Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)
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O SANGUE DA DEUSA
Kara Dalkey
I – GOA
http://groups.google.com/group/digitalsource
Título original:
Goa quinto. Blood of the Goddess
© 1996, by Kara Dalkey
Travessa do Noronha, 29- 1º - 1250-170 Lisboa
Telefone: 21 397 87 56 - Fax: 21 395 10 26
Apartado 2657 - 1117 Lisboa Codex - Portugal
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Revisão: Frederico Sequeira
Capa: Estúdios Planeta.
Ilustração de Richard Bober
Composição, impressão e acabamento: Grafitexto, Lisboa
Depósito legal nº 164790/01
ISBN 972-731-112-1
”Não, não, tem asas como um morcego enorme!” O quinto homem
sábio tentou rodear a barriga com os braços e exclamou, ”Deve ser um cavalo
com uma grande cilha!” O sexto, que colocara a mão na ampla testa do elefante,
disse: ”Não, irmãos, estamos enganados. Isto não é um animal, mas uma
parede!” Ao sétimo homem cego haviam-lhe dado os testículos para agarrar e
disse: ”Estais todos enganados. Isto são apenas cabaças num saco de couro.”
Algumas versões deste conto terminam com os sete homens cegos a
lutar uns com os outros até à morte por causa das suas discórdias. Mas o
monge budista escolheu concluí-lo de uma outra maneira: ele disse que os cegos
ficaram tão perplexos com as suas respostas divergentes que não conseguiam
acreditar que fosse o mesmo animal. Por isso cada um dos homens manteve a
mão na parte em que primeiro tocara, deslizando a outra mão ao longo do corpo
do elefante até que encontrava a mão do outro. Ao fazerem isto, os homens
cegos descobriram que embora cada parte fosse diferente, juntas formavam
uma só coisa. E apesar de mesmo assim não serem capazes de apreender a
forma completa da criatura, os cegos tiveram a possibilidade de concordar que
devia ser realmente uma criatura maravilhosa. Eu não falo apenas para encher
o ar com a minha respiração, ou para vos ajudar a passar o tempo com
vacuidades agradáveis. Gostaria que se lembrassem desta história na
continuação da vossa jornada. Só se vê um lado da montanha de cada vez.
Vede tudo o que puderdes, mas sabendo que nunca é Tudo. Que possais
caminhar na sombra da Vontade Divina, estranho.
GANDHARVA
Músico da corte do Sultão Ibrahim Adilshah II
1
1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
Capítulo I
CARVALHO: A mais possante das árvores, a mais real e santa. Os antigos
consideravam-na a primeira de todas as árvores. Mesmo agora, existem alguns
que vertem o sangue de animais sacrificados nas raízes do carvalho para obter
as suas bênçãos. A madeira de carvalho é considerada a materialização da
força e da resistência, e é muitas vezes queimada em fogueiras sagradas. Os
seus galhos são usados para juntar ervas medicinais. Um barco construído da
árvore conhecida como carvalho-vermelho, contudo, dá azar e encontrará o
infortúnio...
SETEMBRO DE 1597, ILHAS AMINDIVI, MAR LACCADIVE
Thomas Chinnery ergueu o olhar ao som da trovoada distante. Não
havia nuvens a escurecer o céu opressivo de safira por sobre os mastros de
The Bear’s Whelp. Soprou na tinta molhada da carta que estivera a escrever e
pôs-se de pé. Da amurada do navio, podia ver a linha de palmeiras da costa da
pequena ilha onde haviam ancorado. Não viu qualquer homem com pistola. O
navio companheiro do seu, The Bear, estava fundeado a ocidente, mas o som
viera de leste e norte.
— A escrever outra missiva à tua namorada, Tom? - ouviu ele atrás
de si e estremeceu. O escocês, Andrew Lockheart, era um comerciante de lã,
companheiro do senhor Bathwick, considerado um viajante experimentado e
com fama de tratante. Também parecia estranhamente determinado a
pressionar a sua amizade com Thomas.
- Na verdade, não estou, senhor. É um relatório para o meu amo, o
boticário Geoffrey Coulter de Londres. De onde veio aquele rugido?
Os lábios de Lockheart rodeados de barba negra esticaram-se num
sorriso manhoso.
- Pois eu penso que era uma dama rica a gritar: ”Levai-me e serei
vossa.”
- Senhor, falais por enigmas.
- Achas que sim? Olha para o cimo das árvores longínquas, Tom,
onde ela acena com o lenço para captar os teus olhos.
Thomas fixou o olhar para onde apontava o escocês e viu a ponta de
um mastro, que arvorava um pendão com as cores de Portugal, a mover-se
para sul na direção da ponta da ilha.
- Minha Nossa Senhora - murmurou ele -, outra vez, não. Um
marinheiro na enxárcia do Whelp gritou:
- Um galeão! Não, dois! A avançarem com força!
Os homens já corriam pela costa, abandonando as provisões que
eventualmente tinham recolhido. Saltaram para os esquifes que estavam na
praia e remaram como demônios de volta aos seus navios. O capitão Benjamin
Wood apareceu na coberta da proa, com o cabelo ruivo ondulando ao vento.
- Homens às velas! O Bom Deus manda-nos algo ao nosso engodo.
Se aproveitarmos a brisa, apanharemos a caça lusitana. Levantar âncora! Às
velas!
- Os homens ainda mal recuperaram do nosso último encontro -
suspirou Thomas.
- A cobiça é um remédio muito potente, meu rapaz, e dá vida às
pernas de muitos homens. A propósito disso, talvez tenhas de ir para baixo. As
tuas poções e ervas terão sem dúvida mais utilidade lá.
- Não, os nossos homens disponíveis são poucos. Pedirei ao
contramestre uma espada e entregarei os meus braços à luta.
Lockheart franziu o sobrolho:
- Muito bem dito, rapaz. Mas não te devias poupar para o trabalho
do teu amo?
- Se formos derrotados por falta de homens - disse Thomas -, terei
poucas oportunidades de faturar para o meu amo.
- É verdade. Mas a Dama da Fortuna sorri. Os navios lá de longe
não têm grande capacidade para nos enfrentar. E o capitão Wood tem um
plano engenhoso.
- Como sabeis isso?
- Porque fui eu que lho dei. - Com uma piscadela de olho, Lockheart
atravessou o convés para ajudar nas cordas. Thomas foi para a escotilha entre
os mastros, onde um rapaz puxava espadas de um compartimento em baixo.
Mesmo os marinheiros que se arrastavam fracos de escorbuto se levantavam
para distribuir as armas e as canecas de cerveja.
O navegador colocou-se na roda do leme e puxou-a para bombordo.
A vela mestra desenrolou-se com um craque pesado e virou para apanhar a
brisa de norte. Lentamente, o Whelp avançou para mar aberto. O Bear, alguns
comprimentos atrás, afastou-se da ilha num ângulo mais para sul.
Thomas emborcou a sua caneca cheia de cerveja amarga de uma só
vez. É bálsamo dado antes da ferida. Remédio para entorpecer os sentidos
para aquilo que se deve seguir. Ele podia ouvir as ordens constantes de
tiroteio a serem gritadas abaixo do convés, e o ribombar e o estrondo das
colubrinas a serem preparadas. As pequenas bombardas e peças de artilharia
do convés principal estavam a ser carregadas com o pouco que restava de
munições. Thomas trocou a caneca de cerveja por um cutelo e uma grande
pistola escalavrada e foi-se encostar à amurada.
Os senhores Allen e Bromefield, os mercadores encarregados da
viagem, passaram por Thomas com os rostos ensombrados pela irritação.
Ouviu-os discutir com o capitão Wood, que não tinha nada a ver com aquilo.
“É verdade”, pensou Thomas, “nunca pensei vir a tornar-me mais pirata que
boticário. Se eu tivesse querido que a pilhagem fosse o meu modo de vida,
teria sido aprendiz do almirante Raleigh”.
Quando o Whelp surgiu da parte de trás da ilha, Thomas teve a sua
primeira visão da presa. Seguindo o vento, à procura de um campo mais
aberto, apareceu um pequeno galeão ostentosamente dourado de umas trinta
toneladas. No entanto, assomava-se por detrás dele a maior carraca
portuguesa que Thomas alguma vez vira; mais de cem pés de comprimento e
mil toneladas, com um mastro principal mais alto que qualquer árvore
natural, e com os lados brilhantes de canhões.
“Estamos feitos”, pensou Thomas.
A um grito vindo de baixo, as quatro vigias de canhões do Whelp
saudaram os recém-chegados com vozes tonitruantes. Através do fumo acre,
Thomas viu aparecer um corte numa vela do galeão e fendas na madeira do
bojo mesmo por cima da linha de água. A tripulação do galeão estava
espantada com o aparecimento do Whelp, e correram pelas cobertas como
formigas assustadas.
- Apanhámo-los a dormir a sesta - disse Nathan, o aprendiz de
carpinteiro do navio.
- É o que parece - disse Thomas. - E poderá ser isso que nos salve. -
O Whelp estava a passar a leste do galeão e a enorme carraca também virou
na mesma direção, como se quisesse colocar-se entre o galeão e o Whelp.
- Este é rico - disse Nathan, com os olhos ainda no galeão. - Um
mercador particular, talvez com rubis e esmeraldas para as suas senhoras em
Lisboa.
- Sim - murmurou Thomas -, e uma escolta poderosa para o
guardar. - Ele via que metade das dezesseis vigias de canhões da carraca
estavam preparadas e equipadas e, enquanto ele observava, mais vigias se iam
abrindo.
A bombordo da popa do Whelp disparou um último tiro para o
galeão que passava. A tripulação aprontou as velas para dar outra
oportunidade às colubrinas de dispararem. Como uma montanha nascida da
água, a carraca aproximou-se, elevando-se acima deles.
Os canhões do Whelp dispararam outra vez e, por boa pontaria ou
sorte, uma das balas partiu o mastro da vela do traquete da carraca, fazendo
cair pano e corda sobre a coberta. Ouviram-se gritos de júbilo dos marinheiros
ingleses.
Mas quando a carraca passou à popa, as suas colubrinas
responderam. Choveu tiro de canhão e Thomas atirou-se para a coberta. O
navio oscilou e um fumo acre rodopiou à sua volta.
- Estou ferido! - gemeu Nathan.
- Maldito sejais, capitão Wood - resmungou Thomas enquanto
rastejava para junto de Nathan. A camisa do rapaz mostrava um rasgão
sangrento. - Fique quieto, Nate, senão vais rasgar a ferida.
- Ainda estou bom para lutar. - O rapaz recuou para se sentar. -
Não vou desistir da minha parte da pilhagem.
- Há coisas mais valiosas do que ouro e rubis - disse Thomas,
rasgando a camisa do rapaz para fazer uma ligadura.
Ouviu-se outro lançamento, mas não da carraca nem do Whelp.
Thomas espreitou por cima da amurada e percebeu qual fora o ”plano
matreiro” de Lockheart. O Bear, por detrás e para sul, estava agora bem
posicionado para apresentar o costado à carraca.
A tripulação do Whelp estava a lutar com as cordas das velas a fim
de se restabelecer novamente. A carraca e o galeão ficariam presos entre os
dois navios ingleses mais pequenos e mais rápidos. Uma bela armadilha, não
há dúvida, pensou Thomas, se nós não formos afundados primeiro.
Um tiro da coberta da proa arrancou o gurupés do Bear e parte do
castelo da proa superior. Dois elegantes pequenos canhões de bronze do
castelo da popa vomitaram fogo... e a carraca portuguesa perdeu o seu mastro
de mezena.
- Estão a disparar contra a sua própria escolta! - disse Nathan,
segurando-se de lado. - Endoideceram?
- Ou será que percebemos mal a sua relação? - cismou Thomas. -
Não sei. - Lockheart apareceu na direção do cotovelo direito de Thomas,
observando a cena. - Não me digais, senhor - disse-lhe Thomas -, que a
loucura do galeão fazia também parte do vosso plano matreiro.
A boca do escocês torceu-se num sorriso pesaroso:
- O bom Deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmos, está
escrito.
Do outro lado da água, a tripulação do galeão e da carraca gritavam
uns para os outros. A carraca apertou as suas velas e carreou, passando pela
proa do atrapalhado Bear.
- Vai-se embora! - disse Nathan.
- Deixando a sua carga, se assim o era, para trás - disse Thomas -,
mas que covardia horrorosa.
- Eu apostava - disse Lockheart - que a carraca não era protetora
mas perseguidora. Vedes as cicatrizes na filigrana do galeão? Até parece que a
carraca lhe acertou um tiro ou dois antes de nós.
- Quereis dizer, senhor - disse Nathan -, que fomos a salvação de
alguém?
O elegante canhão de bronze do galeão disparou outra vez, com as
balas a arrancarem uma parte da amurada perto do sítio onde eles se
agachavam.
- Sim - disse Lockheart, ousando erguer mais uma vez a cabeça. - E
está tão grato como um tigre libertado da sua armadilha.
O Whelp e o Bear dispararam em conjunto contra o galeão,
causando uma barafunda de mastros, cordame e velas. Nenhum dos navios
ingleses estava em condições de perseguir a carraca fugitiva, por isso
fecharam-se sobre o galeão desafortunado. A tripulação do Whelp atirou
cordas de atracagem e içou-se lá para dentro. A tripulação do galeão, muitos
deles árabes de turbante e hindus de pele escura, olhavam silenciosamente no
meio da confusão de panos, madeira e cordas.
- Achas que consegues ir para lá lutar, Nathan? - disse Thomas.
- Como os melhores - replicou o rapaz.
- Bravo moço! - disse Lockheart. - E tu, Tom?
Os anos passados na loja do mestre Coulter a misturar ungüentos
malcheirosos e poções não tinham preparado Thomas para carnificinas corpo
a corpo. Mas haviam-lhe ensinado a levar a cabo tarefas desagradáveis.
- Se tiver de ser.
Lockheart deu-lhe uma pancada no ombro com uma mão larga.
- Então que os Fados sejam amáveis contigo.
- Rendeis-vos? - gritou o capitão Wood para o galeão cativo -, ou
fazemos a abordagem e sereis obrigados a isso pela força?
Um grito não terreno elevou-se de muçulmanos e hindus. Os
marinheiros portugueses cortaram as cordas de atracagem com as suas facas.
As pranchas de abordagem foram atiradas do Whelp para as
amuradas do galeão e os marinheiros ingleses treparam-nas.
Thomas murmurou juras entrecortadas com a respiração e
avançou, com a pistola na mão esquerda e o cutelo na direita.
Quando se escondeu debaixo de uma vela caída, uma faca curva
surgiu em frente da sua garganta. Ele atirou-a com o cutelo e atirou-se para
diante, mas o inimigo desaparecera. Thomas deu consigo em pé no meio de
um emaranhado que parecia uma floresta imobilizada pelo nevoeiro. Os
mastros estavam derrubados como se fossem árvores caídas e as cordas
subiam pelos seus tornozelos como videiras. O pó da pólvora ardia-lhe nos
olhos. As sombras de homens nas velas confundiam-lhe a visão. Os gritos e
gemidos rodeavam-no. Aqui e ali uma bala de pistola assobiou passando por
ele como uma abelha zangada.
Um muçulmano saltou para a frente dele, com a espada pronta e os
olhos brilhantes. Thomas recuou, erguendo o cutelo quando o seu opositor
desferiu a arma. Thomas repeliu o ataque do mouro, mas tropeçou e caiu para
trás sobre uma massa de cordas e velame. O mouro sorriu e saltou para mais
perto a fim de se aproveitar da queda de Thomas. Este ergueu a sua pistola.
Houve um grito que se sobrepôs aos outros. Foi seguido de uma
longa declaração numa língua que Thomas não compreendeu. Seguiu-se um
silêncio profundo. O muçulmano baixou a espada com o sobrolho carregado e
afastou-se.
O capitão Wood, algures atrás dele, gritou:
- Desistam, homens! Eles renderam-se!
Thomas suspirou profundamente com alívio e espreitou por um
rasgão na vela ao seu lado.
Os marinheiros portugueses e os muçulmanos estavam a depositar
as armas no convés, olhando para o castelo da proa. Os hindus pressionavam
as testas contra o convés em oração. Thomas enfiou mais o pescoço e viu, no
castelo da proa, uma mulher alta e elegante. Vestia um sari de seda carmim
com fios dourados que brilhavam. A sua pele era castanho-clara, mas os olhos
eram espantosamente azuis.
Eis aqui uma rara maravilha. Será que este navio é dela e que ela
consegue comandar estes homens? Será que é a filha de um mercador rico? E
porque é que a carraca a perseguia?
A mulher fez uma vênia ao capitão Wood e falou com ele, tendo
como intérprete um dos marinheiros hindus. Embora o capitão anuísse com a
cabeça, de queixo na mão, parecia ter dificuldade em compreender. Alguns
minutos depois, o capitão despediu o intérprete com a mão e ele próprio
acompanhou a senhora até ao Whelp.
Com a sua partida, um feitiço invisível quebrou-se no convés do
galeão, e os homens começaram a mexer-se e a falar outra vez. De ombros
caídos, a tripulação do galeão dividiu-se; alguns para tentar a sorte
alcançando a segurança nos dois pequenos esquifes do galeão (principalmente
os portugueses orgulhosos e os muçulmanos), outros escolheram velejar com
o Whelp e o Bear. Entretanto, os marinheiros ingleses abriram as escotilhas
que davam para o porão do galeão e começaram a pilhagem.
Thomas saiu do seu ninho de cordame e seguiu para o castelo de
popa. “Também poderei procurar a minha justa parte. O mestre Coulter há-de
querer algum lucro desta infeliz viagem”. Pelo menos não entraria muito em
competição com os outros marinheiros, pois que buscava não era ouro nem
sedas.
À medida que se aproximava do castelo da popa, Thomas sentiu
uns puxões nas suas calças. Um hindu com o cabelo negro atado ajoelhou-se
à sua frente, pedindo algo desesperadamente na sua língua macia e líquida.
Alguns homens da tripulação do Whelp surgiram da porta do tombadilho,
carregando arcas de madeira e jarros que cheiravam a resinas aromáticas e a
especiarias. O hindu fazia gestos na sua direção à medida que falava.
- O que queres, homem? - disse Thomas. - Eu não posso impedi-los.
Lockheart apareceu à porta com um braçado de sedas coloridas e
panos de chita.
- Sabeis, senhor, o que este gentio está a dizer? - perguntou
Thomas.
Sem parar, Lockheart respondeu:
- Ele diz para tirares o que quiseres da maldita carga lá em baixo.
Ficam melhor livres dela.
Thomas olhou para as costas largas do escocês. Às vezes gostaria
que ele não gozasse tanto. Embora seja possível que o hindu não tenha amor
nenhum a quem servia. Thomas disse algumas palavras que esperou
pudessem acalmar o homem e entrou pela porta. Foi descendo por umas
escadas apertadas até à parte de baixo do convés. Virou e entrou num
corredor cheio de marinheiros a passar, cada um deles com os braços e os
bolsos carregados. Na penumbra, Thomas viu uma passagem livre que levava
mais longe à proa e dirigiu-se para lá.
- Não precisais de vos dar ao trabalho de ir nessa direção - gritou
um marinheiro. - Já rebuscamos. Está vazio.
Thomas aquiesceu, mas mesmo assim continuou, preferindo o
corredor tranqüilo à rapina da multidão na passagem principal. Continuou
passando pelo leme e descobriu que o corredor acabava numa janela de vitral
à popa. Mesmo por debaixo dele ficariam os alojamentos principais do capitão
ou do proprietário do navio. As instalações da tripulação deviam ser mais à
frente e o armazenamento na plataforma por baixo. Thomas encostou-se à
janela, observando o caminho por onde viera.
À medida que os seus olhos se ajustavam à luz, reparou numa
porta à sua direita, com emblemas entalhados de caça e uma orla de rosas de
oito pétalas. Thomas carregou no cabo do puxador de marfim e abriu a porta.
Levava a um quarto que continha uma mesa comprida e várias cadeiras
pesadas de carvalho trabalhado e couro. Em cima da mesa encontravam-se
algumas taças, mas o quarto estava desocupado.
Thomas entrou, fechando a porta atrás de si, agradecido por ter
alguns momentos de paz. Afundou-se pesadamente numa das cadeiras e
fechou os olhos.
Ouviu o arrastar de outra cadeira contra o chão e levantou-se outra
vez, com os olhos bem abertos. Não havia mais ninguém no quarto. Será que
este navio está assombrado pelas sombras daqueles que foram despachados
muito recentemente? Voltou a ouvir-se o arrastar, mas agora conseguia
localizar o som por detrás de uma parede à sua esquerda. Mas ali devia ser a
casa do leme. Uma olhadela pelo quarto disse-lhe que este era mais pequeno
do que o comprimento do corredor lá fora.
A parede à sua esquerda tinha um lambril profundamente
trabalhado mais uma vez representando cenas de caça. Reparou num pássaro
que parecia estar mais saliente que os ramos e as folhas à sua volta. Tirando a
pistola da cinta, Thomas aproximou-se silenciosamente da parede. Deu uma
volta ao pássaro como se fosse um puxador e a porta abriu-se para dentro.
Suavemente, entrou.
Era uma salinha pequena, onde um homem elegantemente vestido
estava sentado a uma secretária. Vestia uma casaca de veludo preto, mangas
debruadas a dourado e um rufo largo de linho fino e duro, debruado a renda.
Tinha uma barba preta limpa e pontiaguda e olhos pretos que pareciam
cansados, mas sem medo. Na sua mão direita tinha uma pena de escrever e a
sua mão esquerda repousava na tampa de uma caixa de madeira.
- Deixai isso como está - disse Thomas, acenando com a pistola
para a caixa. Receou que o outro também tivesse uma arma. Esperou que o
homem o compreendesse.
O homem de barbas retirou lentamente a mão e sorriu com os
lábios apertados. Disse qualquer coisa em português que podia muito bem ser
uma desculpa educada. Thomas desejou que Lockheart estivesse por perto; o
escocês parecia conhecer qualquer idioma da Terra.
- Levantai-vos daí. Devagar - fez o gesto com a pistola. O homem
barbudo pousou o aparo e levantou-se. Começou a andar à volta da mesa, na
direção de Thomas, que levantou a pistola, esperando não ter de matar um
homem desarmado.
- Ei, bom trabalho, Tom! - Sully, o contramestre, apareceu na porta
que ficava por trás. - Vejo que capturaste o nosso feiticeiro.
- Feiticeiro? - A palavra, segundo a experiência de Thomas, podia
querer dizer muita coisa desde um homem que convocava demônios até ao
astrólogo de Sua Majestade, ou mesmo até alguém que tivesse uma afeição
demasiado grande por gatos. Mesmo os boticários como o seu mestre, Geoffrey
Coulter, eram por vezes acusados de feitiçaria por clientes e homens do clero.
- Sim, soubemos que ele é procurado pelos inquisidores de Goa. Era
por isso que a carraca os perseguia.
Thomas não via nada na pequena salinha que sugerisse as artes
obscuras.
- Então este barco é dele?
- Sim, por isso o capitão Wood quer que ele seja tratado com
respeito.
- Então e a senhora que parou a luta?
- Bem, agora pode haver muitas perguntas à espera de resposta,
não é? Este tinha alguma coisa de valor? Mapas ou diários de bordo, por
acaso?
- Nós tínhamos acabado de nos conhecer.
- Pois, aposto que ele não te daria isso a ti. Tiro-te o sujeito das
mãos ou queres a glória de seres tu próprio a trazê-lo?
- Podeis levá-lo. Eu vou procurar um pouco mais.
- Então, boa caça. Vinde, senhor, conhecer a hospitalidade do
capitão Wood.
O feiticeiro português olhou fixamente para o contramestre e
murmurou palavras frias e precisas.
- As vossas maldições não têm efeito em mim, senhor disse Sully. -
Sou um marinheiro inglês e já ouvi as piores maldições possíveis. Vamos lá.
Thomas desviou-se e permitiu que o contramestre escoltasse
firmemente o cavalheiro. Assim que eles se foram embora, Thomas foi até à
secretária e esquadrinhou-a. Ao lado da pena caída havia uma folha de
pergaminho. Só tinha algumas palavras escritas, mas Thomas não reconheceu
a língua. Voltou-se para a caixa de madeira.
Era do comprimento da sua mão e da largura da sua palma, feita de
madeira escura. No cimo tinha desenhos geométricos esculpidos. Thomas
empurrou o gancho de latão da abertura e abriu a caixa.
No interior, dentro de um revestimento de seda preta e dourada
encontrava-se uma garrafa rolhada de vidro iridescente. No interior da tampa
da caixa havia um papel dobrado. Ao tirá-lo, Thomas viu que o interior da
tampa tinha duas serpentes esculpidas em torno de um bastão - um caduceu.
Thomas abriu o papel dobrado e viu várias linhas escritas. A parte de cima era
em grego e Thomas abençoou a sua educação, pois sabia lê-lo. ”A mordedura
de uma serpente para aquele que respira. Uma pele de serpente para aquele
que não respira.” Uma adivinha ou talvez uma maldição, pensou Thomas. As
outras linhas já não conseguia ler, embora tenha reconhecido a segunda como
sendo árabe. Dobrou o papel e voltou a pô-lo debaixo da tampa da caixa. Será
que isto é uma poção mágica? Uma droga? Curativa ou venenosa? Thomas
fechou a caixa e pô-la dentro da sua casaca. Se for um remédio, aprenderei
com ele. Outros poderão escolher a sua parte da pilhagem de hoje. Esta será a
minha.
Capítulo II
PILRITEIRO: Esta pequena árvore espinhosa tem flores
pálidas no auge do Verão e bagas vermelhas no Outono. Diz-se que
a Coroa de Espinhos de Nosso Senhor era feita dos ramos desta
árvore, e é por isso creditada como tendo muito poder contra a
bruxaria. Ter pilriteiro em casa protege dos fantasmas e do raio do
trovão, no entanto também se diz que o pilriteiro em casa traz azar
e morte...
SETEMBRO DE 1597, COLÓNIA PORTUGUESA DE GOA
O padre António Gonsção, Enviado Especial do Conselho Supremo
do Grande Inquisidor de Lisboa, estava de pé junto de uma janela da Santa
Casa. Para seu alívio, a paisagem à sua frente não ondulava como o mar.
Por debaixo da janela ficava a Praça da Catedral, uma praça ampla
como a de qualquer cidade européia. Do outro lado da praça erguia-se a
Catedral de Santa Catarina, cuja fachada era embelezada com esculturas de
santos e as suas duas torres quadradas subiam modestamente em direção ao
céu. Dois golfinhos de pedra, gêmeos, jorravam água alegremente na fonte da
praça. Para oeste ficava a Misericórdia, o hospital dirigido pelos Jesuítas. O
resto da praça era rodeado por casas avarandadas de dois andares com
telhados de telha vermelha. À distância, belas terras com pomares e jardins
alindavam as encostas. Na aparência, a vista podia ser quase a de um porto
próspero em Portugal. Não fossem certas diferenças; diferenças que
perturbavam Gonsção.
A praça estava cheia de gente; mestiços fidalgos, que vestiam
veludos e rendas, passeando com um rapaz atrás para transportar a espada,
outro para transportar um guarda-sol, e ainda outro trazendo uma almofada.
Os senhores nobres faziam vênias uns aos outros, tirando os chapéus com
gestos grandiosos e alargados. Isto tinha tanto de cortesia como de
competição, pois era considerado rival o homem cuja vênia não fosse
suficientemente baixa, ou sugerisse troça. As senhoras seguiam em
palanquins dourados transportados por escravos com peles de coloração não
ibérica. Muçulmanos, judeus, homens de olhos oblíquos da longínqua China,
persas, hindus, juntamente com todo o tipo de europeus, passavam lá em
baixo, subindo e descendo a Rua Direita, indo e vindo debaixo da pedra negra
do arco de vice-reis que se virava para o rio Mandovi.
O ar transcendia ao cheiro de flores tropicais, aves coloridas
guinchavam cantos desconhecidos. Era tudo demasiado luminoso, demasiado
variado, demasiado vivo; os sentidos de Gonsção sentiram-se sob ataque.
Recordou uma mulher, a filha de um vizinho da rua onde vivera em
Lisboa. Quando rapaz, admirara o seu cabelo cor de mel-escuro e o seu rosto
doce. Mas anos mais tarde ela foi trazida perante ele para julgamento, vestida
com um roupão de seda vermelha e roxa, acusada de prostituição e feitiçaria.
Goa fazia-lhe lembrar essa mulher; a beleza pintada com devassidão, a
corrupção a minar debaixo de tudo.
Os colonos portugueses de Goa tinham sido incentivados a casarem
com as nativas, na esperança de produzirem conversões em massa. Mas em
vez disso, a Verdadeira Fé conseguira apenas apropriar-se precariamente das
almas de Goa, de tal modo eram enganadores o ambiente e as influências
estrangeiras. A heresia e o paganismo andavam sempre à superfície como
sereias das profundidades. Só a Santa Casa, a sagrada Inquisição, permanecia
como um baluarte perante as marés que de outro modo engoliriam os fiéis. E
mesmo essa santa instituição, ao que parecia a Gonsção, sofria de algumas
fendas. E eu sou enviado para fortalecer os seus pilares. Estive demasiado
tempo no mar, murmurou com um sorriso interior. Até os meus pensamentos
cheiram a peixe.
Ouviu passos que se aproximavam e voltou-se da janela. Era
Domine Rui Sadrinho, o inquisidor-mor. Era alto e muito magro, talvez com
40 anos. O rosto acima da sua barba preta bem aparada era salpicado e
manchado com cicatrizes de alguma antiga pestilência. Gonsção inclinou a
cabeça na sua direção.
- Domine.
- Bom dia, padre. Espero que tenhais recuperado da vossa longa
viagem. As vossas acomodações são satisfatórias?
- São muito confortáveis, obrigado. E estou contente por poder
afirmar que o chão parou de balançar quando caminho. Mas dizei-me, Domine
- Gonsção puxou o colarinho do seu pesado hábito branco de dominicano -,
aqui é sempre assim tão quente?
- Na verdade, padre. Sempre.
- Mesmo quando chove?
- Especialmente quando chove. Então fica quente e úmido.
- E à noite?
- Então é quente e escuro, padre.
- E os mosquitos, Domine...
- Também estão sempre conosco. O Diabo está muito ocupado nesta
parte do mundo. As pestes e as pestilências abundam aqui.
“Tal como está escrito na vossa cara”, pensou Gonsção, e depois
censurou-se.
- Pois assim me disseram. Mas porquê assumir que é o trabalho do
Demônio? Uma praga poderá ser um ato de Deus.
O inquisidor-mor olhou espantado, depois desconfiado:
- De certeza que Nosso Senhor é mais piedoso do que isso. “Não,
não estou a tentar armar-vos ciladas”, pensou Gonsção, por enquanto. Tentou
fazer um sorriso desarmante.
- Apenas uma meditação vulgar, Domine. Suportarei este clima com
paciência, se tiver de ser.
- Penso que descobrireis que a nossa Santa Casa tem confortos
melhorados para oferecer, padre. Este edifício, faço notar, era o palácio do
Adilshah de Goa, antes de as nossas gentes chegarem. Guardamos alguma da
sua mobília... estão na ala residencial. Esta câmara era o seu salão do trono.
A Mesa do Santo Ofício na verdade ainda retinha alguma
semelhança com a majestade anterior. O vestíbulo comprido e de teto alto era
ladeado por falsos arcos decorados com arabescos e tapeçarias delicadas em
faixas de cor azul e amarelo-limão. Dominando a parede de leste havia um
enorme crucifixo de madeira. Um estrado com degraus enchia o centro do
vestíbulo. No estrado havia uma mesa longa rodeada de cadeirões forrados de
brocado de seda vermelho. Numa das pontas da mesa via-se um simples
banco de dobrar.
- Posso pedir que vos acompanhem numa volta pelo edifício, se
assim desejardes - prosseguiu Sadrinho.
- Obrigado, mas não estou aqui em viagem de prazer, Domine, e as
tarefas que me estão destinadas pesam terrivelmente. Gostaria de começar os
meus inquéritos o mais depressa possível. O grande inquisidor Albrecht tem
uma grande preocupação pelos vossos problemas aqui. A vossa carta tocou-o
profundamente.
Sadrinho olhou para o chão.
- Alegra-nos saber que o grande inquisidor se preocupa com um
posto tão distante da Santa Casa.
- As ovelhas mais afastadas do rebanho são aquelas pelas quais o
pastor tem de ter mais cuidado, não é assim?
Mais uma vez o inquisidor-mor pareceu desconfiado.
- Não nos surpreendeu que ele fosse tão generoso ao ponto de nos
mandar um enviado especial para... nos ajudar.
Ah. Então a vossa carta era apenas uma lista de desculpas e não
um pedido de auxílio? Desde que o governador Manuel Coutinho voltara
vergonhosamente para Lisboa, o grande inquisidor andava preocupado com as
relações entre a Santa Casa e o governo colonial de Goa.
Sadrinho suspirou:
- No passado, os governadores tiveram a tendência para não nos
prestar atenção.
Gonsção aquiesceu em simpatia:
- A riqueza e o poder cegam os homens para os pensamentos da fé.
- A feitiçaria e os ritos demoníacos são mais do que cegueiras,
padre.
- É verdade. A feitiçaria é uma acusação séria. O fato de primeiro
Coutinho e agora, este ano, o vice-rei Albuquerque terem sido mandados para
a pátria acusados dessa prática perturbaram muito o grande inquisidor.
- É o ambiente deste lugar, padre. Faz nascer heresia que nem
moscas em fruta podre. Mas a vossa chegada é na hora certa. Descobrimos
alguns dos que estão envolvidos na cabala pagã que corrompeu Coutinho.
- Ah, excelente. Que espécie de homens compõem esta cabala?
- Um era um médico muçulmano chamado Zalambur. Infelizmente
foi encontrado morto, envenenado, antes de o podermos interrogar.
Suspeitamos que se tenha suicidado. Mas temos a sua amante como nossa
convidada aqui. Vamos entrevistá-la outra vez esta noite, se estiverdes
interessado em assistir.
Ele oferece isto como se fosse um entretenimento.
- Isso poderá vir a ser bastante... informativo, Domine. Houve
outras pessoas envolvidas?
- Sim. Um alquimista e feiticeiro português chamado Bernardo de
Cartago. Tentou fugir de Goa por barco, mas penso que nos vá ser devolvido
em breve. E há outra pessoa que talvez esteja com ele; uma mulher que é a
mais misteriosa do círculo, mas talvez a mais influente. Conhecemo-la como
Aditi, embora já tenha ouvido referenciá-la como Manasadasa, que significa
Servidora da Deusa Serpente.
- Um título de mau presságio. Sadrinho abanou a cabeça:
- Para os hindus não. Eles consideram a serpente como um símbolo
de sabedoria e imortalidade.
- Nosso Senhor uma vez também disse ”Sejam espertos como
serpentes”, mas não me parece que Ele quisesse que as adorássemos ou
servíssemos.
- Foi? - disse o inquisidor com um olhar fascinado.
- Está nas Escrituras, Domine. Evangelho de São Mateus.
Certamente que estais recordados dos vossos estudos religiosos. Reparo que
tendes algum conhecimento das crenças nativas.
Meio encolhendo os ombros, o inquisidor disse:
- No nosso trabalho, uma pessoa vai aprendendo coisas. Quanto à
mulher, é o nome Aditi que nos traz preocupados. É o nome de uma deusa dos
céus hindu, mas tem também a conotação de libertação. Há rumores de que
esta mulher tem o apoio dos Maratas.
- Maratas? Quem são esses?
Os olhos do inquisidor abriram-se mais:
- Ah, mas eu esqueço-me que sois novo nesta região e não
conheceis as suas políticas. Os Maratas encontram-se entre as famílias
hindus mais ricas e mais nobres daqui. São de uma casta guerreira superior,
e a sua cooperação é crucial para o domínio de Portugal sobre Goa, no entanto
sabe-se que eles têm fortes ligações às famílias governantes de Bijapur.
- Estou a ver. Então estas corrupções podem significar para eles
mais do que a simples difusão de práticas demoníacas.
- Gonsção confirmou com a cabeça:
- Fizestes um bom progresso nisto, Domine. O grande inquisidor irá
ficar satisfeito. Dizei-me, como vão as relações com o vosso novo governador,
Dom Francisco da Gama? Ele honra o nome do seu ilustre avô?
- Não fez nada que o manchasse. E respeita a Santa Casa.
- Fico satisfeito por saber isso.
- Por favor, perdoem-me, senhores - chamou um jovem rapaz de
pele escura junto à porta do outro lado do vestíbulo, com uma pronúncia de
português com uma tônica musical. Chegaram Sua Excelência o arcebispo
Aleixo de Meneses e o capitão Pedro Ortiz e solicitam a vossa audiência.
Sadrinho disse ao rapaz:
- Muito bem. Iremos recebê-los.
O rapaz fez uma vênia baixa e saiu.
- O tempo foi na verdade o preciso - disse Gonsção. - Eu esperava
encontrar-me brevemente com o arcebispo de Meneses.
- E o capitão Ortiz deve ter boas notícias para nós em relação ao
assunto que estivemos a discutir. Vinde sentar-vos enquanto esperamos os
nossos visitantes. - Sadrinho fez um gesto na direção das cadeiras vermelhas
sobre o estrado.
Gonsção subiu a plataforma e instalou-se numa das cadeiras. Em
cima da mesa havia um sino de prata e dois livros. Um era um missal de capa
de couro, o outro era um volume pequeno com capa de pergaminho.
Gonsção pegou lentamente no livrinho e examinou-o. Leu o título
pintado na lombada, depois voltou-se para o inquisidor Sadrinho, permitindo
que a sua consternação se visse.
- Este livro, Domine. Porque é que está aqui?
- Qual? Ah. Os Lusíadas. Ó Irmão Timóteo deve tê-lo deixado aí. É
novo e por vezes distraído.
Gonsção abriu a capa e olhou para a primeira página. Reparou na
data ali escrita em números romanos.
- Domine, esta publicação é a original, de 1572. Sadrinho franziu o
sobrolho.
- Sim? E então?
- Conheceis esta obra?
O inquisidor mostrou-se novamente desconfiado:
- É um poema épico de Luís Vaz de Camões. Pensei que era muito
respeitado em Lisboa.
- E é. Entre os eruditos. Já o haveis lido?
- Não. Disseram-me que parte dele foi escrito aqui em Goa. O Irmão
Timóteo tem-no em grande estima porque o seu avô, Garcia de Orta, o famoso
naturalista, conheceu Camões. Na verdade, Camões viveu em sua casa por
uns tempos, e escreveu alguns versos para a introdução do livro de Garcia de
Orta sobre drogas e simples orientais.
- Ah. Interessante. É compreensível, então, que o rapaz goste do
livro. Mas esta é uma versão não expurgada, Domine, e contém muitos...
versos pagãos. Que idade tem o Irmão Timóteo?
- Treze anos, Padre.
- Só treze? Uma idade perigosa. Vede, este poema é uma história
falsa, Domine. Descreve as viagens de Vasco da Gama como se fosse um mito
homérico. Está recheado de deuses pagãos e demônios das antigas Grécia e
Roma. Atentai aqui. - Gonsção abriu o livro ao acaso. - Nesta página, o poeta
escreve sobre Marte e Júpiter no monte Olimpo, apoiando Vasco da Gama
para contrariarem o deus do vinho, Baco. Noutra página, temos Vasco da
Gama a falar com Prometeu e Apolo como se estes fossem verdadeiras forças a
quem se reza. E aqui, o poeta escreve uma longa passagem relativa a Vénus e
à sua Ilha dos Amores.
Sadrinho ergueu as sobrancelhas:
- Não fazia idéia.
- Não tenho a certeza se este Irmão Timóteo terá já o conhecimento
ou a educação para... compreender esta obra no seu contexto devido. Sugiro
vivamente, Domine, que este livro seja colocado num cofre até o rapaz ser
mais velho.
O inquisidor concordou:
- Compreendo. Assim será feito.
Gonsção fez deslizar o livro pela mesa para que Sadrinho lhe
chegasse e os seus dedos compridos acariciaram a capa de pergaminho com
um gesto que poderia ser de pena.
Parece que os rumores que chegam aos ouvidos de Albrecht são
verdadeiros. Esta Santa Casa tem falta de disciplina. Preocupam-se mais com
os seus confortos e possessões do que com o seu trabalho santo.
- O Irmão Timóteo vai ficar desapontado - disse Sadrinho. - O seu
avô era muito querido como curandeiro em Goa e temos a sorte de Timóteo ter
vindo até nós. É um dos nossos melhores acólitos, e até serve como advogado
dos nossos visitantes. Tem um certo jeito com eles que é melhor que qualquer
castigo.
- Admirável. Gostaria de conhecer esta jovem maravilha. Se ele é
um amante da poesia, posso recomendar-lhe a obra de Diogo Bernardes. Achei
muitas vezes inspiração na coleção Várias Rimas para o Bom Jesus. Tenho
um exemplar comigo que lhe posso emprestar.
Com um sorriso amargo, Sadrinho disse:
- Tenho a certeza que ele ficará contente.
- Garanto-vos, Domine, que os versos não são tão insípidos como o
título sugere.
- De acordo, padre... Ah, aí vêm os nossos visitantes.
As portas distantes abriram-se. O pajem entrou e anunciou:
- Sua Excelência o arcebispo Aleixo de Meneses e o capitão Pedro
Ortiz do Santa Rosa.
O arcebispo entrou: um homem grisalho de aparência suave a quem
as vestes vermelhas e a capa pareciam espalhafatosas. Por trás dele, com
cheiro a alho, laranjas e peixe, entrou o capitão Ortiz, um homem pequeno e
rijo. A sua casaca de cetim verde e calções largos estavam manchados e
remendados. O capacete dourado que trazia na mão fora, porém, muito polido,
e a sua vênia profunda era gentil.
O inquisidor recebeu o arcebispo e o capitão com um aceno de
cabeça. Gonsção levantou-se do seu lugar e desceu do estrado. Apertando as
mãos do arcebispo, disse:
- É uma honra, Excelência. Deixai-me felicitar-vos pela vossa
nomeação como Primeiro-Primaz do Oriente. É uma honra bem merecida.
O arcebispo parecia admirado.
- Agradeço-vos, padre. Também ouvi coisas boas a vosso respeito. A
minha nomeação foi uma bênção inesperada. Espero vir a ser merecedor do
lugar.
- Não tenho qualquer dúvida em relação a isso, Excelência. E uma
boa tarde também para vós, capitão Ortiz. Sou o padre António Gonsção. O
nome do Santa Rosa é falado com orgulho por toda a Lisboa. Apresento-vos as
boas-vindas.
O capitão olhava ora para Gonsção ora para o inquisidor Sadrinho.
- Agradeço-vos e desejo que vós, santos padres, tenhais um bom dia
- disse ele numa voz irritante. - Que Deus vos abençoe este dia e sempre. - As
mãos que apertavam o seu chapéu de veludo estavam pálidas.
Os visitantes da Santa Casa estão muitas vezes pouco à vontade,
pensou Gonsção, no entanto eu acho que as suas notícias não são boas.
Ele acompanhou o arcebispo e o capitão até à mesa. Meneses
sentou-se a alguma distância de Sadrinho e o capitão permaneceu de pé.
Gonsção sentou-se perto do arcebispo, o que pareceu incomodar o inquisidor-
mor.
Sadrinho virou o seu mau humor para o capitão.
- Esperamos, capitão Ortiz, que nos traga provas de tais bênçãos.
Confio que Bernardo de Cartago esteja agora preso no Aljouvar.
O arcebispo Meneses suspirou e olhou para baixo para a mesa. O
capitão Ortiz endireitou os ombros, a revirar o chapéu nas mãos.
- Lamento imenso, Domines, que ele não esteja. Causamos estragos
no navio, mas não fomos capazes de o capturar.
- Não o capturaram - disse Sadrinho, devagar. - Esperávamos
melhor de vós, capitão Ortiz.
Com os olhos desafiadores, Ortiz respondeu:
- Eu não estava à espera que o feiticeiro conjurasse navios ingleses
vindos sabe-se lá donde para sua defesa, Domine!
- Navios ingleses?
- Eu acho - disse o arcebispo - que deveríeis ouvir as circunstâncias
antes de julgardes, Domine. A presença dos ingleses foi confirmada por outros
viajantes que chegaram a Goa.
Sadrinho olhou fixamente para o arcebispo e depois voltou a dirigir
o olhar para o capitão.
- Muito bem. Explicai.
O capitão Ortiz começou com uma vênia rápida.
- O Santa Rosa chegou junto do galeão do feiticeiro perto das
Bassas de Pedro. Dirigia-se para Sul. Perseguimo-lo, conforme ordenado.
Quando passávamos a ilhas Amindivi, estávamos quase ao pé dele. Foi então
que os navios ingleses apareceram, vindos por trás da ilha de Kiltan. Os meus
homens esforçaram-se por preparar todos os nossos canhões, mas os ingleses
já estavam a postos. Navegaram entre nós e o navio do feiticeiro, disparando
os seus canhões. Os navios deles eram menores e mais rápidos. Tinham muito
mais hipóteses de disparar sobre nós.
”Fizemos o maior número de estragos possível, e abatemos mastros
nos navios dos ingleses e do feiticeiro. Mas eu ordenei ao Santa Rosa que
continuasse para sul, em vez de o deixar como presa dos ingleses. Se isso vos
servir de consolo, tenho a certeza que o senhor Cartago está ou morto ou é um
prisioneiro inglês.
- Fugistes - disse Sadrinho suavemente. - Não vos considerava um
covarde, capitão Ortiz.
As narinas do capitão abriram-se.
- Domine, apesar de ter a honra de estar a fazer um serviço à Santa
Casa, o meu último dever é para com os meus homens e para com Sua
Majestade, o rei Filipe. Talvez vos tenhais esquecido que o Santa Rosa
pertence à frota de Sua Majestade.
- Talvez vos tenhais esquecido do vosso dever para com Deus.
- Disseram-me, Domine, que o serviço ao rei é serviço a Deus. Ou
pretendeis que esta Casa seja mais alta que o trono real?
Bem argumentado, pensou Gonsção, até mesmo sabiamente. Este
homem não é covarde nenhum.
O rosto de Sadrinho empalideceu.
- Acreditamos que o serviço prestado a um é serviço prestado a
ambos. Parece que nos haveis falhado a todos. Felizmente, temos uma sala
disponível onde podereis contemplar o vosso erro. - Estendeu a mão para o
sino de prata.
- Esperai, Domine - disse Gonsção.
- Padre? - Um músculo da face do inquisidor retorceu-se e os olhos
estreitaram.
- Bem-aventurados os piedosos, pois receberão piedade.
- Isso é alguma frase dos jesuítas?
Então esse rumor também é verdadeiro. Ele é muito ignorante das
Escrituras.
- Não, Domine. Essas são também as palavras de Nosso Senhor.
Dos Livros Sagrados.
O arcebispo murmurou.
- Mateus, versículo quinto.
- Então qual é a vossa idéia, padre?
- Capitão Ortiz, sois um bom católico?
- Com todo o meu coração, padre, que Deus me ouça e defenda.
- E aceitais todos os ensinamentos da Santa Madre Igreja?
- Todos, padre, do nascimento até à morte.
- Domine, este homem não é herético nem apóstata. A vossa guerra
com ele é uma questão civil. Se precisais de procurar agravo contra ele, tendes
de o levar ao governador Gama. Ele tem a autoridade para decidir se o capitão
Ortiz serviu devidamente o rei.
Sadrinho rilhou os dentes, mas finalmente disse:
- Muito bem. Podeis ir, capitão Ortiz.
O capitão fez uma vênia baixa a Gonsção.
- Não há dúvida que Deus vos concedeu sabedoria, padre. - E
depois voltando-se para o arcebispo, acrescentou: - Se me concederdes a vossa
bênção, Excelência. - Ajoelhou-se e beijou o anel do arcebispo.
Meneses pousou uma mão na cabeça do capitão.
- Se vos ajudar, tendes a minha bênção. Vai com Deus, meu filho.
O capitão Ortiz pôs-se novamente de pé, cumprimentando Sadrinho
com uma volta no chapéu.
- Irei colocar-me imediatamente nas mãos do governador Gama.
O inquisidor Sadrinho aquiesceu solenemente e o capitão Ortiz
saiu. Assim que as portas se fecharam, fixou os olhos em Gonsção.
- Como vos atreveis...
- O grande inquisidor Albrecht - disse Gonsção - enviou-me para
observar esta Santa Casa, e corrigir desvios onde eu achasse por bem. Sabeis
que temos de respeitar uma linha muito clara entre questões de fé e questões
de justiça civil. Compreendo que este feiticeiro seja importante, mas homens
com a perícia do capitão Ortiz são preciosos contra Holandeses e Ingleses.
Portugal não se pode dar ao luxo desta perda.
- Se este trabalho atamancado for característico da perícia do
capitão - resmungou Sadrinho -, então choro por Portugal.
- Ortiz poderá ter feito por vós mais do que imaginais. Tendes
familiares entre os mercadores e pescadores aqui, não é verdade?
- Claro. E então?
- Os navios danificados não podem viajar até muito longe. Se o
Santa Rosa deitou mastros abaixo nos navios ingleses, eles terão de encontrar
porto seguro para reparações. Se os familiares nos puderem dizer onde é que
os ingleses foram vistos pela última vez, poderemos calcular onde é que foram
acostar. Algumas naves costeiras pequenas, enviadas em segredo, poderão
cumprir o que uma poderosa carraca não conseguiu.
Sadrinho pestanejou.
- Ah, sim, estou a ver. Talvez isso se possa fazer. Vou inquirir
imediatamente. Perdoai-me, Excelência. - E levantou-se para sair acenando
com a cabeça ao arcebispo.
- Domine - Gonsção chamou-o.
- Sim?
- Por favor, preparai os livros deste último ano para que eu os
inspecione.
- Os livros?
- Presumo que a minha carta de apresentação declare claramente
que me devem ser apresentados quaisquer materiais que eu pretenda.
- Ah. Talvez daqui a uns dias, padre. Quando tiverdes recuperado
da vossa jornada.
- Eu fui escolhido pela minha capacidade de trabalho, Domine.
Verei os livros esta tarde, se possível.
- Ah, vou ver o que se poderá reunir num tempo tão curto.
- Obrigado, Domine. Talvez pudésseis enviar-me o jovem defensor,
aquele que gosta de poemas, para me trazer os livros.
Sadrinho suspirou.
- Como queirais, padre António. Depois da missa em Santa
Catarina.
- Excelente. E quando estiverdes nos vossos serviços, por favor
lembrai-vos de mim nas vossas orações.
- Assim farei, padre. Tende a certeza que o farei.
Depois de a porta se fechar por trás do inquisidor, o arcebispo
Meneses virou-se para Gonsção.
- Sois ousado, padre António. Essa qualidade é muito necessária
aqui, embora o inquisidor-mor não a aprecie muito.
- Não posso dizer que tenha sido inesperado, Excelência. Poucos
dos que alcançam o poder são poupados à sua influência corruptora. Também
precisamos de nos lembrar do inquisidor nas nossas orações.
- Com efeito - disse o arcebispo com pouco entusiasmo. Acho este
aparecimento dos ingleses - continuou ele, inclinando-se para a frente e
tamborilando com os dedos na mesa muito perturbador.
- Se isso vos descansar a mente, Excelência, quando eu vinha a sair
de Lisboa, soube que Sua Majestade estava a reunir uma nova armada. Foi
por isso, em parte, que eu desejei que o capitão Ortiz fosse libertado para o
governador. Ele vai ser preciso. Acho que não vamos ter de temer a pirataria
inglesa por muito mais tempo.
- Isso são boas notícias, padre. No entanto, não posso deixar de
recordar o destino da nossa armada anterior.
- Por favor, Excelência, dai algum crédito aos nossos adelantados2
quanto à aprendizagem com os erros anteriores.
- Há quem diga que a tempestade que destruiu a armada foi um ato
de Deus.
- Deus Nosso Senhor a defender hereges ingleses? Cuidado,
Excelência. - Gonsção agitou um dedo de brincadeira. Caminhais
perigosamente para a heresia.
- Perdoai-me - disse Meneses com um sorriso. - Vou dizer duzentas
orações a Santa Maria em penitência.
- Acrescentai, por favor, mais algumas para mim. - Gonsção pôs-se
de pé, alisando a sua veste branca e o escapulário.
O arcebispo também se levantou.
- Gostaria de vos fazer uma pergunta, porque é que haveis pedido
que o rapaz Orta vos levasse os livros? Por causa do seu famoso avô, o
herbalista?
- Domine Sadrinho disse-me que o Irmão Timóteo é um defensor,
apesar da sua juventude. Quem melhor me poderia informar acerca dos
convidados que são trazidos à Santa Casa e a forma como são tratados?
- Estou a ver. Muito sensato.
- Há algo que poderíeis fazer por mim, Excelência. O arcebispo
pareceu desconfortável.
- Se eu puder.
- Quero saber tudo o que for possível no que diz respeito ao
julgamento do governador Coutinho. Se pudésseis fazer com que me dessem
os registros do julgamento, isso seria de grande utilidade.
- Vou ver o que posso fazer, padre. Mas confesso, a minha
influência na Santa Casa é no mínimo modesta.
2 adelantados - Em castelhano no original. [N. dos T.)
- Tenho confiança nas vossas capacidades, tal como o cardeal
Albrecht também.
- Honrais-me demasiado. - Quando iam a caminhar em direção às
portas, Meneses acrescentou: - Foi um caso curioso. Coutinho era de boa
família cristã, sem um sopro de escândalo de heresia. E no entanto algo o
seduziu, o convenceu à apostasia. Alguma coisa que ele aceitou como prova de
crenças pagãs.
- Muito curioso. E é perturbador saber que a sua fé se mostrou tão
facilmente corruptível. Temos de aprofundar este mistério o mais que
pudermos. Onde a Serpente do Mal levanta a cabeça, mais se esconde debaixo
da terra.
Meneses sorriu:
- Vai ser muito refrescante ter-vos aqui, padre Gonsção.
Capítulo III
MORRIÃO: Esta planta é também chamada erva-de-maria, ou erva-
dos-porcos. Tem flores carmins ou douradas, que se fecham quando se
aproximam tempestades. Abrem-se com bom tempo, e são por isso
chamadas ”barômetros dos pobres”. Diz-se que pegar no morrião dá
terceira visão. O morrião afasta a bruxaria e os feiticeiros evitam-na
pois faz com que revelem os seus segredos.
Para o mestre Geoffrey Coulter, Boticário, Londres, do seu aprendiz
e agente, Thomas Chinnery, escrita no mês de Setembro, no ano de 1597 de
Nosso Senhor.
“Senhor, chego à conclusão que tenho de começar novamente esta
carta, pois a última ficou destruída noutra incursão de pirataria ordenada pelo
capitão Wood. Não sei se esta alguma vez chegará às vossas mãos, mas não
posso perder a esperança.
Alcançamos a costa da índia, mas não fiqueis maravilhado com a
nossa velocidade. O curso da nossa viagem não tem sido o que estava
inicialmente previsto. Sir Robert Dudley preparou esta expedição para procurar
um caminho mercantil para a China por Ocidente, pelo estreito de Magalhães.
Não sei, mas se tivéssemos agido desta forma, a Fortuna teria sido mais gentil.
Em vez disso, a nossa frota encontrou o almirante Raleigh nas
Canárias e os seus alardes de riquezas a encontrar ao longo da costa africana e
no mar Arábico, e os seus avisos sobre os perigos a Ocidente, convencendo o
capitão Wood e grande parte da tripulação que deveríamos seguir a rota de
oriente. ‘Sempre é melhor o diabo conhecido’, disseram eles.
Os senhores mercadores Allen e Bromefield estavam furiosos mas
pouco podiam fazer. Mas o nosso caminho não foi mais fácil que o dos nossos
antecessores. O Benjamin perdeu-se numa tempestade ao largo do cabo da Boa
Esperança. Quase metade da tripulação adoeceu de escorbuto ou de outros
males. Pela Graça de Deus, até agora fui poupado às doenças.
Talvez para abrandar a ira dos mercadores, ou para aumentar a sua
glória e riqueza, o capitão Wood tem perseguido todos os galeões portugueses
que encontramos. Tornamo-nos mais corsários que mercadores. Nestas
batalhas, temos ganho, mas não sem esforço. Nesta altura em que escrevo,
estamos ancorados a norte de Calecut, tentando reparar os estragos feitos na
nossa última incursão. O Bear precisa de novos mastros e o carpinteiro diz que
as árvores desta região não servem.
