Globalização e Reestruturação da Rede Urbana

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GLOBALlZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO DA REDE URBANA- UMA NOTA SOBRE AS PEQUENAS CIDADES ROBERTO LOBATO CORRÊA * Globalization and urban network restructuring: A note on small cities and towns Urban networks have been deeply affected by the process of globaliza- tion, which is here defined as the highest stage of capitalist spatiality. 8ased on the Brazilian experience, the artiele diseusses how smell cit- ies and towns have been aftected by this new world order. On one hand, globalization has been responsible for the creation of several new towns; on the other, it has imposed a series ot changes upon the universe of older se ttlements, forcing them to change their economic base. The results are diverse. Whereas inumerous pre-ex- istent emel! cities and towns have now become mere labor force reser- voirs , others have been successful in restrucuturing their produetive struc- tures with the help of elther local or externai capital. A new territorial divi- sion of labor is currentiy under way. I A globalização é entendida, no contexto do presente trabalho, como a fase superior da espacialidade capitalista que, especialmente após a 2ª Guerra Mundial, manifesta-se pelo espraiamento do capital produtivo (PALLOIX, 1978) vinculado a poderosas corporações que atuam em escala global. Caracteri- zam-se as corporações, entre outros aspectos, pela ampla escala de opera- ções, pela diversificação de suas atividades, pela segmentação de suas uni- dades componentes e pelas múltiplas localizações de unidades produtivas direta ou indiretamente controladas (CORRÊA, 1997). O poder político e econômico de que as corporações dispõem garante- lhes importante papel como agentes da gestão do território a partir de práti- cas espaciais por elas engendradas (CORRÊA, 1992). A concentração da função de gestão do território, com base na concentração de sedes sociais de * Professor do Departamento de Geografia da UFRJ e Pesquisador do CNPq

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GLOBALlZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃODA REDE URBANA-

UMA NOTA SOBRE AS PEQUENAS CIDADES

ROBERTO LOBATO CORRÊA *

Globalization and urban network restructuring:A note on small cities and towns

Urban networks have been deeplyaffected by the process of globaliza-tion, which is here defined as thehighest stage of capitalist spatiality.8ased on the Brazilian experience,the artiele diseusses how smell cit-ies and towns have been aftected bythis new world order. On one hand,globalization has been responsiblefor the creation of several new towns;on the other, it has imposed a series

ot changes upon the universe of oldersettlements, forcing them to changetheir economic base. The results arediverse. Whereas inumerous pre-ex-istent emel! cities and towns havenow become mere labor force reser-voirs , others have been successfulin restrucuturing their produetive struc-tures with the help of elther local orexternai capital. A new territorial divi-sion of labor is currentiy under way.

I

A globalização é entendida, no contexto do presente trabalho, como afase superior da espacialidade capitalista que, especialmente após a 2ª GuerraMundial, manifesta-se pelo espraiamento do capital produtivo (PALLOIX, 1978)vinculado a poderosas corporações que atuam em escala global. Caracteri-zam-se as corporações, entre outros aspectos, pela ampla escala de opera-ções, pela diversificação de suas atividades, pela segmentação de suas uni-dades componentes e pelas múltiplas localizações de unidades produtivasdireta ou indiretamente controladas (CORRÊA, 1997).

O poder político e econômico de que as corporações dispõem garante-lhes importante papel como agentes da gestão do território a partir de práti-cas espaciais por elas engendradas (CORRÊA, 1992). A concentração dafunção de gestão do território, com base na concentração de sedes sociais de

* Professor do Departamento de Geografia da UFRJ e Pesquisador do CNPq

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poderosas corporações, e muitas vezes do Estado, origina importantes cen-tros de gestão do território, os focos principais de complexos ciclos de repro-dução do capital (CORRÊA, 1996a), dos quais as denominadas cidades glo-bais ou mundiais estão no ápice da hierarquia urbana, conforme apontam,entre outros, COHEN (1981), FRIEDMANN e WOLFF (1982) e KNOX eTAYLOR (1995).

