Psicologia Chalfin

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SELECTED SELECCIONADO SÉLECTIONNÉ 3E

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INTRODUÇÃOVivemos em um momento de crise, desem-

prego e intensa exclusão social. Homens e mulheresse tornaram descartáveis, como meras mercadoriasde prateleiras de supermercados, no qual excluídos setornammultidões. Em todo omundo, crescem os pro-testos, em prol de alternativas para solucionar taisproblemas. Buscam-semaneiras que possam garantira sobrevivência das camadasmais atingidas da popu-lação, oferecendo oportunidade real de se re-inserirna economia por sua própria iniciativa; transforman-do, dessa forma, desempregados emmicroempresáriosou operadores autônomos.

Entre as estratégias de sobrevivência cabedestacar a ampliação e o desenvolvimento de organi-

NOVOS CAMINHOS, COOPERAÇÃO E SOLIDARIEDADE:A PSICOLOGIA EM EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS1

Maria Chalfin CoutinhoAdriano Beiras

Dhiancarlos PicininGabriel Luiz Lückmann

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: Cada vez mais se buscam alternativas para garantir a sobrevivência das camadas mais atingidas dapopulação. Dentre as estratégias já realizadas, cabe destacar a ampliação e o desenvolvimento de organizaçõespopulares, fundadas nos princípios da solidariedade, constituindo, assim, alternativas de trabalho e geração derenda para trabalhadores excluídos do mercado de trabalho formal ou informal. Dentro deste contexto, estetrabalho buscou evidenciar novas possibilidades de atuação da psicologia social e do trabalho junto a estasorganizações fundadas nos princípios gerais da autogestão. Para isso propôs-se a realização de uma discussãosobre a economia solidária hoje e a delimitação do papel da psicologia neste setor. Assim, efetuou-se um brevelevantamento sobre o significado e os conceitos de economia solidária, autogestão, cooperativas e associativismo,e sua historia no Brasil de forma a integrar este conhecimento com a psicologia visando evidenciar possibilida-des de um novo campo de atuação.PALAVRAS-CHAVE: Economia solidária, cooperativismo, psicologia social do trabalho

NEW PATHS, COOPERATION AND SOLIDARITY � THE PSYCHOLOGY IN SOLIDARY ENTERPRISES

ABSTRACT: More and more often, alternatives to provide the survival of the most needy part of the Brazilianpopulation have been searched. Amongst these strategies, solidary organizations accomplish an outstandingwork. Recently, these organizations have been developing and increasing in popularity, as well as providingalternatives in employment and income for workers excluded from the formal and the informal labourmarket.Given this scenario, there are contributions which social and occupational psychology can make to these self-managing organizations. This article begins proposing a discussion about the current situation of solidaryeconomies and the definition of the psychologist�s role in this sector. This discussion is based on a researchregarding the history of solidary economies in Brazil, itsmeaning and related concepts, such as self-management,cooperatives and associative organizations. The combination of the knowledge acquired through the researchand the psychology provides a new field of possible interventions.KEY-WORDS: solidary economy, cooperatives, social and occupational psychology

zações populares, fundadas nos princípios da solida-riedade, constituindo, assim, alternativas de trabalhoe geração de renda para trabalhadores excluídos domercado de trabalho. É neste contexto que iniciamosuma discussão sobre economia solidária e a partici-pação da psicologia social e do trabalho neste setor,visando embasar teoricamente um projeto de exten-são em psicologia2 .

A psicologia tem, no que se refere ao traba-lho, grandes possibilidades de atuação, sendo de sig-nificativa importância na medida em que possibilitaresgatar, escutar as experiências dos trabalhadores,seus sofrimentos, seu dia-a-dia dentro deste contextoexcludente domundo globalizado. Assessorando-os naconstrução de uma consciência crítica, propondo no-

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vas formas de experienciar o trabalho, reconstruindovínculos e reivindicando direitos. Neste sentido, a psi-cologia social, voltada para o trabalho, busca com-preender a realidade social destes trabalhadores, iden-tificando suas diferenças e igualdades, suas histórias,regras, reestruturações e lutas. Desta forma, busca-secriar um novo campo de atuação para psicólogos,voltado para coletivos solidários de trabalhadores3 .