Embora ainda possamos chegar à China, já temos poucas provisões
com que começar o comércio. Tive de usar quarenta e sete pastilhas do vosso
composto de camomila e papoulas para aliviar os doentes e feridos da
tripulação. Quase metade das provisões de ervas desapareceram, em especial o
alho, a aristolóquia, a angélica e a valeriana. Consegui poupar a mirra e o corno
de unicórnio, bem como a confectio alcarmas, mas poderei vir a precisar deles se
não se encontrar outra fonte de medicamentos.
Temo que não seja possível reabastecer estes fornecimentos daqui
até Cantão. Disseram-me que talvez se encontre estes materiais em Pegu, mas
seriam de qualidade incerta.
Peço-vos que me perdoais o meu desperdício destes bens que
estavam destinados a serem o nosso meio de troca e riqueza com o Oriente. Mas
eu tornei-me o curandeiro mais proeminente a bordo, pois o nosso médico do
navio sucumbiu a uma febre somente há dois dias atrás. Apesar de não ter
saudades das suas sangrias e sanguessugas, dou comigo a sentir falta da sua
companhia neste trabalho que afeta o coração.
Esperávamos que alguns homens pudessem seguir a pé até Calecut
para pedirem ajuda, mas não podemos dispensar braços para as reparações. E
há o medo de que se se espalhar o rumor relativamente à nossa localização e
estado enfraquecido, nos possamos encontrar como alvo de banditismo...”
Thomas levantou a sua pena da carta, com a mão a tremer de
cansaço. Da sua rede sobre as escadas que levavam às instalações da
tripulação, ele podia ouvir os gemidos e os movimentos incessantes dos
doentes e dos feridos. Para lá da antepara, a água batia no costado do navio e
as cordas da âncora rangiam com o empurrão da maré. O ar estava úmido,
asfixiante e espesso com os odores de podridão, tanto de madeira como de
carne.
No tabique mais próximo jazia Nathan, o aprendiz de carpinteiro,
com o rosto pálido. A sua ferida do canhão estava a infectar e Thomas pouco
podia fazer pelo rapaz. O seu destino está num poder muito maior do que o
meu.
Um pingo de tinta caiu da ponta da pena em cima do papel quando
se ouviram passos pesados a descer as escadas por detrás dele.
- Então? - disparou Lockheart. - Outra canção de amor para a tua
querida? Não afogues a tua rapariga com mimos, meu rapaz, senão ela ainda
encontra um cachorrinho menos baboso para acariciar.
- Tendes um sentido apurado, senhor, de quando me podeis mais
facilmente perturbar na minha correspondência.
Contudo, Thomas não estava inteiramente descontente por ver a
presença forte do escocês. O bom humor ruidoso de Lockheart, embora
desconcertante, fazia com que a esperança parecesse possível.
E embora a sua carta não fosse dirigida diretamente para ela,
Thomas esperava que Anne Coulter, a filha do seu mestre, a quem ele
admirava há muito, lesse a carta e soubesse que ele estava bem.
Lockheart assentou o seu corpanzil desajeitadamente nas escadas.
- Tenho ouvidos de morcego, Tom. Ouço o raspar da tua pena ao
longe.
- Com ouvidos tão finos, como é que não ensurdeceis com a vossa
própria voz? A propósito, peço-vos que faleis mais baixo. Perturbai-me se
quiserdes, mas permiti alguma paz a estes pobres desgraçados.
- Imploro-te perdão - disse Lockheart com um rugido mais baixo. -
Espero que também tenhas escrito à tua mãe? As mães não sucumbem aos
excessos de carinho e precisam de ser muito reconfortadas.
- Não tenho mãe, senhor. Morreu quando eu nasci.
- Imploro o vosso perdão. As minhas condolências, então.
Thomas encolheu os ombros.
- Não a conheci, por isso não havia ninguém a quem chorar. -
Surgiram-lhe pensamentos espontâneos de uma infância cheia de tristeza,
horas solitárias, uma sucessão de amas, algumas amáveis, outras
indiferentes, outras pior.
- Então precisas de escrever ao teu pai, se é ele o teu único parente.
- O meu pai interessa-se pouco pelas minhas coisas.
- Com certeza que isso não pode ser! És o seu único filho?
- Que eu saiba.
- Então ele deve querer-te mais do que aquilo que pensas. Por vezes,
mesmo os pais aparentemente mais distantes têm um interesse genuíno pelos
seus filhos.
Thomas fez uma pausa, recordando a forma como, do convés do
Bear’s Whelp, ele espiara a cara nada sorridente do seu pai no meio da
multidão do cais quando o navio se afastava.
- Pode ser que sim. Em tempos o meu pai encorajara-me a fazer
uma viagem a Nápoles, mas o mestre Coulter disse que uma viagem ao
Extremo Oriente seria mais proveitosa. Agora só desejava ter seguido o
conselho do meu pai.
- Pois aí tens - disse Lockheart.
- Tendes razão para isso. Mas o mestre Coulter foi para mim mais
pai que qualquer outra pessoa no mundo, ele e a sua boa esposa.
- É bom quando os homens tratam amavelmente quem os ajuda.
Mas pela tua forma de falar e pelos teus modos diria que nasceste em berço
nobre quando nos encontramos pela primeira vez. O que é que te levou a seres
aprendiz?
Thomas riu-se.
- Berço nobre? Vagamente, na melhor das hipóteses. O meu pai
tinha ligações muito bem nascidas no Continente, e uma vez gabou-se de que
a minha mãe tinha sangue de reis italianos. Mas é um fio muito fino e
enrolado aquele que me liga a qualquer nobreza. Uma riqueza de sangue tão
pequena traz pouca fortuna e ainda menos perspectivas. Reparai, se as
histórias de luxúria contadas acerca dos reis britânicos do passado tivessem
qualquer crédito, à vontade metade das almas de Inglaterra podia sem dúvida
reclamar descendência real.
Lockheart fez um sorriso forçado.
- Não tinha pensado nisso, mas deve haver alguma verdade no que
dizes, rapaz.
Ouviram-se interrogações entre gemidos vindos dos tabiques
escuros à sua volta.
- Estejam tranqüilos, está tudo bem - disse Thomas como resposta.
Para Lockheart, ele acrescentou: - Estamos a perturbar-lhes o descanso,
senhor. Vamos para cima para falarmos.
- Uma idéia inteligente. Subamos antes que o ar irrespirável deste
lugar nos transforme em vermes aos dois.
- Dentre os que praticam a arte do meu mestre há os que acreditam
que o ar espesso e pestilento atua como barreira contra a doença. Eu só posso
pensar que esses homens nunca andaram no mar.
Thomas soprou suavemente na sua carta para secar a tinta, depois
dobrou-a e enfiou-a na sua casaca. Pôs-se de pé e seguiu Lockheart pelas
escadas que rangeram até à claridade da luz do dia.
Thomas foi bafejado por uma brisa fresca, prenhe de água salgada e
flores exóticas. Um pôr do Sol dourado encheu o horizonte a Ocidente,
esbatendo-se em azuis profundos e índigo na direção do Oriente. Na linha de
estibordo via-se uma lagoa turquesa, rematada por uma praia arenosa e uma
floresta de palmeiras.
- Eis aqui uma cena mais própria para o bem-estar - disse
Lockheart. Ele usava um gibão sem mangas, manchado, de couro cinzento cor
de ferro, habilmente concebido de forma a revelar um forro de veludo
vermelho, e rendas abertas até ao peito. Visível por trás da renda estava uma
medalha de prata num fio da tampa.
- Dentro desta caixa está esculpido um caduceu, o símbolo de
Esculápio, a quem os Gregos adoravam pelo seu poder de cura.
- Ah. Vejo que conheces os clássicos.
- O meu pai deu-me alguma educação, senhor. Tinha esperança que
o conteúdo desta garrafa nesta caixa pudesse ser medicinal de alguma forma.
- Ainda não o experimentaste.
- Estava na posse de um feiticeiro, lembrai-vos. Não sei se é de
confiança. Neste papel há algumas inscrições. Consigo decifrar o significado
da que está mais em baixo, o grego, mas as outras por cima são escritas que
não conheço.
- Dá cá - disse Lockheart, estendendo a mão.
Com relutância, Thomas deu-lhe o papel. Para seu alívio, os dedos
pesados do escocês abriram-no com cuidado.
- Isto é misterioso. A primeira frase está escrita em árabe, no
entanto, o seu significado é bíblico: ”Eu sou a Ressurreição e a Vida.”
- Isso dá esperança. A linha seguinte é também em árabe, não é?
- Uma boa tentativa, rapaz, mas é persa.
- Conheceis essa língua?
- Só um momento - Lockheart examinou-a de perto, como se fosse
um estranho inseto. - Estas palavras são de outro livro sagrado, o Alcorão, do
Islã.
- São? Qual é a sua mensagem pagã?
- Faz ressurgir os vivos dos mortos e os mortos dos vivos. A terra
sem vida é acordada por ele.
Thomas coçou o rosto.
- Todas estas mensagens falam da vida ressurgida da morte. Talvez
seja um remédio muito poderoso.
- Ou o médico que a utiliza tem de orar pela sua eficácia.
- Como o homem não sabe como os remédios funcionam, talvez a
oração seja a parte mais eficaz da cura. Qual é a mensagem seguinte?
Lockheart examinou mais uma vez o papel.
- Aposto que isto é sânscrito.
- Que língua é essa?
- Disseram-me que muitos livros sagrados hindus estão escritos
nesta língua.
- Se calhar são mais palavras sagradas sobre a vida e a morte.
Também conseguis ler essas palavras?
Lockheart abriu a boca, fez uma pausa, depois fez um sorriso
forçado.
- Não. Thomas suspirou.
- Ainda não estou convencido que posso usar isto em segurança. A
frase grega, eu sei, fala de serpentes e pele.
- Talvez não queira dizer que pertença ao conteúdo desta garrafa.
Podem ser apenas escritos ao acaso de alguém que pratica estas línguas.
- Hmmm. Acho que não. O feiticeiro tinha esta caixa ao lado dele
quando o encontrei. E estava com pouca vontade de ser separado dela.
- Se o grego fala de serpentes, talvez seja veneno de cobra.
- Então pode ser veneno ou remédio. A triaga é um remédio que
usávamos na loja do mestre Coulter. Contém carne de víboras; é um curativo
muito comum. Isto pode ser alguma coisa assim.
- Posso ver a garrafa? Thomas parou.
- Quero-a devolvida.
- Retirou a garrafa iridescente da sua cama de seda e deu-a ao
escocês.
- Não tenhas receio de mim. Isto é uma coisa bem bonita. -
Lockheart fez deslizar suavemente a rolha de cortiça. Saiu com um pop
pequenino. Lockheart bateu na garrafa até sair um pó fininho castanho para a
palma da sua mão. Lambeu o polegar e encostou-o ao pó. Esfregou a
substância misteriosa entre o polegar e o indicador, cheirando a uma
distância segura. Olhou durante uns momentos para o mar, mergulhado no
pensamento. Franzindo o sobrolho, Lockheart pôs a palma da mão sobre a
boca da garrafa e voltou a deitar o que pôde lá para dentro. Depois,
cuidadosamente, limpou a mão aos calções para retirar o resto.
- Que pensais vós? - disse Thomas.
- Acho que as nossas interrogações nos estão a levar pelo caminho
errado.
- Não é remédio nem veneno?
- Eu li aquelas frases em livros sagrados, Tom. Talvez isto não seja
remédio para o corpo, mas para a alma. Ou um meio de levar à queda das
almas. Se o meu julgamento tiver algum valor, o pó nesta garrafa é sangue
seco. E já vi muito sangue na minha vida. - Rolhou a garrafa e voltou a dá-la a
Thomas como se ela lhe queimasse as mãos.
Thomas pegou nela, sentindo um arrepio.
- Sangue de homem ou de animal? O que é que um feiticeiro poderá
fazer com isso?
- O que poderá ele não fazer, Tom? Como diz nas Escrituras, ”O
sangue é a vida”. O sangue dos animais nocivos pode realçar a poção das
bruxas, enquanto o sangue de um homem pode ser usado contra ele mesmo.
O sangue de um santo, bem... se a magia do nosso feiticeiro for branca,
poderá fazer milagres; se for negra, grande mal pode ser causado.
- Então isto poderá ser uma relíquia? - Se fosse papista, Thomas
saberia que a sua alma estaria mais a salvo se ele atirasse imediatamente a
garrafa para o mar.
Lockheart encolheu os ombros.
- De certeza que não tenho o conhecimento para o dizer. Thomas
baixou o olhar para a garrafita. Qual será o mal que mais perigos causa à
alma: uma relíquia papista, um talismã pagão ou um feitiço satânico?
- Seja como for - prosseguiu o escocês - é possível que o nosso
feiticeiro a tenha usado apenas como especiaria no seu cozinhado.
Mesmo sem querer, Thomas riu-se.
- Senhor, nunca sei quando falais a brincar.
- Não te queixes. Muitas vezes nem eu. Aproximaram-se alguns
passos e Thomas olhou em volta.
O mestre Bromefield caminhava na direção deles atravessando o
convés, com a sua capa de veludo levantada pelo vento. Thomas pensou que
ele se parecia com um retrato de taberna do velho rei Henrique VIII, só que
mais magro e mais gasto. Interrogou-se qual seria o sentido de honra
exagerado que levaria homens como Bromefield a usar roupas tão pesadas e
tufos engomados e duros em volta do pescoço mesmo neste clima tão quente.
Talvez como Enviado Especial de Sua Majestade, a rainha Isabel, ao grande
imperador da China, Bromefield nunca soubesse quando é que iria ser
chamado a impressionar alguém. Thomas pôs novamente a garrafa na sua
caixa e enfiou-a na casaca à medida que um Bromefield encharcado em suor
se aproximava deles.
- Senhor - disse Bromefield a Lockheart -, o nosso capitão
apresenta-vos as suas mais calorosas desculpas e pede o vosso regresso para
o último interrogatório dos nossos cativos. - Bromefield trazia uma expressão
contrafeita e Thomas interrogou-se se o mercador gostava menos da
mensagem ou da tarefa de mensageiro.
- Belas palavras, dadas lindamente, senhor - respondeu Lockheart -
, podeis informar o bom capitão que regressarei em breve.
- Assim farei, senhor. - Bromefield virou-se para sair.
- Mais uma coisa - disse Lockheart. - Também levarei o senhor
Chinnery, pois tem perguntas suas a fazer. - Como Bromefield franzisse o
sobrolho, acrescentou: - Não esqueçais que foi ele quem descobriu o nosso
feiticeiro. Acho que ganhou esse direito.
Bromefield suspirou, como se o mundo tivesse passado todas as
marcas da razão.
- Muito bem, se o capitão Wood estiver de acordo. - Virou-se, com a
capa a rodar e afastou-se.
Thomas ergueu as sobrancelhas para Lockheart.
- Porquê esta desculpa?
- O nosso capitão, como deves ter notado, tem um temperamento
que muda como os ventos do cabo Horn. Por razões que desconheço, decidiu
descarregar em mim uma tempestade. Bom, pediu perdão de uma forma
muito elegante. Vem, Thomas. Vamos recebê-lo como cavalheiros que somos. -
Lockheart saltou e pôs-se de pé.
Thomas seguiu-o.
- O que é que lhes vai acontecer, ao feiticeiro e à senhora?
- É isso que está a ponderar agora o nosso capitão.
- Não sei porque é que tantos da sua tripulação nativa ficaram ao
nosso serviço e não quiseram aceitar a liberdade oferecida.
- Os portugueses são patrões duros, meu rapaz. Não há dúvida que
estão à espera de melhor sob o nosso cuidado.
Thomas e Lockheart passaram por vários dos homens da nova
tripulação, que estavam sentados a tirar estopa de cordas velhas para
repararem fugas, outros cosiam velas rasgadas e esfarrapadas. Thomas
sentia-se inquieto por ter tantos estrangeiros escuros a bordo, mas, no
entanto, muita da tripulação original do Whelp estava tão incapaz que a ajuda
era necessária em todos os quadrantes.
Lockheart levou Thomas até ao tombadilho, que estava agora
mobiliado com uma mesa e algumas cadeiras. O capitão Wood sentava-se
relaxadamente à cabeceira da mesa, com o seu rosto corado e curtido com
uma expressão carrancuda. À esquerda do capitão estava sentado o feiticeiro
português, alerta e direito, com as suas mãos algemadas sobre a mesa. Os
senhores Allen e Bromefield estavam de pé, desconfiados, à direita do capitão.
A misteriosa dama hindu não se via em lado nenhum.
O capitão Wood fez um aceno breve a Lockheart, depois a Thomas.
- Senhor Chinnery. Como é que estão os meus homens?
A verdade sobrepôs-se à diplomacia:
- Não muito bem, senhor. Sofrem de febres, infecções e de falta de
remédios. Não serão muitos os que irão recuperar.
- Tal como eu temia.
O capitão baixou os olhos para a mesa e Thomas ficou surpreendido
por sentir alguma simpatia pelo homem.
- Thomas - disse Lockheart -, concedei-me a honra de vos
apresentar o Senhor Bernardo de Cartago, de Goa. Senhor, com licença,
apresento o Senhor Tomás Chinnery, médico e alquimista.
O prisioneiro ergueu as suas sobrancelhas finas e acenou
respeitosamente a Thomas. Dirigiu então uma pergunta em português a
Lockheart, que respondeu com uma breve afirmativa.
- Senhor - disse Thomas baixinho a Lockheart -, na verdade não
sou médico nem alquimista. Será sensato chamarem-me assim?
- Ele irá considerar-te melhor por isso. E que melhor forma para
descrever aquilo que fazes, hã?
O feiticeiro dirigiu-se então suavemente a Thomas, em latim:
- Cabe-me, então, apresentar-vos as minhas desculpas. Presumo
que o meu salvamento tenha sido pago com alto preço.
- O que é que ele diz? - murmurou o capitão Wood a Lockheart.
- O cavalheiro expressa o seu pesar pelas nossas perdas, senhor.
O senhor Bromefield franziu o sobrolho. Thomas interrogou-se até
que ponto era o conhecimento de latim do enviado. O capitão olhou para
Thomas.
- Senhor Lockheart, o nosso feiticeiro convidado também se chama
a si mesmo um alquimista, não é verdade?
- Sim, é um erudito, senhor.
- Perguntai-lhe se ele tem capacidades de cura ou remédios que
possam ter utilidade para o nosso senhor Chinnery.
Thomas pestanejou com a surpresa. O capitão sabe o meu objetivo
antes de eu falar. E a sua estima pelo homem aumentou novamente.
Lockheart recitou uma corrente deselegante de português.
- Sir! - Bromefield protestou ao capitão. - Estais a pensar pôr as
nossas almas em perigo utilizando os métodos maliciosos deste homem? Não
seria melhor morrermos sem mácula do que aceitarmos a ajuda do Diabo?
Inclinando-se pesadamente sobre a tábua, o capitão Wood ergueu-
se da sua cadeira e olhou para o senhor Bromefield.
- Senhor, será que este navio vai chegar à China, credes, navegado
apenas pelas almas de homens santificados? Será que sombras abençoadas
irão desfraldar as nossas velas e fantasmas enviados pelo céu trabalharão nas
vigias dos canhões? Será que os anjos puxarão as cordas e os querubins
baldearão a água? Garanto-vos, poucos dos malditos homens lá de baixo
estarão mesmo agora imaculados do pecado. No entanto, a minha
competência dada por Deus é cuidar das suas vidas e trabalho. Não pensais
que será prestado um melhor serviço a eles, a Sua Majestade e a Deus ajudá-
los a viver? Numa vida mais longa, mais orações serão ditas e mais pecados
perdoados. E por mais condenados que possam estar, a nossa jornada não
atingirá um objetivo mais lucrativo com a ajuda de mãos vivas?
Bromefield, rangendo os dentes para trás e para a frente,
murmurou:
- Então, que isso fique na vossa consciência, senhor. Que Deus vos
perdoe. Que Deus nos perdoe a todos. - E olhou intencionalmente para
Lockheart.
O capitão Wood resmungou e sentou-se mais uma vez. O feiticeiro
falou durante alguns momentos a Lockheart em português.
Lockheart aclarou a garganta:
- O senhor Cartago diz que tem pouca coisa com ele de remédios
vulgares. Contudo, tem alguns conhecimentos das plantas que crescem nesta
região. Fornecer-nos-á isso se permitirmos que ele viaje conosco até Pegu.
O capitão coçou a sua barba vermelha desalinhada, depois
aquiesceu.
- Um pedido razoável. Vou pensar nele. Agora, senhor Chinnery,
disseram-me que tendes uma pergunta a fazer ao nosso convidado.
Thomas sentiu que a garganta se lhe secava. Como é que eu poderei
perguntar sem alarmar o capitão e o senhor Bromefield?
- Já a haveis feito por mim, senhor. Eu também desejava saber se
ele tinha remédios para oferecer. Mas vou perguntar-lho mais uma vez. -
Virou-se para Cartago e falou em latim:
- Tendes a certeza, Magister, que não havia nada no vosso navio
que possa curar ou aliviar a dor?
Cartago fez uma pausa, olhando para Thomas, que reparou num
canto da caixa de madeira a espreitar da sua casaca. O feiticeiro inclinou a
cabeça com um brilho estranho no olhar.
- Nada, Magister, exceto o que foi oferecido por Ouroboros. - Pôs as
mãos à sua frente de forma a que os seus dedos encurvados e polegares
criassem um círculo.
Thomas sentiu que estava a ser testado. A palavra ”Ouroboros” era-
lhe vagamente familiar, mas não conseguia lembrar-se donde. Em vez de
mostrar a sua ignorância, Thomas inclinou a cabeça em aprovação.
- Compreendo. Obrigado.
- Falais grego? - perguntou Cartago.
- Sim. O meu pai fez com que me ensinassem intensivamente essa
língua.
- A senhora Aditi irá achar interessante, Magister. Poderíeis falar
com ela. Eu próprio não tenho conhecimentos de grego. Talvez, se houver
tempo, possais ensinar-mo um pouco.
- Talvez - respondeu Thomas, escondendo a sua admiração.
Lockheart virou-se para ele, com um sorriso espalhado no rosto.
- Claro. Estava destinado, rapaz! - bateu-lhe no ombro.
- Então, então, senhor Lockheart - interrompeu o capitão Wood. - O
que é que o nosso homem disse?
O escocês respondeu antes de Thomas poder dizer alguma coisa:
- Ele não tem medicamentos, senhor, mas parece que finalmente
encontramos alguém que pode falar com a nossa passageira.
- Temos? - O capitão ergueu as suas sobrancelhas peludas para
Thomas.
- O rapaz aprendeu grego e parece que é essa a língua própria para
encantar o ouvido da nossa dama.
- Raios o partam, Lockheart! - explodiu Bromefield. - Porque é que
não nos haveis dito que ela falava grego? Eu próprio fui à escola do Merchant
Taylor e conheço alguma gramática grega. Eu podia ter falado com ela.
- Não lanceis assim a vossa saliva, senhor - rosnou o capitão. - Se
não podemos arrefecer-vos o sangue, senhor Bromefield, atiro-vos à água para
que ela o faça. Senhor Chinnery, sois fluente em grego?
Thomas acenou que sim:
- Sou, sim, senhor. Domino a gramática de Clenardus e li Esopo,
Platão, Demóstenes e Homero.
O capitão Wood virou-se para Bromefield:
- Foi a escola do Merchant Taylor que vos ensinou tudo isso?
Bromefield reteve a respiração e espetou o peito.
- Como parece que não possuo quaisquer aptidões de utilidade
aqui, vou juntar-me ao meu companheiro que está em terra, que está neste
momento ocupado com o verdadeiro objetivo desta expedição, senhor, que é o
delinear do comércio no Oriente.
Bromefield virou-se e afastou-se, olhando para Lockheart enquanto
se afastava.
Thomas sentiu-se num nevoeiro de estupefação, não como aquele
que sentiu quando, por acidente, ingeriu uma gota de xarope de papoula na
loja do seu mestre. A presença de Lockheart nesta viagem representava
claramente mais do que a venda da boa lã inglesa.
- Perdoai-me, capitão, se causei perturbação.
O capitão Wood acenou uma mão carnuda em gesto de despedida.
- Não dês importância, rapaz. É este ar sufocante. Gostaria que
falasses com esta senhora Aditi o mais breve possível. Soubemos que ela está
muito bem relacionada e pode dar um alto resgate. Descobre quanto e de
quem e como se poderá conseguir. Vê se esta expedição ainda pode ter algum
lucro. Segui o vosso caminho.
Quando desciam do tombadilho, Thomas perguntou a Lockheart:
- Sois um homem de tantas línguas, senhor, estou surpreendido por
o grego não ser uma delas.
- Para dizer a verdade, é, embora talvez não a saiba tão bem como
tu.
- Então porque não haveis dito isso ao capitão?
- Queres conhecer o conteúdo da caixa, não é? Eu acho que o nosso
feiticeiro te está a dirigir para a única que te pode dar a resposta. Estes
filósofos podem ter modos labirínticos, mas muitas vezes são generosos com
um colega em viagem.
- Na verdade, gostaria que não me tivésseis apresentado como um
colega alquimista.
- E porque não? Já viste o que já conseguiste? Qual é o mal?
- Receio ser descoberto. Agora ele está a testar-me. O nome que ele
mencionou, ”Ouroboros”, conhecei-lo?
- Eu pensava que era o nome de um verme.
- As suas mãos fizeram um círculo. Ah! Agora lembro-me. O mestre
Coulter mostrou-mo uma vez num frasco de argila medicinal que ele comprara
a um alquimista da Saxónia. Não é um verme, mas sim uma serpente a
morder na cauda.
- Sim, alfa e ômega, mundo sem fim. - Lockheart ergueu as
sobrancelhas. - E mais uma vez a imagem de cobras. Este mistério leva-nos
realmente para um caminho em serpentina.
- É o que parece. Esperemos não encontrar dentes que nos mordam
no fim.
Capítulo IV
SABUGUEIRO: Esta pequena árvore dá flores docemente aromáticas
na Primavera e bagas pretas no Verão. A sua lenha cheira mal. Os mais
velhos contam que Judas se enforcou no sabugueiro e que foi desta
madeira que se fez a cruz do nosso querido Senhor. As bagas vermelhas
do sabugueiro têm origem nas gotas de sangue de Nosso Senhor. O
sabugueiro é sempre uma árvore de dor e morte. Trazer ramos de
sabugueiro para dentro de casa é tornar-se anfitrião do Diabo, e nem os
berços nem os barcos devem ser feitos desta madeira...
O Irmão Timóteo agarrou com força contra o peito a Bíblia gasta, de
capa de couro. “A pobre senhora não compreende”, pensou ele com pena.
Aproximou-se da mulher que estava deitada, com falta de ar, no catre
manchado.
- Senhora - disse ele, esperando que a sua voz parecesse suave e em
tom de perdão -, senhora, porque deixais que vos atormentem?
A cela estava silenciosa, tirando a respiração incerta da mulher e o
gotejar incessante de água nalgum canto escuro. A mulher vestia apenas uma
roupa interior outrora de seda fina e agora suja e rasgada. Fios de metal
afiado atavam-na às tábuas duras e toscas. Ela sofrera o potro, o tormento da
água deitada de um jarro para um trapo de linho que é colocado sobre a
língua e dentro da garganta. Haviam-lhe dado alguns momentos de descanso,
mas ainda ansiava por ar como se estivesse a afogar-se. Virou o seu rosto
pálido para o Irmão Timóteo quando ele chegou ao seu lado, mas os seus
olhos escuros pareciam não o compreender.
- Senhora?
- Não! - gritou ela. - Mais água não, suplico-vos. - Tossindo, rolava a
cabeça de um lado para o outro e saltou-lhe da boca um líquido.
- Eu não trago o jarro, senhora. Não temais. Trago esperança. Não
deixais que o Diabo endureça o vosso coração, mas abri-o a Deus e aos
Domines que vos interrogam.
- Mas eu disse tudo o que posso! - lamentou-se ela. Não há mais
nada que possa dizer-lhes. O meu pai... por favor deixai-me falar com meu pai.
- Os Domines são o vosso pai aqui, senhora. E Deus é pai de nós
todos. Porque não lhes dizeis a verdade?
Um suspiro estremecido:
- Eu disse-lhes a verdade.
- Isso não pode ser, senhora, pois ainda estais aqui e os Domines
estão a voltar. Eles conhecem a verdade quando a ouvem. Porque não podeis
ver a verdade no vosso coração?
A mulher fechou os olhos.
- Não posso, não sei o que é que eles querem que eu diga. Timóteo
agarrou na mão fria e trêmula, com os olhos a encherem-se de lágrimas. Ele
desejava não ter esta tarefa. Testemunhar a dor dos convidados da Santa
Casa. No entanto, ele sabia que lhe tinham dado o trabalho mais importante,
guiar as almas até à luz. Odiava o Diabo que causava tanto sofrimento, que
cegava os pecadores para com os seus pecados.
- Por favor, senhora - disse ele. - Olhai para o vosso coração e
salvai-vos. Falai livremente, e aceitai o perdão de Deus.
Foi interrompido por passos na pedra do corredor no exterior da
cela. A mulher ergueu a cabeça do catre, de olhos abertos. A sua mão apertava
a de Timóteo como um ferro.
- Os Domines estão a voltar, senhora. E trazem novamente o jarro.
- Não... não os deixeis... por favor, não os deixeis...
- Só vós os podeis parar, senhora.
As dobradiças da porta da cela chiaram e entraram três homens: os
dois inquisidores-mores em vestes pretas e um estranho de branco. Timóteo
apertou a mão da mulher uma última vez e recuou. Se os mexericos da
cozinha que ele ouviu eram verdade, o dominicano devia ser o enviado do
grande inquisidor. Baixando o olhar, Timóteo fez educadamente uma vênia e
pôs-se a um lado.
- Irmão Timóteo - disse Domine Sadrinho -, a senhora Resgate quer
fazer a sua confissão?
- Não sei, Domine. Ela tem de falar por si mesma. - Timóteo olhou
para o teto e rezou. “Senhor, soltai a prisão que o Diabo exerce sobre o seu
coração. Ajudai-a a ver a luz do Vosso amor. Não a abandoneis na escuridão.”
- Porque é que continuam a atormentar-me, Domines? irritou-se a
mulher. - Eu não sei nada.
O inquisidor Sadrinho respondeu suavemente:
- Porque, minha filha, os tormentos que se enfrentam no Inferno
são muito maiores que qualquer tormento que possais receber na Terra. Os
sentidos da carne são passageiros. O Inferno é dor eterna. Aquilo que vos
damos é um carinho comparado com o que se passa no domínio de Satanás.
Fazemo-vos isto para que vos lembreis desse fato. Não quereis falar livremente
conosco e assim escapar aos horrores da condenação?
Após alguns momentos de silêncio, o inquisidor Pinto disse:
- Parece que ela deseja passar mais tempo na Cama da Memória.
O homem de branco aproximou-se do catre e disse:
- Qual é o vosso nome, senhora?
A sua boca moveu-se, mas não saíram quaisquer palavras. Timóteo
podia sentir o seu medo.
- Senhora - disse o inquisidor Sadrinho -, este é o padre António
Gonsção. Ele fez todo este caminho desde Lisboa para ver se não ficais perdida
nos fogos de Hades. De tal forma é grande a compaixão da Santa Casa.
- Padre - sussurrou ela -, por favor, ajudai-me.
- Padre Gonsção, esta infeliz é a Senhora Serafina Resgate, viúva de
um fidalgo proeminente. Como vos disse, ela era conhecida por acompanhar
os feiticeiros Zalambur e Cartago. Ai de mim, ela parece não se lembrar do
tempo passado com eles ou com alguém do seu círculo.
- Padre - peço-lhe que...
- Senhora - disse Timóteo -, não percais as vossas preciosas forças
pedindo aquilo que só vós podeis dar. Estais a passar por uma horrível
provação. Peço-vos, dizei apenas palavras que vos levem à libertação. Deixai
que os Domines sejam como parteiras que ajudem a vossa alma a entrar
numa nova vida, e não coveiros que observam uma alma a enterrar-se sozinha
no pecado.
A mulher olhou para ele.
- Não há outra esperança para mim?
- Nenhuma, senhora. Ela suspirou.
- Eu fiz uma jura. Nunca falar disso.
- Haveis jurado a falsos deuses, senhora - disse o inquisidor. -
Como podeis ser castigada por aquilo que não existe?
- Eu vi... - Ela fechou a boca com firmeza, com um novo medo nos
olhos.
- O que haveis visto, filha? Dizei-nos e libertai-vos.
Ela tossiu outra vez, com os olhos muito fechados, mas não falou.
- Muito bem. - Domine Sadrinho fez um gesto com a cabeça ao
inquisidor Pinto, que ergueu o jarro sobre o rosto da mulher, deixando que o
tecido molhado lhe tocasse no rosto.
- Não! - Os seus olhos arregalaram-se e lutou contra os arames que
a atavam.
- Por favor, senhora, não nos forceis a fazer isto. Conforme o pano
de linho lhe tocou na boca, ela gritou:
- Sim! Perdoai-me. Eu vou confessar!
O inquisidor Pinto afastou imediatamente o pano e o jarro do seu
rosto.
- Bernardo, Harun, perdoai-me - murmurou ela.
O coração de Timóteo saltou de alegria. Caiu de joelhos. Graças a
Deus!
- Uma decisão sensata, senhora - disse o inquisidor Sadrinho. Foi
até à cabeceira do catre e suavemente acariciou-lhe o cabelo úmido - O que
nos quereis dizer, minha filha?
- Senhor, eu... eu pequei.
- Sim. - O inquisidor-mor acariciou-lhe o braço devagarinho com as
costas da mão. - Continua. Descreve o teu pecado.
- Nós... eu fazia parte de... reuniões. Cerimônias. Em adoração da
deusa.
- E além de vós quem estava nessas reuniões?
- O meu amante, Harun. Uma mulher chamada Aditi. Outros... não
sei. Estava escuro. Não conseguíamos ver os rostos uns dos outros.
- Muito bem. E o que faziam nesses rituais pagãos?
- Sri Aditi disse-nos que a deusa vive entre os mortais na índia. Que
ela tem o poder de dar a vida e a morte.
- Fostes enganada, senhora. Só o Senhor Deus dá a vida e a morte,
e depois a vida eterna.
- É como dizeis, Domine. Só Deus. Mas ela mostrou provas.
- Provas? Quereis dizer que ela usou de ilusões para vos enganar.
Mostrou-vos ídolos?
- Estátuas. Havia estátuas...
- E esta deusa tem cabeça de hipopótamo ou de outra criatura
bizarra?
- Cobras... - A mulher parecia estar a entrar em delírio. Havia
cobras.
- Qual é o nome desta deusa?
- O seu nome é força.
- Quais foram os vossos atos nestes rituais de adoração?
- Houve orações... e cânticos, penso.
- Essas evasões não irão salvar a vossa alma, minha filha. Tendes
de ser mais específica. Não penseis que ficaremos chocados. A Santa Casa
está habituada a todas as formas do trabalho do Diabo.
- Então para que preciso de vos contar?
- Para bem da vossa alma, senhora.
- Alguns de nós... bebemos sangue. Aditi disse que era o sangue da
deusa.
- Sim? Continuai.
- É... é tudo.
- Impossível.
- Não.
- Nós sabemos tudo sobre as cerimônias pagãs, senhora. Não faz
bem à vossa alma esconder seja o que for. Claro, o inquisidor Pinto pode trazer
novamente o potro, no caso de a vossa boca estar muito seca, ou de a vossa
língua precisar de se soltar.
De olhos estonteados, a mulher disse:
- Não, o que é que querem que eu diga? Que comemos papoulas ou
fornicamos com animais?
- Ah - disse o inquisidor Pinto. - Agora estamos a chegar algures.
O padre visitante tossiu:
- Domine, talvez fosse melhor o jovem Irmão ir tratar agora dos seus
outros deveres.
- Como? Ah, sim, claro. Podes ir, Timóteo.
Timóteo fez uma vênia e caminhou para a porta, sorrindo e feliz.
Depois da sua confissão, ele sabia que dariam um banho à mulher e que seria
alimentada e levada de volta à sua cela. Dar-lhe-iam muito tempo para
recuperar enquanto aguardaria julgamento no próximo auto-de-fé. No seu
julgamento seria excomungada, mas se encontrassem em Goa um defensor à
altura para ela, seria imediatamente recebida nos braços da Santa Madre
Igreja.
Do lado de fora da cela, virou-se e viu que o padre dominicano o
seguira.
- Foi muito impressionante, meu filho - disse o padre. És na
verdade um grande trunfo para esta Santa Casa.
Timóteo sentiu que o seu rosto aquecia.
- Fico contente por mais uma alma ter voltado para Deus, padre.
- Claro. Domine Sadrinho, disse-te que eu gostaria de falar contigo
com calma um pouco mais tarde?
- Não, padre.
- Talvez esta noite, quando tiveres acabado os teus deveres
noturnos. Fazias-me o favor de te encontrares comigo?
- Mmm... mas claro, padre.
- Ótimo. És claramente talentoso e perspicaz. Poderás ser de uma
grande ajuda para o meu trabalho. - Com um aceno de cabeça, o padre virou-
se e voltou a entrar na cela, fechando a porta atrás de si.
Timóteo sentiu que a sua alegria diminuía com a preocupação O
que é que o enviado especial quer de mim? Porque é que ele me elogia? Eu só
conduzo os nossos hóspedes para a luz. O seu regresso à graça é obra do
Senhor, não minha. Mesmo nada minha.
Capítulo quinto
OLIVEIRA: Esta árvore muito venerada cresce no Oriente desde
tempos antigos. Dos seus frutos retira-se um óleo bom como remédio,
alimento ou combustível para candeeiros. Para os Gregos a oliveira era
símbolo da paz, de viagem segura e vida muito longa. Era consagrada a
Atena, a sua deusa da sabedoria. Em Itália, considera-se que o ramo da
oliveira protege do raio do trovão e das bruxas. Para os Espanhóis, um
arco de oliveira torna a mulher chefe da casa...
Sri Aditi, nascida com o nome de Dará Naini num clã de gentes de
caravanas no Rajastão, olhava fixamente para o deserto do mar. Tanta água, e
nenhum socorro para a sede. Que horizonte tão longínquo, mas sem lugar
para onde caminhar. Morte no meio da vida. Vida no meio da morte. Um
paradoxo à altura de Mahadevi. “Porque é que eu deixei que Bernardo me
convencesse a fugir com ele? Eu nem sequer o amo. Em Goa havia ruas
familiares e casas onde a ajuda se podia encontrar. O que é que faço agora?”
A janela na cabina do navio inglês era demasiado pequena para se
saltar por ela. Pouca diferença fazia; Aditi não sabia nadar. Ser asfixiada pela
água, ou despedaçada pelos monstros que moram lá em baixo? Não, se a
morte tiver de chegar, a forma não será essa. A brisa trouxe do mar um cheiro
acre a sal. Aditi recuou e fechou a janela.
Havia vozes a aproximarem-se da porta.
Aditi rapidamente se pôs atrás de uma mesa, que colocou
juntamente com uma cadeira entre ela e a porta. Deslizou o candeeiro de
petróleo para ficar ao alcance da mão e pousou a outra mão no cabo de uma
faca enfiada na cintura da sua saia gahgrah. Iria tentar ferir ou matar o maior
número de ingleses que pudesse, ou a si mesma, antes de eles terem qualquer
hipótese de a envergonhar. Até agora tinham sido educados, mas Bernardo
dissera-lhe como eram os ingleses. Não esperava que a sua amabilidade
durasse muito.
Os marinheiros estavam a acender os candeeiros no convés inferior.
Com aquela luz fraca, Thomas e Lockheart encontraram a porta dos aposentos
do senhor Bertwick, que morrera de escorbuto há dois meses. Thatch, o velho
e vigoroso mestre de armas do Whelp, que era considerado pela tripulação
com um misto de terror e respeito, estava de guarda encostado à amurada.
- Boa noite, senhor Thatch - disse Thomas.
- Ah, o jovem senhor Chinnery! Boas-noites também para vós.
Tendes porventura mais um pouco daquele sumo de ópio? Eu acho que a
minha febre terçã está a piorar.
- Infelizmente, não, senhor, não há mais. Mas se encontrarmos
algum, dar-vos-ei a saber.
- Bom, então, ficarei muito agradecido. O que vos traz por aqui?
- Disseram-me que a nossa prisioneira está aqui alojada. Por trás
dele, Lockheart acrescentou:
- O capitão gostaria que falássemos com ela pois conhecemos uma
língua que ela sabe.
O mestre de armas esfregou o queixo proeminente com o polegar,
olhando com suspeita para o escocês.
- Sim, há muitos homens a bordo a quererem falar a língua dela, e
os lábios e as mãos também. Mas eu estou encarregado de que nada de mal
lhe aconteça.
- Tende cuidado com a vossa própria língua, senhor rosnou
Lockheart. - Nós somos cavalheiros aqui ao serviço do capitão.
- Por favor - disse Thomas, mais uma vez espantado com a forma
como Lockheart parecia provocar inimizades em todo o lado. - Tenho ordens
para saber como é que se poderá obter um resgate da senhora. E talvez ela
saiba quais os remédios que podem ser encontrados nestas terras, em especial
o xarope de papoula.
- Então entrai, meu bom senhor Chinnery. Mas se alguma coisa
correr mal, chamem por mim. - O mestre de armas puxou o trinco e recuou.
- Assim farei, senhor.
A senhora Aditi estava de pé por detrás de uma pequena mesa
quando Thomas e Lockheart entraram. A luz fraca do candeeiro em cima da
mesa cintilava nos fios dourados do seu sari vermelho, brilhando na trança
escura do seu cabelo. Uma mão de dedos esguios repousava na mesa, a outra
na cintura, perto de uma faca semi-escondida. Ela olhava para eles
desconfiada, mas não parecia ter medo. Thomas achou-a muito bela, embora
de estrutura demasiado musculosa e porte excessivamente orgulhoso para o
seu gosto. O azul dos seus olhos tem mais aço que o céu limpo.
Sentiu que Lockheart lhe bateu nas costas.
- Não fiques aí especado, rapaz. Fala!
Com uma pequena vênia, Thomas disse em grego.
- Os meus cumprimentos, Despoina Aditi. Disseram-me que sabeis
a língua dos sábios e antigos helênicos.
Os seus olhos abriram-se e um sorriso suave apareceu nos seus
lábios. A sua postura desconfiada relaxou e deixou descair a mão afastando-a
da faca. Inclinou a cabeça.
- Certamente falastes com Bernardo.
- Se quereis dizer Despos de Cartago, estais correta.
- Como é que acontece falardes esta língua? Sois um estudioso,
como Bernardo?
- Sim, Despoina. Embora os nossos reinos de estudo difiram. Eu
sou Thomas Chinnery, boticário, um investigador de ervas e drogas curativas.
- Estou a perceber. - Inclinou a cabeça com um sorriso curioso. -
”Tamas”, não é?
- Nai, Despoina. Há alguma coisa...
- Não é nada. Os vossos nomes estrangeiros são-me estranhos.
- Ah. Posso perguntar-vos como é que sabeis grego?
- Fui ensinada pelas minhas amas quando era criança.
- Tivestes amas... muito instruídas, Despoina.
- Nai. Quem é este? - Aditi voltou o seu olhar para o escocês.
- Sou Andrew Lockheart, Despoina - disse ele com uma vênia. - Um
homem errante longe da sua floresta, trazendo o ramo sagrado da Caçadora.
Thomas olhou de lado para ele. O que poderá ele estar a tentar
fazer? A senhora Aditi fez uma vênia em resposta, mas não mostrou qualquer
reação às suas palavras.
- Fomos enviados pelo capitão Wood - prosseguiu Thomas -, para
sabermos qual o resgate que poderemos obter por vós e quem o pagará.
- Compreendo. Podem negociar com os maratas de Goa. Eles
pagarão de boa vontade milhares de tangas de prata para a minha libertação
segura. Também controlam muito negócio nesta região, e se eu for bem
tratada poderei ter alguma influência sobre eles relativamente aos vossos
mercadores.
- Então e os portugueses - disse Lockheart -, que vos perseguiam e
a Despos Cartago? O que é que eles poderiam pagar se vos entregássemos a
eles?
Ela levantou o queixo, com os olhos mais estreitos.
- Neles não se pode confiar. Iriam enganar-vos e pagar-vos com a
morte.
Thomas suspeitou que seria a senhora Aditi a pagar com a morte,
se fosse entregue aos portugueses, mas não se importou de a ajudar a evitar
um tal destino.
- Como é que podemos contatar esses maratas?
- Qualquer comerciante hindu que encontrardes nesta costa irá
aceitar pagamento para levar uma mensagem dessas. Cuidado, porém, com os
piratas, pois também são vulgares nestas águas.
- Temos conhecimento disso, Despoina, mas agradecemos.
- Porque é que desejais voltar para Goa - disse Lockheart -, quando
acabais de fugir de lá? Não pensáveis continuar em direção a Pegu com
Despos de Cartago?
A senhora Aditi baixou o olhar para a mesa.
- Lamento ter fugido com ele. Não desejo deixar a índia. É a minha
casa. Estou envergonhada com a minha cobardia por tentar fugir ao meu
dharma, e à ira da deusa que me apóia.
- Ela virou a cara para a janela.
Lockheart acenou gravemente com a cabeça.
- Como eu vos compreendo. Sois mais corajosa do que eu,
Despoina.
Thomas olhou novamente para ele. Estará ele a querer lisonjeá-la?
- Tenho mais uma pergunta que gostaria de fazer, Despoina.
-Qual é?
Thomas tirou a caixa furtada da sua casaca.
- Encontrei isto no barco de Cartago. Contém sinais que sugerem
que o seu conteúdo possa ser medicinal por natureza. Temos muitos homens
doentes e feridos a bordo, e não temos mais nada para lhes dar a fim de aliviar
a dor ou para curar. Podeis dizer-me se o pó que está lá dentro tem qualquer
utilidade para nós?
A senhora Aditi olhou para a caixa. Thomas não tinha a certeza por
causa da pouca luz, mas pareceu-lhe que o seu rosto se tornou um nada mais
pálido. Fez uma pausa antes de responder.
- Haveis aberto a garrafa?
- Nai, Despoina. Pensamos que esteja cheia com uma espécie de
sangue em pó. Despos de Cartago sugeriu que pudésseis saber algo sobre isto.
Se é uma santa relíquia, ou uma substância utilizada em bruxaria?
Ela fez novamente uma pausa.
- Bernardo disse-vos mais alguma coisa?
- Não, Despoina.
Agarrou com força nas costas de uma cadeira. Com um suspiro,
disse por fim:
- Não é medicinal. Não deveis usá-lo por isso para esses fins, pois
poderá fazer mal. É sangue de macaco. Bernardo usava-o nas suas...
experiências alquímicas. Peço-vos que lhe devolveis isso, pois poderá não ter
qualquer utilidade para vós.
- Então porque é que a garrafa vinha acompanhada de um caduceu
se não é medicinal? E porquê o papel com frases sagradas respeitantes à vida
e à morte se não é uma relíquia?
- Não sei. Talvez a garrafa anteriormente tenha contido remédios. O
sangue seria santo apenas para aqueles que adoram Hanuman, o deus
macaco. Digo mais uma vez, não tentem usar o pó para cura. Só vos trará...
má sorte.
- Ah - disse Lockheart. - Um talismã de má sorte, como a pata do
mesmo macaco. Não admira que os portugueses andassem atrás de vós.
Thomas olhou para a caixa, relutante em deixá-la.
- Que experiências é que Despos Cartago faz com isto?
- Quando lha devolverdes, talvez ele vo-lo diga. Não tenho nada
mais a dizer. Por favor, deixem-me só, estou cansada.
- Mas ainda há mais uma coisa - insistiu Lockheart. - Quem é a
deusa de quem falastes antes, que vos apóia?
Os seus olhos tornaram-se novamente desconfiados e a sua mão
deslizou em direção à faca da cintura. Lockheart levantou as mãos:
- Não receais, Despoina. Não somos padres para vos converter. Só
pergunto como um homem curioso com as coisas do mundo.
Os seus lábios ficaram finos numa expressão que tanto podia ser de
medo como de desprezo. Caminhou até à janela e abriu-a.
- O seu nome é força - murmurou a senhora Aditi, olhando
fixamente para o mar.
Thomas não pôde dizer se ela estava a responder a Lockheart ou a
murmurar uma oração. Lockheart abriu a boca como se quisesse fazer ainda
uma outra pergunta, mas com um olhar intencional para o escocês, Thomas
falou primeiro.
- Perdoai-nos por vos termos incomodado tanto tempo, Despoina.
Agora vamos deixar-vos a sós.
Lockheart fechou a boca com um sorriso pesaroso e Thomas
acompanhou-o na saída. Quando saíram do alcance do ouvido do senhor
Thatch, Thomas disse:
- Achais que ela tenha mentido? Quero dizer, acerca do pó?
- Como uma leoa no deserto, rapaz, ela mente com o seu orgulho.
- Porque é que haveis dito essas estranhas palavras sobre um ramo
e uma caçadora na vossa apresentação, e aquelas perguntas sobre quem é que
ela adorava?
- Esperava vir a saber que espécie de sofista ela seria, mística,
erudita ou feiticeira. Agora, penso eu, talvez uma espécie de feiticeira.
- O que importa, desde que sejamos capazes de obter o seu resgate
em segurança?
Lockheart franziu o sobrolho:
- Todo o conhecimento tem a sua utilidade mais tarde ou mais cedo,
rapaz. Adquiri o hábito de juntar o máximo que posso. Também podias fazer o
mesmo.
- Começais a ficar parecido com o mestre Coulter, senhor.
- Estou? - E a sua cara carregada tornou-se um sorriso, sutil. -
Lisonjeais-me. Bem, vamos dizer ao capitão as suas condições de resgate e
depois podes juntar-te ao resto da tripulação na praia. Ainda não acabamos os
barris do bom vinho espanhol que tiramos da posse de Cartago.
- Agradeço-vos, mas já vi que o folguedo tão animado muitas vezes
leva dali a bocado à pancadaria. Ainda tenho de ir ver outra vez os meus
doentes lá abaixo, que não podem tomar parte nessas festanças. Podeis dar a
mensagem da senhora Aditi ao capitão sem mim?
Lockheart parou de andar e pestanejou.
- Se tens a certeza que é esse o teu desejo. Uma noite sem as
profundezas fétidas iria fazer-te bem, rapaz. Não é bom para os doentes terem
um médico sem humor.
- Então, por favor, deixai-me com o meu humor e o meu trabalho.
Ide gozar os despojos enquanto eu trato os que ficaram despojados a obtê-los.
- Compreendi o toque - respondeu Lockheart com uma vênia e uma
careta. - Tem então o cuidado de permanecer lá em baixo durante a noite, pois
os esgares dos bêbados são uma visão terrífica para os homens sóbrios.
- Assim farei, senhor.
- Não te esqueças, não comas romãs enquanto estiveres lá em
baixo, ou não te veremos durante meio ano.
Thomas riu-se:
- Darei os vossos cumprimentos ao senhor Plutão, se o vir, tal como
vós, senhor, apresentai as minhas cortesias a Baco.
- Não, a minha musa é a casta Diana, e tenho de fazer companhia à
Lua durante toda a noite. Até amanhã, Tom. - Lockheart subiu as escadas até
ao convés superior, desaparecendo na escuridão.
Thomas avançou pelo corredor estreito, entre os mastros, até ao
sítio onde uma outra escada levava às instalações da tripulação. Thomas
desceu-a lembrando-se da descida de Orfeu até ao Inferno. “Embora eu não
procure verdadeiro espírito de amor aqui, muito eu gostaria de levar uma
destas infelizes almas uma vez mais até à luz.”
Capítulo VI
AVELEIRA: Esta pequena árvore tem folhas arredondadas e
amentilhos longos. No fim do Verão, produz nozes escapeladas
chamadas [em inglês] ”Filberts”, em honra de São Filberto, pois é na
festa do seu dia que as avelãs amadurecem. A aveleira é, para os
Irlandeses, uma árvore de sabedoria e comer as suas nozes faz uma
pessoa sábia. Os de Gales entretecem ramos de aveleira nos seus
chapéus, acreditando que lhe concederá grandes desejos. Os melhores
ramos para adivinhação vêm da aveleira, quando cortados na véspera
de São João. Uma varinha cortada da madeira de aveleira por uma
criança inocente de fé verdadeira ajudará na procura de assassinos e
ladrões...
O padre Gonsção sentou-se num quarto escuro, bafiento e sem
janelas. Esfregou os olhos, que já lhe doíam de tantas horas a ler à luz da
vela. O banco alto onde se sentava já parecia duro que nem uma pedra.
Apesar de os ter segurado com cuidado, os três livros enormes que ele estivera
a ler continuamente ameaçavam cair do atril estreito. E os livros pouco
continham daquilo que Gonsção precisava de ver.
O inquisidor Sadrinho, ao que parece, não deseja o meu sucesso.
Mesmo assim, os livros que lhe haviam dado apontavam para a razão.
Verificara cuidadosamente o registro do último auto-de-fé, realizado no dia 8
de Dezembro de 1596. As listas daqueles que foram conduzidos para execução
civil, dos que foram mantidos na prisão, e os que foram libertados mostravam
que só os hereges mais ricos, que tinham muita propriedade para ser
confiscada, foram queimados. Gonsção fazia uma lista daqueles que foram
mandados para a fogueira, com a intenção de pedir os registros do seu
interrogatório. Suspeitava que iria ver sempre os mesmos familiares como
testemunhas de acusação.
Tal como era de esperar, não lhe tinham dado qualquer registro dos
julgamentos do governador Coutinho ou do vice-rei Afonso de Albuquerque.
Ambos eram homens ricos e em posições que podiam desafiar o poder da
Santa Casa. Podia acontecer as acusações contra eles serem falsas. Gonsção
lembrou-se de um caso em Lisboa; um homem fora preso como herege
durante dois anos até o seu acusador confessar ter prestado falso testemunho
- ficara ciumento, pois o prisioneiro cortejara uma mulher que o acusador
desejava. A Santa Casa é como uma espada bem feita; uma arma poderosa
empunhada tanto para o bem como para o mal.
Assustou-se com uma pancada na porta. Gonsção fechou o livro e
disse:
- Benedite. Entrai.
O Irmão Timóteo entrou, trazendo outro livro de capa de couro e no
cimo um tabuleiro de prata. Na travessa estava um jarro de água, um copo e
uma tigela de arroz com um molho picante de ragu, encimada por fatias de
peixe fumado.
- Uma imensidão de bênçãos te cubra, meu filho. Deve ter sido a
própria Nossa Senhora da Piedade que te mandou. Gonsção indicou que o
tabuleiro deveria ser posto no chão, pois não havia outro lugar onde o colocar.
O Irmão Timóteo pousou o tabuleiro e o livro com cuidado.
- Não, padre. Foi o Domine Pinto quem me mandou.
- Então certamente que foi inspirado pelos anjos. - O inquisidor
Pinto é dominicano, tal como eu. Talvez a lealdade para com um Irmão da
ordem possa vir a ser de maior força e valor do que a lealdade dentro da Santa
Casa.
- Sim, padre. - O rapaz ficou deferentemente em pé junto à porta.
Tinha cabelo preto cortado à tigela e olhos escuros, e a luz da vela dava à sua
pele castanha uma tonalidade acobreada.
Não há dúvida que ele tem algum sangue hindu, um mestiço, tal
como parecem ser a maior parte dos goeses. É uma pena, pois vai impedi-lo de
ter uma posição mais alta do que a de padre paroquial.
- Fica, Timóteo. Estou contente por finalmente termos a hipótese de
falar. - Gonsção deslizou do seu banco. – Podes estar à vontade para te
sentares neste banco por uns instantes. Eu já me sentei nele demasiado
tempo.
- Oh, não, padre! Vou sentar-me aqui. - Sem hesitação, o rapaz
sentou-se de pernas cruzadas no chão sujo.
- Como quiseres. - Gonsção deu a volta ao atril, achando que era
mais confortável estar de pé. - Há quanto tempo serves na Santa Casa?
O rapaz contou pelos dedos por momentos.
- Há quatro anos, padre.
- E há quanto tempo és avocato dos convidados da casa?
- Há um ano e um mês, padre.
- Mmmm. O que é que me podes dizer sobre esses convidados,
Timóteo?
O rapaz pestanejou.
