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    GESTO.Org Revista Eletrnica de Gesto Organizacionaln. 9. v. 2, p. 226 - 253, maio./ago. 2011226

    MERCANTILIZAO DE AES SOLIDRIAS EMPRESARIAIS:

    UMA DISCUSSO A PARTIR DA ANLISE CRTICA DO DISCURSO

    COMMODIFICATION OF CORPORATE SOLIDARITY ACTIONS:

    A DISCUSSION FROM THE CRITICAL DISCOURSE ANALYSIS

    Helena Kuerten de Salles Uglione1Rebeca Moraes Ribeiro Barcellos2

    Rosimeri Carvalho Silva3Eloise Helena Livramento Dellagnelo4

    RESUMOTomando por base a centralidade das empresas no mundo moderno, o discurso por elasadotado pode ser uma importante via de penetrao da lgica de mercado na esfera solidria.

    Considerando que a Anlise Crtica do Discurso tem como objetivo explorar a relao entre ouso da linguagem e ideologia, recorremos a este suporte metodolgico para desconstruiralguns discursos organizacionais a fim de verificar o papel das empresas no processo denaturalizao da expanso da lgica mercantil a outros enclaves sociais, precisamente nocampo das aes solidrias. Neste artigo, a inteno foi analisar a dimenso textual,desconstruindo os textos e buscando revelar os significados ideacionais contidos nosdiscursos analisados para, ento, compreender as crenas produzidas no texto. Faz parte docorpusdo estudo o discurso institucional disponvel nos sites de trs empresas praticantes domarketing relacionado causa. As anlises empreendidas permitem verificar claramente queas aes solidrias propostas pelas empresas esto indissociavelmente ligadas aquisio de

    Artigo recebido em 14/05/2011, aprovado em 14/07/2011.1 Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Administrao da Universidade Federal de Santa Catarina(USFC)[email protected].

    2 Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Administrao Universidade Federal de Santa Catarina(USFC)[email protected].

    3 Professora Escola de Administrao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). ProfessoraColaboradora Programa de Ps-Graduao em Administrao da Universidade Federal de Santa Catarina(USFC)[email protected].

    4Professora Programa de Ps-Graduao em Administrao Universidade Federal de Santa Catarina (USFC).

    [email protected].

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    produtos. As relaes entre as pessoas articuladas como relaes de consumo evidenciam asociedade de consumidores de Bauman (2008), e a responsabilizao da empresa peladefinio e execuo das aes solidrias nos remete ao mundo-empresa de Sol (2004). Odiscurso, sendo um instrumento de poder, um meio capaz de naturalizar idias no seio dasociedade (WODAK, 2004).

    Palavras-chave: Ao solidria. Anlise crtica do discurso. Mercantilizao.

    ABSTRACT

    Based on the centrality of the firms in the modern world, the discourse adopted by them canbe an important route of penetration of market logic on solidarity field. Whereas the CriticalDiscourse Analysis aims to explore the relationship between the use of language andideology, we appealed to this methodological support to deconstruct some organizationaldiscourse in order to verify the role of business in the naturalization process of expansion ofmarket logic to other social fields precisely in the field of cooperative actions. In this article,the intention was to analyze the textual dimension, deconstructing texts and seeking to revealthe ideational meanings contained in the speeches analyzed in order to understand the beliefs

    produced in the text. It is part of the corpus of the study the institutional discourse available inthe sites of three companies. The analysis undertaken allow us to say that cooperative actions

    proposed by the companies are inextricably linked to the acquisition of products. Relationsbetween people articulated as consumer relations show the consumer society of Bauman(2008), and accountability of the company by defining and implementing actions in solidarityrefers to the company world as Sol (2004) discusses. Language as an instrument of power, isa medium capable of naturalizing ideas within society (Wodak, 2004).

    Key-words: Solidarity action. Critical discourse analysis. Commodification.

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    1 INTRODUO

    A sociedade ocidental moderna , para Boaventura Sousa Santos (2002), orientada a

    partir da razo indolente, caracterizada por uma faceta chamada de razo metonmica.

    Segundo o autor, essa uma forma de pensar, segundo a qual qualquer parte de uma realidade

    tomada pelo seu todo, ou seja, a sociedade ocidental pauta-se por uma razo que assume a

    crena na qual as suas experincias tornam-se referncias universais como se fosse a mesmarealidade experimentada por todos. Como conseqncia, ressalta o autor, a razo metonmica

    no capaz de aceitar que a compreenso do mundo muito mais do que a compreenso

    ocidental do mundo (SANTOS, 2002, p. 7).

    dessa forma que o mundo ocidental aceita como natural o fato de ter o mercado

    como orientador central de sua lgica (POLANYI, 1980). Assim, a propagao desta lgica a

    esferas da vida humana exteriores ao mercado e s lgicas econmicas, parece estar sendo

    operada irrefletidamente pela sociedade moderna e, ao no se questionar tal processo,

    corremos o risco de sujeitar a totalidade inesgotvel do mundo lgica mercantil

    (SANTOS, 2002, p.44).

    Chanlat (2002) sugere que estamos assistindo emergncia da sociedade managerial,

    corroborando com a viso de Ramos (1989) a respeito da sociedade centrada no mercado. Em

    comum, as duas abordagens apresentam o argumento de que a racionalidade tpica das

    empresas vem invadindo outros enclaves da vida humana associada, culminando na conduo

    das questes pessoais e profissionais com base nesta racionalidade. A partir deste quadro,

    podemos verificar o processo dentro do qual muitas empresas tem utilizado o apelo a aspectos

    sociais para valorizar seus produtos e atingir um nmero maior de consumidores.

    Tomando por base a centralidade das empresas no mundo moderno, evidenciada por

    Sol (2004), o discurso por elas adotado pode ser uma importante via de penetrao da lgica

    de mercado na esfera solidria, por exemplo. Neste contexto, o Marketing Relacionado a

    Causa uma estratgia que vem sendo utilizada pelas empresas para vincular a imagem

    empresarial a questes sociais que mobilizam o consumidor, estimulando-o ao consumo por

    intermdio de uma idia de ao socialmente responsvel. Esta vinculao comunicada por

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    meio de um discurso, o qual carrega consigo uma gama de significados.

    Considerando que a Anlise Crtica do Discurso tem como objetivo explorar a relao

    entre o uso da linguagem e ideologia, recorremos a este suporte metodolgico para

    desconstruir alguns discursos organizacionais a fim de verificar o papel das empresas no

    processo de naturalizao da expanso da lgica mercantil a outros enclaves sociais,

    precisamente no campo das aes solidrias.

    Assim, este trabalho procura responder a seguinte questo: o contedo das

    comunicaes institucionais veiculados por empresas, os quais esto relacionados a sua aes

    solidrias, evidencia prticas de mercantilizao do bem? O objetivo deste artigo, assim,

    consiste em analisar informaes publicadas pelas prprias empresas, a fim de identificar se

    h indcios de que as aes sociais por elas praticadas estejam sendo abordadas como

    mercadorias, importante trao da empresarizao. Ressalta-se a importncia dessa discusso

    na rea dos estudos organizacionais, uma vez que a expanso irrefletida dos conceitos e idias

    prprias do espao econmico e do mundo empresa para o campo da ao solidria tende a

    dificultar todo esforo em desenvolver um pensamento alternativo em termos de gesto e

    organizao do trabalho, algo que possa, de certa forma contribuir para discusses a respeito

    de outras possibilidades de organizar em nossa sociedade.

