSCI - Centre National de la Recherche Scientifique Frana Luiz lncio Gaiger PPGCSA/UNISINOS Brasil Paul Singer Universidade de So Paulo/SENAES Philippe Chanial Universit de Caen Frana T nia Fischer PDGS/Universidade Federal da Bahia Brasil

Brasil

1a edio atualizada

dos autores 1 edio: 2005 Direitos reservados desta edio: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Projeto grfico, editorao eletrnica e capa: Eska design + comunicao Reviso e preparao de originais: Magda Collin e Israel Pedroso Reviso adicional: Sandra Mayrink Veiga Editorao adicional: Editora da UFRGS Equipe do Ncleo de Solidariedade Tcnica (SOLTEC) que concretizou a utopia do livro: Clara Areias Vieira Felipe Addor Gabriela Faria G. Valado Juliana Santos Maria Alice Ferruccio Pedro Rodrigues Galvo de Medeiros Sidney Lianza

Tecnologia e desenvolvimento social e solidrio / Sidney Lianza e Felipe Addor (organizadores). 1. ed. atual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011. 276 p. ; 14x21cm (Sociedade e Solidariedade) 1. Sociologia Economia solidria. 2. Economia social Brasil. 3. Engenharia Desenvolvimento social. 4. Cincia Tecnologia Sociedade. 5. Desenvolvimento sustentvel Terceiro setor. 6. Pesquisa ao. 7. Extenso universitria. I. Lianza, Sidney. II. Addor, Felipe. III. Srie. CDU 330.34(81) CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (Jaqueline Trombin Bibliotecria responsvel CRB10/979) ISBN 85-7025-841-0 ISBN 978-85-7025-841-0

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As grandes transformaes econmicas observadas nas duas ltimas dcadas foram marcadas pela lgica excludente do capitalismo contemporneo, pela degradao do aparelho estatal e da ao pblica, pelo aumento do desemprego, da precarizao do trabalho e da concentrao de renda. O capital financeiro estende suas prticas espoliativas e predatrias acentuando a lgica da concorrncia sem limites na economia de mercado. Ao mesmo tempo, desse quadro sombrio despontam luzes localizadas, indicando que uma transformao substancial no s necessria como possvel a curto prazo. Por todos os lados, observam-se iniciativas polticas e sociais que buscam romper com prticas e lgicas perniciosas ao interesse coletivo. Em administraes estaduais e municipais, na articulao de grupos da sociedade civil, nas prticas de resistncias de grupos sociais, nos estudos empricos e nas elaboraes tericas de intelectuais, esto surgindo novas prticas, propostas e anlises que apontam que um outro mundo possvel. A Solidariedade como princpio tico e poltico vai alm das convices pessoais alcanando um leque indito de prticas econmicas e societais. A srie Sociedade e Solidariedade ter como objetivo publicar os estudos, as anlises, as elaboraes tericas e as propostas concretas que apontem para as condies necessrias superao do modelo dominante, para iniciativas que podero construir uma sociedade diferente e melhor. Face complexidade das transformaes necessrias e em curso, a coleo contemplar as questes essenciais que dizem respeito relao entre sociedade, economia e democracia. Entre elas, destacamos as seguintes: Polticas Pblicas, Gesto Participativa (oramentos pblicos, gesto das cidades,

das empresas pblicas e sociais etc.), iniciativas dos Movimentos Sociais nas reas da Sade, Educao, Meio Ambiente, Planejamento Econmico, Distribuio de Renda, Acessibilidade, Planos Alternativos de Desenvolvimento e, sobretudo, todas as esferas da criao social em termos de Economia Solidria, Socioeconomia, Novo Cooperativismo e Autogesto.

Sumrio

PrlogoSidney Lianza e Felipe Addor

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ApresentaoHeloi Jos Fernandes Moreira

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Prefcio Engenharias brasileiras e a recepo de fatos e artefatosIvan da Costa Marques

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Introduo Solidariedade tcnica: por uma formao crtica no desenvolvimento tecnolgicoSidney Lianza, Felipe Addor, Vanessa Ferreira Mendona de Carvalho

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Parte 1 Engenharia e desenvolvimento social IntroduoPedro Rodrigues Galvo de Medeiros

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A Engenharia no desenvolvimento nacionalCarlos Lessa

H muito de poltica na deciso tcnicaRaymundo de Oliveira

Parte 2 Trabalho: crise e possibilidades IntroduoMaria Alice Ferruccio

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Por uma reconstruo da viso do trabalhoRogrio Valle

A pirmide, a teia e as falcias: sobre modernidade industrial e desenvolvimento socialRoberto Bartholo

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Responsabilidade social empresarial: o esprito da mudana e a conservao da hegemoniaCiro Torres

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Parte 3 Desenvolvimento local e economia solidria IntroduoFlvio Chedid Henriques

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O desenvolvimento local e a arte de resolver a vidaAna Clara Torres Ribeiro

Planejamento do desenvolvimento local e economia solidriaFarid Eid, Andra Elosa Bueno Pimentel

Polticas pblicas para a economia solidria no BrasilPaul Singer

Parte 4 Cidadania, participao e gesto social IntroduoGabriela de Faria G. Valado, Juliana Santos

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(Re)Visitando o conceito de gesto socialFernando G. Tenrio

Perspectivas de metodologia de pesquisa participativa e de pesquisa-ao na elaborao de projetos sociais e solidriosMichel Thiollent

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Rede de tecnologias sociais: pode a tecnologia proporcionar desenvolvimento social?Jacqueline E. Rutkowski

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Parte 5 Experincias de inovaes sociais e tecnolgicas IntroduoClara Vieira Areias

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A pesquisa-ao na cadeia produtiva da pesca em Maca

Sidney Lianza, Felipe Addor, Fernando Antnio de Sampaio Amorim, Flvio Chedid Henriques, Maurcio Nepomuceno de Oliveira, Murilo Minello, Vanessa Ferreira Mendona de Carvalho, Vera de Ftima Maciel Lopes

Projeto Minerva informtica a servio da educao pblicaAntonio Cludio Gmez de Sousa, Rejane Lcia Loureiro Gadelha, Ricardo Jullian da Silva Graa

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Universidade, Estado e prefeituras: integrao para o saneamento ambiental de municpios fluminensesIsaac Volschan Junior

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Economia popular solidria: um processo em pleno desenvolvimentoPaulo Leboutte

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Concluso O experimento da utopia (arte de realizar sonhos)Sidney Lianza, Felipe Addor

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Anexo A experincia do Ncleo de Solidariedade Tcnica (SOLTEC/UFRJ) Sobre os Autores

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Prlogo

Certamente ser impossvel esquecer a onda vermelha que tomou o Brasil em 27 de outubro de 2002. A vitria de Lula nas eleies mais que a vitria de uma frente partidria, de um poltico, de um programa, representava a visualizao de um sonho, de uma utopia acalentada h anos nos processo de redemocratizao do pas. Misturavam-se, no corao de milhares e milhares de brasileiros ao redor do pas e internacionalmente, sentimentos de otimismo, de alegria, de esperana, de paixo, de utopia em construo. Em janeiro de 2003, comea um perodo marcante na histria do Brasil quando um operrio de cho de fbrica chega presidncia do pas. Uma nova viso de governo subiu a rampa do Palcio do Planalto. No foi superficial ou leviana a definio do lema do governo, Brasil, um pas de todos. Entre as diversas mudanas, uma das mais significativas foi que a partir de ento o governo brasileiro, as instituies pblicas, as polticas pblicas ampliariam seu campo de abrangncia. Os indgenas moradores dos interiores longnquos da Amaznia, os trabalhadores rurais isolados dos centros urbanos, os moradores de rua marginalizados das grandes cidades; toda essa populao passava a ser focalizada com luzes para dar-lhes visibilidade, dar-lhes vida na poltica pblica Apesar de no ter representado, como alguns esperavam, uma transformao estrutural que mudasse a estratgia de oferenda dos maiores e melhores benefcios s grandes empresas, nacionais e internacionais, a sua poltica fez com que no Estado existisse espao para direcionar os investimentos, para estruturar a economia nacional de maneira a garantir que o aumento do Produto Interno Bruto pudesse articular-se com uma poltica que trouxesse melhores condies de vida e renda para os trabalhadores, e no s mais dividendos aos acionistas globais do capital. O poder secular dos monoplios, dos latifndios, atualizado por um desenvolvimento capitalista lubrificado a petrleo, encontrou no governo Lula,

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uma convivncia conflituosa, contraditria e com antagonismo na Esplanada dos Ministrios, no Palcio do Planalto, no Congresso, nos movimentos sociais das cidades, campos e selvas; na mdia impressa e eletrnica. Constitiu-se numa lio a cu aberto de que Governo e Estado so conceitos distintos. Que a luta pela democracia e pela justia social e ambiental exige enfocar, articular, desenvolver novas institucionalidades contra-hegemnicas, novas relaes sociais, nova tica, nova economia. Erigir um novo regime dentro do velho. Construir sistemas e programas complexos, sociais, econmicos e ambientais, sendo edificados, articulando-se, substituindo o arcaico pelo novo mundo. Um mundo que articule a construo e utilizao de novas tecnologias com o desenvolvimento social e solidrio. No leito desse movimento, no primeiro dia til do governo Lula, comea a constituir-se o Ncleo de Solidariedade Tcnica da Universidade Federal da UFRJ. O SOLTEC/UFRJ comeava a ser articulado, decorrente da insatisfao de estudantes e professores da Escola Politcnica com os rumos que haviam se sedimentado nos currculos dos cursos, os quais possuam como principal objetivo formar funcionrios para grande empresas, principalmente as multinacionais. Naquele ambiente de mudana no pas, parecia necessrio, fundamental, inexorvel, que as engenharias, que a tecnologia tambm se sensibilizassem um pouco, que as mquinas (assim como o homem de lata) ganhassem um corao, que os motores refletissem sobre o sentido da sua vida, que as estruturas ganhassem uma malemolncia para poder servir populao brasileira. Este livro nasceu a partir da necessidade de solidificar um campo de conhecimento que naquele momento era frgil e pouco difundido. O objetivo era fortalecer um campo de reflexo e prtica que abordasse a engenharia como tecnologia e cincia que se desenvolve de maneira dialgica com a sociedade e em particular com os setores populares . Colocar na agenda da pesquisa, da formao na Engenharia, o desenvolvimento social e o equilbrio ambiental, significa disputar hegemonia com os que investem conhecimento e recursos para o desenfreado produtivismo e o consumismo. Retirar milhes da misria, da pobreza, desenvolver a economia com gesto compartilhada de recursos naturais, exige tanto ou maior desafio cientifico e tecnolgico quanto aquele que pretende manter o status quo. Trabalhar com determinao para romper com o discurso predominante nas universidades, nos rgos de fomento e na mdia, que se prope naturalizar que engenharia compete servir aos monoplios, e que assistencia social, o dever de buscar mitigar os desvios desse modelo.