- Não sei a que vos referis, padre.
- São gente educada e erudita? Ou pobres agricultores e gente do
comércio? Ou fidalgos ricos?
- Não tenho a certeza, padre. Presto pouca atenção a essas coisas.
Eles são todos pessoas tristes, assustadas, com as almas doridas. Todos a
precisarem da nossa orientação.
- Sim, calculo que na altura em que os vês, seja assim que todos
pareçam. São bem tratados?
- Aqueles que confessam e aceitam Deus são tratados com
amabilidades, padre. Mas...
- Mas?
Suavemente, o rapaz disse:
- Por vezes acho que os guardas são demasiado duros com eles.
- Bom, por vezes tem de se contratar homens duros para essa
tarefa. Os nossos convidados são como crianças perdidas, e as crianças
precisam de uma orientação firme e de disciplina para encontrarem o caminho
reto na vida, não é verdade?
Então a sua educação tem sido descuidada. É impressionante que
um instrumento tão afinado possa ter surgido de uma confraria de tão má
qualidade.
- E os inquisidores? Como é que eles tratam os convidados?
- Oh, os Domines são muito gentis, padre. Domine Sadrinho passa
muito tempo com os convidados, em especial com as mulheres. Quase todas
as senhoras que ele ministrou acabaram por confessar.
Gonsção sentia-se desconfortável com a volta que isto estava a
levar.
- Haveis já servido alguma das heresias nestorianas?
- Hummm... só duas, padre. São muito difíceis.
- Sim, é por isso que é preciso lidar com elas com severidade, meu
filho. Estão tão perto da verdade e, no entanto, tão erradas.
Timóteo acenou em confirmação e olhou para as suas mãos.
- Um não se arrependeu. Foi condenado à fogueira no auto-de-fé
seguinte.
Gonsção avançou e colocou a mão no ombro do rapaz.
- Não te culpes. Tenho a certeza que fizeste tudo o que podias.
- Rezo por ele todos os dias, padre.
- Isso é bom, meu filho. Trouxeram para aqui muitos nestorianos?
- Acho que não.
- Estou a ver. - E no entanto a destruição dessa heresia foi a razão
principal para a fundação desta Santa Casa. Parece que os inquisidores se
afastaram do seu objetivo. - Timóteo, não eras avocato quando o governador
Coutinho aqui estava, pois não?
O rapaz abanou a cabeça.
- Mas talvez tenhas ouvido alguma coisa sobre o assunto. Alguma
referência às acusações, ou à sua confissão?
- Não, padre. E se tivesse, dizem-nos para nunca repetir o que um
convidado confessou.
- Claro. Exceto em algumas circunstâncias. Deixa-me que te
explique. As forças que levaram Coutinho e Albuquerque ao pecado podem ser
ainda mais poderosas e traiçoeiras do que as da heresia nestoriana. Eram
homens de boa família cristã, percebes, a quem não faltava honra nem riqueza
material. No entanto, algo os levou a afastarem-se de Deus, a seguirem um
caminho que certamente sabiam ser perigoso para as suas vidas e almas. É
este o mistério para o qual fui enviado a resolver, Timóteo. Essa fonte do mal
poderá estar ainda ativa em Goa, e poderá espalhar a sua influência mais
longe se não a descobrirmos. Foi-me atribuído este dever pelo grande
inquisidor Albrecht, e, através dele, por Sua Santidade o Papa. Vês como isto é
importante, meu filho?
O rapaz acenou com a cabeça, de olhos muito abertos.
Suavemente, Gonsção prosseguiu:
- O miasma da corrupção pode ter infectado até a própria Santa
Casa.
- Não!
- Chiu, também me dói pensar nisso, e espero que se venha a
demonstrar não ser assim. Mas temos de ter muito cuidado, meu filho. Tenho
de te pedir que não discutas com ninguém estas coisas de que falamos.
Consegues fazer isto?
Após uma pausa, o rapaz fez que sim com a cabeça.
- Muito bem. Agora, preciso que me ajudes numa coisa na minha
tarefa. Preciso dos relatos dos julgamentos de Coutinho e Albuquerque. O
inquisidor Pinto poderá saber onde poderão ser encontrados. Pergunta-lhe
onde os outros não te possam ouvir, e se ele puder arranjá-los, traz-mos.
Fazes-me isto?
O rapaz engoliu com dificuldade:
- Sim, padre.
- Deus te abençoe. És um soldado do Senhor na batalha contra
Satanás. Agora vai, e vê se podes encontrar Domine Pinto.
Timóteo pôs-se de pé:
- Sim, padre. - Olhou para a porta, mas hesitou.
- Há mais alguma coisa, meu filho?
- Posso fazer uma pergunta, padre?
- Certamente.
- Perdoai-me, mas... Domine Sadrinho disse que lhe haveis dito
para me tirarem Os Lusíadas.
- Ah, sim, realmente recomendei-lhe isso. Ele disse-te porquê?
- Não, padre. Mas... ele disse umas coisas que eu não devo repetir.
Gonsção suspirou:
- Meu filho, tens de compreender que o livro de Camões faz
provavelmente parte do mesmo perigo de que estivemos a falar. Poderá ter
uma influência corruptora numa mente tão nova como a tua.
- Mas eu li esses versos toda a minha vida! - Os olhos de Timóteo
estavam tristes e com um toque de desafio.
- Então o mérito é teu, meu filho, por a tua fé permanecer forte e
pura. Mas estás a chegar a uma idade perigosa, quando o Diabo envia dúvidas
para perturbar a tua mente e tentações para atormentar a tua carne jovem.
- Mas o livro é só histórias!
- As histórias têm poder, Timóteo, quer para o bem quer para o mal.
Foi por isso que Nosso Senhor usou parábolas para ensinar a sua mensagem
aos seus discípulos. Mas tens de desconfiar de outras histórias para além das
que encontras no Livro Sagrado.
A boca do rapaz apertou-se e as suas mãos fecharam-se. Mas
finalmente olhou para os seus pés e sandálias e disse:
- Como quiserdes, padre. Gonsção sorriu:
- Terás o livro de volta um dia. Talvez signifique mais para ti nessa
altura. Disseram-me que é uma obra difícil, mesmo para aqueles que
estudaram os clássicos. Todas aquelas referências a lugares distantes,
divindades obscuras e criaturas.
- Mas eu conheço todas essas coisas, padre - disse Timóteo. - Li a
Ilíada e Virgílio e outros livros. Estavam todos na biblioteca do meu avô. E ele
contou-me muitas histórias que ele leu.
- Chiu, já chega. É claro que tens mais educação que muitos
rapazes ricos de Lisboa. Deus concedeu-te uma inteligência rápida, mas a tua
aprendizagem agora tem de ser de espécie diferente. Tens o dom de inspirar fé
nos outros, levando-os assim para Deus. Temos de cuidar para que as antigas
histórias pagãs não te distraiam de uma tarefa tão importante.
Timóteo suspirou.
- Sim, tendes razão, padre.
Gonsção deu-lhe pancadinhas no ombro.
- És esperto, meu filho. Até para mim tu és uma inspiração. Agora
vai. Temos muito que fazer, tu e eu.
Sem mais palavras, Timóteo fez uma vênia e saiu.
Gonsção pegou na tigela de arroz e sentou-se mais uma vez no
banco, sentindo-se vagamente sujo.
Capítulo VII
Ameeiro: Esta árvore tem folhas redondas e de matiz avermelhada.
Os Irlandeses utilizam-no para ler a sorte, e para saber a natureza da
doença de um homem, cortando um ramo de amieiro, a madeira irá
passar de branca a vermelha, como se a árvore fosse de sangue vivo.
Talvez seja por esta razão que o amieiro era considerado pelos antigos
como uma árvore de ressurreição.
Thomas estava agachado num cemitério, no meio da escuridão e
com o cheiro intenso a podre. Escavou a terra úmida à sua frente como um
cão rafeiro à procura do seu jantar queimado. À distância, atrás de si, ouviu
lamentos e gemidos suaves. Ainda andam à minha procura. E se calhar
encontram-me. Ele escavou à pressa, arrancando raízes enredadas e pedras
pontiagudas. Os seus dedos embateram numa coisa dura e ele limpou a terra
em volta. Da poeira surgiu uma coisa pálida e redonda - um crânio, ainda com
alguns fios de cabelo. O crânio fixou nele o seu olhar de órbitas vazias e abriu
os maxilares de marfim. Thomas gritou: ”Mãe!” e sentou-se, acordado, batendo
com a cabeça no catre por cima dele.
Sentou-se por momentos, com falta de ar e o coração a bater-lhe
com força no peito. Os pesadelos. Voltaram outra vez. Na escuridão dos
aposentos da tripulação, o sonho pairou nos seus pensamentos, não
abandonado pelo estado de vigília. Meu Deus, porque é que sou tão
atormentado? Esfregou os olhos e interrogou-se que horas seriam. Thomas
lembrava-se de ter deixado a companhia de Lockheart e de ter ido ver os seus
doentes, apesar de não haver muita coisa que pudesse fazer por eles.
Exausto, Thomas descansara num catre vazio. E adormecera. E
sonhara.
Os homens doentes, feridos e moribundos gemiam baixinho à sua
volta, alguns murmurando orações ou chamando pelos seres queridos.
Que direito tenho eu de estar com pena de mim, quando estes
infelizes vivem um pesadelo do qual não há despertar? Thomas pegou num
candeeiro que estava pendurado na cabeceira do catre e levantou-o para
verificar os homens.
Ali ao seu lado estava Stephen, o tanoeiro, cujas costelas tinham
sido esmagadas por uma bala de canhão. Thomas colocara-lhe em volta do
pescoço uma bola feita de galha de carvalho vazia cheia com galho esmagado e
rábano bastardo para manter a febre baixa, mas sem resultado. O homem
tremia num sonho perturbado.
Um braço magro surgiu da escuridão:
- Há mais remédio das dores, senhor? Pelo amor de Deus, peço-vos!
Era Howard, o cordoeiro, cujas pernas e peito tinham sido
queimados e esmagados pelo canhão que ele próprio disparara. Para ele,
Thomas experimentara a teoria do óleo das próprias armas defendida pelo
grande Paracelso; Thomas aplicara uma pasta de valeriana e malva ao canhão
em si, tratando o homem apenas com água limpa e ligaduras. Como resultado,
as feridas de Howard estavam a sarar toleravelmente bem, mas continuava a
sofrer de grandes dores.
- Daqui a pouco - era tudo o que Thomas conseguia dizer -, já vou
ter mais.
A seguir estava Corbin, cujos braços e pernas tinham sido partidos
por um mastro que caíra. Thomas pusera os ossos no lugar tão bem quanto
pôde, e deu ao homem um amuleto de terra sigilata feito de argila de Malta.
Thomas não invadiu a dignidade de Corbin reconhecendo os seus gemidos de
desespero.
No catre mais além jazia Pepper, o aprendiz de cozinheiro,
inanimado devido ao refluxo dos intestinos. As pequenas doses de mercúrio
misturado com pó de múmia pareciam não ter sido de grande ajuda e não
respondeu à voz de Thomas.
Apertou o ombro do rapaz e passou rapidamente. “Meu Deus,
nunca fui preparado para um serviço como este. Se os janotas que vinham à
nossa loja a queixar-se de dores de cabeça pudessem ver estes homens e
soubessem o que é o verdadeiro sofrimento”. Os carinhos que ele aprendera
para auxiliar senhoras cheias de afetação não tinham cabimento na câmara
infernal que tresandava a suor e a infecção podre. Então porque é que tenho
de ser eu a tratar deles se tenho tão pouco jeito para os ajudar?
Thomas continuou a ronda terrível, dando o pouco conforto que
podia, pensando nos medicamentos que poderia combinar das poucas
reservas que lhe restavam.
Finalmente, chegou ao pé de Nathan, o aprendiz de carpinteiro, cujo
catre ficava junto à escada. O rosto do rapaz revelava um sono tranqüilo.
Thomas sentou-se ao seu lado, congratulando-se por aqui pelo menos haver
um que não estava a sofrer. Mas quando observou, apercebeu-se de que o
rapaz estava na verdade muito quieto, mais do que é natural no sono. O medo
apoderou-se dele e colocou a mão no pescoço do rapaz. Não tinha pulso.
Thomas inclinou a cabeça, com um suspiro profundo. Porque logo
este, Senhor, que tinha tanta vida à sua frente? Thomas percebeu que tinha
de se apressar. Neste clima, os cadáveres não tratados rapidamente tornam-se
um perigo para os vivos. No entanto, devia ser dita uma oração. Passou-lhe
uma frase pelos pensamentos: Todo aquele que acreditar em mim terá vida
eterna.
Thomas colocou a lanterna nos degraus e tirou a caixa de madeira
do bolso. Abriu-a com cuidado e retirou a seda que embrulhava a garrafinha.
As suas mãos começaram a tremer quando levantou a garrafa opalescente que
cintilava à luz da lâmpada. Finamente esculpida na superfície do vidro,
invisível anteriormente, estava a imagem de uma ave, com as asas esticadas,
erguendo-se de um leito de chamas.
- Sangue de macaco, é isso que és? - murmurou Thomas, com o
coração a bater forte. - Oh precioso macaco, cuja baba vem com palavras de
vida para além da vida, tu dizes a tua mensagem claramente. - Lembrou-se do
aviso da Senhora Aditi, da forma como ela lhe pedira para devolver a garrafa a
Cartago. Será que o alquimista descobriu a pedra filosofal da lenda? O elixir
da vida?
Thomas olhou para o rosto jovem de Nathan. Que mal poderá fazer
a alguém já morto? Não ousando reconsiderar, desrolhou a garrafa.
- Nate, se esta substância for sagrada, que tu sejas abençoado por
ela. Se não, que o mal recaia sobre a minha alma, não sobre a tua. Que Deus
me ajude.
Segurou na garrafa sobre o rosto de Nathan e borrifou uma
pequena quantidade de pó entre os lábios ligeiramente afastados do rapaz.
Parou durante uns momentos, mas não viu qualquer alteração. Thomas
suspirou e pôs novamente a tampa na garrafa, e a garrafa de novo na caixa.
Pegou na mão fria de Nathan entre as suas e fechou os olhos. “Senhor, se for
essa a Tua vontade, dá-lhe de volta a vida. Se não, leva depressa a sua alma
para o Céu”.
A seguir sentiu um puxão no punho da camisa. Lentamente,
Thomas abriu os olhos. Nathan virara a cabeça e olhava para ele.
- Senhor Chinnery? Está a magoar a minha mão, senhor. Thomas
apercebeu-se da força com que apertara e largou.
- Nate... por favor, perdoa-me. Como estás?
- Cansado, senhor. Dormi de mais? Tive sonhos estranhos.
- Sonhos? - Os mortos sonham, então?
- Sim. Havia um belo edifício junto ao mar, tudo colunas brancas e
assim. E uma senhora bonita. E serpentes.
- Serpentes? - Meu Deus, o que é que eu fiz?
- Mas eu não tinha medo, senhor. Foi um sonho agradável.
- Ah, deixa-me ver a tua ferida, Nathan. - Thomas levantou a
ligadura improvisada que apertava as costelas de Nathan. Ainda se viam
cicatrizes vermelhas ao longo do peito e do abdômen, mas já não estavam
infectadas. Estavam secas e claramente a caminho de sarar.
- A infecção desapareceu! Diz as tuas orações, Nathan, pois Deus
concedeu-te a tua recuperação. Eu... eu tenho de ir falar com uma pessoa.
Thomas colocou a caixa na casaca e pôs-se de pé.
- Amanhã posso voltar lá para cima, senhor? Estou cansado desta
tarimba.
- Sim. Vamos ver. Amanhã. - Thomas pegou na lanterna e subiu as
escadas, sem fôlego devido ao terror e ao espanto.
Emergiu da escotilha e mergulhou numa noite mais escura que as
profundidades lá de baixo. Eram poucas as lanternas da amurada que tinham
sido acesas e as estrelas brilhavam intensamente por cima dos mastros
partidos. Não havia Lua.
Do outro lado da lagoa, os foliões na praia surgiam como silhuetas
contra as fogueiras, dançando e gesticulando que nem demônios cabriolando
no fogo do Inferno. À ré, um marinheiro solitário contemplava o mar, com a
ampulheta por virar, esquecida. À exceção dele, o Whelp parecia deserto.
Thomas virou-se e caminhou suavemente para o castelo de proa.
Aditi caminhava para trás e para a todo o comprimento dos seus
aposentos, incapaz de dormir. Os seus pensamentos debatiam-se como
nuvens de tormenta. Mais uma vez ouviu vozes à porta.
O homem rude e de barba escura entrou e curvou-se. Tinha o rosto
corado e a respiração rápida e breve.
- Despoina. Espero não ter perturbado o vosso descanso.
- Não. Onde é que está o vosso amigo de cabelo amarelo?
- Está ocupado noutros deveres. Perdoai-me, mas tenho de ir direto
ao assunto, e rapidamente. Surgiu uma hipótese que tem de ser aproveitada
ou esta noite ou nunca.
- Uma hipótese de quê? O vosso capitão não concorda com as
nossas ofertas de resgate?
- Concorda, mas receio ter de vos dizer que ele não pode cumprir os
seus acordos. Os nossos navios estão demasiado danificados para navegarem,
as reparações poderão levar meses.
Aditi engasgou-se a respirar.
- Então nessa altura o Santa Rosa poderá voltar e com ele mais
navios.
- Com efeito, e com tão poucos homens capazes, não estamos em
condições para outra batalha.
- Talvez os goeses não nos encontrem aqui.
- Não, Despoina. Já é demasiado tarde. Os comerciantes que nos
servem têm espiões goeses entre eles. A nossa localização, e a presença de
Cartago conosco, é já conhecida.
Aditi apertou a parte de cima dos seus braços, sentindo frio.
- O que ides fazer?
Ele delineou o seu plano. Os olhos de Aditi abriram-se.
- Faríeis isso por nós?
- Por mim - disse ele com um sorriso meio trocista.
- Contra os vossos...
- Ninguém sairá prejudicado, e uma vez partido o feiticeiro, eles
estarão em menor perigo. O capitão Wood deu-me autorização para vos levar
juntamente com Despos Cartago, de forma a, segundo ele acredita, poder
discutir posteriormente o resgate. Apressemo-nos, Despoina.
A hipótese de abandonar o compartimento pequeno e vazio era bem
recebida. O velho marinheiro magro que estivera a guardar a sua porta caiu
para trás quando entraram no corredor. Aditi podia sentir o olhar dele nas
suas costas. Ela ansiava deixar o confinamento deste navio, com os seus
homens perdidos e feridos. Ela estava muito consciente de como podiam ser
frágeis os limites da civilização. Um passo em falso, uma mudança de vento, e
ela podia ser devorada como uma pomba no meio de chacais.
Foi levada até uma sala muito parecida com aquela que deixara,
mas ainda mais pequena. Bernardo estava sentado a uma mesa, com as mãos
agrilhoadas. A exaustão afundara-se na nobreza do seu rosto. Cumprimentou-
a com um sorriso de lamento.
Aditi foi ter com ele e colocou-lhe a mão no ombro.
- Bernardo. Fizeram-te mal? - Ela falava em marata.
- Não. Mas não descansei e não tenho estômago para a comida
deles. É bom ver-te, meu falcão.
Aditi interiormente recuou perante esta amabilidade.
- Ele contou-te o seu plano?
- Contou.
Aditi franziu o sobrolho.
- Confias nele?
- Daquilo que vi quando me interrogaram na coberta, acredito que
estes navios não possam sair daqui muito em breve. Pelo menos isso é
verdade.
- Sabes qual o perigo de voltares para Goa. Cartago ergueu as mãos
até ao peito.
- Não sou louco, Aditi. Estou preparado.
Thomas ficou surpreendido por ver o senhor Thatch a guardar uma
porta diferente da anterior.
- Ah, senhor Chinnery. Estava a perguntar a mim mesmo quando
iria aparecer. O vosso amigo já está lá dentro e a conferência já começou.
Thomas pestanejou, confuso.
- Perdão? Queres dizer Lockheart? Eu pensava que ele tinha ido a
terra. E não estavas a guardar a senhora Aditi?
- É o que estou a fazer, senhor, e ela está lá dentro, com o feiticeiro.
Estão juntos para discutir planos de resgate. Não vos disseram?
Thomas abanou a cabeça.
- Não importa. Posso entrar.
- Com certeza, e se alguma coisa correr mal, não fiqueis perto de
mim.
- Não o farei. - Thomas escancarou a porta e entrou. Cartago e
Lockheart estavam sentados à mesa, e a senhora Aditi encontrava-se de pé a
um lado. Todos olharam para ele como crianças apanhadas num jogo proibido
qualquer. Quando Thomas encontrou o olhar de Aditi, sentiu que ela sabia ao
que ele vinha.
- Thomas? - disse Lockheart. - O que se passa? Eu pensava que
estavas a tomar conta do rebanho lá de baixo.
Thomas cerrou os punhos e sentiu a garganta seca.
- Uma ovelha perdida regressou fora de tempo. - Olhou para
Cartago, mas disse em grego: - Acho que fui enganado.
A senhora Aditi respondeu:
- Haveis usado o sangue.
- Parece que viste um fantasma, rapaz - exclamou Lockheart. -
Peço-te, senta-te e põe-te confortável.
- As vossas palavras são muito hábeis, senhor - retorquiu Thomas,
sentando-se. Para Cartago, Thomas disse em latim: - Preciso saber, Magister,
a fonte deste poder.
- Um momento - interrompeu Lockheart. - Nós chegamos a meio. O
que é que aconteceu para te pôr assim tão nervoso e pálido?
Em latim, de forma a que o feiticeiro pudesse compreender também,
Thomas explicou:
- Lembrai-vos de Nathan, o aprendiz de carpinteiro? Quando o
examinei numa das minhas últimas rondas, ele jazia quieto, sem qualquer
pulsação nas veias ou respiração da sua boca. Pus-lhe um bocadinho deste pó
entre os lábios. Dali a pouco tempo, o rapaz acordou, vivo e com a ferida a
sarar. Não se apercebeu que tinha estado sem vida.
Cartago deixou sair um longo suspiro. Lockheart deu ao feiticeiro
um olhar especulativo, depois sorriu tristemente para Thomas.
- Mas não há qualquer milagre nisto. Fui soldado, e vi muitos
cadáveres aparentes serem arrastados do campo, e reviverem a caminho da
vala comum. O rapaz não estava morto, Tom, só a dormir.
- Eu sei o que vi, senhor!
Cartago disse:
- Mais alguém testemunhou isto?
- Não, Magister. Estava escuro. Mais ninguém podia ver.
- Então temos apenas a tua palavra sobre esta ressurreição
espantosa - comentou Lockheart. - Descansaste o suficiente, Tom?
- Depois de nos termos separado, senhor, examinei os homens sob
a minha guarda, depois deitei-me para descansar. Dormi, mas acordei com
pesadelos.
- E tens a certeza que este acontecimento não fez parte do vosso
sonho?
- Eu sei a diferença, senhor!
Lockheart aproximou-se e bateu com a mão carnuda no ombro de
Thomas.
- Acho que tu próprio precisas de uma poção mais poderosa do que
o sangue em pó de macaco. Espera um pouco que já te trago um pouco do
ótimo Madeira dos nossos convidados. Tenta não os aborrecer muito com
perguntas fantasiosas, sim?
Com um piscar de olhos, Lockheart levantou-se e saiu do
compartimento. Thomas ouviu-o falar durante uns momentos com o senhor
Thatch antes de os seus passos se afastarem pelo corredor.
- Avisei-vos para não o usardes - disse a senhora Aditi num latim
desajeitado.
- Mas não me haveis dito porquê, Domina, e eu estava desesperado
à procura de um remédio. E este provou ser o mais poderoso dos remédios,
por isso preciso de conhecer a sua natureza.
Cartago olhou para a porta, de sobrolho carregado.
- Perdoai-nos, senhor Chinnery, por não termos sido totalmente
honestos convosco, mas fizemos um juramento de não revelar a fonte do pó. É
uma questão que só se põe para... iniciados.
- Iniciados? - Suspirando, Thomas enfiou os dedos no cabelo. -
Magister, sois cristão?
- Fui, outrora. A minha aprendizagem, porém, levou-me a ser
apóstata. Porque perguntais?
- Para saber se ireis entender o que vou perguntar a seguir.
Condenei a minha alma, ou a do rapaz ressuscitado, com o uso deste pó?
A senhora Aditi fez uma cara séria e estendeu as suas mãos esguias
e de dedos compridos.
- Tivestes sorte, Tamas, pois Mahadevi mostrou-vos a sua bênção.
Mas nem sempre é assim. E ficareis perturbado com aquilo que não
compreendeis. Se acarinhais a vossa fé, deveis devolver-nos o pó e esquecer o
que vistes.
Cartago ergueu a mão num gesto para ela, mas as grilhetas
interferiram. Falou suavemente com ela numa língua estranha a Thomas.
Depois, para Thomas, disse:
- Que tipo de alquimista sois vós?
- Não vos informaram corretamente, Magister, eu não sou
alquimista, mas sim aprendiz de boticário. Uso ervas, especiarias e todo o tipo
de coisas para curar enfermidades. Sei que partilhamos algum conhecimento,
embora aquilo que procuramos através desse conhecimento seja diferente.
Nunca antes usei uma substância de tanto poder.
Cartago ergueu as sobrancelhas.
- Então, a minha senhora não é a única em cuja palavra não se
pode confiar inteiramente.
- Não escolhi enganar-vos. Lockheart desejava que me julgásseis
um alquimista, talvez para ganhar a vossa confiança. Perdoai-me. Só que, por
favor... estou condenado?
- Não sei o que vos dizer. Na vossa terra, os que pertencem à minha
antiga igreja são chamados traidores devido à sua fé.
Thomas suspirou.
- É verdade que pedem aos meus conterrâneos papistas para
escolherem entre a sua fé e a rainha. É um estado de coisas muito triste.
Quereis então dizer que isto é o sangue de um santo? É uma relíquia papista?
O cavalheiro português olhou para ele durante bastante tempo e
Thomas sentiu como se estivesse a ser pesado numa balança delicada.
- Em que é que acreditais vindo de mim? Eu, que para vós sou
herege, apóstata, e investigador de conhecimentos proibidos? Podia contar-vos
histórias fantásticas de demônios que caminham na terra sob forma mortal;
chamas que aparecem na noite sem qualquer intervenção terrena; pedras que
caem como chuva dos céus. Que entenderíeis disso?
Thomas não sabia se rir ou gritar de frustração.
- Sois sem dúvida um mago habilidoso, Magister. Conseguis
transmutar toda a forma de um discurso. Mas não posso deixar passar isso.
Podeis não querer saber do estado da minha alma, ou da de qualquer outro
inglês. Mas eu gostaria de saber apenas isto.
Cartago e a senhora Aditi olharam um para o outro. Ela abanou a
cabeça com gravidade. Cartago virou-se novamente para Thomas e sorriu com
tristeza divertida:
- Meu jovem leão, há coisas que por vezes um homem sensato não
diz a outro. Há conhecimentos que não podem ser apreendidos pela mente não
preparada.
Como isto é parecido com o que o meu pai dizia, quando eu lhe
rogava que me contasse qual era o trabalho que o mantinha tão seqüestrado
da minha vista, pensou Thomas.
- Mesmo assim - prosseguiu Cartago, como se falasse com uma
criança. - Se a minha opinião significa algo para vós, acho que a vossa alma
não está mais condenada ao Inferno agora do que estava ontem. Mas,
também, se houvesse Inferno, eu estaria condenado há muito tempo. - Deu
um olhar de relance para a porta: - Depois desta noite, talvez já não importe o
que eu penso.
Os passos de botas aproximaram-se da porta e Lockheart entrou,
trazendo três canecas de cerveja.
- Bebidas à conta da casa! - declarou ele, quando as colocou na
mesa. - Os homens em terra não serão os únicos a poder festejar. Já temos
razões para celebrar.
Com uma vênia, pôs uma em frente de Cartago. O feiticeiro inclinou
a cabeça, mas não bebeu o vinho.
Lockheart empurrou outra na direção da senhora Aditi.
- Despoina?
Ela apenas relanceou rapidamente, depois afastou-a. Pôs a última
caneca em frente de Thomas.
- Se os outros não são sociáveis, pelo menos tu vais beber comigo,
não é, Tom? Ouviste alguma história mais colorida?
Thomas fechou os olhos e suspirou.
- Não me disseram nada de útil.
- Pois, o que eles têm é mesmo línguas de serpentes. Bom, bebe um
pouco deste vinho, porque eu tive um pensamento muito útil.
- Tivestes? - Thomas pegou na asa da sua caneca.
- Foi, sim - respondeu Lockheart, sentando-se. - Lembras-te de
Bandy Teci, do Benjamin, que sucumbiu ao escorbuto ainda nem há dois
dias?
- Sim. Foi queimado na praia nessa mesma noite.
- Isso mesmo. Pois esse é um excelente teste para o teu pó
milagroso. Tentemos trazê-lo de novo à vida.
Thomas imaginou o cadáver decomposto a erguer-se do seu túmulo
de areia.
- Estais louco, senhor? Isso seria abominável!
- Ah! Por causa dos teus melindres, irias privar um homem de uma
boa ressurreição, não era? Para poupar o teu estômago, irias condená-lo a
jazer debaixo de solo estrangeiro? Ou receias que nada se mova senão um
caranguejo de areia?
Cartago olhou para Thomas e pediu uma tradução.
- Magister, ele está a sugerir que utilizemos o pó num homem morto
há dois dias.
A senhora Aditi exclamou algo e cobriu a boca. O feiticeiro olhou
fixamente para Lockheart.
- Certamente que não tendes essa intenção.
- Achais que não teremos sucesso?
- Mais e menos do que o desejado. Mas de certeza que esta não é a
altura para uma experiência dessas.
- Há uma altura para as palavras, senhor Cartago - precisou
Lockheart -, e uma altura para as obras.
- É agora a altura? - disse Cartago com um olhar enviesado para o
escocês.
- Em breve - respondeu Lockheart, com solenidade por detrás dos
seus olhos joviais. Em inglês, para Thomas, acrescentou: - Não há mais nada
a aprender sentados a beber aqui. Vamos embora, rapaz.
Esta última frase teve um tom de comando que Thomas nunca
ouvira a Lockheart. Levantou-se da mesa. Com uma vênia a Cartago, disse:
- Uma boa noite para vós, Magister.
- E para vós, herbalista.
Thomas fez um aceno à senhora Aditi.
- Minha senhora.
Ela inclinou a cabeça, com um olhar azul intenso.
- Espero que sejais sensato, Tamas, ou trareis a destruição à vossa
volta.
As palavras dela inquietaram-no.
- É essa a minha intenção, senhora.
Capítulo VIII
PIÓNIA: Esta vinha é também conhecida como o nabo-do-diabo.
Tem um caule espinhoso e um rizoma carnudo. Dá flores amarelas e
bagas negras. Embora seja um purgante útil, a planta é, contudo,
muitas vezes maligna, mas algumas pessoas malévolas cortavam as
raízes e vendiam-nas como a mais poderosa mandrágora, enganando e
envenenando os compradores esperançosos. Quando tomado em
grandes quantidades o rizoma é venenoso e as bagas são, de fato, um
veneno bastante poderoso.
Enquanto Thomas estava ali parado, ponderando sobre os avisos da
senhora Aditi, Lockheart escancarou a porta e ele foi empurrado para fora,
esbarrando impetuosamente contra o mestre de armas. Mestre Thatch
começou atabalhoadamente a proferir injúrias e Lockheart gritou:
- Para dentro, bom Thatch! Afanai-vos! Os vossos prisioneiros estão
a tramar uma fuga! O feiticeiro quase nos enfeitiçou para que fôssemos
cúmplices deles. Entrai e observai-os com os vossos olhos de águia, para que
os feitiços e cantatas deles não lhes permitam escapar!
Thomas começou a protestar mas as mãos de Lockheart cobriram-
lhe a boca.
- O pobre Tom ainda está sob o efeito do feitiço. Tenho de o levar até
lá fora para que respire um pouco de ar fresco. Para dentro, homem, antes que
os vossos bruxos voem com o tempo!
Desconfiado, Thatch espreitou pela entrada. Lockheart deu-lhe um
pontapé para dentro do quarto e fechou a porta com uma chave de ferro.
Ignorando as batidas e os palavrões provenientes do outro lado da porta,
Lockheart pôs um braço à volta do desnorteado Thomas e guiou-o pelo
corredor abaixo.
- O que é que vos possuiu?
- O espírito de Apolo, rapaz, e de Pã também, acho eu. Não achas
divertido?
O homem estará bêbado? Mas não cheira a álcool!
- Não, e o capitão Wood também não vai achar isto nada divertido
quando souber. Ainda vai ter um ataque de apoplexia.
- Ah, isso seria uma visão impressionante, de fato. Lockheart subiu
a escada para o convés principal e Thomas seguiu-o.
- Não, se a tiverdes enquanto pendurado num mastro. Santo Deus,
como está escuro! Sabeis porque estarão as luzes apagadas?
- Está toda a gente na praia, rapaz. Quem necessita de ver? Thomas
apercebeu-se das formas de homens cobertos de turbantes, misturadas com
as sombras dos mastros e balaustradas.
- Os homens de Cartago ainda aqui estão.
- Hã? Ah, são maometanos. Não bebem. Um hábito triste. Vem, aqui
está a corda; o barco voga ali mesmo em baixo.
- Estais determinado a tentar esta experiência louca? Lockheart
agarrou-o pelo ombro.
- Só para te deixar descansado, rapaz. Uma vez que te seja provado
que o teu milagre é apenas um fantasma, não temerás mais pela tua alma,
mas juntar-te-ás às festas e acolherás com alegria outros espíritos que não
sejam os que já partiram deste mundo. Agora vais?
Parece que eu tenho de condescender com este estranho estado de
espírito dele.
- Muito bem. Pelo menos desta vez, senhor, eu rezo para que
tenhais razão.
- Somente desta vez? Rezo para que tenha quase sempre razão.
- Ficaríeis feliz se eu me juntasse aos festejos imediatamente e não
fizesse primeiro uma tentativa de trazer de volta uma alma perdida?
- O quê? E negar ao pobre Ted uma hipótese de festança?
- Eu acho que isso não lhe serviria de muito. Qualquer bebida
esgotaria uma criatura que é só ossos.
Lockheart riu-se.
- Muito bem, isso contentar-me-á. Mas no teu caso, eu nunca mais
daria ouvidos a nada sobre esse disparate de ressurreição, ha? Deixa essas
coisas para os profetas de outrora, e dedica-te aqueles feitos que são próprios
da juventude. Vamos, desce. Eu vou atrás de ti.
Thomas olhou para o lado. Lá muito em baixo, ouviu o bater da
água contra a madeira num ritmo imperfeito e viu um contorno tênue do
barco a remos a balançar ao lado do navio. Engolindo a sua inquietação,
Thomas passou as pernas sobre a balaustrada, agarrando uma corda
grosseira. Buscando com o pé, encontrou um degrau da escada de corda, e
então baixou-se até que todo o seu peso estava na escada.
- Mostra algum despacho, rapaz. Sê lesto.
- Um despacho lesto é o que eu temo - murmurou Thomas
enquanto procurava cada degrau numa descida lenta. A meio caminho olhou
para cima e viu o vulto negro de Lockheart definido contra o céu estrelado,
como se um demônio sombrio do Inferno tivesse usurpado a sua forma e agora
obrigasse Thomas a descer para a perdição.
Um forte estrondo, como um tiro de pistola, ou madeira a bater
contra madeira, suou na popa do navio. Thomas ouviu Lockheart a praguejar
mais acima.
- Parece que mestre Thatch forçou a fechadura - disse Thomas.
- Talvez. Eu vou ver, rapaz. Desce para o barco. Volto em seguida.
Thomas continuou a descida até que o seu pé encontrou a tábua do
assento do barco a remos. Escutou um som vindo de cima e olhou outra vez
nessa direção - algo lhe atingiu o rosto e ele caiu para dentro do barco. Uma
dor aguda correu-lhe pelos ombros e braços. Cambaleou, enrolado na corda,
desorientado. Parou e respirou por um momento, esperando que o balouçar
violento do barco se acalmasse.
Foi apenas a escada que caiu sobre mim. Deve ter-se
desenganchado da balaustrada. Agora Lockheart não vai poder juntar-se a
mim, nem eu vou poder subir para ajudá-lo.
Thomas desembaraçou os braços da escada e sentou-se, escutando.
Os gritos e cantares da tripulação na praia chegavam tenuemente através da
lagoa. O som do bater da água contra o barco e contra o navio parecia alto em
comparação. Mas, mesmo assim, Thomas tomou consciência de outros ruídos
pouco usuais. Passos suaves no convés acima, vozes cujo ritmo não era inglês.
Estarão os homens de Cartago a tentar apoderar-se do navio?
Thomas olhou para a praia e pensou se deveria dar um grito de alarme. Não,
eles não me iam ouvir. Mas o que é que eu posso fazer? O capitão estará entre
os farristas ou a bordo?
Vieram mais ruídos do castelo da popa e uma pancada na água do
outro lado do navio. Thomas pensou em como poderia voltar a bordo. Mas o
casco do Whelp avultava-se por cima dele, um rochedo negro impossível de
escalar. A balaustrada estava demasiado alta para atirar a escada de corda.
Ah. A corda da âncora do outro lado da proa. Talvez eu possa subir por ela.
Thomas empilhou a escada de corda na popa do barco a remos e
ajoelhou-se na tábua de madeira. Colocando as mãos contra a parte úmida do
Whelp, empurrou-se ao longo do casco, agradecendo a Deus por as águas
estarem calmas.
Quando deu a volta à proa, com o gurupés acima dele, uma simples
sereia à luz do dia, parecia agora ser uma criatura dos seus pesadelos,
faminta para arrebatá-lo. Por fim, a bombordo, examinou a escuridão para
encontrar a corda da âncora - mas o seu olhar foi atraído para uma outra
forma negra ao lado do Whelp a alguns metros de distância. Lanternas na
estranha embarcação mostravam que esta tinha uma vela latina do tipo que
Thomas tinha visto no golfo Arábico. De dentro dela, homens de turbantes
subiam cordas para o interior do Whelp.
Uma daura! Não são os homens de Cartago, mas sim piratas
muçulmanos! Thomas ficou gélido, o coração a bater-lhe fortemente.
Ao ver a corda da âncora, Thomas alcançou-a e achou que era
escorregadia ao toque. Impossível subir. E posso ser visto ao tentar fazê-lo.
Algo bateu contra o barco a remos, vultos escuros flutuando na
água. Thomas olhou mais de perto e viu que era um corpo.
Ao voltar-se a luz incidiu sobre ele - era o mestre Thatch. Enjoado,
Thomas ponderou se deveria puxar o homem para dentro do barco a remos,
talvez para tentar ressuscitá-lo. Quando o alcançou, tocando o corpo com a
ponta dos dedos, o ar saiu em bolhas por debaixo das roupas de Thatch e sem
a sua flutuabilidade, o corpo afundou-se para fora de alcance.
Ouviu vozes na daura e as luzes de lanternas revelaram um homem
de barba negra, gesticulando para os marinheiros de turbante. Por trás dele
havia um vislumbre de tecido escarlate com fios dourados.
Eles capturaram Lockheart! E a senhora Aditi!
A raiva divorciou, de algum modo, a sua mente e a razão. Thomas
libertou a corda da âncora. Baixou-se para se deitar de bruços no esquife, o
peito sobre a proa de modo a que os seus braços compridos alcançassem a
água. Silencioso como um tubarão, Thomas remou em direção à daura. Não
apareceu ninguém no convés que desse por ele.
Nos últimos metros Thomas deslizou, deixando as mãos e braços
absorverem o impacto, enquanto se aproximava do casco da daura.
Agarrando-se à madeira, esperou e escutou.
Não percebeu nada da conversa melodiosa, mas parecia que os
muçulmanos estavam reunidos no centro do navio, talvez para admirar os
prêmios que tinham conseguido. Quando Thomas deixou de ouvir vozes ou
sons de passos perto dele, atreveu-se a erguer a cabeça e os ombros para
espreitar pelo convés. O porão de uma parte baixa do navio, acima do convés,
obstruía-lhe a visão do resto do navio costeiro, mas não havia qualquer
homem à vista. Incutindo força nos braços já doridos, Thomas içou-se para
dentro do convés, dando um pontapé no barco a remos para longe. Depois,
rastejou em direção à parede da cabina da proa e aconchegou-se aí.
Risos e exclamações chegavam da segunda coberta, e então ouviu
passos suaves a aproximarem-se. Thomas esquadrinhou em volta, procurando
uma vela ou uma corda para se esconder; em vez disso, as suas mãos
encontraram a coberta de escotilha. Abriu-a e deslizou lá para dentro,
deixando a coberta fechar-se sobre si.
Caiu de uma altura de alguns pés e aterrou na escuridão, no que
pareciam ser aduchas de corda e montículos de redes de pesca. Os passos
acima da sua cabeça passavam lentos e regulares. Graças a Deus. Não fui
descoberto.
O porão cheirava a peixe e a corda úmida. Sentiu alfinetadas de dor
nos braços e na barriga - lascas de madeira usada da escotilha. Agora, meu
grande idiota brilhante - repreendeu-se a si próprio. - O que é que vais fazer?
Sentiu muitos passos a aproximarem-se, descendo as escadas
algures acima dele. A luz bruxuleava, delineando os contornos de uma porta a
menos de um metro do seu rosto. Havia vozes muçulmanas muito próximas,
rindo.
O navio costeiro tremeu e balançou para um lado. Thomas caiu
contra um montículo de redes. A água por detrás do tabique batia mais alto e
com um ritmo de ondulação de maré baixa. Maldição, eles zarparam! Agora
estou verdadeiramente encurralado.
Alguém remexeu no trinco da porta à sua frente. Tenho de me
esconder. Mas como, se eu não consigo ver nada à minha volta? Thomas
andou como um caranguejo para longe da porta, até ficar pressionado contra
o tabique.
A porta abriu-se para dentro e por sorte ficou atrás dela, escondido.
Uma luz de lâmpada entrou, revelando-lhe que estava num porão de
armazenamento, que ocupava a maior parte da proa.
Alguns homens encostaram-se à entrada da porta. Algo caiu ou foi
atirado para o porão com um sonoro estrondo e a porta foi fechada de novo.
Thomas suspirou de alívio na escuridão recuperada. Então veio um
gemido do centro do porão.
- Senhor? - murmurou Thomas. - Senhor Lockheart, sois vós?
Estais bem? - Esticou o braço e sentiu o veludo encharcado entre os seus
dedos.
- Então sois vós. O jovem cristão que teme pela sua alma disse uma
voz suave em latim. - Também já vos haveis tornado Judas?
- Senhor Cartago?
- Ou sois vós também uma vítima do jogo deles?
Thomas engoliu em seco.
- Não entendo, Mestre. Eu subi a bordo na esperança de salvar o
meu amigo e a senhora Aditi.
- Ah, sim? Então sois um tonto, embora um tonto piedoso. O vosso
amigo é um cretino, se bem que um cretino prático. No que diz respeito à
senhora... ela serve um poder de formas que eu desconheço.
- O que estais a dizer, Magister? Que Lockheart está aliado aos
piratas?
- Ele disse que nos ajudaria a escapar. Que os vossos navios não
poderiam navegar, nem os homens poderiam defender-nos. Disse que os
mercadores costeiros com os quais tinha estado a negociar, lhe ofereceram
passagem para Goa. Mas tinham de ser pagos, não? É sabido que eu tenho a
minha cabeça a prêmio. ”Fazei de conta que sois prisioneiro”, disse o vosso
amigo. ”Podeis escapar na hora certa.” Mas no entanto permitiu-lhes que me
batessem e me drogassem. E penso que isto não é um papel para eu
desempenhar. A minha cabeça será o preço da passagem.
- Porque é que a senhora vos decepcionaria tanto?
- Ela serve uma causa mais importante. Não posso culpá-la. Há
muito em jogo, se as pessoas erradas a capturarem.
Thomas escutou mais risadas lá fora; e reconheceu uma gargalhada
entusiástica. Um frio percorreu-lhe o corpo. Lockheart queria-me fora do navio
porque sabia que isto ia acontecer. Sem nenhum homem capaz a bordo, este
esquema seria simples. E eu condenei-me a mim próprio, ao entrar neste
ninho de vespas. Bem, mais cedo ou mais tarde eles irão descobrir-me. O
mínimo que eu posso fazer é surpreender Lockheart e deixá-lo saber que a sua
proeza desonesta não passou despercebida.
Thomas abriu a porta com um pontapé e tropeçou, pestanejando
numa cabina apinhada de homens de compleição escura. As costas largas de
Lockheart estavam à sua frente.
- Que haveis feito, homem? - gritou Thomas. Lockheart voltou-se e o
seu rosto ficou pálido.
- Thomas?
- Sim, e que nome tendes vós agora? Não será Judas?
Três dos piratas árabes agarraram-no, prendendo-lhe os braços
atrás das costas. Thomas lutou apenas por breves instantes, achando que não
era adversário para eles.
A senhora Aditi apareceu no fundo da cabina e aproximou-se dele
com preocupação nos olhos.
- Ignorastes as minhas palavras, Tamas - disse ela em grego. - Não
haveis sido sábio. - Afagou-lhe o gibão e então retirou-lhe a pequena caixa de
madeira com a garrafa preciosa.
- De qualquer modo a minha viagem chegou ao fim, Despoina.
- Não necessariamente - disse ela, passando a caixa a Lockheart. -
Mas a vossa viagem agora será mais comprida. E mais difícil.
Lockheart lançou-lhe um olhar penetrante, magoado.
- A sorte maldita não me libertará do destino que me foi designado,
parece-me - murmurou ele. - Eu esperava poupar-te, rapaz. Poupar-nos a
ambos.
- Então, matar-me-eis como haveis feito com o mestre Thatch?
Lockheart abanou a cabeça.
- Isso foi obra da senhora. A tua hora de morrer ainda não chegou.
O seu punho carnudo atingiu o rosto de Thomas e este sentiu o
golpe com força na têmpora. O quarto rodopiou enquanto ele caía contra os
homens que o seguravam. Explosões anormais de luz reluziam à sua frente,
depois tudo ficou numa escuridão absoluta.
Capítulo IX
MAÇÃ: Diz-se que esta fruta tão apreciada é proveniente do Oriente.
Pensa-se ser a cura para muitos males. Nas histórias antigas,
procurava-se maçãs divinas como um meio para obter a imortalidade.
Eram usadas como sortilégios mágicos, ou testes de fidelidade. Também
se diz que as maçãs fazem as pessoas desejar coisas proibidas. A maçã
pode ter sido o Fruto do Conhecimento no Éden e devido ao pecado
original de Eva, pensa-se que a maçã seja a fruta da tentação, da
desobediência e da perda da inocência...
Irmão Timóteo caminhou apressadamente pelo corredor, apertando
o livro de registros contra o peito. O bater do seu coração soava-lhe mais alto
nos ouvidos do que o bater dos próprios pés. Eu pequei. Eu pequei perante o
padre, o arcebispo e o Papa. Está errado, errado, perdoa-me, Senhor Todo-
Poderoso, corrigi isto, mas eu pequei e isso está errado e eu irei certamente
morrer queimado no Inferno para sempre.
Nessa manhã nas matinas, Domine Pinto tinha sussurrado ao
ouvido de Timóteo que os registros do julgamento do governador Coutinho
podiam ser encontrados debaixo de uma pilha de papéis, numa despensa
perto das cozinhas. Timóteo não teve de procurar muito para encontrar o
volume encadernado a couro entre os papéis de rascunho, trapos, e madeira
preparada para servir de lenha, como se algum poder superior ou inferior
tivesse a intenção de que Timóteo o levasse. Mas ele tivera de dizer uma
mentira ao cozinheiro, afirmando que Domine Sadrinho o tinha enviado. O
cozinheiro, é claro, acreditou nele visto que todos na Santa Casa sabiam que
Irmão Timóteo era uma boa pessoa, temente a Deus e que nunca, nunca
mentia.
O corredor de mosaicos que conduzia aos dormitórios estendia-se à
sua frente, impossivelmente longo. O livro, volumoso e pesado, dificultava a
sua corrida. Timóteo não reparou na mesa lateral cuja perna sólida se
projetou no seu caminho. O pé ficou-lhe preso na perna da mesa e ele caiu
para a frente. Os braços abriram-se, deixando o livro de registros voar como
um pássaro enjaulado, quando é posto em liberdade, com a encadernação a
abrir-se como asas.
Com um grande estrondo e ruído, Timóteo caiu no chão de joelhos e
cotovelos. O livro aterrou pouco depois, deslizando à frente dele pelo corredor,
as páginas soltas espalhando-se como um leque de senhora.
- Não, Senhor, por favor. Por favor, não. Não permitais que alguém
tenha ouvido - murmurou Timóteo. E gatinhou apressadamente para apanhar
os papéis que tinham caído. As mãos tremiam-lhe tanto que cada página que
ele apanhava chocalhava como uma folha de palmeira ao vento.
As páginas estavam fora de ordem, quando as juntou, e Timóteo
tentou disciplinar a mente o suficiente para as pôr de volta na sua seqüência
correta. Não estavam numeradas e cada página estava completamente escrita
de cima a baixo, frente e verso. Timóteo teve de fazer um exame atento do
princípio e do fim de cada uma para saber qual era a que se seguia.
A princípio, tudo o que leu eram simples relatos de perguntas
monótonas referentes a parentes, freqüência à igreja, e às tarefas diárias de
governar. Então, subitamente, encontrou o registro da confissão de
Coutinho... e parou. Aqui estavam escritos nomes que Timóteo tinha visto nos
livros do seu avô e nos Lusíadas, pessoas e criaturas do passado dourado,
ocultas detrás das neblinas do monte Olimpo. O governador tinha visto
provas, tinha confessado que as histórias pagãs dos tempos antigos eram
verdadeiras. Uma história em particular.
Fascinado, Timóteo procurou pela página seguinte... e viu-a debaixo
de uma bota de couro suave e da bainha de uma batina negra. Lentamente
olhou para cima, para o rosto do inquisidor Sadrinho. Ai, eu não direi mais
mentiras, Senhor. Castigai-me agora.
Com uma expressão impassível no rosto, Sadrinho disse:
- Esta luz não é suficiente para ler, meu filho. É um mau sítio. -
Então ajoelhou-se e com gentileza retirou as páginas das mãos de Timóteo.
Olhou momentaneamente para o papel, depois juntou os outros no chão,
colocando-os de volta dentro da encadernação de couro. Sem dizer outra
palavra, Sadrinho pôs-se de pé, enfiou o livro debaixo do braço, deu meia volta
e foi-se embora.
- Perdoai-me, Domine - disse Timóteo, ainda ajoelhado no chão.
- Não se fala mais nisso - disse o inquisidor brandamente. - Dizei,
por favor, ao Irmão Pedro nas cozinhas, que quero arroz de açafrão para o
pequeno-almoço.
Timóteo viu-o partir, esperando por uma explosão de temperamento
que deveria certamente estar para chegar. Mas não se deu. Para ele, esta
calma era mais aterrorizante do que qualquer chicotada de cana de bambu.
Timóteo olhou para os arabescos nos azulejos, não se atrevendo a levantar,
demasiado abatido para chorar.
O padre Gonsção saiu da Catedral de Santa Catarina de ânimo leve,
após o serviço religioso matinal. A luz do Sol estava brilhante, o ar fresco e
frágil como vidro. O dia ia estar quente outra vez, e a noite também. A praça já
estava cheia de homens ricamente vestidos, resguardados por guarda-sóis
carregados por escravos, como se um jardim de cogumelos ambulantes,
alegremente colorido, tivesse brotado na umidade da noite.
À distância, trombetas e charamelas anunciavam impetuosamente
um casamento ou um batizado, ou outro acontecimento familiar. As brisas
traziam odores a pimenta, canela, peixe e carne rançosa.
O arcebispo Meneses apareceu por trás de Gonsção. O padre
reparou que o arcebispo vestia apenas uma simples batina beneditina, e tinha
só um criado, que se mantinha silenciosamente de pé ao seu lado.
- Uma manhã agradável, não é verdade? - disse Meneses.
- Agradável, Excelência? - disse Gonsção, agitando a túnica de lã
branca. - Vamos ficar outra vez assados como porcos, hoje.
O arcebispo abanou um dedo avuncular.
- Ainda não haveis visto Goa no auge das monções, meu filho. As
tempestades sopram em grandes ondas vindas do mar. Os vendavais
arrancam as copas das palmeiras e as telhas dos telhados. A chuva cai com
força, como uma ducha de pregos. Aqui em Goa, Deus está no seu estado
mais dramático.
Um palanquim de seda, carregado por oito escravos parou ao lado
dos degraus da catedral. A cortina de tecido foi puxada para o lado e uma
mestiça encantadora, mastigando um bolo de betei, olhou sugestivamente
para Gonsção. Este lançou-lhe um olhar carrancudo e voltou-lhe as costas. A
mulher riu-se e ordenou aos seus carregadores para prosseguirem caminho.
- Talvez em Goa - murmurou Gonsção -, Deus tenha mais
necessidade de dramatismo.
- Talvez tenhais razão - disse o arcebispo. - Isto não é nenhum
refúgio de santos. É por isso que freqüentemente me visto como estou vestido,
com um hábito simples, de modo a não atrair atenção indevida. E não
aconselho ninguém a caminhar sozinho após o anoitecer. De qualquer modo,
Goa tem a sua beleza e as suas maravilhas. Gostaríeis que vos mostrasse algo
da cidade? Como já deveis ter ouvido dizer, o corpo de Francisco Xavier
miraculosamente preservado, pode ser visto na Igreja de São Paulo. Peregrinos
de toda a Ásia, da China e até mesmo das ilhas Nipônicas vêm prestar-lhe
homenagem aqui.
- Vós honrais-me, Excelência - disse Gonsção, caminhando em
direção à praça. - Mas estou certo de que tendes coisas mais importantes que
fazer. Tal como eu.
- Como quiserdes. - A seguir, em voz baixa, Meneses disse:
- No que concerne ao vosso pedido de auxílio, meu filho, acho que
não vos poderei ajudar muito. Falei com o governador Gama mas ele e os seus
ministros não querem entrar em disputa com a Santa Casa e não falarão
contra ela. Tendes de entender, Sadrinho tem familiares em todos os sítios.
- Eu entendo, Excelência.
- Entretanto, ouvi dizer que as embarcações inglesas que tanto
atormentaram o capitão Ortiz foram vistas. Estão a ancorar a sul, para
reparar danos tal como calculastes.
- Então poderemos ter outra peça do puzzle afinal. Eu estou à
espera de ver os registros da confissão de Coutinho dentro em breve.
O arcebispo arqueou as sobrancelhas.
- Debaixo do nariz de Sadrinho? O grande inquisidor escolheu bem,
de fato. Vós sois deveras um homem cheio de recursos, padre.
- Não sou merecedor de tal lisonja, Excelência. Os meus métodos
não foram os mais nobres. - Gonsção reparou num grupo de soldados que
riam, reunidos ao redor da fonte no centro da praça. Passavam para trás e
para diante um pequeno recipiente de cerâmica que tinha muitas goteiras,
tentando beber dele.
- O que fazem aqueles homens?
- Hã? Ah, é um jogo, um tipo de iniciação entre os soldados. O
recipiente chama-se gorgoleta e a finalidade é beber vinho dele sem derramar
uma gota. Uma tarefa difícil, como podeis observar.
- Que estranho. Nunca vi tal coisa em Lisboa. O arcebispo encolheu
os ombros.
- Quem pode dizer de onde vêm estes novos hábitos? Tendes a
certeza de que não ireis ver nada mais da nossa bela colônia? Poderíamos
visitar o velho castelo em Bardes, ou passear pelo campo. Têm-me dito que as
colinas de Goa são tão ricas em minérios que têm atraído alquimistas de todo
o mundo, determinados a arrancar delas ouro e cobre.
- Hoje não, Excelência. Mas agradeço-vos. - Esta mistura de raças,
nacionalidades, línguas, hábitos, pensou Gonsção, é uma cacofonia para o
espírito. Goa está para a civilização, assim como os guinchos e murmúrios de
crianças estão para a música.
- Caso reconsidereis, senti-vos à vontade para me procurar. É
sempre um prazer falar com alguém, que chegou tão recentemente do nosso
país. Que Deus vos guie no vosso caminho, meu filho.
- Que Deus vos proporcione um bom dia, Excelência.
