STEINBERG Leo a Arte Contemporanea e a Situacao Do Seu Publico

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Transcript of STEINBERG Leo a Arte Contemporanea e a Situacao Do Seu Publico

  • ( "I ~ o Dehllles I )1111111111 por ], Guinsburg

    Pquip! d!'! rrnli:rn,ilo Trnduo : Cecllin Prnda e Vera de (limpo ' Iolrdo; Rl'vishO ' MIII y Amazonns Leite de Barros; (111'11 Moy l 1I1111111~1l'11I

    gregory battcock A NOVA ARTE

    ~\\II~ ~ ~ EDITORA PERSPECTIVA ~/\\~

  • Ttulo do original ingls:

    The New Art

    E. P. Dutton & Co., Inc. New York, 1973

    2.' edio, maio 1986

    Direitos em lngua portugue~a reservados EDITORA PERSPECTIVA S . A . Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025 Telefone: 288-8388 01401 - So Paulo - Brasil 1975

    Prefcio Introduo

    A NOVA ARTE

    9 15

    1. O Fim de uma Era - Dore Ashton 23 2. Humanismo e Realidade: Thek e Warhol

    - Gregory Battcock ................ 35 3. Gerao Warhol - Gregory Battcock ... 45 4. Jasper Johns: Histrias e Idias - John

    Cage .............................. 53 5. O Ato Criador - MareeI Duchamp ..... 71 6. O Pblico de Arte e o Crtico - Henry

    Geldzahler ........... ,............. 75

  • E. Goossen ........ 85 95

    107 lU

    I I 113 I I . Novei RlIlllos da Pintura Americana -

    S.1I11 II unlcr ........................ 133 1 I . ()lIl'lII I r Explorar Novamente a Arte de

    ('ollslruir? - Ada Louise Huxtable ..... 145 1 \, Por um Teatro de Dana Transliteral e

    Transtcnico - Kenneth King ......... 151 14. Antiarte e Crtica - Allen Leepa ...... 161 1 S O Dilema - Lucy Lippard ............ 177 1 h. Marxismo e Homem Esttico - Howard

    Press .............................. 191 1 7. Escritos - Ad Reinhardt ............ 203 1 8. Desestetizao - Harold Rosenberg .... 215 19. A Nova Arte - Alan Solomon ........ 225 20. A Arte Contempornea e a Situao do seu

    Pblico - Leo Steinberg ............. 241 21. A Estrutura da Cor - Marcia Tucker . .. 263 22. Arte: Energia e Ateno - William S.

    Wilson IH ......................... , 281

    Para C. N ,

    I

  • em ser, de maneira inquestionvel e otimista. A sua preocupao com a qualidade da experincia e com a condio humana reflete um otimismo que contrasta absolutamente com a desconfiana que qualquer apelo nossa intuio e s correntes mais profundas de nos-sos sentimentos parece sempre provocar em ns. Es-taremos, talvez, com medo de diminuir nossas defesas e deixar que a vida se transforme em Arte? O pro-blema parece afetar a segurana de nossos valores mais caros. O artista contemporneo est nos arrastando atravs de uma revoluo esttica de enormes ramifi-caes no mundo ps-freudiano, em que nossas idias fundamentais sobre Arte, beleza, a natureza da expe-rincia, a funo dos objetos, tudo deve ser reconsi-derado em termos substancialmente novos. Esta no uma aberrao menor, um interldio que passar com uma mudana de gosto. Esses novos artistas podem estar somente nos apontando o caminho, mas estamos entrando num mundo novo, em que a arte antiga no pode mais funcionar, como acontece com a velha tecnologia. A nova arte pode no fornecer respostas, mas est certamente levantando questes de cujas conseqncias no podemos fugir.

    240

    20. A ARTE CONTEMPORANEA E A SITUAO DO SEU PBLICO *

    Por Leo Steinberg

    Leo Steinberg muito conhecido em Nova York por suas conferncias no Metropolitan Museum. Nascido em Moscou transferiu-se, juntamente com a famlia, quando ainda criana: para Berlim e Londres e, depois da Segunda Grande Guerra, estabeleceu-se em Nova York. Este artigo baseia-se na pri-meira de uma srie de conferncias pronunciadas pelo Pro-fessor Steinberg no Museum of Modem Art de Nova York na primavera de 1960. P: Professor Associado de Arte no Hunter College.

    Copyright @, 1962, de Harper's Magazine Inc. Reproduzido com a permisso do autor.

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  • Algumas palavras em defesa do meu assunto, porque alguns amigos expressaram dvidas sobre a validade de abord-lo. Um pintor abstracionista muito conhecido, disse-me: "Oh, o pblico, estamos sempre nos preocupando com o pblico". Outro, perguntou: "Qual a situao em que o pblico parece estar? Afinal, a Arte no tem necessariamente de ser para todos. Ou as pessoas a compreendem e podem apre-ci-la; ou no a compreendem e, neste caso, no ne-cessitam dela. Portanto, qual o problema?"

    Bem, tentarei explicar qual, na minha opinio, o problema, e antes de mais nada, de quem o pro-blema. Em outras palavras, tentarei definir o que entendo por "pblico".

