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    Tariq Ali

    21/8/2006

    Unindo história, política e literatura, o escritor paquistanês critica a visão dominante das

    guerras no Oriente Médio, da "Guerra ao Terror" e dos movimentos de esquerda na América

    Latina

    [Programa gravado, portanto sem participação de telespectadores]

    Paulo Markun: Boa noite! Ele é paquistanês, estudou em Londres e tornou-se umdos principais intelectuais de esquerda da Inglaterra. É um militante político que viaja pelo mundo em uma campanha contra a política externa dos Estados Unidos.Estudioso dos conflitos e das religiões, faz uma leitura do mundo pela visãonão-americana e acha possível equilibrar a cultura islâmica com o cristianismo,

    exatamente o que não se tem hoje. Nosso convidado desta noite é Tariq Ali,romancista, historiador, dramaturgo, cineasta e ativista político. O Roda Viva começaem um instante.

    [intervalo]

    Paulo Markun: Tariq Ali se dedica a construir o que no Ocidente poderia serchamado de "a visão do outro lado". Estuda e analisa as relações dos Estados Unidoscom o Oriente depois dos ataques terroristas de 11 de setembro em Nova Iorque, e jáproduziu uma série de romances abordando o confronto entre o islamismo e acivilização cristã. Tariq Ali, que já esteve no Brasil em outras ocasiões, veio de novo

    agora em agosto, participar da Flip, a Festa Literária [Internacional] de Parati.[inserção de vídeo]

    Paulo Markun: [em off , enquanto passam imagens de Tariq Ali e do atentado de 11de setembro] Tariq Ali costuma se definir como um “muçulmano não-muçulmano”. Aomesmo tempo em que se posiciona contra o império americano, também é contra ofundamentalismo religioso. Escritor, roteirista e cineasta, Tariq nasceu no Paquistão eestudou na Universidade de Oxford, na Inglaterra, onde vive. Escreveu biografias,romances, obras de história e política internacional, muitas obras já traduzidas para oportuguês e lançadas no Brasil. Recentemente, na Flip, a Festa Literária Internacional

    de Parati, Tariq lançou sua última publicação, Um sultão em Palermo - o quarto livrodo Quinteto Islâmico, série que enfoca a grandeza da contribuição do islã e seusconfrontos com o Ocidente. Esse tema se tornou mais presente nos trabalhos de Tariq Ali depois dos atos terroristas de 2001, nos Estados Unidos, que marcaramprofundamente o pensamento do escritor. Ele passou a estudar mais os conflitos e asreligiões e a interpretar os acontecimentos por uma ótica não-americana. Tido comoum dos escritores que melhor traduzem para o Ocidente a complexidade da culturado Islã, Tariq Ali faz uma campanha crítica ao governo do presidente americanoGeorge Bush, à guerra no Iraque e, mais recentemente, à guerra no Líbano. Mas, aomesmo tempo em que ataca o império americano, critica também o fundamentalismo

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    islâmico que, segundo ele, não tem futuro. O futuro, na idéia colocada no livro Umsultão em Palermo, estaria na construção de uma aliança pacífica entre cristãos emuçulmanos - que Tariq Ali acha possível.

    [fim da inserção de vídeo]

    Paulo Markun: Para entrevistar o escritor Tariq Ali, nós convidamos: DemétrioMagnoli, geógrafo, especialista em relações internacionais e editor do jornal Mundo,

    geografia e política internacional; Roberto Lameirinhas, repórter de editoriaInternacional do jornal O Estado de S. Paulo; Vicente Adorno, comentaristainternacional da Rádio Cultura FM; Samuel Feldberg, professor de relaçõesinternacionais nas Faculdades Rio Branco e membro do Gacint, Grupo de Análise daConjuntura Internacional da Universidade de São Paulo; Emir Sader, sociólogo eescritor; e Oscar Pilagallo, editor da revista  Entrelivros. Também temos aparticipação do cartunista Paulo Caruso, registrando em seus desenhos os momentose os flagrantes do programa. O programa de hoje está sendo gravado e, portanto, nãopermite a participação direta do telespectador. Mas você pode mandar a sua crítica,sua sugestão, sua proposta, pelo site do programa; o endereço é

    www.tvcultura.com.br/rodaviva. Boa noite, Tariq!Tariq Ali: [assente com a cabeça]

    Paulo Markun: Eu queria começar pelo seguinte. O senhor acha que é possívelconciliar literatura e militância política? Porque é uma longa discussão no mundo.Houve época que era muito valorizado, momentos em que se considerava que nãohavia ligação possível - uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa - e o senhorfaz ambas. É possível haver essa conciliação?