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Comeamos esse movimento na UFRJ, que foi muito beneficiado pelo novo ambiente poltico: recrudescimento das universidades pblicas, valorizao da extenso universitria, fomento a iniciativas de Economia Solidria (destaque para a criao, em junho de 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidria), incentivo atividades de formao dos trabalhadores, apoio a projetos produtivos comunitrios, editais direcionados populaes tradicionais, fortalecimento das reas sociais em rgos pblicos (como FINEP e BNDES). Hoje, menos doloroso ao ouvido da denominada opinio publica o conceito de tecnologia e desenvolvimento social, mesmo para os mais conservadores. O Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social (ENEDS), cuja primeira edio foi a inspirao para esse livro, j est na sua oitava edio, tendo, depois de quatro anos na UFRJ (Rio de Janeiro), ganhado independncia, passando por outras universidades: USP (So Paulo), UNICAMP (Campinas), UFVJM (Tefilo Otoni) e, em setembro deste ano, na UFOP (Ouro Preto). Alm de ter levado criao de Encontros Regionais (os EREDS), realizados, este ano, em Joo Monlevade, MG, e em Natal, RN. Est cada vez mais difundida no pas a necessidade de construo de uma nova engenharia, de uma nova compreenso sobre o papel que a tecnologia deve ter para o desenvolvimento do Brasil, sendo beneficiado e beneficiando os novos caminhos que o pas vem seguindo desde 2003. O crescimento dessa estrada permitiu que hoje pudssemos contribuir para: a formao tcnica e poltica de pescadores artesanais em vrios estados do pas; a elaborao participativa da poltica nacional de associativismo na pesca e aquicultura; o desenvolvimento de uma poltica de etnodesenvolvimento voltado s comunidades quilombolas em todo Brasil; a formulao de propostas de melhoria da qualidade de vida e do desenvolvimento da economia solidria em favelas do Rio de Janeiro; a utilizao de tecnologias da informao em prol do fortalecimento organizacional nas comunidades pobres. Disciplinas que fortaleceram na universidade a universalizao da pesquisa e extenso na formao scio tcnica dos estudantes. Ou seja, ao mesmo tempo que o ambiente propicio fomentou nosso movimento, hoje temos a capacidade de apoiar o caminhar desse novo projeto em construo no pas; a rea tecnolgica est mais sensvel e pode dar maior contribuio para o desenvolvimento social do Brasil. Ficamos felizes com a reimpresso deste livro, mostrando que esse fruto gerado no incio do processo, que tinha o objetivo maior de autoconhecimento, de autoformao, serviu para formar e sensibilizar outras pessoas, outros

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grupos que tambm tentam tornar o corao e o crebro das engenharias e dos engenheiros menos cinzentos. Nos parece que as preocupaes e os temas tratados aqui continuam extremamente atuais e podem contribuir para continuarmos a pensar quais caminhos a tecnologia deve traar para poder, cada dia mais, servir maioria da populao brasileira, sem que para isso precise haver coincidncias, mas que seja plenamente alimentado de paixo. Sidney Lianza e Felipe Addor Agosto de 2011

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Apresentao

Em janeiro de 2003, alguns estudantes e professores da Escola Politcnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ elaboraram um sonho: formar um ncleo de estudo e trabalho que inserisse a formao dos nossos alunos e as atividades da prpria universidade em um ambiente solidrio para o desenvolvimento de competncias, em polticas pblicas, para a gerao de emprego e renda e promoo de direitos humanos. Em pouco tempo, o sonho comeou a se concretizar: foi criado o Ncleo de Solidariedade Tcnica SOLTEC. Comearam a ser oferecidas disciplinas no mbito da graduao e ps-graduao, desenvolvidas pesquisas e realizadas atividades de extenso internas prpria UFRJ, em diversos locais da cidade e em outros municpios do estado do Rio de Janeiro. Em 2004, o SOLTEC realizou o encontro Engenharia e Desenvolvimento Social: elaborao, monitoramento e avaliao de projetos solidrios. Esse ambiente de reflexo estimulou o grupo, ento j bastante ampliado, a apresentar, de forma sistematizada, as suas atividades de ensino, pesquisa e extenso. Era preciso registrar formalmente o pensamento, a prtica e o desejo do SOLTEC. Tornou-se necessrio ultrapassar as fronteiras da prpria UFRJ. E, assim, aquele sonho vai, cada vez mais, cristalizando-se: eis aqui o livro Tecnologia e desenvolvimento social e solidrio. nosso desejo que estudantes, tcnicos e professores de universidades, gestores de organismos pblicos, dirigentes sindicais, integrantes de ONGs, responsveis por projetos de responsabilidade social corporativa possam encontrar, neste livro, elementos para vivenciar e conhecer experincias das quais possam participar. Que seja um dilogo profcuo e que contribua para

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que se continue enfrentando o grande desafio de construir um Brasil em que todos possam exercer com dignidade a plenitude da sua cidadania. Esperase, tambm, que este livro possa contribuir para que o desenvolvimento tecnolgico, o ensino e o exerccio da engenharia brasileira ocorram no sentido de construir uma sociedade justa e igual para todos. Que o acesso ao alimento, ao conhecimento, ao lazer, ao teto, educao, sade, opinio e outros direitos sejam processos naturais e de alcance para qualquer um dos brasileiros. Elaborar e materializar sonhos, concretizar esperanas sempre motivo de alegria. Por isso, como Diretor da Escola Politcnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sinto intensa alegria e satisfao em apresentar este livro, fruto do trabalho de alunos, professores e funcionrios tcnicoadministrativos, que engrandecem esta Escola Politcnica. O lanamento deste livro nos d a oportunidade de manifestar o orgulho que esta Escola tem pelo seu corpo social. Rio de Janeiro, julho de 2005. Heloi Jos Fernandes Moreira Diretor da Escola Politcnica da UFRJ

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PrefcioEngenharias brasileirase a recepo de fatos e artefatos

Ivan da Costa Marques

O Brasil um pas industrializado. As estatsticas da produo econmica poderiam sustentar esta afirmao como um fato. No entanto, as diferenas entre o Brasil e os pases industrializados da Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmicos (OCDE) so por demais evidentes para serem desprezadas. A industrializao enseja o uso da expresso pas semiperifrico a servio da hierarquizao das diferenas. Mas quais so as diferenas? J que estamos entre engenheiros, refao a pergunta de forma mais especfica: como as diferenas aparecem nas e para as engenharias? Ou ainda, como os engenheiros brasileiros se relacionam com as diferenas entre o Brasil e os pases da OCDE que nos servem de modelo? De mltiplas maneiras: a resposta bvia. Mas cada uma delas favorece efeitos diferentes: o complemento, tambm bvio. Engenharias brasileiras e as diferenas entre o Brasil e o primeiro mundo so o assunto que pretendo tratar neste breve ensaio de abertura. Como porta de entrada, vou tomar a relao entre Engenharia e Cincia. Para quem admite a universalidade e a neutralidade da Cincia (a Cincia sem valores), o conhecimento cientfico independe de quem o produziu. No interessa se o cientista branco ou negro, mestio, rico ou pobre, gay, homem, mulher, judeu, muulmano ou catlico, em que sculo ou regio vive ou sob que regime poltico trabalha, pois a verdade ou o fato cientfico transcende as

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contingncias locais e sociais e paira acima delas. A sociedade nada teria a dizer sobre o fato cientfico, que teria unicamente a Natureza como rbitro. Alm disso, a Cincia universal e neutra coloca em cena um divisor entre, de um lado, fazer Cincia pura, aquela atividade que usufrui os benefcios morais da universalidade e da neutralidade de quem circunscreve suas indagaes a questes to somente da Natureza, e, de outro lado, o fazer Cincia aplicada, em que a universalidade e a neutralidade so parcialmente perdidas, pois a j se teriam infiltrado os males da Sociedade: a Biologia que faz a vacina faz tambm a guerra bacteriolgica ou a Fsica faz a bomba e faz a usina nuclear. Em suma, para quem adota este ponto de vista, a Cincia universal e neutra, mesmo que no se possa dizer o mesmo de suas aplicaes. No entanto, durante o sculo XX, a sustentao deste ponto de vista tornou-se cada vez mais precria entre os que se dedicam a estudar os processos especficos que constituem os conhecimentos cientficos e tecnolgicos. Oriundos das mais diversas categorias disciplinares, como a Histria, a Sociologia, a Filosofia, a Antropologia, as Cincias (Fsica, Qumica, Biologia ou Matemtica) ou das prprias engenharias, reunidos na rea interdisciplinar denominada Science and Technology Studies nos pases de lngua inglesa, estes profissionais acompanham o fazer cincia e tecnologia na contemporaneidade. Com perdo pelo resumo excessivo na apresentao de seus resultados, a Cincia universal e neutra, tal como se queria at o sculo XIX, talvez se possa dizer, um mito. Apesar disto, o ponto de vista que constri a imagem de uma Cincia universal e neutra e a contempla , ainda hoje, o mais popularizado, pois, em grande parte, a partir dele que se continua a apresentar ao grande pblico e aos prprios engenheiros o fazer Cincia e Tecnologia. Vou buscar articular as relaes entre este ponto de vista mais popularizado e o assunto engenharias brasileiras e as diferenas entre o Brasil e o primeiro mundo. O mito da universalidade e da neutralidade da Cincia pura transferido em parte para a Engenharia, no momento em que a formao do engenheiro o induz a acreditar que haja, e que ele possa prover, uma soluo puramente tcnica para a construo de um artefato (bem ou servio) que lhe seja solicitada. Ensina-se aos estudantes de Engenharia, explcita ou implicitamente, que ao profissional cabe cuidar da parte tcnica do artefato tecnolgico. Estabelece-se uma diviso entre o tcnico e o social ou