    2 EMPRESA, ECONOMIA E MERCADO

    O mercado, como objeto de estudo, tem sido prioritariamente explorado pela

    disciplina de economia. Observa-se, neste sentido, que as publicaes, em sua maioria, so da

    abordagem neoclssica, ou seja, a nfase est no conhecimento do mercado como

    mecanismo de formao dos preos e, portanto, de alocao dos recursos a partir dos quais

    uma sociedade se reproduz e se desenvolve (ABRAMOVAY, 2004, p.35).

    De acordo com esta abordagem, expresses como oferta, demanda e preo, por

    exemplo, so conceitos centrais para se entender a dinmica do mercado. Explicaes sobre o

    funcionamento destes elementos podem ser observadas j em Adam Smith, sendo sua

    publicao de 1776, A riqueza das naes: investigao sobre sua natureza e suas causas,

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    considerada o marco do nascimento da cincia econmica (BIANCHI ; SANTOS, 2005).

    Neste livro, guiado pelo esprito filosfico-cientfico dominante na poca, o autor fez uma

    brilhante explicao para a lgica dos fenmenos coletivos atribuindo economia a

    responsabilidade de fornecer uma resposta para ordem social (GANEM, 2000, p.14). Esta

    ordem social, na sua perspectiva, seria garantida pelo mecanismo da mo invisvel, metfora

    criada em seu primeiro livro, Teoria dos Sentimentos Morais (1759), mas que se tornou

    elemento explicativo fundamental em A riqueza das naes.

    De acordo com Bianchi e Santos (2005) a partir da idia da mo invisvel de Smith

    estabeleceu-se o que at o sculo XVIII parecia inconcebvel, a possibilidade de conjuno

    entre interesses privados e interesse pblico, entre a busca do interesse prprio do indivduo e

    o bem-estar social. Esta conjuno entre o individual e o coletivo alcanada atravs da

    diviso do trabalho, categoria analtica de alta importncia na teoria do desenvolvimento

    econmico de Smith. Para o autor, a diviso do trabalho no uma inveno humana, mas

    conseqncia de uma propenso natural do ser humano troca e barganha. A situao de

    interdependncia provocada por esta diviso do trabalho cria uma ordem social, cabendo

    mo invisvel regular o comportamento social. Portanto, conclui o autor que no da

    benevolncia do aougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que devemos esperar nosso jantar,

    mas da considerao que eles tm pelo seu prprio interesse (SMITH, 1983, p.50).

    Nas explicaes de Smith, assim como em todos os autores afiliados economia

    neoclssica, h uma questo axiomtica: a posio central e autnoma da esfera econmica

    nas sociedades. Esta subordinao das sociedades modernas esfera econmica , na

    descrio de Polanyi (1980), uma situao indita na histria. Segundo o autor anteriormentea nossa poca, nenhuma economia existiu, mesmo em princpio, que fosse controlada por

    mercados (POLANYI, 1980, p.59). Isto no significa dizer que em sociedades anteriores o

    mercado era ausente, apenas no desempenhava papel central. O autor destaca que em

    sociedades primitivas so encontradas formas de atividades econmicas complexas, como

    redistribuio, reciprocidade e domesticidade.

    Clastres (1988) argumenta que, a partir de um olhar etnocentrista, as sociedades

    primitivas so freqentemente julgadas inferiores, assim como o funcionamento de suaseconomias, uma vez que eram organizadas em torno de atividades de subsistncia. A restrio

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    da economia a este tipo de atividade freqentemente atribuda incapacidade de gerao de

    excedentes, pois se acredita que o envolvimento na produo do mnimo necessrio

    sobrevivncia atuaria como impeditivo para esta gerao. A suposta inferioridade tecnolgica

    tambm citada como razo pela permanncia nesta condio econmica. Para Clastres

    (1988), estes argumentos denotam s sociedades primitivas um carter de miserabilidade,

    cenrio que, conforme o autor, em nada se assemelha realidade experimentada por estas

    sociedades. O fato de caracterizarem-se pela economia de subsistncia no se justifica por

    incapacidade, mas sim pela recusa de um excesso intil, a vontade derestringir a atividade

    produtiva satisfao das necessidades (CLASTRES, 1988, p.8).Trazida para a sociedade

    moderna, a reflexo de Clastres (1988) nos permite inferir que seria mais razovel limitar

    nossos desejos para pode restringir a atividade produtiva, ao invs de aumentar a atividade

    produtiva para poder alcanar nossos ilimitados desejos.

    Ainda conforme Clastres (1974), a produo excedente est relacionada ao de

    uma fora externa e justamente a ausncia dessa fora externa que define a natureza das

    sociedades primitivas. Nos termos do autor, a fora externa a potncia de sujeitar, a

    capacidade de coero, o poder poltico. O surgimento do poder poltico no seio de uma

    sociedade no se traduz apenas no estabelecimento de classes, representa profundas

    transformaes nas relaes entre os homens provocando uma verdadeira revoluo de

    valores. Assim, a substituio do coletivismo pelo individualismo e a autonomizao da

    esfera econmica so caractersticas diferenciadoras entre as sociedades modernas e

    primitivas (DUMONT, 2000).

    Frente a caractersticas identificadas em sociedades primitivas, verifica-se quepressupostos trazidos a tona por Adam Smith em ARiqueza das Naes, como, por exemplo,

    a natural propenso do homem para troca e barganha, so refutveis. Contudo, a idia do

    Homem Econmico que predominou a partir do sculo XIX, legitimou eticamente o interesse

    individual e favoreceu a construo de uma psicologia de mercado (POLANYI, 1980).

    Desde ento, a sociedade ocidental vivencia uma experincia sem precedentes: a dominao

    social pelo mercado.

    Dentre as conseqncias deste processo est a incorporao de diversas esferas davida humana pelo mercado. Polanyi (1980) analisa o efeito deste processo sobre o trabalho e a

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    terra, ou seja, analisa a transformao destes fatores em mercadorias.

    O ponto crucial o seguinte: trabalho, terra e dinheiro so elementosessenciais da indstria [...] Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiroobviamente no so mercadorias. O postulado de que tudo que comprado evendido tem que ser produzido para venda enfaticamente irreal no que dizrespeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definio emprica deuma mercadoria, eles no so mercadorias (POLANYI, 1980, p.84).

    No entanto, esta fico extremamente eficaz uma vez que permite a aplicao dosmecanismos do mercado a estes elementos. Desta forma, h um preo de mercado para o uso

    da fora de trabalho (salrio) e um preo de mercado para o uso da terra (renda). Assim como

    houve a mercantilizao destes fatores, outras esferas da vida humana tm sido incorporadas

    pelo mercado (RAMOS, 1989.)