    Tariq Ali: Bem, acho que sempre foi possível. Isso não é novo, sobretudo analisando a

    história da Ásia, da África e, principalmente, da América Latina, onde romancistasdisputaram a presidência na Venezuela e no Peru. A posição política deles nãoimporta nesse caso, eles podem ser de direita ou de esquerda. A literatura e apolítica, sobretudo na América Latina, têm uma relação muito próxima. Alguns paíseslatino-americanos têm muita tradição de poetas e romancistas que se tornamembaixadores. No Brasil, vocês tiveram Jorge Amado, que era muito envolvido empolítica e também era um grande romancista. Posso dar exemplos do mundo inteiro. A ligação entre a literatura e política é bem antiga.

    Paulo Markun: Agora, o senhor faz isso de maneira muito expressiva nas suas obras,nos seus romances históricos... Eles me deram a impressão de que, em determinados

    momentos da narrativa, emerge o cenário político, o cenário cultural, o cenário,digamos, que seria de um trabalho acadêmico, no meio da história. Esse casamentotambém funciona?

    Tariq Ali: Eu acho que funciona. Se você observar Guerra e paz [romance históricodo escritor russo Léon Tólstoi (1828-1910), que se passa em parte durante a invasãofrancesa, comandada por Napoleão, à Rússia, em 1812], há capítulos de filosofiamuito árida, digamos. Se funciona ou não, depende do leitor, se ele gosta ou não.Sabe, para mim, é muito diferente escrever ficção e escrever não-ficção. Comoqualquer romancista pode dizer: quando você escreve ficção, isso se torna

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    parcialmente subconsciente. Quando você está escrevendo um romance - e eu mesmo vivenciei isso - muita coisa emerge de dentro de você, coisas que você nem sabia queexistiam. Às vezes, personagens que você nem pensava em pôr no livro acabamsurgindo e tentando tomar conta do livro, então você precisa contê-los. É evidente...Meu último livro, Um sultão em Palermo, foi escrito quando acontecia a guerra noIraque. O livro é sobre o século XII, quando outra cidade árabe, Palermo, capital daSicília, tinha caído [retomada pelos cristãos - no caso, normandos]. Foi muito difícil

    não pensar nas duas coisas juntas, revelando os ecos da história, que estão sempreconosco. Esses ecos nunca desaparecem, quer você escreva sobre história, querescreva literatura.

    Demétrio Magnoli: Mr. Tariq... here. [Sr. Tariq... aqui] Eu queria propor umaquestão sobre não-ficção. Na recente tentativa de atentados em Londres, o senhordisse que a responsabilidade deveria ser atribuída também à política de Tony Blair[primeiro-ministro do Reino Unido de 1997 a 2007]. No ano passado, em 7 de julho de2005, nos atentados terroristas contra Londres [foram atingidos três trens do metrô eum ônibus; houve 52 mortos e cerca de 700 feridos], o senhor escreveu que "oslondrinos” - vou citar entre aspas - “pagaram um preço pela reeleição de Blair e pela

    continuação da guerra". Ou seja, se eu li direito essa passagem, a responsabilidade aínão é nem de Tony Blair, mas dos eleitores, do povo de Londres. Eu queria saber, doponto de vista moral e político, se o senhor é capaz de oferecer uma condenaçãoincondicional do terror global, ou é incapaz?