    Em 1906, Matisse exps um quadro que chamou de A Alegria de Viver (atualmente na Barnes Founda-tion em Merion, na Pennsylvania). Foi, como agora sabemos, um dos quadros que mais abriram caminhos neste sculo. O tema era uma bacanal fora de moda - figuras nuas, ao ar livre, estendidas na grama, dan-ando, ouvindo msica ou faiendo amor, apanhando flores e assim por diante. Era o seu empreendimento mais ambicioso - o maior quadro que at ento tinha pintado - e encolerizou muita gente. O mais colrico de todos foi Paul Signac, um eminente pintor moderno que era o vice-presidente do Salo dos Independentes. Por seu gosto teria excludo o quadro e a sua exposio s6 foi realizada porque naquele ano Matisse fazia por acaso parte do comit, no tendo, por conseguinte, o seu quadro de ser submetido a jri. Mas Signac es-creveu a um amigo o seguinte: "Parece que Matisse ficou louco. Sobre uma tela de dois metros e meio, delineou algumas personagens estranhas com um trao da espessura de um dedo. Depois, cobriu toda a coisa com uma tinta lisa, bem definida, mas que, no entanto, repele. Lembra as vitrines multicoloridas dos nego-ciantes de tintas, vernizes e artigos domsticos".

    Cito este caso unicamente para sugerir que Signac, um reputado pintor moderno que durante muitos anos pertencera vanguarda, naquele momento tomava-se parte do pblico de Matisse, agindo como membro tpico desse mesmo pblico.

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    Um ano mais tarde, Matisse foi ao estdio de Picasso para conhecer o seu ltimo trabalho, Les De-moiselles d' A vignon, atualmente no Museum of Mo-dem Art de Nova York. Este quadro, como sabemos, foi outro precursor da arte contempornea; e desta, vez foi Matisse quem se encolerizou. O quadro, disse, era um ultraje, uma tentativa de ridicularizao de todo o movimento moderno. Jurou que "afundaria Picasso" e que o faria arrepender-se de sua brincadeira de mau gosto.

    Parece-me que Matisse, naquele momento, agia tipicamente como um membro do pblico de Picasso.

    Tais incidentes no so excepcionais. Ilustram a regra geral de que, toda vez que aparece uma arte verdadeiramente nova e original, os primeiros a denun-ci-la, e gritando mais, so os artistas. Obviamente, porque so os mais engajados. Nenhum crtico, ou burgus ultrajado, pode igualar, em matria de repGdio, a paixo de um artista.

    Os que excluram Courbet, Manet e os impressio-nistas, e os p6s-impressionistas dos sales, eram todos pintores. Na maior parte eram pintores acadmicos. Mas no necessariamente o pintor acadmico que defende o seu pr6prio estilo estabelecido contra uma nova maneira de pintar, ou uma projetada mudana de gosto. O lder de um movimento revolucionrio arts-tico pode igualmente encolerizar-se diante de uma nova mudana de direo, porque h poucas coisas que pro-voquem tanto a indignao como a insubordinao, ou a traio, numa causa revolucionria. Creio que foi este sentimento de traio que tanto indignou Matisse em 1907 ao ver o que chamou de "brincadeira de mau gosto de Picasso".

    :e preciso no esquecer que a contribuio de Matisse para os prim6rdios do Cubismo - produzida no auge da sua criatividade - foi uma atitude de incompreenso absoluta e arrogante. Em 1908, como membro do jri do vanguardista Salo de Outono, re-jeitou as novas paisagens "com cubinhos" de Braque - da mesma forma como, por volta de 1912, os triunfantes cubistas rejeitariam O Nu Descendo uma Escada, de Duchamp. Por conseguinte, em vez de

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  • Henri Matisse : A Alegria de Viver, 1906. leo sobre tela. Da coleo da The Barnes Foundation, Merion, Pa.

    repetir que somente os pintores acadmicos rejeitam o que novo, por que no inverter a acusao? Qual-quer pessoa torna-se acadmica em virtude ou em re-lao ao que rejeita.

    A academizao da vanguarda est em processo contnuo. No correr dos ltimos anos foi amplamente notada em Nova York. No deveramos, portanto, abandonar esta intil e mtica distino entre os indi-vduos criadores, progressistas que chamamos de artis-tas de um lado, e do outro, a multido ignara, an-nima, incapaz de compreender, que chamamos de pblico?

    Em outras palavras, a minha definio de pblico , muito funcional. A palavra "pblico" para mim no designa uma espcie particular de pessoas; refere-se a um papel desempenhado pelas pessoas, ou antes, um

    . papel que as pessoas so induzidas ou foradas a de-sempenhar por uma determinada experincia. E so-mente os que esto alm da experincia deveriam estar isentos da acusao de pertencer ao pblico.

    Quanto "situao" do pblico - quero apenas referir-me ao choque de desconforto, ou ao espanto, ou indignao, ou ao tdio que algumas pessoas sempre experimentam, e todas 'as pessoas s vezes sen-tem, quando confrontadas com um estilo novo e pouco habitual. Quando era mais jovem, ensinaram-me que esse desconforto no tinha importncia, em primeiro lugar, dizia-se, por ser experimentado somente pelos filisteus (o que uma mentira) e, alm disso, por acreditar-se ser de curta durao. A ltima afirmao parece certamente verdadeira. Nenhuma arte parece permanecer incmoda durante muito tempo. Em todo caso, nenhum estilo desses ltimos cem anos deteve durante muito tempo a sua primeira aparncia de ina-ceita bilidade. O que poderia levar a supor que a re-jeio inicial de tantas obras de arte modernas foi um mero acidente histrico.