    De acordo com os estudos realizados por Sol (2008) e Abraham (2007), uma

    caracterstica fundamental do mundo moderno a centralidade da empresa. Para eles, a

    empresa que operacionaliza a maioria dos traos que caracterizam a modernidade e, aomesmo tempo, deles se beneficia, ou aos seus detentores, instituindo relaes sociais

    especficas, marcadas pelo individualismo, pelo egosmo, pelo isolamento e estranhamento,

    pela transformao de objetos, relaes e seres em mercadoria, bem como em propriedade

    privada, baseados em uma sensao de alto nvel de incerteza. Nessas relaes o dinheiro

    mediador, h uma concepo especfica da felicidade fortemente vinculada ao consumo, ao

    emprego e, contraditria com a necessidade de produzir constantemente insatisfao de modo

    a garantir o fluxo de consumo e a busca desta felicidade de mercado. A centralidade daempresa vista com tal intensidade por estes autores que eles afirmam que ela produz o

    indivduo e a linguagem.

    3 A EXPANSO DO MERCADO E A MERCANTILIZAO DO BEM:EVIDNCIAS DA EMPRESARIZAO

    A constatao de que o mercado vem se expandindo para outras esferas de atuao da

    vida humana, at ento no consideradas primordialmente econmicas, tem sido demonstrada

    por estudiosos de diferentes campos do conhecimento. Destaca-se neste contexto a leitura do

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    socilogo brasileiro Ramos (1989), para quem a organizao social centrada no mercado

    contribui para que os parmetros e valores associados a este enclave acabem por afetar outras

    esferas da vida humana, reduzindo a possibilidade de o homem exercitar habilidades que lhes

    so inerentes e nicas, como a racionalidade substantiva. Ramos (1989, p.148) afirma que o

    mercado tende a transformar-se numa categoria de abrangncia total, quanto ordenao da

    vida individual e social. Sobre este pressuposto, a organizao moderna atua tanto sobre seus

    membros como sobre o pblico em geral, buscando gerenciar as impresses que este

    formula a seu respeito.

    Bauman (2008) argumenta que a evoluo do mercado sobre outras esferas caracteriza

    uma sociedade de consumidores, uma rede peculiar de interaes humanas cujas principais

    unidades tendem a ser os encontros entre potenciais consumidores e potenciais objetos de

    consumo.

    Estudos empricos realizados tm demonstrado tais fenmenos na prtica, como

    Rodrigues, Silva e Dellagnelo (2009) expondo a empresarizao do esporte e da religio,

    Rodrigues e Silva (2009) que aprofundam a anlise da empresarizao em times de futebol,

    Hoffman e Dellagnelo (2007) discutindo esta mesma tendncia em grupos teatrais e Simes e

    Vieira (2010) com a apropriao do campo cultural pelo mercado. Nestes estudos, assim

    como outros tambm apontam, percebe-se que h uma instrumentalizao da racionalidade

    humana, a qual passa a ser dominante nos processos de tomada de deciso na sociedade

    moderna, fundamentada no clculo e na noo de funo, abrangendo setores que no eram

    caracterizados pela lgica de funcionamento do mercado e que vem sofrendo alteraes em

    sua configurao para um melhor ajustamento a este.Na viso de Bauman (2008, p. 19), a sociedade de consumidores se distingue por

    uma reconstruo das relaes humanas a partir do padro e semelhana das relaes entre

    os consumidores e os objetos de consumo. Para o autor, isso decorre da anexao e

    colonizao, pelos mercados de consumo, do espao que se estende entre os indivduos.

    Compartilhando desta perspectiva, Ezequiel (2004) afirma que o neoliberalismo funda

    uma sociedade fragmentada, baseada na lgica mercantil, na qual somente os consumidores

    so reconhecidos. O indivduo passa a buscar seus interesses econmicos em detrimento do

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    estabelecimento de uma relao que leve o outro em considerao, exceto quando essa relao

    possa lhe trazer alguma vantagem.

    Os investimentos realizados em pesquisas, desenvolvimento de produtos, propaganda

    e marketing que superam quaisquer outros feitos nos indivduos na sociedade moderna

    reforam esta perspectiva, alm de assinalar, cada vez mais enfaticamente, que o principal

    papel do indivduo no sistema hoje o de consumidor. Em nenhuma outra esfera ele to

    necessrio (BAUDRILLARD, 1995). No mesmo sentido, Bauman (2008, p.103) afirma que

    a participao ativa nos mercados de consumo a principal virtude que se espera dos

    membros de uma sociedade de consumo.

    Esta mercantilizao, no entanto, no ocorre em nome de uma eficincia econmica, e

    sim como uma lgica de funcionamento do organismo social, baseado em construes

    modernas como o individualismo (Dumont, 2000), o mito da escassez (Sahlins, 1972), a

    privatizao do mundo (Proudhon, 1988), a racionalizao (Weber, 2004) e a ideologia do

    progresso (Schumpeter, 1982).

    Nesta lgica, Abramovay (2009, p.7) enfatiza que

    [...] o aumento potencial do tempo socialmente livre decorrente da elevaoda produtividade do trabalho traduz-se no esforo de gerar emprego e natentativa obstinada de fazer da vida pessoal e comunitria, dos cuidados como meio ambiente, da troca livre de conhecimentos e informao um campode trocas mercantis, quando nada justifica - sob o ngulo da pura eficinciaeconmica - que esses terrenos se submetam lgica do mercado.

    De acordo com Abramovay (2009, p.10), h uma propenso destrutiva do mercado deapropriar-se de domnios da vida social em que sua presena pode representar ganhos

    empresariais, mas no aumento de eficincia social. A expanso crescente do domnio da

    empresa sobre os seres humanos em todas as partes do planeta chamada por Sol (2004) de

    empresarizao do mundo, sendo as privatizaes o aspecto mais saliente deste processo.

    As associaes humanitrias fazendo marketing e os desempregados vistos como clientes so

    apenas outros exemplos utilizados pelo autor para ilustrar suas concluses.

    Nesta perspectiva de expanso do mercado, um fenmeno que vem ganhando fora

    desde a dcada de 50 merece ateno: a Responsabilidade Social Corporativa. Com diferentes

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    orientaes epistemolgicas e tericas, o tema suscita debates e vem recebendo crticas de

    diversos autores. Gohn (2010) prope questionar a densidade e a validade da noo de

    responsabilidade/compromisso social, avaliando se tais prticas sero capazes de resolver ou

    impactar os problemas sociais existentes ou se so apenas novas formas de encobrir

    problemas sociais. Barcellos e Dellagnelo (2010) demonstram a centralidade da orientao

    utilitarista e funcionalista dos estudos desenvolvidos sobre o tema no Brasil, o que j era

    demonstrado por Garriga e Mel (2004) acerca do panorama internacional.