    Tariq Ali: Não tenho problema nenhum com isso. Sempre fui contra o terrorismoincondicionalmente, quer seja o terrorismo praticado por indivíduos, quer seja oterrorismo praticado por Estados. O terrorismo de Estado mata mais gente quequalquer grupo de terroristas individuais na história da humanidade. Faça obalancete do século XX e você verá isso bem de perto. Com relação à Grã-Bretanha,

    quando explodiram as bombas, há um ano, denunciei as explosões e as descrevi emmeu livro Rough music [de 2005] como uma carnificina sem sentido, mas eu disse queera preciso entender as causas. Explicar as causas não significa justificar asconseqüências.

    Demétrio Magnoli: Mesmo se se diz que a culpa é dos eleitores que reelegeramBlair?

    Tariq Ali: As pessoas que o elegeram era contrárias à guerra. A maioria do públicoinglês era contrária à guerra no Iraque. Há duas semanas, 63% do público inglêsdeclarou-se incomodado com a proximidade entre Blair e os EUA.

    Demétrio Magnoli:  Justamente por isso, eu lhe pergunto se não é o caso de dizerque toda a responsabilidade pelo terror é dos terroristas, que toda a responsabilidadepelos atos de terror em Londres, como os da Indonésia [em Bali, local turístico, em2002 e 2005], como os atos de terror na Índia [em 2006], porque a Al Qaeda não fazterror só em Londres, como os atos de terror em Taaba [em 2005], no Egito, se toda aresponsabilidade por esses atos integralmente não cabe aos terroristas, assim como aresponsabilidade pela invasão do Iraque cabe integralmente aos Estados Unidos...

    Tariq Ali: Você não pode isolar atos de terror que acontecem das razões que são asua causa. Por que os terroristas atacaram a Inglaterra e não a França, a Alemanha, a

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    Escandinávia?

    Demétrio Magnoli: Why? [Por quê?]

    Tariq Ali: Essa é a pergunta que se deve fazer. E digo mais. Meu modo de ver issonão é tão estranho quanto você imagina. Quando escrevi, no dia seguinte àsexplosões, no [jornal britânico] The guardian - que é um jornal liberal - que a causaera a guerra do Iraque, fui denunciado por gente do governo. Em duas semanas, uma

    comissão especial criada pelo Ministério das Relações Exteriores disse exatamente amesma coisa. Dez dias depois, foi feita uma pesquisa de opinião. 66% dos inglesesdisseram que os motivos dos ataques em Londres eram a política externa de Blair e aguerra no Iraque. Isso não significa justificar o terror, significa explicar suas causas.Se não for assim, a posição que você defende significaria que essas pessoas sãototalmente malucas, que esses jovens do norte da Inglaterra são loucos. Eles não sãoloucos. Alguma coisa os deixa loucos e essas causas nós devemos evitar.

    Oscar Pilagallo: Sr. Ali, eu gostaria - só complementando um pouco a pergunta doDemétrio - o senhor disse, já, que a questão do terrorismo emana muito mais dafraqueza do que propriamente da força. É uma colocação que eu acho que é aceitapor muita gente, na verdade. Agora, eu não tenho certeza se é uma definição quepossa ser aplicada de maneira geral ao terrorismo ou a um específico tipo deterrorismo que é aquele que vem exatamente de grupos que estão sendo esmagadospor poderes maiores. Ou é uma definição que vale de uma maneira mais ampla. Comoé que o senhor vê essa questão?

    Roberto Lameirinhas: Eu posso só complementar a pergunta do Oscar? Euperguntaria ao mr. Ali se ele considera que a democracia, nos moldes ocidentais, domodo como nós a conhecemos no Ocidente, seria capaz de conter os gruposfundamentalistas que promovem o terror dos países islâmicos, no Oriente Médio.