    No incio da dcada dos 50, certos arautos do que era ento considerado como arte de vanguarda, tentaram argumentar contra o Expressionismo Abstra-to. Sugeriram que a violncia crua e a ao imediata que tais quadros produziam colocavam-nos alm do

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  • domnio da apreciao artstica e, conseqentemente, tornavam-nos inaceitveis. E como prova salientavam, com um satisfeito rilhar de dentes, que muitos poucos compravam tais quadros. Hoje sabemos que esta pri-mitiva relutncia em comprar no era seno o tempo normal de defasagem de dez anos, ou menos. Pelo final da dcada, o mercado das obras de arte do Ex-pressionismo Abstrato era surpreendentemente ativo. Afinal, no havia nada de intrinsecamente inaceitvel nesses quadros. Pareceram ultrajantes apenas durante um breve espao de tempo, enquanto ns, o pblico relutante, deles nos aproximvamos. .

    Esta rpida domestIcao do ultrajante o aspecto mais caracterstico de nossa vida artstica e o espao de tempo que decorre entre o choque recebido e a retribuio agradecida torna-se progressivamente mais curto. Na presente mdia de adaptao do gosto so necessrios, mais ou menos, sete anos para que um artista jovem dotado de uma centelha selvagem trans-forme-se de enfant terrible em provecto membro do Sistema - no exatamente por ele prprio transfor-mar-se, mas porque o desafio que atira ao pblico prontamente assimilado.

    Assim, o valor de choque de qualquer estilo con temporneo violentamente novo exaure-se com rapidez. Antes de decorrido muito tempo, o novo estilo parece familiar, depois formal e bonito e, finalmente, revestido de autoridade. Pode-se dizer que "tudo est bem" . Nosso erro do julgamento inicial foi corrigido; se ns, ou nossos pais, estivemos errados a respeito do Cubismo h meio sculo, hoje em dia tudo mudou.

    Sim, mas uma coisa no mudou: a relao entre qualquer arte nova - enquanto nova - e o seu pr-prio momento; ou, invertendo a sentena: cada mo-mento, durante os ltimos cem anos, teve a sua prpria arte ultrajante, de modo que cada gerao, desde Cour-bet, teve uma experincia de desconforto em relao arte moderna. E neste sentido seria inteiramente errado dizer que o espanto experimentado pelas pes-soas em relao a um novo estilo no importante, j que no dura muito. Na realidade, dura muito tempo: tem-nos acompanhado durante um sculo. E

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    o arrepio de sofrimento causado pela arte moderna como que um enriquecimento - to necessrio a ns que sociedades como a Rssia Sovitica, que no pos-suem uma arte prpria ultrajante, parecem-nos estar vivas apenas pela metade. Elas no sofrem a perptua ansiedade, ou a peridica frustrao, ou o desconforto que a nossa condio normal, e qual chamo de "situao do pblico". .

    Concluo, por conseguinte, que este dilema tem importncia por ser ao mesmo tempo crnico e end-mico. O que quer dizer que mais cedo ou mais tarde a situao em que todos, artistas ou filisteus, se encontraro, devendo ser, portanto, levada a srio.

    Quando uma obra de arte nova, e aparentemente incompreensvel, acabou de aparecer em cena, ouvimos sempre falar do crtico perspicaz que a proclamou logo como uma "nova realidade", ou do colecionador que nela reconheceu uma oportunidade de um grande investimento. Por outro lado, gostaria de falar pelos que no a compreenderam.

    Quando confrontadas com uma nova obra de arte, as pessoas podem sentir-se excludas de algo de que acreditavam fazer parte integrante - um sentimento de ser frustrado ou privado de alguma coisa. :e ainda um pintor que define bem isto. Quando Georges Bra-que, em 1908, viu pela primeira vez Les Demoiselles d' A vfmon, disse: ":e como se fssemos obrigados a trocar nossa dieta habitual por uma de estopa e para-fina". As palavras importantes da frase so "nossa dieta habitual". De nada serve dizer a uma pessoa: "Olhe aqui, se voc no gosta de pintura moderna por que no a deixa em paz? Por que se preocupa com ela?" H pessoas para quem uma mudana incom-oreensvel em Arte, algo que realmente intrigue e per-turbe, se parece mais com uma mudana drstica, ou antes, como uma drstica reduo da rao diria de que se tornaram dependentes - como acontece du-rante uma marcha forada ou na priso. E enquanto existirem pessoas que tenham esses sentimentos em relao Arte, no h interesse algum em se saber que existem tambm certos esnobes cujos pretensos sentimentos encobrem uma indiferena real..

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  • Sei que h pessoas que se sentem verdadeiramente perturbadas com certas mudanas como as que ocorrem em Arte. Este fato deveria dar ao que chamo de "situao do pblico" uma certa dignidade. H um sentimento de perda, de exlio repentino, de algo que foi voluntariamente negado - s vezes o sentimento de que a cultura ou experincia acumulada sofre uma irremedivel desvalorizao, deixando a pessoa exposta privao espiritual. E esta experincia pode atingir mais duramente o artista do que o amador.

    Tal sentimento de perda ou de espanto muito freqentemente descrito apenas como um fracasso da apreciao esttica, ou uma inabilidade para se perceber os valores positivos de uma experincia nova. Mais cedo ou mais tarde, dizemos, a pessoa - se possuir capacidade de apreciao esttica - compreender a nova experincia, ou apanhar a sua mentira. Mas no h dignidade ou contedo positivo na sua resis-tncia ao que novo.

