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O IMAGINÁRIO ÉPICO (1)

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O IMAGINÁRIO ÉPICO(1)

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NOÇÃO DE EPOPEIA

ποποι α (gr.) πος + ποι α

πος = palavra; verso

ποι α < ποιέω = fazer; criar

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NOÇÃO DE EPOPEIA

Extenso poema narrativo de assunto

heróico e tratamento mítico em linguagem

elevada.

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Ilíada. Fragmento de papiro.

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Eneida. Códice medieval

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CULTURA E ARTE NA EUROPA MEDIEVAL

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Poder político centrado na aristocracia guerreira

Batalha de Auray (Guerra dos Cem Anos)Iluminura da Crônica, de

Froissart (séc. XV)Bibliothéque Nationale de

France (FR 2643)

FEUDALISMO

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TEOCENTRISMO

O mundo centrado em Deus...

Cristo pantocrátor, século XIIIgreja de San Climent de Taüll, Espanha

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... e na Igreja católica

TEOCENTRISMO

Catedral de Milão, Itália

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A CONDIÇÃO HUMANA

Adão e Eva (1531). Lucas Cranach, o Velho.Staatliche Museen, Berlim

O pecado original

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O pão com o suor

A CONDIÇÃO HUMANA

Iluminura em códice medieval

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Imperador Carlos Magno vence o inimigo

A guerra

A CONDIÇÃO HUMANA

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O triunfo da morte (c. 1562). Pieter Bruegel. Museu do Prado, Madri.

A pestilênciaA CONDIÇÃO HUMANA

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A CONDIÇÃO HUMANA

Dança macabra (1490). Afresco da igreja de Hrstovlie, Eslovênia

A morte

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A danação

Hortus deliciarum (c. 1180)Códice de Herrad de Landsberg

A CONDIÇÃO HUMANA

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Caminho da salvação (1365-68), Andrea da Firenze

Afresco da igreja Santa Maria Novella, Florença

A salvação

A CONDIÇÃO HUMANA

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MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS

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ARQUITETURA

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Igreja de estilo românico

Basílica da Abadia de São Bento

Loire, França, século XI

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Castelo de Jumilla, Espanha

Castelo de estilo românico

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Fachada e detalhe da catedral de Burgos, Espanha

Igreja de estilo gótico

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Castelo Hunedoara, séc. XIV. Romênia.

Castelo de estilo gótico

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Reconstituição do séc. XIII. Sussex, Inglaterra.

Casa camponesa medieval

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MÚSICA

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Canto gregoriano Coral da Escola Hofburgkapelle de VienaRegência: P. Hubert Dopf S. J.

BENEDICTUS (In baptismate Domini: offertorium)

Benedictus, qui venit in nomine Domini.benediximus Vobis de domo Domini:Deus Dominus et illuxit nobis.Alleluia.

TRADUÇÃOBENDITO

(No batismo do Senhor: ofertório)

Bendito aquele que vem em nome do Senhor.Da casa do Senhor nós Vos louvamos: E o Senhor Deus nos iluminou.Aleluia.

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LITERATURA

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Hagiografia

Narrativas épicas

Legenda aurea (séc. XI), Jacopus de Varagine

Lay of Beowulf (séc. VIII), anônimo

Chanson de Roland (c. 1100), anônimo

Poema del Cid (c. 1140), anônimo

A Demanda do Santo Graal (c. 1200), anônimo

Teatro

Nibelungenlied (c. 1200), anônimo

Poesia trovadoresca

Autos: mistérios, milagres e soties

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Página do Cantar de mio Cid

Códice de Per Abbat (séc. XIII)

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Fac-símile em: A Demanda do Santo

Graal: Das Origens ao Códice Português.

Edição crítica de Heitor Megale. São

Paulo: Ateliê Editorial; Fapesp, 2001.

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A DEMANDA DO SANTO GRAAL

EXCERTO 1

Persival olhou a donzela, que lhe pareceu tão formosa, que nuncavira donzela cuja beleza chegasse à beleza que nela viu. Então começou--lhe a mudar o coração muitíssimo, que todo seu costume passou, porque o seu costume era tal que nunca olhava donzela por causa de amor, mas agora estava assim tocado de amor, que não desejava nada do mundo; assim que viu esta donzela, parecia-lhe que fora em bom dia nascido, se pudesse ter seu amor. E ela lhe disse:

— Senhor, que conselho me dais sobre aquilo que vos disse? E ele respondeu assim como lhe o demo ensinava a cumprir seu desejo e prazer:

— Donzela, não sei o que vos diga, mas se quiserdes fazer o que vos direi, aconselharei de modo que vos tenhais por muito bem paga.

— Senhor, disse ela, não há nada no mundo que por vós não faça, salvante minha honra.

E ele não respondeu àquilo, mas demandava-a de amores, e disse que, se quisesse ser sua amiga, a tomaria por mulher e a faria ser rainha de terra muito rica e boa.

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E ela disse que o não faria; ainda assim tanto insistiu com ela, que lhe veio a outorgar tudo que pedisse, contanto que fizesse o que lhe prometera. E ele estando nisto falando, eis que vem do céu um tão grande ruído como se fosse trovão, e fez tão grande rebuliço, como se movesse a terra, assim que Persival tremeu todo de pavor, e ergueu-se espantado, e ouviu uma voz que dizia: “Ai, Persival, como há aqui tão mau conselho! Deixas toda alegria por toda tristeza, donde te virá todo pesar e toda máventura.”

E pareceu-lhe que aquela voz fora tão forte, que deveria ser ouvida por todo o mundo; e caiu esmorecido por terra, e ficou assim muito tempo. E depois acordou e olhou ao redor de si e viu a donzela rir, porque vira que tivera medo. E quando a viu rir, espantou-se e logo entendeu que era o demo que lhe aparecera em semelhança de donzela para o enganar e o meter em pecado mortal. Então ergueu a mão e persignou-se e disse:

— Ai, Pai Jesus Cristo, Pai verdadeiro! não me deixes enganar nem entrar na eterna morte; e se este é o demo que me quer tirar de teu serviço e separar de tua companhia, mostra-mo.