    Tariq Ali: As duas perguntas se inter-relacionam. Vou tentar responder a pergunta deOscar primeiro. Obviamente, a palavra terrorismo, por si só, vem sendo cada vez maisdepreciada. Para mim, a descrição do terrorista individual é clara. Alguém, sozinho ounum grupo pequeno, que decide praticar violência contra indivíduos, chefes deEstado ou propriedades, achando que com isso, ele vai conseguir o que quer. Essa é adefinição clássica de atos de terrorismo. Mas também temos, em todo o século XX eagora, também, grupos que tentam lutar contra a ocupação de seus países.Historicamente, os impérios britânico e francês, os alemães e os EUA tacharam essaspessoas de terroristas. Mais tarde, fizeram acordos com elas e as receberam. A Irlanda é o caso mais recente. O IRA [Exército Republicano Irlandês, grupo quedefende que a Irlanda do Norte se separe do Reino Unido] era chamado assim e,agora, seus membros são tratados como estadistas. Não deveríamos misturar a  AlQaeda - que é um grupo muito específico - com outros grupos que existem e queexercem funções que eles têm direito de exercer, como resistir à ocupação de seu paísou defender seu país quando ele é atacado, o que é a história do século XX. Se ademocracia pode lidar com o fundamentalismo: acho que sim, mas para isso, é precisoentender qual é a base disso tudo. A base, até mesmo, da Al Qaeda, um grupo que eudesprezo, que ataco e critico sempre e contra o qual eu escrevo. Se você ler os textosde Osama bin Laden, não só um parágrafo, mas os discursos que ele faz, ele deixa a

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    sua posição muito clara. O que levou a fazer isso foi a ocupação da Arábia Sauditapelos americanos na primeira Guerra do Golfo. Para ele, é a terra sagrada do Islã,onde estão Meca e Medina, e aqueles países ficaram poluídos. Não concordo comisso, mas é a opinião dele. É claro que há um jeito. Quando os irlandeses [do IRA]explodiram o hotel em Brighton [em 1984] e quase eliminaram a base do governoinglês, em seis semanas os ingleses começaram a negociar com eles, tentandoencontrar as causas. Em um ano e meio, tentando encontrar as causas. Em um ano e

    meio, houve negociações particulares que levaram a um cessar-fogo. É precisoanalisar cada episódio e tentar descobrir por que ele acontece. Há um intelectualmuito sério na Universidade de Chicago, [o cientista político estadunidense] RobertPape, que escreveu um livro sobre o terrorismo [ Dying to win: the strategic logic of suicide terrorism ( Morrendo para vencer: a lógica estratégica do terrorismo suicida)],tentando explorar os motivos. Segundo ele, em nove de cada dez casos, o motivo épolítico, não é religioso.

    Samuel Feldberg: Sr, Ali, eu queria combinar duas de suas respostas para fazer umapergunta adicional em relação à responsabilidade dos eleitores ingleses. Como osenhor vê a referência aos eleitores palestinos e libaneses que colocaram, ou no

    poder ou participando do poder, o Hezbolá   e o Hamas, por um lado comoresponsáveis por esses dois grupos estarem no poder...

    [...]: Por meio de eleições democráticas.

    Samuel Feldberg: ...por meio de eleições democráticas e, segundo, se esses gruposque o senhor chama de "no direito de se defender da ocupação"... como o Hezbolápodem ser vistos nesse contexto, já que as tropas israelenses, em princípio, seretiraram do Líbano e o último episódio do conflito entre israelenses e o Hezbolá, decerta maneira, estava ligado a uma alegação do Hezbolá de que combatem a invasãoisraelense?

    Tariq Ali: É preciso entender por que essas pessoas são eleitas, por que o Hamasganhou a eleição na Palestina. O motivo para isso não foi o fato de os palestinos, derepente, começarem a ler o Alcorão [o principal livro sagrado do islamismo] vinte vezes por dia. O Hamas  ganhou porque os palestinos estavam cansados da OLP[Organização para a Libertação da Palestina], cansados de sua cooperação e dacorrupção. Essa corrupção era tão profunda que afetava muitas pessoas comuns, que via líderes palestinos construindo mansões enquanto o povo vivia na miséria. Foi umareação a isso. Eles elegeram o Hamas porque estavam cansados disso. O caso doHezbolá não é parecido. No sul do Líbano, que é a base desse grupo, as pessoas

    executam muitas atividades sociais, constroem escolas e hospitais, mas o Hezbolá temprestígio porque foi a única organização que conseguiu lutar e fazer Israel se retirardo Líbano há muitos anos. Isso deu prestígio a eles e por isso foram eleitos. Ficomuito feliz por eles participarem das eleições, porque, assim, eles expõem suas idéiasna TV diante de pessoas como você e discutem. Com isso, participam do processopolítico como um todo e acho que isso é bom para o futuro da região. Com relação aoque houve recentemente no Líbano [a guerra de 2006 entre Israel e Hezbolá], achouma tragédia para libaneses e israelenses. Os números mostram que milhares de civismorreram no Líbano. O alto comando israelense anunciou que mais de cem soldadosisraelenses morreram e centenas ficaram feridos, gravemente ou não. O Hezbolá