    Mas suponhamos que se descreva esta resistncia como uma dificuldade em acompanhar os sacrifcios de uma outra pessoa, ou o ritmo do seu sacrifcio. :E; preciso explicar o que quero dizer por "sacrifcio" numa obra de arte original. Penso novamente na Alegria de Viver de Matisse, o quadro que ofendeu tanto os seus colegas pintores e os crticos. Matisse perturbou, neste caso, certos conceitos habituais. Por exemplo, era opinio corrente que, diante de ~m quadro figurativo, tinha-se o direito de olhar para as figuras nele conti-das, isto , focaliz-las uma a uma, vontade. Para isso, as figuras pintadas deveriam oferecer lma densi-dade de aparncia suficiente para suportar um longo olhar. Assim, da experincia que j tinham em relao Arte, as pessoas sentiam-se com direito a receber uma certa recompensa gratificante ao focalizarem fi-guras pintadas, especialmente se tais figuras eram ale-gres, femininas e nuas. Mas no quadro em questo, olhando-se para as figuras separadamente, resulta uma curiosa falta de satisfao. Falta algo porque as figu-ras carecem de coerncia ou de articulao estrutural. As suas linhas exteriores foram traadas sem se levar em considero a presena ou a funo subjacente, e

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    algumas das figuras foram isoladas por meio de um sombreado forte e escuro - as linhas "da grossura de um dedo" de que Signac se queixava.

    Antigamente, a primeira reao que se teria diante de tal quadro seria a exclamao: "Este homem no sabe desenhar". Mas temos os estudos preliminares do pintor sobre as figuras individuais do quadro -uma sucesso de esplndidos desenhos - que mostram como Matisse foi um dos melhores desenhists de todos os tempos. No entanto, depois de tantos estudos pre-liminares, ele atinge, na pintura realizada, uma espcie de arte de desenhar em que a sua habilidade parece deliberadamente mortificada ou sacrificada. Os traos pesados que delineiam as figuras de ninfas impedem qualquer materializao de volume ou densidade. Pa-recem drenar a energia do centro da figura, fazendo-a irradiar-se pelo espao circundante. Ou talvez a nossa viso que seja dispersa, de maneira que mal reconhe-cemos uma figura j somos forados a abandon-la, para seguir um sistema rtmico em expanso. :E; mais ou menos como se observssemos uma pedra caindo na gua; o olhar segue os crculos que se expandem e esfora-se deliberadamente, de maneira quase perver-tida, em continuar a focalizar o ponto do primeiro impacto - talvez porque isto seja imensamente frus-trante. E talvez fosse a inteno de Matisse fazer com que as figuras individuais desaparecessem para ns, como a pedra engolida pelas guas, de maneira a nos forar a reconhecer um sistema diferente.

    Pois o paradigma na natureza desta espcie de desenho no seria uma cena ou um palco em que formas slidas fossem exibidas; um paradigma mais verdadeiro seria antes o de um sistema de circulao, como o de uma cidade, ou o do sangue, em que parar num dado ponto acarreta uma condio patolgica, como um cogulo sangneo ou um engarrafmento de trfego. Creio que Matisse deve ter compreendido que um "bom desenho" no sentido tradicional - isto , linha e tonalidade designando uma forma slida de ca-rter especfico, com concreta localizao no espao - tenderia a atrair e aprisionar o olhar, estabilizando-o numa concentrao de densidade e, por conseguinte,

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  • chamando a ateno para as formas slidas em si; e no era desta maneira que Matisse queria que seus quadros fossem vistos.

    a para ns uma sorte no termos sido obrigados a votar em 1906, porque certamente no estaramos prontos a repudiar hbitos visuais adquiridos na con-templao de obras-primas reais e, da noite para o dia, descartarmo-nos deles devido a um nico quadro. Hoje, esta forma de anlise tomou-se lugar-comum, pois uma quantidade enorme de quadros deste sculo deriva do exemplo de Matisse. As formas coloridas que fluem livremente de Kandinsky e Mir, e toda a espcie de pintura que, a partir daquela poca, quer representar a realidade ou a experincia como uma con-dio da fluncia, deve o seu parentesco ou a sua li-berdade s permisses proclamadas no mencionado quadro.

    Mas em 1906 no era possvel prever isto. Pode-se mesmo suspeitar de que parte do valor de um qua-dro como este s lhe pode ser atribuda retrospectiva-mente, medida que a sua potencialidade se realiza gradualmente, muitas vezes atravs das aes de outros. Mas quando Matisse pintou este quadro, Degas ainda estava atuante e com mais dez anos de vida pela fren-te. Era ainda muito possvel desenhar-se com agudeza e preciso. No de admirar, portanto, que poucas pessoas estivessem preparadas para juntar-se a Matisse na espcie de sacrifcio que parecia estar implcito na sua linha ondulante. E o primeiro a aclamar o quadro no foi um colega pintor mas um leigo que dispunha de tempo: Leo Stein, o irmo de Gertrudes, que ini-cialmente, como todo mundo, repudiou-o, mas depois voltou vrias vezes a ele - e ento, aps algumas semanas, . proclamou-o um grande quadro e decidiu-se a compr-lo. Evidentemente, tinha-se persuadido de que o sacrifcio era naquele caso digno de ser feito, em vista de uma nova e positiva experincia que de outro modo no poderia ser obtida.