    A principal questo que se coloca a instrumentalizao do conceito de

    Responsabilidade Social, circunscrevendo o assunto a mais uma forma de a empresa se

    relacionar com os diversos pblicos interessados e, com isso, obter vantagens em termos

    financeiros, ganhos de imagem e agregao de valor ao produto (GARRIGA; MEL, 2004;

    BARCELLOS; DELLAGNELO, 2010)

    Para Fontanelle (2006,p.4), a responsabilidade social uma forma de posicionamento

    estratgico das empresas perante o consumidor, com vistas a abranger o chamado consumo

    tico e, por meio de estratgias e aes que valorizam suas aes sociais, as empresas visam

    atingir um consumidor disposto a fazer uma escolha politicamente correta. Neste contexto, a

    utilizao do Marketing Relacionado a Causa vem atender a necessidade das empresas de

    vincular sua imagem a questes sociais que mobilizam o consumidor, estimulando-o ao

    consumo por intermdio de uma idia de ao socialmente responsvel. o caso de empresas

    que vinculam a venda de determinados produtos contribuio financeira a alguma entidade

    que realize aes sociais.

    Garriga e Mel (2004) apresentam vrios conceitos de marketing relacionado causa,enfatizando que se caracteriza por uma oferta por parte da empresa de uma quantia especfica

    de recursos a uma causa determinada, objetivando potencializar as receitas e vendas da

    empresa e/ou sua relao com o consumidor construindo a marca por meio da aquisio e

    associao com a dimenso tica ou de responsabilidade social. A busca consiste em produzir

    diferenciao, criando atributos de responsabilidade social que afetem positivamente a

    reputao da empresa. Estas estratgias podem ajudar a sustentar preos mais altos, j que os

    consumidores afirmam estar dispostos a pagar um preo ligeiramente mais alto por produtosque apiem boas causas (PRINGLE; THOMPSON, 2008).

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    Esta viso reforada por Farache et al. (2008), cujas argumentaes apontam que as

    estratgias de marketing relacionado a causa ajudam as empresas a melhorar sua reputao e a

    imagem corporativa, estreitam os laos com empregados e aumentam as vendas e os lucros.

    No entendimento destes autores, as vantagens so tambm estendidas s causas sociais e

    caritrias, por meio de ganhos financeiros e da publicidade gratuita. Alm disto, os

    consumidores tambm so beneficiados pois, na medida em que esto adquirindo produtos

    que apiam causas, esto ajudando a sociedade, o que proporciona sentimento de satisfao

    por estar fazendo algo bom.

    A publicidade exerce um papel importante neste processo. Por meio da publicidade, as

    empresas assumem a funo de cuidar das necessidades da populao carente, esvaziando a

    noo poltica da cidadania: a responsabilidade do indivduo pelos destinos da sociedade em

    que vive. As empresas-cidads exercem sua responsabilidade social e substituem os

    indivduos-cidados, mediando as aes solidrias no mbito da sociedade (EZEQUIEL,

    2004. p.11).

    O autor argumenta ainda que

    [...] na lgica de funcionamento da sociedade de consumo, todamanifestao de solidariedade capturada pela publicidade e reduzidaao ato de consumir, o que dificulta a existncia de uma conscinciacrtica sobre o interesse do setor privado nas questes sociais.(EZEQUIEL, 2004. p. 10)

    Ocorre que, de acordo com Baudrillard (1995, p.60), a lgica do consumo a lgica

    da produo e da manipulao de significantes sociais, de forma que no se consome o objeto

    em si, no seu valor de uso, e sim o seu significado no contexto das relaes sociais e das

    condies de pertencimento a determinados grupos tomados como ideais pelo indivduo.

    Assim, partindo da premissa que o consumidor se relaciona com os outros consumidores

    atravs da identificao com as imagens associadas aos produtos que consomem, consumir a

    marca da empresa que est fazendo a sua parte comunica a mensagem de ajudar ao

    prximo. A ajuda ao prximo, o bem, a solidariedade se reificam, transformando-se em

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    mercadorias a serem usadas e mostradas e em significados a serem comunicados e

    interpretados (EZEQUIEL, 2004).

    O termo bem pode ser associado a muitos conceitos e noes. Desde a antiguidade

    os conceitos de bem e mal fazem parte das reflexes de filsofos. Assim, ao longo da histria

    da humanidade o significado do bem sofreu modificaes. Plato atribuda a

    inaugurao dos debates filosficos sobre o tema. No entanto, a caracterizao que

    encontramos em Plato sutilmente modificada para atender aos propsitos morais do

    cristianismo. O Bem, no apenas se identifica com o Ser, mas com Deus, um nico Deus; e o

    Mal, agora no apenas se identifica com o No Ser, mas com o Diabo, ou seja, com a falta de

    Deus (MESTRINER, 2009, p.3). J nas sociedades modernas, a partir da difuso de uma

    razo essencialmente funcional (WEBER apud KALBERG, 1980), o bem e o mal no so

    mais procurados nos smbolos da f, mas na razo humana. Neste caso, percebe-se a difuso

    de uma lgica cada vez mais instrumental ao tema, impondo-lhe um carter utilitrio,

    orientado a causas eficientes. De outra maneira, pode-se entender tambm o bem como uma

    ao social orientada pela racionalidade substantiva, a qual conforme Weber (apud

    KALBERG, 1980) est relacionada a valores, os quais servem de padres sob os quais as

    pessoas orientam seus modos vidas.

    Quando constatamos a mercantilizao de todas as esferas da vida humana associada

    (RAMOS, 1989) e o processo de empresarizao do mundo (SOL, 2008), percebemos que

    mesmo a mais genuna ao de bondade parece estar sendo absorvida pela lgica de mercado

    na medida em que possvel praticar o bem por meio de transaes mercantis. A

    transformao do bem em mercadoria tem conseqncias e caracterstica da tomada desteespao pela ordem mercantil. assim que Livingstone (apud BAUMAN, 2008, p.154)

    constata,

    [...] a forma mercadoria penetra e transforma dimenses da vida socialat ento isentas da sua lgica, at o ponto em que a prpriasubjetividade se torna uma mercadoria a ser comprada e vendida nomercado, como a beleza, a limpeza, a sinceridade e a autonomia.

    Na viso de Ezequiel (2004, p.11) quando mediamos a ajuda ao prximo pelo

    consumo de produtos acabamos por transformar o outro em produto: desodorante (menor

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    carente), tintura para cabelos (abrigo para idosos), vitamina C (deficientes fsicos). Para o

    autor, esta transformao do outro em produto inseparvel da transformao do eu em

    produto, culminando numa sociedade onde no h reconhecimento da alteridade: tudo

    mercado, at a misria. Esta forma mediada de ajudar o outro facilitada e comodificada

    pelas facilidades da mercadoria, as quais se mantm educadamente silenciosas e no fazem

    perguntas, muito menos as embaraosas, no pedem para voc voltar outro dia nem lhe

    contam como tem sido dura a vida margem da sociedade.

    Para Bauman (2008), as mercadorias so totalmente dceis, obedientes a serem

    manejadas e colocadas em uso pelo onipotente sujeito. Por sua docilidade, elevam o

    comprador categoria de sujeito soberano, incontestado e desobrigado. Ao encontro desta

    viso, Schreven et al. (2008) argumentam que se cria uma zona de acomodao quando os

    tores se limitam a exercer o questionamento ao capitalismo dominante por meio de escolhas

    de consumo.