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Assim que ele isto disse, viu que a donzela se tomou em forma de demo tão feio e tão espantoso, que não há no mundo ninguém tão valente que o visse, que não houvesse de ter grande medo. Daí aconteceu a Persival que teve tão grande medo, que não soube o que fizesse, senão que dissesse:

— Ai, Jesus Cristo, Pai verdadeiro, Senhor, fica comigo.

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A DEMANDA DO SANTO GRAAL

EXCERTO 2

Galaaz pensou muito nisto aquela noite; e no outro dia, quando levantou o sol, armou-se e os outros também e foram ouvir missa. Depois cavalgaram e foram pelo grande caminho do vale até que saíram da floresta e, logo que chegaram ao campo, viram Camalote e as tendas e os tendilhões e os abrigos do inimigo. [...]

E Galaaz disse aos outros:— Senhores, somos poucos, mas não vos desconforteis, porque

bem crede que nosso Criador nos socorrerá, se tivermos esperança nele.E Esclabor lhe disse:

— Senhor, ide-os ferir, porque não vos faltaremos até a morte. E ele esporeou então e deixou-se ir onde viu a maior luta dos cavaleiros de rei Mars, e feriu o primeiro tão bravamente, que meteu a ele e o cavalo em terra. Depois aguilhoou aos outros e fez tanto com aquela lança que tinha, que antes que lhe quebrasse, derribou bem sete. E Artur, o pequeno, igualmente o fez tão bem que ninguém teria em que o censurar.

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E Esclabor, o desconhecido, também, e fizeram tanto todos os três daquela primeira ida, que os recearam mais de dois mil. E rei Mars, que estava ali, disse aos que com ele estavam:

— Ora podeis ver três homens bons e estes são dos cavaleiros da demanda do santo Graal, que a ventura trouxe aqui. Se muito viverem, grande dano nos farão. Ora, a eles sem mais tardar.

Quando Esclabor, que mais perto estava de rei Mars, ouviu o que ele dizia, deixou-se ir a ele e o feriu tão bravamente, que lhe quebrou o escudo e a loriga e lhe meteu a lança pelo costado esquerdo, e a chaga foi muito funda, mas não mortal. E o rei, que era muito forte, deu com ele muito grande queda por terra. E quando Palamades viu seu pai por terra, disse:

— Rei Mars, eu te queria servir e me deste mau galardão, e farei outro tanto.

Então voltou em direção a ele e feriu-o entre seus homens tão bravamente, que o pôs do cavalo por terra, mas outro mal não lhe fez devido às armas que eram muito boas, senão que o rei ficou estonteado com a queda.

Quando os cavaleiros de rei Mars viram seu senhor por terra, não houve um que não ficasse espantado. E então aguilhoaram mais de dez

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a Palamades e mataram-lhe o cavalo e feriram-no com muitas chagas e o matariam então, porque não podia se defender a pé, mas Galaaz, que o prezava muito e à sua cavalaria, meteu mão à espada da estranha cinta e começou a dar tão grandes golpes, que derribava e fazia dano por onde ia tão feroz, que não havia tão corajoso, que não se espantasse com as maravilhas que o viam fazer, pois, sem falha, não alcançava cavaleiro, por bem armado que fosse, que o não metesse por terra morto ou ferido de morte ou paralisado, e todos fugiam dele, apenas o reconheceram um pouco, porque nem de longe houve cavaleiro no campo que, em pouco tempo, não visse que fazia as maiores maravilhas de armas que nunca foram feitas no reino de Logres. E outra maravilha também havia em Galaaz que dava maior espanto aos seus inimigos, que nunca estava num lugar, antes o veríeis ora ali, ora aqui, ora longe, ora perto, ora à direita, ora à esquerda, de modo que ia cercando todas as alas tão maravilhosamente, que dificilmente lhe podia alguém escapar. E quando os cavaleiros de rei Mars viram esta maravilha e que não alcançava um que não derrotasse e que não havia arma que pudesse resistir à sua espada, retiraram-se na melhor atitude que puderam e não pensaram senão em

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guardar seus corpos, porque não houve um tão corajoso, que não tivesse pavor de morte ou de receber toda a vergonha, antes que passasse aquele dia. E Artur, o pequeno, quando viu as grandes maravilhas que fazia Galaaz, disse:

— Ai, Deus! Que poderei dizer deste homem? Não poderia fazer o que ele faz, por boa fé, homem mortal. Verdadeiramente todos os cavaleiros do mundo nada são diante dele, porque se todos os do mundo fossem cavaleiros e este desse contra eles num lugar, cuido que os desbarataria a todos, porque não me parece, pelo que dele vejo, que pudesse enlassecer e cansar de ferir em toda a vida de um homem. Ora tenha eu desventura, se o não tiver, de hoje em diante, pelo melhor cavaleiro do mundo e de todos aqueles que alguma vez trouxeram armas, pois bem vejo que o merece.

Assim dizia Artur, o pequeno, tão espantado das maravilhas que vira, que não podia cuidar que os melhores dez cavaleiros do mundo pudessem fazer o que ele fazia. E Galaaz, que não quedava nem cansava, trazia tão maI os de Sansonha e os de Cornualha à espada cortadora, que bem entenderam que não podiam escapar. E por isso se recolheram a suas

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FERNÃO LOPES (1380?-1460?)

Crônica de el-Rei D. Pedro

Crônica de el-Rei D. Fernando

Crônica de el-Rei D. João I(1ª e 2ª partes)

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COMO O MESTRE DE AVIS MATOU O CONDE JOÃO FERNANDES

A Ventura, para melhor azar a morte do conde João Fernandes, incutiu-lhe tal medo por esta vinda do Mestre, que o levou a mandar a todos os seus que se fossem armar e voltassem para ele. Como quer que fosse, os homens do conde João Fernandes, tanto fidalgos que o acompanhavam como os outros, saíram todos do Paço e foram-se armar para voltarem por ele. E esta foi a razão por que ele ficou desacompanhado de todos eles, e nenhum aí estava quando morreu.