    Pelo que sei, o primeiro crtico a falar de um novo estilo artstico em termos de sacrifcio foi Baudelaire. No seu ensaio sobre Ingres, menciona "um encolhi-mento das faculdades espirituais" que Ingres teria im-

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    posto a si mesmo para atingir determinado ideal clssi-co, frio - algo no esprito, pensa Baudelaire, de Ra-fael. Baudelaire no aprecia Ingres; acha que toda imaginao e movimento foram banidos de sua obra. Mas diz, "Compreendo suficientemente o carter de Ingres para afirmar que para ele isto uma herica imolao, um sacrifcio feito no altar das faculdades que ele sinceramente cr serem as mais nobres e im-portantes". E ento, fazendo um salto admirvel, Baudelaire compara Ingres com Courbet, por quem tampouco nutre grande considerao. Define Courbet como "um poderoso artfice, um homem de vontade temvel e indomvel, que obteve resultados que para alguns j tm mais encantos do que os dos grandes mestres da tradio rafaeHsta, devido, indubitavelmen-te, sua solidez positiva e sua desavergonha~a falta I de delicadeza". Mas Baudelaire encontra em Courbet a mesma peculiaridade de esprito de Ingres, por ter tambm massacrado as suas faculdades e silenciado a sua imaginao. "Mas a diferena que o sacrifcio herico feito por Ingres idia e tradio da Beleza Rafaelita, feito por Courbet natureza, imediata, externa e positiva. Na guerra que ambos fazem imaginao, obedecem a motivos diferentes; mas as duas variedades opostas de fanatismo levam ambos mesma imolao."

    Baudelaire rejeitou Courbet. Significa isto que a sua sensibilidade era inferior do pintor? Dificilmente, porque Baudelaire tinha um esprito at mesmo mais sutil, mais sensvel, mais adulto do que o de Courbet. Nem creio que Baudelaire, como homem de letras, possa ser acusado de tipicamente insensvel aos valores visuais ou plsticos. A sua rejeio de Courbet signi-fica apenas que, tendo seus prprios ideais, no estava preparado para sacrificar as coisas que Courbet tinha descartado. O prprio Courbet, como todo grande ar-tista, visou somente aos seus prprios objetivos positi-vos; os valores descartados (por exemplo a fantasia, a "beleza ideal") tinham h muito perdido para ele o valor positivo e, portanto, no eram perdas. Mas para Baudelaire ainda eram sentidas como tal, porque para ele a fantasia e a beleza ideal talvez ainda no estives-

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  • sem exauridas. Creio que isto o que se diz, ou o que se quer dizer, quando afirmamos que uma deter-minada pessoa, confrontada com uma obra de arte mo-derna, no "est com ela". Pode isto simplesmente significar que tal pessoa, achando-se fortemente vin-culada a cer!os valores, no pode prestar-se a um estranho ritual em que os mencionados valores sejam ridicularizados.

    E este , creio, o nosso dilema, na maior parte das vezes. A arte contempornea convida-nos persis-tentemente a aplaudir a destruio de valores que ainda cultivamos, ao passo q\~~ a causa positiva, em cujo benefcio os sacrifcios so feitos, raramente esclare-cida. De modo que os sacrifcios aparecem como atos de destruio, ou demolio, sem qualquer motivo -assim como para Baudelaire a arte de Courbet parecia ser apenas um gesto revolucionrio gratuito.

    Tomo agora um exemplo mais prximo de ns e da minha experincia pessoal. No incio de 1958, um jovem pintor chamado Jasper Johns teve a sua primeira exposio individual em Nova York. Os quadros que exibiu - resultado de muitos anr s de trabalho -eram curiosos. Cuidadosamente pintados a leo ou em encustica, eram variaes de quatro temas principais:

    Nmeros ordenados regularmente, fileira aps fileira, de cima abaixo do quadro, quer em cor, quer

    .em branco sobre branco. Letras dispostas da mesma forma. A bandeira americana - no representada picto-

    ricamente, desfraldada ao vento ou herica, mas rgida, esticada, o seu prprio desenho.

    E finalmente alvos tricolores, ou inteiramente brancos, ou inteiramente verdes, s vezes com caixinhas na parte de cima, em que o artista colocara modelos em gesso de partes anatmicas reconhecidamente hu-manas.

    Alguns outros temas foram tratados em experin-cias isoladas - um cabide de arame, dependurado em u.ma salincia que se projetava para fora de um campo CInzento manchado. Uma teIa de pintura que tinha colada sobre a sua superfcie uma outra tela menor,

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    de modo que tudo o que se via dela era a sua parte de trs. O ttulo do quadro era Tela. Uma outra, intitulada Gaveta, em que a parte fronteira de uma gaveta de madeira com seus puxadores salientes tinha sido inserida na parte inferior da tela, inteiramente pintada de cinzento.

    Qual foi a reao das pessoas? Os que tinham de dizer algo sobre aquelas novas peas, tentaram en-caix-las em determinados esquemas histricos. Alguns sacudiram os ombros, dizendo: "Mais Dadasmo, j vimos isto antes; depois do Expressionismo vem o absurdo e a antiarte, exatamente cQmo na dcada dos vinte". Um crtico hostil, de Nova York, definiu a exposio como fazendo parte de uma lamentvel in-voluo, mais um passo do sistemtico esvaziamento de contedo da arte moderna 1. Um crtico francs escreveu: "No devemos nos precipitar em chamar esta exposio de fraude". Mas estava meramente usando a cautela das experincias passadas; seu senti-mento era o de que estava sendo enganado.