A globalização causa vigoroso impacto sobre as esferas econômica,social, política e cultural, mas também, e simultaneamente, sobre a organiza-ção espacial que tanto reflete como condiciona aquelas esferas. Em outraspalavras, a globalização causa impacto, ainda que desigualmente, sobre asformas, funções e agentes sociais, alterando-os em maior ou menor grau e,no limite, substituindo-os totalmente. Trata-se de uma reestruturação espaci-al que se manifesta, no plano mais geral, na recriação das diferenças entreregiões e centros urbanos, assim como nas articulações entre ambos e entreos centros.

Os investimentos, pensados e programados segundo uma perspectivaglobal, criaram e reestruturaram inúmeras e complexas redes geográficasdas quais a rede urbana é a expressão mais contundente. Trata-se, em todaparte, de uma rede urbana que sofreu o impacto da globalização, na qualcada centro, por minúsculo que seja, participa, ainda que não exclusivamen-te, de um ou mais circuitos espaciais de produção (SANTOS, 1988), produ-zindo, distribuindo ou apenas consumindo bens, serviços e informações que,crescentemente, circulam por intermédio da efetiva ação de corporações glo-bais como, entre outras tantas, a Coca-Cola, IBM, Nestlé, Phillips Morris,Unilever, Exxon, General Motors, Adidas, FIAT e Toyota. E também por inter-médio da rede bancária articulada globalmente.

A rede urbana é afetada pela globalização tanto por intermédio de cria-ções urbanas recentes, em relação às quais o Brasil constitui-se em excelen-te laboratório para estudos, como da refuncionalização dos centros preexis-tentes, imposta ou induzida pelas corporações globais.

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As relações entre rede urbana e corporações globais são complexas enão estão definitivamente postas. Neste artigo pretende-se considerar doisdos possíveis efeitos da globalização sobre a rede urbana em seus escalõesinferiores, a partir, sobretudo, de evidências brasileiras. Neste sentido, pre-tende-se contribuir para cobrir uma lacuna na medida em que há uma nítidatendência de se considerarem os possíveis impactos das grandes corporaçõessobre o escalão superior da rede urbana, tal como se exemplifica com osestudos de WESTAWAY (1974) sobre a rede urbana britânica, TAYLOR eTHRIFT (1980) sobre as cidades australianas e de STRICKLAND e AIKEN(1984) a propósito da rede de cidades alemãs. Em realidade, os estudos en-volvendo corporações e rede urbana, mesmo que não privilegiem os impac-

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tos daquelas sobre esta, consideram as grandes cidades (GOOOWIN, 1965,BORCHERT, 1978, CORRÊA, 1996b, entre outros).

Mais do que isto, os esforços de reflexão empreendidos sobre o urba-no e a cidade têm, preferencialmente, privilegiado as grandes cidades. Defato, estas caracterizam-se por uma maior complexidade, não apenas funcio-nai mas também em termos de sua estrutura social, organização interna edinâmica espacial. No que tange às atividades, não se trata apenas da ampli-ação daquelas já existentes, mas, em decorrência da escala a que chegaram,do aparecimento de novas atividades, aspecto que não se verifica, ou severifica em menor grau, nas cidades menores. Em outros termos, as grandescidades realizaram aquele salto qualitativo de que nos fala a dialética. A com-plexidade delas inclui, adicionalmente, problemas específicos, de maior visi-bilidade, levando, com razão, à concentração de esforços de reflexão nelas.

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Em toda parte as pequenas cidades são numerosas. As formulaçõesteóricas ratificam esta constatação, conforme aparece tanto na regra ordem -tamanho de cidades (ZIPF, 1949, STEWART Jr., 1959), como na clássicateoria dos lugares centrais (CHRISTALLER, 1966).