A rainha, também, pôs o sentido nos do Mestre e, vendo-os assim todos armados, não lhe aprouve em seu coração, e disse falando para todos:

— Santa Maria vale! Como os ingleses têm muito bom costume, que quando estão no tempo da paz não trazem armas, nem cuidam deandar armados, mas boas roupas e luvas nas mãos como donzelas. Equando estão na guerra, então trazem as armas e usam delas como todo o mundo sabe!

— Senhora — disse o Mestre —, é mui grande verdade. Mas isso fazem eles porque têm mui amiúde guerras, e poucas vezes paz, e podem--no mui bem fazer. Mas conosco é o contrário, porque temos mui amiúde paz e poucas vezes guerra, e se no tempo da paz não usássemos as armas,

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quando viesse a guerra não as poderíamos suportar.E, falando nisto e noutras cousas, chegavam-se as horas de comer.

Despediu-se o conde de Barcelos, e depois os outros, porque os mais delestinham o pressentimento daquilo que depois se fez.

Ficando assim o conde João Fernandes, consumia-se-lhe o coração, e tornou a dizer ao Mestre:

— Senhor, vós todavia comereis comigo.— Não comerei — disse ele —, porque tenho o comer feito.— Comereis, sim — disse ele —, e enquanto vós falais, irei eu

mandar aprontar.— Não vades — disse o Mestre —, porque vos hei-de falar uma

cousa antes que me vá; e logo me quero ir, que já são horas de comer.Então despediu-se da rainha e tomou o conde pela mão, e saíram

ambos da sala para uma casa grande que estava em frente. Acompanhavam-nos os homens do Mestre, indo mais chegados a

este Rui Pereira e Lourenço Martins.E chegando-se o Mestre com o conde junto de uma janela,

sentiram os outros que o Mestre lhe começava a falar em voz baixa. Todos pararam. E as palavras entre eles foram tão poucas e ditas

tão baixo que ninguém por então percebeu quais eram. Mas dizem que foram desta maneira:

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— Conde, eu me maravilho muito de serdes homem a quem eu queria bem e preparardes minha desonra e morte.

— Eu, senhor! — disse ele. — Quem tal cousa vos disse mentiu--vos mui grande mentira.

O Mestre, que mais vontade tinha de o matar que de estar com ele em razões, tirou logo um cutelo comprido e enviou-lhe um golpe àcabeça; porém não foi a ferida tão grande que logo dela morresse, sem mais nada.

Os outros que estavam em redor, quando viram isto, tiraram logo as espadas fora para lhe dar. E, movendo-se ele para se acolher à sala da rainha com aquele ferimento, Rui Pereira, que estava mais perto,trespassou-o com um estoque de armas com que logo caiu em terra morto.

Os outros quiseram dar-lhe mais golpes, e o Mestre disse que estivessem quietos, e nenhum se atreveu a dar-lhe mais. E mandou logo Fernando Álvares e Lourenço Martins que fossem fechar as portas para que não entrasse ninguém e que dissessem ao seu pajem que corresse pela vila, bradando que matavam o Mestre. Eles assim o fizeram.

Estava o Mestre quando matou o conde em idade de vinte e cinco anos, e andava em vinte e seis. E o conde foi morto na era já escrita de 1421 [1383].

Fernão Lopes, Crônica de el-Rei D. João I. In: SARAIVA, António José. As crônicas de Fernão Lopes. 2a ed. Lisboa: Portugália, 1969, pp. 192-194.

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COMO OS DA CIDADE [DE ÉVORA] SE LEVANTARAM CONTRA A ABADESSA E DE QUE MANEIRA A MATARAM

Tomado o castelo da maneira que dissemos, ficou o povo da cidade cheio de grande alvoroço, fora de todo o bom costume. Começaram a deixar-se mover por brava sanha, multiplicando novas queixas contra quem lhes não fizera mal, desdenhando dos mesmos que ao princípio tinham tomado por capitães como Diego Lopes Lobo e Fernão Gonçalves e outros grandes da terra. E lançando suspeitas sobre eles disseram-Ihes que se amavam o serviço do Mestre e estavam do seu lado, que se fossem para Lisboa a servi-lo e ajudá-lo a defender o Reino. Eles, vendo que não estavam em estado de contender sobre isto, assim o fizeram e vieram para junto do Mestre.

Os maiorais daquele levantamento eram Gonçalo Eanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate. E prosseguindo seus feitos como lhes dava na vontade, usavam como pregão: Abite! Abite! Aqui dos de Abite! E quando alguns deles diziam: “Vamos a Fulano, matemo-lo e roubemo-lo” — logo isso era feito, sem que à vítima pudesse valer nenhum dos grandes da cidade, supondo mesmo que se quisesse arriscar a isso.

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Ora aconteceu que nesta ocasião estavam na cidade as freiras e aabadessa de S. Bento, de um mosteiro não longe do lugar, alojadas numas suas casas que estão no muro quebrado, com receio e temor da guerra que já então começava declaradamente. E andando o povo neste alvoroço, sem outra ocupação em que despendesse o tempo, nasceu uma fama, segundo alguns contam, por causa da qual Gonçalo Eanes, cabreiro, um dos capitães daquela união, falou àquele povo e disse:

— Vamos matar a aleivosa da abadessa que é parenta da rainha e sua criatura.

Outros contam o caso de outra maneira, que parece mais razoável, a saber: que a abadessa, ouvindo como eles andavam daquela guisa e as cousas que faziam, disse de modo que eles o souberam:

— Olha os bêbedos! Andam com a sua bebedeira! Deixai-os que ainda se hão-de achar mal por estas cousas que andam fazendo!

Ora, por qualquer guisa que fosse, o levanto contra ela não foi em vão, e foram-na logo buscar às casas onde se hospedava, não a achando porque ela fora ouvir missa com as suas freiras à igreja catedral da cidade. Uma serva da sua casa, quando viu que assim o buscavam, correu à pressa e foi à Sé preveni-la.