    Por outro lado, um nmero considervel de ho-mens e mulheres inteligentes em Nova York respon-deram com intenso entusiasmo exposio, mas sem serem capazes de explicar qual a origem da sua fas-cinao. Um diretor de museu sugeriu que talvez fosse apenas uma sensao de liberao do Expressionismo Abstrato, de que se tinha visto tantas coisas nos ltimos anos, que o levava a gostar das obras de Jasper Johns; mas tais explicaes negativas nunca so srias. Algu-mas pessoas expressaram a sua opinio de que o pintor escolhia motivos to corriqueiros porque queria torn-los visveis, j que habitualmente no nos apercebemos das coisas simples da vida. Outras, pensaram que o encanto daqueles quadros estava na refinada utilizao dos prprios materiais, e que o artista deliberadamente escolhia ' os temas mais corriqueiros para torn-los invisveis, isto , para induzir a absoluta concentrao na prpria superfcie sensorial. Mas isto no ver-dade, por dois motivos. Primeiramente, porque no houve acordo sobre se essas coisas eram na realidade . 1. J qu~ este crtico ~creditava que a arte abstrata h muito

    tinha se esvlIZlado de conteudo, deveria ter visto que, pelo menos, esvaziar o vcuo era j um feito.

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  • pintadas. (Um crtico nova-iorquino, com a sua costu-meira originalidade, disse que os assuntos eram timos mas que na realidade a pintura era pssima.) E, em segundo lugar, porque se Johns tinha tido a inteno de tornar o seu tema material invisvel atravs da pura banalidade, certamente fracassara - como uma debu-tante que para no ser notada usasse blue jeans no baile. Se a sua inteno tinha sido a da irrelevncia do tema material, ter-se-ia realizado melhor pintando uma abstrao estandardizada, em que todo mundo sabe que no deve perguntar qual o tema. Mas nas suas novas obras de arte, os motivos eram avassalado-ramente conspcuos, se no por outra razo, pelo con-texto. Dependurada num quartel-general, uma p-andeira de Jasper Johns poderia bem chegar a ser nvisvel; alinhado num stand, um de seus alvos poderia bem passar despercebido; mas cuidadosamente reconstitu-dos para serem vistos conspicuamente numa galeria de arte, tais motivos atingiram o objetivo a que se pro-punham.

    Parece que durante esse primeiro encontro com a obra de Johns, poucas pessoas estavam certas de como resoonder a ela, enquanto que alguns dos respeitados crticos de vanguarda aplicavam padres j testados -os quais pareciam repentinamente obsoletos e prontos a serem descartados.

    Minha primeira reao foi normal. No gostei da exposio e com muito prazer eu a classificaria como tediosa. No entanto, ela me deprimiu sem que eu soubesse explicar exatamente por qu. Comecei ento a reconhecer em mim mesmo todos os clssicos sintomas dos filisteus arte moderna. Estava enfure-cido com o artista, como se ele houvesse me convidado para comer, unicamente, para servir-me algo intragvel como estopa e parafina. Estava irritado com alguns amigos meus por fingirem gostar dele - mas com uma incmoda suspeita de que talvez estivessem realmente gostando; enfim, estava na verdade descontente comigo mesmo, por ser to burro, e com a situao, por me expor.

    Enquanto isso, os quadros continuavam dentro de mim - trabalhando-me e deprimindo-me. A sua lem-

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    brana dava-me um sentimento bem claro de ameaa, de perda ou de destruio. Havia um em particular, chamado Target with four faces (Alvo com quatro fa-ces) . Era uma tela bastante grande que consistia uni-camente de um alvo tricolor - vermelho, amarelo e azul; e sobre ele, numa caixa atrs de uma tampa provida de dobradias, quatro moldes de uma face - ou melhor, da parte inferior de uma face, j que

    . a parte superior, inclusive os olhos, tinha sido cortada. O quadro parecia estranhamente rgido pa-ra ser considerado uma obra de arte, e lembrava a objeo de Baudelaire a Ingres: "Ausncia de ima-ginao; por conseguinte, ausncia de movimento". Poder-se-ia extrair algum sentido disto? Pensei no quanto, neste quadro, a face humana parecia pro-fanada, brutalmente transformada numa coisa - e sem justificao num esprito de protesto social, mas gratuitamente. A um certo momento, quis ver no quadro uma sugesto mrbida de sacrifcio humano, de cabeas postas em conserva, ou montadas como trofus. Esperava assim que desta forma a coisa se tornasse hipntica e repelente, como um signo primitivo de poder. Mas quando observei novamente o quadro, todo este romantismo desapareceu. Aquelas faces -todas as quatro - no tinham sido reunidas ali triun-fantemente; tinham sido seccionadas, cortadas logo abaixo dos olhos, mas sem sugesto alguma de cruel-dade, unicamente para que coubessem dentro das cai-xas; e estavam estocadas naquela prateleira superior como se fossem mercadorias estandardizadas. Mas seria este um motivo suficiente para deprimir-me tanto? Se eu realmente no gostava daquelas coisas, por que no ignor-las?