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    anunciou que 62 de seus membros morreram na disputa. E para quê? As trocas deprisioneiros políticos entre eles acontecem há muitos anos. O Hezbolá seqüestra umisraelense; Israel tem nove mil prisioneiros palestinos em suas cadeias. Eles sãotrocados por quatro, cinco ou seis. Isso acontece há anos. Eles fizeram isso agora e,de repente, aconteceu uma guerra. Acho que as causas dessa guerra são a vontade,principalmente de Washington, de mudar a situação no Líbano, fazendo no Líbano umprotetorado. O Líbano era assim antes e eles querem que seja de novo. Quando os

    sírios foram expulsos do Líbano [na Revolução dos Cedros], ficou um vazio no país.Quem preencheria esse vazio? Os EUA queriam preenchê-lo, é evidente. Eles têmseus interesses. Isso não surpreende ninguém. O único grupo capaz de resistir era oHezbolá. Nas pesquisas que são feitas no Líbano hoje, 60 ou 70% da populaçãoagradece a eles. Nas cenas vistas em Beirute ontem, toda a cidade nas ruascomemorando com fogos o cessar-fogo e a saída dos israelenses. O problema noOriente Médio, a meu ver, são as ocupações. Enquanto houver assentamentos[israelenses] na Palestina, de uma forma ou de outra, com a Palestina como Estadoindependente [de Israel] ou com a solução de um Estado único, e enquanto continuara confusão no Iraque, essa região continuará sendo de muito conflito.

    Paulo Markun:  Vamos fazer um intervalo, lembrando que a entrevista desta noitepoderá ser encomendada em dvd a partir de amanhã, como todas as outras da sérieRoda Viva. Para isso, você deve acessar o site www.culturamarcas.com.br  ou utilizaro telefone zero-operadora (11) 3081-3000. Nós voltamos em um instante com o Roda

     Viva, que esta noite tem, na platéia: Mariana Ferreira, estudante de jornalismo;Roberta Bardavil, tradutora e intérprete; Antônio Nacli, jornalista, diretor da Parceria6, agência de comunicação. A gente volta já, já.

    [intervalo]

    Paulo Markun:  Voltamos com o Roda Viva, que entrevista hoje o escritor,

    historiador, cineasta e ativista político Tariq Ali. Lembramos que, por tratar-se de umprograma gravado, não é possível a participação dos telespectadores, mas você podefazer a sua crítica, sugestão ou comentário pela página do programa na internet; é sóacessar o www.tvcultura.com.br/rodaviva e mandar o seu e-mail.

    [inserção de vídeo]

    Paulo Markun: [em off , enquanto passam imagens de Tariq Ali, de seus livros e daqueda do Muro de Berlim] Tariq Ali tem parte de sua obra dedicada a uma questãomuito presente na história humana: a transformação que, a cada momento e em cadalugar, ocorre e faz a vida tomar rumos inesperados. Em Sombras da romãzeira, oprimeiro livro da série Quinteto islâmico, Tariq Ali volta ao passado muçulmano daEspanha, exatamente no momento em que os reis católicos recuperam o país, noséculo XV, encerrando um período de 700 anos de domínio mouro na PenínsulaIbérica [e finalizando o processo da Reconquista]. É o fim da cultura, da religião, domundo dos muçulmanos que ali estavam e que se viram diante de uma encruzilhada:converter-se ao catolicismo ou morrer. Esse é o drama do personagem do livro. Noromance Medo de espelhos, Tariq Ali traz à tona outro momento histórico marcado,desta vez, pelas transformações que o fim da Guerra Fria [1945-1991] trouxe nasegunda metade do século XX. A queda do Muro de Berlim fez desmoronar também

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    esperanças de uma geração criada na Alemanha comunista e que se viu, igualmente,em uma encruzilhada. O mundo de muitas pessoas foi virado de pernas para o ar. Opersonagem do livro é uma delas.