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Ela, com grande medo que teve deles, a quem não esperava poder resistir, deixou a missa e meteu-se no tesouro da igreja tomando a copa da comunhão, onde dizem que estava então o Corpo de Deus consagrado, e abraçou-se com ele. Os que a procuravam, não a achando em casa, foram-na apressadamente buscar à Sé, entrando todos com grandes brados do pregão que usavam: Abite! Abite! E logo que chegaram perguntaram por ela mostrando grande desejo de a achar.

Saíram então a eles Gonçalo Gonçalves, que era ali deão, e Mem Peres, chantre, e outros beneficiados para os desviarem da tenção que traziam. Mas por mais que lhes pedissem da parte de Deus que a deixassem por então e a não tirassem da igreja, dizendo que eles próprios a teriam ali presa e bem guardada até se fazer justiça, se algum mal fizera ou dissera, não conseguiram convencê-los. Nem também as doridas preces dela conseguiram amansar a braveza daquele sanhoso povo. Mas semnenhum respeito pelo Senhor que ela tinha nas mãos — este Senhor que por juízo que nos é desconhecido permitiu então que estes homens usassem de seu livre poder — tiraram-lhe a copa das mãos e puxaram-na para fora do tesouro.

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DAS TRIBULAÇÕES QUE LISBOA PADECIA POR MÍNGUA DE MANTIMENTOS

Estando a cidade assim cercada na maneira que já ouvistes, gastavam-se os mantimentos cada vez mais, pelas muitas gentes que nela havia, tanto dos que se acolheram dentro do termo, de homens aldeãos com mulheres e filhos, como dos que vieram na frota do Porto.

E alguns se metiam às vezes em batéis e passavam de noite escondidamente para as partes de Ribatejo e, metendo-se em alguns esteiros, ali carregavam de trigo que já achavam prestes graças a recados que antecipadamente mandavam. Partiam de noite remando mui rijamente, e algumas galés castelhanas, quando os sentiam vir remando, remavam também à pressa sobre eles. E os batéis para lhes fugir e elas para os tomar eram postos em grande trabalho.

Os que esperavam por tal trigo andavam pela ribeira da parte de Xabregas, aguardando a sua chegada, e os que estavam de vigia, se viam as galés remar para lá, repicavam logo para que ajudassem os batéis. Os da cidade, logo que ouviam o repique, deixavam o sono e tomavam as armas e saía muita gente. Defendiam os batéis com bestas, se cumpria, ferindo-se às vezes de uma parte e da outra. Porém nunca foi vez que tomassem algum

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batel, salvo uma, em que certos batéis que estavam no Ribatejo com trigo foram denunciados por um homem natural de Almada e tomados peloscastelhanos. O homem foi depois apanhado e preso e arrastado e decepado e enforcado.

E posto que tal trigo alguma ajuda fizesse, era tão pouco e tão raramente que seria preciso multiplicá-lo, como fez Jesus Cristo aos pães com que fartou os cinco mil homens.

Nisto consumia-se a cidade em tanto aperto que as esmolas públicas começaram a faltar e nenhuma geração de pobres achava quem lhe desse pão. De modo que, vencendo a perda comum, de todo, a piedade, e vendo a grande míngua dos mantimentos, resolveram deitar fora as gentes pobres ou incapazes para a defesa. Isto foi feito duas ou três vezes, até lançarem fora as mancebas mundanas e os judeus e outras semelhantes pessoas, dizendo que, pois tais pessoas não eram para pelejar, não gastassem os mantimentos aos defensores. Mas isto não aproveitava coisa que muito prestasse.

Os castelhanos, às primeiras vezes, alegraram-se, acolhendo e dando de comer a esta gente. Depois, vendo que isto era com a fome, fez el-rei, para gastar mais a cidade, ordenação que nenhum de dentro fosse

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recebido no seu acampamento, mas que todos fossem lançados fora, e os que não quisessem sair fossem açoutados e obrigados a voltar para a cidade. E isto lhes era duro de fazer, tornarem à força para tal lugar onde, chorando, não esperavam ser recebidos. E tais havia aí que de seu grado se saíam da cidade e se iam para o acampamento, querendo antes ser de todo cativos que assim perecerem morrendo de fome.

Como não lançariam fora a gente pobre e sem proveito, se o Mestre mandou saber ao certo pela cidade que pão havia nela ao todo, tanto em covas como de outra maneira, e acharam que era tão pouco que bem era preciso conselho sobre isso?

Na cidade não havia trigo para vender, e se o havia era muito pouco e tão caro que as gentes pobres não lhe podiam chegar, porque valia o alqueire quatro libras, e o alqueire do milho quarenta soldos, e a canada de vinho três e quatro libras. E padeciam mui apertadamente porque dia havia em que, ainda que dessem por um pão uma dobra, o não achariam a vender. E começaram a comer pão de bagaço de azeitona e queijos das malvas e raízes de ervas e de outras cousas desacostumadas, pouco amigas da natureza. E tais havia que se mantinham de alféloa.

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No lugar onde costumavam vender o trigo andavam homens e moços esgaravatando a terra, e se achavam alguns grãos de trigo, metiam--nos na boca, sem ter outro mantimento. Outros fartavam-se com ervas, e bebiam tanta água que apareciam homens e garotos mortos jazendo inchados, nas praças e em outros lugares.

Das carnes também havia na cidade grande falta; e se alguns criavam porcos, mantinham-se com eles. E a pequena posta de porco valia cinco e seis libras, que era uma dobra castelhana, e a galinha quarenta soldos e a dúzia dos ovos doze soldos. E se almogávares traziam alguns bois, valia cada um setenta libras, que eram catorze dobras cruzadas, valendo então a dobra cinco e seis libras; e a cabeça e as tripas uma dobra. De modo que os pobres por falta de dinheiro não comiam carne e padeciam mal; e começaram a comer a carne das bestas. E não somente os pobres e necessitados, mas grandes pessoas da cidade, lazerando, não sabiam que fazer, e os semblantes alterados com a fome bem mostravam seus encobertos padecimentos.