    No era to simples. Pois, o que realmente me deprimia era o que pressentia que aquelas obras po-deriam fazer a todas as outras formas de arte. Parecia-me subitamente que os quadros de De Kooning e de Kline estavam sendo jogados no mesmo caldeiro onde estavam Rembrandt e Giotto. Todos pareciam ter-se tornado repentinamente pintores ilusionistas. MinaI, auando Franz Kline espalha na tela uma camada de tinta preta, essa tinta parece transfigurada. Pode-se no saber o que essa camada de tinta representa, mas

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  • Jasper Johns: Alvo com quatro lares, 1955. Gesso espa-lhado, ex:custica e papel de jornal sobre tela. 0,75 X 0,65. Da coleao do The Museum of Modern Art. Fotografia cedi-da por c
  • hbito ou acidente, sem nenhuma inteno expressiva. Como se os valores que tornam uma face mais valiosa, ou eloqente, ou notvel, tivessem deixado de existir; como se os que pudessem apoiar ou impor tais valores no estivessem por perto.

    Nesse ponto, outra inverso. Comecei a pergun-tar-me o que era na realidade um alvo, e cheguei concluso de que um alvo somente pode existir como um ponto no espao - "ali", a uma determinada distncia. Mas o alvo de Jasper Johns est sempre "aqui mesmo"; todo o campo visual que existe. Perdeu a sua qualidade definitiva de "distanciamento". Prossegui no meu raciocnio, indagando-me a respeito da face humana, e cheguei concluso oposta. Uma face s faz sentido se estiver "aqui". A distncia, pode-se ver um corpo de homem, uma cabea, mesmo um perfil. Mas to logo se reconhea uma coisa como sendo uma face, ela deixa de ser um objeto para tornar-se um plo numa situao de conscincia re-cproca; tem, como a prpria face de cada pessoa, uma qualidade absoluta de proximidade. Sendo assim, ine-quivocamente, o quadro de Jasper Johns Alvo com Quatro Faces opera uma estranha inverso, porque um alvo, que deve existir a distncia, foi dotado de toda a possvel proximidade, enquanto que as faces so colocadas sobre prateleiras.

    E mais um vez senti que a nivelao dessas ca-tegorias, que so os delimitadores subjetivos do espao, acarretava um ponto de vista totalmente desumano. Era como se a conscincia subjetiva, que a nica capaz de dar significado s palavras "aqui" e "l", tivesse cessado de existir.

    Ocorreu-me ento que todos os quadros de J asper Johns transmitiam um sentimento de espera desolada. A tela voltada para a parede espera ser virada; a ga-veta espera ser aberta. A bandeira rgida - espera ser aclamada ou reconhecida? Certamente os alvos esperam ser atingidos. Johns pintou tambm um estore abaixado que, como todos os estores do mundo, espera ser levantado. ' O cabide espera receber as roupas de algum. As letras, nitidamente delineadas, esperam que alguma coisa seja feita com elas; e os nmeros

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    dispostos como num quadro infantil esperam ser con-tados. Mesmo os moldes de gesso parecem ser coisas temporariamente colocadas numa prateleira com alguma finalidade. E, no entanto, medida que se olha para tais objetos, sabe-se com absoluta segurana que o seu tempo j passou, que nada acontecer, que o estore nunca ser levantado, os nmeros nunca mais sero somados e o cabide de roupas permanecer vazio para sempre.

    H em todo este trabalho no unicamente um desconhecimento do material humano, como muitas vezes acontece na arte abstracionista, mas uma cono-tao de ausncia, e - o que a torna mais pungente - . de ausncia humana e de um ambiente criado pelo homem. Finalmente, os quadros de Jasper Johns im-pressionaram-me como o faria uma cidade morta -mas uma cidade morta terrivelmente familiar. Somente os objetos permanecem - signos feitos pelo homem e que, na ausncia deste, tornaram-se objetos. E Johns antecipou o seu abandono.

    Eram essas, portanto, algumas das minhas cogi-taes ao contemplar os quadros de Johns. E aqui confronto-me com algumas perguntas e com uma certa ansiedade.

    O que acabo de dizer - era encontrado nos qua-dros, ou lido neles? Corresponderia inteno do pintor? Compara-se s experincias alheias para que eu possa me reassegurar da validade dos meus senti-mentos? No sei. Posso perfeitamente ver que tais quadros no tm necessariamente aparncia de arte - j se sabe que esta resolveu problemas muito mais difceis. No sei absolutamente se so arte, ou se so formidveis, ou bons, ou se tm a probabilidade de atingirem preos elevados. E qualquer experin-cia sobre pintura que eu tenha tido no passado pa-rece-me mais um estorvo do que um auxlio. Sou desafiado a calcular o valor esttico, digamos, de uma gaveta enfiada numa tela. Mas nada de tudo o que j vi pode ensinar-me como fazer isto. Permanea sozinho com esta coisa e cabe a mim julg-la, na ausncia de padres convencionais. O valor que atribuir a esta pintura ser a medida da minha co-

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  • ragem. Devo descobrir agora &e estou preparado para suportar o choque da nova experincia. Esta-rei fugindo dele, com o meu excesso de anlise? Terei assimilado conversaes ouvidas de outros? Numa tentativa de formular certos significados vistos nesta espcie de arte - destinam-se eles a demons-trar algo a meu prprio respeito, ou constituem uma experincia autntica?