O presente artigo se insere no campo propos-to acima. Inicialmente propomos uma reflexão teóri-ca sobre o conceito de Economia Solidária e suas for-mas de organização. Em seguida procuramoscontextualizar a realidade brasileira sobre este tema.Na seqüência, discutimos a participação da psicolo-gia procurando evidenciar uma possível prática, den-tro de seus limites e possibilidades.

ECONOMIA SOLIDÁRIAA economia solidária tem se disseminado

cada vez mais como uma possibilidade de sobrevi-vência das camadas da população excluídas do mer-cado formal de trabalho. Manifesta-se sob diferentesformas organizativas, construídas sobre princípiosgerais que fundamentam a prática da autogestão,caracterizada por tomadas de decisãomais democrá-ticas, relações sociais de cooperação entre pessoas egrupos e pela horizontalidade nas relações sociais emgeral.

Gaiger (2000), acredita que a economia soli-dária estaria apontando para a possibilidade de cria-ção de uma forma social de produção diferente, queconvive com a produção capitalista. Já para Lisboa(2000), esta foi concebida para atuar fora da esferaestatal e em paralelo à economia mercantil, fundan-do-se na tradição familiar, na economia camponesa,no trabalho por conta própria, nos empreendimentosautogestionários.

Machado e Ribas (2002) acreditam ser o ob-jetivo central da economia solidária a geração depossibilidades econômicas destinadas à reintegraçãodos �excluídos� pela ordem neoliberal de forma quepassem a pertencer novamente ao processo de produ-ção e, portanto, com possibilidade de trabalho e derenda. Para compreender a lógica da economia soli-dária, segundo Singer (2000), é fundamental consi-derar a crítica operária e socialista ao capitalismo,que condena a ditadura do capital nas empresas e opoder ilimitado que o direito de propriedade dá aodono dos meios de produção.

A história da autogestão é marcada por vári-as experiências de lutas operárias, surgindo sempredepois demomentos de crise e caracterizando-se comouma estratégia bem definida na luta de classes, queobjetiva o pleno domínio do processo e das condiçõesde trabalho, através da propriedade coletiva dosmei-

os de produção e de processos coletivos de tomada dedecisão, fundados na solidariedade de classe.

Segundo Albuquerque, citado por Singer(2003), são identificáveis duas determinações essen-ciais do conceito de autogestão: a) superar a distin-ção entre quem toma as decisões e quem executa e b)autonomia decisória de cada unidade de atividade. Ocaráter radical da autogestão abole a divisão socialdo trabalho, pois, em tese, os próprios produtores di-rigem sua produção e controlam os meios de produ-ção, não existindo mais classes sociais, mercado, oumesmo Estado. A autogestão não é uma relação ape-nas política, mas uma relação de produção que sedissemina por todas as esferas da vida social, porémnão acreditamos que sua expressão radical seja possí-vel no capitalismo. O que acontece são formasorganizativas solidárias inspiradas nos princípiosautogestionários como: associações e cooperativas.

Guillerm e Bourdet (1976) apontam um con-tínuo desde formas participativas mais limitadas, talcomo a gestão participativa e a co-gestão, até aautogestão social, que implicaria em uma transfor-mação radical da sociedade. Para estes autores �[...]ascooperativas têm convivido com o sistema capitalistasem contestá-lo seriamente, uma vez que, não podem,por simesmas, levar à autogestão social�(COUTINHO,2000, p. 14).