As pequenas cidades, numerosas que são, geram, via de regra, ex-pressiva densidade de centros que se situam a uma pequena distância médiaentre si, ainda que esta possa variar de acordo com a densidade demográficada região em que se localizam. Nas regiões densamente povoadas o númerode centros é elevado e a distância média entre eles é pequena; nas regiõesescassamente povoadas, ao contrário, o número de centros diminui, aumen-tando a distância média entre eles (CHRISTALLER, 1966, ULLMAN, 1959 eBERRY, 1967).

A elevada ocorrência de pequenos centros deriva, de um lado, de umanecessária economia de mercado, por mais incipiente que seja, geradora detrocas fundamentadas em uma mínima divisão territorial do trabalho. De ou-tro, deriva de elevadas densidades demográficas associadas a uma estruturaagrária calcada no pequeno estabelecimento rural ou em plantations caracte-rizadas pelo trabalho intensivo. Decorre, então, uma grande demanda de bense serviços caracterizados por limitados alcances espaciais mínimo e máximo(CHRISTALLER, 1966), responsáveis pela relativa proliferação de inúmeroscentros de mercado no espaço. Deriva, adicionalmente, da pequena mobili-dade espacial da população, associada aos transportes pré-mecânicos emesmo ferroviário, sendo inexistentes ou pouco usuais o caminhão e o auto-móvel. A pequena mobilidade implica a ampliação, ainda mais, do número depequenos centros de mercado.

As elevadas densidades de pequenos centros originaram-se no passa-do. JOHNSON (1970), por exemplo, indica a existência de 760 market townspor volta de 1500 na Inglaterra, enquanto SKINNER (1964) analisa a rede dos

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pequenos centros de mercado periódico na China rural da década de 40. Emrelação ao Brasil a elevada densidade de pequenos centros é notável nasregiões, entre outras, do Agreste pernambucano, do sul de Minas e do AltoUruguai no Rio Grande do Sul. MONBEIG (1984), por outro lado, refere-se àdensidade elevada de centros no oeste paulista, resultado de um planeja-mento vinculado à ocupação e valorização regional, na primeira metade doséculo XX, das férteis terras situadas nos diversos divisores dos afluentes damargem esquerda do Paraná. Ao longo da ferrovia que percorre cada divisorforam criados, a cada 10 ou 15 quilômetros de distância (MONBEIG, 1984,pág. 347) núcleos de povoamento que rapidamente tornaram-se lugares cen-trais dispostos axialmente. Floresce, assim, uma rede urbana com numero-sos pequenos centros.

IV

A globalização, que se manifesta de diferentes modos e por intermédiode diversos agentes sociais, concretizou-se no Brasil, ainda que desigual-mente no tempo e no espaço, por meio de(a):

(a) industrialização que gerou, a partir da segunda metade da décadade 50, uma crescente produção de bens de produção, de consumo durável econsumo não-durável;

(b) urbanização, tanto em termos quantitativos como qualitativos, istoé, o aumento da população urbana e a crescente adoção de um comporta-mento urbano, inclusive novos padrões de consumo;

(c) uma maior estratificação social que, entre outros aspectos, incidiriasobre uma maior complexidade na esfera do consumo;

(d) uma melhoria geral e progressiva na circulação de mercadorias,pessoas e informações, envolvendo o reaparelhamento de alguns portos, aintegração rodoviária do país e a criação de uma moderna e eficiente rede detelecomunicações;

(e) industrialização do campo, implicando a reestruturação fundiária,nas relações de produção, nos sistemas agrícolas, em novos cultivos, dosquais o da soja é exemplar, no hábitat rural, na paisagem agrária, agora des-provida de homens, em breve, na criação de Complexos Agroindustriais;

(f) incorporação de novas áreas e refuncionalização de outras, comosão exemplos a Amazônia, a partir dos anos 70, efetivamente subordinada àeconomia global, e as áreas de vegetação aberta, de campo e de cerrado,que, de áreas pastoris, tenderam a se transtomarem em áreas agrícolas;