Andavam os mocinhos de três e de quatro anos pedindo pão pela cidade por amor de Deus, como lhes ensinavam suas mães, e muitos não tinham outra cousa que lhes dar senão lágrimas, que com eles choravam, que era triste cousa de ver. E se lhes davam um pão do tamanho de uma

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noz, haviam-no por grande bem. Desfalecia o leite àquelas que tinham crianças a seus peitos, por míngua de mantimento; e, vendo sofrer seus filhos, a que não podiam socorrer, choravam amiúde sobre eles a morte antes que a morte os privasse da vida. Muitos olhavam as súplicas alheias com chorosos olhos, para cumprir o que a piedade manda, e, não tendo com que os ajudar, caíam em dobrada tristeza.

Toda a cidade era dada a desgosto, cheia de infelizes queixas, privada de todo o prazer, uns com grande míngua que padeciam, outros por terem dó dos atribulados. E isto não sem razão, porque, se é triste e infeliz o coração que cuida nas adversidades que lhe podem sobrevir, vede o que fariam aqueles que continuadamente as tinham tão presentes. Porém, com tudo isto, quando repicavam, ninguém mostrava que estava faminto, mas forte e rijo contra seus inimigos. Animavam-se uns para consolar os outros, querendo dar remédio a seu grande desconforto, mas não prestava conforto de palavras, nem podia tal dor ser amansada com nenhumas doces razões. E assim como é cousa natural ir amiúde a mão onde é o sítio da dor, assim falando uns homens com outros não podiam discorrer senão na míngua que cada um padecia.

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Ó quantas vezes encomendavam nas missas e pregações que rogassem a Deus devotamente pelo estado da cidade, e, fincados os joelhos, beijando a terra, bradavam a Deus que lhes acorresse, e suas preces não eram atendidas! Uns choravam entre si, maldizendo seus dias, queixando-se porque tanto viviam, como se dissessem com o profeta: “Ora viesse a morte antes do tempo e a terra cobrisse nossas faces para não vermos tantos males!” E por isso rogavam à morte que os levasse, dizendo que melhor lhes fora morrer que lhes serem renovados cada dia seus variados padecimentos.

Outros se queixavam a seus amigos dizendo que tinham sido gente desventurada em não se darem antes a el-rei de Castela, que padecerem cada dia novas desgraças, inteiramente convencidos de que a Fortuna lhes traria os piores males.

Sabiam, porém, isto o Mestre e os do seu Conselho e eram-lhes dolorosas de ouvir tais novas. E, vendo estes males a que não podiam acorrer, cerravam seus ouvidos ao rumor do povo.

Como não quereis que maldissessem sua vida e desejassem morrer alguns homens e mulheres, que tanta diferença há de ouvir estas cousas para aqueles que as então passaram como há da vida para a morte?

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Os pais e as mães viam estalar de fome os filhos que muito amavam, rasgavam as faces e os peitos sobre eles, sem terem com que os socorrer senão pranto e derramamento de lágrimas.

E sobre tudo isto, medo grande da cruel vingança que entendiam que el-rei de Castela deles havia de tomar.

E assim eles padeciam duas grandes guerras, uma dos inimigos que os cercavam, outra dos mantimentos que lhes faltavam, de maneira que estavam entregues ao cuidado de se defenderem da morte por duas maneiras.

Para que é dizer mais de tais necessidades? Foi tamanha a escassez das cousas necessárias que soou um dia pela cidade que o Mestre mandava deitar fora todos os que não tivessem pão que comer e que ficassem nela somente os que o tivessem. Mas quem poderia ouvir sem gemidos e sem choro que tal resolução ia ser intimada contra aqueles que não tinham pão? Porém, o saber que não era assim foi-lhes já algum tanto de conforto.

Onde sabei que essa fome e necessidade que as gentes assim padeciam não eram por ser o cerco prolongado, porque não havia tanto tempo que Lisboa estava cercada. Mas era por azo das muitas gentes que se acolheram a ela de todo o termo, e também da que chegou na frota do Porto, e por os mantimentos serem muito poucos.

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COMO NUNO ÁLVARES FOI FEITO CONDESTÁVEL E DE ALGUNS MODOS DE SEU VIVER

Eleito e proclamado rei o Mestre, logo se falou que se nomeassecondestável para a guerra, como pela primeira vez fizera el-rei D. Fernando, quando no seu tempo vieram os ingleses. E ordenou el-rei que o fosse o seu muito leal vassalo e servidor Nuno Álvares Pereira, então com vinte e quatro anos e nove meses e doze dias, conhecendo que ele era de honestos costumes e muito avisado nos feitos de cavalaria.

De modo que, vista a sua prudente e notável discrição, bem se podia dizer que a cega fortuna, posto que a alguns deixe nesta presente vida nus de prêmio que bem merecem, a ele, sem ser ingrata, o promoveu a alteza de grande e honroso ofício nas guerras e hostes do Reino. E ele usou-o de tal maneira, crescendo de dia em dia em cavaleirosos feitos, que em muitos despertou, como depois vereis, ambiciosa emulação.

Porque se fortaleza é animoso desejo de alcançar grandes cousas, suportando proveitoso trabalho, este sem temer noites ásperas nem esquivos dias, não receava pôr-se a quaisquer riscos para obter vitória de seus inimigos. Não por desprezar com soberba temeridade a multidão deles, mas porque nenhum dos antigos artifícios de guerra podia igualar as

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artes e ardis deste novo guerreiro. Ordenava tão sagesmente os seus feitos que nenhum outro podia entender o propósito da sua invenção, salvo aqueles com quem habitualmente o falava.

De ousadia e bom governo, em que está a principal cousa da guerra, tinha ele tanto que com grande trabalho se encontraria entre os mortais quem se lhe comparasse. E por isso se escreve dele que foi grande e forte muro e segundo braço da defesa do Reino; e com grande vontade diziam dele os povos que para tal honra não se poderia ter escolhido outro de quem resultassem tantos proveitos para o Reino e para a alteza real.