Acreditamos que os empreendimentos solidá-rios podem constituir-se em alternativas de geraçãode trabalho e renda, mas são incapazes de confrontaras formasmercantis de produção. Diante do contextode desemprego e precarização das relações de traba-lho, as formas cooperativas, assim como outras orga-nizações do terceiro setor, não são �...uma alternati-va efetiva e duradoura ao mercado capitalista, mascumpre um papel de funcionalidade ao incorporarparcelas de trabalhadores desempregados pelo capi-tal.� (ANTUNES, 2000, p.113).

A economia solidária vemse estruturandohojeatravés de associações e cooperativas. Associações sãoquaisquer grupos sociais unidos em torno de uma fi-nalidade específica e com estatuto orientado peloCódigo Civil Brasileiro de 2002. No Brasil, oassociativismo ainda está em processo de constitui-ção como movimento social forte e articulado.

O cooperativismo teve contribuições teóricasde vários pensadores, que procuravam ver realizadauma ordem econômica baseada na justiça social,impulsionando diversas realizações práticas. Segun-do Singer (2003), uma das mais famosas experiênci-as foi a de Robert Owen na Inglaterra. Esta iniciativade experimentar os princípios revolucionários deautogestão e justiça social foi imitada em diversospaíses.

As cooperativas calcadas nas propostas soli-

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dárias em geral operam sob alguns princípios, comoliberdade de adesão, gestão democrática participativae igualdade de participação econômica, isto é, cadamembro contribui igualmente para o capital da coo-perativa, cujos excedentes, se for este o caso, terãoseu destino estabelecido através de decisões democrá-ticas feitas pela cooperativa. Todas as ações das coo-perativas devem primar pela segurança do controledemocrático e autonomia. As cooperativas devempro-mover a contínua educação e formação de seusmem-bros, dos representantes eleitos e dos trabalhadoresde formaque estes possamcontribuir eficazmente parao desenvolvimento dasmesmas.

A sobrevivência das cooperativas requer atu-ação conjunta, através de suas representações locais,regionais, nacionais e internacionais, facilitando a tro-ca de produtos e serviços que possibilitem a subsistên-cia e desenvolvimento dos empreendimentos coopera-tivos em geral e criação de novas cooperativas. Con-tudo, é preciso que se esteja atento a ummecanismoutilizado por empresas que, para não terem de arcarcom encargos sociais de seus empregados, alteramseus registros legais de forma a apresentarem uma�fachada� de cooperativa enquanto continuam funci-onando como empresas, isto é, calcadas na relaçãopatrão-empregado e sustentadas no lucro. São as cha-madas �cooperativas-gato�, que dão à sociedade umaimagem falsa das cooperativas solidárias ou popula-res, prejudicando os grupos que semostram engajadosem empreendimentos legitimamente solidários, queacabam esbarrando no preconceito e na escassez depolíticas públicas e linhas de crédito para esse tipo deiniciativa.

UM POUCOMAIS SOBRE OSEMPREENDIMENTOSSOLIDÁRIOSNOBRASIL

Os primeiros empreendimentos solidários noBrasil começaram a ganhar mais destaque na décadade 19804 e se tornaram mais comuns a partir da me-tade da década de 90. Eles são resultantes de váriosmovimentos sociais que semobilizaramdiante da crisede desemprego que passou a assolar o país a partir de1981 e se agrava no início dos anos 90 com a abertu-ra demercado para os produtos importados. SegundoSinger (2000), os primeiros empreendimentos são re-sultado do apoio de assessores sindicais a operáriosque se apossaram da massa falida de empresas assu-mindo seu controle administrativo com o objetivo demanter os empregos e a renda dos trabalhadores. Es-sas empresas se uniram para formar a AssociaçãoNacional de Trabalhadores de EmpresasAutogestionárias e de Participação Acionária(ANTEAG).

OMovimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST) também tem papel fundamental na con-

solidação das cooperativas no Brasil. Uma das prin-cipais estratégias do movimento para fazer com queas áreas assentadas se tornem economicamente viá-veis é organizar diferentes tipos de cooperativas. Singer(ibid.) também cita as Incubadoras Tecnológicas deCooperativas Populares (ITCP), que funcionam liga-das a universidades como fortalecedoras docooperativismo no Brasil. As incubadoras têm porobjetivo organizar grupos de trabalhadores em tornode cooperativas de trabalho ou de produção dandoapoio administrativo e jurídico.