O arcebispo e o criado afastaram-se, em breve desaparecendo por
entre os trajes de cores vivas, pára-sóis e palanquins, que enchiam a Praça da
Catedral.
Gonsção suspirou e voltou em direção à Santa Casa, esperando que
o Irmão Timóteo lhe trouxesse algo menos tentador para os olhos e menos
inquietante para o espírito.
Capítulo X
DATUDA: Esta planta cresce no Oriente e também é conhecida
como a maçã-de-espinhos ou a maçã-do-diabo. As suas folhas, com um
cheiro repugnante, têm a forma de um ovo e, no Verão, as suas flores
são azul-claras. O sumo desta planta causará letargia e visões. Deve ser
usada com grande cuidado, porque, quando utilizada em excesso, é
venenosa. Na índia, é usada por ladrões nas suas vítimas, por mulheres
nos maridos que pretendem enganar, e por príncipes uns nos outros,
porque faz as pessoas agirem como loucas...
Thomas foi embalado como se estivesse num berço, um berço que
cheirava a peixe, a madeira velha e a mar. Um anjo no fundo da sua mente,
disse-lhe que estava ferido e tinha sido drogado e que deveria estar com medo.
Mas os pensamentos dele não eram suficientemente coerentes para querer
saber onde é que estava, nem que droga poderia ser.
Ele já assim estivera antes. Há muito tempo, na sua infância,
Thomas lembrou-se como que em sonhos de uma mesa coberta com uma
toalha branca. Num estado entorpecido e apático semelhante a este tinha sido
carregado nos braços do seu pai e colocado sobre a mesa. Havia um gosto a
vinho doce e o cheiro a grãos de cevada queimados. Havia uma mulher bonita
em pé, perto dele, vestida apenas com uma túnica drapejada. Atrás dela
estavam dois cães de caça altos e elegantes.
O anjo na mente de Thomas estava transtornado.
- Isto não foi justo - disse ele. - Não te deviam ter feito isto.
Thomas virou a cabeça para o outro lado e fechou os olhos. Escutou
um estrondo à distância, como se fosse um trovão. Passados alguns instantes,
o estrondo transformou-se em batidas de cascos de cavalos. Três, ele sabia.
Eram sempre três.
De repente, ele estava a correr pela floresta, a luz do Sol penetrando
pelas árvores, apunhalando-lhe os olhos. Os seus cascos, pequenos e
fendidos, mal tocavam a terra entre cada salto. Atreveu-se a olhar para trás
para os seus atormentadores que o perseguiam; três mulheres a cavalo; as
capas moviam-se por detrás delas como asas. Não conseguia ver-lhes os
rostos. Elas gritavam-lhe com guinchos estridentes de falcões:
- Assassino! Assassino!
Olhou outra vez para a frente e correu em direção aos ramos baixos
de um freixo. Os chifres ficaram-lhe presos nos ramos e ele não conseguia
libertar-se. As caçadoras que gritavam atrás dele aproximavam-se cada vez
mais. Escutou um assobio e algo o atingiu nas omoplatas.
Respirou ofegante e abriu os olhos. Outro pesadelo! Desorientado,
Thomas voltou a cabeça. As paredes de paliçadas de bambu, que tremiam à
sua volta, não estavam onde ele esperava vê-las. Onde quer que estivesse, não
era o navio costeiro muçulmano.
As canas de bambu entrelaçavam-se com frondes de palmeiras,
formando um telhado não muito acima da sua cabeça. Ele estava deitado em
tábuas de madeira clara. O chão rangia, movia-se aos solavancos e oscilava,
arrojando-o contra a madeira. Eu estou num tipo qualquer de carro em
movimento.
Cuidadosamente ergueu a cabeça e os ombros e tentou mudar para
uma posição sentada. Por alguns instantes não conseguiu sentir os braços e
as mãos, depois susteve a respiração. Um formigueiro intenso disse-lhe que as
suas mãos tinham sido amarradas atrás das costas e somente agora a
circulação voltava a reconquistar o território que o seu peso lhe negara.
- Então, jovem leão, estais acordado. - O feiticeiro Cartago estava
deitado ao seu lado, com os braços também amarrados. O seu rosto pálido
tinha várias nódoas negras e grandes.
Santo Deus. Será que eu também estou assim tão mal? O que é que
eles nos fizeram?
- Pelos sons que fazíeis - continuou Cartago -, eu apostaria que
estáveis a ter sonhos desagradáveis.
- Eu sou freqüentemente assediado por pesadelos - disse Thomas,
surpreendido com a irritação da sua garganta, como se ela não tivesse sido
usada durante muito tempo. - Desde a infância que assim é.
- Tenho a certeza de que a datura também não ajudou muito.
- Datura? - Thomas sentiu uma comichão crescente nas nádegas e
coxas. Para sua vergonha apercebeu-se de que se tinha sujado, mas não
recentemente. Não se lembrava de nada, após ter sido golpeado por Lockheart.
- Durante quanto tempo estivemos a dormir?
- Eu não tenho estado mais consciente da passagem do tempo do
que vós. Dias, penso.
- Dias! Temos sorte de ter sobrevivido.
- Talvez. Acho que eles nos deram de comer de vez em quando,
embora não me lembre de nada.
- Nem eu. O que é datura?
- Sempre ávido por conhecimento, não é, apothekos3? É uma droga
comum em Goa, utilizada para dores mortais ou para fazer uma pessoa
3 apothekos - Farmacêutico, boticário. Em grego no original. [N. dos
T.]
esquecida para o mundo à sua volta. Talvez devêsseis procurá-la e adicioná-la
às vossas provisões.
Thomas voltou a cabeça e espreitou através da parede de bambu à
sua volta. Não conseguiu ver nada mais do que luz brilhante e sombra
esmeralda.
- Gostava de saber onde estou.
- O plano deles era trazer-nos para Goa, boticário. Devemos estar
perto, pelo mau cheiro. Perto de Goa, o rio Mandovi é muito amplo e tem um
cheiro particular.
Thomas respirou fundo. Era difícil distinguir os odores para além do
seu próprio suor e fezes, mas discerniu o cheiro a pó, a estrume de animais, a
fruta a apodrecer e a mar. Os homens que caminhavam à frente e atrás do
carro falavam num idioma que ele não conseguia identificar, apesar de uma
parte poder ser árabe.
- Quem são estes homens que nos têm cativos?
- Piratas e ladrões de Omã. Nós não vamos ficar sob os gentis
cuidados deles por muito mais tempo. Apenas até que paguem o nosso
resgate.
- Lockheart ainda estará entre eles? Será realmente tão baixo, a
ponto de me vender aos portugueses?
- Quem pode julgar o coração de um homem? Tenho a certeza de
que o meu era o único resgate que ele e Aditi queriam. Vós fostes uma adição
inesperada.
- Mas porque é que - Thomas calou-se de repente, temendo que o
que estava a ponto de dizer fosse descortês, como se Cartago merecesse ser
prisioneiro e ele não.
- Porque é que ele não vos libertou? Eu não tenho resposta.
- Sabeis quem é que nos vai resgatar?
- Vós provavelmente interessais apenas ao governador, o mais certo
será ele enviar-vos para trabalhar numa das galeras do rei Filipe. Talvez na
mesma sobre a qual disparastes para me salvar. Isso seria justiça, não? No
que me diz respeito, eu serei enviado para um sítio vigiado por demônios
disfarçados de santos.
- A senhora Aditi não irá ajudar-vos? Cartago tossiu.
- Ela deu-me um meio para escapar. Boticário Chinnery, eu não
tenho qualquer direito de vos pedir um favor, mas no entanto há algo que
gostaria de vos pedir.
- A minha ajuda é fraca, Magister.
- Talvez seja maior do que pensais. As minhas mãos estão atadas e
inúteis e eu gostaria de vos pedir as vossas emprestadas.
- As minhas também estão atadas, Magister.
- Mas elas podem chegar onde as minhas não podem. Tenho um
saquinho do amuleto ao pescoço cheio com o mesmo pó que utilizastes para
reavivar o vosso colega do navio.
Thomas sentiu-se gelar.
- A sério?
- Fui ferido e isso aliviar-me-ia as dores. Em Goa, os ferimentos que
me esperam serão muito piores. Por favor, administre-me o pó, e eu poderei
descansar.
- Magister, eu preferia não voltar a utilizar essa substância.
- Qualquer que seja o dano que imagineis que isso vos fará à alma,
já vos fez. E usaste-lo numa pessoa que já estava morta, enquanto eu ainda
estou vivo.
Uma grande parte da minha vida tem sido devotada ao alívio do
sofrimento. Que direito tenho eu de recusar ajuda a este homem? Que seja
Deus a julgar.
- Muito bem, Magister. Com uma condição... que me digais a fonte
deste pó.
O feiticeiro arqueou as sobrancelhas.
- Ah, vós sois persistente, jovem leão. Lembrai-vos, eu fiz um
juramento de que não diria o nome da fonte e nenhuma ameaça que me
possais fazer me fará quebrar esse juramento. Contudo, dar-vos-ei pistas para
a encontrardes, se isso vos contentar. Se tiverdes coragem e a sorte estiver do
vosso lado, podereis procurar vós mesmo a verdade.
- Muito bem. Isso é aceitável. - E se a fonte não for perigosa para a
alma, afinal talvez se possa obter algum lucro nesta viagem desastrosa.
Assumindo que eu sobreviva.
- Procurai o debrum do meu gibão, ali no fundo da bainha da
esquerda. Haveis de encontrar um sítio mais sólido do que o resto. Há um
pedaço de papel enrolado lá dentro. Despachai-vos, enquanto ainda temos
tempo.
Thomas virou-se e olhando por cima do ombro, correu com as mãos
atadas a borda do gibão de veludo negro do feiticeiro. Encontrou o sítio
descrito e retirou através de um corte no debrum, um pequeno rolo de papel
de pergaminho.
- É um mapa - disse Cartago. - Não olheis para ele agora. O ponto
na margem superior mais à esquerda é Goa. O ponto à direita e acima é
Bijapur. O ponto mais à direita e mais abaixo é a cidade escondida onde está a
fonte. Os hindus chamam ao pó Rasa Mahadevi. Isto é tudo o que vos posso
dizer.
- Goa. Bijapur. Rasa Mahadevi. Obrigado, Magister - disse Thomas.
Inclinando-se para a frente, enfiou o rolo na parte de cima da bota. Então
caminhou para trás de joelhos até as suas mãos estarem perto do pescoço do
feiticeiro. Desajeitadamente apalpou à volta do colarinho, feliz por Cartago não
estar a usar um tufo. Finalmente encontrou a tira de couro do saquinho do
amuleto e puxou-o com força para fora. Com cuidado, desatou os cordões.
Thomas parou para descansar as mãos doridas e olhou por cima do
ombro de Cartago.
- Estais pronto?
- Que Deus vos abençoe e guarde, meu amigo - disse o feiticeiro. -
Estou pronto. - Inclinou a cabeça para a frente e abriu a boca, como um
devoto esperando receber a Eucaristia.
Thomas arrastou-se um pouco mais para trás, até que a sua mão
pôde tocar no rosto com barba de Cartago. Os seus dedos encontraram a boca
aberta do feiticeiro e Thomas inclinou o saquinho do amuleto para dentro
dela, sentindo o pó escorregar pelos seus dedos. Eu sou a Ressurreição e a
Vida...
A boca de Cartago fechou-se e Thomas largou o saquinho. Depois
moveu-se de modo a estar de frente para o feiticeiro e observar o efeito que o
pó ia ter.
Cartago tinha fechado os olhos e deixado a cabeça cair para trás.
Num instante, o seu rosto relaxou-se e um ligeiro sorriso nasceu-lhe nos
lábios. A respiração abrandou e tornou-se uniforme. Toda a tensão pareceu
esvair-se dos membros do corpo do homem.
Um medicamento potente, de fato. Tenho de lembrar-me da
quantidade que o saco continha, de modo a poder vir a obter o mesmo efeito
com uma dose semelhante. Se o seu uso não for pecado, que riqueza este pó
poderá trazer à loja do mestre Coulter! Talvez mais do que poderíamos ter
ganho na China.
De repente, o carro parou bruscamente e alguns homens
caminharam até ele, gritando uns para os outros. A parte de trás escancarou-
se e a luz do Sol entrou. Dois homens de pele mestiça deitaram as mãos a
Thomas, agarrando-o pelos braços. E ele permitiu-lhes que o retirassem do
carro sem resistência. Tentou pôr-se de pé, mas quando os seus pés tocaram a
estrada, as pernas não o sustentaram.
Os seus captores ergueram-no e deixaram-no encostar-se contra o
carro. Quando estes enfiaram de novo os braços dentro do carro para
retirarem Cartago, ouviram-se gritos e mais gritos de uma mulher,
provenientes dos carros que estavam mais acima, na rua. Alguns homens
saltaram detrás dos bois e correram com espadas e navalhas em punho.
Outros, montados em mulas galopavam, levantando nuvens de poeira. Os
captores de Thomas também sacaram as armas e gritando um aviso
incompreensível para Thomas, deixaram-no para se juntarem aos seus
companheiros no cimo da rua.
Não havia ninguém a vigiar no carro atrás do deles. Thomas
demorou apenas um instante para compreender a sua sorte.
- Magister, temos uma possibilidade de escapar! - murmurou ele
alto para dentro do carro. - Senhor! - Mas o feiticeiro mantinha-se imóvel.
Thomas deu um encontrão no carro com a anca mas Cartago não despertou.
Sabendo que tinha apenas alguns momentos, Thomas deixou com
pesar Cartago entregue ao seu destino e cambaleou pela rua em direção à
macega da floresta de palmeiras. Caiu embatendo contra troncos de árvores e
tropeçou em raízes com o equilíbrio perturbado pelas mãos atadas. Aqui e ali,
o chão era lamacento e pantanoso e sugava-lhe as botas. Frondes de palmito
golpeavam-lhe as roupas e a pele. No entanto, ergueu-se uma vez e outra e
prosseguiu vigorosamente.
Por fim, tropeçou e achou-se sem o fôlego necessário para se erguer.
Deitou-se numa ravina lamacenta, coberta por plantas de folhas largas de um
verde-escuro. Deitou-se de costas e respirou ofegantemente o ar pesado e
úmido. Ouviu gritos de pássaros desconhecidos, mas não ouviu gritos de
homens. Parece que consegui escapar-me. Mas o que é que eu devo fazer
agora?
Thomas sentou-se e gemeu, todo o corpo lhe doía. Puxou as cordas
e as mãos quase lhe escorregaram delas. A lama! Thomas deitou-se e esfregou
os punhos um pouco mais na lama e sentou-se novamente. Desta vez, com
esforço e um pouco de dor, conseguiu libertar as mãos. Com um grande
suspiro de alívio, balançou os braços para trás e para a frente. Estavam leves
com a liberdade.
Olhou para as mãos manchadas de terra. Thomas pensou por um
momento, depois retirou o gibão e a camisa. Cobriu-se de lama em todas as
partes que pôde alcançar e rolou pela ravina para cobrir o resto. Fez também
correr lama pelo seu cabelo louro. E finalmente, enrolou a camisa e amarrou-a
numa espécie de turbante para a cabeça.
Não havia nada que pudesse fazer quanto aos seus olhos azuis, mas
se a senhora Aditi pudesse ser tomada como exemplo, pensou que poderia não
ser tão fora de comum. As suas roupas não eram diferentes das usadas pelos
marinheiros muçulmanos. Mas as botas... ah, as botas.
Eram de couro castanho-avermelhado, um presente do mestre
Coulter. Não tão altas como as mais em moda em Londres, mas ainda assim
as melhores que Thomas alguma vez calçou. Porém, distinguiam-no como
europeu. Com um suspiro pesado, Thomas descalçou-as, notando o papel de
pergaminho enrolado que caiu.
O mapa de Cartago. Mais vale guardá-lo. Se Deus quiser, ele poderá
vir a ter serventia. Thomas enfiou-o na bainha do cordão das calças.
Um tilintar leve e metálico chegou-lhe aos ouvidos e ele ficou
gelado. Estão à minha procura? Mas o barulho não era de homens à caça dele
pela selva. Tinha um som efeminado. Thomas espreitou por entre as folhas na
orla da ravina, e vislumbrou algo escarlate e dourado a caminhar
energicamente a alguns metros de distância do sítio onde ele estava.
A senhora Aditi? Teria ela abandonado a caravana? Não parece
estar à procura de alguma coisa, mas sim a dirigir-se para um destino
conhecido.
Outra vez consciente de uma oportunidade momentânea a ser
aproveitada, Thomas largou as botas e seguiu-a.
Capítulo XI
AMENDOEIRA: Esta pequena árvore produz nozes comestíveis e
floresce cedo todos os anos. Ao longo dos tempos tem sido uma árvore
de esperança, porque lembra as pessoas da chegada da Primavera. Para
os Gregos, era um emblema de lealdade e consistência. É portanto
consagrada à Virgem e na Bíblia aparece como um sinal da aprovação e
perdão de Deus. Na Toscana, os ramos de amendoeira são usados nas
artes divinatórias. A pasta feita com o fruto desta árvore pode manter
uma pessoa viva onde não se puder encontrar comida ou água...
O padre Gonsção caminhava pelos jardins interiores da ala
residencial. Isto fazia-o lembrar dos pátios das belas vilas e mosteiros de
Portugal. Mas aqui havia figueiras-de-bengala entre os ciprestes, arbustos de
cardamomo entre os cravos, coqueiros entre as laranjeiras, flores de lótus no
meio de lilases. Gonsção encontrou um rebento de rosmaninho e esmagou-o
entre os dedos, inalando a sua fragrância. Tinha muitas saudades de Lisboa.
Havia um banco de pedra debaixo de uma enorme e medonha
figueira-de-bengala e Gonsção sentou-se nele, apreciando a sombra, ainda que
não apreciasse quem a dava. Ouviu um agitar de folhas de bambus ali perto.
Alguém estava a espreitar.
- Timóteo? - Gonsção acenou para o rapaz.
- Padre - Timóteo aproximou-se timidamente do banco.
- Não vos vejo já faz alguns dias, meu filho. Toda a gente a quem eu
perguntei ignorava onde estáveis.
- Eu tenho estado na capela, padre. A rezar e a fazer jejum.
- Mas porquê?
- Fiz mal a uma pessoa, padre. Mas estou confuso e não sei a quem
fiz mal.
- Sentai-vos, Timóteo. Contai-me. Talvez eu vos possa ajudar.
O rapaz sentou-se e começou a falar suave e rapidamente.
- No dia a seguir à nossa conversa, padre, Domine Pinto disse-me
onde eu podia encontrar os registros do julgamento do governador Coutinho.
Estavam nas cozinhas. Iam ser queimados.
Ansioso e com esperança, Gonsção disse:
- Conseguistes resgatá-los?
- Sim, padre. Mas quando estava a tentar trazê-los para vós,
tropecei no corredor. Tão estúpido, tropecei e o livro caiu no chão. Eu estava a
apanhá-lo e... Domine Sadrinho viu-me.
A esperança de Gonsção morreu instantaneamente.
- Que infortúnio! O que é que o Domine vos disse? Foi ele que vos
puniu com as orações e o jejum?
- Não. Essa é a parte mais estranha, padre. Ele não disse nada.
Apanhou o livro e foi-se embora. Eu tive tanto medo que me escondi e rezei
para que o meu pecado fosse perdoado. Mas ainda não sei qual é o meu
pecado. Falhei em ajudar-vos e ao arcebispo e ao Papa, mas sinto que
prejudiquei o Domine Sadrinho.
Gonsção suspirou e deu uma palmada no ombro do rapaz.
- Eu acredito que vós não tendes qualquer culpa, Timóteo. Fizestes
o que achastes ser o melhor. Não vos deveis punir.
- Foi por minha culpa que vós não conseguistes o livro, padre. Se eu
não tivesse parado para ler as páginas, tê-las-ia recolhido antes que o Domine
me visse.
- Vós... lestes os registros?
Timóteo confirmou com a cabeça.
- Eu não o pude evitar. Perdoai-me, padre.
- Louvado seja Deus. - Gonsção sussurrou e agarrou ambos os
ombros do rapaz. - Escutai, meu filho. Isto é muito importante. Vós estais
perdoado, acreditai em mim. Mas lembrais-vos de algo do que vistes?
O rapaz confirmou outra vez com a cabeça.
- Eu não o consigo esquecer, padre.
- Por favor. Dizei-me. Vistes uma lista de familiares?
- Não, padre.
- Vistes a confissão do governador?
- Sim. Ele disse que tinha sido enganado por feiticeiros, que lhe
mostraram provas de que os pagãos da Grécia estavam certos.
- Grécia?
- Sim, padre, os Olímpicos. Foi o que ele disse. Gonsção perguntou-
se a si mesmo se os interesses da infância do rapaz lhe estariam a corromper
a mente.
- Que provas eram essas?
- Um pó, padre. Sangue em pó, que ele disse trazer os mortos de
volta à vida! Ele disse que era o sangue de uma deusa, mas eu vi o nome e ele
estava errado.
- Claro que ele estava errado.
- Ela não é uma deusa, padre, ela é um monstro! - de repente
Timóteo olhou por cima dos ombros de Gonsção. O Domine. Perdoai-me.
Tenho de ir - o rapaz pôs-se de pé num pulo e entrou precipitadamente na
plantação de bambu uma vez mais.
Com um suspiro de frustração, Gonsção voltou-se. De fato, o
Domine Sadrinho estava a aproximar-se pelo caminho principal. O inquisidor
pareceu não vê-lo. Quando Sadrinho ia a passar diante dele, Gonsção
chamou-o.
- Bom dia, Domine. Deus esteja convosco.
O inquisidor olhou para cima sobressaltado, e então sorriu.
- E com o vosso espírito, padre. Bom dia. Foi-me dito que vos
poderia encontrar nos nossos jardins. Vós até haveis escolhido um sítio
auspicioso para vos sentardes.
- Escolhi? - Gonsção voltou-se e olhou para a feia árvore atrás de si.
- É um gênero de figueira. Foi-me dito que foi debaixo de uma
destas árvores que o filósofo Siddharta ganhou a sabedoria.
Gonsção franziu o sobrolho.
- É por acaso um filósofo hindu? O que tendes vós a ver com esse
conhecimento?
- Estais próximo, padre. Ele foi o fundador do budismo. Nesta terra,
uma pessoa aprende todo o tipo de coisas. De um estrangeiro como vós, não
se espera que o saiba. Mas já chega de divagações esotéricas. Eu tenho algo
que podem ser boas notícias.
- A sério?
- Sim. O feiticeiro Bernardo de Cartago foi capturado e está agora
em Goa. Há rumores de que a misteriosa Aditi possa estar com ele.
- Notícias excelentes, de fato, Domine. Como é que isto foi
conseguido?
- Um grupo de piratas muçulmanos achou a recompensa que nós
oferecemos atrativa e soube onde encontrar os navios ingleses. Foi a vontade
de Deus que um dos ingleses fosse mercenário ao ponto de nos entregar o
feiticeiro e a bruxa em pessoa.
- É verdade que Nosso Senhor nos ajuda por meios imprevistos.
Espero que seja possível questioná-los em breve, então?
- Espero que sim. Eu enviei um frade com alguns soldados para
interceptar a caravana. Eles devem estar de volta dentro de pouco tempo.
- Muito bem. Haverá um julgamento esta tarde. - Gonsção parou,
quando um jovem dominicano corado, com as vestes brancas sujas de pó,
correu apressadamente em direção a eles.
- E a delegação está de volta - disse Sadrinho. - Salve, Irmão Marco.
Acabo de contar ao padre António as nossas boas notícias. Temos os
prisioneiros a salvo, espero eu?
O jovem estava agitado e não os olhava nos olhos.
- Padre, Domine, houve um... infortúnio.
O rosto de Sadrinho perdeu toda a expressão.
- Um infortúnio?
- Eu, quero dizer, o homem que era suposto nós... trazermos...
- Respirai calmamente, Irmão - disse Gonsção. - Dizei-nos o mais
simplesmente possível o que aconteceu.
- E eu não quero ouvir dizer - disse Sadrinho - que este feiticeiro
conjurou uma frota inglesa, fazendo-a sair do nada para o fazer desaparecer.
- Não, Domine. Eu fui com os soldados até à estrada de Panaji,
como me havíeis instruído. Lá encontramos a caravana de muçulmanos. Mas
quando fomos reivindicar o feiticeiro, foi-nos dito que ele estava morto e que o
outro inglês e a bruxa tinham desaparecido.
- Morto - disse Sadrinho. - Haveis confirmado?
- Sim, Domine. Examinamos o corpo. Era o homem que nos havíeis
descrito.
Sadrinho deu um murro na palma da mão e proferiu algumas
blasfêmias indiscretas.
- Parece - disse Gonsção com um suspiro - que o nosso feiticeiro
fez-se desaparecer de um modo definitivo.
- Acho - disse Sadrinho lentamente - que não devíamos escarnecer
de uma alma agora perdida no Inferno.
Acho que não é por isso que vós estais tão furioso, pensou Gonsção.
- Perdoai-me, Domine. Um comentário impensado. Dizei-me, Irmão,
foi possível discernir como é que o feiticeiro morreu?
- Não, padre. Não encontramos nenhuma ferida mortal nele, embora
apresentasse muitos hematomas. Tinha algum sangue à volta da boca. Estava
borrado, mas os muçulmanos disseram que tinha sido drogado com datura e
que isso era uma conseqüência natural.
- É possível que ele tenha morrido de doença? - perguntou Gonsção.
- Suponho que sim - disse o jovem dominicano -, embora nós não
víssemos nenhum sinal óbvio de quaisquer doenças de pele ou cólera nele.
- Uma doença muito conveniente - rosnou Sadrinho. - Ele escolhe o
momento para morrer, antes de nós o reivindicarmos.
- Não podemos saber o momento exato em que ele morreu - disse
Gonsção.
- Mas o Domine pode estar certo - disse o Irmão Marco. Os
muçulmanos disseram que o ouviram falar com o outro homem no carro,
quase até eles o terem aberto.
- Outro homem? - perguntou Sadrinho.
- Sim. Estava um inglês no carro, com Cartago.
- O mesmo inglês que arranjou a entrega dele?
- Eu acho que não, Domine.
- E este inglês também está morto?
- Não, Domine, ele escapou. Aparentemente houve uma altercação.
Os mercadores que nos iam trazer os prisioneiros pensaram que estavam a ser
atacados por um grupo rival de assaltantes marítimos, nos limites da cidade.
Houve muita confusão. O inglês e a bruxa escolheram esse momento para
fugir.
Sadrinho rosnou:
- É o que eu mereço por confiar em hereges. Esta idéia foi vossa, se
bem me lembro, padre.
- Peço desculpas - disse Gonsção - pelas falhas que o meu plano
possa ter tido, mas ainda nem tudo está perdido. Sabemos a descrição física
do inglês?
- Os muçulmanos disseram que ele era jovem, alto e de cabelo
louro.
- Se não for um perito nos modos locais e em línguas, não lhe será
fácil encontrar refúgio em Goa. Se ainda estiver na área, podemos descobri-lo.
O jovem dominicano confirmou com a cabeça.
- Eu sei de alguns lugares onde ele possa procurar santuário. Os
soldados já estão a fazer buscas pela cidade.
- Muito bem - disse Sadrinho. - Ide e dai-lhes assistência. E não
volteis até terdes notícias melhores.
- Sim, Domine - o jovem dominicano curvou-se e correu de novo
para fora do jardim.
- Padre, perdoai-me pela minha lenta perspicácia, mas porque é que
nos deveríamos preocupar em procurar um homem que esteve prisioneiro com
Cartago? Estrangeiros em Goa são um assunto civil e normalmente isso não
nos concerne. Em que é que ele lhe pode ser útil?
- Pensai, Domine... um inglês é feito prisioneiro para ser resgatado
por um outro compatriota seu. Que possível resgate poderia ser ganho, a
menos que o jovem soubesse de algo? Talvez este jovem louro esteja também
na conspiração de Cartago, talvez seja um neófito recente. Talvez o feiticeiro
lhe tenha confessado algo, quando à beira da morte. É uma esperança remota,
eu admito, mas é a nossa melhor hipótese de recuperar algo deste infortúnio.
Sadrinho lançou-lhe um olhar de estima.
- Podeis ter razão, padre. Vejo que o grande inquisidor Albrecht
tinha as suas razões para vos enviar até nós. Vós sois como um bom cão de
caça: uma vez com os dentes no assunto, é difícil que o abandoneis. Eu
manter-vos-ei informado, se ouvir alguma coisa. - Com uma leve vênia voltou-
se para partir.
- Uma outra coisa, Domine. No que diz respeito ao Irmão Timóteo...
Sadrinho ficou imóvel.
- Sim?
- Vós estáveis certo ao confiar-lhe a tarefa de advogado. Eu acho
que ele é um rapaz com qualidades excelentes. Podeis ter a certeza de que
falarei bem dele e da educação que lhe haveis dado, ao grande inquisidor no
meu regresso a Lisboa.
- Eu sinto-me... gratificado, padre.
- No entanto, vi-o por uns instantes esta manhã e ele pareceu-me
muito agitado com qualquer coisa. Não me disse o que era. Eu fiz o possível
para tranqüilizar o rapaz, porque estou certo de que fosse o que fosse que o
estava a afligir, não foi culpa dele.
Sadrinho olhou para trás por cima do ombro com uma expressão
ilegível.
- Claro que não. Ele prima pela obediência e faz sempre o que lhe
mandam. Seja quem for que o mande. Como é que eu poderia culpá-lo de
alguma coisa? Bom dia, padre.
Capítulo XII
BELADONA: Esta planta dá flores em forma de sinos, de cor
castanho-avermelhada ou púrpura no Verão, e bagas negras
posteriormente. Também é chamada sombra-da-noite ou cerejas-do-
diabo. O seu fruto e raiz clara têm muitos usos medicinais para aliviar o
reumátismo, cólicas e febres. No entanto, em grandes quantidades, é
um veneno mortal. Os antigos diziam que as bagas eram usadas pela
deusa do Destino para retirar vidas aos mortais. Na língua italiana, o
seu nome significa ”bela mulher”. Não se sabe se foi chamada assim
pelo seu uso entre as mulheres jovens para tornar belos os seus olhos,
ou por ter sido usada para envenená-las...
A figura escarlate e dourada flutuava, bruxuleava, desaparecia e
reaparecia no meio da folhagem, diante de Thomas. É como se ela fosse um
fogo-fátuo em forma de mulher nos pantanais hindus. Ele tinha esperanças de
que o seu pensamento fosse apenas uma comparação infundada. Havia os que
diziam que os fogos-fátuos eram almas perdidas, conduzindo os homens à
perdição. Mas a senhora Aditi parecia saber onde estavam os caminhos secos,
e os pés agora descalços de Thomas sentiram-se gratos.
Dali a tempos, chegaram a uma antiga ruína de uma muralha da
cidade, coberta de vinhas e talvez com quatro metros e meio de altura. Havia
uma brecha através da qual a senhora Aditi passou com facilidade. Thomas
seguiu-a com pouca dificuldade. É um milagre ela não me ter visto ou ouvido.
Não há dúvida que eu me tenho movido ruidosamente pelo matagal como um
javali selvagem, para conseguir acompanhá-la.
Do outro lado da muralha havia um bazar ao ar livre. A distração
constante ameaçava Thomas, enquanto ele passava por grandes taças de
bronze cheias de canela, pimenta, gengibre, cardamomo; especiarias que
fariam a fortuna de um homem na Europa. Passou por cobertores cheios de
frutas que ele nunca tinha visto antes, e o estômago lembrou-lhe que fazia já
algum tempo que não comia. Conduzido pela senhora Aditi passou diante de
um comerciante de cavalos elegantes de pescoço esguio, de um mercador
vendendo incenso, pastilhas aromáticas e madeira, de uma mulher expondo
flores de cor carmim, fúccia e brancas, de uma estante com jóias de ouro,
prata e cobre. Todos os sentidos estavam ameaçados de serem dominados,
seduzidos; no entanto Thomas tinha de manter a atenção centrada na forma
em movimento da senhora Aditi.
A multidão no bazar parecia cooperar com o seu empenho. Ninguém
olhava muito para ele, todavia saíam instintivamente do caminho, nunca o
empurrando ou atrapalhando. O meu disfarce deve-me servir bem - quase
nem olham para mim duas vezes.
No fim do bazar, a senhora Aditi aproximou-se de uma casa baixa
com telhado de colmo e sem janelas. Dois homens vigorosos vestidos com
dhotis estavam sentados num banco, ao lado da entrada tapada por uma
cortina.
Então, o que vais fazer agora, idiota? Thomas não tinha qualquer
razão para esperar que a mulher que traiu Cartago lhe prestasse assistência
ativa. No entanto, este dissera-lhe que ela o tinha feito ao serviço de uma
causa mais importante. “Uma causa que não tem nada a ver comigo. Isso eu
sei”. Olhou para o bazar, escutando as ininteligíveis línguas estrangeiras. As
cores dos dosséis oscilavam e ele sentiu uma onda de fome e de fadiga. Se eu
procurar abrigo por conta própria, posso vir a cair na rua, e ser presa de
algum estranho. É melhor tentar esta estranha que pelo menos conheço de
algum lado.
Thomas foi até à entrada. Os dois homens que tinham
cumprimentado Aditi estavam outra vez a conversar no banco e não
repararam nele. Thomas limpou a garganta, mas isso não pareceu distraí-los
da sua conversa. Ele dirigiu-se-lhes e curvou-se como a senhora tinha feito,
com as palmas das mãos unidas diante do rosto, como se estivesse a rezar.
- Rasa Mahadevi - disse ele, porque estas eram as únicas palavras
em hindu que sabia. - Aditi - apontou para a entrada da casa. - Rasa
Mahadevi.
Os guardas franziram a sobrancelha e olharam para ele de lado,
como se não o desejassem ver. Um dos homens pôs-se de pé, puxou a cortina
para o lado e chamou para dentro da casa:
- Sri Aditi! - então falou umas palavras que Thomas não entendeu.
A cortina abriu-se bruscamente e a senhora Aditi reapareceu à
entrada.
- Vós - disse ela em grego. - O falso alquimista. Porque continuais a
seguir-me?
- Perdoai-me, Despoina, mas eu sou um estranho aqui. Eu não
tenho para onde ir. Necessito da vossa ajuda.
- Da minha ajuda! Não é suficiente o fato de eu vos ter mostrado o
caminho até à cidade? Porque é que devo ajudar mais?
Thomas não tinha pensado como é que iria conseguir a ajuda dela,
esperando que a piedade feminina fosse o suficiente. Mas agora uma
artimanha saltou-lhe à mente, como um fino fio de salvação.
- Porque nós buscamos o mesmo caminho, Despoina.
- Ah, vós não sabeis nada sobre o meu caminho.
- Eu compartilhei o carro dos raptores com Despos Cartago.
Estivemos acordados mais tempo do que era pretendido e falamos bastante.
Aprendi muito com ele.
O olhar de Aditi queimava como fogo azul.
- Bernardo jamais romperia uma jura.
- Ele não rompeu nenhum juramento, Despoina. Mas achou que eu
tinha mérito para começar uma viagem de filósofo. Se eu me pusesse à prova,
encontraria a fonte da Rasa Mahadevi. O que ele me disse foi uma inspiração
para procurar o caminho da verdade. Nesse caminho apenas vós me podeis
guiar.
- Sim, sim. - Ela atirou a cabeça para trás, no entanto, lançou-lhe
um olhar que ele reconheceu dos visitantes à loja de Coulter; alguém que quer
comprar, mas que necessita de ser convencido.
- Com o que eu aprendi, poderia voltar para Inglaterra e espalhar a
palavra da vossa deusa, cujo nome é força, na minha própria terra. Por favor,
Despoina. Deixai-me entrar e descansar e continuar a nossa conversa.
- Vós não podeis entrar. - Ela falou asperamente para os homens
que estavam à porta e encaminhou-se para dentro de casa, fechando a cortina
atrás dela.
Bem, pelo menos tentei. Os homens que estavam à porta retiraram
as facas curvas dos dhotis e gesticularam insolentemente para ele,
desdenhando-o. Com um suspiro afastou-se, perguntando a si mesmo o que
iria fazer agora. Os gritos deles retiraram-no do seu desalento iminente e os
seus gestos indicavam que ele devia entrar pelo portão, no muro baixo ao lado
da casa.
Um dos homens abriu o portão a Thomas e fechou-o após a sua
passagem. Thomas encontrou-se no que poderia ter sido um jardim mal
cuidado, exceto pelo cheiro, que o informava que era mais um quintal
lamacento.
Uma porta de madeira na parte lateral da casa abriu-se e uma
rapariga pequena num sari castanho emergiu, carregando um tabuleiro de
madeira. No tabuleiro estava uma simples caneca de madeira contendo um
líquido branco e uma taça de arroz misturado com pedaços de fruta amarela.
Ela colocou tudo no chão a alguns centímetros de Thomas e voltou para casa,
sem olhar para ele.
A fome tomou conta dos seus sentidos de prioridade e Thomas
sentou-se no chão, enfiando o arroz e a fruta para dentro da boca o mais
depressa que podia. Depois bebeu da caneca e descobriu tratar-se de leite de
coco fermentado. No seu estado sedento e faminto, sabia-lhe
maravilhosamente.
- Puro néctar - murmurou ele.
- Chama-se feni - disse Aditi da entrada.
- Minha senhora - balbuciou Thomas. - Obrigado. Pensei que vós
me havíeis mandado embora - e ergueu a caneca antes de beber outra vez.
- Tê-lo-ia feito, se fosse mais sensata. Sois um mau presságio,
Tamas. Porque não seguistes o vosso amigo? Sois dharma dele, não meu.
- Quereis dizer Lockheart? Eu não o vi. Apenas vos vi a vós, e por
isso segui-vos.
Ela abanou a cabeça e deu um estalido com a língua.
- Estais imundo.
- Ah. A lama. Eu queria disfarçar-me. Parece que resultou pois
ninguém reparou muito em mim.
- Isso é porque pareceis um Mala, alguém das castas mais baixas,
que serve apenas para carregar lixo e coisas mortas. Ninguém vos tocaria. Mas
há algo que vos denuncia.
- Os meus olhos?
- Um verdadeiro Mala tem mais dignidade.
- Sois cruel. Onde está a ternura de coração que é a glória do vosso
sexo?
Ela sorriu sombriamente.
- Sabeis pouco sobre mulheres.
Uma nuvem passou sobre o coração de Thomas. A única mulher
que ele tivera a oportunidade de observar fora Anna Coulter e ela não tinha
nada a ver com esta bruxa hindu. Anna era doce, recatada, obediente e
amável; não tinha a arrogância desta criatura. E, verdade seja dita, também
não tinha nem a graça de movimentos nem a beleza de rosto de Aditi.
- Também não sabeis como amarrar um turbante - continuou ela. -
O turbante de um homem mostra a sua família e a sua casta. Vede -
aproximou-se de Thomas e inclinou-se sobre ele. Sem lhe tocar, retirou-lhe
habilmente a camisa da cabeça.
Assim tão próxima, Thomas podia sentir o cheiro do seu suor
misturado com um odor de patchouli. Podia ver também a sua silhueta
através do sari transparente e o volume dos seios. O sangue martelava-lhe nos
ouvidos. Com a cabeça às voltas por causa do feni, mal podia evitar esticar os
braços e agarrá-la.
Ela arranjou a camisa, enrolando-lha de novo em torno da cabeça e
afastou-se.
- Pronto. Agora sois apenas meio imbecil.
- Obrigado - disse Thomas com um suspiro pesado. — Senhor,
porque é que nós, pobres mortais, somos tão tentados? Tentou pensar em
Anna, mas era-lhe difícil lembrar-se do rosto dela.
- Então, o que é que Bernardo vos revelou? - perguntou a senhora
Aditi.
- O suficiente. Ele disse-me como a vossa deusa era sábia e
poderosa. - Deus me perdoe, mas eu tenho de convencê-la. - Disse-me que o
nome do pó era Rasa Mahadevi. Disse-me que a fonte estava num sítio a
sudeste de Bijapur.
Ela parou, mordendo o lábio.
- Isso é uma peregrinação longa e perigosa.
- Eu já percorri um longo caminho, Despoina.
- Sim, mas à procura de riqueza. A recompensa que recebereis no
fim deste caminho poderá ser menos agradável. Como é que estava Bernardo
quando o vistes pela última vez? Conseguiu escapar?
- Não. Estava a descansar tranquilamente quando a oportunidade
apareceu e não o consegui acordar. Eu tinha-lhe administrado Rasa Mahadevi
de um saquinho que ele tinha ao pescoço. Aliviou-lhe as dores
maravilhosamente. É de fato um medicamento poderosíssimo, Despoina.
Pergunto-me a mim mesmo porque é que vós me haveis advertido para não
usá-lo.
O olhar dela era ilegível.
- Eu não tenho dúvidas sobre o meu julgamento. Mas pelo menos
Bernardo descansa tranquilamente.
- Suponho que, se a caravana se desintegrou e Lockheart fugiu, ele
não necessita de ter medo de encontrar os seus resgatadores agora.
- Não. Ele não tem porque ter medo.
- Sabeis onde poderei encontrar Lockheart? Onde é que ele pode ter
ido?
- Não. Mas eu não confiaria nele, se estivesse no vosso lugar. É um
homem estranho; os demônios apoquentam-no de muitas formas. Ele teme o
seu dharma e tenta fugir dele.
Os sentimentos de Thomas em relação ao escocês também o
apoquentavam de muitas formas. Ele tentou poupar-me enviando-me para
terra, no entanto, era capaz de pedir um resgate por mim aos portugueses.
Podia ter-me matado, porém não o fez. Ajudou-me durante a viagem, sem
nenhum motivo, claro.
- Sim, ele é um homem estranho, Despoina. Thomas terminou o
arroz. Suavemente Aditi disse:
- O caminho que procurais é traiçoeiro e mortal. Em Goa, nós
somos tenazmente perseguidos pelos padres da Santa Casa de Goa. Não seria
nenhuma gentileza deixar-vos ficar comigo, porque apenas vos estaria
expondo ao perigo. E vós seríeis um perigo para mim. Deveis fazer a vossa
jornada sozinho. Mas vou fazer isto por vós: há um homem em Goa, um
monge, que ajuda as pessoas da vossa terra. Ele é conhecido por padre
Stevens. Depois de teres descansado algum tempo, guiar-vos-ei até ele. Isso é
tudo o que eu posso fazer.
Thomas curvou-se à maneira hindu:
- Isso será de fato uma grande ajuda, Despoina. Obrigado. Aditi
voltou-se e chamou à entrada da porta. A rapariga vestida com o sari castanho
reapareceu, carregando um calicô enrolado. Abriu-o no chão e voltou para
dentro.
- Aqui está a vossa cama - disse Aditi. - Contudo, irão pensar que
eu sou extravagante, porque eles terão de destruir o tecido após terdes
dormido nele. Normalmente, os Mala dormem na sujidade. - Depois curvou-se
para Thomas e voltou a entrar na casa, fechando a porta atrás de si.
A gemer, Thomas rastejou em direção ao tecido e deitou-se sobre
ele. Era agradável estar apenas numa superfície que não se movesse, com os
braços livres. Então fechou os olhos.
E abriu-os, pareceu-lhe a ele, apenas alguns momentos depois. A
rapariga vestida com o sari castanho estava a cutucá-lo com um pau. Quando
olhou para ela, esta deixou cair o pau e correu para dentro. A copa da
palmeira acima dele estava iluminada pela luz do Sol do fim da tarde.
Devem ter passado horas. Dormi durante tanto tempo?
A senhora Aditi saiu, ociosamente, escovando o seu longo e escuro
cabelo. Vestia agora um sari azul e tinha várias pulseiras de ouro no pulso.
Num antebraço usava uma pulseira de prata com a forma de uma serpente
mordendo a cauda.
- Como estais, boticário?
Thomas pôs-se de pé, ainda dorido mas descansado.
- Melhor, Despoina.
- Muito bem. Vamos então depressa. Fui informada de onde se pode
encontrar o padre Stevens a esta hora do dia. Arranjei para que uns homens
me levem até lá num dholi. Deixarei cair algo quando passarmos pelo monge,
para que o saibais.
- Muito bem. Mais uma vez vos agradeço.
- Que a vossa viagem seja um sucesso, Tamas. Espero que a Deusa
vos receba bem.
E partiu, fechando a porta atrás de si. Thomas ouviu ruídos do lado
de fora do portão e abriu-o. Um dos homens acenou com uma faca comprida
para Thomas.
- Choli, choli, choli! - gritou.
Ao atravessar o portão, viu a senhora Aditi a sentar-se numa liteira
grande com cortinas. Dois homens agarraram as varas, um à frente, outro
atrás. Começaram a correr e Thomas sentiu-se pressionado a acompanhá-los.
Mais uma vez, as ruas de Goa ofereciam uma distração constante:
uma mistura de Ocidente e Oriente, habitadas por todos os tipos de homens
da Europa, África, Arábia e Ásia. As casas eram agora de dois andares e com
telhados de telhas coloridas. Homens ricos e rechonchudos sentados nas
varandas, abanando-se. Escravos e servos passavam por ele apressados,
carregando cântaros de água, ou cestos, ou conduzindo burros carregados.
Mulheres com vestidos europeus de damasco ou veludo fino caminhavam
livremente, acompanhadas por damas de companhia. Mulheres muçulmanas
passavam como fantasmas, de vestidos compridos e coloridos que não
mostravam nada senão as mãos e os pés. Raparigas hindus com o ventre à
mostra e saias transparentes e grandes brincos de ouro enfiados nos narizes,
passavam por ele rindo e cantando. Tudo era uma concatenação de cores,
costumes, odores e som. Mas parecia que a mistura produzia uma intensidade
maior, tal como alho e gengibre esmagados juntos criavam um medicamento
mais poderoso que cada um em separado.
Thomas mal conseguia manter a atenção na liteira que saltava à
frente dele, esperando pelo sinal da senhora Aditi.
Por fim, o esbelto braço dela apareceu fora da liteira e um objeto
escuro caiu-lhe da mão. Ofegando, Thomas parou onde estava, observando a
liteira desaparecer no meio da multidão.
Sentiu uma pontada de tristeza pelo fato de que poderia não voltar
a ver a senhora Aditi nunca mais, nem saber ao certo quem ela era.
Thomas descobriu estar numa rua tranqüila, com um pequeno
parque à sua esquerda. Debaixo de uma figueira enorme, estava sentado um
jesuíta de cabelo cinzento, conversando com um hindu ricamente vestido. Que
estranha a maneira como acontecimentos do mundo se resolvem... que agora
a minha vida deva depender de um monge papista. Eu espero que o pastor
Hoopes na Inglaterra me perdoe.
Quando Thomas se aproximou, o hindu reparou nele sutilmente e
desviou o olhar.
Thomas parou a alguns metros e chamou num murmúrio alto:
- Padre Stevens?
O monge olhou para ele com alguma surpresa e desculpou-se com o
hindu. Pôs-se de pé e caminhou em direção a Thomas.
- Padre Stevens, eu sou inglês e um estranho aqui. Foi-me dito que
vós me podíeis ajudar.
O monge mandou-o calar suavemente e disse:
- Ajoelhai-vos, como se eu vos estivesse a dar a bênção, meu filho.
Thomas ajoelhou-se e o monge pôs-lhe a mão no ombro.
- Padre, eu estou vestido como uma pessoa de casta baixa. Talvez
não me devêsseis tocar.
O padre Stevens sorriu.
- Eu estou vestido como um jesuíta, meu filho, e nós tocamos em
qualquer um. Dizei-me, chegastes recentemente desses dois navios que
estavam encalhados a sul?
Surpreendido, Thomas disse:
- Sim, padre, assim é.
- E viestes para Goa como prisioneiro dos piratas árabes?
- Na verdade, padre, vós sois abençoado com o reconhecimento.
O velho monge suspirou e abanou a cabeça.
- Os soldados locais apareceram e falaram comigo. Temo que eles
me tenham sob vigilância agora. Eles estão à vossa procura, meu filho, como
suspeito de assassínio.
- Assassínio? Mas eu não matei ninguém.
- Não havia nenhum fidalgo goês no carro convosco, quando vos
trouxeram até à cidade?
- Sim, havia, mas... - Thomas ficou gelado. Cartago não se tinha
mexido, quando Thomas o chamou. Mas o pó devia tê-lo curado! Ele
substituiu o veneno e não mo disse? ”Uma dentada de serpente para aquele
que respira”, dizia a nota na garrafa. ”Uma pele de serpente para aquele que
não respira.” Ressurreição para uma pessoa que está morta, mas veneno para
a que está viva. E tanto Aditi como Cartago sabiam-no!
- Ai, padre, temo ter sido enganado. Sou um boticário de profissão e
estava a dar o que pensava ser um medicamento a um homem e não veneno.
O padre Stevens bateu-lhe nos ombros.
- Estou comovido com a vossa dor, meu filho, leva-me a acreditar na
vossa confissão de inocência. Eu compreendo que alguns medicamentos se
tornem veneno para uma pessoa demasiado fraca para os suportar e no
Oriente produzem-se medicamentos de fato poderosos. Podeis muito bem não
ter culpa.
- Conseguis ajudar-me, padre?
- Se não vos ofender vestir o hábito, vou ver se vos posso esconder
entre os meus irmãos, por algum tempo. Nós somos uma ordem nômade e não
levantará suspeitas o fato de vós subirdes a bordo de um navio com esta
roupa. Vinde, temos de sair das ruas depressa antes que vos vejam.
O velho monge começou a descer a rua de pedra e Thomas
caminhou rapidamente ao lado dele, tentando parecer humilde.
- Posso perguntar-vos de que parte da Inglaterra sois, padre?
- Wiltshire, meu filho. Bushton. Estudei em Winchester e Oxford,
embora não fosse por muito tempo.
- Como viestes para este sítio tão remoto?
- Através de Roma e Lisboa. É uma longa história. No colégio de
Saint Andrew, li sobre o trabalho de São Francisco Xavier e isso inspirou-me a
tornar-me missionário no Oriente. Então aqui estou eu. Espero que tenhais
razões mais mundanas para estar aqui.
- Nunca foi minha intenção estar aqui. A minha expedição era
destinada à China.
- Mmm, não tenho dúvida que há um motivo na vossa vinda a Goa.
O Senhor trabalha de formas misteriosas... calai-vos, chegamos a uma área
mais populosa.
A rua levava a um canto de uma praça grande, com uma fonte no
meio. O padre Stevens começara a virar em direção a uma viela secundária,
quando cinco homens, vestidos com camisas largas, calças escuras e espadas
na anca, saíram debaixo de uma colunata e se aproximaram deles.
Com uma inimizade casual, bloquearam o caminho de Thomas e do
padre Stevens.
- Dominus vobiscum, senhores - disse o velho monge. Thomas
escondeu-se atrás do monge, sem saber como se comportar.
- Padre Estêvão - disse um dos homens armados, com uma
inclinação de cabeça. - Boa noite. Quem é o seu amigo?
O padre Stevens tagarelou durante algum tempo em português.
Thomas teve a impressão de estar a ser descrito como um novo convertido
para a Igreja. Contudo, os homens armados não pareciam convencidos. Um
deles caminhou em direção a Thomas e arrancou-lhe o turbante da cabeça.
- Louro - disse o homem com um sorriso sarcástico. Depois agarrou
Thomas pelo braço e puxou-o para cima. - Levante-se já!
- É alto - disse um dos outros, reparando na altura de Thomas.
Seguiu-se uma discussão entre o velho monge e os soldados. Mas após um
minuto de gritaria, estava claro que o padre Stevens não estava a ter muito
sucesso. O velho monge benzeu-se.
- Perdoai-me, meu filho, mas não consigo detê-los. Farei o possível
para vos proporcionar defesa e segurança. Não desistais. Meu Deus.
- Não, perdoai-me a mim, padre - disse Thomas, enquanto
travessamente empurrava o velho monge para cima dos soldados. Então
Thomas voltou-se e correu o mais rápido que pôde, pelo caminho por onde
tinha vindo. Os seus pés martelavam nos tijolos duros da rua mas ele ignorou
a dor, procurando um beco, uma entrada, algum sítio onde se pudesse
esconder. Os homens com as espadas gritavam e seguiam-no de perto.
Thomas escondeu-se debaixo de um camelo que transportava tapetes
enrolados. Derrubou um rapaz de tanga que carregava uma sombrinha, bateu
num burro assustado para que este lhe saísse do caminho e se pusesse no
caminho dos seus perseguidores. As pessoas na rua gritavam à medida que
ele passava, mas não sabia se o estavam a encorajar ou a informar os
soldados sobre a sua passagem. As suas pernas estavam a arder, a começar a
ceder, cansadas devido à caminhada pelos pântanos e à corrida atrás de Aditi.
Um beco escuro apareceu-lhe à esquerda e ele enfiou-se apressadamente nele.
Gatos, galinhas e crianças dispersaram-se. As mulheres cobriram
os rostos e repreenderam-no. Era como se os seus pesadelos de ser uma
vítima perseguida, se tivessem tornado realidade. Cheirou-lhe a cardamomo e
a lentilhas cozinhadas. Abriu caminho através da umidade e de uma extensão
de tecido que estava a secar. O seu rosto e o peito embateram contra uma
parede de estuque e ele caiu para trás na sujidade.
Ofegante, exausto, atordoado, Thomas apenas conseguiu sentar-se
à espera, enquanto o sangue lhe escorria do nariz. As vozes aproximavam-se,
rodeavam-no. Mais uma vez foi puxado para cima e lhe torceram os braços
dolorosamente atrás das costas. Demasiado fraco para lutar, deixou que lhe
atassem os pulsos e os homens armados guiaram-no para qualquer que fosse
o fim que o esperava.
Capítulo XIII
BAMBU: Esta erva alta cresce no Oriente. Tem uma haste oca, que é
utilizada com finalidades múltiplas, e folhas em forma de lâminas de punhal.
O pé pode ser comido, mas primeiro tem de ser cozinhado, senão é venenoso.
Na índia, o bambu é um símbolo de amizade e de fogos de origem divina. Diz-
se que nasceu das cinzas de uma rapariga que foi enganada para se casar com
alguém de uma casta mais baixa. Acredita-se no Oriente que se o bambu
florir, significa que se aproximam fomes e outras calamidades...
Sri Aditi estava sentada com os braços apertados à volta das
pernas, enquanto o seu dholi balançava e andava aos solavancos. Os seus
homens sabiam onde a levar: mas ela não sabia se ia ser bem recebida. Não se
atreveu a olhar para ver se o estrangeiro ainda a seguia.
Finalmente o andar dos que a carregavam tornou-se mais lento e os
sons serenaram à sua volta. O dholi foi posto no chão e a cortina de tecido
levantada. Com tanta graça quanto lhe foi possível, Aditi endireitou-se e pôs-
se de pé.
Estavam nos jardins laterais de uma grande casa senhorial de
pedra, que tinha sido erguida antes da chegada dos portugueses, ou mesmo
antes dos mogóis shahs terem chegado a Goa. Os jardins eram sombreados
por árvores asoka, brilhantes com as suas flores escarlates. Pavões
iridescentes espicaçavam por entre samambaias e arbustos de champak
luxuriantes.
Sri Aditi retirou duas pulseiras de ouro dos pulsos e entregou uma
a cada um dos homens que a carregavam.
- Obrigada. Agora vão, mas apenas por ruas secundárias. Não
voltem aqui, a não ser que vos chamem.
Os homens curvaram-se e partiram em silêncio.
Um servo, vestido com uma túnica jama comprida de cor creme e
turbante, apareceu à porta e os olhos arregalaram-se-lhe com alarme.
- Sri Aditi. Ouvimos dizer que havíeis partido. Aditi curvou-se.
- Assim foi, Dwarpal. Mas o bafo da índia empurrou-me de Indra.
Tenho uma vez mais de suplicar a ajuda dos vossos amos.
O criado olhou na direção do portão.
- Ninguém vos viu entrar aqui?
- Eu acho que ninguém sabe quem eu sou. Ele pareceu hesitar.
- É melhor entrar e esperar aqui dentro. Mas eu não sei o que o
meu amo e a sua senhora vão dizer.
- Entendo. Estou tão aflita como eles vão ficar, certamente. Apenas
espero que eles tenham ainda alguma generosidade para dispensar à minha
pessoa.
- Lakshmi tem feito grandes maravilhas. Entrai, depressa. Aditi
seguiu Dwarpal pelos corredores laterais ricamente mobiliados, sentindo-se
mais como uma ladra que tinha sido descoberta, do que como uma convidada.