    As facilidades da mercadoria (EZEQUIEL, 2004) so possibilitadas por uma outra

    construo humana, o dinheiro o qual, conforme j observava Simmel (apud SOUZA ;

    OELZE, 1998), assume na sociedade moderna o papel de intermediador das relaes,

    permitindo uma objetividade nas atividades de associao, libertando o indivduo de laos

    constrangedores e vinculando-o ao todo por meio da doao e recepo de dinheiro, e no

    mais como pessoa por inteiro. Esta forma de relacionar implica anomimato e desinteresse pela

    individualidade do outro, o que caracteriza o individualismo.

    Assim, quando a relao de ajuda ao prximo mediada pela aquisio de um

    produto, transforma o prprio ato em produto, e, por conseqncia, o prximo em produto, deforma que se materializa a mercantilizao de uma caracterstica fundamental das relaes

    sociais: a solidariedade. Ser solidrio mais um produto venda no mercado e est

    disposio dos consumidores, quer seja ao clique de um mouse, mostra em uma prateleira,

    no balco de uma lanchonete ou disponvel em um catlogo de cosmticos.

    Bauman (2008) argumenta que uma relao centrada na utilidade e na satisfao o

    oposto de solidariedade, de relaes humanas diretas (eu-voc) destinadas a desempenhar o

    papel de cimento no edifcio do convvio humano, como a idia de caridade apresentada porArendt (2008). Para o autor, a criao de um relacionamento bom e duradouro, em total

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    oposio busca de prazer por meio de objetos de consumo, exige um esforo enorme, um

    aspecto que a relao de consumo nega em nome de outros valores, dentre os quais no figura

    a responsabilidade pelo outro, considerada fundamental em termos ticos. Para Pags et al

    (2008, p.96), a filiao a valores determinados pela empresa caracteriza uma alienao da

    conscincia social, de forma que sua conscincia de pertencer a uma coletividade, e seu

    desejo de apropri-la, produzi-la, que so pervertidos, desviados e fraudados.

    4 ANLISE CRTICA DO DISCURSO

    De acordo com Fairclough (2001, p.130), a extenso dos modelos de mercado a novas

    esferas pode ser investigada mediante a recente colonizao extensiva das ordens de discurso

    pela publicidade e outros tipos de discurso. Para o autor, a democratizao do discurso que

    ocorre na sociedade est ligada aos processos de mercatilizao e aparente mudana de

    poder dos produtores para os consumidores, que est vinculada ao consumismo e s novas

    hegemonias a ele atribudas. Neste contexto, desconstruir os discursos uma importante

    tarefa para se compreender as ideologias subjacentes ao seu contedo, bem como desvendar

    idias naturalizadas na sociedade. Para empreender esta desconstruo a Anlise Crtica do

    Discurso (ACD) parece-nos-se como uma alternativa apropriada.

    O termo discurso entendido por Fairclough (2001) como o uso da linguagem como

    forma de prtica social. Neste sentido, a prtica discursiva e a prtica social tm uma relao

    dialtica, pois ao mesmo passo em que o discurso molda as estruturas sociais tambm por ela

    moldado. Para o autor (2001, p.91), o discurso uma prtica, no apenas de representaodo mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em

    significados.

    Considerando o interesse especial da ACD pela relao entre linguagem e poder

    (WODAK, 2004), podemos pontuar como objetivo primeiro da ACD a desconstruo, em

    manifestaes discursivas, de questes como dominao, opresso, manipulao,

    discriminao e abuso de poder. Assim, por meio de uma anlise crtica, possvel expor

    ideologias subjacentes ao discurso e desnaturalizar idias tidas como certas ouinquestionveis pela ou na sociedade. A ACD, segundo Wodak (2004), um importante

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    recurso para investigar discursos institucionais, os quais nos propusemos investigar nesse

    estudo, e da mdia em geral, a fim de evidenciar manipulaes e ideologias contidas nas

    prticas discursivas destes produtores.

    5 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS DO TRABALHO

    Conforme lembra Magalhes (2005), a grande contribuio de Fairclough foi a criao

    de um mtodo para o estudo do discurso. O modelo tridimensional de anlise do discurso

    proposto pelo autor envolve a investigao de trs dimenses: textual, prtica discursiva e

    prtica social.

    Fairclough (2001) indica que a anlise da dimenso textual, com a qual nos

    propusemos trabalhar nesta pesquisa, deve ser organizada em quatro itens em escala

    ascendente: o vocabulrio, a gramtica, a coeso e a estrutura textual. A partir da anlise das

    escolhas lexicogramaticais (vocabulrio e gramtica), podemos, incorporando elementos da

    lingustica sistmico-funcional propostos por Halliday (1998), reconhecer significados

    implcitos no discurso. Estes significados, revelados pelo uso da linguagem, so categorizados

    em trs tipos: significados ideacionais, que codificam ou expressam nossa representao da

    realidade, reforando e/ou desafiando nossos sistemas de conhecimentos e crenas;

    significados interpessoais, que manifestam como, pelo uso da linguagem, estabelecemos

    identidades e relaes sociais; e os significados textuais, que revelam o que os produtores do

    discurso salientam, ou no, em seus textos (RESENDE; RAMALHO, 2006; MEURER;

    DELLAGNELO, 2008). As categorias que operacionalizam a anlise destes trs tipos designificado esto apresentadas no quadro 1. Ainda dentro da anlise da dimenso textual,

    Fairclough (2001) aponta mais dois elementos, a coeso, a qual se refere anlise da ligao

    entre oraes e frases e a estrutura textual, que trata das propriedades organizacionais de

    larga escala dos textos (FAIRCLOUGH, 2001. p.103).

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    Significados ideacionais Significados interpessoais Significados textuais

    Processos

    Participantes

    Circunstncias

    Afirmativo

    Interrogativo

    Imperativo

    Tema

    Rema

    Quadro 1Categorias analticas dos tipos de significadosFonte: elaborado pelas autoras a partir de Meurer e Dellagnelo (2008)

    A dimenso da prtica discursiva envolve a interpretao dos processos de produo,

    distribuio e consumo de textos. Em relao produo, busca-se traduzir o modo comoaquele que produziu o texto interpreta o mundo; quanto distribuio, investiga-se para quem

    so dirigidos os textos e as formas como estes circulam; e no que tange ao consumo, busca-se

    entender qual o significado atribudo ao ser lido/ouvido determinado texto, ou seja, como

    produtores(as) de textos e potenciais leitores(as)/ouvintes criam sentidos a partir dos

    contedos textuais; como estabelecem relaes de coerncia; como (re)criam a textualizao

    de possveis intenes (fora ilocucionria); como se coadunam com outros textos

    (intertextualidade) e com outros discursos (interdiscursividade) (MEURER;

    DELLAGNELO, 2008, p.48).

    Por fim, em relao terceira dimenso do modelo de Fairclough, prtica social,

    busca-se explicar as formas de ideologia e hegemonia contidas no discurso.

    Neste artigo, objetivou-se desconstruir os textos, buscando revelar os significados

    ideacionais contidos nos discursos analisados para, ento, compreender as crenas produzidas

    por eles. Para isso, procurou-se identificar quem faz o que e em que circunstncias,atravs da

    anlise lingstica de trs categorias bsicas: processo, participante e circunstncia. No quadro

    2 apresentamos um exemplo de como este processo foi efetuado em um trecho do discurso

    veiculado no site do Banco Santander.