Como a estrela da manhã, resplandeceu entre os da sua geração, com honesta vida e honrosos feitos, parecendo que reluziam nele os avisados costumes dos antigos e grandes varões. Na condução da guerra mostrava tal autoridade que nenhum dos que o acompanhavam se atrevia a hostilizar os inimigos além do que por ele lhes era mandado, dispondo-se cada um a cumprir os preceitos que ele lhes dava e não lhes desobedecendo em caso algum. E no entanto morava sempre nele umadiscreta mansidão que é a ama dos bons costumes.

Trazer mulheres nem jogar aos dados a ninguém era consentido; e quando nascia entre alguns dos seus qualquer desavença pela qual deixavam de se falar, logo tratava de os concordar e fazer amigos; de guisa

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que o seu acampamento não parecia hoste de guerreiros, mas honesta ordem de defensores.

Em todas as cousas procedia muito sagesmente, com proporcionado castigo e prêmio àqueles que dele dependiam; e quando se zangava contra alguém, o seu castigo não dava lugar a rumor; de modo que à sua grave quietação os homens tinham mais reverência que temor.

Sendo ainda moço e desviando-se do costume dos homens, começou a assentar em si todas as boas condições que podem ser apontadas num louvado varão, como se nele estivesse escondido o tesouro de toda a sabedoria. Em virtuosos pensamentos e em pô-los logo em execução, ocupava muito mais tempo do que cumpria a sua tenra idade.

E porque semelhantes perfeições não eram habituais nos outros homens, nele eram tidas em muito grande conta. Por isso onde moravam tantas virtudes dificilmente se podia cuidar que algum vício pudesse ser hóspede, nem alguém podia nele pôr nódoa que não fosse tido por malévolo, pois embora ele se esforçasse por encobrir a sua muito louvada fama, os seus virtuosos feitos eram pregoeiros dela.

Nos grandes e notáveis conselhos era ele sempre o principal e nenhuma cousa importante se fazia sem o seu acordo. Foi de alta e

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prudente conversação onde cumpria, e de boa e amorosa aos de menor estado, e aos muito pequenos tão doce como criança. Compadecia-se dos pobres e necessitados, não os deixando padecer injúria, e a sua larga mão estava sempre pronta a dar onde quer que a honra humanal ou o espiritual proveito atraíam o seu dom. Dispunha a sua fazenda, deixadas as despesas pomposas, que se devem evitar, de tal modo que por nenhuma necessidade de guerra ou outra, nunca em suas terras lançou tributo ou serviço ou outra obrigação de ajuda, e tinha tais administradores em sua casa que pouca ou nenhuma nódoa de erro havia neles.

Na limpeza da sua verdade nada era encoberto ou fingido, e a suapalavra não era menos certa do que se a firmasse com juramento. Punha os atos espirituais acima de todas as cousas e atendia aos ofícios divinos por tal forma que em caso algum deixava de os cumprir, mesmo porchegada de alguma pessoa, por grande e poderosa que fosse.

Tanto foi de limpa consciência que, para salvação da sua alma, moderou de tal maneira a paixão da ira, que em muitos parece loucura, que por mais razão que tivesse nunca a ninguém cortou a fala, o que écausa de maior ódio, com remordimento de más vontades.

Ele foi o primeiro que começou a ouvir cada dia duas missas, dizendo que os senhores, assim como na excelência mundanal tinham

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vantagem sobre o resto do povo, assim nas obras espirituais deviam ter mais obrigações. Nas festas principais do ano em que a Igreja costuma fazer procissão, mandava ele fazê-la no seu acampamento, com círios, conforme o dia que era, com pregação e ofício o mais solene e devotamente que se podia fazer.

E se contam em louvor dos Romanos, apesar de gentios, que não se atreviam a entrar em batalha nem mover guerra sem fazerem as cerimônias que deviam ao deus das batalhas, fazendo primeiro oração aos deuses das terras que cada um tinha em sua guarda, grande louvor devem dar a este, que com boa confiança e firme esperança no muito alto Deus, feita primeiro sua devota oração àquele Senhor em cujo poder está toda a vitória, ledo e sem nenhum receio pelejava sempre com os inimigos.

Este não somente dos dons naturais, mas ainda dos bens da fortuna teve tão grandes e especiais jóias que desde o começo do Reino até o seu tempo não se lê de outro igual. E posto que se lê que o bem tratado mancebo raramente alcança louvores perduráveis, este, pelo contrário, tanto no temporal como no espiritual, vivo e depois de morto, sempre foi tido em grande reverência por todo o povo, como adiante ouvireis.

Fernão Lopes, Crônica de el-Rei D. João I. In: SARAIVA, António José. As crônicas de Fernão Lopes. 2a ed. Lisboa: Portugália, 1969, pp. 365-369.

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COMO SE FEZ A BATALHA [DE ALJUBARROTA] ENTRE OS REIS E FORAM VENCIDOS OS CASTELHANOS

Nas falas que ouvistes e conselhos que el-rei de Castela teve se gastou tanto do dia que já eram horas de véspera quando os castelhanos foram prestes de todo e sua batalha ordenada.

A qual era tão grande e assim formosa de ver que os portugueses diante deles não pareciam mais que a luz de uma pobre estrela diante da claridade da lua cheia.

O Condestável de Portugal andava em cima dum cavalo por diante da sua vanguarda e alas, de um lado para o outro, com um escudo no braço do lado dos inimigos, por receio dos virotões que de alguns lugares vinham e não somente chegavam ali, mas alguns deles atravessavam as linhas e feriam, na carriagem, homens e moços e bestas.

Isto fazia o Condestável para ver se cada um estava disposto naquela boa e sages ordenação em que primeiro os pusera. E dizia-lhes que avançassem todos muito devagar quando os castelhanos se movessem, e que ao juntar ficassem parados e firmassem bem os pés, tendo as lanças direitas, apertadas debaixo do braço, o mais prolongadas que pudessem; e que, quando os inimigos chegassem, pusessem neles as lanças de modo

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que os agarrassem e então os empurrassem quanto pudessem, e que os que estivessem atrás e não pudessem chegar com as lanças empurrassem os outros à sua frente.