Atualmente, não há dados claros sobre o nú-mero de empreendimentos autogeridos emnosso país.Mas está evidente que seu número vem aumentando ejá é bastante significativo. Esse aumento se deve, prin-cipalmente, as diversas formas de precarização do tra-balho e ao aumento vertiginoso do desemprego. Po-rém pode-se perguntar por que os empreendimentosautogeridos ganharam força nos últimos anos, já quea precarização do trabalho e o desemprego estão pre-sentes hámuitomais tempo emnossa sociedade.Ocor-re que o tempo de retorno dos trabalhadores ao mer-cado formal está muito mais longo e muitos delesnão tem possibilidade de voltar ao mercado formalpor diversos motivos como baixa escolaridade, faixaetária entre outros.

O ENVOLVIMENTODA PSICOLOGIA:CONTEXTUALIZAÇÃOE POSSIBILIDADES

Buscando auxiliar os trabalhadores nesta di-fícil realidade, acreditamos que a psicologia social edo trabalho pode ser de grande valia para a consoli-dação destes empreendimentos, atuando de diversasmaneiras, seja com a organização como um todo, sejacom cada trabalhador. Priorizaremos aqui as inter-venções de caráter coletivo, porém, faz-se necessárioadaptar técnicas tradicionais, como as dinâmicas degrupo, às características dos membros da comunida-de, revendo referências de tempo, espaço, escolarida-de etc.

A psicologia do trabalho aplicada às organi-zações passoupor várias etapas desde o seu surgimentocomo instrumento das indústrias que seguiamos pres-supostos tayloristas. A psicologia industrial, classifi-cada por Sampaio (1998) como a primeira face dapsicologia no campo, tinha como função realizar se-leção e colocação profissional, ou seja, se integravaao princípio taylorista de colocar o sujeito na funçãoquemelhor se adequasse às suas características. Alémdisso, fazia orientação profissional e avaliava as con-dições de trabalho com o objetivo de aumentar a pro-dutividade.

O mesmo autor classifica a segunda face dapsicologia aplicada ao trabalho como psicologiaorganizacional, argumenta que essa face não foi uma

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ruptura com a primeira, mas sim a incorporação denovas atividades como treinamento, classificação depessoal e avaliação de desempenho, além de passa-rem a discutir as estruturas das organizações de tra-balho. Nesse período foram incorporadas as novida-des do estruturalismo e da teoria sistêmica da admi-nistração. Fica claro que essa passagem não repre-sentou mudanças nos objetivos da psicologia, pauta-dos no aumento da produtividade nas empresas.

Muitas críticas foram feitas à psicologiaorganizacional enfatizando sua orientaçãotecnocrática e sua falta de interesse pelo simbólico.Chanlat, citado por Sampaio (1998), coloca que apesquisa e o desenvolvimento da psicologiaorganizacional foi orientada pela busca de eficácia,desempenho e produtividade.

Sampaio (1998) critica o caráter instrumen-tal da disciplina, mesmo quando da introdução denovas teorias, como a teoria contingencialista. Estateoria, introduzida pela Administração nos anos 70,buscava compreender os fenômenos produtivos a par-tir dos condicionantes externos, masmantinha o focono aumento da lucratividade. O questionamento dosobjetivos da psicologia organizacional originou a ter-ceira face da psicologia do trabalho, que busca com-preender o trabalho humano nos seus significados eem todas as suas manifestações. Diferencia-se das fa-ces anteriores por se voltar para a saúde e bem-estardos trabalhadores, não priorizando o lucro e a produ-tividade.