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    Trecho analisado: Ao adquirir o Din Din S alegria, voc combina a realizao desonhos com a oportunidade de ajudar uma ONG muito especial, os Doutores daAlegria.Quem faz o que em que circunstncia?

    Participante

    principal

    Processo Participante secundrio Circunstncia

    Ao adquirir Din Din s alegria

    Voc Combinar a realizao de sonhos com aoportunidade de ajudar

    Quadro 2anlise do significado ideacionalFonte: elaborado pelas autoras

    A abordagem privilegiou trechos e fragmentos discursivos considerados relevantes, os

    quais compem o corpus do estudo. Os textos foram coletados nos meses de setembro e

    outubro de 2010, exclusivamente de fontes situadas na Internet. Fazem parte do corpus do

    estudo o discurso institucional disponvel nos sites de trs empresas praticantes do marketing

    relacionado causa: AVON, Santander e HSBC. Os casos selecionados no podem ser

    considerados representativos de todo universo miditico ou organizacional, mas soilustrativos da problemtica abordada no estudo.

    6 APRESENTAO E ANLISE DOS CASOS SELECIONADOS

    6.1 Campanha Avon contra o cncer de mama

    Segundo as informaes divulgadas pela empresa, a iniciativa da Avon no campo dasolidariedade consiste em apoiar a causa do cncer de mama. De acordo com informaes

    contidas no seu sitei, o esforo para reduzir o nmero de mortes por cncer de mama uma

    das suas grandes causas globais em termos de investimento social, sendo que as aes tiveram

    incio em 1992. No Brasil, a principal ao da empresa a Campanha Lao Rosa. Dentro

    deste contexto, so produzidas camisetas, vendidas pelo valor de R$ 15,00 cada, sendo que a

    venda de cada camiseta gera uma doao de R$ 4,00 para o Instituto Avon, o qual, de acordo

    com informaes da empresa, aplica o dinheiro em projetos que visam a diminuio damortalidade feminina causada pela doena. A Avon informa que os produtos no tm margem

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    de lucratividade, por se tratar de uma causa social. Os ganhos de imagem e da associao da

    marca causa no so mencionados. Alm da venda das camisetas, a empresa realiza uma

    srie de eventos como caminhadas, palestras, shows e mobilizaes em todo o pas, no intuito

    de informar a populao acerca da importncia do diagnstico precoce da doena.

    Para a anlise do discurso da Avon, apresentamos o seguinte trecho:

    A partir deste ms, voc j pode adquirir um dos trs modelos de camisetas

    da coleo Lao Rosa, da campanha Avon Contra o Cncer de Mama.Cada um deles custa R$ 15,00, com doao de R$ 4,00 ao Instituto Avon.Assim, mais projetos que visam a deteco precoce da doena seroapoiados.

    Este ano, alm do Instituto apostar no enfrentamento do cncer de mama,est contribuindo tambm com o meio ambiente. Duas das trs camisetasso confeccionadas a partir da reciclagem de garrafas pet. Isso mesmo. Naproduo de cada pea so utilizadas duas garrafas. Inicialmente, serpossvel retirar do meio ambiente mais de 220 mil pets. E voc podepotencializar essa ao adquirindo as peas. Por isso, convidamos todos aparticipar da campanha Avon Contra o Cncer de Mama e a despoluir omeio ambiente. (AVON, 2010, grifo nosso).

    Analisando o discurso selecionado, dentre os veiculados pela empresa sobre a

    campanha, percebe-se que a ao de adquirir a camiseta oferecida ao indivduo, consumidor,

    que, ao realiz-la, possibilita a doao de R$ 4,00 ao Instituto Avon, que quem apia

    projetos que visam deteco precoce do cncer de mama, ou seja, a ao solidria de quem

    adquire a camiseta intermediada pelo instituto criado pela empresa. O fato de afirmar que

    assim, mais projetos sero apoiados, condiciona o apoio a mais projetos aquisio das

    camisetas, reificando o apoio causa na forma de camisetas.

    Em seguida, argumenta-se que este ano h mais de uma causa vinculada

    comercializao das camisetas, j que alm de apostar no enfrentamento do cncer, h

    tambm uma contribuio ao meio ambiente. As expresses alm de e tambm traduzem

    a idia de aes adicionais, oportunizando ao consumidor mais de uma ao solidria por

    intermdio da aquisio dos produtos. Tambm interessante notar que tanto quem aposta no

    enfrentamento do cncer, quanto quem contribui para o meio ambiente o Instituto Avon, e

    no o consumidor, estabelecendo-se um intermedirio no percurso entre doador-doao e

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    atribuindo impessoalidade ao ato de solidariedade: voc adquire a camiseta, esta a sua parte

    no processo.

    Ao desconstruir o discurso voc pode potencializar essa ao adquirindo as peas fica

    evidente o consumo como viabilizador da ao solidria. Observa-se nesta orao que o

    participante, ou seja, quem realiza a ao voc, o consumidor. A aoque realizada

    potencializa e o participante secundrio, ou seja, o que realizado essa ao, a ao de

    retiradas de garrafas pet do meio ambiente. A circunstncia, ou o como a ao viabilizada,

    adquirindo as peas. Assim, o discurso deixa claro queo sujeito tem um papel passivo no

    ato solidrio, ou seja, atravs do consumo das camisetas vendidas pela Avon o indivduo

    contribui com o enfrentamento do cncer de mama e com a despoluio do meio ambiente.

    Assim, temos claramente o ato de consumir (relao mercantil) como elemento central da

    ao solidria, evidenciando, portanto, que ao indivduo cabe o papel de consumidor e ao

    Instituto Avon o executor da ao solidria.

    6.2 Carto HSBC Solidariedade

    Na homepage do Instituto HSBCii, afirma-se que um dos meios mais eficazes para

    fazer o mundo mais feliz pelo desenvolvimento de projetos consistentes. Informa a empresa

    que o Instituto HSBC analisa, incentiva e financia projetos que tenham por objetivo melhorar

    o mundo, em trs reas de atuao: educao, meio ambiente e comunidade.

    O Instituto gerencia o investimento social do banco HSBC e de terceiros, como as doaes

    efetuadas por meio do carto HSBC solidariedade, produto comercializado pelo banco, cujolanamento ocorreu em2006o. De acordo com as informaes oferecidas pela empresa, o

    objetivo do produto arrecadar recursos para a realizao de investimento social. O carto

    isento de anuidade e, em contrapartida, o cliente opta por um valor mensal para doao ao

    Instituto HSBC Solidariedade.