(g) mudanças na organização empresarial, com a constituição e/ou en-trada de grandes corporações multifacetadas e multilocalizadas, estruturadasem rede, envolvendo não somente o setor industrial, mas também as ativida-des bancárias, o comércio varejista e diversos outros serviços; essas mudan-ças afetaram também, em parte, as relações interempresariais, estabelecen-do formas de controle indireto como são as franquias e subcontratações; ,

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(h) mudanças no setor de distribuição atacadista e varejista, no qual omodelo tradicional de vendas a atacado foi substituído em grande parte porum modelo que envolve relações diretas entre as empresas industriais, pormeio de suas filiais de vendas, e os varejistas; em parte, e visando ao peque-no varejista que não dispõe de economias de escala, pelo moderno atacadis-ta que dispõe de economias de escala e amplo alcance espacial, como seexemplifica com o grupo Martins de Uberlândia; em relação ao comércio va-rejista a difusão de shopping centers, mesmo em cidades médias, que teve,entre outros efeitos, o de alterar padrões de comportamento espacial já esta-belecidos.

Estas concretizações do processo de globalização tendem a ocorrerde forma integrada, estabelecendo um conjunto de impactos em relação aosquais o peso de cada uma é variável. Por outro lado, os impactos ainda nãose esgotaram, estando em pleno curso.

Entre os impactos oriundos da globalização sobre o urbano serão con-sideradas, de um lado, a criação de novos centros e, de outro, as alteraçõesfuncionais ou refuncionalização dos pequenos centros preexistentes.

vo Brasil é um país onde, no último quartel do século XX, foram criados

inúmeros núcleos de povoamento em áreas de fronteira de ocupação e fron ..teira de modernização, ambas produtos da globalização. Surgiram, de fato,novos núcleos de povoamento em unidades federadas como Mato Grosso,Rondônia, Tocantins, Pará, Roraima, Mato Grosso do Sul e Bahia.

Entre as criações urbanas estão as company towns, núcleos planeja-dos, criados e controlados diretamente por grandes empresas do setor demineração e industrial, em áreas sem infra-estrutura urbana. São assim, cria-ções típicas, mas não exclusivas, da fronteira. Os exemplos são abundantes:Carajás (PA), associada à Companhia Vale do Rio Doce; Porto Trombetas(PA), à Mineração Rio Norte; Vila dos Cabanas (PA), vinculada à ALUNORTE,e Presidente Figueiredo (AM), criada pela Mineração Tabocas.

No bojo da expansão da fronteira ou da modernização de áreas já ocu-padas criaram-se novos núcleos. O território matogrossense é pródigo des-sas criações empreendidas por empresas de colonização: Sinop e Alta Flo-resta são exemplos de núcleos criados em áreas florestais. O mesmo se podedizer das áreas de cerrado do oeste baiano, cuja urbanização recente foiestudada, entre outros, por SANTOS FILHO (1989) e HAESBAERT (1997).

Entre os núcleos criados no processo de revalorização do cerradobaiano estão Mimoso do Oeste, Novo Paraná, Roda Velha, Bela Vista,Balsas e Águas Claras. São criações de empresas dedicadas à valoriza-ção fundiária através de loteamentos urbanos em área de expansão agrí-cola, como é o caso de Mimoso do Oeste, mas resultam também da aglo-meração em torno de unidades técnicas vinculadas às grandes empresas

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do setor de grãos, como se exemplifica com Roda Velha (SANTOS FILHO,1989).