Diferente das práticas tradicionais, a psico-logia do trabalho voltada para as organizações soli-dárias visa o desenvolvimento da autonomia e da so-lidariedade, buscando re-significar a identidade pro-fissional do trabalhador/cooperado, fortalecendo ovínculo grupal. Para a realização destes objetivos, oresgate da psicologia comunitária mostra-se de gran-de valia, considerando que, historicamente, estevevoltada para os grupos populares. Na mesma linhade pensamento de Campos (1996), procura-se traba-lhar com estes grupos para que eles assumam pro-gressivamente o papel de sujeitos de sua própria his-tória, conscientes dos determinantes sócio-políticos desua situação e ativos na busca de soluções para osproblemas enfrentados.

Para Lane (2003), a psicologia comunitáriano Brasil surge no período posterior ao golpe militarde 1964 como um questionamento dos profissionaisde psicologia a respeito da sua atuação junto à maio-ria da população. A autora também salienta que osgrupos são o espaço privilegiado para uma análiseteórico-prática do desenvolvimento dos indivíduos eque o psicólogo inserido em comunidades trabalha-rá, fundamentalmente, com as relações grupais, vín-culo essencial entre indivíduos e a sociedade.

Ao resgatarmos os conhecimentos acumula-dos pela psicologia comunitária, buscamos incorpo-rar um saber construído a partir da perspectiva dascamadas menos favorecidas da população. Pretende-se, assim, ampliar o campo de pesquisas e interven-ções da psicologia do trabalho, tradicionalmente vol-tada para a adaptação dos trabalhadores ao modocapitalista de produção. Neste sentido, fizemos umaproposta de intervenção articulando as abordagensteórico-metodológicas da psicologia comunitária e dapsicologia do trabalho.

Em nossa experiência nas atividades de ex-tensão universitária, encontramos grupos bastanteheterogêneos, principalmente no que diz respeito àfaixa etária. O trabalho foi feito em uma Associaçãode Recicladores de Lixo, a partir de um levantamentoinicial das associações e cooperativas existentes naregião da grande Florianópolis e de posterior apre-sentação de uma proposta de intervenção. Nossa prá-tica procurou tornar o grupo consciente de suas difi-culdades e conquistas, bem como de seu próprio pro-cesso grupal. O grupo levantou problemas a seremresolvidos, tais como: a falta de conscientização douso do material de segurança, a desvalorização dotrabalho e das condições fornecidas pelos próprios as-sociados e pela população em geral.

�Compete, portanto, aos psicólogos/as comu-nitários/as trabalharem na construção de uma cons-ciência crítica, de uma identidade coletiva e individu-al mais autônoma e de uma nova realidade socialmais justa.� (Neves & Bernardes, 2001, p.242). Sendoque, esta busca do desenvolvimento da consciênciacrítica, da ética, da solidariedade e de práticas coo-perativas ou autogestionárias, a partir da análise dosproblemas cotidianos da comunidade,marca, de acor-do com Freitas, citado por Campos, (1996), a produ-ção teórica e prática da psicologia social comunitá-ria.

Utilizando teoria emétodos da psicologia emtrabalhos feitos emcomunidades de baixa renda, comoem experiências em bairros populares, favelas, asso-ciações de bairro, comunidades eclesiais de base emovimentos populares, esta prática visa a melhoriadas condições de vida da população trabalhadora,partindo de um levantamento das necessidades e ca-rências vividas por cada grupo.

E COMO ESSE TRABALHO PODE SER FEITO?Osmétodos tradicionais da psicologia do tra-

balho, construídos nos setores de recursos humanosdas organizações de grande porte, não são compatí-veis com as organizações solidárias, daí decorre ne-cessidade de desenvolvimento demetodologias oriun-das da psicologia comunitária e centradas nos pro-cessos grupais.

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Os programas de intervenção desenvolvidosem coletivos solidários devem buscar contribuir parasua organização e gestão. Para tanto, é preciso en-frentar �...dois grandes desafios: 1) o de desenvolverestruturas e canais de diálogos compatíveis com asnecessidades e a cultura dos cooperados; 2) o de ga-rantir a organicidade entre as estruturasorganizacionais e os sujeitos que delas participam.�(SCOPINHO&MARTINS, 2003, p. 136).