    Tais perguntas so infindveis, e suas respostas no esto armazenadas em parte alguma. a uma espcie de auto-anlise em que podemos ser lanados por alguma imagem nova, e pela qual sou grato. Fico num estado de incerteza ansiosa a respeito do quadro, pelo quadro, sobre mim mesmo. E suspeito de que isto est certo. Na verdade, confio pouco nas pessoas que habitualmente, quando expostas a novas obras de arte, sabem o que notvel e o que permanecer. Alfred Barr, do Museum of Modern Art, disse que se um, de cada dez dos quadros adquiridos pelo Museu, permanecer retrospectivamen-te vlido, a sua escolha j ter sido muito boa. Tomo isto no como uma confisso de julgamento inade-quado mas como uma afirmao sobre a natureza da arte contempornea.

    A arte moderna sempre se projeta numa zona crepuscular, onde no h valores fixos. Nasce sem-pre em meio ansiedade, pelo menos desde Czanne. E Picasso j disse que o mais importante em C-zanne, mais do que os seus quadros, a sua ansie-dade. Parece-me ser uma funo da arte moderna transmitir esta ansiedade ao espectador, de maneira que o seu encontro com a obra de arte seja - pelo menos enquanto esta nova - um verdadeiro pro-blema existencial. Como o Deus de Kierkegaard, a obra de arte nos perturba com a sua agressiva absur-didade, da maneira como Jasper Johns apresentou-se diante de mim h vrios anos. Ela exige de ns uma deciso em que descobrimos algo de nossas prprias qualidades; e esta deciso sempre um "salto de f", para usarmos a famosa expresso de Kierkegaard. E como o seu Deus, que exige de Abrao um sacrifcio que transcende. todos os padres morais, o quadro

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    parece-nos arbitrrio, cruel, irracional, provando nos-sa f, ao mesmo tempo que no promete nenhuma gratificao futura. Em outras palavras, da natu-reza da arte contempornea original apresentar-se como um mau risco. E ns, o pblico, inclusive os artistas, devemos nos orgulhar por estarmos diante de tal problema, porque nada mais nos pareceria verdadeiramente fiel vida; e a Arte, afinal de con-tas, considerada como um espelho da vida.

    Lendo o Exodo, Capo 16, onde descrito o aparecimento do man no deserto, encontrei algo muito significativo:

    " . .. e pela manh havia uma camada de orvalho ao redor do arraial. Quando desapareceu a camada de orvalho, eis que sobre a superfcie do deserto estava uma coisa mida, semelhante a escamas, coisa mida como a geada sobre a terra. E, vendo-a os filhos de Israel, disseram uns aos outros: 'Que isto?' porque no sabiam o que era. Ento lhes disse Moiss: 'Este o po que o Senhor vos deu para comer. ... Colhei dele cada um conforme o que pode comer.' . . . Assim o fizeram os filhos de Israel; e colheram uns mais e outros menos. Quando, porm, o mediam com o gmer, nada sobejava ao que colhera muito, nem faltava ao que colhera pouco; colhia cada um tanto quanto podia comer... alguns dentre eles deixaram dele para o dia seguinte; e criou bichos e cheirava mal .... A casa de Israel deu-lhe o nome de man ... tinha o sabor de bolos de mel. E disse Moiss: 'Deles enchereis um gmer, o qual se guardar para as vossas geraes, para que elas vejam o po que vos dei a comer no deserto'. ... Assim Aro o ps diante do testemunho, para ser guardado ... "

    Ao ler este trecho, parei e pensei como este man do deserto se parecia com a arte contempornea; no somente por ser mandado por Deus, ou por ser um alimento do deserto, ou por ningum poder entend-lo - pois "eles no sabiam o que era". Nem mesmo porque espcimes dele foram imediatamente colocados num museu - "para ser conservado para as geraes

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  • futuras"; nem mesmo porque o seu gosto permaneceu um mistrio, j que a frase aqui traduzida como "bolo de mel" realmente apenas uma tentativa de adivinhar; a palavra hebraica correspondente no ocorre em nenhum outro lugar da literatura antiga, e ningum sabe o que significa. Da a lenda de que o man para cada pessoa tinha um gosto diferente; mesmo tendo vindo de fora, o seu gosto na boca era sua prpria criao.

    Mas o que mais me impressionou como analogia foi o Manoamento - que o man deveria ser colhido todo dia, de acordo com a fome de cada um, e no para ser conservado como investimento ou segurana para o futuro, tomando-se assim a colheita cotidiana um ato de f.

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    21. A ESTRUTURA DA COR

    Por Marcia Tucker

    Se, como Marcia Tucker nos mostra neste ensaio, ver-dade que " ... os fenmenos visuais so os mais numerosos e complexos em nossas vidas . .. " conclui-se, ento, que o papel da cor na comunicao visual artstica de considervel importncia. Algumas vezes a cor tem sido o nico con-tedo de considervel importncia em uma obra de arte.

    Neste ensaio, condensado do catlogo da exposio "A C.w utura da cor", so identificadas vrias atitudes em relao () cor, bem como so discutidas numerosas variaes quanto tcnica da pintura. Marcia Tucker, Curadora Associada do

    Reooitado do catlogo da exposiAo "Tbe Structure of Color" no Wlllhlty Must'um of AmcrJcan Art em Nova York, em 1971.

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