No processo de incorporação da fronteira, inúmeros núcleos foram cri-ados pelo Estado, como se exemplifica com aqueles criados pelo INCRA noEstado de Rondônia:

Jaru e Colorado são dois dos inúmeros exemplos possíveis. Outrosnúcleos nasceram espontaneamente, criados por fazendeiros e "peões". Emsua origem, são núcleos de concentração da força de trabalho rural, locais deagregação, retenção, manipulação e reprodução de "peões" (BECKER, 1985,MACHADO, 1984). Xinguara e Rio Maria, na porção oriental do Pará, sãoeloqüentes exemplos: rapidamente, entretanto, transformaram-se em peque-nas cidades.

A globalização, que se manifesta de diferentes modos em razão desuas demandas e de suas contradições, e por intermédio de diversos agen-tes, e não exclusivamente das grandes corporações, cria novos núcleos ur-banas em áreas que passam a integrar o espaço globalizado.

A refuncionalizaçãa atinge, em graus distintos, todos os centros da redeurbana. Consideraremos no presente trabalho apenas aqueles centros compopulação inferior a 50.000 habitantes, considerados como pequenos. Ao quetudo indica, a refuncionalização das pequenas cidades se realiza por meio deduas possibilidades maiores.

A primeira diz respeito à perda, relativa ou absoluta, de centralidade,acompanhada em muitos casos pelo desenvolvimento de novas funções não-centrais e ligadas diretamente à produção no campo. Essa refuncionalizaçãoderiva de uma combinação de manifestações da globalização em que altera-ções na circulação em geral e no processo produtivo da hinterlândia da pe-quena cidade desempenham papéis primordiais.

No que diz respeito às mudanças na circulação, ULLMAN (1959) jáse referia, com base nos estudos realizados nas décadas de 20 e 30 pelossociólogos rurais norte-americanos, ao fato de a introdução e difusão doautomóvel ter redefinido funcionalmente os pequenos centros urbanos, nãoos eliminando, isto é, não atuando no sentido de eles perderem a sua razãode ser, ainda que, no processo, os centros maiores, mais distantes entre si,fossem beneficiados, tornando-se mais acessíveis. No Brasil, a difusão doautomóvel, ainda que menos intensa e muito variável espacialmente, apa-rentemente teve o mesmo impacto, especialmente em áreas onde a densi-dade de pequenos centros vinculava-se, em parte, a uma restrita acessibili ..dade.

As alterações no processo produtivo no campo circunvizinho, que alte-raram a estrutura agrária, provocando a diminuição das densidades demo-gráficas e da. demanda de bens e serviços para a população, atuaram nosentido de reduzir as funções centrais, as atividades de beneficiamento deprodutos rurais e o comércio atacadista de distribuição de inúmeros peque-nos centros que perderam seus mercados. Em outras palavras, verificou-se

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uma ampliação do alcance espacial mínimo, em muitos casos atingindo aárea de influência de outro centro próximo e com maiores possibilidades desofrer um impacto negativo menor por parte das transformações no campo. Aampliação da acessibilidade corrobora para a perda da centralidade.

A força de inércia dos núcleos de povoamento, entretanto, é muito for-te. A sobrevivência dos pequenos núcleos, em razão dos serviços de quedispõem e da sociabilidade que viabilizam, é efetivada por meio de sua trans-formação funcional. A transformação em local de concentração de força detrabalho engajada no campo é uma possibilidade corrente. Trata-se de forçade trabalho que, no processo de industrialização do campo, foi destituída dosmeios de produção e expulsa do campo. O hábitat rural, disperso ou concen-trado em "colônias" localizadas no interior de grandes propriedades, desapa-rece, sendo, de certa forma recriado na periferia das pequenas cidades. Ouainda nos "aglomerados humanos" em pleno campo (HAESBAERT, 1997) ounos acampamentos dos sem-terra.

A pequena cidade de Inúbia Paulista, com cerca de 2.500 habitantesem 1991, estudada por FRESCA (1990), é um exemplo dessa transformação.Criada em 1942, no âmbito do processo de povoamento da região da AltaPaulista, em São Paulo, o pequeno núcleo nasce para servir de apoio à popu-lação rural que ocupa a área próxima, que se caracteriza por uma estruturafundiária calcada no elevado número de pequenas propriedades rurais aolado de grandes.