Temos comoprincipal objetivo o fortalecimen-to dos laços coletivos, atuando a partir do entendi-mento dos processos grupais desenvolvidos em cadaorganização solidária, utilizando técnicas de dinâmi-ca de grupo que favoreçam a emergência das caracte-rísticas singulares do grupo. Em nossa prática com aassociação de recicladores, o nosso modelo de inter-venção passou por várias revisões, já que, apesar determos buscado referências não tradicionais da psico-logia organizacional, o coletivo com o qual estáva-mos lidando tinha especificidades que exigiram umtrabalho de adaptação na linguagem utilizada e naforma de intervenção. Apesar de algumas dificulda-des, encontramos resultados bastante positivos. Per-cebemos problemas relacionados a: comunicação,confiança e entendimento grupal (fofocas, intrigas,falta de conversa etc.). Vimos que a associação temseusmecanismos próprios para regular alguns destesproblemas, como advertências verbais, regulamenta-das no estatuto.

Oelementodesencadeadordoprocesso grupalé o reconhecimentomútuo dos sujeitos, que ao se ve-remcompartilhando algo significativo, sentem-se cons-tituintes de um grupo. A partir do encontro promo-vem, simultaneamente, continuidades e rupturas coma história pregressa, construindo assim sua própriarota, sendo esta marcada tanto pelas singularidadespresentes quanto pela ação coletiva ali engendrada.Neste sentido, concordamos com a afirmação: �A pro-dução do coletivo se faz àmedida que todos interageme negociam visando o interesse em comum�, sendoque �o coletivo é produzido concomitantemente pelassingularidades que o produzem� (ZANELLA& PEREI-RA, 2001, p.112).

O que caracteriza a constituição do grupo éa ação grupal ou coletiva, desencadeada por umaconsideração mútua, realizando-se com oenvolvimento de todos e tendo como resultado o cole-tivo. Desta forma, sua existência dependerá da açãodeliberada de seus participantes e este agir coletivoserá gerador de outras novas necessidades querealimentarão, por conseguinte, as relações entre ossujeitos e seus interesses em trabalhar coletivamente.

Partindo do entendimento do processo grupalcomo uma ação coletiva, buscamos uma maneira deintervenção profissional adequada aos coletivos soli-

dários. Este suporte teórico fundamentou a escolha detécnicas de dinâmica de grupo adequadas para umaintervenção grupal transformadora, possibilitando queos trabalhadores sejam vistos como sujeitos ativos,capazes de decidir coletivamente seus destinos, aindaque conscientes de suas possibilidades e limites.

A expectativa inicial era a de desenvolver ummodelo de intervenção psicológica capaz de atenderàs necessidades de organizações não tradicionais. Estaexperiência foi realizada a partir de módulostemáticos criados para organizar a atuação, relacio-nados a temas como: laços grupais, comunicação, li-derança e tomada de decisões em grupo, cooperaçãoe solidariedade e identidade profissional e coletiva.Um desafio foi adaptar as práticas a trabalhadorescom baixo grau de escolaridade (muitos analfabetos),estabelecendo uma relação flexível e não autoritáriacom eles.

Procurou-se realizar atividades vivenciais ins-pirados no psicodrama, em brincadeiras infantis e nosjogos cooperativos, de forma que o conhecimento pu-desse ser entendido de formamais eficiente e adequa-da para esses grupos. É importante destacar as contri-buições da psicologia no que se refere a: compreen-são de fenômenos grupais, tomadas de decisão e reso-lução de problemas; fornecendo estratégias de resga-te da cidadania e da consciência coletiva, estimulan-do a reflexão dos trabalhadores sobre seu potencialcomo agentes de mudanças sociais.