    Na anlise deste caso, tambm foi possvel observar no discurso institucional

    evidncias que apontam para o processo de empresarizao da ao solidria. O primeiro

    pargrafo selecionado para anlise refere-se ao texto introdutrio da linha de produtos

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    comercializada pelo Banco HSBC, na qual est inserido o carto solidariedade, denominada

    Produtos Sustentveis. Segundo o prprio discurso institucional,

    O HSBC oferece a clientes e no clientes uma linha de produtos e serviosfinanceiros que aliam retorno financeiro promoo de soluessocioambientais. So produtos que revertem parte dos lucros parainvestimento social ou que oferecem um tratamento diferenciado iniciativas amigveis ao meio ambiente e comunidade. (HSBC, 2010)

    Neste pargrafo, na orao linha de produtos e servios financeiros que aliam retorno

    financeiro promoo de solues socioambientais est explcito que possvel promover

    solues socioambientais atravs de produtos e servios, ou seja, os produtos e servios so

    portadores do atributo solidrio. Alm de possurem tal atributo tambm conferido aos

    produtos a fictcia capacidade de ao j que veiculado que so produtos que revertemparte

    dos lucros para investimento social. Interessante notar tambm que no explicitada no texto

    a participao do cliente que adquire algum dos Produtos Sustentveis. A origem dos recursos

    financeiros que sero revertidos a causas socioambientais em nenhum momento atribuda ao

    consumidor dos Produtos Sustentveis.

    Em relao ao texto que apresenta especificamente o Carto de Crdito Instituto

    HSBC Solidariedade, mantm-se a coerncia em relao ao discurso introdutrio dos

    Produtos Sustentveis. Afirma o Banco HSBC que

    O Carto de Crdito Instituto HSBC Solidariedade foi lanado em maio de

    2006 com o objetivo de gerar recursos para investimento social. Todas aspessoas interessadas em fazer parte desta rede solidria, sejam clientes eno-clientes, podem adquirir o carto. Os portadores do Carto decidem qualvalor querem doar: de R$ 5,00 a R$ 30,00 mensais. O recurso revertido aoInstituto HSBC Solidariedade que investe em projetos de educao em todasas regies do Brasil.

    Identifica-se na frase o Carto de Crdito Instituto HSBC Solidariedade foi lanado

    em maio de 2006 com o objetivo de gerar recursos para investimento social que o carto o

    agente da gerao de recursos. Alm de conferir poder de ao a um objeto, no discurso

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    omitido o modo como isto se realiza, ou seja, a participao do consumidor do Carto

    subtrada.

    Observa-se na frase: todas as pessoas interessadas em fazer parte desta rede solidria,

    sejam clientes e no-clientes, podem adquirir o carto, que, conforme o discurso da empresa,

    o modo que as pessoas tm para fazer parte de uma rede solidria atravs do consumo de um

    produto comercializado pelo HSBC. Assim, h um total distanciamento dos indivduos

    daqueles que sero sujeitos centrais em sua ao solidria, e a solidariedade, neste caso, pode

    ser mediada pelo mercado. Importante acrescentar tambm que neste discurso, o ato solidrio

    totalmente transmutado uma vez quefazer o bem, na essncia, envolve decises substantivas

    e, portanto uma ligao emocional entre aquele que pratica e aquele que recebe. Assim, ao

    afirmar que o recurso revertido ao Instituto HSBC Solidariedade que investe em projetos de

    educao em todas as regies do Brasil identifica-se duas situaes que ratificam o processo

    de empresarizao: primeiro, alienado do indivduo doador a deciso da causa a colaborar,

    no havendo nenhuma aproximao entre aquele que pratica a doao e aquele que a recebe;

    e, segundo, omitido novamente no discurso da empresa a participao do consumidor do

    carto, uma vez que est salientado que o agente do investimento o Instituto HSBC

    Solidariedade. Nota-se que o uso da palavra invested ao Instituto uma conotao de agente

    ativo do ato solidrio quando, por exemplo, poderia ter sido adotada a palavra repassa,

    transferindo para o consumidor do Carto o papel ativo do ato solidrio.

    Por fim, dentre as vantagens que a empresa destaca para o consumidor ao adquirir o

    Carto de Crdito Instituto HSBC Solidariedade est a contribuio para um mundo mais

    feliz. Tal feito viabilizado pela empresa HSBC ao proporcionar a facilidade de debitarautomaticamente na fatura do carto o valor estipulado pelo cliente a ser doado para o

    Instituto. Simples assim! H apenas uma ressalva: fazer parte da rede solidria possvel

    apenas queles que possuem renda mnima de R$ 490,00.

    6.3 Din Din S Alegria Santander

    O Din Din S Alegria um ttulo de capitalizao oferecido pelo Banco Santander,que combina o investimento no ttulo a doaes feitas a ONG brasileira Doutores da Alegria.

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    Encontramos nositeda empresaiiique parte do valor arrecadado com a venda do Din Din

    S Alegria revertido para os projetos desta ONG.

    Na pgina de divulgao do produto, encontra-se inicialmente o seguinte texto:

    Ao adquirir o Din Din S alegria, voc combina a realizao de sonhoscom a oportunidade de ajudar uma ONG muito especial, os Doutores daAlegria. Parte do valor arrecadado com a venda do Din Din S Alegriaser revertido para os projetos da ONG.

    Voc escolhe o valor da parcela - de R$ 50 a R$ 200,00 - e concorre todasemana a prmios lquidos de at R$ 200 mil e todo ms a prmios lquidosde at R$ 1 milho. E no momento da contratao voc ganha um exclusivoestojo de lpis de cor dos Doutores da Alegria!(grifo nosso. SANTANDER,2010)

    Na orao voc combina a realizao de sonhos com a oportunidade de ajudar uma

    ONG muito especial o agente voc combina duas aes: a realizao de sonhos e a ajuda a

    uma ONG. A realizao de sonhos, neste caso, est vinculada, implicitamente, ao recebimento

    do prmio sorteado pela empresa, dada a lgica de funcionamento de um ttulo de

    capitalizao. Por outro lado, o uso da palavra combinar remete ao significado reunir, agrupar,

    de forma que a doao ONG consolidada juntamente com a possibilidade de ganhar

    prmios, e ambas as aes so viabilizadas pela compra do produto que est sendo oferecido,

    no que fica explcita a possibilidade de comprar a ajuda ONG.

    Destaca-se o fato de que a ONG mencionada somente neste pargrafo introdutrio e,

    ao final, apresentando mais um benefcio vinculado compra do produto: voc ganha um

    exclusivo estojo de lpis de cor dos Doutores da Alegria! Alm de no esclarecer quanto do

    valor que o consumidor paga pelo produto ser efetivamente revertido para a ONG, o smbolo

    material da doao realizada um estojo de lpis de cor.

    Nos textos subseqentes, as informaes dizem respeito exclusivamente forma de

    funcionamento do ttulo de capitalizao e aos prmios aos quais o indivduo concorre ao

    adquirir o produto, exceto pela primeira frase do link vantagens: Ajude a ONG Doutores

    da Alegria e concorra a prmios que vo alegrar a sua vida. Nesta orao, a ajuda ONG

    Doutores da Alegria vinculada a outras duas aes: concorrer a prmios e alegrar a vida.

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    Interessante notar no entanto que o agente da ao alegrar a sua vida no o mesmo agente

    que ajuda a ONG. Tampouco a ajuda ONG que alegra a vida do indivduo, e sim os

    prmios proporcionados, a alguns sorteados, pela aquisio do produto.