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poltico, e cabe ao engenheiro tratar daquela parte que se pretende independente das condies sociais locais e que, por isso, como que paira acima ou pelo menos separada delas. No entanto, de modo geral, qualquer projeto de Engenharia envolve tomar decises. E qualquer deciso, qualquer escolha no projeto de um artefato, privilegia uns e desfavorece outros. No se pode escapar disto. No h, pelo menos no h mais, universalidade e neutralidade. Por exemplo, nas ltimas dcadas do sculo XX , o ativismo nos EUA conseguiu resultados ao demonstrar que a ausncia de rampas nas ruas e prdios e os botes de controle dos elevadores colocados verticalmente discriminavam pessoas em cadeiras de rodas. As escolhas e decises no setor da construo civil, provavelmente em funo de clculos de custos, no eram puramente tcnicas, pois tinham efeitos que reforavam diferenas nas relaes de poder entre cidados. Nenhuma deciso pode ser puramente tcnica, ou seja, qualquer deciso tambm e inseparavelmente poltica, tem efeitos na distribuio relativa de poder (ou bem-estar) entre as pessoas, mesmo que a relevncia dos efeitos polticos possa variar amplamente. No entanto, certamente nem todas as tomadas de deciso so estruturadas levando em conta seus aspectos polticos, mesmo que, muitas vezes, eles sejam altamente relevantes para certos coletivos. Muitas vezes o efeito poltico sub-reptcio e de difcil identificao. Pois bem, esta tomada de conscincia entre os americanos de que as decises ditas puramente tcnicas na construo civil eram inseparveis de seus efeitos polticos, e que, portanto, eram tambm decises polticas, apenas um exemplo de um fenmeno mais geral que nos interessa. Este fenmeno geral decorre do fato de que as decises e as argumentaes tcnico-cientficas acontecem sempre sobre quadros de referncia sempre limitados. Os quadros de referncia no incluem e nem poderiam incluir toda a complexidade do mundo real. Alguma coisa, na verdade uma infinidade de coisas, ser sempre deixada fora dos quadros de referncia. No exemplo acima, as condies de locomoo dos deficientes fsicos no entravam nos quadros de referncia (nos clculos) para a tomada de decises relativas construo civil nos EUA e passaram a fazer parte deles nas ltimas dcadas. Isto, claro, no quer dizer que no continue havendo outros interesses que permanecem ausentes dos quadros de referncia e so, possivelmente, afetados pelas decises. Somente a partir dos anos 1980 vm ganhando terreno as

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pesquisas empricas que focalizaram este tipo de fenmeno (as delimitaes ontolgicas dos quadros de referncia) na construo dos conhecimentos cientficos e tecnolgicos de modo geral.1 Os economistas, h muito, conhecem o fenmeno sob uma forma especfica, que chamam de externalidade, que Michel Callon generaliza, definindo o que chama de transbordamento2 de um quadro de referncia. Proprietrios de uma fbrica de tinta, funcionrios do municpio e engenheiros, raciocinando sobre um quadro de referncia que pode incluir diversas variveis, fazem clculos e decidem qumica e economicamente (isto , tecnicamente, pelo critrio de minimizao dos custos de produo, por exemplo) implantar a fbrica s margens de um rio. Por hiptese, pescadores que vivem da pesca rio abaixo no esto presentes, no importa por que motivo, no quadro de referncia para a tomada da deciso. Porm, os resduos do processo de fabricao da tinta, jogados ao rio, alteram a ecologia local e diminuem os cardumes. Os pescadores sofrem os efeitos e passam a ter que trabalhar mais ou vender o peixe mais caro para manter seu ganho. Entram em cena os efeitos da deciso na distribuio de poder (ou bem-estar), ou seja, manifestam-se os efeitos polticos j antes contidos na deciso tcnica. Para um economista que privilegia a cincia econmica como algo neutro, que descreve a realidade, evidencia-se um afastamento da situao de alocao tima (tcnica) de recursos pelas leis do mercado, pois o custo real da tinta estaria subestimado, isto , estaria havendo uma transferncia de recursos no contabilizados (fora do quadro de referncia) dos pescadores ou dos compradores de peixe para a produo/consumo de tinta.3 A entrada dos pescadores no quadro de referncia no significa, claro, que outros f/ atores no permaneam fora dele. Sem entrar em mais detalhes deste exem-

1 Ver Winner (1986) e tambm, dentre outros, Law (1986), Callon (1989) e Latour e Woolgar (1986). 2 Overflow (Callon, 1998). 3 Isto faz com que mais facilmente alguns economistas caiam na armadilha de moralizar a cincia econmica, dizendo que estaria se fabricando mais tinta do que se deveria e se pescando/comendo menos peixe do que se deveria (pois as quantidades certas seriam tecnicamente determinadas pelas leis da cincia econmica). Antes o mercado do que um ditador humano como dspota.

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plo usado nos livros de economia, quero ressaltar que a deciso de implantao da fbrica, estruturada tecnicamente em um quadro de referncia, inseparavelmente tcnica e poltica. Nem sempre fcil enxergar esta inseparabilidade. Entretanto, ela observvel no estabelecimento de qualquer fato cientfico ou na construo de qualquer artefato tecnolgico. Nas cincias mdicas, sabido que a capacidade de sintomas e doenas fazerem-se presentes ou ausentes nos quadros de referncia para tomada de decises por laboratrios, governos e mdicos est intimamente associada renda das regies que estes sintomas e doenas assolam. Sharon Traweek mostra uma instncia recndita desta inseparabilidade na Fsica, ao estudar a comunidade mundial de fsicos de partculas de alta energia, desvendando as relaes entre presena/ausncia de partculas que compem o universo no quadro de referncia desses profissionais e os esquemas de financiamento de suas experincias pelas agncias de fomento de pesquisa dos EUA e do Japo.4 Neste livro, Michel Thiollent traz esta questo, ao perguntar se as molculas e os circuitos eltricos so naturais e responder que a perspectiva diferente quando se considera que as construes cientficas ou tecnolgicas so de natureza social, por intermdio de grupos de pessoas (pesquisadores e tcnicos) inseridos em instituies que respondem a diversas demandas e interesses de certos grupos sociais e aos requisitos sociais e polticos do funcionamento do sistema vigente (p. 176). Recapitulando, cria-se um espao para argumentar que uma deciso pode ser puramente tcnica porque ela discutida como o resultado final da aplicao de uma racionalidade determinante dentro dos limites de quadros de referncia. A construo desses quadros de referncia (tradicionalmente nos laboratrios e centros de clculo)5 justamente o processo de purificao que elimina as condies locais sociais e polticas, constituindo a Natureza que aparecer como rbitro das controvrsias cientficas e tecnolgicas.6 Mas as escolhas e decises polticas feitas para conceber e adotar os quadros de referncias (para constituir a Natureza) so, no entanto, ardilosamente apagadas da memria do processo.74 5

Traweek (1988). Latour (1998). 6 Latour (1994). 7 Shapin; Schaffer (1985).

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Mais um elemento, o modelo de difuso da tecnologia,8 precisa entrar em cena para que possamos apreciar as relaes entre engenharias brasileiras e as diferenas entre o Brasil e o primeiro mundo. Ele uma decorrncia da inveno moderna da universalidade e neutralidade da cincia europia que indiquei anteriormente, hoje to aventado quanto elas. Implcita ou explicitamente, ele cortejado por grande parte da literatura composta pelos estudos de impacto da tecnologia. Vou argumentar que o modelo de difuso da tecnologia portador de uma naturalizao danosa, especialmente aos engenheiros brasileiros. Vejamos. Da universalidade e neutralidade da Cincia, faz-se decorrer a crena de que existem formas certas para os artefatos (bens e servios) tecnocientficos. Novamente, com perdo pela brevidade, dizer que uma forma tecnocientfica (artefato tecnolgico) certa corresponde a dizer que uma proposio cientfica verdadeira (fato cientfico). E dizer que as formas dos objetos ditos vencedores, cada vez mais com o sentido de vencedores referindo-se a disputas de eficincia e de mercado quando se trata de artefatos tecnolgicos, 9 so as formas certas, uma universalizao, uma neutralizao, uma naturalizao para dar a quem se preocupa exclusivamente com estas formas certas as isenes morais de quem supostamente se preocupava exclusivamente com as questes da Natureza (os antigos cientistas). O ardil da colocao da Natureza como nico rbitro legtimo para os fatos cientficos transferido para a tecnologia, que passa a ter como nico rbitro legtimo tambm a Natureza, mas agora uma Natureza que inclui o Mercado Naturalizado. Tradicionalmente, uma tecnologia que desafiasse a Natureza contradissesse a Fsica, a Qumica, a Biologia no faria sentido, porque no funcionaria. Mas tambm uma tecnologia que desafiasse a Mo Invisvel estaria desafiando a Natureza. A Mo Invisvel seria natural, porque no seria criada por nenhum homem, isto , seria uma organizao coletiva que brota espontaneamente (como vinda de Deus) a partir do comportamento individual. Como impossvel no trazer a sociedade quando se fala de tecnologia, de aplicaes,

Latour (1998, Captulo 3 Parte C). Quando se trata de fatos cientficos, vencedor se refere resistncia na resoluo de controvrsias cientficas nos laboratrios e nas comunidades de cientistas.9

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entra em cena a Mo Invisvel, que Adam Smith caracterizou to brilhantemente como Natureza na Sociedade,10 embora no usasse esta locuo.11 No modelo de difuso da tecnologia, disseminado a partir do primeiro mundo e popularizado entre os brasileiros, os artefatos tecnolgicos, uma vez descobertos ou inventados, transitam e difundem-se pela sociedade em sua forma certa, estabilizada a partir dos elementos naturalizados Natureza-Mercado Naturalizado. A competio econmica e tecnolgica globalizada no necessita, ento, de qualquer outra qualificao para ser legtima e justa, pois seu nico rbitro a Natureza que inclui o Mercado Naturalizado, parte do mundo puro das coisas-em-si e no do corruptvel mundo dos homens-entre-si. Temos, agora, os elementos para que eu possa cumprir a promessa de articular relaes entre engenharias brasileiras e diferenas entre o Brasil e o primeiro mundo. No Brasil, a historiografia constata facilmente que a imensa maioria dos artefatos tecnolgicos modernos veio da Europa, hoje ampliada na OCDE, ao longo da construo do mundo moderno. uma procisso numerosa, quase infindvel, de novos artefatos: no s espelhos, anzis e machados de metal, armas de fogo, tecidos, estradas e carros, navios a vapor, ferrovias, telefones, produtos sintticos, automveis, avies, televiso, computadores, telefones celulares, mas tambm artefatos tecnolgicos organizacionais como fordismotaylorismo, sociedades annimas, sistema financeiro, PIB, toyotismo etc. e at entidades que com muito mais dificuldade poderiam arrolar-se ao lado de artefatos tecnolgicos, como Estado-Nao e democracia.12 Argumentei que as decises de que resultou a forma de cada um dos objetos novos da procisso acima podem ter efeitos polticos de grande monta, mas elas aparecem como escolhas tcnicas (no-polticas) sobre quadros de referncias necessariamente limitados. E tambm chamei ateno para o fato de que as decises e escolhas polticas para o estabelecimento desses10 A Sociedade constituda em um processo simtrico da constituio da Natureza. Por razes de espao focalizei mais a ateno na constituio da Natureza (Latour, 1998). 11 Polanyi (1957). 12 Note-se como, pelo menos entre os americanos, tem apoio a ideia de difundir no Iraque uma democracia que no pode ser dissociada de um quadro de referncia que selecionou algumas, dentre infindveis, tcnicas e normas de escolhas e maneiras de conduzir a poltica, isto , de organizar as relaes de poder em uma sociedade. Embora soe um pouco estranho, os antroplogos sabem bem disto.