E louvava-os com bom ânimo e alegre semblante, animava-os a que não temessem a multidão dos inimigos, nem as ameaças que exteriorizavam com seus apupos e alaridos, porque era tudo um pouco de vento que daí a breve espaço havia de cessar. E que fossem fortes e animosos, tendo grande confiança em Deus, por cujo serviço ali tinham vindo, defendendo justa causa por seu reino e pela Santa Igreja. E que a Mãe de Deus, cuja véspera era então, seria sua advogada, e o precioso mártir S. Jorge seu capitão e ajudador. E dizia que aquele era o bom dia que todos desejavam para alcançar muita honra, em que seus grandes trabalhos haviam de cessar pela vitória.

E com suas doces palavras cheias de grande ânimo não cessava de os visitar enquanto as batalhas estavam paradas.

E, andando neste cuidado, antes que se começasse a batalha, o conde D. João Afonso Telo, que estava na vanguarda dos Castelhanos, lhe mandou por um escudeiro, como penhor de desafio, uma espada de armas, guarnecida. E o Conde a recebeu alegremente e lhe mandou de retorno uma boa facha de chumbo.

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El-rei, igualmente, na retaguarda onde estava — segundo põe aquele doutor no capítulo post hoc rex Portugaliae —, depois de sua confissão, efetuada muito cedo, e recebido o Santo Sacramento e a bênção do arcebispo, tomou muito devotamente o sinal da Santa Cruz, pondo-a de cor vermelha em seu peito, e mandou aos seus que assim o fizessem. E então, usando do costume de Judas Macabeu, como diz aquele doutor, começou a animar os seus, dizendo a todos:

— Amigos, senhores: sem embargo de que nossos inimigos venham a nós em grande multidão, como vedes, não queirais temer o espanto que põem, como já disse, mas sede fortes e não temais nada, pois ligeira cousa é ao Senhor Deus subjugar muitos às mãos de poucos. E pois eles vêm a nós com grande soberba e desprezo para nos destruir e roubar e tomar mulheres e filhos e quanto nos acharem, e nós com eles pelejamos por nossa defesa e do Reino e de nossa mãe, a Santa Igreja, vós vereis hoje como todos serão vencidos e derribados ante nós. E por isso, em nome de Deus e da Virgem Maria, cujo dia é amanhã, sejamos todos fortes e prestes para tomar deles vingança, a qual temos tanto à mão como todos bem vedes.

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Também o arcebispo de Braga, que estava bem armado, levando diante de si erguida a cruz de prata, com que costumava visitar as igrejas, não parava de atender, andando, a uns e a outros, animando e absolvendo todos, confirmando-lhes os perdões que o papa Urbano VI outorgava aos que eram contra os cismáticos incrédulos, revéis à Santa Igreja, dizendo a todos que logo que começassem a ferir nos inimigos se lembrassem de dizer amiúde et verbum caro factum est.

E alguns simples e ignorantes que isto não entendiam perguntavam o que queria dizer aquilo e outros, divertindo-se respondiam que queria dizer: mui caro feito é este.

— Verdade é — diziam alguns deles —, mas aprazerá a Deus que o tornará hoje muito barato.

Na hoste de el-rei de Castela era muito pelo contrário, porque ali não era preciso dar ânimo a nenhuma gente, nem outra foiteza para pelejar: todos tinham a batalha por ganha e por sandeus e desesperados os portugueses que a aguardavam. Somente tinham sentido em como os haviam de matar e cuidado no que fariam dos que tomassem cativos. E dois bispos que ali vinham e alguns frades pregadores outorgavamindulgências da parte do antipapa a todos os que contra os portugueses tomassem armas ou dessem ajuda daquilo que tivessem para lhes fazer guerra.

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E, antes que se começassem a juntar as batalhas, alguns homens de pé portugueses, até trinta, que tinham sido postos entre a carriagem, para a guardar, fugiram dali, com medo e fraqueza de coração, em direcção a Porto de Mós. Mas os ginetes de Castela, que andavam em redor da carriagem, viram-nos sair e seguiram-nos. Eles, cuidando escapar, acolheram-se a uns vales cobertos de silvas, e ali, como porcos à calcada, os mataram, que não escapou nenhum. A qual cousa constrangeu os outros daquela parte a ganhar ânimo e a não fugir, dizendo que antes queriam morrer como homens que matarem-nos como àqueles que tinham fugido.

Nisto, a vanguarda dos inimigos, muito provida de gentes e de fortaleza mais que bastante, começou a preparar-se para mover sua batalha, sendo já o dia tão caído que passava de hora de véspera. E, apesar de serem tantos e bem equipados, ainda não se atreveram a cometer os portugueses sem disparar primeiro com uma linha de trons, que tinham colocado à frente, para os espantar e fazer fugir. Nestes trons foi posto fogo, e disparando algumas pedras, umas não incomodaram, mas outras foram desastrosas. Uma deu na vanguarda do Condestável e matou juntamente dois escudeiros, irmãos, outra deu num estrangeiro. Estes três foram mortos por elas — o que muito assustou os portugueses e foi tido por esquivo começo.

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Um escudeiro da companhia dos portugueses, vendo o temor que disto tomavam, disse que não tinham de que se espantar, antes o deviam ter por sinal de que Deus lhes queria dar a vitória da batalha, porque ele lhes afirmava, de certeza, que, não havia oito dias, vira ele aqueles dois homens entrar numa igreja e matar um clérigo que nela estava paramentado dizendo missa. E, pois que eles a Deus não guardavamreverência, Ele, executando sua justa sentença, não quis que tão maus cristãos houvessem de ser quinhoeiros na vitória e honra que o dito Senhor tinha concedido aos Portugueses. E quando todos os que ali estavam presentes ouviram isto, sendo em certo conhecimento, por aquele escudeiro, da maldade que aqueles mortos tinham feito, tiveram este juízo de Nosso Senhor Deus por grande encorajamento e tomaram grande ousadia para prosseguirem contra seus inimigos a tenção que tinham começado.

Então, dando às trombetas mui rijamente, com grandes apupos e alaridos, bradando todos: A ellos, a ellos!, começou a desaparecer o campo sob a grande espessura dos inimigos; e, abalando com orgulhosos passos e apressado desprezo, vinham os portugueses todos adiante com o conde João Afonso Telo à frente, levando sobre eles o avanço de um comprimento de lança, com outra nas mãos como valente cavaleiro.