Dwarpal parou e indicou uma entrada que levava a um jardim
central.
- Este é o sítio onde podeis esperar confortavelmente. Mandarei
trazer-vos chá de cravinho, se assim o desejardes.
- Isso seria muito gentil da vossa parte. Refletis a graça dos vossos
amos, como sempre, Dwarpal.
Aditi curvou-se e saiu para o jardim com colunatas. Este era em
grande parte preenchido por uma piscina retangular, na qual flutuavam flores
de lótus pálidas. Um único repuxo de água surgia de uma fonte no centro da
piscina. Jasmins e narcisos cresciam ao seu lado, perfumando o ar. O
crepúsculo caía e uma noite de estrelas podia ser vista no céu de cor índigo.
Aditi ouviu uma série de notas experimentais de uma raga que lhe
era familiar e olhou para um canto distante do jardim. Um músico cego estava
sentado num degrau a tocar vina; tinha uma cabaça no ombro e outra ao seu
lado.
- Gandharva! - Aditi caminhou na sua direção e sentou-se ao seu
lado. - Nunca esperei ver-vos aqui.
O homem cego inclinou a cabeça.
- Será que... Aditi? Ouvi dizer que tínheis escapado e zarpado pelo
grande mar fora.
- Eu tinha, Gandharva. Ou pelo menos, tentei. O navio de Bernardo
foi apanhado por estrangeiros, de quem nem mesmo os portugueses gostam.
- De fato, um infortúnio. O vosso amigo Bernardo está...
- Ele provou a Dádiva dela e faleceu. É melhor assim, visto o que lhe
poderia ter acontecido na Ordem de Gor, ou o que ele poderia ter divulgado.
- Ah.
- Tudo deu errado, Gandharva. Tudo. Nós falhamos. Agora eu sou
uma fugitiva, num lugar que outrora foi a minha casa.
- Aditi, Aditi, deveis estar extenuada. Nunca vos ouvi falar com tal
desespero.
- Eu nunca me senti tão desesperada.
- O desespero é uma ilusão, minha senhora. Uma cegueira não
menos incapacitante do que a minha. Mahadevi tem grande confiança nas
vossas faculdades mentais e na vossa força, assim como eu tenho. Tudo
sofrerá uma volta diferente.
Aditi suspirou e descansou o queixo nos joelhos.
- A esperança infundada pode ser também uma ilusão, Gandharva.
Uma criada, vestida com uma túnica kurti verde, caminhou na
direção de Aditi e colocou um tabuleiro de prata aos seus pés. No tabuleiro
havia uma chávena de porcelana de chá de cravinho, e ao lado uma pequena
fatia de bolo de betei. Normalmente Aditi não mascava betei, mas esta noite o
seu espírito necessitava desesperadamente de ser reconfortado.
Com uma vênia, a criada desapareceu.
- Mm. - Gandharva cheirou o ar. - Cada vez que eu venho de visita,
as servas do senhor estão mais belas.
- Como sabeis? Ela trouxe-nos pan-supari. Gostaríeis de provar?
- Não, obrigado. Com um sentido perdido, eu preciso de confiar em
todos os demais. Com eles posso ouvir a graça dos passos de uma rapariga ou
sentir o cheiro do seu perfume bem escolhido. A beleza pode ser vista na
escuridão, tal como a luz.
- Ah, sim? - Aditi deu uma dentada no bolo de betei,
pensativamente mastigando a confecção de noz de palma, pasta de lima,
parras, ópio e especiarias. - A escuridão e a luz. Foi-me enviado um presságio
de escuridão hoje. O que pensais vós que irá acontecer, quando Mahadevi
souber do meu fracasso?
O músico cego encolheu os ombros.
- Vós sabeis que Ela tem uma perspectiva diferente das coisas. Para
Ela, as nossas dores são brisas adversas, perturbando-Lhe os pensamentos
apenas como o vento perturba a relva.
- E se Ela ficar mais perturbada do que isso?
- Isso vai depender do seu humor, suponho. O que é o pior que vos
pode acontecer? Tornar-vos num lindo adorno do seu jardim.
- Não estais a conseguir tranquilizar-me, Gandharva.
- Eu apenas digo isto porque acho que é pouco provável. Dizei-me
que coisas terríveis aconteceram.
- Zalambur está morto. Serafina está agora na Ordem de Gor,
suportando os tormentos deles. Bernardo está morto. Para salvar a minha
própria vida, regressei a Goa na companhia de piratas. Tive de dar a um dos
estrangeiros o frasco da sua Dádiva. Bernardo confiou num jovem, dando-lhe
a conhecer algo sobre Ela, embora eu não saiba o quê. Este jovem estrangeiro
seguiu-me até Goa, quando escapei aos piratas. Eu também o ajudei,
encaminhando-o para um dos seus compatriotas. Não sei bem porquê.
- Certamente que está de acordo com o Dharma de cada um ajudar
estranhos que estão em necessidade, não é?
- Assim o dizem. Este jovem era estranho. Sabeis que ele rolou pela
lama, pensando que isso o disfarçaria?
- Os animais rolam na sujidade para cobrir o seu odor, segundo
dizem. Talvez o jovem estrangeiro pense como um animal. Na realidade
qualquer ocidental faria bem em cobrir o seu mau odor, não?
- Eles não parecem tomar muito banho, é verdade. Mas a lama não
o cobriu o suficiente. Era óbvio que o seu cabelo e a pele eram de uma cor
peculiar. Bernardo chamava-lhe jovem leão, porque o cabelo do estrangeiro
era amarelo-dourado como a pele de um leão. Este jovem é verdadeiramente
escuridão e luz, Gandharva; ele chama-se Tamas.
- Tendes pensado muito neste homem? Ficastes atraída por ele?
Aditi deu outra dentada no bolo de betei e mastigou por alguns
instantes antes de responder.
- Não sei. Gandharva, vós que haveis viajado mais do que eu e visto
mais do mundo, embora não vejais, já alguma vez sentistes, ao conhecer
alguém, que há um elo que vos une a essa pessoa? Que de algum modo ela é
importante. Já?
- Eu não, mas ouço dizer que isso acontece a outros. Há quem diga
que isso significa que conhecemos esta pessoa numa vida anterior.
- Eu não acredito noutras vidas. Mas Bernardo deve ter pensado
que havia alguma razão para confiar ou encorajar este Tamas. Talvez por ele
ser um boticário; eles partilham alguns conhecimentos com os alquimistas.
O músico cego concordou com a cabeça.
- Homens de mentes semelhantes podem estar inclinados a
partilhar segredos. Vós e Mahadevi partilhais segredos e em certos aspectos
sois muito parecida com ela.
- Ninguém pode ser parecido com Mahadevi.
- Isso não é verdade. Eu ouvi Ela própria dizer que tinha duas
irmãs, antigamente.
- Ah, que época de milagres deve ter sido essa.
- Assim o diz a história, minha senhora. Mas eu acho que algumas
maravilhas se tornam mais maravilhosas com o passar dos tempos e das
histórias, como ervas daninhas exuberantes.
- De vez em quando, Gandharva, acho que duvidais da divindade de
Mahadevi.
Ele ergueu as mãos.
- Não duvideis de mim, minha senhora. Desde que Mahadevi me
trouxe de volta para o reino dos Vivos, eu sou-lhe completamente devoto. Mas
sou um contador de histórias e conheço algumas histórias.
- É por isso que estais em Goa? Contando histórias aos Maratas?
Ele encolheu novamente os ombros.
- Eu vou e venho. Parto amanhã para Bijapur.
- Eu deveria ir convosco.
- Porquê?
- Porque é que devia ficar? Eles andam a perseguir-me aqui e não
vou ser melhor tratada do que a pobre Serafina, se me apanharem. - Aditi
esfregou a testa com os punhos. - Porque é que Mahadevi espera tanto de nós?
Seria muito mais fácil se ela aparecesse e se mostrasse, se provasse o seu
poder.
- Não restaria muito de Goa, se ela o fizesse. Além do mais,
estragar-nos-ia o jogo a nós, pobres mortais.
- Vós pensais nisto tudo como sendo um jogo?
- Ela seguramente pensa assim.
- Quando as pessoas morrem para espalhar a Sua palavra?
- No meu entender, os jogos mais excitantes são aqueles em que se
arrisca o máximo. Há lá aposta mais valiosa do que a vida? Está certo que os
Deuses sejam grandes e poderosos, mas se eles fizessem tudo, o que restaria
para nós, mortais, fazermos?
Aditi abanou a cabeça.
- Ficar de lado e rir, gratos por não termos de ser nós a trabalhar e
a sofrer? Mas ainda não me haveis dado uma razão para que eu fique em Goa.
- Porque não ganharíeis nada com a vossa partida. Se partirdes
agora, estareis a fugir ao vosso dharma, censurando publicamente a injustiça
de tudo isto e, pior de tudo, não trazendo nada de interesse para Mahadevi.
Sabeis como Ela despreza os que se lamentam. Se esperardes, a Roda pode
girar mais a vosso favor. Podereis descobrir algo de interesse e dessa forma
ficar apta para a distrair da desaprovação. Se voltardes para a Mahadevi de
mãos vazias...
Tendes razão. Isso iria enfurecê-la ainda mais. Eu encontrei um
homem fugindo do seu dharma... um personagem digno de piedade. Não devia
querer ser como ele. E quase fui.
- Estais a ver? Esperai a vossa oportunidade, minha senhora. Este é
o conselho que vos dou. E volto a dizê-lo, vós sois inteligente e astuta.
Sabereis aproveitar o momento quando este aparecer. Agni não se renova a
partir do próprio fogo que o consome? Certamente algo que valha a pena será
ganho deste infortúnio. Vereis.
Capítulo XIV
ASSA-FÉTIDA: Esta resina é de cor avermelhada e vem de funchos
que crescem na Pérsia. É notável sobretudo pelo seu cheiro horroroso e
sabor amargo. Alguns chamam-lhe o Estrume do Diabo. No entanto,
tem sido usada no Oriente como especiaria e ali é chamada a comida
dos deuses. A assa-fétida em pó cura crises e achaques do estômago.
Utilizada num amuleto ao pescoço, diz-se que protege das doenças e da
bruxaria...
Thomas não prestou muita atenção para onde estava a ser
conduzido, até se aproximarem de um grande muro de pedra no extremo da
cidade. Um portão de ferro bloqueava lá dentro uma entrada. Havia três
soldados de guarda ao portão. Enquanto os seus captores gracejavam com os
guardas, Thomas reparou num cheiro pestilento a sair da entrada estreita em
forma de caverna. Estará algum oráculo por lavar esperando lá dentro, para
me falar por enigmas do meu futuro?
Finalmente um soldado abriu o portão e Thomas foi empurrado
para dentro. Caminhou aos tropeções, descendo por um túnel escuro e
inclinado, tentando suster a respiração à medida que o odor se tornava mais
forte. Os seus captores tinham lenços amarrados sobre os narizes mas não
ofereceram nenhum a Thomas.
Dobrou uma esquina e caiu contra um outro portão com barras de
aço. O quarto que ficava atrás dele era escuro, cheio de sombras com forma de
homens. O fedor era sufocante: uma mistura fétida de excrementos, urina,
suor, todos os eflúvios da humanidade, plantas a apodrecer e carne em
decomposição. Thomas tossiu, lutando contra a náusea.
As barras abriram-se à frente dele e Thomas caiu sobre uma
saliência. Aterrou de lado num chão de pedra que era viscoso e malcheiroso.
Pôs-se de joelhos e os vômitos vieram-lhe à boca impiedosamente. Tudo o que
saiu foi apenas um líquido azedo. Contudo o seu estômago deslocava-se tão
violentamente, que receou chegar a vomitar os próprios órgãos para fora do
corpo. Que maneira mais ignóbil de morrer esta seria.
Pensou em todos os medicamentos para aliviar as dores de
estômago, que havia nas prateleiras do mestre Coulter: menta e narcisos, chá
de flores de pilriteiro, xarope de rebentos de pessegueiro. Tudo distante e
inútil. Mas o pensamento parecia aliviar os espasmos e Thomas tomou
consciência das pessoas à sua volta, dedos mexendo-lhe no cabelo, nos
calções, nos pés. Ouviu umas risadas suaves e homens a falar em idiomas
diferentes. Alguém atrás dele disse:
- Bem-vindo, estranho. - Bem-vindo a Aljouvar.
Não preciso de esperar pela morte para entrar no Inferno, pensou
Thomas. Já lá estou.
Alguém gritou para que os outros se afastassem e agarrou Thomas
pelos ombros, ajudando-o a pôr-se de pé. Num fraco latim, o samaritano disse:
- Respirai rapidamente, amigo. Como um cão no Verão. Isso ajuda.
Vinde.
Thomas ofegava, enquanto era conduzido para uma parede e se
encostava a ela. Uma luz fraca emanava das fendas invisíveis na rocha acima
das cabeças, e ele começou a ver um pouco daquilo que o rodeava. Thomas
voltou-se para agradecer ao seu benfeitor e sobressaltou-se. A seu lado estava
um rosto tão negro como as máscaras de ébano de África, um rosto hindu com
um nariz largo e olhos castanhos.
- Muito bem - disse o hindu. - Sentis-vos melhor agora?
- Sim - Thomas conseguiu dizer. - Obrigado, estranho. Trabalhando
nas cordas que prendiam Thomas, o hindu disse:
- As vossas mãos já estão livres.
- Deus seja louvado - suspirou Thomas em inglês, massageando os
pulsos. À medida que os olhos se ajustavam à escuridão, viu que estava numa
gruta profunda, cujo chão de pedra tinha sido desgastado até se tornar liso,
pelo constante pisar dos pés. Os ratos guinchavam e trepavam por todo o lado.
No centro havia uma cisterna redonda que se erguia do chão, onde os homens
se iam aliviar. Havia algumas dúzias de homens esfarrapados e de barba no
compartimento: uns caminhavam para trás e para diante como animais numa
jaula, outros estavam sentados balançando-se silenciosamente. Alguns jaziam
deitados no chão e chamavam por Santa Maria, ou por Alá, ou por qualquer
divindade pagã multissilábica. Alguns estavam imóveis, dormindo, doentes ou
mortos. O resto, quer fossem muçulmanos de turbante, goeses bem vestidos,
africanos praticamente nus, hindus de casaca, ou de raça e nação
indeterminadas, estavam sentados calmamente conversando, rezando, ou
jogando com as pedras. Não eram poucos os que observavam Thomas com
curiosidade ociosa.
- Por Jesus - disse alguém que estava sentado perto dele, num latim
com um forte acento. - Acho que encontrastes um britânico, Sabda.
Thomas olhou para baixo e viu um homem vestido com um gibão de
seda sujo e puído e calções apertados abaixo dos joelhos. A sua barba por
aparar e os cabelos louros tinham sido penteados. Os olhos do homem eram
azuis.
- Também sois da Inglaterra, senhor?
Após um momento de pausa, o homem estendeu-lhe uma mão
grande.
- Pieter van der Groot, de Roterdão.
Thomas apertou-lhe a mão cuidadosamente, com o pulso ainda a
doer.
- Sabdajnana é o meu nome - disse o hindu com uma vênia. - E
podemos saber o vosso, meu bom senhor?
- Chinnery. Thomas. De Londinium.
- Chinritamas.
- Não. Apenas Thomas.
- Tamas? Mmmm... - o hindu murmurou algo.
O holandês riu-se.
- Sabda diz que certamente o vosso nome vos conduziu a este lugar.
Tamas, na língua dele quer dizer ”escuridão”.
- Ah, sim? Então eu estou verdadeiramente no meu elemento,
porque as minhas perspectivas nunca me pareceram tão negras. Este homem
Sabda é vosso servo?
Franzindo o sobrolho, Van der Groot disse:
- É meu amigo. É um médico ilustre e um brâmane, da casta mais
nobre desta terra. Os muçulmanos chamam-lhe um hakim.
- Entendo. Perdoai-me, não era minha intenção insultá-lo - Thomas
fez uma vênia à maneira hindu para Sabdajnana. - E vós haveis-me mostrado
uma bondade inesperada neste sítio... onde quer que estejamos.
O Brahmin retribuiu-lhe a vênia, com um sorriso.
- Isto é o Aljouvar - disse Van der Groot -, a fortaleza do governador,
onde qualquer goês ou estrangeiro com sangue nas veias e má sorte na vida
passa o tempo. Mas deixai-me dizer-vos, tenho visto mais caridade e nobreza
de espírito neste inferno, do que no mundo lá fora. Trazidos a tão baixo, nós
tornamo-nos irmãos na adversidade.
Um homem magro, mas resistente com uma barba negra escassa e
de bigode, aproximou-se com passos regulares e deixou-se cair com extrema
agilidade no chão, ao lado de Van der Groot.
- À exceção daqui do Joaquim - continuou o holandês em voz ainda
mais alta -, que não é irmão de ninguém. Não é verdade, Joaquim?
- Vós desonrais-me - disse o pequeno homem em latim, com
pronúncia portuguesa. - Nem sequer fazeis uma vênia para me cumprimentar,
como um verdadeiro cavalheiro deve fazer. Não me tenteis a desafiar-vos pela
vossa grosseria. Isso não seria cortês diante do vosso novo amigo, Pedro.
- Não é justo da vossa parte, Joaquim. Sabeis que as minhas pernas
ainda não sararam e eu não posso de modo algum fazer uma vênia tão bem
feita como vós.
- Ah, esqueci-me. Temos de perdoar os inválidos. Então, quem é
este anjo de cabelo dourado que nos visita no inferno?
- Concedei-me a honra de vos apresentar Thomas Chinnery de
Londres. É um inglês, Joaquim.
O pequeno homem ficou comicamente boquiaberto.
- Inglês! Madre de Deus, salvai-me deste herege comedor de
crianças, Pedro!
- Que dizeis? - disse Thomas friamente.
- Esta personagem irritante - disse Van der Groot -, é Joaquim
Alvalanca, o filho de um cão mais divertido com quem tive o prazer de
partilhar uma prisão.
- Ah, já é a segunda vez que me insultais, Pedro. Na verdade, estais
a tornar-vos demasiado familiar.
- Perdoai-me, Joaquim, sou apenas um mercador rude e não sei
nada sobre a delicadeza de um orgulho de cavalheiro.
- A qualidade de um cavalheiro - fungou Joaquim - é demonstrada
pela delicadeza do seu orgulho.
- Nesse caso - disse Thomas -, sinto-me honrado por conhecer
alguém que é sem sombra de dúvida um cavalheiro.
- E tentou uma grande vênia, tal como as que havia visto nas ruas
de Goa. Mas quando baixou momentaneamente a cabeça, esta começou a
andar à roda com tonturas e ele caiu para a frente.
O brâmane Sabdajnana agarrou-lhe um dos braços. Joaquim
ergueu-se com um salto e apanhou o outro braço. Juntos, colocaram Thomas
no chão.
- Sentai-vos, senhor, por favor - disse Joaquim. - Fazeis-me
demasiada honra. Não receeis conspurcar-vos. Pelo vosso cheiro, isso já foi
feito.
- Temo estar necessitado de comida - disse Thomas. Sabdajnana
colocou uma palma fria na testa de Thomas e pescoço.
- Sinais de febre. Deveis tomar cuidado, bom senhor.
- Ai, senhor, ainda falta algum tempo para que nos dêem de comer -
disse Joaquim. - Espero que não morrais de fome até lá. Ainda que sejais um
diabo e herege fornicador.
- Obrigado - disse Thomas secamente. - Ainda que sejais um
adulador de ídolos papista.
- Ah! Ele atinge-me no coração, Pedro! Devo desafiá-lo?
- Paciência, Joaquim. Ele já sofre o suficiente, por estar aqui na
vossa companhia. Não sois tão cavalheiro que o vosso coração não possa
suportar um pequeno golpe. Além do mais, ele poderia ganhar o duelo, e
sabeis que eu enlouqueceria sem vós aqui a chatear-me.
Uma luz apareceu, balançando perto do portão de ferro. Homens
levantaram-se do chão da gruta, aproximaram-se saindo das paredes, braços
esticados, implorando em muitas línguas. Um soldado de fora do portão
segurou uma lanterna, iluminando dois monges com hábitos castanhos e os
rostos escondidos nos capuzes. Thomas sentiu um vislumbre de esperança.
- Paulistas - disse Joaquim, observando-os com curiosidade.
- Jesuítas - disse Van der Groot a Thomas. - Eles às vezes vêm da
parte da família de alguém, ou para fazer caridade. Ajudam os desafortunados
e não têm grande amor à Santa Casa.
O soldado apontou na direção deles e os monges olharam para
Thomas, gesticulando um para o outro.
- Ah, talvez tragam comida, senhor.
Mas passado um minuto os monges partiram silenciosamente. O
homem da lanterna seguiu-os deixando a gruta numa escuridão ainda mais
profunda do que antes. Os prisioneiros voltaram, resignados, aos seus lugares
anteriores e aos passatempos.
- Eu tinha esperança - suspirou Thomas - que fosse o padre
Stevens. Falei com ele antes da minha prisão. Ele ofereceu-se para ajudar-me.
- Já ouvi falar dele - disse Van der Groot. - Até cheguei a esperar a
sua ajuda. Mas ouvi dizer que o padre Stevens tinha enfurecido o governador
há alguns anos ao ajudar três compatriotas a fugirem de Goa. As autoridades
não confiam nele e acho que há pouca coisa que ele possa fazer.
- Sim. Ele ia levar-me aos seus colegas jesuítas, quando fomos
detidos pelos soldados. Eles não acreditaram nas desculpas dele em relação a
mim e por isso fui arrastado para aqui. Senhor Alvalanca, vós falastes de uma
Santa Casa. Isso é...
- A Inquisição, senhor - disse Joaquim. - E rezai para que a casa
sagrada não se interesse por vós, inglês herege.
Thomas tinha ouvido muitas histórias à boca pequena a respeito
dos tormentos da Inquisição, apresentada como a mais condenatória evidência
contra papistas. As histórias eram freqüentemente tão lúridas, que ele tinha
perguntado a si próprio quantas delas seriam verídicas.
- Então que crime terrível traz o nosso senhor Chinnery ao
Aljouvar?
- Esqueceis-vos, Joaquim - disse Van der Groot -, de que nesta
cidade basta ser estrangeiro para ser um crime. Houve um rumor que chegou
até mesmo aqui, de que não há muito tempo, uma armada poderosa de barcos
de guerra ingleses perseguiu o maior dos galeões de Goa e quase o
capturavam. Vós não viestes nessa?
- Não - disse Thomas quase sorrindo. - A minha frota era apenas de
dois navios e, apesar de termos atacado um galeão, não o capturamos.
Ficamos seriamente danificados e tivemos de ancorar perto de Calecut para
reparação, mas enquanto lá estávamos, fomos atacados por piratas árabes. Eu
estava a tentar salvar um amigo que pensava que eles tivessem capturado, e
no meu afã encontrei-me cativo e drogado. Quando acordei, estava num carro
a caminho de Goa.
- Estranho - disse Van der Groot, coçando a barba. - Não pensava
que os piratas de Omã navegassem por essa parte do oceano Índico.
- Mas certamente - disse Joaquim -, apesar de ser inglês já ser de
fato um crime, deve haver algo mais. Senão os paulistas teriam autorização
para afixar uma fiança por vós. Não há nenhuma outra acusação, senhor?
Thomas suspirou.
- Pensa-se que matei um cavalheiro de Goa. Van der Groot susteve
a respiração.
- Então que Deus vos ajude, meu amigo.
- Mas claro! - disse Joaquim. - Um duelo, não? Este bonito rapaz
arranjou uma senhora com um marido ciumento.
- Não, nada tão aventureiro - disse Thomas. - Sou um boticário de
profissão. E estava a administrar um remédio a um homem. Mas ao que
parece, em vez de ser uma substância curativa, resultou ser venenoso.
- Que medicamento era esse que lhe haveis dado? - perguntou
Sabdajnana.
Thomas ficou surpreendido por um momento; depois lembrou-se de
que o brâmane era médico e tinha interesse nessas coisas.
- Era um pó castanho. Sei que a vossa gente lhe chama Rasa
Mahadevi.
- Rasa Mahadevi! - Sabdajnana ficou boquiaberto.
- Conhecei-lo?
- Apenas de rumores, Tamas. O seu nome significa ”sangue da
deusa”, e pensa-se que seja um medicamento muito sagrado e poderoso.
- E assim o é, porque uma vez utilizei-o para trazer de volta à vida
um homem, mas para o goês foi a sua condenação.
- Haveis utilizado esta espantosa substância?
- Apenas duas vezes.
- Que maravilha! Onde a conseguistes? Tendes um pouco convosco?
- Não. O que tinha foi-me retirado no navio dos piratas. Obtive-a do
próprio homem que morreu ao tomá-la... um alquimista português. De que
Deusa se supõe que seja proveniente? Conheceis a sua fonte?
Sabdajnana arqueou as sobrancelhas.
- Mahadevi, claro, que é a ”Grande Deusa”. Mas ninguém sabe de
onde provém o pó. Alguns dizem que se encontra nas profundezas do deserto
de Decão, ou nas selvas de Bengala. Outros dizem tratar-se do sangue de um
naga.
- Naga? O que é isso?
- Os naga são uma raça lendária de gente, metade homem, metade
serpente. Não sei se verdadeiramente existem.
— Talvez daí provenha a menção das serpentes na garrafa. Que
maravilha, se isto for verdade.
- Então - disse Joaquim -, sois um feiticeiro, bem como um herege.
Thomas olhou furioso para o pequeno homem. O uso correto de
medicamentos, drogas e ervas não tem nada a ver com a feitiçaria. Já lhe
bastava suportar as insinuações do colégio real de físicos, quanto mais de um
ibérico ignorante, de língua afiada. Thomas sentiu o seu rosto corar e sentiu-
se demasiado quente e demasiado frio ao mesmo tempo. Escondeu o rosto nas
mãos.
Sabdajnana agarrou-lhe o ombro.
- Como vos sentis?
- Não muito bem.
O brâmane e Joaquim ajudaram Thomas a voltar-se e a encostar-se
à parede.
- Não vos quis insultar, senhor. Perdoai-me - balbuciou Joaquim. -
Bom, vou-vos contar a minha história. Isso vai-vos trazer um sorriso ao rosto,
está bem? Sou um hóspede do Aljouvar porque sou um ladrão. Um ladrão
incompetente, nada menos. O que é que eu roubei? Um pão, senhor.
- Éreis assim tão pobre? - disse Thomas. - Pareceis demasiado bem-
educado. Ou sois estudante?
Joaquim riu-se.
- Em Goa, senhor, os únicos assuntos que estudei foi como beber,
como lutar, como foder, e as cem maneiras de matar um homem. Em Lisboa,
era um verdadeiro estudante, num seminário, razão pela qual o meu latim é
tão excepcional. Mas a minha família caiu em desgraça; eu já não tinha
nenhuma fortuna em Lisboa. Por isso naveguei para a índia Dourada, onde
dizem que os rubis e esmeraldas nascem nas árvores e as raparigas de pele
escura concedem todos os desejos.
”Em Goa, tornei-me um soldado, como qualquer homem sem
mulher ou título. Lutamos para defender a nossa preciosa colônia. Fui posto
em tendas com outros dez e foi-nos dito que se servíssemos bem e
encontrássemos esposas, nos tornaríamos fidalgos, não trabalharíamos mais,
mas seríamos proprietários de boas fazendas e caminharíamos pelas avenidas
com escravos carregando pára-sóis sobre as nossas cabeças.”
Joaquim inclinou-se mais e baixou a voz.
- Mas, senhor, eles não nos disseram que apenas ganharíamos dois
réis por dia. Que uma boa camisa tinha de ser partilhada por dez homens.
Que tudo o que nos é dado para comer é arroz e peixe salgado e apenas água
para beber. O governador preferia gastar o dinheiro com a mulher e amigas do
que com os seus soldados.
- Cuidado, Joaquim - disse Van der Groot.
- Eu já não quero mais saber, Pedro. Por isso, senhor, nós
roubamos. Alguns têm mulheres que lhes dão de comer em troca de amor. Eu
não tenho nenhuma amiga solteira, por isso roubei pão. Mas fui apanhado e o
nosso sargento precisa de um exemplo, por isso aqui estou eu. Uma história
excitante, não acham?
- Há quanto tempo estais aqui? - perguntou Thomas.
- Dois, talvez três meses.
- Há tanto tempo? E nenhum magistrado falou convosco?
- Não, e se tiver sorte, eles vão se esquecer de que eu estou aqui.
Thomas suspirou. Era ao mesmo tempo consolador e entristecedor
escutar os lamentos dos outros.
- E vós, senhor? - perguntou Thomas a Van der Groot. Posso ouvir a
vossa história?
O holandês coçou a barba.
- A minha parece irrelevante. Mas na opinião do governador,
também sou um ladrão. Os navios dos meus compatriotas não são mais bem-
vindos do que os vossos nestas águas. Nós, Holandeses, somos conhecidos
pela nossa habilidade para o comércio e Portugal guarda a sua conquista
ciosamente. Fui apanhado a tentar estabelecer contactos mercantis com
alguns comerciantes maratas. As autoridades não ficaram contentes.
- E também não haveis falado com ninguém?
- Tal como aconteceu com Joaquim, espero que ainda falte muito
para que isso aconteça. Temo que não seja bom para mim, quando o
julgamento for finalmente feito. - O holandês mudou de posição e Thomas
notou uma rigidez invulgar nas suas pernas.
- O que vos aconteceu?
- Tentei fugir e fui espancado por guardas. Não é nada.
- Percebo. - Thomas podia ver que se tratava de algo mais do que
nada, mas decidiu não pressionar o holandês sobre esse assunto. - Podeis
dizer-me o que me poderá acontecer? Tendes algum conselho a dar-me?
- Se eles estiverem convencidos de que sois um assassino, ou
quiserem culpar-vos de alguma maneira, tendes poucas esperanças, a não ser
fugir. O guarda pode por vezes ser indulgente ou ser subornado. Podeis
esconder-vos por algum tempo entre os maometanos, ou entre os judeus em
Goa; há alguns que não simpatizam com os portugueses, que não vos
trairiam. A vossa melhor hipótese é fugir por terra. Ides para leste, para o
território de Bijapur. O sultão de lá, Ibrahim Adilshah, não gosta dos
portugueses mas recebe bem todos os outros estrangeiros.
Bijapur. Já ouvi falar desse lugar - Ah! É o segundo ponto no mapa
de Cartago; o caminho para a fonte do Rasa Mahadevi.
- E vós, Magister - perguntou Thomas a Sabdajnana. O que traz um
homem culto como vós a este lugar?
O brâmane abanou tristemente a cabeça.
- Homens de sabedoria, se não forem cristãos, são suspeitos em
Goa, nos dias de hoje.
- Homens de sabedoria, se forem ricos, quereis dizer - disse Van der
Groot. - Eles provavelmente tinham inveja da vossa riqueza, Sabda. Vede se
tendes ainda alguma coisa, quando voltardes a casa.
O brâmane suspirou e olhou noutra direção.
- Agradeço... - Thomas tossiu e o mundo girou à sua volta. Ficou
mais quente, como se chamas internas ameaçassem consumi-lo. Queria
derreter-se, ou expandir-se como pão num forno. Sentia os braços e as pernas
pesados como pedras.
- A febre - ele ouviu Sabdajnana dizer sobre ele. - Está a tornar-se
pior.
Claro que era a febre, ele tinha-a tratado tantas vezes.
Então, um pouco de poejo e de alfazema resolviam o assunto, não é
verdade, senhora Smythe? E lá estava a senhora Coulter olhando para ele e
abanando as bochechas roliças, dizendo:
- Deus não devia dar um pai assim a uma criança. - Mas de quem
estava ela a falar? Do seu pai, é claro; pouco antes ela insistira para que
mestre Coulter o enviasse nesta viagem para longe, muito longe das mulheres
a cavalo que o assombravam e o perseguiam nesta floresta ardente, escura
como o breu. Conseguia ouvir os guinchos e gritos horrorosos e corria através
do fogo, mas não conseguia trazer ar aos pulmões e os ramos não paravam de
lhe bater nas faces, enquanto corria uma pancada poderosa e Thomas viu o
rosto de um demônio a pairar sobre ele. Não; era Sabdajnana, muito
preocupado.
- Thomas?
- Senhor! - disse-lhe Joaquim ao ouvido. - Senhor, tendes de
acordar. Eles vêm à vossa procura.
Com o corpo todo a doer-lhe Thomas deixou-os puxarem-no para
cima.
Havia um monge ao portão, com um lenço a tapar-lhe a boca. Uma
chave rangeu na fechadura de ferro.
- Padre Stevens? - sussurrou Thomas. Olhou em volta esperando
outro coro de lamentos e súplicas dos prisioneiros; porém, em vez disso, houve
um silêncio: nenhum homem chamou ou simplesmente deu conta do monge
ao portão. Poder-se-ia até dizer que os prisioneiros se arrastaram ainda mais
para dentro das sombras, desviando os rostos. O monge entrou na gruta
sozinho, trazendo uma lanterna. As suas vestes não eram castanhas, mas
brancas, com uma capa negra dos dominicanos. O monge foi direito a
Thomas.
- Infelizmente, senhor - sussurrou Joaquim. - Receio que tenhais de
ir para a Santa Casa, afinal de contas.
O dominicano parou à frente deles e apontou para Thomas, dizendo
para Joaquim:
- Ele é inglês?
Joaquim acenou afirmativamente, olhando para o chão.
- Coragem Thomas - disse Van der Groot.
O monge fez um gesto para os guardas do portão. Enquanto os
homens desciam para dentro da gruta, transportando correntes, Joaquim
sussurrou de novo ao ouvido de Thomas:
- Lembrai-vos de nós, senhor. Pois uma vez que chegueis a
conhecer a hospitalidade da Santa Casa, lembrar-vos-eis do Aljouvar como um
paraíso.
O padre Gonsção demorou-se perdido nas sombras profundas da
Catedral de Santa Catarina. A multidão tinha dispersado há muito, mas ele
estava relutante em abandonar os reconfortantes arcos ibéricos, o altar e os
bancos. As janelas altas tinham vidraças de madrepérola, que deixavam entrar
uma luz difusa e leitosa, como se se estivesse debaixo de água. Que
apropriado, este santuário. Pois receio não ter perícia para nadar entre as
águas turbulentas e sombrias da vida de Goa. Deus me guarde; que eu não
me afogue nela.
As enormes portas de madeira atrás dele abriram-se e uma figura
solitária, um monge, entrou. Este fez uma genuflexão na nave central e
aproximou-se dissimuladamente do banco onde Gonsção estava ajoelhado. Só
quando o monge estava ao lado dele, é que Gonsção reconheceu o Irmão
Marco.
- Deus vos dê uma boa noite, padre.
Gonsção suspirou e benzeu-se como que a terminar as suas
orações.
- E a vós também, Irmão Marco.
- Ele deu-nos, padre, a todos nós. Finalmente trago boas notícias.
- Fico satisfeito por ouvir isso. Mas dai-me essas novas lá fora.
Estas paredes ecoam tanto que as andorinhas nas vigas podem ouvir os
murmúrios.
- Certamente, padre.
Gonsção permitiu que o Irmão Marco o conduzisse para fora, até
aos degraus da catedral. O Sol estava a desaparecer por detrás das casas
altas, estendendo longas sombras sobre a praça central, ainda cheia de gente.
- Estas pessoas nunca vão para casa, Irmão Marco? O jovem monge
riu:
- Gostam mais de ir às casas uns dos outros, padre. Goa é uma
cidade festiva!
Gonsção estalou a língua:
- Surpreende-me que aqui se faça algum trabalho de conseqüência
séria.
- Um pouco precioso é feito - disse o Irmão Marco. - Mas vamos às
minhas novas. O inglês que pensávamos ter perdido, foi encontrado. Foi
levado para o Aljouvar, mas um dos nossos Irmãos salvou-o e trouxe-o para a
Santa Casa.
- Bem, isso é algum progresso. Teria sido melhor encontrar Cartago
vivo, mas temos de nos contentar com a segunda escolha. Presumo então que
haverá uma audiência esta noite?
- Não tão depressa, padre. O inglês estava doente e com febre e o
Domine Sadrinho quis que ele tivesse algum tempo para se recuperar, antes
de ser entrevistado.
- Entendo. - Depois de tanto atraso e de informações erradas,
Gonsção encontrou-se a si próprio a conjecturar se esta seria uma nova
armadilha. - Sabeis, Irmão Marco, ocorre-me que dada a importância deste
inglês para a vossa investigação, deveríamos dar-lhe o melhor dos advogados.
Penso que o Irmão Timóteo serviria bem para ele, não?
O Irmão Marco sorriu:
- Na verdade as bocas dos sábios bebem da mesma fonte, padre. O
inquisidor Sadrinho já atribuiu ao Irmão Timóteo esse dever.
- Ah, sim? Isso são novas encorajadoras, na realidade. Algo no outro
lado da praça captou a atenção do Irmão Marco por um momento.
- Eu... tenho de regressar para proceder a algumas preparações
para o vosso novo hóspede. Por favor perdoai-me, padre. - Voltou-se e partiu
rapidamente numa direção oposta ao que quer que fosse que ele tivesse visto.
Gonsção franziu o sobrolho, surpreendido. Mas tanta coisa aqui é
estranha, que nem vale a pena perguntar.
Com um suspiro, continuou a descer os degraus da catedral,
caminhando vagarosamente atrás do Irmão Marco.
Pelo canto do olho, viu duas figuras vestidas com hábitos castanhos
deslocarem-se da fonte da praça na sua direção. Enviou aos céus uma
pequena prece, pois Gonsção achava a paixão jesuíta pela pobreza, caridade e
evangelização algo maçador. A sua oração foi, evidentemente, demasiado
tardia, pois os paulistas caminharam diretamente para ele. Gonsção acenou-
lhes, escolhendo aproveitar o melhor da situação.
- Deus vos dê uma boa noite, Irmãos.
- E ao vosso espírito, padre, queira Deus dar a paz. - O jesuíta que
falou era um homem de cabelo branco, com cerca de 60 anos e o seu
português era estranhamente acentuado. O Irmão a seu lado era atarracado e
tinha cabelo negro, encaracolado. Pela forma como o homem se encolhia e se
contorcia no seu hábito de lã, Gonsção concluiu que ele era noviço na roupa.
- Não vos vi perto da Santa Casa antes - disse o velho monge
astutamente. - Chegastes recentemente a Goa, padre?
- Estou aqui há duas semanas, Irmão.
- Então posso dar-vos as boas-vindas à paróquia mais alegre da
terra de Deus. Sou o padre Tomás Estêvão.
- Ah. Creio que ouvi falar de vós. Sois inglês, não é verdade? - E sou
capaz de adivinhar a razão pela qual vos aproximastes de mim.
- Essa é a minha terra natal, mas estou exilado até que sua
santidade retire a sua bula ou que sua majestade soberana Isabel volte para a
madre Igreja. Não penso, porém, que alguma destas coisas venha a acontecer.
Este é o Irmão Andrew, da Escócia, um país mais temperado na fé, que não no
clima.
Gonsção acenou educadamente para o monge hirsuto e recebeu em
troca um sorriso frio. Há algo astucioso por trás dos seus olhos. Nem tudo é o
que parece.
- Disseram-me, padre Estêvão, que sois estudante das línguas
pagãs locais.
- Sim - disse orgulhosamente o padre Stevens. - Coligi uma
gramática Canarese e atualmente estou a trabalhar num longo poema
devocional, no estilo e na língua dos Maratas. Chamo-lhe a minha Purana
Cristã.
Gonsção tentou impedir que o seu assombro se tornasse evidente.
- Se bem posso perguntar, padre, o que foi que vos possuiu para
tentar tal coisa?
- Oh, é um grande desafio, eu sei. Mas achei que valia a pena
tentar, a fim de revelar a fé cristã de uma maneira familiar aos Hindus. E
também para demonstrar aos fiéis a beleza da língua e das formas poéticas
usadas pelo povo nativo. Mas não vou ser cansativo como tantos escritores
conseguem ser, com as histórias do meu trabalho em progresso. Soube que
um dos meus compatriotas é agora hóspede da Santa Casa. Um jovem louro,
com o mesmo nome que eu, Thomas. Creio que ele está inocente das
acusações que lhe são feitas e desejo testemunhar a seu favor e oferecer-lhe
consolo.
Tal como eu pensei. Gonsção exibiu o sorriso mais gracioso que
conseguiu.
- Naturalmente, padre, vós estais preocupado com o vosso infeliz
compatriota. Mas lamento ter de vos informar que eu aqui sou apenas um
observador. Não tenho autoridade direta neste caso. Não sei a que acusações
vos estais a referir. Mas sei que a Santa Casa não fez qualquer erro ao fazê-lo
nosso hóspede; o inquisidor Sadrinho está muito interessado no seu
testemunho. Ele será bem tratado, asseguro-vos. Agora já vos disse mais do
que a minha posição permite. Se quiserdes, mandarei uma mensagem para o
inquisidor-mor, dizendo que desejais uma audiência com ele. Por certo
compreendereis, ele pode não responder com brevidade. O inquisidor Sadrinho
é um homem muito ocupado.
O velho jesuíta sorriu também.
- Já tratei antes com o inquisidor Sadrinho, padre. Sei até que
ponto ele pode ficar ocupado, quando pensa que isso é necessário.
- Fico contente por serdes paciente e compreensivo, padre Estêvão.
Agora, com a vossa permissão, tenho assuntos a tratar.
- Um momento, padre - disse o Irmão Andrew. O seu português
escabroso parecia mais de um soldado, do que de um escolástico. - Há uma
coisa que o padre Estêvão não mencionou. Creio que o jovem inglês não é
querido tanto por ele próprio, como por aquilo que ele pode ter aprendido com
o homem que acompanhou a Goa. Um certo senhor Bernardo de Cartago.
- Falei tudo o que podia sobre isto - disse Gonsção. Não...
- Mas o erro, já se vê - continuou o Irmão Andrew -, é que este
Cartago seja considerado morto.
- ...vos fará qualquer bem... o que é que dissestes, Irmão?
- Que este mesmo senhor Cartago, que tem fama de ser feiticeiro,
não está morto.
Gonsção sentiu que lhe faltavam as palavras. É como se eles
ouvissem os meus pensamentos, do outro lado da praça. Isto será verdade, ou
um outro ardil? Não devo mostrar que isto é importante para mim. Contudo,
de certa forma não conseguiu impedir a sua boca de ficar aberta e os olhos de
olharem fixamente para o monge escocês.
- Isto não é um caso de interesse para a Santa Casa? disse o Irmão
Andrew, pestanejando, todo inocência.
- Como... como chegastes a este conhecimento?
- Se nos dispensardes um pouco do vosso tempo, padre disse o
padre Estêvão - nós explicaremos com todo o gosto.
Não sei o suficiente para julgar isto. Não sei onde jaz o corpo de
Cartago, ou até mesmo se ele existe. Não posso confiar totalmente nestes
homens, contudo também não confio no Sadrinho. Se isto é algo que ele não
sabe, ou que me está a esconder, é do maior interesse da minha missão que
eu fique a saber mais.
- Muito bem. Estou pronto para ouvir.
Capítulo XV
PAPOULA: Esta planta tem folhas de um verde-prateado. Dá flores
brancas, vermelhas, ou de cor púrpura em pleno Verão e vagens
redondas com sementes, nos finais da estação. O xarope de papoula é
um remédio excelente, pois dissipa toda a preocupação, todo o
reconhecimento da dor, ou do perigo, ou das circunstâncias difíceis e
proporciona um sono tranqüilo. Contudo, deve tomar-se um cuidado
especial no seu uso, porque quando a tintura é muito forte causa uma
sonolência demasiado profunda e tem de se usar alho ou outra
substância ativa, para reavivar o que dorme. Para os antigos, a papoula
era consagrada a Ceres e a Diana e era considerada uma planta de
morte. Há quem diga que as flores vermelhas nasceram pela primeira
vez do sangue de um dragão morto por Santa Margarida. Outros dizem
que surgiu do sangue de Cristo, que gotejava da cruz. Por toda a parte é
sabido que a papoula se dá bem nos campos de batalha...
Thomas acordou com uma brisa seca e fresca a acariciar-lhe o
rosto, o gênero de Zéfiro matinal que antecede uma tarde abrasadora. Ele
podia ouvir o pairar e o guinchar dos pássaros tropicais, para além da parede
ao seu lado. Da distância, vinham gritos de mercadores da rua e o clamor dos
sinos de igreja. Havia um tênue perfume de caiação por entre os odores do
mar e dos pomares de fruta. Por um momento acreditou que estava de novo
em Londres, numa manhã de Verão. Mas os outros sentidos e memórias
disseram-lhe que isso não podia ser verdade.
Por cima dele havia um teto branco, em abóbada. A parede à sua
direita era caiada de branco também, com uma pequena janela com grades
colocadas bem alto. Thomas observou os grãos de poeira a flutuarem baixo,
sobre os raios de luz.
Esforçou-se por ficar numa posição sentada, mas teve de voltar a
reclinar-se devido às vertigens. Todo o corpo lhe doía e ele gemeu. Lembro-me
agora - estive doente com febre. Onde é que eu estarei?
Examinou-se a si próprio. Estava vestido com roupas limpas que
não eram suas, calças de algodão e uma camisa de algodão larga, mas sem
sapatos. Tinham-lhe dado banho. Thomas levantou a mão para coçar a cabeça
e descobriu que lhe tinham cortado o cabelo muito curto.
Verdadeiramente não sou o homem que era na minha última
recordação.
Com cuidado e lentidão, Thomas conseguiu finalmente sentar-se.
Tinha estado deitado numa colcha tecida em xadrez vermelho e branco. Por
baixo dela havia uma esteira de palha sobre um catre. Não é uma cama de
luxo, mas é de longe muito melhor do que muitas que eu vi ultimamente.
Estava numa cela com cerca de três metros quadrados.
Contra uma parede adjacente havia uma mesa simples de madeira,
sobre a qual tinham sido postos dois jarros de barro. Ao lado da mesa havia
uma vassoura e uma bacia sanitária. Do outro lado da sala à sua frente, havia
uma porta que tinha na parte superior uma janela de grades.
Poderá isto ser a terrível Santa Casa? Estou numa cela, certamente,
mas está mobiliada mais parecendo uma estalagem frugal e bem cuidada.
Um rosto redondo e moreno apareceu à janela da porta. Soltou um
grunhido de surpresa e voltou-se para falar com alguém que Thomas não
conseguia ver. Então houve o barulho de uma chave a rodar na fechadura de
ferro e a porta abriu-se silenciosamente.
O dono de um rosto largo e marcado com cicatrizes era um homem
atarracado que usava um bastão no cinto. Entrou com passo forte e
sorridente.
- Bom dia - murmurou Thomas com um aceno.
O homem não disse nada, mas manteve-se afastado da porta. Um
rapaz de doze ou treze anos, com um hábito castanho entrou então. O cabelo
cortado em forma de tigela era negro, os olhos eram grandes e castanhos e a
pele era cor de canela. Trazia uma malga de madeira que colocou no catre ao
lado de Thomas - a malga continha arroz, um filete de peixe e uma salsicha.
Com o estômago roncando de fome, Thomas pegou na malga
avidamente.
- Abençoado sejais e obrigado, irmãozinho - disse entre garfadas de
arroz.
- Deus lhe dê um bom dia, senhor - disse o rapaz, de rosto solene
mas esperançoso.
Thomas engoliu e disse:
- Utorisne língua latina?
- Sim - disse o rapaz nessa língua. - É uma sorte vós também a
usardes. Sou o Irmão Timóteo.
O homem alto, claramente um guarda de alguma espécie, aclarou a
garganta e lançou ao rapaz um olhar de aviso, sorrindo sempre.
- Chamo-me Thomas Chinnery. Podeis fazer-me o favor de me dizer
onde é que eu estou?
O rapaz pestanejou.
- Estais na Casa Sagrada, senhor. Ah, mas não podíeis ter sabido.
Tendes estado doente.
O guarda fez estalar a língua. O rapaz suspirou e ele cerrou os
lábios com ar aborrecido. Thomas perguntou a si próprio o que poderia estar a
acontecer. Talvez o rapaz tenha quebrado alguma regra monástica. Então, é
isto, realmente. Temível Inquisição. É bastante satisfatória na aparência, até
agora. Será satisfatória nas negociações também? O que teria levado Cartago a
preferir a morte à prisão aqui, ou levado Joaquim a dizer que o Aljouvar é o
paraíso em comparação com isto?
Thomas comeu mais umas garfadas de peixe, salsicha e arroz,
enquanto os seus visitantes esperavam com paciência. Finalmente perguntou:
- Quando é que poderei falar com alguém que tenha autoridade?
- Em breve - disse o Irmão Timóteo. - Fui nomeado vosso advogado.
Thomas quase se engasgou com o arroz.
- Vós? - Uma criança é que vai ser o meu advogado espiritual? Que
tipo de tribunal é este?
- Sentis-vos bem, senhor? - perguntou o rapaz com preocupação
genuína.
- Perdoai-me. Eu estou bem. Apenas me engasguei com o arroz.
- E a febre, foi-se embora?
- Parece que sim. Deram-me alguns medicamentos? O rapaz
inclinou a cabeça.
- Porque perguntais?
- Hum, curiosidade. É isso apenas. - Thomas tinha aprendido que
em certos lugares era perigoso dar a conhecer a sua profissão.
- Tratei-vos eu próprio - disse o rapaz com orgulho. Aprendi a fazer
alguns remédios com ervas com o meu avô Garcia de Orta.
- De Orta? - disse Thomas - De verdade? Li o seu livro. Colóquios
dos Simples e Drogas da Ásia...
Os olhos do Irmão Timóteo abriram-se de espanto.
- Ouvistes falar de meu avô? E lestes o seu livro? Vindo de tão
longe?
- Sim, de fato. Esse livro foi parte da razão pela qual o meu mestre
me mandou para o Oriente.
O guarda tossiu em voz alta e olhou para o rapaz com ar
carrancudo. O Irmão Timóteo baixou o olhar e afastou-se. Que estranho. O
rapaz não tem ordem de me falar livremente.
- Como sois o meu advogado - disse Thomas, observando o guarda -
podeis dizer-me o que me farão?
Olhando para o chão fixamente, o jovem frade disse:
- Deveis colocar os vossos pensamentos nos pecados que vos
conduziram até este lugar, senhor. Os meus mestres, os inquisidores,
mostrar-vos-ão toda a clemência, se vós abrirdes o coração para eles e para
Deus.
Estas palavras, que deviam de ter sido reconfortantes, causaram
um arrepio no corpo de Thomas.
- Obrigado, fá-lo-ei - esperou ter dado a resposta desejada.
- Estou ansioso por ter essa oportunidade.
- Quando estiverdes bem, senhor.
- Sinto-me suficientemente bem - Thomas ergueu-se e sentiu os
joelhos a tremer. O rapaz correu para o seu lado e segurou-lhe o braço,
levando-o cuidadosamente até ao chão.
- Deveis descansar, senhor. Deixai o vosso corpo e a vossa alma
ganhar forças.
O guarda fez rolar os olhos e resmungou em português. Uma outra
voz ouviu-se do lado de fora da porta.
- Irmão Timóteo!
O Irmão Timóteo soltou o braço de Thomas.
- Desculpai-me, senhor. - O rapaz caminhou apreensivamente até à
porta e saiu. O guarda abanou a cabeça para si próprio, como se a sua
suspeita tivesse sido confirmada.
Thomas esperou, mortificado pela sua fraqueza. Perguntou-se se
seria a reminiscência da febre ou a falta de alimentação. Caldo de carne seria
um bom remédio, ou um saquinho de cominhos e tomilho. Talvez uma infusão
de folhas de sabugueiro. Não há tais remédios aqui. Quiçá eu pudesse
persuadir o rapaz a trazer-me alhos. Gostaria de saber com quem ele está a
falar. Não me parece feliz.
O Irmão Timóteo reapareceu, franzindo o sobrolho. Chegou-se junto
de Thomas e disse:
- Senhor, ides ver os meus mestres agora.
- Bom - disse Thomas. Lentamente levantou-se, ordenando aos
joelhos que se agüentassem firmes. Para sua surpresa, obedeceram-lhe.
O guarda veio ter com eles, puxando por um bocado de tecido negro
que trazia no cinto.
- Isto é para os vossos olhos - disse o Irmão Timóteo. Só deveis ver o
que é permitido. E temos de atar as vossas mãos. E não deveis falar a menos
que vos seja pedido. Os hóspedes da Santa Casa devem ser silenciosos. É a
regra.
Thomas sentia um medo crescente, enquanto lhe atavam os pulsos
e lhe punham a venda. Não ver. Não falar. Esta prisão satisfatória pode-se
ainda tornar uma coisa de pesadelo.
Depois de uma caminhada breve e desajeitada ao longo de
corredores silenciosos exceto pelo eco dos seus passos, o pano negro foi-lhe
tirado de novo dos olhos. A sala à sua frente era um contraste gritante com a
sua clara e arejada cela.
O salão de audiências era uma sala comprida, com uma mesa
pesada e longa, à volta da qual estavam sentados homens de rostos compridos
e vestes negras. O enorme crucifixo que preenchia a parede mais distante,
evocava pensamentos mais de castigo do que de salvação.
Na extremidade da imponente mesa, estava sentado um monge
secretário curvado sobre um enorme livro-mestre, a pena na sua mão
semelhante a um punhal pronto para ser atirado. À sua direita estava sentado
um homem, cujo rosto com barba estava marcado pelas bexigas e sulcado
como as vielas calcetadas de Londres. À esquerda do escriba estava sentado
um homem mais pequeno, que parecia entediado, mas que observava Thomas
com olhos velados.
O Irmão Timóteo dirigiu-se ao homem alto, de cicatrizes no rosto e
fez uma vênia em deferência:
- Ele sabe latim, Domine.
- Bom. Então não precisaremos de intérprete. Sentai-vos. O guarda
empurrou Thomas até uma cadeira de madeira, na cabeceira da mesa mais
próxima. Apesar das mãos atadas, Thomas conseguiu sentar-se sem cair.
Bem. Pelo menos permitem-me este pequeno conforto.
O inquisidor alto acenou para o livro de orações encadernado em
cabedal, que se encontrava na mesa à frente de Thomas.
- Colocai a vossa mão direita sobre o missal.
- Perdão, Domine - disse Thomas -, mas tenho as mãos atadas.
O inquisidor bateu na mesa bruscamente.
- Não deveis falar até que vos peçam. - Acenou para o guarda e
Thomas sentiu que as cordas lhe estavam a ser tiradas. Esfregou os punhos,
depois colocou a mão direita sobre o livro.
- Deveis jurar que tudo o que disserdes perante nós, será a verdade
e que observareis a regra do silêncio e que não repetireis nada daquilo que
ocorrer aqui.
- Juro dizer somente a verdade.
O Irmão Timóteo deu um passo em direção a Thomas.
- Deveis jurar também a regra do silêncio, senhor, ou sereis levado
de volta à vossa cela.
Até que ponto este juramento me comprometerá? Interrogou-se
Thomas. Poderia eu revestir-me de coragem para não falar deste lugar, caso
alguma vez daqui venha a sair? Será a minha alma mais condenada ainda, se
eu não o fizer? Quanto mais tempo me deixarão esmorecer na minha cela, se
eu não o fizer?
- Assim juro - disse ele, por fim.
- O vosso nome?
- Thomas Chinnery. Poderei perguntar os nomes daqueles a quem
me estou dirigindo?
Os inquisidores franziram o sobrolho.
- Não deveis fazer perguntas! - sussurrou o Irmão Timóteo, quase
implorando. - Somente os Domines Sadrinho e Pinto as podem fazer.
O inquisidor alto olhou para o rapaz furiosamente.
- Isso é tudo o que o vosso hóspede necessita de saber disse
sombriamente.
Pelo menos o rapaz ousa dar-me resposta, embora me sirva de
pouco, pensou Thomas.
- Qual é a vossa cidade de origem?
- Londres, Inglaterra.
Os inquisidores trocaram olhares de compreensão.
- A vossa ocupação?
- Sou aprendiz de um boticário.
- Um boticário: isso é alguém que lida com ervas, drogas, venenos e
substâncias alquímicas, não é?
Thomas começou a sentir que as armadilhas lhe estavam a ser
preparadas.
- Com exceção das substâncias alquímicas, está correto. O
inquisidor ignorou a qualificação de Thomas.
- Qual era o vosso negócio em Goa?