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quadros de referncia so ardilosamente apagadas. Alm disso, indiquei que estes quadros podem se estabilizar, mesmo que sempre temporariamente, mediante a incluso de f/atores antes ausentes. No exemplo corrente das aulas de economia dado anteriormente, a pesca no rio estar presente no quadro de referncia seguinte para a concepo e adoo de um processo de produo de tinta.13 Finalmente, o modelo de difuso da tecnologia reza que, aps algum tempo, a forma certa do objeto atingida, entendendo-se por forma certa aquela forma (artefato) determinada tecnicamente em um quadro de referncia composto de elementos da Natureza, incluindo a o Mercado Naturalizado. A adoo do modelo de difuso da tecnologia a postura que menos espao deixa para as engenharias brasileiras participarem das inovaes que poderiam provocar mudanas locais ou dar soluo aos problemas nacionais. Como decorrncia do modelo de difuso, Roberto Bartholo observa que as solues propostas so apresentadas como timas e o caminho que se trilha, como nico, ao mesmo tempo em que as propostas alternativas so desqualificadas como utpicas (p. 93). Sob a luz das engenharias, tais problemas podem ser expressos a partir dos artefatos e seus efeitos, avaliando as diferenas entre o Brasil e os pases do primeiro mundo que nos servem de modelo. No difcil constatar que a qualidade e a quantidade dos bens de consumo durvel so diferenciadas e no se igualam s oferecidas no primeiro mundo; os servios de transporte, informao e comunicao so inferiores e no se universalizaram;14 o operariado no se motorizou com o fordismotaylorismo no sculo XX; as condies de higiene, sade e educao continuam lamentveis no sculo XXI; etc. A lista de diferenas to longa quanto a procisso dos artefatos acima.

A externalidade (o afastamento das condies ideais do mercado) s desaparece mediante a incluso dos pescadores no quadro de referncia, o que s poderia acontecer atravs de uma negociao, um processo poltico real e inseparvel da atividade econmica, mas ignorado pela cincia econmica purificada que toma o quadro de referncia como dado e parte da. 14 Um estudo que faa mais do que a mera contagem do nmero de telefones celulares nas mos da populao brasileira, mesmo que aderente a quadros de referncia importados naturalizados, incluindo, por exemplo, o nmero de domiclios com acesso Internet e a capacidade dos canais de acesso, traz evidncias do despreparo do pas para a integrao eletrnica digitalizada. (Ripper, 2005).

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Mas o modelo de difuso da tecnologia induz ideia de que as prprias formas tecnolgicas (artefatos) nada tm a contribuir para buscar mudanas a partir dessas diferenas.15 Se as formas tecnolgicas que recebemos so as certas, pois so, geralmente, as vencedoras no primeiro mundo, ento no ser possvel procurar novas solues (e novas definies de problemas) em outras formas, pois o mais provvel que as outras formas estejam erradas. O modelo de difuso da tecnologia desalenta o desenvolvimento das engenharias brasileiras com a metfora do desenvolvimento tecnolgico como uma corrida por uma estrada de traado que ainda pode ser desconhecido, mas descoberto pela pesquisa porque est predefinido pela Natureza-Mercado Naturalizado. Colocada a competio nestes termos, os contendores da OCDE esto muito melhor preparados do que os engenheiros brasileiros. Melhor preparados sim, para desenvolver tecnologias certas nos quadros de referncia que os pases da OCDE constroem politicamente, mas apagam a poltica da histria quando apresentam o resultado sob a forma de um quadro de referncia naturalizado. Em outras palavras, os quadros de referncia que usamos trazem embutidos as negociaes e os processos polticos dos pases da OCDE, mas no as especificidades brasileiras. Ou seja, a desvantagem competitiva das engenharias brasileiras, no prprio Brasil, viria antes da inadequao dos quadros de referncia do que das deficincias locais. Ou talvez se possa dizer que uma importante deficincia das engenharias brasileiras no sentido de uma desvantagem em relao s engenharias do primeiro mundo, seja aceitar como universais, ou seja, como vlidos aqui, localmente, quadros de referncia locais da OCDE, que parecem universais porque as decises locais sociais e polticas, vividas no mbito dos pases da OCDE, so ardilosamente apagadas na construo modernista da cincia e da tecnologia.

15 A prpria descrio das situaes so tambm, elas prprias, em certa medida, expresses da adoo do modelo de difuso de tecnologia e de quadros de referncia naturalizados que importamos. A telefonia no se universaliza no Brasil porque a renda per capita baixa. Nesta frase admitem-se formas certas (naturais) tanto para o dispositivo comunicao (linha telefnica domiciliar) quanto para o dispositivo de medida econmica (renda per capita).

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O modelo de difuso da tecnologia nos induz a pensarmos que cada um dos elementos daquela procisso de novos artefatos que caracteriza a construo do mundo moderno chega ao Brasil j muito prximo de sua forma certa. O modelo de difuso da tecnologia induz o engenheiro brasileiro a acreditar que ele no tem muito mais a fazer do que pequenas adaptaes nas mquinas (tropicalizao). Os artefatos de modo geral chegariam aqui certos e, portanto, as razes para que as promessas da tecnologia no se cumpram aqui esto somente na nossa sociedade, na esfera social que est fora do mbito da atuao profissional do engenheiro. No demais repetir que a concepo/adoo de um quadro de referncia subentende incluso/excluso de f/atores, e que, portanto, um processo no qual tcnica e poltica se misturam. A poltica, e mesmo o ativismo poltico,16 esto includos nas disputas durante a elaborao dos quadros de referncia, mas no aparecem como atividades participantes que intervm e alteram o quadro de referncia resultante que ser apresentado como composto exclusivamente por elementos da Natureza, incluindo o Mercado Naturalizado (como parte do mundo das coisas-em-si, neutro, universal e purificado da poltica). Ento, qual a relao da recepo daquela procisso quase interminvel de fatos e artefatos modernos (iguais aos do primeiro mundo, mas que chegam aqui diferentes) com as engenharias no Brasil? A relao pode ser melhor visualizada se levarmos em conta que o ardil constitui-se justamente em apagar a atividade e as decises e escolhas polticas, deixando somente seus efeitos nos quadros de referncia que acompanham os artefatos tecnolgicos que nos chegam dos pases da OCDE que nos servem de modelo. Os Estudos de Cincia e Tecnologia (Science and Technology Studies)17

16 Os pescadores e/ou os compradores de peixe antes ausentes precisam se organizar e reivindicar sua presena no quadro de referncia, do contrrio continuaro ausentes. 17 J vejo a objeo de que os Estudos de Cincia e Tecnologia so tambm um quadro de referncia estabelecido no mbito da OCDE. inegvel que l que este campo tem mais se desenvolvido, mas isto no razo para rejeitar todos resultados que nele se estabelecem. Os efeitos de denunciar a neutralidade e a universalidade da cincia como construes ardilosas so diferentes l e aqui. Alm disto, os resultados no so expressos l da forma que fao aqui, nem esto voltados para as nossas questes.

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nos ensinam que, no mundo real, onde as coisas acontecem, onde vivemos, produzimos e reproduzimos, onde amamos e odiamos, a Natureza no se separa da Sociedade, so um. Mas os quadros de referncia dos modernos (europeus) definem a Natureza e a Sociedade e rezam que as questes tcnicas, da Natureza (as questes das coisas-em-si), no se misturam com as questes polticas, da Sociedade (questes dos homens-entre-si). Assim, as decises que tanto os empresrios brasileiros quanto as multinacionais tomam de quase nunca projetar, no Brasil, os artefatos que fabricam no pas seriam decises tcnicas, tomadas em um quadro de referncia j legitimado e mesmo naturalizado. Na prtica, as decises so tomadas numa convergncia de uma grande diversidade de f/atores.18 A questo das relaes entre as engenharias brasileiras e as diferenas entre o Brasil e o primeiro mundo ento : quais f/atores locais brasileiros transbordam dos quadros de referncia adotados ou permanecem externos (sofrem efeitos que so externalidades) a eles? A resposta diferente para os casos da Embraer, da Petrobras e das Comunicaes, do setor automobilstico e do farmacutico, da imprensa e do agronegcio, etc. Evidentemente, no h uma resposta uniforme, mas possvel indicar uma inclinao para responder a cada caso desta diversidade, que emprica. E esta inclinao aparece recursivamente ao longo deste livro. Roberto Bartholo ressalta que os novos paradigmas propiciam sim um novo espao de experincias, [...] e novos arranjos de compromisso, de conflito ou de colaborao sero institucionalizados numa perspectiva possibilista, no determinista (p. 85), no que acompanhado por Rogrio Valle que procura olhar para a massa de trabalhadores desempregados e subempregados desse pas no como um problema mas como uma possibilidade [...] diante de um desafio enorme: construir uma nova maneira de ver o trabalho (p. 83).

18 Para um empresrio brasileiro que no visa criao de uma marca internacional, pode ser mais barato licenciar um produto que j est no mercado da OCDE do que pagar engenheiros para desenvolv-lo aqui; para uma multinacional pode ser mais vantajoso agradar o governo no seu pas-sede mantendo l o trabalho qualificado do que fazer uso de engenheiros brasileiros, a quem poderia pagar menores salrios.