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Enquanto iam avançando começaram a deixar-se ficar uns atrás dos outros, tanto os das linhas de frente e retaguarda como os das alas, de modo que a sua vanguarda, tão comprida e com as alas tão grandes que bem podia abraçar a hoste dos portugueses, ficou deste modo tão curta que a de Portugal tinha já vantagem sobre ela. E ficou o exército dos castelhanos tão grosso e ancho em espessura de gente que dos traseiros aos dianteiros havia uma distância de um lanço de pedra. E isto foi especialmente ao longo da estrada por onde costumavam caminhar. De modo que a vanguarda e a retaguarda tudo ficou quase uma só cousa.

Os portugueses, quando os viram abalar, começaram a avivar os corações para os receber e, com bom ânimo, dando às trombetas, moveram-se a passo e passo, em sua boa ordenação, o Condestável com a sua bandeira diante e cada um assim como lhe fora mandado.

Seu apelido era Portugal e S. Jorge. E dos inimigos Castilla e Santiago.

Adiantou-se Gonçalo Anes, de Castelo de Vide, que prometera dar a primeira lançada. Foi derribado e socorrido e levantou-se.

Ao encontrarem-se as linhas de batalha puseram as lanças uns nos outros, ferindo e empuxando quanto podiam, enquanto os peões e besteiros lançavam muitas pedras e virotões de uma parte à outra.

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Entretanto os ginetes dos inimigos tentavam amiúde entrar na carriagem dos portugueses, mas achavam tudo prevenido, de modo que lhes não podiam fazer dano. E, se neste passo achardes escrito que os castelhanos cortaram as lanças e as fizeram mais curtas do que as traziam, tende como certo, e não duvideis, porque muitos, cuidando pelejar a cavalo, quando viram a batalha pé terra, para se desenvolverem e se servirem melhor delas, as cortavam, o que depois lhes trouxe mais prejuízo do que proveito.

Mas, largadas as lanças, o que a uns e outros pouco incomodou, ficando entre uma e outra frente grande amontoado delas, vieram às fachas e espadas de armas, não grandes como as de agora, mas tamanhas como espadas de mão, grossas e estreitas, e chamavam-lhes estoques. E o primeiro lugar onde começaram a pelejar foi junto com a bandeira do Condestável, onde agora está uma pequena igreja de S. Jorge, que ele depois mandou fazer.

Ali se acendeu uma forte e crua peleja, ferida de golpes como oscostumam dar homens e não quais alguns escrevem. Para que diremos golpes, nem forças, nem outras razões, compostas em louvor de alguns, nem enfeitarmos história que as pessoas sensatas não hão-de crer, dando, em lugar de histórias verdadeiras, fábulas patranhosas? Basta que de um lado e de outro eram dados tais e tamanhos golpes como cada um melhor

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podia apresentar àquele que lhe caía em sorte, de maneira que os muitos para subjugar os poucos e os poucos para se verem livres de seus inimigos lidavam com toda a sua força.

E sendo a coluna castelhana grossa daquela maneira, a dos portugueses, pequena e singela, não pôde aguentá-la, e a sua vanguarda rompeu-se e foi entrada poderosamente pelos inimigos. E aquele magote de muita gente, que dizemos, abriu um grande e largo portal por onde entrou a maior parte deles, com a bandeira de el-rei de Castela junto da do Condestável. Aqui foi a maior força da peleja.

As alas onde estava Mem Rodrigues e a outra de Antão Vasques, quando isto viram, dobraram-se sobre os inimigos e ficaram então entre a vanguarda e a retaguarda, onde uns e os outros pelejaram tão de vontade que o som dos golpes era ouvido em mui grande espaço de redor. E a Ala dos Namorados, que eles cuidaram desbaratar primeiro de tudo, aqui foi tendo dobrado afã pelejando. Mem Rodrigues foi muito ferido e o seu irmão e outros fidalgos daquele lado, mais que em outro lugar.

El-rei de Portugal quando viu a vanguarda rota e o Conde em tamanho aperto, muito preocupado (e todos com ele) abalou rijamente com sua bandeira, dizendo altas vozes com grande ânimo:

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— Avante, senhores! Avante! Avante! S. Jorge! S. Jorge! Portugal!Portugal! Que eu sou el-rei!

E logo que chegou aonde era aquele duro e áspero trabalho, deixadas as lanças, de que pouco se serviram por a gente andar misturada, começou a ferir de facha, tão desenvolto e com tal vontade como se fosse um simples cavaleiro desejoso de ganhar fama.

E veio a ele por acaso Álvaro Gonçalves de Sandoval, bem mancebo e de bom corpo, valente cavaleiro, casado daquele ano. El-rei levantou a facha, mas ao baixá-la para lhe dar, Sandoval deteve o golpe, agarrou a facha e puxou tão rijo que lha levou das mãos, e fê-lo ajoelhar de ambos os joelhos. Levantou-se logo el-rei. E quando Álvaro Gonçalves levantou a facha para lhe dar com ela, el-rei esperou o golpe e tornou-lha a tirar como o outro lhe fizera. Mas quando lhe quisera outra vez dar, jáÁlvaro Gonçalves jazia morto, por outros ali presentes, que o não puderam fazer mais depressa porque cada um tinha assaz que ver em si.

E, sendo a batalha cada vez maior e muito ferida de ambos os lados, aprouve a Deus que a bandeira de Castela foi derribada, e com ela o pendão da divisa; e alguns castelhanos começaram a voltar atrás. Os moços portugueses que guardavam as bestas e muitos dos outros que estavam com eles começaram a bradar altas vozes e a dizer:

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— Já fogem, já fogem!E os castelhanos, para não fazer deles mentirosos, começaram

cada vez a fugir mais.

Fernão Lopes, Crônica de el-Rei D. João I. In: SARAIVA, António José. As crônicas de Fernão Lopes. 2a ed. Lisboa: Portugália, 1969, pp. 428-437.