    Finalmente, na ltima frase do link prmios h uma nova meno causa vinculada

    ao produto: Alegria fazer muitas crianas sorrirem e ainda ganhar prmios. Aqui, o

    discurso induz interpretao de que, ao comprar o produto, o indivduo est fazendo muitas

    crianas sorrirem, ou seja, parte do dinheiro que voc investe num ttulo de capitalizao e

    que repassado ONG, capaz de fazer muitas crianas sorrirem. A mediao da ao

    solidria, neste caso, se d claramente pelo banco que faz a reverso dos recursos, mas

    tambm, implicitamente, pelo dinheiro que a mercadoria efetivamente objetivada na

    transao. Confere ao dinheiro o poder de fazer as crianas sorrirem.

    Tambm se destaca a vinculao que a proposio e articula na frase, de forma que

    alegria as duas coisas: fazer as crianas sorrirem e ganhar prmios. Coloca as aes em

    condies de igualdade e vincula realizao de uma realizao da outra.

    7 CONSIDERAES FINAIS

    Recuperando o objetivo deste trabalho, verificamos que os discursos empresariais

    analisados permitem inferir que a solidariedade articulada em meio ao discurso empresarial

    como valor agregado a produtos e servios, deixa de ser um atributo das aes do indivduo e

    passa a ser uma mercadoria comercializada, tornando-se atributo de produto e realizada pela

    empresa.As anlises empreendidas permitem verificar claramente que as aes solidrias

    propostas pelas empresas esto indissociavelmente ligadas aquisio de produtos. Mais que

    isso, elas se realizam por intermdio dos produtos, sendo o papel do consumidor restrito ao de

    comprador. O sujeito adquire os produtos, as conseqncias positivas esperadas ficam a cargo

    das empresas, que definem os projetos a serem apoiados, definem os valores, os mtodos de

    investimento e avaliao, enfim, o verdadeiro agente do processo a empresa e no o

    indivduo.

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    O fato de a solidariedade se concretizar no espao de mercado refora a perspectiva de

    Ramos (1989). As relaes entre as pessoas articuladas como relaes de consumo

    evidenciam a sociedade de consumidores de Bauman (2008), e a responsabilizao da

    empresa pela definio e execuo das aes solidrias nos remete ao mundo-empresa de Sol

    (2004). A reduo das experincias interpessoais a trocas mercantis, evidenciadas pelas

    anlises apresentadas, vai ao encontro dos argumentos de Abramovay (2009), muito embora o

    autor tenha alertado para o fato de que esta mercantilizao no agrega nenhuma eficincia

    econmica para a sociedade como um todo.

    No entanto, esta eficincia econmica se realiza para as empresas que vinculam

    produtos a causas sociais. Uma pesquisa do IDISiv (Instituto para o Desenvolvimento do

    Investimento Social) realizada com 88 empresas em 2007 aponta que entre as empresas que

    realizam aes de Marketing Relacionado a Causa: 97% pensam que as aes agregam valor

    marca, 95% acreditam que a estratgia transmite seus valores scio-ambientais, 72% entende

    que ele fideliza o consumidor e 62% afirmam que obtm aumento nas vendas/retorno

    financeiro por meio desta prtica.

    A opinio das empresas acerca das aes realizadas esclarecedora para se perceber a

    orientao das parcerias realizadas com causas sociais, o que vem ao encontro das inmeras

    vantagens apontadas por Garriga e Mel (2004), Pringle e Thompson (2000) e Farache et al.

    (2008). A docilidade da mercadoria (BAUMAN, 2008) e a comodidade que ela proporciona

    (EZQUIEL, 2004) aliadas ao papel exercido pelo dinheiro na sociedade moderna (Simmel

    apud SOUZA; OELZE, 1998) permitem o distanciamento do indivduo das causas que ele

    apia por intermdio da aquisio de produtos, descaracterizando a idia de solidariedade esubstantividade caractersticas das relaes pessoais. Tanto a compra da camiseta cuja parte

    do valor repassada a um instituto empresarial, quanto do carto de crdito com as doaes

    programadas por dbito automtico, como o ttulo de capitalizao que reverte parte do que

    arrecada para uma ONG so casos que ilustram claramente estes argumentos.

    Conforme se pde verificar, as empresas se colocam no centro desse processo de

    mediao, elas so as benfeitoras, elas so os agentes de fato, elas possibilitam que estes

    consumidores apressados, ocupados e loucos para ficar protegidos nos seus apartamentosdesinfetados, ajudem esta gente que no cheira to bem, que tem uma esttica geralmente no

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    aceitvel socialmente, que, muitas vezes, so doentes. Alm de transformarem o bem em uma

    mercadoria, as prticas analisadas respondem idia de felicidade que se constri no mundo-

    empresa, uma felicidade assptica, superficial, construda por mercadorias compradas em

    lojas perfumadas e igualmente desinfetadas, por pessoas que devem ser como aquelas

    utilizadas pelas empresas nas propagandas: sorridentes, bonitas, tranqilas apesar de

    ocupadas, vencedoras, realizadas, boas e ativas. Isto quer dizer que elas tambm esto

    vendendo felicidade quando vendem estes produtos que faro o bem.

    Este trabalho procurou, por intermdio da anlise crtica do discurso, demonstrar que

    as empresas abordam em seus discursos o bem como mercadoria. Isto se verificou vlido para

    os casos que foram estudados, considerados ilustrativos da problemtica em questo. Alm

    desta constatao, tomando o discurso como estrutura estruturante e estruturada na sociedade

    moderna, no se pode deixar de refletir acerca das implicaes destes discursos na prtica

    social de forma mais abrangente, levantando a preocupao acerca de seu impacto sobre

    outras empresas, sobre os consumidores e sobre outros campos, como o terceiro setor, por

    exemplo.

    O discurso, sendo um instrumento de poder, um meio capaz de naturalizar idias no

    seio da sociedade (WODAK, 2004). Acreditamos que dado o papel central das empresas no

    mundo ocidental, o discurso por elas adotado configura uma importante via de expanso da

    lgica de mercado para a esfera solidria. A aceitao dos indivduos quanto possibilidade

    da prtica do bem atravs de uma relao mercantil, revelada por meio da venda e compra de

    produtos solidrios, uma importante evidncia de que a prtica discursiva se revela na

    prtica social e que a prtica social refora a prtica discursiva das empresas.A alienao da conscincia social (PAGS et al., 2008) e a empresarizao do mundo

    (SOL, 2004) podem ajudar a compreender o papel central que as empresas assumem como

    intermediadoras da ajuda que o indivduo se dispe a oferecer e a causa recebedora. Mais do

    que questionar a pertinncia e a eficincia destes atores, questiona-se a posio central que

    ocupam no processo e a implicao disso para a vida dos sujeitos em sociedade. Ao

    delegar empresa papis como o de definidora das aes de solidariedade que

    intencionamos realizar, estamos conferindo a ela o poder de efetivar estas aes com base emsua racionalidade especfica, a qual baseada no clculo utilitrio de conseqncias e cuja

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    preocupao tica incidental, e em seus valores caractersticos, dentre os quais figuram o

    lucro, os resultados a curto prazo e a eficincia, valores incompatveis com a prtica solidria

    caracterstica de uma ao substantivamente orientada.

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