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Mas como compatibilizar a busca de novas possibilidades, supostamente muito mais interativas, com o espao universitrio? Como dar incio a um processo de mudana na estrutura de compartimentos isolados que a organizao departamental dos saberes universitrios, uma dupla falha no caso brasileiro? Uma vez falha porque, embora nenhuma deciso do mundo real possa ser tomada com os recursos de saber contidos em um destes compartimentos isolados, ela propicia que no plano terico, questes relativas crtica, interpretao, compreenso, ao dilogo, as linguagens no so familiares aos engenheiros no decorrer de sua formao, conforme aponta Michell Thiollent (p. 179). Uma segunda vez falha porque o processo histrico que criou estes compartimentos , grosso modo, o da construo do mundo moderno na Europa e estes compartimentos aqui chegaram, tambm grosso modo, por difuso. Roberto Bartholo fala em descobrir novas potencialidades latentes nas situaes cotidianas e renovada disponibilidade para a surpresa e o risco de descolonizar o futuro das efmeras certezas de hoje, certezas que estruturas interessadas de poder nos apresentam como perenes (p. 82). Considerando um novo espao de experincias, Jacqueline Rutkowski reafirma a ideia fundamental, embora j antiga, de que a extenso no transferncia ou simples transplante19 de conhecimento, mas , antes de tudo, criao e compartilhamento (p 185). Assim, ela rejeita o modelo de difuso e prope o abandono de procedimentos tcnicos profundamente arraigados e a alterao de procedimentos tradicionais de concepo de conhecimento, ao assumir que o tipo de inovao que ela busca supe um processo em que atores sociais interagem desde um primeiro momento para engendrar, em funo de mltiplos critrios (cientficos, tcnicos, financeiros, mercadolgicos, sociais etc.), frequentemente tcitos e s vezes propositalmente no codificados, um conhecimento que eles mesmos vo utilizar, no prprio lugar em que vo ser produzidos os bens e servios que iro incorpor-lo (p. 197). Michel Thiollent acompanha a inclinao, ao afirmar que pesquisa-ao pode ser considerada mais como estratgia de conhecimento ancorada na ao de que como simples com-

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Que seria uma operao difusionista.

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ponente da famlia de mtodos participativos (p. 174) e ainda que as atividades do cientista ou do engenheiro podem ser acompanhadas pela pesquisa-ao, juntamente nas relaes que se estabelecem entre reflexo e ao dentro dos mltiplos processos sociais de identificao e resoluo de problemas (p. 176). Finalmente, os prprios organizadores selecionam uma citao que sintetiza a inclinao: um dia a extenso ser apenas um mtodo aplicado tanto ao ensino quanto pesquisa (p. 35). Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2005.*

* [email protected]

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RefernciasCALLON, M., Ed. La science et ses rseaux gense et circulation des faits scientifiques. anthropologie des sciences et des techniques. Paris: ditions La Dcouverte/Conseil de lEurope / UNESCO, p. 215, anthropologie des sciences et des techniques ed, 1989. ____. The laws of the markets. Oxford; Malden, MA: Blackwell Publishers/Sociological Review, 1998. 278 p. LATOUR, B. Jamais fomos modermos ensaio de antropologia simtrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 152 p. ____. Cincia em Ao Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. So Paulo: UNESP, 1998. 439 p. LATOUR, B. e S. WOOLGAR. Laboratory life: the construction of scientific facts. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1986. 294 p. LAW, J. Power, action, and belief: a new sociology of knowledge? London; Boston: Routledge & Kegan Paul. 1986. viii, 280 p. p. (Sociological review monograph; 32) POLANYI, K. The great transformation. Boston: Beacon Press. 1957. xii, 315 p. RIPPER, M. D. Universalizao do acesso aos servios de telecomunicaes: o desafio atual no Brasil. In: A. C. Castro, A. Licha, et al (Ed.). Brasil em desenvolvimento 1 Economia, tecnologia e competitividade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. Universalizao do acesso aos servios de telecomunicaes: o desafio atual no Brasil, p. 517-545. SHAPIN, S; SCHAFFER, S. Leviathan and the air-pump: Hobbes, Boyle, and the experimental life: including a translation of Thomas Hobbes, Dialogus physicus de natura aeris by Simon Schaffer. Princeton, N. J.: Princeton University Press. 1985. xiv, 440 p. TRAWEEK, S. Beamtimes and lifetimes: the world of high energy physicists. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. 1988. xv, 187 p. WINNER, L. Do Artifacts Have Politics? In: L. Winner (Ed.). The Whale and the Reactor - A Search for Limits in an Age of High Technology. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. Do Artifacts Have Politics? p. 19-39.

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IntroduoSolidariedade tcnica:por uma formao crtica

no desenvolvimento tecnolgico Sidney Lianza Felipe Addor Vanessa Ferreira Mendona de Carvalho

Solidariedade tcnica a responsabilidade recproca, construda a partir do dilogo livre e qualificado entre os atores da sociedade, do Estado e do capital, que enseja o surgimento de inovaes sociais e tecnolgicas, visando ao desenvolvimento social e solidrio, baseado na paz, na democracia e na justia social. Toda escolha ou deciso tcnica constitui-se num indicador das relaes sociais e da cultura tcnica vigentes num dado territrio. Infere-se, da, que, em cada projeto, est implcita uma ideologia, expressa em um modelo tcnico, em uma concepo de tecnologia. So emblemticos, nesse sentido, os clssicos Princpios da administrao cientfica, de Taylor (1989), e Os princpios da prosperidade, de Ford (s/d), nos quais os autores mostram suas proposies de modelos tcnicos, universalmente conhecidos, e seus pressupostos polticos e ideolgicos para o desenvolvimento econmico e social dos Estados Unidos. Esses autores expressam, tambm, suas concepes sobre as relaes entre capital e trabalho consideradas mais adequadas aos modelos que buscavam implantar. Ford chegou a propor que fossem fundidas as organizaes de representao empresarial com as dos trabalhadores, afirmando que, por todos trabalharem, no haveria motivo para tal diviso. Haveria uma relao biunvoca entre tecnologia e desenvolvimento nacional, de um lado, e incluso social, de outro. Emerge, em nosso pas, uma agenda

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desafiadora, vistos os limites e possibilidades dessa utopia, a ser continuamente desenvolvida entre os atores sociais e o Estado brasileiro, com o processo de globalizao em curso, nesta terceira diviso internacional do trabalho. Acrescente-se ser imanente ao sistema de produo, comercializao e consumo capitalista vigente que apenas uma parcela minoritria da populao mundial possa usufruir dos bens e dos servios produzidos pela indstria e empresas dinmicas. Ilustre-se tal afirmao com a inslita e hipottica situao em que as centenas de milhes de cidados chineses maiores de 18 anos, habilitados legalmente para dirigir, pudessem, cada um, adquirir e usar um automvel. O modelo hegemnico de produo e consumo no sistema excludente e degradador do meio ambiente, posto no ter, na sua perspectiva de acumulao, a reproduo da vida como ponto central. H vrios setores da sociedade mundial caminhando pela reverso desse quadro perverso, por vezes utilizando-se da heterodoxia metodolgica e construindo o vetor de desenvolvimento tecnolgico tambm a partir do olhar da senzala, afastando-se da exclusividade da paisagem vista da casa grande. conceber e praticar , como objetivo central da tecnologia, a ampliao da qualidade de vida dos cidados, o desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimenses. Significa balizar a articulao das Cincias da Natureza, Matemticas e Sociais pelas relaes virtuosas nos arranjos produtivos locais, com a participao democrtica dos atores sociais, visando ao desenvolvimento local e regional sustentveis. Nessa perspectiva, deve-se encontrar equilbrio dinmico entre a tecnologia usada e que emerge no Brasil moderno e capitalista nas empresas dinmicas privadas e estatais e aquela que emerge do Brasil prmoderno, no-capitalista no cenrio da economia informal, da economia social, do trabalho, solidria e popular. Assim, pode-se compreender a inovao tecnolgica como um conceito ligado renovao dos valores da vida, como aprendizagem dos cidados e dos atores sociais, visando a um desenvolvimento humano em equilbrio com a natureza. Para tanto, a tecnologia deve operar com metodologias que propiciem fortalecer o dilogo interdisciplinar e denotar a utilizao da metodologia participativa como estratgia adequada para a elaborao de projetos que possibilitem metodizar a interao dos atores sociais na definio das resolues dos problemas socioambientais.

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Estado, responsabilidade social empresarial e economia social e solidria, nesses tempos de Globalizao, so conceitos que perpassam a construo de que o Outro Mundo Possvel e, consequentemente, as reflexes sobre o futuro da tecnologia no desenvolvimento social solidrio no Brasil e nos pases semiperifricos e perifricos. Nesse contexto, como deve atuar a Universidade para atender s demandas que a sociedade lhe coloca? Ser que ela est, atualmente, cumprindo com sua responsabilidade social de formao crtica?

A formao tcnico-crticaCristvam Buarque, crtico assduo da universidade brasileira, diz que o objetivo da universidade ampliar o horizonte da liberdade dos homens e usar esta liberdade para o enriquecimento da humanidade, especialmente para o enriquecimento cultural, espiritual e emocional de cada indivduo. Acredita que, para viver sua aventura de instrumento libertrio, ela deve buscar um avano tcnico que esteja comprometido com resultados distribudos de forma justa (Buarque, 1994) Porm, para o autor, o que acontece com a universidade brasileira que ela uma instituio que usa os meios errados, por mant-la presa ao passado e a realidades externas. Atualmente, ela se coloca com uma funo fundamental de transmisso de certezas enquanto as dvidas parecem ser desenvolvidas no exterior. Essa caracterstica das universidades brasileiras contradiz o que Buarque considera como o trabalho intelectual que consiste na necessria e constante subverso dos conhecimentos, das teorias, mtodos e concluses do processo de apreenso da realidade. ausncia de um processo de nacionalizao do ensino, de suas dvidas e certezas, soma-se um processo de elitizao do ensino superior, principalmente nas universidades pblicas, que comea com a facilitao de acesso s classes mais favorecidas economicamente, que possuem condies de oferecer ensino fundamental e mdio de melhor qualidade a seus filhos, e culmina na formao de profissionais alienados da realidade brasileira, prontos para adentrar a vida capitalista e fazerem parte do sistema neoliberal vigente. E o mais problemtico que no se v uma movimentao concisa e massiva de ajuste dessa direo.