    Paulo Markun: Tariq, eu vou tentar falar mais um pouco de literatura. Eu acho quenão vou ter a menor chance, mas em todo caso... A impressão que eu tive, lendo osseus livros, é que há um personagem recorrente, que aparece de diversas maneiras,que é o homem fora do seu tempo. Ele pode estar na Espanha, no final do domínio dosmouros, ele pode estar na Alemanha de hoje, reunificada, enfim, em vários cenáriosesse homem, esse personagem "mal ajeitado" no momento histórico. Eu estou erradoou existe mesmo essa persistência?

    Tariq Ali: Você tem razão, existem personagens assim nas minhas ficções. No caso daEspanha dominada pelos mouros, eles não estavam exatamente fora do seu tempo,mas eram perseguidos pelos cristãos e pelos fundamentalistas muçulmanos. Haviamuitos pensadores. A civilização moura na Espanha e, antes disso, em Portugal, criou,ao meu ver, uma das sínteses mais bonitas das três culturas: o judaísmo, ocristianismo e o islamismo. Sempre que você volta a ler sobre esse período, é muito

    emocionante. Havia debates. Um filósofo muçulmano de Córdoba [na Espanha], IbnRushd [conhecido, no Ocidente, como Averróis (1126-1198)], na verdade, diferencioua razão da verdade divina, o que exigiu grandes debates em mesquitas de toda aregião. As mulheres da época e até antes, no século X, escreviam poemas eróticos ese defendiam.

    Paulo Markun: Mas estas tentativas nunca deram certo, não duraram muito.Predominou sempre a violência, a intransigência, a separação.

    Tariq Ali: Bem, durou cerca de quatrocentos anos, o que é bastante tempo naHistória. Acho que, se a Inquisição [perseguições a heréticos pela Igreja Católica

    durante a Idade Média e Moderna, que freqüentemente os condenava à morte] e aReconquista não tivessem acontecido, provavelmente a cultura européia seria maismesclada e melhor e muito provavelmente o Islã teria sido reformado. Um motivopara essa reforma não ter acontecido foi o fato de ter sido adiada muitas vezes. Setivesse continuado sendo uma religião européia, quem sabe como estaria a Europa ecomo estariam a América do Sul e a América Latina?

     Vicente Adorno: Isso aí é uma questão que me intriga bastante, essa afirmação queo senhor fez, de que se o islamismo tivesse um futuro um pouco melhor se ele tivessecontinuado a ter raízes na Europa. Não é um pouco estranho achar que ele se perdeu justamente por voltar aos países de origem? É verdade - isso é uma coisaincontestável - que a própria Europa não tinha mais a cultura que ela tinha construídoe que foram os muçulmanos que levaram essa cultura de volta a ela durante aocupação moura [referência aos textos de vários filósofos gregos antigos, como os de Aristóteles, cujo conhecimento a Europa cristã perdeu no início da Idade Média; maseram conhecidos dos muçulmanos e foram recuperados pelo Ocidente por meio docontato com eles, a partir do século XII]. Por que tudo isso se diluiu e hoje a gente vêque, nos países muçulmanos, esse esplendor que teve a cultura muçulmana nãoexiste? A gente só tem - pelo menos no Ocidente - a gente só tem imagensextremamente negativas. A gente não vê mais essa coisa da pujança da civilização

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    que, ao invés de se impor pelas armas, se impôs pelo intelecto.