Estrutura-se na década de 50 um pequeno lugar central cujos princi-pais estabelecimentos varejistas são os armazéns de secos e molhados quevendiam tanto produtos de consumo corrente como aqueles necessários àsatividades agrícolas. Escassos são os serviços e pouco desenvolvida era afunção atacadista que se vinculava à comercialização de algodão e "cereais".Não havia compradores de café, mas o núcleo contava com estabelecimen-tos de beneficiamento de arroz. Na década de 50, a funcionalidade que seesperava de Inúbia Paulista quando de sua criação realizava-se plenamente(FRESCA, 1990).

As inovações introduzidas na região alteraram as funções do pequenolugar central. Entre 1950 e 1980, especialmente a partir de 1970, verifica-seuma transformação no mundo agrário que envolveu a concentração fundiária- de 356 estabelecimentos rurais em 1960 para 148 em 1980, acompanhadada ampliação da área total dos estabelecimentos rurais de 8.476 hectarespara 10.747 hectares - acompanhada ainda da redução das lavouras de café,algodão e "cereais" e do aumento da área de pastagens e da introdução dalavoura canavieira. Paralelamente amplia-se o trabalho assalariado temporá-rio. A população rural, por outro lado, entre 1970 e 1980 passa de 3.653 habi-tantes para 2.592 (FRESCA, 1990).

O pequeno núcleo de Inúbia Paulista tinha, por volta de 1990, cerca de50% de sua população ativa constituída por trabalhadores temporários, os"bóias-frias", engajados nas fazendas de cana-de-açúcar do município ou do

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próximo município de Parapuã. Suas atividades terciárias continuam limita-das, sobressaindo-se uma cooperativa de consumo.

Em resumo, o pequeno lugar central dos anos 50 transformou-se emum núcleo que, sobretudo, cumpre a função de reservatório de força de traba-lho para modernas atividades agrícolas (FRESCA, 1990).

A segunda possibilidade diz respeito à transformação do pequeno nú-cleo a partir de novas atividades, induzidas de fora ou criadas internamente,que conferem uma especialização produtiva ao núcleo preexistentes, inserin-do-o diferentemente na rede urbana, introduzindo nela uma mais complexadivisão territorial do trabalho. As especializações produtivas, por outro lado,conferem aos núcleos urbanos uma singularidade funcional, entendida comocaracterísticas que são simultaneamente de diferenciação no âmbito da eco-nomia global e de integração a esta mesma economia. A centralidade, ao quetudo indica, pode ser ampliada.

As especializações produtivas criadas podem estar associadas àsnovas demandas da produção agrícola regional, referenciadas agora a no-vos patamares tecnológicos e de renda e a novos padrões socioculturais.São, em realidade, atividades criadas no âmbito da industrialização docampo.

Podem, por outro lado, não estarem, senão remotamente, associadasàs atividades agrícolas regionais. São, em muitos casos, atividades lndustrí-ais criadas no bojo da expansão do capital produtivo por meio de filiais loca-lizadas não apenas em grandes e médios centros urbanos, mas também empequenos núcleos em razão de fatores locacionais positivos, entre eles aexistência de uma boa íntra-estrutura e de uma força de trabalho "politica-mente correta". As especializações produtivas podem também ser criaçõesdas elites locais que necessitam encontrar outras atividades que lhes permi-tam manter-se como tais ..Podem ainda ser o resultado da ação de grupossociais emergentes que dispõem de um potencial de habilidades técnicasapreendidas a partir de práticas em outras atividades.