Thomas conseguiu não dizer “Eu não tenho negócios em Goa”.
- Eu fui capturado por corsários muçulmanos e trazido para aqui.
Com que intenção, não sei.
- É um caminho longo para os piratas trazerem um inglês. Sabeis
porque sois hóspede da Santa Casa?
- Não, Domine.
- Não tendes idéia nenhuma, mesmo?
Thomas fez uma pausa, tomado pela surpresa. Será que ele acredita
seriamente que eu devia saber?
- Penso, Domine, que vos compete a vós dizer-mo.
O Irmão Timóteo parecia escandalizado. O inquisidor mais alto
suspirou, batendo com o dedo indicador sobre a mesa.
Thomas ergueu as sobrancelhas inocentemente e esperou. Perdido
por um, perdido por mil, como se diz.
- Senhor, deveis dizer-lhes porque é que estais aqui disse o Irmão
Timóteo.
- Que tipo de advogado sois vós? pensou Thomas. Finalmente disse:
- Presumo que estou aqui porque sou estrangeiro. O inquisidor-mor
olhou brandamente para Thomas.
- De que interesse poderia ser a nacionalidade para a Igreja
Católica?
Que jogo de loucos é este?
- Por causa da minha nacionalidade, poder-se-ia pensar que eu
estou em Goa ilegalmente.
- Isso é um assunto secular e não preocupação nossa. Que
transgressões de espírito vos trouxeram à nossa atenção?
Cerrando os dentes, Thomas disse:
- Devido à minha terra natal, poder-se-ia pensar que sou um
herege.
- Fazei notar que ele admite o pecado de heresia.
- Que eu posso ser considerado um herege?
- Sois um cristão de oito dias, senhor?
- Que dizeis?
O inquisidor suspirou:
- Quando vos tornastes cristão?
- Desde o nascimento, Domine.
- Fostes batizado na Madre Igreja?
- Fui batizado em... na Igreja de Inglaterra.
- E essa Igreja dos Ingleses segue todos os preceitos da Santa Madre
Igreja de Roma?
Thomas ficou em silêncio, desejando ter a língua vivaz de
Lockheart.
- Nós soubemos - disse o inquisidor -, por outras pessoas do vosso
país, que ela não o faz. - O espectro de um sorriso apareceu brincando nos
lábios do inquisidor. - E que as pessoas de fé verdadeira na Madre Igreja são
perseguidas no vosso país.
- Isso é um assunto político.
- Nós não pensamos que seja. Vós estáveis na companhia de um
homem, que sabemos ser um feiticeiro notório. Esta Santa Casa tem vindo a
procurá-lo há algum tempo.
Ah. Agora chegámos lá. Cuidadosamente, Thomas disse:
- Fui trazido para Goa na mesma carroça que um homem, que
alguns diziam ser feiticeiro. Escapei da carroça, mas ele não. Mais tarde ouvi
dizer que ele estava morto.
Os inquisidores esperavam, sem dizer nada.
- Sou acusado do seu assassínio?
- Assassínio - disse o inquisidor-mor -, embora seja um pecado
cruel, é todavia um assunto para as autoridades seculares e não é
preocupação nossa. Repito, o que vos trouxe aqui?
Thomas olhava fixamente, mal compreendendo o que ouvia.
- Acre... Acreditais que eu possa ter praticado feitiçaria com o
homem?
- Fizeste-lo? - perguntou o inquisidor, velando os olhos.
- Não! Que maneira de julgar é esta? Diabos me levem se eu
brincarei às adivinhas convosco!
Os olhos do homem de hábito negro abriram-se e Thomas percebeu
que devia de ter apertado mais as rédeas da sua língua. Baixou os olhos para
a mesa, com o rosto a arder. O Irmão Timóteo tocou-lhe no ombro sutilmente.
- Por favor, acalmai-vos, senhor - implorou ele. - Acreditai que Deus
vos vê e comportai-vos com decoro, pois esta é a Sua casa sagrada.
Uma vez mais o inquisidor-mor olhou furiosamente para o rapaz. O
Irmão Timóteo olhou para o chão, murmurando apologeticamente em
português.
- Dir-se-ia que estais a ser mais uma distração do que um bom
advogado, Timóteo. Estais despedido desta audiência.
Em silêncio, o rapaz voltou-se e saiu da sala. Embora o jovem Irmão
tivesse sido de pouca ajuda, Thomas teve uma sensação de perda, quando ele
partiu.
Com uma calma gélida, o inquisidor olhou de novo para Thomas.
- Não é o nosso propósito aqui, senhor, brincar às ”adivinhas”. E
nós realmente receamos que estejais condenado. Encontramos isto nas vossas
roupas. - E ergueu nas mãos um pequeno rolo de pergaminho que Cartago
tinha dado a Thomas.
Eu ainda nem olhei para o que estava escrito ali, pensou Thomas,
começando a entrar em pânico! Cartago disse que era um mapa.
- Ainda negais que praticastes feitiçaria? Thomas fechou os olhos.
- Não sei o que está escrito no pergaminho. Cartago entregou-me
para o manter a salvo. Não sou feiticeiro.
- Tomai nota de que o senhor Chinnery até agora não está
arrependido.
- Como podeis... não tendes provas, nem testemunhas! Como ousais
acusar-me de alguma coisa?
- Podemos produzir testemunhas, senhor, que vos ouviram
murmurar sortilégios com o feiticeiro. Eles acreditam que vós usastes feitiçaria
para criar o caos nas suas fileiras, a fim de poderdes escapar.
O inquisidor encolheu os ombros.
- Mas isso tem pouca importância. É o encargo sagrado da Santa
Casa deixar cada hóspede descobrir por si próprio o pecado na sua alma.
Apenas quando ele próprio reconhece o pecado, o pode então confessar
livremente, purgar a sua alma do mal e ser perdoado por Deus. Seria de fato,
errado da nossa parte, fazer acusações e dizer-vos o vosso erro, pois isso
negar-vos-ia o autoconhecimento. Podeis simplesmente papaguear o que nós
dizemos e assim evitar humilhar-vos perante o Céu.
Meu Deus. Não só o seu rosto lembra as vielas de Londres, como a
sua mente é igualmente labiríntica. Estarei eu na presença de loucos?
- Talvez a falta esteja em nós - continuou o inquisidor. A nossa
generosidade pode ter-vos poupado o duro exame da alma que leva à
revelação. Talvez os vossos erros se tornem mais claros para vós, através da
privação. Talvez seja até preciso um tratamento mais rigoroso ainda, para
trazer a verdade aos vossos olhos. Para fazer o abençoado trabalho de salvar a
vossa alma, estamos preparados para fazer o que quer que seja necessário. E
nós somos, senhor, muito pacientes.
Capítulo XVI
AÇUCENA: Esta planta tem uma haste longa, raiz bulbosa e flores
em forma de campainhas, ou de uma trompa, E consagrada a Santa
Catarina e dizem que nasceu pela primeira vez a partir das lágrimas
que ela derramou, quando foi expulsa do Paraíso. O suco da açucena
cura as mordidelas venenosas e a raiz acalma as queimaduras. Para
alguns, a açucena é a flor dos degenerados e dos covardes. Outros
dizem que representa a alma e é a flor da morte e que crescerá sobre a
campa de um homem que tenha sido executado. Na Igreja, a açucena
há muito que é símbolo da pureza e da ressurreição...
O padre Gonsção estava de pé no que restava da sombra matinal,
no portão das traseiras da Santa Casa. Encostou-se para trás, contra a parede
de estuque e ficou à espera. Tinha passado a noite averiguando se a Santa
Casa tinha, de fato, o corpo do feiticeiro Cartago num caixão, numa cela
úmida e fria. Ninguém tinha vindo reclamá-lo. Talvez porque
compreensivelmente, quem quer que o fizesse, ficaria imediatamente sobre
suspeita de conluio com a cabala de feiticeiro.
Gonsção tinha falado com o monge que examinara o corpo. O
monge tinha sido bastante convicto: Cartago estava morto, fora de qualquer
dúvida.
Terão estes jesuítas descido tão baixo ao ponto de recorrerem a
ardis e mentiras para ajudarem os seus conterrâneos? Ter-se-ão esquecido
que o dever para com Deus vem antes do dever para com a nação?
Lá em baixo, no fundo da rua e entre os empurrões do povo, vinham
a chegar, com passo vigoroso, o velho padre Estêvão e o corpulento Irmão
Andrew.
Bem. Têm muito que provar estes paulistas. E se não conseguirem
aprenderão que nós na Santa Casa não aceitamos de ânimo leve tal loucura.
O portão ao seu lado abriu-se e o Irmão Timóteo saiu a correr, todo
ele pernas e braços num rodopio.
- Ah, estais aí, padre! - Correu até ele e agarrou a manga de
Gonsção. - O inglês! O Domine Sadrinho começou o seu julgamento, quando
ele nem sequer está ainda suficientemente bem. Tendes de vir!
- Santa Maria! - suspirou Gonsção. Depois repreendeu-se pelo
desabafo. É claro que Sadrinho não me informou. Olhou para trás em direção
aos jesuítas que se estavam a aproximar. Seriam eles parte do plano dele para
me distrair, ou serão um problema à parte?
- Padre, por favor!
- Sim, Timóteo. Obrigado. Irei imediatamente. Mas tenho de vos
pedir uma coisa. Aqueles dois paulistas vêm falar comigo. O que têm para
dizer é muito importante, por isso quero que os convideis para o tribunal. Não
tenhais medo do Domine. Ele vai querer ouvir o que eles dizem. Eu assumirei
a responsabilidade toda.
Perplexo, mas obediente o rapaz disse:
- Como desejardes, padre - e correu para a rua para interceptar os
jesuítas.
Gonsção entrou para dentro do portão e dirigiu-se a largos passos,
tão depressa quanto pôde, para a sala de audiências. Se os paulistas forem
manobra de Sadrinho, eu posso, pelo menos, embaraçá-lo. Se não são, podem
tornar-se um incômodo e podem fazer-me ganhar tempo para descobrir mais
coisas. Se puderem fazer o que dizem... bem, não é todos os dias que se
assiste a um milagre.
Os guardas à porta da Sala de Audiências ficaram assustados, mas
não barraram a entrada de Gonsção. Este abriu de rompante as portas da
sala, gratificado por ver a surpresa no rosto de Sadrinho.
A audiência já estava evidentemente a decorrer havia algum tempo,
mas havia pouca gente a assistir. Estavam presentes os inquisidores Sadrinho
e Pinto, assim como o secretário, que olhava para trás e para a frente entre os
inquisidores e Gonsção, com perplexidade. Mas as sete testemunhas
requeridas não se viam em parte alguma, nem tão-pouco o arcebispo. Ainda
mais curioso. Na cabeceira da mesa mais próxima, de costas para Gonsção,
estava o jovem e loiro inglês, atendido pelo seu guarda de cela, fortemente
musculado. O inglês parecia pálido e cansado.
- Perdoai-me a minha chegada tardia, Domine - disse Gonsção, com
uma vênia apressada. - Mas acabei de saber agora que este julgamento se
estava a realizar.
Sadrinho fez um sorriso enjoado.
- Perdoai-nos, padre, mas não nos foi possível localizar-vos, a fim de
vos informar.
- Com certeza. Eu estive fora, recolhendo informações pertinentes
para este caso. De fato, por espantosa coincidência, fui contatado por dois
homens que podem trazer evidência valiosa. Estarão aqui em breve.
Gonsção deu a volta à mesa e ficou de pé atrás da secretária.
- Se me permitirem rever o que já foi dito? - Gonsção folheou as
páginas já passadas do livro-mestre e esquadrinhou as notas. O sorriso de
Sadrinho fundiu-se num franzir de testa.
- Pedistes a outros para virem a este tribunal, sem a minha
permissão? Isso é impossível, padre.
- Compreendo. Em circunstâncias normais eu nunca pensaria em
fazer tal coisa. Mas o que estes homens me disseram é tão... extraordinário,
Domine, que depois de os terdes ouvido, tenho a certeza de que haveis de
concordar com o meu julgamento. Ah, aqui estão eles.
Os jesuítas estavam à porta, espreitando para dentro ansiosamente.
O inquisidor Sadrinho olhou-os fixamente por um momento e
depois levantou-se da cadeira.
- Padre Estêvão. De certa forma não estou surpreendido. Padre
Gonsção, lamento informar-vos de que cometestes um erro. O padre Estêvão
pede clemência para qualquer dos seus antigos compatriotas. Tenho a certeza
que não tem nada para oferecer relativamente a este caso particular.
Gonsção não conseguia ler nada no rosto sem expressão do
inquisidor.
- Se pelo menos os ouvirdes, Domine, podereis ficar a pensar de um
modo diferente. - Gonsção fez sinal aos dois monges para entrarem.
O velho jesuíta imediatamente foi colocar-se ao lado do jovem inglês
e murmurou-lhe algo na sua língua gutural e sibilante. O jovem ficou
surpreendido e aparentemente satisfeito por vê-lo.
O monge escocês aproximou-se com mais precaução. Não sem
razão, poder-se-ia dizer, pois quando o jovem inglês viu o corpulento monge,
levantou-se e rosnou uma palavra que até Gonsção compreendeu.
Parece que a palavra ”filho bastardo” é semelhante em todas as
línguas. Então eles conhecem-se. Isto está a tornar-se ainda mais
interessante.
- Os vossos visitantes estão a perturbar o nosso hóspede - disse
Sadrinho. - Com todo o respeito, padre Gonsção, devo insistir em que estes
dois homens se vão embora, antes de continuarmos este julgamento.
- Peço apenas um momento da vossa paciência, Domine. Pois eu
acredito firmemente que o cardeal Albrecht há-de achar o testemunho deles de
interesse e portanto vós deveis tomar conhecimento dele.
O nome do grande inquisidor pareceu dar uma pausa a Sadrinho.
- Muito bem. Um momento então. Falai.
- Este é o Irmão Andrew da Escócia. Por favor, dizei a este tribunal,
Irmão, o que me dissestes.
O monge robusto sorriu para o inquisidor.
- Alegrai-vos, pois trago-vos alegres notícias, Domine. O homem que
vós tendes procurado, na verdade, Bernardo de Cartago, não está morto.
Gonsção tossiu. Este homem ousa gracejar com as Escrituras?
Sadrinho, é claro que não vai reconhecer isto.
- Não está morto? - disse Sadrinho, erguendo uma sobrancelha. A
boca torceu-se num sorriso divertido e ele olhou para o inquisidor Pinto. O
homem mais pequeno abanou a cabeça.
- Que estranho - Sadrinho continuou. - Não é então seu o corpo que
jaz num caixão nas nossas celas?
- Pode ser o seu corpus, de fato - disse o Irmão Andrew -, mas num
estado de profundo torpor, não de morto. Como expliquei ao bom padre, os
pagãos faquires e os iogues desta terra são capazes de fingir a morte durante
longos períodos de tempo. Sugiro-vos que Cartago aprendeu este truque a fim
de escapar ao vosso escrutínio. Em atenção ao pobre inocente senhor
Chinnery, ofereço-me para acordar o feiticeiro para vós.
- Acordá-lo? - disse Sadrinho. - Por que meios?
- Oração e uma relíquia.
- Que relíquia pode ser essa?
- Uma mistura em pó de ervas secas e do sangue seco de Santa
Margarita. Da minha terra. Eu trago isto sempre comigo.
- Sangue em pó? - Sadrinho ficou muito sossegado. Como um gato
que sentiu movimento na relva.
- Sim, Domine.
Poderia este ser o mesmo pó sobre o qual Timóteo disse já ter lido
no livro mestre?, pensou Gonsção. O pó que levou homens de bem a duvidar
da sua fé? Não admira que Sadrinho esteja fascinado.
- Devíeis ensinar mais precaução à vossa língua, Irmão Andrew -
disse Gonsção -, ou as pessoas poderão assumir que vós próprio sois um
feiticeiro.
- Eu? Que Deus me leve neste momento, se assim é. Aprendi o que
sei sobre feitiçaria em Maleus Maleficarum, um texto para vencer as bruxas,
sem as emular. Concedeis-me, Domine, a hipótese de provar o que digo? - O
Irmão Andrew cruzou as mãos na barriga e esperou.
Dir-se-ia que a surpresa que trouxe a Sadrinho é melhor do que eu
tinha planeado.
- É claro - continuou o Irmão Andrew -, isto é, com a condição, de
que se eu for bem-sucedido em acordar o feiticeiro, vós liberteis o jovem inglês
para ficar ao nosso cuidado.
Foi a vez de Gonsção ficar surpreendido.
- Eu nunca fiz tal acordo convosco. A Inquisição não negocia com
almas como um cambista no mercado!
- Isso nem sempre foi verdade - disse o padre Estêvão. Na minha
experiência, o valor de uma alma nem sempre está para além de qualquer
preço. Até o velho Abraão negociou com Deus pelas almas do seu povo.
- Domine, peço desculpa.
Mas Sadrinho ergueu a mão:
- Não, não é necessário pedir desculpa, padre. Tivestes razão ao
trazer aqui estes homens. Penso que há muito a aprender com este Irmão
Andrew.
- E, é claro, se eu falhar - disse o monge escocês -, ter-me-eis à
vossa mercê para fazerdes comigo o que quiserdes.
- Falais como se a Santa Casa procurasse ativamente almas para
julgar.
- O entusiasmo da Inquisição nos seus deveres é lendário - disse o
Irmão Andrew.
- Apenas porque o nosso propósito é mal compreendido disse
Sadrinho. - Mas aceitaremos a vossa proposta, Irmão, com a condição de que,
se falhardes, o padre Estêvão também sofra todas as conseqüências que vos
ocorrerem a vós.
O padre Estêvão lançou um olhar preocupado ao monge escocês.
Com um suspiro, benzeu-se e disse:
- Assim concordo. Que Deus me ajude. Sadrinho concordou.
- Excelente. Este julgamento fica suspenso, enquanto testamos a
pretensão do Irmão Andrew. - Então apanhou de cima da mesa a campainha
de prata e fê-la tocar duas vezes. Os dois guardas da porta entraram, com as
mãos nos bastões. - Ide à casa mortuária e trazei o corpo do senhor Bernardo
De Cartago.
- Trazê-lo para aqui, Domine?
- Foi o que eu disse, não foi?
Os guardas curvaram-se e partiram imediatamente.
Durante o desconfortável quarto de hora que se seguiu, o padre
Estêvão rezou com o jovem inglês, que parecia não compreender o que se
estava a passar. O inquisidor Pinto mexia-se na cadeira e beliscava a manga
da batina. O inquisidor observava o Irmão Andrew com ar de predador. Que
loucura é que eu pus em movimento?, pensava Gonsção.
Os guardas voltaram, trazendo aos ombros um caixão de madeira
simples. Os rostos enrugavam-se-lhes com nojo enquanto colocavam o caixão
sobre a longa mesa, empurrando o missal e a campainha de prata para fora do
caminho. Gravadas na tampa do caixão, estavam as letras M.N.,
representando Morto Negatio, o que indicava que os restos que continha, eram
de alguém que tinha morrido sem se arrepender.
O cheiro que vinha do caixão era bastante eloqüente quanto ao seu
conteúdo.
- Dir-se-ia - disse Gonsção, enquanto dava a volta à mesa para se
colocar ao lado dos jesuítas - que tendes muito que provar.
Sadrinho observava com uma curiosidade calma. O inquisidor Pinto
levantou-se e afastou-se da mesa, benzendo-se. O jovem inglês também se
afastou até que chocou com o seu guarda de cela, que firmemente o segurou
pelos ombros. O secretário pôs-se pálido e escreveu umas poucas notas
hesitantes no livro mestre. Os guardas que tinham trazido o caixão pareciam
preferir encontrar-se em qualquer outro lugar.
- Abram-no - disse Sadrinho.
Estes estremeceram, mas os outros guardas tiraram os bastões dos
cintos. Bateram então na campa do caixão, até que esta caiu e tilintou sobre a
mesa. Um ar fétido espalhou-se para fora do caixão e os guardas cambalearam
para trás, com as mãos sobre os rostos, tossindo.
Gonsção tapou o nariz com a manga do hábito e espreitou para
dentro do caixão. O cadáver barbudo estava nu com exceção de um tecido de
algodão manchado, colocado sobre as coxas. A pele estava cinzenta e o
abdómen ligeiramente distendido devido ao inchaço. As iniciais M.M. tinham
também sido gravadas na pele do peito do feiticeiro, provavelmente pelo monge
que fez o exame final. A carne de um pulso tinha sido comida por algum rato
oportunista.
- Morte fingida dissestes vós, Irmão?
- Sim - disse o Irmão Andrew. - Notável, não é? Gonsção afastou-se
e apontou para o cadáver.
- Nesse caso, de qualquer modo, acordai-o ou mostrai-nos a
magnitude da vossa loucura.
O Irmão Andrew retirou da manga um pedaço de pergaminho
enrolado e abriu-o cuidadosamente.
- Se começardes com as orações, padre Estêvão - disse ele,
curvando-se sobre um lado do caixão. O velho monge rolou os olhos para o
céu e benzeu-se. Suavemente começou a entoar a ave-maria.
De uma bolsa pendurada na cintura, o Irmão Andrew retirou um
pequeno frasco opalescente e puxou pela rolha de cortiça.
- Não! - gritou o jovem inglês. Atirou-se contra o monge escocês,
mas foi detido pelo guarda da sua cela.
O Irmão Andrew murmurou-lhe algo. Sadrinho ergueu as
sobrancelhas e aproximou-se do jovem.
- Reconheceis o frasco, não é? - disse em latim. O louro inglês olhou
para o chão e não falou. - Por favor continuai, Irmão Andrew - disse Sadrinho.
O padre Stevens estava agora no Pai Nosso, enquanto o monge
escocês destapava o frasco e deitava um fino pó acastanhado sobre a boca de
Cartago. O pó borbulhou e liquefez-se, tornando-se de um carmesim profundo
enquanto penetrava entre os lábios cinzentos.
Já ouvi dizer que o sangue dos santos mártires por vezes se torna
líquido em dias de festas ou ocasiões de grande importância, pensou Gonsção.
Será isto um tal milagre? Ou é o sangue de uma besta mítica, como diz
Timóteo e nós estamos a cometer um crime hediondo.
O Irmão Andrew voltou a tapar o frasco e colocou-o de novo na
bolsa do cinto. Um longo minuto decorreu, enquanto todos olhavam para o
homem do caixão.
- Então? - disse Sadrinho.
- Talvez, por ele ter estado tanto tempo em torpor, agora o pó seja
lento a fazer efeito.
Gonsção suspirou aborrecido e afastou-se.
Então ouviu um baque atrás de si. O que se passa agora? Apesar de
tudo voltou-se para ver. O caixão saltava violentamente na mesa, sem que
ninguém lhe tocasse. Deus de misericórdia, será que... O caixão abanou uma
vez mais. O Irmão Andrew disse:
- Estais vendo? Finalmente ele acorda do seu sono de paz.
- Que Deus nos ajude - murmurou o padre Stevens horrorizado e
benzeu-se de novo.
O jovem inglês escondeu a face nas mãos. O pálido secretário
parecia pronto a enfiar-se debaixo da mesa. Os guardas que tinham trazido o
caixão, deram um passo para trás, com os bastões prontos a agir. Com o
coração a bater, Gonsção avançou até ao caixão e olhou para dentro.
O corpo cinzento estremeceu. Os olhos abriram-se.
- Ergue-te, tu, lázaro malcheiroso! - declarou o Irmão Andrew. - Em
nome do Todo-Poderoso, levanta-te e enfrenta o mundo com o resto de nós,
almas sofredoras.
Os braços tremiam-lhe como um homem com paralisia, mas o
feiticeiro ergueu-se e segurou ambos os lados do caixão. O pulso mordido
vertia sangue negro, mas a pele estava a crescer sobre a ferida. Gonsção de
novo cobriu o rosto com a manga.
Sangue em pó que traz os mortos à vida, tal como Timóteo tinha
dito. O sangue de um monstro. O que é que nós fizemos? Arrancamos nós
uma alma atormentada das profundezas do inferno?
Lentamente, o homem que estivera morto ergueu-se para uma
posição sentada. A cabeça balançava sobre o pescoço e os músculos sofreram
espasmos incontroláveis. O seu olhar terrível abrangeu a sala e todos os que lá
se encontravam, os olhos vermelhos ensangüentados brilhando com horror e
acusação. Então fixou o olhar sobre Sadrinho e abriu a boca, revelando uma
massa negra de carne podre. A queixada moveu-se para falar, mas, em vez
disso, emitiu um rugido alto e estrangulado.
- Então - murmurou o inquisidor -, é verdade. - E sorriu. Isto foi de
mais para o secretário, que fugiu da sala lamuriando orações.
Cartago rodou a cabeça para enfrentar o Irmão Andrew e rosnou
algo obscuro e incompreensível. Se ele proferir pragas, eu fico cheio de medo,
pensou Gonsção.
O Irmão Andrew empalideceu, mas disse:
- São estes os agradecimentos que eu mereço, senhor, por vos
despertar de um torpor malévolo?
Cartago não falou, mas o seu olhar maligno foi eloqüente.
- Sabeis onde estais, senhor Cartago? - perguntou Gonsção tão
energicamente quanto pôde. - Esta é a Santa Casa. A blasfêmia e a feitiçaria
não serão aqui toleradas. Seja qual for o pesadelo de onde viestes, nesta Santa
Casa tereis de vos comportar de maneira correta.
Cartago voltou a olhar para Gonsção. Acenou uma vez, sagazmente,
e Gonsção sentiu-se gelar até ao coração. Com a mão a tremer, retirou o
rosário do cinto e ergueu o crucifixo à sua frente.
O feiticeiro ressuscitado fez um sorriso demoníaco e emitiu uma
gargalhada semelhante a um grunhido.
- Eu não seria tão temerário, senhor Cartago - disse Sadrinho. -
Pois o vosso companheiro de viagem - e indicou o jovem inglês - entregou-nos
isto. - E mostrou o pequeno rolo de pergaminho. Cartago voltou a cabeça para
olhar furiosamente para o jovem inglês.
Em latim, o jovem disse:
- Não, Magister, eu não lho dei. Eles procuraram nas minhas
roupas e acharam-no. Eu não lhes disse nada. - Talvez compreendendo a
indiscrição das suas palavras, o senhor Chinnery fechou a boca e os olhos e
desviou o rosto.
O Irmão Andrew engoliu o fôlego e fez estalar a língua. Sadrinho
ignorou o desabafo do inglês e estendeu a mão para o Irmão Andrew.
- Dai-me o frasco. - O Irmão Andrew hesitou e os guardas
aproximaram-se dele. Com um suspiro, tirou o frasco da bolsa uma vez mais e
deu-o ao inquisidor.
- Já não resta muito. - Do caixão veio um outro rugido e Cartago
balançou um braço cinzento e delgado em direção ao inquisidor. Sadrinho
saiu habilmente do alcance do feiticeiro. Mas Cartago tinha-se inclinado de
mais e ele e o caixão tombaram da mesa para o chão.
- Pobre homem - disse Sadrinho. - Ele não deve estar ainda...
completamente acordado. Um de vós, leve-o para uma cela onde possa
descansar antes de o interrogarmos.
Os rostos dos guardas ficaram pálidos.
- Por favor, não, Domine.
- Se precisais de descansar também, há muitas celas vazias e
disponíveis.
Gonsção sabia que devia interferir - não era conveniente ameaçar os
servos da Santa Casa de tal maneira. Mas também estava ansioso por ver ser
removido da sua vista o terrível feiticeiro ressuscitado.
Através de gestos, os guardas determinaram qual deles assumiria o
horrendo dever. O infeliz escolhido ergueu o caixão de novo para cima da mesa
e levantou nos braços o feiticeiro, fazendo um esgar de asco. Cartago agitou os
braços e as pernas e tentou bater no guarda com os punhos. Mas os músculos
ainda pareciam não lhe obedecer à vontade e a força estava claramente a
faltar-lhe. Os seus músculos eram fracos e a maioria falhava o alvo.
- Tratai-o com gentileza - disse Sadrinho. - A sua alma é preciosa
para nós, tendo sido recuperada a tanto custo. Não queremos que ele durma
de novo profundamente tão cedo.
- Sim, Domine - rosnou o infeliz guarda, partindo rapidamente com
o seu fardo horripilante.
Toda a gente no salão suspirou de alívio assim que o feiticeiro foi
levado. Gonsção baixou o crucifixo. Meu Deus, perdoai-nos.
- O ar já cheira melhor - murmurou Sadrinho.
O jovem inglês tossiu e começou a ficar com vontade de vomitar.
- Levai o senhor Chinnery de volta à sua cela, por favor disse
Sadrinho para o guarda da cela, que pareceu muito feliz por lhe obedecer.
- Esperai - disse o Irmão Andrew. - Vós concordastes que ele nos
seria entregue, se eu acordasse o vosso feiticeiro.
Gonsção ficou maravilhado com a máscara de compaixão que
surgiu no rosto do inquisidor.
- Mas claramente - disse Sadrinho - deveis ver que o jovem está
demasiado doente para viajar. Ele tem de recuperar primeiro. E as
formalidades próprias devem ser escritas e assinadas. - Sadrinho acenou para
o guarda da cela, que levou o inglês para fora da sala.
- Esperava que fôsseis um homem de palavra, Domine disse o padre
Stevens.
- Já a quebrei? - disse Sadrinho. - Tenho toda a esperança de que o
senhor Chinnery deixe em breve a Santa Casa. Asseguro-vos que sereis
informado quando ele o fizer. Agora devo pedir-vos para abandonar este local,
padre Estêvão. Já quebramos várias determinações ao permitir a vossa visita,
mas dadas as circunstâncias extraordinárias, eu não vou cobrar isso de vós.
- Muito bem - resmungou o padre Stevens. - Ficaremos à espera.
Vamos, Irmão - disse ele para o monge escocês.
- Não - disse Gonsção. - Tenho de pedir ao Irmão Andrew que fique
conosco um pouco mais. Afinal de contas, pode ser que tenhamos acabado de
assistir a um milagre e nós devemos tomar tanto conhecimento quanto
possível sobre o caso. O grande inquisidor Albrecht, em Lisboa, gostaria sem
dúvida de saber disto. Por outro lado, se foi feitiçaria o Irmão Andrew devia
estar preocupado com o estado da sua alma. Para seu próprio bem, ele deve
ficar e discutir esta espantosa ocorrência conosco, posteriormente.
Sadrinho acenou para Gonsção, com um toque de admiração no
olhar.
- Exatamente os meus pensamentos, padre. Há muito neste
mistério a ser explorado. Por favor, ficai, Irmão Andrew. Estou ansioso para
ouvir tudo sobre esta espantosa relíquia que nos trouxestes.
- Mas digo-vos, não houve milagre nenhum, nem feitiçaria a atuar
aqui - protestou o irmão Andrew -, somente um truque hindu que eu fui capaz
de frustrar com orações e uma pitada de pó.
- Oh, eu gosto de ouvir falar dos truques hindus - disse Sadrinho.
- Talvez possais ensinar-nos o que fazer, para não voltarmos a ser
enganados. Bom dia, padre Estêvão.
O velho jesuíta suspirou e deu ao inquisidor um aceno seco. Para o
monge escocês disse:
- Que o bom Deus vos conserve e vos proteja... - E partiu com fadiga
no andar.
Mal o padre Stevens saiu a porta, Gonsção voltou-se para o monge
escocês.
- Por favor, sentai-vos conosco, Irmão Andrew. Dizei-nos
exatamente onde arranjastes esta relíquia. O sangue de Santa Margarita,
dizeis vós? Ela deve ter sido uma mártir de obra rara.
O Irmão Andrew nem falou. Sadrinho abanou a cabeça.
- Padre, vós estais demasiado impaciente. Esquecestes como os
homens são levados a falar a verdade.
- Seguramente que não me ides pôr sobre interrogatório? disse o
Irmão Andrew.
- O estado da vossa alma é preocupação da vossa ordem, Irmão.
Nós temos o dever de a informar de qualquer transgressão que observemos.
Compete ao vosso superior dar-vos a penitência que for requerida. Mas tenho
a certeza que isso não será necessário e que as vossas respostas a umas
quantas questões nos devem satisfazer. Notei, por exemplo que o senhor
Cartago parecia reconhecer-vos. Conhecei-lo?
- Eu... era passageiro no navio inglês que o capturou.
- Os hereges ingleses permitem a um jesuíta viajar com eles?
- Nem todos os ingleses são preconceituosos e o meu dinheiro para
a passagem foi considerado tão bom como o de qualquer outro homem.
- Compreendo - disse Gonsção. - E o senhor Chinnery parecia
reconhecer-vos também. Ele também estava no barco?
- Estava, padre. O jovem inglês é um ervanário e um curandeiro.
Naturalmente que o nosso trabalho por vezes se sobrepunha.
- Ah! Mas o cumprimento que ele vos fez agora mesmo, não foi o
que eu chamaria amigável.
- Não. Nós... tivemos uma discussão antes de nos separarmos.
- Hum. Há sobreposição entre o trabalho dos ervanários e o dos
bruxos. Alguma vez vistes tal feitiçaria executada pelo senhor Chinnery?
- Não, nunca.
- Notei que o senhor Cartago reconheceu o frasco do pó miraculoso.
Ele deve tê-lo visto antes, não?
- De fato eu tinha-lo mostrado.
- E ao senhor Chinnery também?
- Sim, é claro.
- Com certeza. E dir-se-ia que o senhor Chinnery sabia a
importância do seu conteúdo, dada a sua reação quando vós o exibistes aqui.
Alguma vez lhe emprestastes o pó para... acordar faquires?
- Ele usou-o uma vez, para fazer um camareiro sair do torpor.
- Devo compreender - disse Gonsção - que um herege inglês confiou
numa relíquia papista? Ouvi dizer que alguns preferiram morrer a fazer tal
coisa.
O monge escocês encolheu os ombros.
- Ele conhecia a sua eficácia e curar, para ele, era de uma
importância primordial.
- Mais importante que a sua alma?
- Certamente - disse Andrew com um sorriso ansioso -, as orações
ditas com a aplicação do pó, protegiam-lhe a alma do mal.
- Sabeis uma coisa - disse Gonsção -, há certas pessoas que se
auto-intitulam de feiticeiros brancos e que afirmam que a oração é a parte
mais importante da sua feitiçaria. Eu acho isto mais hediondo do que a Arte
Negra, pois estas pessoas seriam capazes de utilizar os anjos como escravos
para ficarem às suas ordens. Eu não acredito, Irmão, que a oração seja
suficiente para salvar a alma de um homem, se ele a acompanhar com ações
infames. Autorizastes o senhor Cartago a usar o pó?
- Não!
- Mas ele sabia o que aquilo era.
- Nós tínhamos ouvido dizer que ele era um alquimista e o senhor
Chinnery estava com falta de remédios. Então discutimos com ele o que
possuíamos e se ele tinha conhecimentos ou provisões para nos ajudar.
- Confiastes no conhecimento de um feiticeiro?
- Não tínhamos provas de que ele fosse um feiticeiro, nem ele nunca
afirmou sê-lo. E até os homens maus podem dar informações úteis.
Gonsção suspirou e deu alguns passos em direção à cruz gigantesca
pendurada na parede.
- Na verdade gostaríamos de acreditar em vós, Irmão. Mas ouvimos
dizer que alguém a bordo do vosso barco traiu Cartago e o senhor Chinnery e
os entregou aos piratas que os trouxeram aqui para Goa. Tanto quanto sei,
esse Judas podia ter sido vós. E nesse caso nada do que vós dizeis pode ser
acreditado.
- Se eu tivesse desejado livrar-me dele - rosnou o Irmão Andrew -,
porque teria eu vindo aqui em sua ajuda?
- Isso é uma pergunta interessante. Não, não. - Gonsção ergueu a
mão. - Não faleis mais agora. Cometem-se erros, quando o homem fala com
pressa. Mas, vede. Há demasiadas peças a faltar neste puzzle e isso preocupa-
me.
- Sim - disse Sadrinho -, talvez devêsseis ficar conosco, até que o
jovem inglês se encontre bem. Estando aqui, podeis dar-lhe conselhos. Talvez
vos seja possível inculcar nele a idéia do perigo em que a sua alma se pode
encontrar. É claro que ser-vos-á permitido partir, logo que tenhamos uma
explicação mais completa e sensata. De particular interesse para mim, é a
origem desta maravilhosa relíquia. Nenhuma Santa Margarita de que eu tenha
ouvido falar, é descrita como tendo derramado sangue que cura. Deve ser a
vossa memória que temporariamente vos falhou. Dar-vos-emos tempo para
pensar e rezar, Irmão, até poderdes dar uma resposta mais razoável.
- Não me farão mal?
- Certamente que um irmão em Cristo não nos dará causa para lhe
fazermos mal. - Sadrinho acenou para o guarda que tinha ficado.
- Por aqui, por favor, Irmão - disse o guarda. - Temos um quarto
agradável disponível para vós, na nossa ala residencial.
Os punhos abriram-se e cerraram-se mas o monge escocês
finalmente cedeu.
- Até mais tarde, então, Domine, padre. - E permitiu que o levassem
da sala.
- E que Deus vos acompanhe também, Irmão - disse Gonsção,
embora o Irmão Andrew já não o pudesse ouvir.
Sadrinho baixou os olhos para o frasco opalescente na sua mão e
tocou-lhe quase amorosamente.
- Devo agradecer-vos, padre. Fizestes mais pela nossa investigação
do que alguma vez esperei.
- Far-me-eis então o favor de me confiar o que sabeis, para que eu
possa compreender melhor o que vos trouxe? disse Gonsção.
- Na verdade, vós ganhastes esse direito. Sabeis, quando chegastes
ao princípio, eu estava inseguro em relação a vós, padre. Não tinha a certeza
de estarmos... a perseguir os mesmos objetivos. Agora, dir-se-ia que quaisquer
que fossem as nossas intenções originais, as nossas flechas voam para o
mesmo alvo. Vinde ao meu escritório depois das vésperas, amanhã. Todo o
conhecimento que eu tenho será vosso também.
- Porque esperar tanto? Não podeis dizer-mo agora?
- Há algumas idéias que eu devo pôr em ordem, de forma a que vos
possa apresentá-las como um todo coerente. Mas ides ouvir tudo. Prometo-
vos. - Sorrindo como uma criança com um brinquedo há muito desejado,
Sadrinho levou o frasco ao peito e saiu da sala.
- O que fizestes? - Veio um sussurro alto por detrás de Gonsção.
Este voltou-se. O inquisidor Pinto, que tinha estado num canto afastado da
sala, tão silencioso que Gonsção se tinha esquecido da sua presença,
aproximou-se, com as bainhas do seu hábito negro a varrer o chão. Veio direto
a Gonsção, com uma expressão fechada no seu rosto pequeno e bonito.
- Isso é que espero vir eu próprio a saber, Domine.
- Não vedes? Pensava que tínheis vindo a Goa para levar de volta
esta Santa Casa aos seus verdadeiros deveres e preocupações. Este... Pulvis
mimbile tem sido uma obsessão para Sadrinho, desde que soube da sua
existência. Não tem pensado praticamente em mais nada e agora vós trazeis-
lhe para dentro das nossas próprias paredes, a mesma coisa que eu tanto
tenho rezado para ele abandonar. Não haverá fim para isto, agora. Estamos
arruinados. Que Deus tenha piedade de nós.
- Perdoai-me - começou Gonsção a dizer, mas percebeu que estava
a falar para as costas do inquisidor Pinto que se afastara entretanto.
Gonsção sentiu os ombros a vergarem-se e não sabia se era do peso
da responsabilidade ou do cansaço. Sendo o último a abandonar a grande
Sala de Audiências, Gonsção fechou as portas atrás de si e permaneceu algum
tempo no vestíbulo.
Deu por si a olhar para a parede, na qual estava pendurado o
emblema da Ordem Dominicana. Representava São Domingos segurando um
ramo de oliveira numa mão e uma espada na outra. Por baixo do santo estava
um cão, com uma marca de queimadura na boca e um globo sobre o qual
estava uma cruz. Numa bandeira sobre a cabeça do santo, estavam escritas as
palavras ”Justitia et Misericórdia”.
Tinha sido São Domingos quem, quando soldado, dissera:
- Matem-nos todos. Deus saberá quem são os seus. - Meu Deus,
pensou Gonsção, quem dera que vós pudésseis atribuir-nos esse mesmo
poder, saber quem são os nossos e os que não são, enquanto ainda estão
vivos.
Capítulo XVII
AZEVINHO: Este arbusto está sempre verde e dá folhas com
espinhos. No princípio do Verão dá flores brancas que, no Outono, se
transformam em bagas vermelhas. Deve tomar-se cuidado no seu uso
porque as bagas são venenosas para as crianças. Diz-se que a cruz de
Cristo foi talhada de madeira de azevinho e como penitência o azevinho
nunca mais ficou um arbusto alto. Também se pensa que a coroa de
espinhos foi feita de azevinho e que as bagas, que antigamente eram
amarelas, se tornaram vermelhas com o sangue de Nosso Senhor. Os
Galeses acreditam que levar azevinho para casa na véspera de Natal,
convida a discussões. Levá-lo para casa de um amigo é levar a morte.
Da mesma forma, é perigoso apanhar azevinho que esteja a florir e pisar
as suas bagas traz má sorte...
Thomas estava sentado balouçando-se no catre da sua cela, com o
queixo nos joelhos e os pensamentos tão caóticos como uma nuvem de
mosquitos. Por que razão é que eu falei, quando Cartago olhou para mim?
Certamente que me condenei. Por que razão apareceu Lockheart disfarçado de
monge, para desafiar a Santa Casa e trazer o alquimista de regresso à vida?
Teria ele acreditado, de fato, que isso me libertaria? Estou rodeado por loucos,
juiz e salvador igualmente. Que Deus permita que eu retenha alguma
aparência do meu próprio senso comum. Vou necessitar de todo o que tenho,
para resistir e escapar deste lugar.
As portas da cela bateram e o seu já familiar guarda entrou. Atrás
dele surgiu Timóteo, transportando um grande rolo de pergaminho atado com
uma fita vermelha.
- Boa noite, Irmãozinho - disse Thomas. - Agradeço-vos pela ajuda
que tentastes dar no meu julgamento. Foi uma pena terdes de sair tão cedo.
Perdestes um espetáculo verdadeiramente extraordinário.
O Irmão Timóteo não o olhou nos olhos e o seu rosto era muito
grave.
- Assim me disseram, senhor - e pôs o pergaminho enrolado no leito
ao lado de Thomas.
- O que é isto que me trazeis?
- Trago o único conselho permissível a alguém que esteja no vosso
lugar, senhor. Deveis perscrutar a vossa alma, examinar os vossos pecados e
pedir perdão a Deus. Este documento é uma declaração de confissão, senhor.
Domine Sadrinho diz que se vós assinardes isto, abrirá caminho para a vossa
libertação. Ele crê que fostes desviado do bom caminho por outros e sabe que
podeis ser perdoado.
Thomas recuou afastando-se do pergaminho, como se ele fosse fogo.
- Pensava que estavam a ser feitas diligências para me libertarem e
me deixarem ao cuidado do padre Stevens.
Timóteo suspirou.
- Sereis libertado, senhor. Mas é o dever da Santa Casa cuidar da
vossa alma. Se nós vos deixássemos ir embora sem vos dar a hipótese da
confissão, seria como se vos estivéssemos a mandar para o Inferno.
Ah. Eu ainda sou um herege e não me é permitido partir assim.
- Que pecados é que este documento... me permite confessar?
O rapaz lançou um olhar fugidio ao guarda que estava a examinar
as unhas indolentemente.
- Heresia, senhor. E feitiçaria. Não sei que mais.
E eu tinha pensado que a minha alma estava em perigo agora.
Confessar heresia seria renunciar à fé em que tinha nascido e sido batizado.
Renunciar a isso! No Livro dos Mártires de Fox, Thomas tinha lido sobre muita
gente que morreu em tormento durante o reinado sangrento de Mary Stuart,
porque preferiram a morte a tornarem-se apóstatas.
Terei eu tanta coragem quanto eles? Quando estou tão perto de
escapar desta loucura?
- Certamente - disse ele para Timóteo - que não sabeis o que pedis.
Com os olhos tristes, o rapaz disse:
- Não sou eu quem pede, mas se fosse o meu dever, eu pediria. Não
quero que a vossa alma seja reclamada pelo Danado.
O rapaz acredita piamente no que a Inquisição ensina.
- Isto é difícil de explicar, Irmãozinho, mas de acordo com a minha
fé, ao darem-me isto para assinar é precisamente o que pode acontecer.
Timóteo abanou a cabeça.
- Isso não pode ser verdade. A vossa igreja herege mentiu-vos.
Ou a tua a ti. Controlando a fúria, Thomas disse:
- Penso que não.
- Deus vê a verdade - disse Timóteo -, e Domine Sadrinho e todos os
inquisidores são inspirados por Deus.
Se é assim, que o Céu nos ajude, pensou Thomas. Não tinha mais
argumentos para oferecer, perante a fé inabalável do rapaz.
- O que fará o Domine inquisidor se eu assinar? O rapaz apertou os
lábios.
- Não sei exatamente, senhor. Os que se confessam e são
absolvidos, normalmente permanecem como convidados da Santa Casa até ao
próximo auto-de-fé. Nessa altura a sentença é dada e são libertados para o
mundo, para esperar a justiça do governador.
- Compreendo. Quando é o próximo auto-de-fé?
- Não posso dizer, senhor.
- Quando foi o último?
- Antes do Natal, no ano passado.
- E o outro antes desse?
- Não me lembro, senhor.
- Então eu poderia ficar aqui durante anos. Que piedoso. O Irmão
Timóteo parecia prestes a chorar.
- Por favor, senhor. Outros encontraram paz aqui e alegria no
perdão de Deus. O que são anos neste mundo cheio de pecado, comparados
com a eternidade no céu?
Este rapaz vai dar um padre excelente um dia. Infelizmente.
- Antes de eu assinar, podeis dizer-me o que pode ter acontecido ao
outro jesuíta que estava no meu julgamento, o Irmão Andrew?
O guarda da porta virou-se e aclarou a garganta sonoramente.
- Não vos deveis preocupar com os outros, senhor. Pelo menos,
enquanto a vossa própria alma estiver em tal perigo.
- Compreendo. E se eu não assinar a confissão? O Irmão Timóteo
olhou para o chão.
- Então que Deus tenha misericórdia da vossa alma.
- Quereis dizer que serei morto?
O rapaz levantou de novo os olhos, chocado.
- A Santa Casa não mata!
- Não há tortura? Nenhum dos vossos hóspedes morreu às mãos
dos inquisidores?
Timóteo desviou de novo a vista.
- Os Domines fazem tudo o que podem para compelirem os
hóspedes da Santa Casa a verem a verdade.
- E se os hóspedes não conseguirem agüentar essa compulsão?
Timóteo apanhou o rolo de pergaminho e arremessou-o ao peito de
Thomas.
- Por favor, pelo amor de Deus, assine, senhor! Thomas sentiu o
coração a apertar-se-lhe. Podia assinar apenas para aliviar a terna dor que viu
na face do rapaz. Seja lá qual for o demônio que te inspira, Irmãozinho, tem
um poder mais aterrador que o próprio Satanás.
- Eu... vou pensar nisso. Por favor, preciso de tempo. Timóteo
suspirou e fez girar o documento enrolado nas suas mãos de um modo
desajeitado, antes de o voltar a colocar sobre o catre.
- Como quiserdes, senhor. Deixá-lo-ei convosco, para o caso de
Deus vos abençoar com uma mudança de coração. Voltou-se e caminhou até
ao guarda da porta. Este grunhiu uma pergunta e Timóteo abanou a cabeça.
O guarda olhou para Thomas e também abanou a cabeça, fazendo estalar a
língua, como se Thomas fosse uma criança.
O guarda e Timóteo partiram e o fechar da porta soou de um modo
invulgarmente alto, no silêncio que se seguiu.
Thomas olhou para o pergaminho e perguntou a si próprio, se
ousaria desatar a fita e lê-lo. Ou se devia simplesmente rasgá-lo. Notou algo
escuro e pontiagudo a sair de entre o pergaminho e a coberta de cama. Com
um cuidado supersticioso, a fim de não tocar no documento, Thomas deu um
puxão neste novo objeto. Era uma folha verde-amarelada, longa e estreita,
como a da planta de pimenta. Cheirou-a.
É a isto que chamam betei? Tinha ouvido dizer que era usado pelos
muçulmanos para prevenir o escorbuto. Também diziam que era ligeiramente
narcótico e que aliviava a dor. Por que razão o Irmãozinho me deu isto? Será
um aviso daquilo que está para vir?
De novo as vozes e os passos se aproximaram da cela. Thomas
enfiou a folha dentro da boca, saboreando uma aguda explosão de azedume.
As portas da cela abriram-se uma vez mais e o inquisidor Sadrinho
entrou.
- Que Deus vos dê uma boa noite, senhor - disse com um agradável
sorriso.
- Espero que sim - disse Thomas. - Viestes para me libertar? O
sorriso do inquisidor descaiu apenas ligeiramente.
- Ainda não, senhor. Fui informado que não estáveis ainda pronto.
Tínhamos a esperança de que abriríeis a alma para o perdão de Deus. Bem,
estas coisas podem levar tempo. Pensei que talvez um passeio servisse para
vos aclarar o espírito. Achamos que o exercício é muitas vezes útil para os
nossos hóspedes. Dar-me-eis o prazer da vossa companhia?
Thomas deteve-se, espantado.
- É-me dada a escolha? Sadrinho encolheu os ombros.
- Podeis ficar aqui em contemplação solitária, se preferirdes. Isto é
mais uma loucura? Estará ele a planear persuadir-me a assinar a ”confissão”?
A oferta do betei sugere uma possibilidade mais terrível. Mas se eu recusar,
ele volta novamente mais tarde.
- Muito bem. Irei.
- Bom - Sadrinho fez sinal ao guarda. Thomas levantou-se e o
guarda veio até ele e desatou-lhe os pulsos. Por um momento, Thomas teve a
esperança de que finalmente teria as mãos livres. Mas o guarda fê-lo girar
sobre si e voltou a atar-lhe os pulsos atrás das costas.
- Uma mera precaução - disse Sadrinho. - E tereis de ser outra vez
vendado.
- É necessário? Já me tendes atado. Para que precisais de me
vendar também?
- Esqueceis, senhor, que o nosso objetivo é purificar a vossa alma.
Há muita coisa que podíeis ver que vos distrairia desse fim. Não tenho desejo
nenhum de ver o nosso trabalho desfeito tão depressa. Por isso, a venda.
Assim que ele disse esta palavra o trapo negro foi colocado nos
olhos de Thomas e atado atrás da sua cabeça. O guarda deu-lhe um toque nas
costas e Thomas andou para a frente, para fora da cela.
- Posso perguntar - disse ele - se o Irmão Andrew ainda aqui está e
se é prisioneiro como eu?
Thomas sentiu uma leve pancada mordente no ombro.
- Shhh - sussurrou o guarda. O inquisidor disse:
- Não deveis falar fora do vosso quarto, a menos que eu o peça. Não
devemos distrair os outros da contemplação dos seus pecados.
Mais loucura, pensou Thomas.
Era necessário alguma concentração para caminhar atado e cego,
mesmo guiado pela mão pesada do guarda. Todavia, pelo eco dos passos,
Thomas calculou que seguiam ao longo de um corredor que tinha um espaço
aberto à direita, talvez um pátio. Estavam acima do nível do chão, porque
havia sons que ecoavam vindos de baixo.
À esquerda um homem gritou, implorando em português:
- Jesu pau! Jesu pau! - O guarda afastou-se de Thomas e este ouviu
o raspar de metal sobre metal, enquanto uma porta de cela se abria. Depois
veio o som de uma série de pancadas revoltantes, acompanhadas por gritos de
”Silêncio!” seguidos por gemidos de dor.
Thomas só podia manter-se de pé e esperar, impotente, durante o
espancamento. Mordeu com força a folha de betei guardada na bochecha e
chupou com força o sumo adstringente, esperando que o seu efeito lhe
distraísse a mente.
- Esta é a ala dos homens - disse o inquisidor calmamente, como se
nada de extraordinário se estivesse a passar. - A ala das mulheres é lá em
baixo.
E que indignidades é que sofrem as vossas hóspedes femininas?,
pensou Thomas, embora não dissesse nada. Logo depois a porta da cela
fechou-se com uma pancada e Thomas sentiu um outro empurrão nas costas.
Estarei agora manchado com o sangue daquele pobre homem?
Enquanto caminhavam, Thomas não foi capaz de dar conta das
voltas que davam de um corredor para o outro e em breve se sentiu perdido.
De vez em quando, o inquisidor dava alguma informação irrelevante, tal como:
”Aqui é onde recebemos os pedidos das famílias dos nossos hóspedes” ou
”Aqui era outrora o palácio do sultão de Goa; aqui era a zenana onde ele
mantinha o seu harém”.
Passaram por uma sala que cheirava a pão acabado de cozer,
cebolas e especiarias e Thomas ouviu o tilintar de tachos e chaleiras. Alguns
passos mais além, Sadrinho disse:
- Há escadas que descem aqui. Continuai, mas tomai cuidado com
os pés.
Thomas tateou o chão com o pé direito e desceu desajeitadamente.
Tateou depois com o pé esquerdo, para tomar a medida do próximo passo
antes de tentar dá-lo. As escadas tinham uma depressão no centro, dando a
perceber que muitos pés tinham passado por ali. Os degraus pareciam ser de
altura aproximadamente igual, por isso Thomas continuou a descer com mais
confiança.
Quando atingiu o final dos degraus, o inquisidor disse:
- Parai - e passou por ele impetuosamente. - Agora honrar-vos-
emos, senhor, com uma visão que poucos dos nossos hóspedes tiveram a
oportunidade de ver.
Ouviu o barulho de chaves a rodar numa fechadura à sua frente e
uma porta abriu-se. Uma rajada de ar fresco e úmido trouxe consigo odores
reminiscentes do Aljouvar. Por um momento, Thomas desejou estar de volta à
fétida gruta da fortaleza do governador, na companhia de homens que se
podiam compreender. Joaquim tinha o direito disso. Teria ele sido alguma vez
hóspede aqui, gostaria eu de saber?
- Tende cuidado - disse o inquisidor. - Aqui há mais escadas. Estes
degraus eram mais estreitos e irregulares e Thomas foi forçado a aperceber-se
do caminho com precaução, encostando um ombro contra uma parede de
pedra fria e úmida. Vozes fracas e sons que mal se podiam captar com o
ouvido, fizeram-lhe arrepiar a pele e pôr os cabelos em pé. Eram os gemidos de
homens e mulheres que tinham perdido por completo o juízo e a esperança,
gemendo o seu desespero para paredes duras sem ouvidos.
Os gemidos tornaram-se mais aparentes e os odores mais pesados,
enquanto Thomas descia e ele começou a perguntar a si próprio se a Santa
Casa teria uma entrada própria e privada para o Inferno.
Mas não há Beatrice ou Eurídice à minha espera para me tirar
daqui. Apenas o inquisidor. Não proclama ele ser um homem de Deus? Eu
diria que este reino ínfero é a sua verdadeira morada.
Os passos pararam num chão de pedra irregular. Thomas foi
voltado para a direita e guiado até uma sala que cheirava a lavagem recente
com água de cal. Uma porta fechou-se atrás dele e a venda foi-lhe tirada dos
olhos.
O inquisidor Sadrinho estava à sua frente, composto e simpático
como qualquer hospedeiro generoso.
- Esta é a nossa sala de interrogatórios. Os nossos hóspedes, nós
damo-nos conta, ficam muitas vezes curiosos acerca daqueles instrumentos
que empregamos para trazer de volta a Deus uma alma perdida. Pensei que
vós, como estrangeiro, pudésseis também estar interessado em vê-los.
Ah, aqui está o seu engodo. Thomas tinha ouvido falar do ritual de
mostrar os instrumentos. Para alguns prisioneiros, isso somente tinha
bastado para os fazer apóstatas e provocar confissões de heresia. O efeito
narcótico da folha de betei deu a Thomas alguma sensação de distância e
calma. Eu devia de ter a coragem de suportar esta dramatização.
A sala branca era iluminada apenas por finas velas, em candelabros
colocados perto dos cantos. Sombras sem forma vacilavam por detrás das
mesas e das máquinas irreconhecíveis de metal e madeira.