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Wanderley (2002) coloca que, com as desigualdades sociais crescentes, o aumento do desemprego, do trabalho precrio e da pobreza, a elitizao universitria tende a se consolidar ou a se ampliar, levando em conta o contedo da formao proporcionada em cada curso, os temas de pesquisa selecionados, os servios prestados. Como afirma Ednio Valle, no mesmo texto (apud Wanderley, 2002), So o prprio ensino, pesquisa e extenso que esto submetidos s necessidades impostas pelas exigncias de uma suposta mundializao de ordem neoliberal. E o resultado disso, para Wanderley, que a maioria dos egressos vai compor o contingente daqueles que iro fortalecer o regime dominante, reproduzir o capitalismo e defender sua continuidade. Com essa postura, a Universidade se distancia da sociedade que a criou e que a sustenta, e fica cada vez menos comprometida com o desenvolvimento social do pas. No se vislumbra a possibilidade de torn-la um ator vital no processo de desenvolvimento, o que um disparate. A Universidade tem como dever procurar contribuir com o desenvolvimento do Brasil, buscando mudar o caminho do crescimento, retirando-o do sentido em que so acentuadas a desigualdade e a excluso social em troca de um leque amplo de benefcios a uma minoria. Deve conduzir o desenvolvimento por um novo caminho, no qual se procure o crescimento que represente a melhoria de qualidade de vida para toda a populao, sem privilgios a qualquer classe ou etnia. Vemos, ento, a necessidade da Universidade contribuir em minimizar os efeitos sociais excludentes da modernidade industrial, ou mesmo, conforme Buarque (1994), contribuir com a construo de uma nova conceituao sobre a modernidade necessria para a sociedade brasileira (Lianza, 1998). A Universidade brasileira deve refletir essa nova conceituao de modernidade e estudar quais aspectos devem ser considerados para se construir uma sociedade que fornea condies dignas de vida para todos, repensando o processo de desenvolvimento que est sendo levado no Brasil e interferindo nele, por conseguinte. O que se vislumbra no modelo atual uma secundarizao das pessoas, o que resulta em extremos de progresso e de bem-estar para uma parcela da sociedade, enquanto a grande maioria se depara com extremos de privao, pobreza e marginalizao social (Martins, 2002, p. 13). J foi muito defendido que o desenvolvimento econmico, o progresso, o crescimento trazem para todas as pessoas condies salutares de vida e bem-

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estar social. Porm, cada vez mais, se percebe que essa relao no de causa-efeito. Um crescimento desenfreado no representa, necessariamente, uma melhoria significativa para toda a sociedade, mas sim para uma pequena parcela desta. Morin (2002) defende isso com clareza ao colocar que, percebendo a dissociao entre a quantidade de bens produzidos e a qualidade de vida, rompemos com a falsa evidncia de que o crescimento econmico traz o aumento da qualidade de vida, constituindo o progresso. Conclumos, por vezes, que o crescimento pode produzir mais prejuzos do que bem-estar (Morin, 2002, p. 95). Inserido nessa problemtica, cada vez maior a responsabilidade do engenheiro, o qual foi historicamente guiado pela tcnica, pelos nmeros, pelas precises supra-humanas. Comea a se demandar desse profissional uma viso da sociedade em seu trabalho, uma abordagem sociotcnica, que possibilite Engenharia uma viso mais global da sociedade e das relaes sociais e ambientais imanentes s suas aes. O Editorial publicado na Revista da Engenharia, em agosto de 1955, mostra que essa alterao no se d de uma hora para outra, mas atravs de um longo processo de conscientizao, ao colocar que O engenheiro o indivduo que, aps longos anos de estudo, encontra-se preparado e habilitado para realizar os sonhos e os ideais, por meio de projetos e de execuo de obras, em todos os setores da vida humana. Entretanto, sobre os seus ombros pesa uma responsabilidade tremenda. No seu af de projetar e transformar um sonho em realidade, no deve unicamente se aprofundar no valor numrico da resistncia dos materiais, se deixar guiar pelo valor do dinheiro em economia de mo-de-obra e de material, ou mesmo de equipamentos, e at de espao, perdendo de vista seu objetivo, que o bem da humanidade. Como nos dizem Boltansky e Chiapello (1999), apud Valle (2003, p. 15), sobre as espetaculares e aceleradas inovaes tecnolgicas das ltimas dcadas que se assenta a nova e desatinada exigncia de uma acumulao ilimitada de capital. Nessa realidade de espetaculares e aceleradas inovaes tecnolgicas, a Engenharia apresenta-se como um dos protagonistas pela definio da direo das inovaes tecnolgicas de um pas. Recai sobre ela, em parte, o dever de tentar alterar essa realidade, sem, no entanto, deixar de inovar. Nas engenharias o foco das inovaes deve considerar mais fortemente, o seu entorno, procurando a priorizao das pessoas.

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Alm de mobilizar centenas de pessoas e inmeros recursos na construo de prdios comerciais, por que no mobilizar a mesma quantidade de pessoas e recursos para desenvolver novas formas, mais baratas e durveis, de construes populares? Afinal, estamos falando de um mesmo ambiente. Vizinhas aos arranha-cus das grandes cidades, esto favelas, que comportam milhares de pessoas. No final da cadeia produtiva da CocaCola, uma das maiores multinacionais do mundo, esto cooperativas de catadores de lixo, ou at catadores informais autnomos, que tentam garantir seu sustento catando e vendendo latas de alumnio usadas. No so dois mundos separados. So mundos distintos, mas que interagem e possuem forte dependncia. As inovaes tecnolgicas devem ser direcionadas de acordo com as necessidades encontradas na sociedade local. Os inovadores tecnolgicos devem buscar a criao do que Bartholo (1999) chama de tecnologias da sustentabilidade, um acervo de conhecimentos e de habilidades de ao para a implementao de processos tecnicamente viveis e eticamente desejveis. Elas dizem respeito tanto a processos de produo e circulao do produto, como a modos de organizao social, padres de ganho e processamento de informaes (Bartholo, 1999, p. 32). Felizmente na frente poltica, tem-se presenciado movimentos, visando a uma mudana desta realidade, apesar disso muitas vezes no representar uma ao efetiva. Nas novas diretrizes do ensino superior, o texto Cincia & tecnologia para o desenvolvimento sustentvel, da Agenda 21, mostra a relevncia que est se dando a este tema: As tecnologias da sustentabilidade so tecnologias de processos e produtos, no se configurando como unidades isoladas, mas como sistemas totais, que incluem conhecimentos tcnicos e cientficos, bens e servios e equipamentos, assim como os procedimentos de organizao e manejo, devendo ser compatveis com as prioridades socioeconmicas, culturais e ambientais nacionalmente determinadas. E o que deve ser mais valorizado, nessa proposta, exatamente a importncia dada relevncia das novas tecnologias para a sociedade, como reforado num outro trecho do mesmo documento: No mbito da poltica de C&T para a sustentabilidade, os critrios de avaliao de desempenho devem necessariamente vincular a excelncia com a relevncia (grifo nosso).

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Este documento de planejamento do Governo est tentando vincular a atuao universitria com as necessidades sociais, defendendo que as novas tecnologias no devem ser s avaliadas por serem de ponta, mas por estarem atendendo a demandas que o pas apresenta no momento. O meio pelo qual os pesquisadores obtero as informaes mais fidedignas quanto s necessidades da populao estando l. E isso s se consegue por um consistente programa de apoio extenso universitria.

A extenso: o agir e o refletirA extenso uma fora importante no trip fundamental do ensino universitrio: ensino-pesquisa-extenso. Porm, infelizmente, muitas vezes ela relegada a segundo plano e grande parte dos acadmicos ainda limita sua atuao ao ensino e pesquisa. Esse posicionamento nos possibilita comparar essas instituies a condomnios residenciais, onde seus moradores so rodeados de equipamento de segurana, com medo da sociedade. Vivem num mundo parte, isolandose do mundo real; ignoram, ou fingem ignorar, todas as mazelas existentes sua volta. Esses acadmicos retiram-se da responsabilidade intrnseca de estudar para entender o mundo e nele agir. Definem como objetivo profissional o reconhecimento entre os pares, a fama internacional, e se esquecem da sociedade que os sustenta. Desvirtuam plenamente a funo e o sentido do saber: o saber j no para ser pensado, refletido, meditado, discutido por seres humanos para esclarecer sua viso de mundo e sua ao no mundo, mas produzido para ser armazenado em bancos de dados e manipulado por poderes annimos (Morin, 2002, p. 120). O papel da extenso, portanto, o de socializao dos conhecimentos desenvolvidos na Universidade. o nico meio pelo qual se pode expandir o campo de influncia desta, no se limitando apenas s pessoas que a frequentam. No incio de sua histria, a extenso tinha o papel de persuadir elementos do povo [...] para a substituio de seus conhecimentos por outros (Carneiro, 1996). Ela estava inserida no entendimento de que a universidade possui a verdade e que esta deve ser transferida para a sociedade. A relao universidade-sociedade era plenamente vertical, na qual a primeira transmitia para a se-

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gunda a verdade, o saber, e a segunda deveria, acriticamente, aceitar este saber. Existia uma diviso entre os que detm o saber e os que no o tm. Qualquer coisa que viesse da sociedade era desconsiderada. No poderia haver saber. No se considerava o que hoje conhecemos por saber popular. Atualmente, uma outra viso de extenso se apresenta fortemente. Uma viso que identifica esta interao com a sociedade como um processo de duas vias, havendo, portanto, uma troca de conhecimentos e saberes, que se beneficiam mutuamente. O estudo e a pesquisa agora passam a se basear na realidade, na ao. Carneiro (1996) defende que para que a instituio de produo do conhecimento transforme os objetos de suas pesquisas em algo relevante para a sociedade e, tambm, procure adequar seu ensino s necessidades dessa mesma sociedade, ser necessrio o contato com problemas efetivos daqueles que a sustentam por meio dos impostos. Isto , s a extenso capaz de dar ao ensino e pesquisa universitrios a verdadeira identificao com a sociedade. E o auge desse processo atingido quando A realidade passa a ser vista como ponto de partida e de chegada do ato cognoscitivo, atravs do questionamento dela por sujeitos (Carneiro, 1996, p. 13). Isto , a ao a origem e o objetivo da reflexo crtica. Atualmente, mais difundida essa ideia da dialogicidade da extenso. Segundo o Plano Nacional de Extenso Universitria, a extenso o processo educativo, cultural e cientfico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissocivel e viabiliza a relao transformadora entre Universidade e sociedade, [...], uma via de mo-dupla, [...] um trabalho interdisciplinar que favorece a viso integrada do social (Frum de Pr-Reitores de Extenso das Universidades Pblicas Brasileiras, Plano Nacional de Extenso Universitria). Buarque (1994) concorda que esta atividade pode trazer benefcios tanto para a universidade quanto para a sociedade, dizendo que ela leva conhecimento ao alcance da maioria da populao e permite aos alunos e professores descobrir uma realidade social que no conhecem. Alm disso, ela tem um importante papel de garantir a legitimidade da universidade frente sociedade, como diz neste trecho: as principais formas de legitimao da universidade so o respeito que lhe vem da qualidade de seu produto e a proximidade com a populao externa por atividades de extenso (Buarque, 1994, p. 137).