As novas atividades podem conferir à pequena cidade a sua reafirmaçãocomo "cidade do campo" (SANTOS, 1993), centros voltados para a modernaagricultura praticada em sua hinterlândia. Pode-se, neste caso, dizer que apequena cidade constitui parte essencial do Complexo Agroindustrial, tal apresença nela de atividades situadas tanto à montante como à jusante daprodução agrícola strictu sensu.

As novas atividades, por outro lado, na medida em que criam especia-lizações produtivas dissociadas diretamente da produção agrícola, acabamconferindo aos pequenos centros um caráter de "cidades no campo" (SAN-TOS, 1993). Tais centros. passam, em razão de suas especializações produ-tivas, a manter relações com centros localizados a longa distância, relaçõesque vinculam entre si unidades fabris de uma mesma corporação e, simulta-neamente, cada unidade com a sede social da corporação e, ou apenas, vin-culam os pequenos centros com mercados distantes.

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Há inúmeros exemplos de pequenas cidades que se especializaramprodutivamente, reinserindo-se de modo singular na rede urbana globalizadapor intermédio de atívldadesque lhes fornecem identidade funcional, afirmando,em outra escala, o seu caráter de lugar (CARLOS, 1996, MASSEY, 1997):máquinas agrícolas, confecções, móveis, bordados, artefatos mecânicos etc.No presente texto consideraremos o exemplo de Matão, na região deAraraquara, Estado de São Paulo, estudada por ELIAS (1996).

Matão é uma cidade que, a partir de 1963, transforma-se, no bojo doprocesso de modernização das atividades agrícolas regionais, na cidade daagroindústria da laranja. Ali se instalaram indústrias de suco concentrado delaranja destinado ao mercado internacional (CITROSUCO, Central Citrus,Cambuy). Adicionalmente, desenvolveu-se uma indústria metalúrgica, produ-tora de implementos agrícolas e recipientes metálicos para suco de laranja(CEMIBRA, Baldan, Marchezan, entre outras) e uma indústria de confecções(Elite, Troféu, Rede, MM, entre outras): parte da produção destina-se ao mer-cado internacional. Trata-se, sobretudo, de indústrias originárias de capitaislocais que perceberam oportunidades de investimentos, reconfigurando a fun-cionalidade da cidade de Matão, ao mesmo tempo em que possibilitou o seucrescimento: de 8.229 habitantes em 1960 para 60.547 em 1991 (ELIAS, 1996).

Como exemplo de "cidade do campo", Matão tem importante comérciode implementos e insumos e um relativamente modesto comércio varejista eserviços voltados diretamente à população. A acessibilidade à capital regio-nal, Araraquara, distante apenas 32km, explica, em parte, o seu relativamen ..te pequeno desenvolvimento como lugar central (ELIAS, 1996).

VI

A distribuição espacial das atividades engendradas pela globalizaçãoobedece a uma combinação que envolve, de um lado, uma lógica própria àscorporações, que não exclui a natureza da atividade a ser implantada, e, deoutro, as possibiüdades de cada lugar, que incluem as suas heranças e aação empreendedora de grupos locais. As pequenas cidades, criadas em umcontexto socioespacial pré-globalização, devem se adaptar às novas deman ..das externamente formuladas. O presente texto pretendeu, ao apresentar doiscaminhos distintos que duas pequenas cidades seguiram, contribuir para atemática da dinâmica dos pequenos centros. Ao apontar a continuidade dacriação de pequenos centros, por outro lado, indica a complexidade do temano contexto socioespacial brasileiro.

Surgem questionamentos para investigação em outros pequenos cen-tros, seguindo o caminho trilhado por Fresca e Elias, entre outros. Taisquestionamentos devem privilegiar os processos, agentes e formas resultan ..tes, por meio dos quais os processos ligados à globalização concretizam-seem cada pequeno centro, reconfigurando-o ou criando-o. Deste modo, é pos ..sível uma efetiva contribuição para o conheciménto tanto da globalização como

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de suas manifestações na rede urbana, particularmente nos pequenos e nu-merosos centros urbanos.

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