- Estas - disse Sadrinho com um gesto grandioso do braço -,
ajudam verdadeiramente a trazer a atenção da mente mundana. Aqui, por
exemplo, é a mesa sobre a qual nós administramos o potro - e orgulhosamente
ergueu um pote contendo uma tira de linho, explicando o seu uso. - Aqui está
o Trono da Virgem Bendita. - Apontou para uma cadeira com uma capota de
chumbo, cujo interior estava cercado de barras de ferro embotadas, que se
lançariam sobre as partes moles do corpo de quem quer que lá se sentasse.
Contra outra parede estava o infame ecúleo, sobre o qual os membros de uma
pessoa podiam ser esticados para além do que era possível suportar. Num
canto estavam as ”Botas Espanholas”, nas quais as pernas de um homem
podiam ser esmagadas; num outro estava uma pilha de instrumentos de
tortura para os dedos e potes para pôr o azeite a ferver.
Sadrinho expunha sobre cada um deles como um padre a enumerar
todos os tesouros sagrados da catedral. Entretanto, o guarda estava a labutar
com as cordas que atavam os punhos de Thomas. Agora, aposto que me vão
atar de novo as mãos à frente e não é com boas intenções. Se as minhas mãos
estivessem livres, eu podia saltar para a frente e estrangular o inquisidor.
Ousaria eu fazê-lo? Seria morto por isso, sem dúvida, e além do mais
condenado eternamente, mas a idéia tem o seu atrativo. Thomas quase sorriu.
- E este - Sadrinho exclamou enquanto algo novo era preso com
ganchos à volta dos pulsos de Thomas - é o polé, chamado por alguns o
strappado!
Thomas foi levantado no ar, uma agonia de dor rasgando-o dos
pulsos até aos ombros. O ar saiu-lhe rapidamente dos pulmões e tornou-se-
lhe tremendamente difícil inspirar de novo. Abriu a boca, mas não pôde
encontrar ar para gritar. A língua pendia-lhe inutilmente e o rolo da folha
mastigada de betei caiu no chão.
Sadrinho levantou-se e apanhou-o; agitou-o à frente do nariz,
depois olhou para cima, para Thomas.
- Onde arranjastes isto?
Thomas estava incapaz de responder.
Bateu com as pernas e encolheu os ombros, o que lhe deu a
sensação de que estes se iriam soltar dos encaixes e atravessar-lhe a pele. O
movimento só aumentou a dor.
- Não tem importância - disse o inquisidor. - O efeito do betei
dissipar-se-á em breve e o strappado fará sentir o seu efeito completo. Deixar-
vos-ei até lá. Sugiro que, entretanto, mediteis nos vossos pecados e peçais
orientação.
- Pelo amor de Deus, Domine! - disse Thomas ofegante. Como...
como podeis...
- Como dissestes, senhor. Por amor de Deus. - Sadrinho voltou-se e
apagou todas as velas exceto uma. Com um aceno para o guarda, partiram
ambos.
Thomas lutou contra o pânico que ameaçava inundar-lhe a mente.
Houve homens que sobreviveram a isto. Houve homens que
sobreviveram a coisas piores. Tenho de ficar calmo. Com um esforço da
vontade conseguiu acalmar os movimentos.
Meu Deus, a dor. Quando o efeito do betei desaparecer, como é que
eu vou suportá-la? Tinha visto muitos clientes virem à loja do mestre Coulter,
cada um com uma experiência diferente de dor. Alguns suportavam o que
devia ter sido uma agonia constante, com um sorriso triste. Outros gritavam
ao mais leve toque de uma lança sangrenta. Para alguns, os medicamentos
para alívio das dores eram uma bênção instantânea. Para outros, nada
resultava. Que tipo de homem sou eu?
Lembrava-se de sofrer o castigo da vara de bétula, quando criança,
às mãos do seu pai e das surras recebidas, quando andava na escola. Mas tal
dor era breve e tinha havido muito tempo para sarar depois. Thomas não
podia esperar que este tormento fosse o pior que iria sentir às mãos da
Inquisição. A menos que eu assine a danada confissão!
A corda rangeu por cima dele como a de uma âncora de um barco.
Meu Deus, até estar de volta à prisão fedorenta do Whelp. Meu Deus, se a
minha alma significa algo para ti, deixa esta corda partir-se e liberta-me. Mas
a corda permaneceu segura, enquanto ele balançava ligeiramente para trás e
para a frente, um pêndulo perdendo o impulso com o tempo.
Tentou distrair-se com pensamentos de momentos mais agradáveis.
Trouxe à mente visões de Anne Coulter, o seu rosto doce e redondo e as mãos
gentis, os olhos de avelã e o sorriso tímido. Mas estas feições foram
rapidamente substituídas pelas da senhora Aditi e por uma memória da sua
forma e perfume, enquanto ela se curvava sobre ele para lhe ajeitar o
turbante. É como se eu estivesse enfeitiçado. Oh, Anne, perdoa-me.
Tentou esvaziar a mente completamente como diziam que os
orientais faziam, para deixar a dor tornar-se meramente uma outra
característica da sala, distante dele. Focou a atenção nos sons: o pingar da
água, os gritos débeis dos que estavam em tormento, o arranhar do que podia
ser uma ratazana junto à porta.
- Thomas? - alguém sussurrou. Involuntariamente voltou a cabeça
em direção ao som, enviando uma nova dor para os seus ombros.
- Ah... quem?
- Shhh... não estrebuches, rapaz. Isso será pior. Acalma-te.
- Andrew! - Thomas respirou, tentando manter-se calmo. - Pelo
amor de Deus, homem, cortai-me as cordas!
- Não posso fazer isso. Não escapamos daqui. Eles deixam-me ver-
te, pensando que poderei oficiar a tua alma e encorajar-te a confessar.
- Se tendes um bocado que seja de caridade cristã, então aliviai um
pouco o peso nos meus braços.
- Ah, muito bem. - Lockheart saiu das sombras e pôs os braços à
volta das pernas de Thomas, elevando-o algumas polegadas. - Mas vai doer
mais quando eu te deixar cair de novo.
- Os meus agradecimentos - suspirou Thomas, engolindo o ar,
enquanto se deixava cair contra o ombro do escocês.
- Não me deram muito tempo para falar contigo, rapaz. Mas
coragem. Há esperança.
- Há? - A doçura do ar nos pulmões distraiu Thomas e os
pensamentos não lhe vinham com clareza. - Tomastes o hábito e os votos tão a
sério que as vossas preces me vão salvar?
- Este traje é apenas um disfarce que me foi emprestado pelo padre
Stevens, para me dar entrada neste terreno círculo do Hades. De algum modo,
é apropriado para mim, mas isto é uma história para outra altura. Temos de
conceber um plano para a tua fuga. Tinha pensado que um Cartago
ressuscitado seria tudo o que a Santa Casa procurava, mas apenas fiquei
perto do seu verdadeiro desejo.
- O que pode ser então?
- O pó sangrento, rapaz! Não é o feiticeiro que eles querem, mas o
seu conhecimento da fonte do sangue.
Que bizarro, que os meus interesses e os dos inquisidores possam
ser tão coincidentes.
- Mas eles têm Cartago agora. Ele pode dizer-lhes.
- Pensas que estarias nesta posição, rapaz, se ele o pudesse fazer?
Eu ouvi dizer que o pó é lento a curá-lo. A língua dele ainda está cheia de
podridão e ele não consegue falar. Não tem sensação nos membros... podem
espetá-lo e torcê-lo e nada o aflige. Ouvi dizer que pôs o melhor torturador
deles com falta de apetite.
- Uma vingança mesquinha, essa.
- Mesquinha, de fato, e a razão pela qual o inquisidor agora se dirige
para nós. Entretanto ele tem um cheiro da verdade, pois que facilmente
farejou as minhas mentiras. Mas voltando ao assunto... Cartago fez-se teu
amigo, não fez?
- Não como tal.
- Bem, então, considerou-te um companheiro de viagem, talvez. Ele
disse-te alguma coisa sobre o local onde o pó pode ser encontrado? Se sabes
algo, aí está o caminho para a tua libertação.
O mapa! Sadrinho tem-no agora. Mas Cartago teve de me dizer o
que os símbolos significavam. Então. Tenho uma carta para jogar. Mas poderei
confiar em Lockheart? Ele é bem capaz de me tirar a informação e de me
deixar aqui a apodrecer. Com um fio tão fino para pendurar as minhas
esperanças, tenho de ser astuto.
- Ele disse-te, rapaz, onde está a fonte do pó? - Lockheart abanou
as pernas de Thomas para dar ênfase. - Disse-te?
- Ah! Ficai quieto, peço-vos. Ele... ele pode tê-lo feito. Tenho de
pensar nisso. A dor... torna difícil recordar.
Lockheart suspirou.
- Pensa bem, então. Deram-te uma confissão para assinar?
- Sim, deram-me.
- Pois assina-a. Estes homens não libertam ninguém, até terem
obtido uma confissão. Isso mantém o registro deles imaculado.
- O registro deles? - disse Thomas. - E as máculas da minha alma?
Devo dizer que costumo foder cabras no cemitério, ou beber o sangue de bebes
batizados? Quereis que eu me condene a mim próprio?
- Como o nosso bom capitão Wood poderia ter dito, melhor pecar e
viver e ter mais tempo para penitência, do que morrer para nada. Tem
coragem, rapaz. Eu próprio já enfrentei muitos perigos ao longo dos anos,
porém a morte não me terá até que eu escolha a hora.
- Não? Dizei-me, Andrew. É por isso que vós traístes o capitão e
todos nós?
Lockheart fez uma pausa.
- Talvez. Talvez fosse a morte o que eu receava. Mas não quero mal
a homem nenhum. Nem sequer a ti. Foi por isso que mandei todos a terra
naquela noite, tal como tentei mandar-te a ti. Foi um duro golpe para o meu
coração, ver-te naquele barco. Mas tentei compensar os prejuízos. Arranjei
uma disputa com um bando rival dos bandidos, quando nos aproximamos de
Goa, numa altura em que eu sabia que eles te deixariam sair do carro. Tu
escapaste como eu esperava, tal como eu próprio e a senhora. Tinha pensado
que seria o fim de tudo aquilo. Depois encontrei-me com o padre Stevens para
pedir a sua ajuda e ele disse que tu tinhas sido preso.
”Conversamos longamente. Ele suplicou-me que o ajudasse a
libertar-te. A minha vergonha dominou-me e tomei isso como mais um sinal
de que os nossos destinos estão verdadeiramente entrelaçados.
- Um presságio - disse Thomas suavemente.
- Se tu assim o entendes. Por isso aqui estou eu, cativo do meu
dever e por conseguinte da Santa Casa. Apenas tu podes libertar-nos.
- Não podíeis ter partido sozinho com facilidade? Por causa das
vossas cenas teatrais, eu sou agora considerado feiticeiro e condenado ao
tormento, a menos que me condene a mim próprio. Foi verdadeiramente a
piedade o que vos trouxe aqui? Ou estais tão enfeitiçado pelo maravilhoso pó,
quanto o inquisidor? Ressuscitastes Cartago para o vosso próprio benefício e
agora voltais as vossas esperanças para mim? Talvez queirais que eu revele o
que sei para o vosso próprio ganho e uma vez na posse da informação, deixar-
me-eis aqui para morrer. Lockheart soltou as pernas de Thomas, deixando-o
cair. Uma dor dilacerante queimou os braços de Thomas, os ombros estalaram
e os pulmões perderam o ar.
- Como te atreves, rapaz! - Lockheart gritou, na voz mais áspera que
Thomas já tinha ouvido. As suas sombras eram monstruosas contra a parede
pálida. - Não fazes um raio de uma idéia do que é que eu quero! Foste tu quem
veio atrás de mim naquele barco, arrastando toda a tapeçaria dos Fados
contigo, como se estivesses atado aos seus fios urdidos e Hécate fosse o teu
mestre de fantoches! Quanto a tirar-te os segredos e a deixar-te aqui, digo-te:
nem eu, nem o que me mandou na nossa amaldiçoada viagem, acreditamos
que este deva ser o tempo e o lugar para tu morreres.
Lockheart voltou-se e caminhou para a porta da câmara.
- Enviaram-vos - arfou Thomas através da sua agonia. Quem... vos
enviou? Andrew?
Mas a porta fechou-se batendo, deixando apenas um eco como
resposta.
Capítulo XVIII
BÉTULA: Esta árvore tem folhas brancas, casca papirácea e folhas
em forma de seta. No Verão dá amentos verdes. O seu nome talvez
venha do latim ”bater”, já que as varas da bétula foram usadas muitas
vezes para castigar. Diz-se que nosso Senhor Jesus Cristo foi açoitado
com varas de bétula. Um molho de varas de bétula era o símbolo do
poderio romano e do direito que eles tinham de castigar com a
flagelação. Os ramos de bétula também eram usados para expulsar os
espíritos malignos da terra de alguém, ou para tirar os demônios do
corpo dos lunáticos.
Também se diz que as bruxas fazem os paus das suas vassouras de
bétula; contudo há quem diga que estes podem varrer para longe as
bruxas...
A cabra a seu lado balia de aborrecimento, enquanto Aditi a
conduzia em direção ao templo.
- Paz, minha tola - disse ela. - Vais ver o paraíso em breve e talvez
uma vida melhor. - Uma vez Mahadevi tinha-lhe dito que a cabra era o seu
animal favorito para receber em sacrifício. Puxando pela besta malcheirosa,
Aditi não conseguia imaginar porquê. Mas ela estava agradecida por a família
dos maratas que a sustentava generosamente, lhe ter dado uma, em troca de
preces à deusa.
O templo a Mahadevi era pequeno e ficava nos subúrbios de Goa,
junto ao rio Mandovi. Até então, tinha sido ignorado pelos Jesuítas zelosos ou
pelos Mongóis. A cúpula era simples e pintada de branco, não era doirada. As
esculturas de mulheres nos pilares e na arquitrave eram modestas.
Encontrava-se lá pouca gente para puja, naquela tarde. Contudo,
Aditi conservava o orhni puxado para baixo, sobre o rosto. Entregou a corda
de prender a cabra a um brâmane no portão lateral do templo. Sendo membro
da casta Konti, Aditi podia ter executado ela própria o sacrifício, mas uma tal
exibição de riqueza e devoção podia trazer-lhe atenção indevida. Também lhe
repugnava fazer mal aos animais. Suspirou, enquanto a cabra era levada,
balindo, para trás do portão.
Os meus pêsames, minha tola. Tem de ser. Ahimsa era todo bem e
bondade mas Mahadevi tinha fome e precisava de ser alimentada, para poder
dar à luz o Seu dom da vida.
Aditi também tinha dado ao sacerdote uma tira de folhas de
palmeira, na qual inscrevera uma mensagem para Mahadevi. Com a ajuda de
um mensageiro do templo, ela tinha mais hipóteses de a sua mensagem ser
recebida, do que muitos suplicantes. Também tinha dado ao sacerdote
algumas moedas para uma profecia. Normalmente, adivinhar o futuro estava
abaixo da dignidade de um brâmane, mas havia um no templo que tinha uma
família numerosa para sustentar e que seria capaz de o fazer. Estava também
abaixo da dignidade de Aditi alguma vez procurar o augúrio. Mas como tinha
estado trancada durante dias na casa dos seus benfeitores, sentia-se como
que perdida num deserto traiçoeiro sem as estrelas da noite para a guiarem.
Antes de entrar no templo, Aditi desceu os degraus até ao rio
Mandovi e entrou na água até aos joelhos. Ficou agradecida por o rio correr
quente e com lentidão nesta época do ano. Lavou as mãos, os braços e a cara
segundo o ritual, tomando cuidado para que as suas feições não ficassem
expostas a ninguém. Tirou do fundo do pano que trazia na anca uma flor de
lótus e colocou-a sobre a água, deixando-a flutuar para longe, levada pela
corrente. Curvou-se para o deus do rio e voltou a subir os degraus.
Aditi secou os pés e entrou no arco do templo, receando o que
poderia ver. O ídolo de Mahadevi era, de fato, duas estátuas que se
encontravam com as costas encostadas uma à outra. Uma das figuras de
quatro braços era uma bela mulher que sorria docemente, segurando nas
quatro mãos espigas de arroz, uma panela, uma flor e um jarro de água. A
outra, porém, era um feroz demônio feminino que segurava nas mãos uma
espada, um tambor, um jarro de vinho e uma cabeça cortada.
Ambas representavam Mahadevi, nos seus aspectos de doadora da
vida e negociante da morte.
Os sacerdotes voltavam as estátuas conforme calculavam qual era o
aspecto da deusa que estava ascendente. Aditi ficou aliviada ao ver que o lado
benéfico do ídolo estava voltado para ela quando entrou. O ídolo tinha uma
vistosa grinalda de botões vermelhos de asoka, embora tivessem já começado
a murchar.
Aditi ajoelhou-se aos pés do ídolo e retirou da funda que tinha na
anca uma pequena taça de arroz coberta, um pequeno frasco de óleo
perfumado e alguns fios de açafrão enrolados numa folha de palmeira. Deixou
tudo aos pés de Mahadevi e deitou-se, prostrada, sobre a pedra fria do chão do
templo.
As suas preces foram simples. Traz riqueza àqueles que me têm
ajudado. Perdoa-me as minhas falhas. Guia-me naquilo que devo fazer agora.
Ajuda-me a voltar para ti em segurança.
Aditi não era da família brâmane e portanto não se preocupava com
os pontos mais delicados da teologia. Não questionava a divindade de
Mahadevi, ou até que ponto o sacrifício da cabra a apaziguaria, ou se a deusa
podia ver e ouvir através da sua imagem no templo. O que importava era
dharma, fazer o que era certo. Todo o resto viria por acréscimo. Além disso,
Mahadevi era bastante real para Aditi, real de uma maneira que poucos
adoradores já alguma vez teriam experimentado.
A família de Aditi tinha sido gente das caravanas. A sua terra era o
Rajastão, mas viajavam largamente por toda a índia. Quando Aditi tinha cinco
anos, sabia montar um camelo. Aos seis, falava quatro línguas fluentemente: o
seu sindhi nativo, kashmir, persa e urdu. Quando tinha sete, a família
empreendeu uma longa viagem para sul, com uma grande carga de
mercadorias com destino a Calecut. Para evitar a perseguição por parte dos
portugueses, não seguiram a rota da costa e em vez disso arriscaram-se a
viajar através do árido e vastamente inexplorado planalto de Decão.
Duas noites após terem saído de Bijapur, foram atacados por
salteadores. Os camelos foram roubados ou dispersados. A família de Aditi foi
assassinada, enquanto ela se escondia numa cavidade entre as rochas. Tinha
ficado demasiado chocada e aterrorizada para chorar e foi abandonada sem
ser vista pelos ladrões.
Na manhã seguinte, viu um dos camelos que se dirigia para
Ocidente, afastando-se dela. O pai tinha-lhe ensinado que quando se está
perdido no deserto, se deve seguir um camelo - ele encontrará água. Então,
sem se voltar para olhar para os corpos dos seus pais e dos seus irmãos,
caminhou insensivelmente atrás do camelo. Caminhou todo o dia, chupando
pedras para evitar a sede, mastigando folhas para acalmar os ruídos do
estômago. E o camelo levou-a a um largo rio castanho, com uma pequena
aldeia junto a ele.
Os aldeões ficaram pasmados por encontrarem a criança vinda do
deserto sozinha, admirados com os seus olhos azuis que não eram invulgares
no Rajastão, mas desconhecidos no Decão.
Chamaram-lhe Aditi por causa da deusa do céu e levaram-na
imediatamente à sua montanha sagrada, Bhagavati.
Havia uma cidade numa cova no cimo da montanha, cortada na
rocha viva e escondida à vista. Um palácio templo dominava a cidade e lá
dentro vivia Mahadevi. Aditi foi apresentada à deusa, como um dom caído do
céu. E a deusa aceitou-a quase como se ela fosse uma filha.
Mas Aditi nunca viu a pessoa física de Mahadevi, apenas sombras
por trás de biombos, pois todos sabiam que olhar para a face da deusa era a
morte. Em vez disso, Aditi foi criada por duas velhas mulheres, uma pequena
e doce, mas de fraca personalidade e outra alta e severa, mas sábia. Elas
tinham sido sempre velhas, disseram-lhe e Aditi acreditou.
E Aditi aprendeu uma outra língua, ellenica, que Mahadevi e as
velhas falavam. E ensinaram-lhe a ler e a escrever e aprendeu História,
Geografia e Matemática. Quando teve idade, Mahadevi mandou-a de volta para
o mundo exterior, para ser os seus olhos e a sua mensageira.
Aditi devia a sua vida a Mahadevi, tal como Gandharva e por isso
servia-a com uma devoção quase absoluta.
Aditi ouviu o som de arranhar à sua frente e levantou os olhos do
chão. O ídolo estava a voltar-se. Parou a meio caminho, de forma que era
visível um lado de cada aspecto. A grinalda de flores tinha sido retirada e
substituída por uma grinalda de crânios de rato.
O sacerdote que fazia profecias espreitou por detrás dos ídolos.
Cruzou o olhar com Aditi e abanou a cabeça tristemente antes de desaparecer.
Ai. O humor dela está a mudar para pior. Isto não vai correr bem
para o meu lado. Sentou-se e curvou-se uma vez mais para o ídolo.
Tende piedade de mim, Grande Mãe. Eu fiz o que pude.
O Irmão Timóteo desceu as escadas em direção aos calabouços,
deixando os pés bater pesadamente nas pedras. Não tinha coragem para as
tarefas que o esperavam. Porque é que eu dei ao inglês a folha de betei? O
Domine teve razão para me ralhar; vai levar mais tempo ao inglês para olhar
para dentro de si e sentir o desejo de se confessar. É justo que o Domine me
castigue. Mas porque tinha de ser isto? Santa Maria, não podias tê-lo feito
mais indulgente? Não, perdoai-me. Estou a ser posto à prova. Deixai-me
provar que sou digno.
Puxou com força a tranca de ferro da porta ao fundo das escadas.
Quando ela se abriu, os gemidos das almas perdidas assaltaram-lhe os
ouvidos. Senhor, eles imploram o vosso perdão. Estais a ouvi-los?
Timóteo tirou duas chaves compridas de um chaveiro na parede e
caminhou pesadamente pela passagem central. Murmurou uma bênção em
cada cela por onde passava, o coração dilacerado por cada pecador
atormentado que o avistava e lhe pedia para ser libertado.
À porta da sétima cela à sua esquerda, Timóteo parou.
- Aprende o que resulta da aliança com a feitiçaria - tinha-lhe dito
Domine Sadrinho. Timóteo engoliu com dificuldade e pôs a chave na
fechadura. Deu-lhe a volta e a porta girou e abriu-se silenciosamente.
Um cheiro nauseabundo invadiu-o e ele tossiu e torceu o nariz. Não
era um odor dos vivos. Apertando o livro de orações fortemente contra o peito,
Timóteo entrou.
- Deus lhe dê um bom dia, Senhor Cortado.
A coisa na cadeira rolou a cabeça para cima para olhar para ele.
Timóteo benzeu-se, tentando lembrar-se de que aquilo que estava sentado à
sua frente, fora um dia um homem e uma criatura de Deus.
Os braços, as pernas e os dedos do feiticeiro estavam curvados em
muitos sítios, de uma forma que não era natural, e parecia que as cordas que
o atavam à cadeira serviam mais para ajudar o homem a manter-se direito, do
que para o prender.
- Ele ainda não deu, até agora - disse-lhe Cartago, numa voz tão
densa que lhe levou um momento a perceber. - Quem és tu?
- Sou o Irmão Timóteo, senhor. Fui designado vosso advogado. -
Timóteo desejou não ter soado tão pequeno e tímido.
O feiticeiro riu. Um som horrível de um latido líquido.
- O que fizeste, criança, para eles te mandarem entenderes-te com
os mortos? - Cartago esticou a cabeça para a frente nesta última palavra e
Timóteo saltou para trás, assustado.
A raiva começou a sobrepor-se ao medo.
- Vós não estais morto, senhor. Deveis estar agradecido por a Santa
Casa vos ter dado uma outra oportunidade de reconhecerdes os vossos
pecados e de os confessardes perante Deus. Nesta altura deveis saber o perigo
que a vossa alma enfrenta. Deveis receber com alegria a nossa ajuda.
- Ajuda? A Santa Casa só procura ajudar-se a si própria. Apoderar-
se de tudo o que possa roubar ou destruir.
- Isso é mentira! - Timóteo instantaneamente lamentou o impulso e
tentou acalmar-se. Um advogado deve ser gentil a todo o custo, para mostrar
ao hóspede o benefício da piedade. O que diria o Domine Sadrinho? - Vós
fostes mal informado, senhor. - Olhou para o chão e viu que a taça de arroz do
feiticeiro estava ainda cheia. As moscas e os besouros rastejavam sobre ela,
comendo o que o hóspede deixara. - Não haveis comido.
- Não tenho vontade de comer.
- Se não comerdes, morrereis à fome.
- Sim.
- Mas a vossa alma voltará para o Inferno, se morrerdes sem vos
confessardes primeiro.
Os lábios do feiticeiro abriram-se num sorriso torcido.
- É aí que pensais que eu tenho estado? - Inclinou-se para a frente,
tanto quanto as cordas lhe permitiam. - Sei um segredo - disse numa voz
sepulcral. - Quereis ouvi-lo?
Timóteo fez uma pausa.
- Talvez.
- Eu sei o que há para além da morte.
- É claro. Sabeis que deveis recear pela vossa alma. Cartago abanou
a cabeça de um lado para o outro sorridente.
- Não é o que vocês pensam. Tudo o que disseram é falso. Os
pensamentos de Timóteo rodopiaram num turbilhão.
Ele mente para me confundir e assustar. Mas o que é que ele viu?
Saber o que acontece depois da morte - mas ele não vai ser verdadeiro comigo.
O Diabo tem a sua língua e eu não devo prestar atenção. Por um momento,
Timóteo perguntou a si próprio se estava perante a alma de Cartago ou se o
corpo tinha sido possuído por um demônio.
- Eu não vou ouvir as vossas mentiras, senhor. Se tendes alma,
trabalhemos para a salvar, ainda que o seu destino não vos preocupe agora.
Ainda há pó de sobra. O Domine trar-vos-á de volta, se morrerdes sem
confissão.
- Oh que habilidoso torturador - suspirou Cartago. - Mas não faz
mal. O Rasa Mahadevi esgotar-se-á e depois? Por muito que tenteis, a morte é
um poder que a Santa Casa não consegue dobrar à sua vontade.
- Gostaria que pudésseis ver-nos com outros olhos, senhor. Vede-
nos pela assistência piedosa que oferecemos. O Domine disse que eu devia
dizer-vos que ainda agora ele procura: a fonte do vosso pó feiticeiro.
Cartago riu de novo, sombriamente.
- Ah, para o vosso Domine Sadrinho a conhecer teria de ser o fim do
mundo.
- A conhecer? Ainda acreditais que o vosso pó vem de uma deusa
pagã?
- A crença não é necessária, rapaz. Estou certo disso. Não era a
primeira vez, desde que o padre Gonsção tinha vindo para a Santa Casa, que
Timóteo se sentia como duas pessoas numa só mente. Parte dele desejava
ardentemente perguntar ao feiticeiro tudo sobre a criatura a que chamava
deusa. Saber se ela era real, se era tal como as lendas diziam. Mas o seu dever
era tentar salvar a alma de Cartago, não encorajar a sua fé mal colocada. Foi
assim que o velho governador foi arrastado para o pecado? Santa Maria me
ajude.
- Mas esta criatura que vós adorais, não é uma deusa. É um
monstro, não?
A expressão no rosto descaído de Cartago era difícil de descrever no
escuro.
- Um monstro? Alguns homens podem vê-la assim. Mas os que a
vêem, não vivem muito tempo.
- Então esta criatura não é tão misericordiosa como o nosso Deus.
A cabeça do feiticeiro começou a pender.
- Eu não vou discutir filosofia convosco, rapaz - disse ele
suavemente. - Sois demasiado jovem e não sabeis nada da vida.
- Sei o que é a verdade, senhor. E é nisso que vós deveis fixar os
vossos pensamentos.
- O nome dela é força - murmurou Cartago. Fechou os olhos e o
corpo baixou repentinamente sobre a cadeira.
- Senhor?
O feiticeiro não emitiu qualquer som. Timóteo não ousou tocar-lhe
para ver se ainda estava vivo, saiu da sala, fechando rapidamente a porta
atrás de si. Encostou-se à parede do corredor, tremendo. O que dirá o
Domine? Falhei? Fui demasiado orgulhoso, pensando que podia ganhar contra
um demônio? E se o que o feiticeiro disse fosse verdade? Não, não posso
pensar nisso.
Recordou a si próprio que havia ainda mais uma tarefa à sua frente.
Uma que poderia, em alguns aspectos, ser ainda pior do que aquela que ele
tinha acabado de viver. Com um suspiro profundo, Timóteo trancou a sala de
Cartago e de novo caminhou pesadamente pelo corredor das almas perdidas.
Capítulo XIX
TREVO: Esta pequena planta dos prados é citada em muitas
histórias. Diz-se que as folhas do trevo se erguem e tremem quando se
aproxima uma tempestade - significado do trevo muda com o número
das suas folhas. Uma haste de trevo com duas folhas, significa que se
verá a pessoa amada em breve. Um trevo de três folhas é sinal da
Santíssima Trindade e protege-nos do mal - embora os antigos
pensassem que era um sinal das três deusas do Destino. Um trevo com
quatro folhas, o sinal da cruz, é raro e traz grandes poderes para ver
através da ilusão, para curar os doentes e para escapar a
circunstâncias difíceis. Um trevo de cinco folhas traz azar e doença,
mas se for oferecido, a boa sorte regressa...
À porta da primeira sala de interrogatórios, Timóteo preparou-se
para o seu próximo dever. Murmurou uma prece e pôs a chave de ferro na
fechadura. A porta também se abriu silenciosamente. As dobradiças nos
calabouços da Santa Casa eram mantidas bem oleadas, para que não se
tornassem distração para os que contemplavam as suas almas. Timóteo
fechou a porta atrás de si e olhou para cima.
- Bom dia, senhor.
O inglês não estava bem. Tinha sofrido o strappado durante muitas
horas; o rosto estava branco, os membros rígidos e trêmulos. Tinha os olhos
fechados.
- Senhor?
- Ahh! - O inglês acordou estremecendo e gritou com uma nova dor.
- Desculpai-me, senhor - disse Timóteo. - Eu vim para vos dar
conforto. - Tirou então da parede um bastão comprido e afiado. Da sacola de
cabedal retirou uma esponja embebida em vinho e espetou-a na ponta do
bastão. E ergueu-o até à boca do inglês.
- Bebei senhor, por favor.
A semelhança deste ato com um outro não se perdeu em Timóteo.
Assim foi Nosso Senhor ajudado quando estava pregado na cruz. Assim foram
redimidos os pecados da humanidade. Será que este homem vai compreender
e submeter-se ao perdão de Deus?
Com alguma dificuldade, o inglês conseguiu engolir. Um minuto
depois Timóteo tirou a esponja.
- Mais, por favor, irmãozinho - arfou o inglês.
- Não tenho permissão para ficar mais tempo, senhor. Com tristeza
Timóteo pôs o bastão de novo na parede e a esponja na sacola.
- Esperai. Ficai. Por acaso interpretais sonhos, Irmãozinho? - Veio-
lhe à memória uma outra história da Bíblia. Talvez isto seja um sinal de
esperança.
- Não sei. O que sonhastes, senhor?
O inglês murmurou rapidamente, tentando usar pouca respiração.
- É freqüentemente o mesmo sonho, apenas diverge nas suas
formas. Acabo de o ter de novo. Há três mulheres, às vezes a cavalo, outras
vezes não. Perseguem-me e eu sou uma presa. Chamam-me assassino e
outras coisas horríveis. Acordo sempre, quando estão prestes a apanhar-me.
Desta vez, contudo, eu já estava apanhado e amarrado. Estava pendurado
sobre um caldeirão, enquanto elas dançavam, zombando de mim. Eu lutava,
mas não conseguia escapar. Então vós acordastes-me.
Timóteo pensou um momento.
- Talvez essas mulheres sejam demônios, senhor. Perseguem a
vossa alma, esperando que vos desvieis daquilo que é justo. Agora que caístes,
apanharam-vos e a vossa alma descerá para o fogo.
- Mas eu tenho estes sonhos desde criança. Os demônios
perseguem-me há tanto tempo?
- Estamos sempre em perigo de sucumbir às forças do Inferno,
senhor. Mas há esperança neste sonho.
- Esperança?
- Vós não estais no fogo ainda. Podeis salvar-vos. Tenho de ir agora.
Desejais que eu diga alguma coisa ao Domine?
O inglês engoliu em seco.
- Sim - murmurou. Timóteo aproximou-se.
- Estou a ouvir, senhor.
- Eu... assinarei a confissão.
O coração de Timóteo saltou de alegria.
- Fá-lo-eis? E procurareis o perdão de Deus?
- Sim - arfou sonoramente.
- Então hoje fomos ambos abençoados, senhor!
- Dizei ao Domine... por favor, dizei que eu estou pronto para dizer o
que ele mais deseja ouvir.
- Com todo o prazer, senhor! Deus vos abençoe e vos conserve. Vou
dizer ao Domine imediatamente! - Timóteo abriu a porta de rompante e saiu
apressadamente, não se preocupando em fechá-la atrás de si. Saltando pelas
escadas acima, correu como se os pés tivessem as asas dos anjos.
Os guardas vieram rapidamente para cortar as cordas que
sustentavam Thomas. A doce golfada de ar nos seus pulmões tornou a dor do
movimento quase suportável. Estava fraco e não conseguia manter-se de pé
sozinho. Os braços caíram-lhe ao lado do corpo, inúteis, os ombros
deslocados. Foi novamente vendado e um guarda conduziu-o a uma sala, onde
dois monges o lavaram e lhe esfregaram as costas e o peito com óleos quentes
e perfumados. Thomas quase chorou, tão requintada era esta sensação depois
do seu tormento.
Foi reconduzido à sua cela, onde o aguardava uma refeição: a mesa
estava pronta com frango assado, arroz, laranjas e vinho. O Irmão Timóteo
estava lá também, sorrindo como se fosse Natal. O rapaz alegremente ajudou
Thomas a comer, segurando nacos de galinha para ele morder, partindo as
laranjas, levando-lhe o copo de vinho aos lábios e limpando algumas gotas que
se entornassem ou as migalhas.
- Bendito seja este dia! - disse Timóteo. - Sabia que seríeis um dos
salvos, senhor. Glória a Deus nas alturas!
Os pensamentos de Thomas, contudo, não eram tão alegres. Que
Deus me perdoe. Não tenho a força para sofrer pela minha fé. Se ainda não
pequei, fá-lo-ei certamente, quando chegar ao final da noite. Várias mentiras
terão de ser ditas esta noite, se eu quiser ter a hipótese de escapar. Portanto
tende piedade, Senhor, e digamos que não é pela minha vida miserável, mas
pelo trabalho por fazer, que eu devo aos outros.
Thomas abanou a cabeça ao novo copo de vinho oferecido.
- Já bebi o suficiente, Irmãozinho, obrigado. - Tenho de manter os
meus pensamentos livres da névoa da bebida.
O Irmão Timóteo limpou uma área sobre a mesa e colocou lá uma
pena de escrever enfeitada com plumas, num tinteiro em forma de elefante
prateado. Depois, como um mercador apresentando para venda o seu tapete
mais valioso, o rapaz desenrolou e apresentou a confissão.
- Assinai, senhor, e ficai livre.
Thomas olhou para o pergaminho, não lendo deliberadamente as
palavras que lá estavam. Tentou erguer a mão direita, mas o braço estava
demasiado fraco e voltou-lhe a cair ao lado do corpo. Sentiu um toque de
orgulho pelo seu membro rebelde.
- Perdoai-me. O meu braço...
- Eu ajudo-vos, senhor - O rapaz limpou a ponta da pena na borda
do tinteiro e colocou gentilmente a caneta na mão direita de Thomas. Ficando
de pé junto dele, o Irmão Timóteo ergueu o braço de Thomas sobre o
documento e posicionou-lhe a mão no final deste.
Com um profundo suspiro, Thomas rabiscou as iniciais T. C.
- Muito bem, senhor! - O rapaz agarrou o documento e gentilmente
soprou sobre a tinta para a fazer secar. Thomas deixou o braço cair de novo
no regaço, salpicando as calças com gotas de tinta.
O Irmão Timóteo pareceu não reparar; retirou a caneta da mão de
Thomas e colocou a pena novamente no tinteiro.
De súbito, o inquisidor Sadrinho apareceu na porta aberta da cela
silencioso e austero nas suas vestes negras.
- Domine! - disse o Irmão Timóteo. - Ele assinou!
O inquisidor abriu os braços para o céu e pronunciou o Deo
Gratias. Para Timóteo disse:
- Fizeste muito bem, meu filho, redimiste-te a ti próprio. Sabes
aonde levar isso.
- Sim, senhor. - O rapaz enrolou gentilmente o pergaminho e saiu
apressadamente porta fora.
O inquisidor acenou para o guarda da cela que se curvou e também
partiu, fechando a porta atrás de si.
Thomas ficou sozinho com Domine Sadrinho. Ocorreu-lhe que
agora, teria sido uma outra excelente oportunidade de fazer violência contra a
pessoa do inquisidor. Mas, é claro, fraco e desarmado como estava, Thomas
sabia que só faria pouco dano ao inquisidor e talvez grande dano a si próprio.
Tentou sorrir, mas percebeu que não conseguia forçar-se a fazê-lo.
- Ouvi dizer que há algo que desejais dizer-me - disse o inquisidor.
Thomas respirou profundamente.
- Desejais conhecer a fonte do pó, que traz os mortos de regresso à
vida.
O inquisidor olhou para trás sobre o ombro, depois avançou em
direção a Thomas, de olhos semicerrados.
- De que substância falais?
Senhor, não permitais que ele fique louco, não agora.
- O pó que se chama Rasa Mahadevi ou o sangue da Deusa... o pó
que o monge chamado Irmão Andrew usou para trazer Cartago de volta à vida.
- Humm - disse Sadrinho, fingindo desinteresse, mas os olhos
atraiçoavam-no.
- Que deusa é essa de que falais?
Thomas pensou afincadamente. Nunca lhe tinham dito outro nome
para além de Mahadevi, exceto...
- O nome dela é força.
Um olhar agudo da parte do inquisidor revelou a Thomas que tinha
dito algo importante. Só desejava que tivesse sido a coisa certa.
- Mas de certeza - disse Sadrinho - que já não albergais mais
crenças pagãs? Assinastes a vossa confissão, afinal de contas.
- Não, Domine. É por isso que desejo falar convosco.
- E porque é que a Santa Casa estaria interessada nesta matéria?
- Posso apresentar-vos muitas razões. Se os inimigos da Madre
Igreja tiverem o seu controlo, pensai quanto mal eles poderão fazer.
- Mmmm. E vós dizeis que podeis dizer-nos onde os inimigos da
Madre Igreja poderão encontrar este pó?
Vamos a isto agora.
- Posso fazer melhor. Mostrar-vo-lo-ei. O inquisidor franziu o
sobrolho.
- O que quereis dizer? No mapa que encontramos na vossa roupa?
- Não. Eu guiar-vos-ei ou a alguém da Santa Casa, até ao lugar
onde pode ser encontrado.
Sadrinho riu-se.
- Espero que não tencioneis fazer-me passar por idiota, senhor.
Meu Deus, tornai-me convincente.
- Há razões que eu simplesmente não vos posso dizer, Domine. O
local está bem escondido e protegido. Posso dizer-vos somente isto: a fonte fica
a leste e a sul de Bijapur.
O olhar do inquisidor intensificou-se.
- Já sabemos isso. Que mais podeis oferecer?
Ah. Ele decidiu comprar a minha mercadoria. Thomas abanou a
cabeça.
- Eu não estive nesse lugar, Domine. Só tenho o conhecimento que
Cartago me deu. Ele disse que haveria sinais e enigmas para serem resolvidos
ao longo do caminho. Não disse quais serão ou onde estarão. Mas isso eu
tenho a sabedoria para reconhecer e resolvê-los, quando forem encontrados.
Sadrinho deteve-se e não falou durante alguns momentos.
- Ocorre-me que podeis ser simplesmente muito esperto e esperar
por uma hipótese de escapar. Contudo, se o que dizeis é verdade, então a
vossa orientação seria uma dádiva de Deus, na verdade. Tenho de consultar
outras pessoas sobre isto. Por agora, descansai, senhor Chinnery. Vós
passastes por uma provação terrível, embora não possais negar o seu efeito
salutar para a vossa alma. Por agora temos a vossa confissão e muita coisa se
torna possível. Deus vos conceda uma boa noite, senhor. - Sadrinho bateu na
porta e saiu quando ela se abriu.
Aquela última foi uma promessa ou uma ameaça? Mas a ambição
brilhava claramente em cada poro marcado da sua face. Mas Deus, deixai que
ela o domine, para que eu possa sair desta casa de loucura.
Capítulo XX
CORAL: Esta substância tem a forma de uma planta e a dureza de
uma pedra. Diz-se que cresce no mar e pode ser encontrada em muitas
cores. Para usos medicinais, o coral deve ser moído apenas numa bacia
de mármore; de outra forma pode causar dano. Em pó ou em tintura,
curará muitos achaques do corpo. Usado num amuleto, guarda-nos de
todos os tipos de loucura e de fascinações. Ligado a um pau de fileira
guardar-nos-á de todas as tempestades da natureza. O coral do mais
puro vermelho manterá afastados os demônios e as fúrias, mas o coral
castanho atraí-los-á. O coral amarelo é, no Oriente, uma gema de vida
eterna...
O padre Gonsção estava do lado de fora das portas maciças de
carvalho do escritório de Domine Sadrinho. Os painéis superiores das portas
tinham sido esculpidos em relevo profundo: Santa Catarina pregada ao poste
na porta da esquerda, São Domingos e a sua espada, na da direita. Os painéis
inferiores ambos representavam almas ardendo nas chamas do Inferno, com
os braços erguidos, implorando. Gonsção tocou na cabeça de Santa Catarina e
pediu-lhe a bênção. Depois bateu à porta e um pajem nativo convidou-o a
entrar com uma vênia.
Domine Sadrinho estava sentado atrás de uma enorme secretária de
ébano, com os dedos em forma de campânula, descansando contra os lábios.
Estava afastado da porta, voltado para a janela, cujas persianas estavam
abertas. Um perfume de jasmim flutuava dentro da sala, vindo de um dos
jardins do pátio. A luz do crepúsculo, de um cobre-dourado, emprestava um
brilho quase beatífico à face do inquisidor.
Gonsção atravessou uma extensão de um espesso tapete persa e
sentou-se numa cadeira de pau-rosa, acolchoada em veludo vermelho.
Preferindo não ser o primeiro a falar, esperou ser notado.
Após um momento, Sadrinho inclinou a cabeça e olhou para o
padre.
- Fizestes voto de silêncio, António? Isso seria incômodo.
- Não, Domine. Não falei, porque não desejava perturbar os vossos
pensamentos.
- É muita bondade vossa, António. Marquei este encontro mesmo
com a intenção de partilhar os meus pensamentos convosco. Devo mandar vir
refrescos? Vejo que já vos pusestes à vontade.
- Obrigado, não, Domine. - Na rígida cadeira de espaldar,
enfrentando o reservado Sadrinho, Gonsção não achava possível sentir-se
confortável.
Sadrinho acenou para o pajem nativo, que se curvou e partiu.
- Bem, estou ansioso por ouvir o que tendes para me dizer - disse
Gonsção. - O nosso visitante, Irmão Andrew, foi mais prestativo com uma
história razoável?
- Ele mostrou-se útil, à sua maneira. Sabeis que mais, lamento não
ter confiado em vós, desde o momento em que chegastes. Com o vosso perdão,
posso atribuí-lo à necessidade de a Santa Casa ser cautelosa com estranhos,
devido ao nosso trabalho.
- É claro - disse Gonsção, lutando contra a impaciência.
- Se eu tivesse exercido mais urgência em achar os registros do
julgamento do governador Coutinho, vós teríeis percebido mais cedo a
importância do que os Jesuítas nos trouxeram ontem.
- Na verdade, isso teria sido útil. - Gonsção não achou que o
inquisidor notasse a ironia.
- Mas não importa. Tudo resultou bem, afinal de contas. Vede, foi o
próprio pó que o Irmão Andrew usou, que foi a chave para a cabala que nós
temos estado a investigar. Creio que foi através do uso deste pó, que Cartago e
os seus colaboradores, Dalambur, senhora Resgate e a misteriosa Aditi
corromperam o antigo governador e o vice-rei. Disseram-lhes que o pó era o
sangue da deusa pagã, sangue que traz os mortos para a vida. E como vistes,
a substância de fato tem esse poder. Não admira que eles se tivessem
convencido, não é?
- Eu posso ver como isso pode ser persuasivo - disse Gonsção, não
tendo ouvido nada que não tivesse já deduzido. Presumo que conseguistes
questionar Cartago e que confirmastes isso com ele.
Sadrinho suspirou.
- Meu Deus, o feiticeiro estava tão abatido que não sentiu nenhum
dos nossos ternos serviços e por isso não nos disse nada. Ele não comeu, nem
bebeu e morreu de novo. Com o pouco de pó do Irmão Andrew que sobrou, eu
trouxe-o de novo à vida.
- Vós... usastes o pó, vós próprio?
Gonsção começou a compreender o alarme de Domine Pinto.
- Nós não temos idéia de onde vem. Não vos preocupais com o
estado da vossa própria alma?
- Disparate, António. Deus não teria colocado esta substância nas
minhas mãos, se eu não tivesse sido escolhido para a usar. E foi para a Sua
obra, afinal de contas. Ah, ver a respiração voltar àquele cadáver frio, António!
Uma experiência que eu nunca esquecerei. Mas não serviu de nada. Cartago
rapidamente sucumbiu mais uma vez. Como não temos mais pó, Cartago está
perdido para nós.
- Uma pena, é claro. Mas a sua alma está perdida para Deus, não
para nós.
Sadrinho abriu as mãos para fora, como para sugerir que era a
mesma coisa ao fim e ao cabo.
- Estou preocupado, Domine, com o fato de que vós possais estar
deslizando para o mesmo fosso que enganou Coutinho e os outros.
Sadrinho sorriu.
- António, não podeis estar a falar a sério. Receais que eu possa
acreditar que era o sangue seco de uma deusa pagã? Dai-me mais crédito, por
favor. Na minha opinião, Coutinho e Albuquerque foram enganados.
- E que pensais vós ser a verdade do assunto?
- Claramente há um poder estranho que está a importar esta
substância, a fim de corromper o governo de Goa. Há muitos que estão
descontentes com a presença de Portugal neste continente. O sultanato de
Bijapur ainda está encolerizado com a perda de Goa.
Gonsção acenou afirmativamente.
- Isso é razoável. E perturbador. Sabeis que poder estranho poderá
estar a fazer isto?
- Ainda não.
- E onde poderá este poder estranho ter encontrado uma substância
tão poderosa?
Sadrinho inclinou-se para a frente, sobre a mesa.
- A índia é um continente vasto, António. Não tendes idéia das
maravilhas que se podem encontrar aqui. Mas eu vivo aqui há muitos anos;
ouvi muitas histórias e vi muitas coisas espantosas. Há animais no interior,
que não podem ser encontrados em mais nenhum lugar. As especiarias e os
minerais abundam com propriedades desconhecidas. Não poderá ser que o
sangue seja de um animal raro? As cobras têm sido mencionadas
freqüentemente pelos conspiradores, devo salientar. Os hindus falam de uma
criatura rara, parte homem, parte serpente, que vive na selva.
- Mas isso pode ser mero folclore, Domine. O nosso próprio povo
tem histórias de El Cuélebre, uma serpente com asas que guarda as
montanhas e possui encantamentos poderosos.
Os olhos de Sadrinho faiscaram.
- Sim, interessante, não é? Então, uma vez mais, o poder podia não
ser o sangue de forma nenhuma, mas a seiva seca de uma árvore rara, ou
uma forma de minério de ferro cuja aparência e odor imitam o sangue.
- Sim, suponho que tal seja possível - disse Gonsção -, mas o poder
da ressurreição deve pertencer a Deus somente. Portanto nós devemos
considerar ainda esta substância, qualquer que seja a sua fonte, como o mal.
O seu uso deve ser proibido pela Santa Casa.
Sadrinho fez estalar a língua.
- Vós espantais-me, António, com uma forma de pensar tão
provinciana. Uma espada é um objeto do mal? Talvez quando um ladrão ou
um assassino a maneja, mas não em si mesma. Seguramente o vosso São
Domingos não traria consigo um objeto de mal inerente. As espadas
manejadas por aqueles que expulsaram os mouros heréticos das nossas
terras, eram objetos do mal? Pensais que a batalha que nós, da Santa Casa,
empreendemos contra a heresia devia ser uma mourisca, para ser dançada
com cavalos de papel e espadas de madeira? Aqui, António, entregue nas
nossas mãos, está a arma autêntica para o nosso santo arsenal.
Gonsção apertou fortemente os braços da cadeira.
- Que necessidade tem a Santa Casa de uma tal... arma? Sadrinho
bateu levemente na mesa com a palma da mão.
- Não posso acreditar que sejais tão cego, António. Pelo próprio uso
que nós já fizemos deste pó! Com a sua ajuda, nós podemos, com certeza,
obedecer a uma das nossas principais constrições, acima de tudo, a Santa
Casa não mata.
- Santo Deus... vós podeis estar a pensar que devemos usar este pó
como parte da inquisição?
- E porque não? - Sadrinho levantou-se e começou a andar em
frente à janela. - Tantos morrem antes do nosso trabalho estar feito. Mesmo
quando o espírito está pronto e à beira da confissão, a carne mostra-se fraca.
O silêncio da morte demasiadas vezes os condena ao castigo eterno.
- E vós acreditais que esta substância nos dará todo o tempo que
precisamos, para salvar almas? Não estaremos nós em vez disso a perder as
nossas próprias em troca daquelas que salvamos? Poderá a Santa Casa vir a
tornar-se um outro Círculo do Inferno para aqueles que regressam para nós?
Ou por causa do duro auto-exame que nós exigimos dos nossos hóspedes,
poderá a perdição parecer mais suportável e por isso preferível para eles?
Depois de uma alma perdida ter encontrado os demônios do submundo, será
ela ainda capaz de redenção através de uma segunda ou terceira vida?
- Há os que acreditam, padre, que os perdidos se podem redimir
mesmo fora do Inferno. Pensai nisso! - disse Sadrinho, com os olhos a brilhar.
- Tanto para aprender. Nós podemos até descobrir a própria arquitetura da
vida após a morte.
Então, tu vês-te a ti próprio beijando o anel do papa Clemente, não
vês Sadrinho? E a ser elogiado por toda a Cristandade pelas tuas notáveis
”descobertas”. A imortalidade para o teu nome. E, talvez, a imortalidade para a
tua própria carne? Devias antes considerar a morte na fogueira e o cheiro do
enxofre.
- Se Deus tivesse a intenção de dar ao Homem esta sabedoria, não a
teria o Seu Filho revelado na sua Ressurreição?
- A Bíblia mostra-nos que há um tempo e um lugar para todas as
coisas, António. Talvez seja agora o tempo e seja este o lugar para a revelação
ser feita à humanidade.
Gonsção encostou-se para trás na cadeira, perguntando-se o que
poderia fazer para deflacionar o orgulho louco de Sadrinho.
- Bem, pode haver algo naquilo que vós dizeis. Mas a questão é
discutível. O senhor Cartago está morto de novo e vós não tendes outros
informantes que possam dizer-vos onde é que a substância pode ser
encontrada.
Um sorriso vitorioso trepou pelos lábios de Sadrinho.
- Ah, mas nós temos sim, António. Porque pensais que o Irmão
Andrew se atreveu a enfrentar o vosso desagrado, trazendo o pó para dentro
da Santa Casa?
- Tenho-me interrogado sobre isso.
- Por causa do jovem inglês. O Irmão Andrew sabia que o Senhor
Chinnery tinha informações que não se podiam perder. Foi por isso que se
arriscou a tirar o inglês do nosso domínio.
- Ah, sim. - Gonsção lembrou-se das palavras do inglês para
Cartago: ”Eu não lhes disse nada...”
- Graças ao encorajamento do Irmão Andrew, o jovem inglês fez
uma confissão completa.
Gonsção sentiu o seu espírito afundar-se ainda mais.
- Ele tinha alguma coisa de interesse para confessar?
- Oh, sim. Não era tão inocente quanto parecia. Aparentemente
Cartago tinha começado a iniciá-lo nos segredos da cabala.
- Ah, sim? E o senhor Chinnery acedeu a dizer-nos a parte do pó?
- Ele diz que fará melhor. Guiar-nos-á até ele. Gonsção soprou o ar
para fora dos lábios.
- E vós acreditais nele?
O sorriso de Sadrinho não vacilou.
- Tenho razão para isso. O jovem não admitiu que é negociante de
drogas e venenos? Sem dúvida ele procura o pó para o seu próprio uso. O rolo
de pergaminho que encontramos nas suas roupas parece ser um mapa
grosseiro, com símbolos alquimistas e a palavra em sânscrito ”Krsna”.
Disseram-me que há um rio com esse nome, no interior. Zalambur, o sócio de
Cartago, era conhecido por fazer viagens até à corte Mogol do imperador
Akbar, tal como a senhora Aditi. Oh, sim. Eu acredito que o jovem inglês sabe.
- Ainda que ele saiba, o que o impedirá de fugir ou de levar os
outros a cair numa armadilha? Estes cultistas parecem dispostos a morrer
pela sua fé errônea.
- O senhor Chinnery sofreu o strappado, por isso a fuga está para
além das suas forças durante algum tempo. Quanto a uma armadilha -
Sadrinho encolheu os ombros -, será uma tarefa dos que o acompanharem,
desencorajar tal traição.
- Certamente vós não estais a planear seguir este homem vós
mesmo? Isso seria impróprio para alguém da vossa posição. Não deveis
abandonar os vossos deveres, para ir em perseguição de mistérios pagãos.
Sadrinho inclinou-se para a frente novamente.
- É claro. Eu sabia que tínheis a sabedoria para compreender a
situação claramente. Eu não posso abandonar o meu trabalho. É por isso que
tendes de ser vós a ir, António.
- Eu? - Gonsção sentiu a porta de uma armadilha a fechar-se atrás
de si. - Isso é impossível.
- Mas porquê? Vós fostes enviado pelo cardeal Albrecht desde a
longínqua Lisboa, para descobrir a verdade por trás da queda de Coutinho e
de Albuquerque. Não podeis simplesmente ignorar esta última e a mais
importante parte do puzzle.
- Posso, se considerar isso impraticável e perigoso. As minhas
instruções não me dão permissão para deambular longe de Goa...
- Mas também não o proíbem, António. Eu voltei a ler a missiva de
sua Eminência e ele pede-me meramente para vos dar toda a assistência para
chegardes à raiz do problema. Bem.
Agora nós sabemos a forma dessa raiz e temos simplesmente de ir
cavá-la para a expor. Os vossos superiores em Lisboa não podiam ter previsto
todas as possibilidades. E eu não penso que sua Eminência possa apreciar a
vossa interpretação limitada dos seus desejos.
Tu, meu cão matreiro, pensou Gonsção. Pensas que encontraste um
meio de te livrar da minha presença intromissiva. Se eu morrer na tentativa,
fico fora do teu caminho para sempre. Se eu for bem-sucedido e voltar, trar-te-
ei as sementes da tua futura grandeza. O cardeal Albrecht compreenderia se
eu recusasse? Ou ao tomar conhecimento dos poderes desta substância,
ficaria tão enfatuado com as suas possibilidades como tu?
- Contudo - prosseguiu Sadrinho - se sentirdes que não sois
suficientemente forte para a tarefa, eu já fiz planos para mandar outrem.
- Outrem?
- Sim, estava à espera que fósseis uma influência madura e
orientadora para ele. Vou mandar o Irmão Timóteo.
Gonsção olhou fixamente para o inquisidor.
- Não podeis estar a falar a sério. Ele é apenas um rapaz.
- Os rapazes tornam-se homens em determinadas alturas das suas
vidas, António. E Timóteo está a atingir a idade em que deve ter alguma
experiência do mundo e ver as pessoas que um dia ele servirá. Receio que o
tenhamos mantido demasiado enclausurado aqui na Santa Casa. Está
envolvido com livros e memórias infantis. Além disso, quem sabe mais acerca
desta cabala que estamos a investigar do que eu e vós? Timóteo leu os
registros, afinal de contas.