    Tariq Ali:  A primeira coisa a dizer para lhe dar a resposta é que as três religiões vieram do mesmo lugar, não só o islamismo. O cristianismo surgiu onde hoje é aPalestina. O judaísmo nasceu naquela região e o islamismo também. Todas elas viajaram e era considerado normal esse movimento das religiões de uma parte domundo para outra, qualquer que fosse a religião. A civilização islâmica, sobretudo em Al-Andaluz [a parte da Península Ibérica dominada pelos árabes; hoje, chama-se de Andaluzia apenas região sul da Espanha] e Portugal, foi muito importante, não sópara esses dois países. Ela foi uma ponte para o Renascimento. Sem ela, boa partedos conhecimentos teria se perdido. Eles foram traduzidos para o árabe, para o latim,havia uma grande escola de tradutores em Toledo [na Espanha]. Eu gostaria que elaainda existisse para traduzir várias coisas. Essa cultura foi expulsa. A segunda grandefase da civilização islâmica veio com os otomanos [que fundaram o Império Otomano(1299-1922), hoje Turquia]. Foi o maior império, o império mais duradouro. É precisodizer que o motivo da atrofia dessa civilização foi mais interno do que externo. A estrutura social interna do mundo otomano, sobretudo o papel dos clérigos, impediaque eles levassem da Europa o que deveriam, como a prensa, como o relógio. Sempre

    houve resistência. Dizem que um sultão esclarecido em Constantinopla, que hoje éIstambul [na Turquia], disse: "Vamos pegar a prensa", mas os clérigos disseram: "A prensa? Para que as pessoas publiquem seus livros? Vejam o que houve na Europa.Lembram-se de Martinho Lutero? [(1483-1546), clérigo alemão cujas idéiasdeflagraram a Revolução Protestante em 1517, que mergulhou a Europa em guerrasreligiosas até 1648; defendia a tradução da Bíblia do latim para as outras línguas,para que todos pudessem ler] Vocês querem uma guerra entre as facções doislamismo por duzentos anos, como a guerra entre protestantes e católicos, quematam uns aos outros?". Então, eles recuaram. Foi um erro, mas eles recuaram. Asligações estavam lá. O que aconteceu depois foi que a Europa Oriental - não a

    Ocidental -, a Europa Oriental se desenvolveu e lá surgiu o capitalismo, que usou aEuropa Ocidental como impulso e dominou todo o mundo, inclusive este aqui. Então já era tarde para o islamismo fazer alguma coisa. A superioridade industrial etecnologia daquele mundo determinou que o domínio seria deles de duzentos atrezentos anos.

    Emir Sader: Tariq, parece que lutamos por um outro mundo possível. O mundoaparece como articulado por três eixos de poder: armas, dinheiro e palavra. Omonopólio das armas, o monopólio do dinheiro e o monopólio da palavra. Qual desseselos é o mais forte? [Com] qual deles é possível acumular mais forças para criar umoutro mundo possível?

    Tariq Ali: Bem, o mundo que conhecemos hoje é um mundo determinado, em boaparte, pelo Consenso de Washington. Suas instituições, suas políticas econômicas...Essas políticas neoliberais são vistas hoje como os religiosos vêem suas religiões. Você não pode fazer nada que desafie o neoliberalismo. Se você fizer isso, seráextremista, autoritário, ou qualquer que seja o nome. Isso é triste, porque não foiassim em boa parte do século XX. Hoje, até a social-democracia e suas reformas sãoproibidas. Não são permitidas, pois as instituições ficaram fortes. Por isso, os elosentre dinheiro e poder, hoje, a meu ver, inclusive no Brasil - mas não apenas aqui,como também nos EUA e em muitas partes da Europa Ocidental -, estão começando a

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    afetar o funcionamento da democracia. Temos exemplos em quase todos os grandespaíses com instituições democráticas de como a entrada do mercado na política e ouso do dinheiro destroem ou desacreditam a política democrática. Os jovens estãocomeçando a dizer: "Por que votar? Isso não muda nada. Quem tem dinheiro controlatudo". Nas duas últimas eleições na Grã-Bretanha - que seria a terra da democracia -nas duas últimas eleições, muita gente entre 18 e 26 anos não votou. Isso éperturbador. Até os direitistas estão perturbados com isso, mas não imaginam o que

    fazer. O continente onde as políticas neoliberais foram testadas primeiro, o continentelatino-americano, foi onde começaram grandes movimentos sociais. Essesmovimentos sociais estão causando impacto. De certa forma, a meu ver, quando meperguntaram onde vejo esperança, eu digo: "Vejo um recomeço de esperança na América Latina". Isso não acontece no Oriente Médio, destruído pela guerra e comuma religião muito forte. Os grupos religiosos no Oriente Médio podem resistir, oHezbolá pode resistir, o Hamas também, mas o problema é que eles não oferecem visão social, não oferecem futuro àquela gente.