O contato com estas organizações permitiuque fosse percebido o quanto o apoio externo é funda-mental para sua sobrevivência. Foi possível observarque freqüentemente a criação, manutenção e desen-volvimentodesse tipodeorganizaçãodependedeapoiode educadores, de sindicalistas ou de técnicos de ou-tras entidades. O desenvolvimento de políticas públi-cas voltadas para o campo da economia solidária tam-bém é fundamental para a sobrevivência dos coleti-vos solidários de trabalhadores.

CONSIDERAÇÕESFINAISA economia solidária decorre de um conjun-

to de circunstâncias que pressionaram pela busca desaídas para a difícil situação atual da classe traba-lhadora. Acreditamos que as experiências neste cam-po resultam de um processo contínuo de trabalhado-res em luta contra as desigualdades provocadas pelocapitalismo.

Atuando no processo grupal, pode-se, tam-bém, auxiliar o grupo a tornar-se um local de diálo-go, solidariedade e cooperativismo, onde os sujeitosse envolvam na luta coletiva contra a opressão, injus-tiça edesigualdade, antes enfrentadas individualmente.Se, por um lado, o desenvolvimento de um projetocomum transforma esses indivíduos em grupo, por

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outro, é somente sua estruturação como grupo quepossibilita a construção de alternativas solidárias deluta.

Novos significados e ações são produzidos co-letivamente, pois juntos podem reconstruir seu mo-mento histórico, modificando-o, buscando superar asopressões existentes sobre o grupo. Tal superação, en-tretanto, defronta-se com os limites impostos pela in-serção dos coletivos solidários em uma sociedade demercado, que privilegia valores econômicos.

A partir disso, cabe ressaltar a importânciade projetos de extensão universitária voltados paraorganizações solidárias, na medida em que estes au-xiliam a população em suas necessidades básicas eespecificas através de conhecimentos produzidos nocontexto da universidade, marcadamente nas univer-sidades públicas. A integração da universidade comas comunidades permite a aplicação dos conhecimen-tos acadêmicos, adaptando-os a cada contexto e cri-ando novas possibilidades de atuação profissional.

NOTAS1 Uma versão inicial deste artigo foi apresentada noXII Encontro Nacional da ABRAPSO, em outubro de2003 na PUCRS, Porto Alegre.2 Projeto de extensão universitária do curso degraduação em psicologia da Universidade Federal deSanta Catarina, intitulado �Assessoria Psicológica aOrganizações Solidárias de Trabalhadores�.3 Entendemos aqui como organização solidária detrabalhadores (OST)uma formaalternativa de geraçãode renda, sendo que este coletivo pode se organizarcomo cooperativa ou associação, caracterizando-sepor formas coletivas de tomadadedecisão, propriedadecoletiva dos meios de produção e distribuiçãoigualitária dos rendimentos.4 É preciso ressaltar que as cooperativas agrícolas jáeram comuns no Brasil, mas não se caracterizavamcomo empreendimentos solidários.

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Maria Chalfin Coutinho é docente do Departamentoe do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal de Santa Catarina,coordendadora do projeto de extensão Assessoria

Psicologia a Organizaçãoes Solidárias deTrabalhadaores.

O endereço eletrônico da autora é:[email protected]

Adriano Beiras é Psicólogo, Mestrando em Psicologiapela Universidade Federal de Santa Catarina.

O endereço eletrônico do autor é:[email protected]

Dhiancarlos Picinin é Psicólogo, Mestrando em Psi-cologia pela Universidade Federal de

Santa Catarina.O endereço eletrônico do autor é:

[email protected]

Gabriel Luiz Lückmann é Psicólogo formado pelaUniversidade Federal de Santa Catarina.

Maria Chalfin Coutinho, Adriano Beiras,Dhiancarlos Picinin, Gabriel LuizLückmannNovos caminhos, cooperação esolidariedade: a psicologia emempreendimentos solidários.Recebido: 14/10/20041ª revisão: 27/01/20052ª revisão: 8/04/2005Aceite final: 25/04/2005