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Por isso, a extenso no deve ser encarada como uma atividade parte do ensino e da pesquisa. Como defende Thiollent (2000), ela deve estar diretamente vinculada s linhas principais dos programas de pesquisa e de ensino, no se colocando separadamente. Ou como profetiza Buarque (1994, p. 137): um dia, a extenso ser apenas um mtodo, aplicado tanto ao ensino quanto pesquisa. O Plano Nacional de Extenso prope a retirada desta atividade do carter de terceira funo, classificando-a como uma filosofia, ao vinculada, poltica, estratgia democratizante, metodologia que deve se integrar s outras atividades do ensino superior, visando a realimentar o processo ensinoaprendizagem como um todo. O que importante, nos projetos de extenso, representar uma continuidade das aes de ensino e pesquisa e trazer um retorno para essas. Eles devem ser realizados com uma metodologia que possibilite, aos estudantes envolvidos, um aprendizado acadmico real. Como diz Carneiro (1996), essa produo de conhecimentos novos, a partir do conhecimento de mundo imediato de cada um dos sujeitos frente ao desvelamento da realidade, ter alguma validade, se for processado criticamente, sem imposio ou memorizao. Essa metodologia, se adotada de forma incorreta, pode no trazer os benefcios desejados. Podemos dar o exemplo dos estgios. Muitos universitrios realizam, em paralelo faculdade, estgios em empresas. Como uma atividade de extenso, ela importante para a complementao do aprendizado do aluno. No entanto, o que se percebe que, em grande parte deles, no h qualquer orientao e superviso, levando o estudante a realizar tarefas que nada agregam sua formao. Tornam-se apenas mo-de-obra barata para as empresas. Thiollent (2000) defende que a metodologia para projetos de extenso deve ser orientada por princpios metodolgicos participativos. Para ele, o respeito a uma metodologia participativa pode trazer diversos benefcios, pois capacita os atores envolvidos, potencializa o esprito crtico, melhora a interao entre participantes da populao e da Universidade, possui uma postura tica, visa a um tipo de emancipao, com discusso e autonomia dos participantes, e mobiliza mais fortemente a comunidade. Uma sistematizao feita por Simoni (2000) esclarece o que se sugere como diretrizes de atuao para um pesquisador, quando em um projeto de extenso.

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A primeira diretriz refere-se ao conhecimento emprico contextualizado. preciso ir a campo para desvendar a realidade que se quer analisar: preciso ir l para ver. A segunda diretriz cabvel a necessidade de participar da vida da comunidade que se est pesquisando. fundamental se despir da mscara de pesquisador para compartilhar das experincias vividas por aquele povo: preciso ir l para viver. Por ltimo, necessrio passar por uma mudana de viso das situaes. Depois de j ter vivido naquele contexto, conseguir colocar-se no como estudioso, mas com a viso da populao: preciso ver com os olhos dos outros. Quando coloca essas diretrizes, Simoni apresenta uma forma de fazer pesquisa que valoriza a interao com o grupo estudado, rompendo barreiras entre a comunidade e o pesquisador. Ver a realidade com os olhos dos outros, alm de dar maior consistncia aos resultados do projeto, representa uma influncia sensibilizadora na viso de mundo, tanto dos professores quanto dos estudantes. A extenso tem, portanto, o papel de conscientizar professores e alunos de suas responsabilidades para com a sociedade. A possibilidade de contato direto com comunidades carentes pode interferir diretamente na direo profissional a ser seguida pelos estudantes. Enquanto eles se mantiverem dentro dos muros das universidades, aprendendo teoremas e ferramentas no aplicados, discutindo tomada de deciso de estudos de caso de grandes empresas multinacionais e analisando estatisticamente o futuro da macroeconomia brasileira, sua sensibilidade quanto possibilidade de ajudar pessoas carentes no ser atiada. preciso coloc-los para fora da instituio. Abego (2002), em sua tese de doutorado, analisa bem isso. Ele se utiliza de Lvinas (apud Abego, 2002, p. 82) para trazer a teoria da epifania do rosto. Segundo essa teoria, o sentimento de responsabilidade para com o Outro se d quando o sujeito estabelece uma relao dialgica com ele; quando se depara com sua vulnerabilidade, sua fraqueza e humanidade. Esse o acontecimento que cessa o egosmo. no acontecimento da epifania do rosto que criada a responsabilidade incondicional pelo Outro, quando se assume o sofrimento do Outro, independente de qualquer perspectiva de reciprocidade (Abego, 2002, p. 84). Isso refora a ideia de que a extenso, quando envolve comunidades mais pobres, pode ter tambm uma funo sensibilizadora e conscientizadora dos alunos para a sociedade brasileira.

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Nesse sentido, Andrade e Chateaubriand (2004, p. 1462) realizaram uma anlise sobre os resultados acadmicos obtidos por alunos que se envolveram em atividades de extenso. Ressaltaram como benefcios: melhoria na qualidade dos trabalhos acadmicos; maior dedicao ao curso de graduao; maior interesse em continuar seus estudos indo para a ps-graduao; crescimento da elaborao de artigos e da participao em eventos tcnicocientficos; melhor compreenso do funcionamento da universidade; crescente segurana e independncia profissional; maior aptido para pensar o ideal e realizar o possvel, considerando as restries de recursos; satisfao em contribuir para melhoria da condio de vida de pessoas menos favorecidas; maior compreenso dos problemas ambientais; melhor dilogo com diferentes profissionais e comunidades; busca de superao do individualismo em favor do bem comum. Como podem ser vistas, nessa anlise, as possibilidades de benefcio a serem tiradas da extenso atingem no s a formao acadmica, como tambm a futura atuao profissional dos estudantes, como est sendo experimentado na construo do Ncleo de Solidariedade Tcnica, SOLTEC/UFRJ, um grupo de ensino, pesquisa e extenso, voltado para o desenvolvimento social e solidrio. Essa experincia est melhor relatada no Anexo.

Te c n o l o g i a e o d e s e n vo l v i m e n t o s o c i a l e solidrio em captulosCom a elaborao deste livro, procuramos colocar em discusso, por meio de artigos de diversos especialistas, os principais temas envolvidos na questo da tecnologia e do desenvolvimento social do pas. Sem procurar aprofundar um assunto especfico, colocamos a opinio de estudiosos sobre vrios conceitos, hoje muito trabalhados, como: relaes de trabalho, desenvolvimento local, economia solidria, gesto social. Na primeira parte do livro, Engenharia e desenvolvimento social, Raymundo de Oliveira e Carlos Lessa procuram introduzir a importncia da tecnologia no desenvolvimento do pas. Dando maior nfase ao papel do engenheiro, os dois autores reforam a necessidade de construo de uma engenharia genuinamente brasileira, com nossas razes, orientada a partir de projetos nacionais.

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Ambos ressaltam que devemos quebrar a dependncia das tecnologias vindas de outros pases e glorificam o potencial que nossa tecnologia possui. Porm, concordam que, para se construir uma base tecnolgica slida no pas, deve ser dada maior nfase qualidade dos ensinos fundamental, mdio e superior. Na parte seguinte, Trabalho: crise e possibilidades, Rogrio Valle, Roberto Bartholo e Ciro Torres discutem o trabalho no mundo moderno. Valle defende uma revalorizao do trabalho, com um programa de polticas sociais que aproveite os recursos que sobram no pas: terra e trabalho. Bartholo analisa o novo modelo de relaes trabalhistas nas empresas, com as redes informacionais substituindo as pirmides organizacionais, e argumentando que o desemprego no uma consequncia inevitvel do desenvolvimento e pode ser combatido. Por fim, Torres discute a relao das empresas com a sociedade, apresentando o histrico da Responsabilidade Social Empresarial, surgindo num contexto de substituio do papel do Estado (Mercado de Bem-Estar Social), e como as empresas encaram esse movimento. Na terceira parte, Desenvolvimento local e economia solidria, Ana Clara Torres, Farid Eid, Andra Pimentel e Paul Singer discutem alternativas de desenvolvimento igualitrio ligadas ao desenvolvimento local e economia solidria. Ana Clara Torres ressalta o crescimento de polticas de desenvolvimento local, em detrimento ao mbito nacional antes priorizado, e levanta a importncia de se considerarem os valores locais (a arte de resolver a vida) e de se utilizar a tcnica de forma menos instrumental e mais respeitosa com as caractersticas de cada comunidade. Eid e Pimentel discutem o modelo de desenvolvimento, que no deve ser orientado por um padro instrumentalista/urbanista, abordando termos como desenvolvimento local e rural, e apresenta a fora que a economia solidria pode possuir, no estando limitada a uma economia de pobres para pobres. O economista Singer defende a autogesto como a nica forma de introduzir a democracia na economia e apresenta o trabalho da Secretaria Nacional de Economia Solidria, propondo um modelo de desenvolvimento solidrio. Em Cidadania, participao e gesto social, Fernando Tenrio, Michel Thiollent e Jacqueline Rutkowski debatem a participao e a cidadania como conceitos inerentes a um novo modelo de desenvolvimento social. Tenrio discute o conceito de gesto social, que pode ser aplicado tanto a instituies

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da sociedade civil quanto a rgos governamentais e privados, e ressalta a importncia da conscincia de cidado da sociedade para que ela interfira nos processos decisrios das polticas pblicas. Com foco na questo metodolgica, Thiollent discute a utilizao de metodologias participativas em projetos sociais, em comunidades urbanas ou rurais, ressaltando o papel da universidade nestes e atentando para os riscos de imposio de tcnicas, por parte dos pesquisadores, que desconsideram a cultura local. Por ltimo, Jacqueline apresenta as tecnologias sociais como forma de promover um desenvolvimento solidrio, includente e igualitrio, diferenciando-as das tecnologias convencionais, e nos conta sobre a criao, pelo Governo Federal, da Rede de Tecnologias Sociais. A ltima parte do livro, Experincias de inovaes sociais e tecnolgicas, tem como objetivo apresentar casos de projetos nos quais a tecnologia age em funo da gerao de trabalho e renda e promoo dos diretos humanos, almejando a construo de um novo modelo de desenvolvimento. Primeiro, a equipe de pesquisadores do SOLTEC/UFRJ descreve o Projeto de PesquisaAo na Cadeia Produtiva da Pesca em Maca, destacando os procedimentos metodolgicos utilizados para o envolvimento dos atores sociais locais e de atores intervenientes. Antonio Cludio Souza, Rejane Gadelha e Ricardo Graa apresentam o caso do Projeto Minerva, projeto de incluso digital do Departamento de Engenharia Eletrnica da UFRJ que trabalha em escolas pblicas. Isaac Volschan descreve os resultados de um projeto, em parceria com o Governo do Estado, de desenvolvimento de estudos e projetos para o saneamento ambiental de reas urbanas no Estado do Rio de Janeiro. Finalmente, Paulo Leboutte discute o nascimento do movimento da economia popular solidria e relata a criao da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da COPPE/UFRJ e os seus princpios de atuao.