Ah. Isto é, afinal, o castigo por esta transgressão?
- O que é que vai impedir o inglês de levar o rapaz para um caminho
errado, ou de lhe fazer mal?
- Não sou louco, António. Pedi ao governador para nos arranjar um
destacamento de soldados, para a escolta. Timóteo estará protegido.
E até que ponto pode um inocente rapazola lidar bem com soldados
endurecidos e turbulentos? Quem o protegerá deles?
- Entendo.
- Também mandei anunciar pelos mercados da cidade que a nossa
expedição deseja juntar-se com uma caravana de mercadores, para nos guiar
até Bijapur. Nós oferecemos proteção, em troca de uma introdução na corte do
sultão Ibrahim Adilghah.
- Então, Timóteo vai viajar no meio de mercadores pagãos e
apresentar cumprimentos numa corte muçulmana Mogol?
- António, vós tendes tão pouca fé no rapaz? Não tenho dúvida de
que ele os fará cristãos a todos, em pouco tempo.
- E se eles desaprovarem o seu proselitismo? E se tentarem Timóteo
para o pecado ou apostasia? Ele não terá ninguém a quem recorrer para pedir
conselhos?
- Acontece que pedi ao bom Irmão Andrew para ir e ele está
bastante interessado em fazê-lo. Parece tão ansioso por encontrar o pó como
nós estamos, embora as suas razões sejam obscuras. Contudo, fala persa
fluentemente assim como português; por isso achei que a sua assistência seria
bastante valiosa.
Gonsção mal conseguiu reprimir o riso cheio de perplexidade e
disse:
- Estais louco. Domine, vistes que este pretenso Irmão é conhecido
do inglês. Tanto quanto sabemos conspiravam juntos, a fim de criar uma
avenida para a fuga de Goa. Como podeis confiar nestes homens? Devo
protestar, Domine. Vós podeis estar a colocar Timóteo em grave perigo.
Sadrinho abriu as mãos como as asas de uma borboleta.
- É por isso que eu tinha esperança de que vós o quisésseis
acompanhar.
Gonsção semicerrou os olhos:
- Certamente que há outros que vós podeis enviar. O inquisidor
ergueu os olhos para o céu.
- António, vós permitistes que os vossos sentimentos nublassem o
vosso julgamento. A quantas pessoas podemos nós confiar este conhecimento?
Não é verdade que na Santa Casa, quantos menos souberem melhor? Desejais
espalhar este segredo por toda a cidade? E se a pessoa errada soubesse disto?
O Adilshah ou o imperador Mogol Akbar? Ou os holandeses? Ou os Jesuítas,
Deus nos acuda. Pensai no que poderá acontecer, se fizerem erguer de novo o
corpo incorruptível de Francisco Xavier.
Gonsção reprimiu um estremecimento.
- Se a vossa conjectura estiver correta, um desses pode já saber
disso. E o Domine Pinto? Não podeis enviá-lo?
Sadrinho suspirou.
- Ele deseja não ter nada a ver com este caso. Recusa-se a ver a sua
importância. Além disso, tem as mãos cheias de heresia em Diu e Pernem.
Seria tão inconveniente para ele deixar o seu trabalho, como para mim deixar
Goa. Não, tendes de ser vós, ou então Timóteo chefia a expedição, como único
representante da Santa Casa.
Timóteo é um rapaz bom e obediente. Se a sua investigação for
bem-sucedida, ele não terá a força de vontade para fazer aquilo que eu vejo
agora que deve ser feito.
- Começo a compreender-vos, Domine. Isto é uma preocupação
maior do que um posto avançado da Santa Casa, um grupo de apóstatas e
pagãos. Se os muçulmanos viessem a saber deste pó, poderiam produzir
exércitos infernais de mortos ressuscitados, contra a nossa colônia ou contra
todo o mundo cristão. E quem sabe que males fariam os feiticeiros pagãos. É
um problema demasiado grave para um simples rapaz resolver.
Sadrinho inclinou-se para a frente e acenou afirmativamente.
- Sabia que viríeis a compreender, António.
- Sim, vós convencestes-me. Irei. Não para vos trazer mais pó,
contudo, mas para destruir a sua fonte.
Sadrinho apertou as mãos e ergueu-as para o céu.
- Glória a Deus. Eu sabia que Ele vos inspiraria para ver a luz.
- Sim - murmurou Gonsção. - Acredito que Ele o fez. O inquisidor
levantou-se e foi até às portas do escritório, abrindo a da direita. O Irmão
Timóteo entrou.
Que bem arranjada que está esta dança. Sadrinho sabia que eu iria
concordar por fim.
- Deus seja convosco, Domine - disse Timóteo. - E convosco, padre.
Pus a confissão do senhor Chinnery no seu devido lugar e disse ao Irmão
Marco para escrever a carta ao governador como vós pedistes.
- Muito bem, Timóteo. Agora, António, devo ir diligenciar para que
sejam adquiridas provisões para vós. Este projeto deve entrar em ação tão
depressa quanto possível. Por favor ficai, Timóteo. Ficai à vontade para
conversar na minha ausência. Há muitas coisas que vós e o padre deveis
discutir. Sadrinho saiu, fechando a porta atrás de si. Timóteo piscou os olhos
sentindo-se desconfortável.
- Quereis falar comigo, padre?
Gonsção sentiu ele próprio algum desconforto.
- Ouvi dizer que o inglês confessou.
O sorriso do rapaz era brilhante como o Sol.
- Não é maravilhoso, padre? Que extraordinário é o trabalho do
Senhor.
- É verdade. Ele trabalha de modos desconhecidos. O Domine
Sadrinho disse-vos quais as intenções que tem a vosso respeito?
Timóteo inclinou a cabeça.
- Outra tarefa, padre? Vou ser advogado de um novo hóspede?
Gonsção suspirou. O Domine até deixa para mim o anúncio das
novidades.
- Não, Timóteo. Nós vamos fazer uma grande viagem, vós e eu.
Os olhos do rapaz esbugalharam-se.
- Uma viagem, padre? Através do mar? Para Lisboa ou Roma?
Rindo tristemente, Gonsção disse.
- Ai, não, meu filho. Nem por mar nem para nenhum lugar tão
importante. Nós vamos para a selva da índia. A viagem será perigosa e o que
vamos procurar pode ser ainda um perigo maior.
- Perigo, padre?
- O inglês que vós ajudastes disse que nos levaria à fonte do pó, que
traz os mortos à vida. Domine Sadrinho acredita que ele pode ser de valor
inestimável para a Santa Casa. Eu não tenho tanta certeza. E o inglês pode
tentar levar-nos por um caminho errado.
- Não, não, padre! O senhor Chinnery é um bom homem. Eu sei
isso. Se ele diz que nos levará lá, eu acredito nele.
- Espero que a vossa fé esteja bem localizada, Timóteo. Mas de
qualquer forma, enfrentaremos muitos perigos. Para lá de Goa, há poucos que
honrem a Santa Casa, ou mesmo que conheçam o nosso Deus.
- Eu compreendo, padre.
- Quereis ir em tal viagem, meu filho? O Domine Sadrinho está
decidido a enviar-vos, mas eu proteger-vos-ei, se escolherdes não ir.
O rapaz olhou para as sandálias por um longo momento. Olhou de
novo para cima e disse:
- Se é ao serviço de Deus e da Santa Casa, então eu devo ir.
Seremos como os cavaleiros das Cruzadas, ou aqueles que procuravam o
Santo Graal, não é?
Gonsção sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Timóteo.
- Como os cavaleiros em cruzada, meu filho. Admiro a vossa
coragem e bom coração. Talvez sobrevivamos juntos a esta viagem.
Capítulo XXI
ACÓNITO: Esta planta tem apenas uma haste que cresce de uma
raiz tuberosa. As folhas são escuras por cima e claras por baixo e tem
no cume um cacho de flores purpúreas, que têm a forma de um capuz
de monge. Também lhe chamam a flor-do-capacete ou napelo. Deve-se
tomar muito cuidado com o uso desta erva, pois dela se faz a decocção
de um veneno mortal que aflige as pessoas com paralisia, enquanto
mata. O único antídoto é feito de lesmas que se tenham alimentado de
triaga. Diz a lenda que o acônito cresceu, pela primeira vez, da baba
que gotejava do bucho de Cérbero, o cão das três cabeças que guardava
os portões de Hades, foi usado pela deusa-bruxa Hécate para envenenar
o pai. Dizem que as bruxas mastigam as folhas de acónito para se
entorpecerem e terem visões de viagens a terras distantes...
Thomas estava sentado num banco de pedra frio, num pátio da
Santa Casa. Encostou-se, contra a parede atrás de si, de olhos fechados. A
brisa matinal deslizava sobre ele, pássaros exóticos pairavam e cantavam nos
ramos das árvores, por cima da sua cabeça. Thomas tentou não pensar na
dor.
Os braços pendiam-lhe inúteis, as mãos repousavam no regaço. Se
as cordas pudessem sentir como os seus membros, seria assim que sentiriam?
Cingidas, torcidas e queimadas nas extremidades? As mãos tinham sido
envolvidas em ligaduras ensopadas num bálsamo com um cheiro estranho.
Eu devia perguntar ao Irmão Timóteo o que foi usado, pois parece
ter virtude. As queimaduras da corda atormentam-me, mas não tanto como
poderiam.
Os sons da preparação para a viagem continuavam à sua volta: as
mulas a serem seladas, as carroças a serem carregadas, os homens a gritar
ordens. Thomas uma vez mais deu graças a Deus pela proximidade da sua
fuga da Santa Casa. E depois perguntou-se com tristeza, se Deus estaria a
ouvir. Se a sua confissão forçada e o batismo tivessem sido a iniciação na fé
verdadeira, então Deus poderia estar agora a ouvi-lo pela primeira vez. Porém,
se Thomas tivesse renunciado àquilo que era a fé verdadeira, então os ouvidos
do céu podiam agora estar fechados para ele, para sempre.
Uma sombra caiu sobre ele e Thomas abriu os olhos. Um monge,
com o rosto obscurecido pelo capuz castanho de jesuíta, estava ao lado dele,
de pé.
- Bom dia, Irmão - disse Thomas, não se preocupando por ter
misturado a língua inglesa e a portuguesa na saudação.
O monge acenou com a cabeça.
- Bem, encontramo-nos de novo e em melhores circunstâncias,
rapaz. Parece que a minha fé foi bem colocada em ti.
Thomas franziu a testa.
- Não se pode dizer propriamente que eu esteja bem, Andrew.
- Mas estás vivo e algum dia estarás livre, o que é mais do que
puderam dizer muitos dos que entraram nestas paredes.
- Antes que algo mais escape dos vossos lábios, Andrew, lembrai-
vos que tenho uma questão que quer resposta.
Lockheart fez uma pausa.
- E tê-la-ás, quando chegar o momento certo. Mas não aqui. Aquele
frade dominicano que ali vem, está desconfiado do teu intento. Temos de
esperar um pouco.
Ao som dos passos que se aproximavam, Thomas voltou a cabeça.
Era o dominicano, padre Gonsção, com a capa preta rodopiando-lhe em torno
da batina branca.
- Boa manhã, Irmão, Senhor Chinnery. - O frade negro
cumprimentou-os a ambos com a cabeça e abençoou Thomas em latim,
fazendo-lhe o sinal da cruz. O padre Gonsção parecia ter mais de 30 anos,
com o rosto marcado pela experiência, não pelo tempo. Os olhos cor de avelã
indicavam alguma inteligência e integridade, mas Thomas perguntou-se a si
próprio que crueldades eles teriam contemplado no trabalho do padre. Pela
maneira como Gonsção olhou carrancudamente para os preparativos, Thomas
concluiu que o bom padre não estava de modo nenhum satisfeito por fazer
parte da expedição.
- Como vos sentis hoje, meu filho? - disse o padre Gonsção em
latim, com sotaque português. Estendeu a mão, como que para apertar o
ombro de Thomas, depois deteve-se.
- Estou melhor, padre - disse Thomas.
- Vou rezar ao bom Deus para sarar os vossos braços, como sarou a
vossa alma.
- Os meus agradecimentos. O vosso Irmão Timóteo tem habilidade
nas artes de curar. Ouvi dizer que ele viria convosco, contudo não o tenho
visto. - De fato, o rapaz não tinha falado de outra coisa, enquanto punha
ligaduras nas mãos de Thomas na noite anterior, tagarelando sobre os
cavaleiros das Cruzadas, o rei Artur e o Graal, Jasão e o velocino de ouro,
Odisséia, Herodes e Perseu. Como se esta louca viagem fosse alguma
expedição saída da lenda. Que pena que eu tenho de desapontá-lo. Porque se
eu levar a minha avante, esta expedição terminará em Bijapur.
- Ele vai - disse o padre Gonsção, franzindo a testa em
desaprovação. - Mas esta manhã foi dizer adeus à família. Juntar-se-á a nós
mais tarde, fora da cidade, onde nos vamos juntar à caravana que nos
acompanhará.
Lockheart começou a falar para o padre em português. Thomas não
conseguia perceber muito do que era dito, mas concluiu que o escocês estava
a oferecer uma gratidão untuosa e devota e a assegurar o bom comportamento
no futuro.
O padre Gonsção aceitou isto com um aceno de cabeça superficial e
desculpou-se rapidamente, dirigindo-se para onde estavam as mulas
carregadas e as carroças saindo do caos para formarem uma linha grosseira.
- Aquele não é louco nenhum - disse Lockheart. - Não confia em
nós. Devemos tomar muito cuidado, para que ele não adivinhe o nosso
propósito. - Olhou para trás, para Thomas. - Seja lá ele qual for.
- O nosso propósito? A minha intenção era fugir para casa à
primeira oportunidade.
Lockheart acocorou-se sobre um joelho ao lado de Thomas.
- É isso? - disse ele suavemente. - Na verdade não tencionas
procurar a fonte do precioso pó?
Thomas suspirou.
- Quando soube dele pela primeira vez, Andrew, tinha pensado
procurá-lo, para tirar alguma glória do desastre. Agora - olhou para os braços
-, penso que está para além de mim.
- O corpo e o espírito podem curar-se, rapaz. As hipóteses podem
ser melhores do que pensas. O feiticeiro disse-te onde estava a fonte?
Thomas olhou para Lockheart por um momento.
- Sim, mas não em pormenor. É claro que há um mapa. Lockheart
ergueu as sobrancelhas.
- Um mapa! Ainda o tens?
Thomas sorriu perante a ganância do escocês.
- O Domine tirou-mo, ainda antes de eu o ter lido. Sem dúvida que
o nosso bom padre o tem agora.
- Realmente? Então... que necessidade tem ele de vós?
- O mapa tem pouca utilidade, para quem não souber decifrá-lo,
nem o que significam os símbolos que estão escritos nele. Cartago teve de me
dizer o que ele mostra. Eu inventei armadilhas e enigmas para serem
resolvidos no percurso e que embora eu não pudesse predizer quais seriam,
tenho o conhecimento para os ultrapassar.
- Rapaz esperto. Então apenas tu podes interpretar o mapa?
Thomas fez uma nova pausa.
- Talvez. Embora eu tenha esquecido muito do que Cartago me
disse. Lembro-me de que Bijapur era um lugar de nota. E a partir daí, muita
coisa é possível.
Lockheart semicerrou os olhos por um momento, depois sorriu
abertamente.
- Bem, então, não planejaremos para além disso. - Bateu nos
joelhos de Thomas, amigavelmente. - Bijapur é o nosso objetivo por agora.
Depois disso veremos onde o destino nos conduz. Vem, parece que já têm o
teu corcel pronto.
Thomas ergueu-se, com a ajuda de Lockheart e deixou-se conduzir
até uma mula alta e castanha, cujas rédeas estavam seguras por um jovem
dominicano. Com muita dificuldade e dor, Thomas conseguiu içar-se
desajeitadamente sobre a sela e rolar para uma posição sentada. Tentou deitar
a mão às rédeas, mas o monge abanou a cabeça negativamente.
- Por Cristo - rosnou Thomas para Lockheart. - Os meus braços
inutilizados não são o suficiente para provar que eu sou de confiança? Tenho
de ser conduzido por esta criatura?
- Não é da natureza da Santa Casa demonstrar demasiada
confiança. Temos de provar primeiro a nossa mansidão. Tens de ser paciente.
Ah, lá vêm os homens do governador.
Os portões do pátio abriram-se para entrarem doze soldados goeses.
Os elmos de bronze em forma de barco e as condecorações polidas brilhavam,
tal como as espadas que traziam nas ancas.
- Somente uma dúzia - murmurou Lockheart. - O governador não
estava com uma disposição muito generosa. Mais boas notícias para nós, eh? -
Deu uma palmadinha na perna de Thomas e afastou-se descendo em direção
às carroças pesadamente carregadas.
A mula de Thomas resfolegou e movimentou-se impacientemente
debaixo dele. Thomas observou os soldados, enquanto passavam por ele a
cavalo nos seus corcéis sem valor. Thomas não era grande avaliador de
cavalos, mas estes não pareciam ser da melhor raça, nem tinham recebido o
melhor tratamento. Os próprios soldados eram, notou ele, todos tão magros e
duros como o homem no Aljouvar, Joaquim. Com efeito, um dos soldados
parecia-se fortemente com ele. De fato, este reparou em Thomas e chamou-o:
- Ei, inglês!
- Joaquim, juro pela minha alma! - exclamou Thomas. Que milagre
é este?
Ignorando os olhares dos outros soldados, Joaquim aproximou o
cavalo até junto de Thomas.
- De que milagre falais, senhor? Que eu esteja aqui, ou que vós
estejais a sair deste lugar com vida?
- O primeiro, meu amigo. Dar-vos-ia um abraço, mas os meus
braços... não são o que eram.
Joaquim acenou intencionalmente.
- Ainda bem, meu amigo, pois não seria bom que os meus colegas
me vissem abraçar um terrível estrangeiro herético como vós.
- Herético, já não, Joaquim. Fiz a minha confissão na Santa Casa.
- Ah, graças à Virgem Maria. Não admira que vos tenham deixado
vivo. Então agora sois simplesmente um inglês imundo e quase digno de ser
meu amigo - disse Joaquim com um sorriso.
- Espero poder provar o meu valor a seu tempo - disse Thomas. -
Mas não me respondestes.
- Mas isto não é nenhum milagre, senhor. Quando a Santa Casa
pede soldados para uma longa viagem fora de Goa, o nosso sargento manda os
seus melhores homens? Não, ele manda às prisões procurar homens
indesejáveis que estejam desesperados. Então vieram ter comigo no Aljouvar e
disseram: ”Joaquim, preferes ir numa missão para a Santa Casa, ou ser
enforcado como ladrão? Foi uma escolha difícil, senhor. Mas como sou um
homem corajoso, escolhi a viagem difícil em vez de uma morte fácil.
Thomas riu.
- Fico grato pela vossa coragem, Joaquim. - Notou que o padre
Gonsção estava a olhar para eles do outro lado do pátio. Ai, este encontro
certamente não encorajará a sua confiança.
Joaquim olhou de relance para Gonsção.
- O padre não parece satisfeito, Thomas. Falaremos mais tarde, está
bem? - Joaquim piscou o olho e partiu a cavalo até onde os outros soldados se
encontravam à espera. Estes lançaram a Joaquim olhares curiosos, mas não
pareceram zangados.
Com o ânimo mais leve, Thomas suspirou e relaxou na sela. A
esperança ainda é possível, se a providência me traz de novo a companhia de
tais homens.
A medida que a órbita do Sol se elevava por cima da parede do
pátio, eram feitos esforços finais para a partida; os abegãos puxavam pelas
cangas dos bois e os carroceiros verificavam as rodas e os eixos. O padre
Gonsção finalmente montou a cavalo, um corpulento picarço. Lockheart ia
atravessado numa mula preta e cavalgou com o padre para a frente da
caravana.
A quem serve agora o bom Irmão Andrew?, perguntou-se Thomas. A
ele próprio, a Deus ou à Santa Casa?
Os soldados tomaram posições: quatro à frente com o padre
Gonsção e Lockheart, quatro atrás, depois dos carregadores e das carroças e
quatro no centro, onde Thomas seguia.
De algum modo, Joaquim tinha-se colocado entre estes e
descaradamente cavalgava ao lado de Thomas, tendo tirado as rédeas da mula
das mãos do dominicano.
- Como ficaste encarregado de tomar conta de mim, Joaquim?
- Nós, soldados, sabemos o efeito que o Aljouvar pode ter num
homem, senhor. Disse-lhes que conhecia todos os vossos truques, que mós
tínheis contado nas masmorras e, por isso, eu era o mais indicado para vos
conduzir.
Thomas riu.
- Quem me dera ter sido abençoado com a vossa língua ligeira,
senhor.
- Tentais chamar-me mentiroso, senhor?
- Nunca eu seria capaz de insultar assim um gentil homem tão
terno. Mas admiro a vossa habilidade, para explicar como as coisas devem ser.
Dizei-me, tendes novas dos outros? Sabdajnana está livre?
Joaquim rosnou.
- Foi libertado pouco tempo após a vossa partida, senhor. A família
resgatou-o por uma alta soma.
- Fico contente. E Van der Groot? Ainda está na prisão? Joaquim fez
uma pausa e depois disse suavemente:
- Escapou do Aljouvar.
- Excelentes notícias - disse Thomas também baixando a voz. - Foi
para casa, então?
- Poder-se-á dizer que sim, senhor. Há uma hipótese de poderdes
vê-lo, uma vez que estamos a sair da cidade.
- De verdade? Então talvez eu possa informá-lo de que estamos
bem.
Joaquim olhou-o de modo peculiar, mas não disse nada.
Numa varanda por cima deles, surgiu o inquisidor Sadrinho, com a
batina negra flutuando na brisa da manhã. Ergueu os braços e abençoou a
expedição, terminando com exortações à glória e votos de felicidades. Thomas
perguntou a si próprio, quanto teria sido dito aos outros da expedição, aos
soldados, aos carroceiros e aos servos, sobre o seu propósito e o que eles
acreditavam que iriam encontrar como resultado desta viagem. Que estranho
que o meu estratagema tenha levado a esta volta no meu destino. Quantas
vidas eu destruí, meramente com o fim de ficar livre? Oxalá não lhes aconteça
nenhum mal, quando eu os abandonar.
Finalmente o padre Gonsção gritou:
- Adiante!
O grito foi levado pela linha fora, como uma onda no mar. os
chicotes estalaram, os homens puxaram pelos bois e cavalos, as rodas das
carroças chiaram e lentamente a procissão pôs-se em movimento.
Joaquim estalou a língua para a mula de Thomas. Esta espetou as
orelhas para a frente e iniciou uma caminhada vigorosa para acompanhar o
cavalo mais alto, ao seu lado. Thomas agarrou a saliência fronteira da sela
com ambas as mãos para ganhar balanço, estremecendo com a dor.
Só depois de terem passado os portões nos muros da Santa Casa, é
que Thomas sentiu os músculos a relaxar e a respiração a tornar-se mais
livre. Não se tinha permitido acreditar na fuga até ao momento.
- Graças a Deus, nesta manhã tão gloriosa - murmurou. A
procissão passou através das ruas tranqüilas, diferentes das avenidas
apinhadas, cheias de homens e animais que Thomas tinha visto no seu
primeiro dia em Goa. De fato muitas portas e persianas estavam fechadas.
- Joaquim, é feriado ou dia de festa? É por isso que a cidade parece
vazia?
O soldado resfolegou.
- Olha outra vez, Tomás. - Os goeses não são loucos. Foram
avisados para não interferirem com o progresso da Santa Casa tão amada.
Thomas observou as casas por onde passaram, cuidadosamente, e
notou que havia rostos cautelosos a espreitar por trás das cortinas e das
persianas. As crianças pequenas estavam a ser arrastadas para dentro das
portas, pelas mães. As crianças mais velhas, escondidas nas sombras, faziam
figas ao padre Gonsção.
- Sabem que estamos a sair da cidade - disse Joaquim -, ou não
seriam tão atrevidos.
Uma grande árvore familiar surgiu à vista, com homens sentados à
sombra dela. Estes ergueram os olhos silenciosamente, enquanto a procissão
passava e Thomas reconheceu um rosto de barba branca. Não ousou chamar
o padre Stevens, nem pôde erguer uma mão em saudação. Thomas apenas
acenou gravemente para o velho monge. O padre Stevens fez um aceno grave
em resposta e pareceu pronunciar as palavras ”Vai com Deus”.
As casas ao longo da rua mudaram gradualmente de ricas casas
citadinas portuguesas, para casas vedadas com muros de prósperos
mercadores hindus e muçulmanos, e depois para simples cabanas cobertas de
colmo dos hindus, que cheiravam fortemente a excrementos de animais.
Thomas calculou pelo Sol, que se estavam a dirigir para Norte e
para Leste. Passaram por uma abertura numa muralha de pedra a
desmoronar-se e emergiram numa estrada larga que ia de Leste para Oeste. A
Norte havia um rio castanho, tão largo que a outra margem era uma baça
linha escura no horizonte.
Pequenos templos ponteavam a margem mais próxima e para além
deles, os barqueiros com paus, faziam deslizar sobre a água plácida, estreitas
embarcações cheias de peixe e de flores e de frutos coloridos.
- Ah! - disse Joaquim. - Lá está o Pedro. Estais a vê-lo?
- Não. Onde está? - Thomas olhou para cima e para baixo, vendo
apenas esbeltas mulheres hindus carregando cestos.
- Lá atrás, na muralha.
Thomas olhou para trás, para a muralha em ruínas e o que viu
gelou-lhe o coração. Três cadáveres estavam pendurados em grampos,
voltados para o rio. Um, era pouco mais que um esqueleto embrulhado em
pele. Outro, vestia trapos por cima da pele seca e castanha. O terceiro era
louro e vestia o gibão e os calções de Van der Groot. Os pássaros estavam a
debicar no que sobrava dos olhos.
- Meu Deus - murmurou Thomas, desviando o olhar. Dois soldados
benzeram-se. Os outros riram e fizeram gracejos. - Porque não me haveis dito
que ele estava morto?
- Eu disse-vos que ele tinha fugido de Aljouvar, Thomas. Não há
fuga mais certa do que a morte.
Capítulo XXII
OLIVEIRA: Esta árvore tão venerada está sempre verde, com tronco
amarelo e com um fruto que contém azeite e que tem a cor verde ou
preta. Diz-se que vivem até avançada idade. A infusão das folhas
acalma o espírito. A decocção das cascas reduz a febre. O azeite do fruto
cura queimaduras e quando engolido ajuda a digestão. Para os antigos,
era consagrada a Athena e os Romanos faziam coroas das folhas de
oliveira para significar conquistas e reinado pacífico. No Oriente, a
oliveira é o símbolo da paz, da realização, do incremento e das viagens
em segurança...
O padre Gonsção ouviu agitação atrás de si e voltou-se na sela.
Alguns soldados pareciam estar a gozar uns com os outros acerca dos
criminosos pendurados na muralha da cidade. Com um suspiro, Gonsção
voltou-se novamente para a frente. Timóteo a conduzir tais homens. Como é
que o Sadrinho pôde ter tal pensamento?
Quem lhe dera ter o entusiasmo de Timóteo em relação à viagem.
Ou mesmo o do Irmão Andrew, que pairava ao seu lado sobre os estranhos
templos e as curiosas plantas e animais. Quanto mais se afastavam das
paisagens familiares, mais pesado ficava o coração de Gonsção. Como é que
eu me deixei convencer a isto? Depois lembrou-se da ganância no rosto de
Sadrinho, o horror do feiticeiro trazido à vida novamente. Que idiotice a
minha. O meu desconforto não é nada comparado com a importância de
destruir o mal que nós procuramos.
Tendo descido alguns quilômetros pela estrada, chegaram a uma
área aberta da planície coberta da poeira vermelha, circundada por altos
coqueiros e bananeiras. Alguns camelos ajoelhados à sombra mastigavam erva
preguiçosamente e observavam a aproximação da caravana com grandes olhos
negros. Os seus guias de turbante, com rostos escuros e marcados pelo
tempo, sentavam-se ao lado deles, mascando betei ou conversando
calmamente. Os homens da caravana não se levantaram, quando Gonsção
cavalgou até à clareira, nem chamaram ou lhe prestaram sequer muita
atenção.
O Irmão Andrew olhou em volta.
- Parece que a nossa caravana está aqui. Esperamos apenas pelo
Irmão Timóteo?
- Não - disse Gonsção desmontando. - O chefe da caravana deverá
juntar-se a nós.
- Ele não é nenhum destes?
- Ela - disse Gonsção desmontando. - É uma viúva do clã dos
Maratas. Herdou o negócio do marido. Mas não vejo que já tenha chegado um
palanquim de mulher.
- O quê? - disse o Irmão Andrew, deixando-se cair da mula. - Ela
não teve as boas maneiras de se lançar sobre a pira do marido?
Gonsção franziu o sobrolho.
- Tendes um estranho sentido de humor, Irmão. Essa prática
bárbara, ouvi dizer, foi proibida em Goa.
- Então ela fez a sábia escolha do lar e da lareira. Perdoai-me,
padre. Hoje estou com um humor esquisito.
- Devemos considerar esta viúva com respeito - disse Gonsção,
conduzindo o cavalo até um tronco de palmeira onde o atou -, porque é a
riqueza da família dela que em parte suporta esta expedição, e é o seu nobre
parentesco que nos levará a conseguir uma audiência com o sultão em
Bijapur.
- Prometo governar a minha língua com cuidado na sua presença.
- Vós não estareis na sua presença, Irmão - disse Gonsção,
enquanto observava o resto da expedição a deslocar-se até à clareira. -
Disseram-me que as senhoras brâmanes se mantêm afastadas dos estranhos,
quase tão estritamente quanto as muçulmanas. Provavelmente nem sequer
nos falará, senão através das suas servas. Espero que vós e o resto do nosso
grupo adiram a esse costume.
- Podeis contar comigo, padre.
- Espero que sim. Ah. Fareis melhor em ir ver o vosso jovem senhor
Chinnery. Parece que está a ter dificuldade para descer da mula.
Thomas estava deitado sobre o estômago, atravessado na sela, com
o rosto a arder com o esforço e a vergonha. Não ousava mexer-se, temendo
uma queda de cabeça. Os braços agitavam-se ao lado do corpo, inúteis como
as asas de um pássaro acabado de nascer.
- Oh, tu aí, rapaz! Espera um momento, estou aqui. Thomas sentiu
Lockheart agarrar-lhe as costas da camisa e a cintura das calças. Com um
puxão poderoso, Thomas foi puxado para fora da sela e para os braços fortes
de Lockheart.
- Porque não chamaste por alguém, rapaz? Onde está o teu
cavaleiro goês?
- Penso que foi urinar - arquejou Thomas, tentando manter-se de
pé. - Isto é uma idiotice, assim eu não sirvo para nada.
Lockheart olhou por cima do ombro.
- Vem, e eu farei o serviço antes de o bom padre poder piscar um
olho.
- O serviço? - Thomas foi empurrado por Lockheart à volta da mula
e para uma grande pedra, fora da vista do padre Gonsção. - De que serviço
falais?
- É melhor ajoelhares-te, rapaz. Serei rápido, prometo. Lockheart
enrolou uma perna à volta dos tornozelos de Thomas, fazendo-os desaparecer
debaixo dele. Enquanto Thomas caía para a frente, Lockheart segurou-o com
uma mão por baixo do peito. O antebraço foi apanhado pela grande mão
direita de Lockheart. Com uma torção poderosa, Lockheart empurrou o ombro
de volta ao seu encaixe, com um rangido de causar náuseas.
Thomas gritou. A dor foi tão intensa quanto o strappado.
- Coragem, rapaz. Mais uma vez.
- Não...
Mas Lockheart habilidosamente agarrou o braço esquerdo de
Thomas. De novo veio a torção e o ranger do osso. Thomas mal podia respirar,
enquanto as lágrimas se lhe derramavam dos olhos. Encostou-se contra as
rochas, os olhos fechados, com os ombros e os braços latejando de dor.
Ouviu passos a correr e quando voltou a abrir os olhos, ele e
Lockheart estavam rodeados por soldados com as espadas em punho.
O padre Gonsção forçou caminho por entre os soldados e olhou
para ele e para Lockheart.
- O que estais a fazer?
- Pedistes-me para o ajudar a descer da mula, padre. A única ajuda
para ele, contudo, era pôr-lhe os ombros no lugar. De outro modo precisaria
de ajuda para subir e descer durante toda a viagem.
Thomas sentiu o sofrimento nos ombros a diminuir para uma dor
que rugia. Sem pensar, ergueu as mãos para lhes tocar e ficou maravilhado
por poder mexer de novo os braços. O padre semicerrou os olhos com
desconfiança e ajoelhou-se junto de Thomas
- Porque é que ele gritou?
- Tive de o magoar a fim de o ajudar, padre. Como é necessário ao
recolocar um membro que se partiu, ou ao cortar um que está podre. Ou ao
garantir uma confissão, talvez? Como podeis ver, ele recuperou. Um pouco de
sofrimento, por vezes, pode ser tão bom para o corpo como para a alma.
Thomas disse:
- Está tudo bem, padre. Ele apenas... me surpreendeu. Já ouvi falar
do método, embora seja a primeira vez que o veja pôr em prática. Ajudará à
minha recuperação.
- Ai, eu ajudei-te no teu negócio também, ao ensinar-te uma outra
arte de curar.
- Uma que eu possivelmente não virei a empregar - disse Thomas,
fazendo uma careta e esfregando os braços.
- Muito bem - disse o padre Gonsção. - Tomai cuidado, meu filho.
Nós contamos convosco.
Olhando furiosamente para Lockheart, Gonsção ergueu-se e
afastou-se.
Os soldados também se dispersaram, alguns olhando para Thomas
com divertimento, outros aborrecidos por terem sido incomodados por nada.
Joaquim demorou-se mais um momento, olhando para Lockheart
especulativamente.
- Vós, Irmão, fostes soldado, não é verdade?
- Entre outras coisas - disse Lockheart.
Joaquim sorriu para Thomas e afastou-se para se ir juntar aos seus
companheiros.
Thomas encostou as costas contra a rocha. Lockheart sentou-se
pesadamente ao seu lado.
- Suponho que devia agradecer-vos, Andrew - disse Thomas.
- Os agradecimentos não fazem falta, rapaz. Embora pense que o
padre tenha querido manter-te fraco. Não irá agradecer-me, tenho a certeza.
- Então fostes soldado. E mercador de lã. E agora médico. Assim
como um falso monge.
- E muitas outras coisas, além disso, embora este hábito seja mais
apto do que muitas outras coisas que usei.
- E que trajo usa o homem que vos mandou atrás de mim?
Lockheart suspirou e encostou a cabeça para trás, contra a pedra.
- Roupas muito familiares para ti, rapaz. Foi o teu próprio pai que
me enviou para zelar por ti.
Thomas olhou fixamente, sem falar.
- Agora provastes que sois um mentiroso, Andrew. Como disse, o
meu pai não se preocupa nem um pouco comigo.
- E como disse, muitas vezes o cuidado de um pai não é visível.
Quando ele soube que tu estavas para ir numa viagem tão longa, contratou-
me para te seguir e proteger.
- Por que razão não falastes disso antes? O meu pai não podia ter-
vos apresentado a mim antes da viagem?
- Vamos, então, o que terias dito a tal encontro? Certamente
desejarias provar a tua masculinidade nessa viagem.
- Como terias aceite uma ama como presente do teu pai? Não te
terias enraivecido com fúria? Não terias desdenhado a minha companhia como
se fosse um leproso?
- Verdade. Tendes toda a razão. Enfurece-me agora que o meu pai
tivesse tão pouca fé em mim.
- Isto não é falta de fé, mas excesso de cuidado. És importante para
nós, Tom. Mais do que pensas.
- Que tipo de ama é que era capaz de entregar o seu protegido nos
braços do pirata e no peito da Inquisição?
Lockheart olhou para o chão.
- Uma ama louca e covarde, confesso, embora até esse abandono
possa parecer um ato de bondade, se se soubesse toda a verdade. A nossa
viagem parecia no fim, o meu dever um fracasso. Num momento de fraqueza,
decidi escapar ao meu destino e abandonar-te ao teu, o que de algum modo
consegui. Mas os poderes divinos não se deixaram frustrar e tu seguiste um
castigo apropriado. Mas deves concordar que te compensei desde então. Sem
mim, nunca terias deixado a Santa Casa.
- Sem vós, eu nunca teria ido para lá.
- Todas as coisas têm um propósito, Tom, embora possam estar
para além do nosso alcance. Talvez estejas destinado a encontrar o fabuloso
elixir da vida e morte. Talvez nasça da própria pedra filosofal da lenda. Não é
verdade que todos os heróis da lenda sofrem provas de força e coragem, antes
de lhes ser permitido avançar em direção ao seu objetivo almejado?
- Começastes a falar como o Irmão Timóteo. Não tenteis distrair-me
com histórias, Andrew. Tendes provas que foi o meu pai quem vos contratou?
- Somente esta - Lockheart tirou para fora da gola do seu hábito
castanho, um medalhão de prata numa corrente. Thomas segurou-o
gentilmente e examinou-o. De um lado estava estampado um veado de patas
erguidas, sobre uma Lua em quarto crescente. Na outra havia uma figura
feminina com trajo grego, de pé entre dois cães esguios.
- De fato, o meu pai tinha um medalhão como este. As imagens
trouxeram ao de cima fragmentos de memórias de infância ou de sonhos,
vacilando vagamente como algas, logo abaixo da superfície do oceano. Um
gosto de vinho doce e mel, vozes cantando demasiado baixo para serem
inteligíveis, uma lua em quarto crescente brilhando por cima das árvores, cães
ladrando à caça.
- Um sinal da sua boa-fé em mim.
- Ou vós roubastes. O mestre Coulter sabe de vós e da missão de
que estais incumbido?
- Não, poder-se-ia dizer que ele e o teu pai... não estão de acordo.
Por isso não lhe foi dito nada.
- Hum. Nunca ouvi o meu mestre falar mal dele. A sua boa esposa,
senhora Coulter, em tempos esteve em desacordo.
- Pode ser que fosse a sua intromissão que o vosso pai receava,
então.
- Não sei porque é que se havia de intrometer, já que foi ela que me
pôs na nossa mal afortunada viagem. Ela disse que curaria os meus pesadelos
e assim foi, até que chegamos à índia.
Lockheart olhou-o curiosamente, mas não disse nada. Thomas
entregou-lhe de novo o medalhão.
- Ainda não estou convencido se sois um amigo ou o filho da puta
mais aldrabão que alguma vez saiu da Escócia.
Lockheart levantou as mãos dos joelhos, encolhendo os ombros.
- Então devemos deixar o tempo e os acontecimentos darem-nos a
resposta.
Nisto, chegou um sopro distante de trompas, vindo do fim da
estrada. Os camelos na clareira levantaram os seus focinhos e cheiraram o ar.
Os condutores levantaram-se, sacudindo as vestes compridas. Os soldados
pararam de jogar e levantaram-se.
- Dir-se-ia que o chefe da caravana se aproxima - disse Lockheart.
Thomas perscrutou a estrada e viu dois hindus de pele escura com
as compridas trombetas que tinham soado ainda há pouco, mais dois camelos
pesadamente carregados com barris e caixas. Atrás deles havia um grande
palanquim carregado por oito homens, coberto com uma tenda de pano
púrpura, com laços e borlas de ouro. Por trás dele caminhavam quatro servas
com sáris escarlates e argolas de ouro nos narizes, falando com gestos
animados e dedos pintados de vermelho.
- Uma pessoa rica - disse Thomas.
- Com efeito, e ela paga a nossa viagem; por isso o padre deseja que
nos mantenhamos afastados, para não ofendermos as suas nobres
sensibilidades.
Thomas concordou com um gesto de cabeça; depois viu um
momentâneo lampejo de luz do Sol sobre a prata e um movimento - um braço
esguio saindo para fora do palanquim, lançando algo fora. O gesto era
familiar. O coração quase lhe parou no peito. Podia ser?
Aditi limpou a mão na saia, depois de deitar fora o bolo de betei
meio comido. Tenho de parar de mastigar isto. É um hábito sujo. Os meus
dentes já estão a ficar manchados.
Mas o seu espírito precisava de ser acalmado desde o puja no
templo de Mahadevi. O seu desassossego tornou-se pior, quando o servo que
tinha mandado ao padre Stevens voltou com a notícia de que o jovem Tamas
tinha sido preso na Ordem de Gor. Não sabendo o que Cartago lhe tinha dito,
Aditi ficara quase frenética com a preocupação e a impotência.
Nessa altura tinham chegado as notícias de que os monges da
Ordem de Gor procuravam uma caravana que estivesse de partida para
Bijapur e apoio para uma expedição de pouca importância ao Decão. No seu
coração Aditi sabia a razão. Convenceu os patronos a mandá-la como chefe da
caravana. Foi, compreendeu então, a missão para a qual tinha ficado em Goa,
como se Gandharva tivesse de certa forma sabido. Era dharma; o que quer
que fosse, os monges da Inquisição não podiam encontrar Mahadevi.
O balanço do palanquim parou e Aditi espreitou para fora pela
cortina lateral. Os condutores de camelo na sombra das palmeiras estavam a
levantar as bestas que gemiam. Estes homens sabiam do seu ofício e ela não
estava preocupada com eles.
Chamou uma das servas silenciosamente.
- Qual é o vosso desejo, Sri Aditi?
- Não podes pronunciar esse nome. Agora sou senhora Agnihotra.
Olha em volta e diz-me quantos soldados vês.
- Perdoai-me... Sri Agnihotra - A rapariga olhou em volta, afastou-se
por um momento e depois regressou. - Não muitos. Só vejo doze.
- Mais do que eu gostaria, mas vou conseguir. Quantos monges?
A rapariga afastou-se apressadamente, de novo. No regresso disse:
- Um com hábito preto e branco e um castanho.
- Só dois. É boa sorte. E viste um jovem pálido com cabelo loiro?
- Sim, Sri Agnihotra. Está além, junto às rochas.
- Ah. - Aditi espreitou para onde a rapariga apontou. Viu-o e sentiu
um estranho aperto dentro de si. Ele está mais magro e pálido. Mas o que é
que eu esperava? A Ordem de Gor nunca é bondosa e eles certamente fizeram
tudo o que puderam para perscrutar os seus segredos. Tenho de descobrir o
que ele lhes disse e ver se não descobrem mais nada.
Além de Tamas, ela reconheceu o desleal Lockheart, com o disfarce
de monge. Assim fica ainda mais interessante. Será que ele também busca o
Rasa Mahadevi?
A serva regressou.
- Sri, o padre da Ordem de Gor, padre António Gonsção, envia os
seus cumprimentos e pede para demorarmos um pouco mais a nossa partida.
Diz que esperam mais uma pessoa do seu grupo. Outro monge.
- Outro monge - suspirou Aditi. - Mais uma vez ao contrário do que
eu teria desejado. - Olhou de relance uma vez mais para Tamas. - Enquanto
estamos atrasados, pede ao louro que se aproxime do palanquim. Se te
interrogarem, diz que nunca vi ninguém com a sua aparência e que estou
curiosa.
A serva curvou-se.
- Como desejardes, sri Agnihotra. - Aditi fechou a cortina e
recostou-se nas almofadas. Não conseguia encontrar uma posição confortável
e as mãos pareciam determinadas a tremer. Por esta vez sentiu-se satisfeita
por ser uma mulher nobre e resguardada. O que poderia estar a empatar
aquela rapariga? Finalmente ouviu a voz da serva do lado de fora do
palanquim.
- Trouxe-o.
Aditi não ousou abrir a cortina para olhar.
- Não há mais ninguém por aqui perto?
- Não, embora o padre nos observe à distância. Ele não queria
permitir isto.
Tamas murmurou algo numa língua que poderia ter sido uma
tentativa de falar português.
- Volta-o de modo a que o padre não possa ver o seu rosto. Ouviu a
rapariga a rir e a falar com ele de forma aduladora.
- Já está, Sri Agnihotra. Suavemente, Aditi disse em grego:
- Tamas, sou eu, alguém que vós encontrastes antes.
- Nai - respondeu ele numa voz rouca, muito perto da cortina. -
Pensei que poderíeis ser vós. - Aditi estendeu a mão e depois baixou-a.
- Estais bem?
- Estou vivo e o meu corpo está a curar-se.
- Ah. Não devemos falar muito tempo, mas queria que soubésseis.
Vim para vos ajudar. Qualquer que seja o vosso objetivo. De novo somos
viajantes na mesma senda, Tamas.
Houve silêncio por alguns momentos.
- A minha esperança é escapar, Despoina. Quando chegarmos a
Bijapur. Qualquer ajuda que possais dar, será muito bem recebida.
Aditi sentiu que ganhava ânimo.
- Farei tudo o que puder. Mas os monges continuarão sem vós?
Uma outra pausa.
- Sem mim não têm aonde ir. Temos de parar de falar. O padre
aproxima-se.
- Muito bem - Aditi começou a rir alto e a falar em latim deturpado.
- Que coisa estranha que vós sois, cabelo-amarelo! Vós divertis-me. Vós fazeis
feliz uma velha mulher chateada como eu.
- Domina - disse uma nova voz que ela presumiu ser do padre. -
Perdoai-me por- esta intrusão imprópria da vossa privacidade. Perdoai o nosso
atraso, mas ouvi dizer que o último membro do nosso grupo estará aqui em
breve. Tenho de levar este homem e ajudá-lo a preparar-se para a viagem.
- Está tudo perdoado, padre. Onde encontrastes esta criatura?
- É britânico, Domina. Por favor perdoai-nos. Temos de nos
preparar.
- Ide, ide. Gostarei de rir muito dele no futuro.
Aditi ouviu os dois homens afastarem-se, murmurando um para o
outro. Encostou-se de novo nas almofadas e suspirou. ”Sem mim, não têm
aonde ir”, disse ele. Isto não é bom. Ele é o único guia deles. O padre vai vigiá-
lo de perto. E isso significa que ele tem algo para lhes dizer. Ele não fez voto
nenhum de silêncio. Enquanto estiver vivo, há a hipótese de que a Ordem de
Gor o use. Ai, Mahadevi, porque me dás esta missão?
Aditi tocou levemente no cabo de marfim da faca no cós da sua
ghagra. Perguntou-se a si própria qual seria a sensação de a usar, de sentir o
sangue quente dele jorrar sobre ela, saindo da ferida no pescoço, no momento
exato em que o seu órgão masculino jorrasse um outro calor entre as suas
coxas. O pensamento excitou-a e perturbou-a. A vida e a morte
simultaneamente. Na verdade eu sou bem a filha da minha mãe adotiva.
Conduzido para longe pelo braço do padre Gonsção, Thomas sentia
uma estranha alegria. Logo após saber que Aditi estava perto justificou-se a si
próprio, pensando na oferta de ajuda dela. Uma tal aliada inesperadamente,
era um dom da providência. E com tal perigo para ela própria: não me enganei
ao confiar na sua compaixão.
- O que é que ela vos disse? - perguntou o padre Gonsção.
- Hum, palermices em grande parte, padre. Ela... ela pensou que eu
tinha uma aparência muito estranha e queria saber o que eu era.
- Altamente impróprio - resmungou Gonsção, levando Thomas para
a mula.
- Talvez longe dos constrangimentos da família, ela se sinta mais em
liberdade.
- Não deveis incomodá-la.
- Não, padre, mas se ela desejar falar comigo outra vez, devo
insultá-la recusando?
O padre fez uma pausa, claramente infeliz com ambas as escolhas.
- Veremos. Para cima.
Thomas permitiu a Gonsção ajudá-lo a montar a mula, embora,
depois do tratamento de Lockheart, os seus braços se tivessem tornado mais
capazes. Com um aceno, o padre dirigiu-se ao seu cavalo.
Thomas sentou-se, com o calor do sol nas costas, observando a
caravana a reagrupar-se em torno dele: camelos recalcitrantes levados para a
estrada, homens direcionando-se uns aos outros e aos animais com gritos e
gestos. Há muito tempo que não se sentia tão bem. A vida não era sem
esperança. O uso dos braços fora-lhe devolvido, ainda que estivessem fracos e
magoados. Tinha encontrado de novo amigos inesperados. Até Lockheart, se a
sua história for verdadeira, não passa de um ladrão relutante e não de um
patife completo.
Se, por acaso, a Providência tinha posto no seu caminho a fonte do
pó miraculoso, bem e bom. Mas à frente fica Bijapur, uma cidade da qual ele
não sabia nada, exceto que a sua vida mudaria aí. E os sinais eram de que a
mudança seria para melhor.
O Irmão Timóteo bateu no flanco do burro com uma chibata de
bambu, desejando apanhar a procissão da Senhora Marathi. Ele não queria
manter o padre Gonsção e a expedição toda à sua espera. Na verdade, não
teria ficado tão atrasado se não tivesse de ir ao bazar do leilão.
A mãe regularmente enviava-lhe um dinheirinho que ele nunca
gastava, uma vez que a Santa Casa atendia a todas as suas necessidades.
Compreendia agora que o seu pecúlio tinha tido uma outra finalidade, que
antes lhe era desconhecida.
Porque hoje, depois de despedidas cheias de lágrimas à sua mãe e
irmã, ele tinha sido capaz de ir ao mercado, de manhã, onde entre os
mercadores de especiarias e negociantes de cavalos, havia o que agora estava
pendurado no saco de juta ao seu lado.
Era um espelho com a parte de trás em prata, numa moldura
grande de latão. O ferreiro era cristão, por isso havia cruzes gravadas em cada
um dos cantos da moldura e rosas e lírios nos lados.
Timóteo não sabia como iria explicar a sua extravagante compra ao
padre Gonsção. Não queria que o padre pensasse que era por vaidade; Timóteo
não se preocupava nem gostava particularmente da sua aparência. Talvez não
dissesse nada, até ser necessário.
O espelho era só para proteção, afinal de contas. Timóteo tinha lido
os registros do julgamento. Timóteo tinha sido bem ensinado pelo avô. E um
espelho era o que fazia falta quando se enfrentava uma gárgula, não era?
Timóteo tocou o burro para um trote relutante, desejoso que a viagem da sua
vida começasse.
Nota do Autor
Nos finais do século XVI e nos princípios do XVII, a colônia
portuguesa da cidade de Goa era tão esplendorosa como muitas das suas
contemporâneas européias, de tal forma que se tornou conhecida como ”Goa
Dourada”.
Um viajante foi tão longe que lhe chamou a Roma do Oriente. Foi a
primeira colônia européia no subcontinente da índia, conquistada ao sultão de
Bijapur pelos portugueses em 1510. As ricas possibilidades de comércio na
índia, rapidamente tornaram a colônia num canteiro de intrigas mercantis
entre os Portugueses, os Muçulmanos, os Holandeses, os Dinamarqueses e
por fim os Ingleses e os Franceses.
Também foi um campo de batalha de credos, desde que um posto
avançado da temível Inquisição se estabeleceu ali em 1560. O seu propósito
original era hostilizar os cristãos nestorianos que tinham vivido durante
séculos na costa ocidental da índia, e os cristãos-novos, judeus que se tinham
convertido ostensivamente, mas que contudo, conservavam os seus costumes
anteriores.
Porém, a Inquisição goesa rapidamente ganhou a reputação de ser a
mais corrupta do mundo, focando-se naqueles que tinham dinheiro e
propriedades para poderem ser confiscadas.
Também foi o braço da Inquisição que mais tempo sobreviveu,
operando até meados do século XVII. As descrições detalhadas da Santa Casa
são baseadas nas memórias de um francês que foi prisioneiro no início do
século XVI.
Graças às fontes disponíveis na Ames Library of South Ásia, uma
subdivisão da Edwin O. Wilson Library da Universidade de Minnesota, pude
saber os nomes dos chefes da Inquisição em Goa em 1597 (embora a sua
aparência e personalidades, tal como as descrevo, sejam pura ficção), bem
como o governador (que era de fato, o neto do famoso explorador Vasco da
Gama). Foi também lá que soube da vergonhosa destituição do governador
Coutinho e do vice-rei Albuquerque, acusados de heresia e feitiçaria e tive
aquela sensação de ”Ah!” de quando um pormenor histórico se encaixa
perfeitamente na história de alguém.
A expedição dos barcos The Bear, The Bear’s Whelp e The Benjamin
foi uma viagem real, chefiada pelo capitão Benjamin Wood, enviada da
Inglaterra em 1597 com uma carta da rainha Isabel dirigida à corte de Catai
(China). A viagem malfadada nunca atingiu o seu destino, desaparecendo
algures a seguir ao seu encontro com Raleigh e a sua frota nas Canárias.
Contudo, na coleção de documentos históricos, Purchas, His Pilgrimes, há
uma carta datada de 1601, de um capitão português, descrevendo um
encontro com um pequeno grupo de ingleses, os últimos sobreviventes do
naufrágio de uma expedição na costa indiana. A maior parte da tripulação
tinha-se perdido devido a doença, depois de saquearem barcos portugueses.
Esta pode muito bem ter sido a viagem malfadada dos barcos Benjamim e
Whelp.
(O único sobrevivente a chegar finalmente a Goa, onde foi posto na
prisão, chamava-se Thomas.)
Garcia de Orta, o botânico português, é também uma figura
histórica, que viveu os últimos trinta anos da sua vida na índia, viajando
através do Decão. Era bem visto em Goa, onde muitas vezes usou as suas
ervas como remédios para curar os obres, sem receber nada em troca e
trabalhou freqüentemente na Santa Casa da Misericórdia Jesuíta, que era
descrita pelos viajantes, como um dos melhores hospitais do mundo.
Foi por puro acaso que Garcia de Orta veio a tornar-se amigo de
Luís Vaz de Camões. O poeta tinha sido expulso de Lisboa devido a uma
paixão sem esperança por uma aia da rainha. Falido e cego de um olho, devido
a uma luta, Camões foi acolhido por Garcia de Orta, em jeito de gato
abandonado e na sua casa Camões escreveu Os Lusíadas, agora o poema
épico nacional de Portugal e uma bela peça de fantasia histórica por direito
nato. O padre jesuíta Thomas Stevens foi um dos primeiros ingleses a chegar a
Goa e as suas cartas para a pátria foram julgadas capazes de estimular o
interesse da Inglaterra no comércio com a índia. Aprendeu várias línguas
locais; foi o primeiro europeu a escrever uma gramática da uma língua indiana
e também escreveu a Christian Purana. Era conhecido por dar assistência aos
ingleses em Goa, embora nem sempre fosse bem sucedido ao protegê-los da
ira das autoridades.
São Francisco Xavier, conhecido como o apóstolo das índias, foi um
monge jesuíta, cujo tremendo impacto na cristandade do Oriente é narrado
detalhadamente por outros. Morreu a caminho da China, e o seu corpo,
espantosamente preservado em cal viva, foi finalmente enviado de volta a Goa,
onde jaz exposto à vista, há muitos anos. Contudo, isto levou a que pedaços
do seu corpo fossem furtados para relíquias e os jesuítas finalmente selaram-
no num caixão de vidro, nos finais do século XVII. Em meados do século XIX,
os jesuítas iniciaram um ciclo de exposições do corpo de São Francisco Xavier,
de dez em dez anos.
Todas as outras personagens são de ficção, embora eu tenha
tentado descrevê-las e ao seu mundo tão exatamente quanto a minha
pesquisa me permitiu.
Pouco resta hoje da ”Goa Dourada”. Declinou rapidamente no final
do século XVII, com a crescente influência de outras colônias européias na
índia. Hoje em dia, a velha Goa é uma coleção de ruínas (com umas quantas
igrejas ainda bem conservadas, graças aos fiéis), tendo o resto sido reclamado
pela selva.
Num romance deste alcance (incluindo os volumes que se seguem),
a quantidade de investigação requerida e os anos que demorou trazê-lo à
fruição, o número de reconhecimentos devidos é demasiado grande para
enumerar. Contudo, a merecer um reconhecimento especial, está Denny Lien,
bibliotecário na Edwin O. Wilson Library, na Universidade de Minnesota, pelos
serviços prestados, para além da obrigação do cargo da bibliotecário. A sua
ajuda em investigar através da montanha de informação disponível, ajudou
este livro a tomar forma há já muitos anos.
O agradecimento também é devido ao meu antigo grupo de
escritores, os Rabiscadores - Emma, Will, Pam e Steve -, por me ajudarem na
primeira fase deste trabalho, a forjá-lo até se tornar algo semelhante a um
romance.
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups.google.com/group/digitalsource