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Esta seo discute a importncia da participao da Engenharia na construo de um projeto de desenvolvimento nacional e a responsabilidade deste estar alinhado a uma estratgia de incluso social, promoo dos direitos humanos e gerao de trabalho e renda. Propomos que os engenheiros e todos os profissionais da rea da tecnologia estejam comprometidos com um metaprojeto para o desenvolvimento econmico, social e tecnolgico do pas, que esteja de acordo com suas necessidades e potencialidades especficas. Carlos Lessa demonstra, no primeiro artigo, a evoluo da Engenharia na histria e a sua relao com o desenvolvimento social do pas. O autor destaca diversos momentos da histria do pas, como a construo de Braslia e a fundao da Petrobras, e apresenta possibilidades e potencialidades futuras da engenharia na construo de uma estratgia para o crescimento e o desenvolvimento da Nao. Ressalta, ainda, a necessidade de mobilizao dos engenheiros na identificao e criao de projetos desta magnitude. No segundo artigo, Raymundo de Oliveira explica a importncia da pesquisa e da criao de um rumo tecnolgico prprio para o pas. Ele destaca o papel da educao e das universidades como estratgia poltica para avaliar a direo tcnica do pas e formular diretrizes para o desenvolvimento de tecnologias que agreguem valor s atividades produtivas, diferenciando o caminho tecnolgico seguido pelo Brasil a partir da consonncia com as suas caractersticas.

Pedro Rodrigues Galvo de Medeiros, integrante do SOLTEC/UFRJ.

A Engenhariano desenvolvimento nacional*

Carlos Lessa

Vou me permitir dissertar sobre o tema Engenharia e desenvolvimento social, fazendo um retorno na histria, retrocedendo a antes do sculo XIX, quando o sonho do conhecimento era o Epstoles. O que era o Epstoles? O Epstoles dado ao homem conhecer. A postura de quem buscava o conhecimento era epistemolgica, ou seja, era de observar. O conhecimento representava a acumulao de saberes que iam sendo obtidos pela observao. No havia, entre esse saber obtido pelo exerccio epistemolgico e a vida, ligaes fortes. Podiam existir algumas ligaes, que eram aquelas que estavam relacionadas reproduo do cotidiano, no qual quem sobrevivia era aquele que repetia ritualmente gestos, procedimentos, ou seja, na linguagem atual, tcnicas, que eram consagradas por atos multipluginrios. Na verdade, no so nem sequer repertoriados com muito cuidado o ato de plantar e o ato de cavar. Era matria considerada menor, que pertencia a um saber universal, slido, consagrado e dispensvel para a postura epistemolgica. Todos falam da Revoluo Industrial, mas ela se move junto com a Revoluo do Conhecimento, na qual a postura epistemolgica passou a ser uma etapa do processo, e no mais o centro, o resumo e o espao restrito do* Texto baseado na palestra proferida por Carlos Lessa, no encontro Engenharia e Desenvolvimento Social, realizado pelo SOLTEC na UFRJ, em 13 e 14 de maio de 2004.

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conhecimento. Houve um momento em que passou a aparecer a ideia do fazer. O fazer a projeo de que o homem pode fazer. Pode fazer o qu? Na Engenharia, ele pode fazer o espao, ou seja, o homem pode modificar o espao, pode desviar rios, pode construir represas, pode aterrar pntanos, pode dissecar pntanos, pode construir ligaes entre uma ilha e um continente, pode ter a uma projeo do continente, e por a vai. a ideia de fazer o espao. Mas a descoberta avana quando o homem se torna capaz de fazer substncias. E at o sculo XVIII, o pensamento qumico imaginava que tudo que ns conhecemos por qumica orgnica tinha interferncia de alguma coisa que era uma essncia vital. A substncia da qumica orgnica no podia ser produzida em laboratrio. Com a sntese da uria que, se eu no me engano, do comeo do sculo XIX se produz, em laboratrio, a primeira substncia qumica. A, muito rapidamente, o homem se descobre capaz de produzir novas substncias. A cadeia de carbono permite tantas manipulaes, que possvel criar novas substncias. Da mesma forma, acontece com os elementos, que eram apenas aqueles consagrados. At que, com a fsica atmica, o homem se descobre capaz de produzir novos elementos. E a caminhada prossegue, e o homem, de repente, comea a se descobrir capaz de produzir novos seres vivos com a descoberta do ADN (cido desoxirribonuclico, DNA em portugus1). Agora, por exemplo, os japoneses esto evoluindo para dispensar os homens: voc clona rata com rata e daqui a pouco os ratos sero dispensveis. A ideia do fazer coloca o profissional do fazer, que basicamente o engenheiro, ante um espectro de infinitas possibilidades. Quanto mais se multiplica a ideia de que o homem faz, mais existir um profissional que ajuda a organizar a sequncia, os elementos, os tamanhos, as propores, as dosagens etc. para o fazer. por isso que a Engenharia vai, como uma espcie de universo em expanso, se recortando e criando tantas engenharias quantas sejam as possibilidades e potencialidades do esprito humano. No mesmo momento em que houve uma revoluo cientfica, que tem um sinal tecnolgico particularmente importante para a profisso do engenheiro, e em que a ideia da busca dos princpios e das grandes interrogaes comea a diferenciar de maneira muito clara o exerccio da Cincia do exerccio da aplicao, da tcni1

Nota dos organizadores.

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ca, na qual est a Engenharia, existe tambm uma outra descoberta, uma outra instituio, que a ideia de Nao. A ideia de Nao uma ideia da virada do sculo XVIII para o XIX. Ela no existe na Antiguidade. Na Antiguidade, existia a ideia de povo nacional, s vezes. Mas existia muito mais forte a ideia de linhas sucessrias e de lealdades verticais, que, em ltima instncia, se reportavam ao chefe da tribo, fosse ele caudilho, fosse ele escolhido por algum procedimento consensual ou fosse ele dinstico. Mas era muito mais tribal a relao, muito mais vertical. A territorialidade no era o elemento mais forte dessa relao. com a Revoluo Francesa que a ideia de povo nacional se combina com a ideia de territrio. E a combinao de povo e territrio d a ideia da Nao Moderna, que organizada por uma vontade que vem dos antepassados e projeta-se para os sucessores. A ideia de Nao uma ideia absolutamente fundamental, porque a ideia do fazer foi ficando cada vez mais circunscrita e amplificada pela ideia da Nao. No me surpreende que o pensamento nacionalista brasileiro, sendo ele de fortssima inspirao positivista, tivesse dado origem a dois clubes, o Clube de Engenharia e o Clube Militar, que foram decisivos para a ideia da construo do projeto nacional. E a verdade que a ideia do projeto nacional o princpio organizador da escolha poltico-estratgica quanto ao futuro. Os maiores feitos da Engenharia brasileira esto associados ideia de projeto nacional, e a maior contribuio dos engenheiros para o Brasil no se deu pelas grandes obras que foram feitas, mas pela coeso que tiveram com respeito ideia de um projeto nacional. Alis, um engenheiro dispensvel quando no h projetos nacionais. Eu, como me considero neonacionalista e neopopulista e o digo para escandalizar, porque as duas palavras so consideradas fora de moda e esto estigmatizadas , acho que fora da no h salvao. Infelizmente no se criou o espao mundo como espao unificado institucional. Pelo contrrio, os fatos no me deixam mentir. Est a o mundo vivendo situaes de prepotncia, de violncia e de retrocesso no marco da regulao institucional. O direito norteamericano j se sub-roga o direito de prender fora dos Estados Unidos, de manter sem julgamento prisioneiros de outros povos em territrios no-americanos, que so os prisioneiros em Guantnamo, sem denncia, sem processo, sem nada. Na verdade, uma derrogao das instituies mundiais. Nesse

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caso, estamos fora da Nao. E Nao o povo nacional. Ento, neonacionalismo e neopopulismo representam as bandeiras e as palavras mais atuais possveis neste milnio. Mas eu no vou me envolver no terreno s da Nao. Quis sublinhar isso, porque acho que a ideia de Nao est muito fora do discurso atual brasileiro e dos debates, o que acho um erro monumental, pois se perde o fundamento, se perde a referncia. Quero tomar a viso do Brasil enquanto sociedade que formulou um projeto nacional, no qual comea a aparecer a Engenharia. Quero transportar-me no tempo, um pouco com base nisso, para chegar ao tema do desenvolvimento social. Comearia fazendo a reconstruo da trajetria de uma ideia-fora, que foi uma ideia de projeto nacional brasileiro recorrente, que aparece j nas recomendaes do Patriarca Jos Bonifcio. Jos Bonifcio tinha muito o jeito de engenheiro. Ele no era bem engenheiro, pois a especialidade dele era numerologia e metalurgia, mas como Diretor de Inspetoria de Obras em Portugal, fez planos tipicamente de engenheiro. E nas indicaes que fez como Patriarca, est l a recomendao muito forte para que o Brasil fizesse sua capital no interior. E propunha algum ponto s margens do Rio So Francisco. Em 1852, estando em Porto Seguro, Vanhargen produziu um documento histrico chamado Memorial Orgnico, no qual prope que o Brasil faa sua nova capital num tringulo no Planalto Central, sendo que uma das extremidades era a atual cidade goiana de Formosa, que vizinha do Distrito Federal atual. Vanhargen defendia essa localizao sob o seguinte argumento: o local do territrio brasileiro onde os formadores do So Francisco, do Amazonas e do Paran-Paraguai tinham o seu ponto de maior proximidade. ainda uma reminiscncia da ideia da ilha Brasilis, uma ideia desenvolvida pelos portugueses, visando a preservar as margens de dois grandes esturios. O esturio do Amazonas e o esturio do Prata foram capazes de definir uma imensa ilha que seria o territrio lusitano no Novo Mundo. Estou lembrando isso porque existem brasileiros que acham que a Amaznia pode ser entregue, porque ns somos maus gestores da Amaznia, em nome da humanidade, e essa tese j se apossou