    Demétrio Magnoli: O senhor está propondo uma ponte entre a América Latina e oOriente Médio. Eu queria explorar esta ponte. O senhor escreveu, aliás, disse, em

    uma entrevista em 20 de setembro de 2001, pouco depois dos atentados do 11 desetembro, algo com o que eu concordo: o senhor fez uma comparação entre osfascistas na Europa e os islamistas radicais do Oriente Médio, dizendo que osislamitas radicais do Oriente Médio são os fascistas de lá e que têm o mesmo tipo decrenças filosóficas no sangue, no solo e na religião. Eu acho que essa caracterizaçãose aplica bem ao presidente do Irã, atual, Mahmoud Ahmadinejad, caracterização suae que eu acho que se aplica a esse presidente. O senhor, quando se refere àesperança na América Latina, fala, como disse muitas vezes, do [presidente] HugoChávez, na Venezuela, e das mudanças que o Hugo Chávez estaria promovendo na Venezuela. Mas um dos eixos principais de política externa de Hugo Chávez, hoje, é

    uma aliança política - não é apenas uma aliança econômica -, mas é uma aliançapolítica, uma aliança ideológica que ele proclama do seu governo com o governo deMahmoud Ahmadinejad, no Irã. Como o senhor vê, do ponto de vista da esquerda, dosque querem mudar o mundo, uma aliança entre Hugo Chávez e Ahmadinejad?

    Tariq Ali: Para começar, acho que você fez uma citação errada. Nunca chamei osgrupos de islâmicos de fascistas. Nunca. Nunca!

    Demétrio Magnoli: Eu tenho a entrevista aqui...

    Tariq Ali: Que entrevista? Quem fez essa entrevista? Eu contesto isso. Na verdade,

    sou muito cuidadoso. Eu chamo esses grupos de "islamo-anarquistas". Eu os comparoaos grupos europeus do começo do século XX, que jogavam bombas e matavampessoas. Outras pessoas dizem "islamofascistas"; Francis Fukuyama [economista ecientista político estadunidense - ver entrevista com Fukuyama no Roda Viva], disseisso. A citação que você leu poderia ter sido de Fukuyama. Certamente não é minha.Nunca usei palavras como sangue e solo nesse sentido. Na verdade, contesto pessoasque confundem o fascismo que aconteceu na Europa e era popular como a Al Qaeda -que não é um grupo fascista, ainda que não gostemos dela. É preciso ser muito exatonisso. Eu não os descrevo assim. Mahmoud Ahmadinejad, do Irã, já foi objeto detextos meus. Não concordo com ele, mas é preciso questionar... Havia dois candidatos

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    naquela eleição. Os dois eram clérigos. Um era [Hashemi] Rafsanjani [presidente doIrã de 1989 a 1997], apoiado pelo Ocidente. Totalmente apoiado pelo Ocidente. Ooutro era Ahmadinejad. Acompanhei bem de perto a campanha no Irã. Não houvediscussão de política externa. A grande discussão era sobre riqueza e pobreza. Ahmadinejad distribuiu um vídeo que mostrava as casas de Rafsanjani e a riqueza queele havia acumulado no poder. Isso conquistou os pobres, que o elegeram. Foi issoque aconteceu. Hoje as pessoas de várias partes do mundo estão desesperadas por

    algo diferente. Quando ele não oferecer nada, veremos. Ele vai sair do poder, naminha opinião. Quanto ao Irã, pergunte-se o seguinte: os EUA teriam ocupado oIraque e o Afeganistão sem a anuência tácita dos mulás [líder religioso] iranianos? Ambos tinham motivos para se livrar de Saddam [Hussein [1937-2006], ditador doIraque deposto pela invasão dos EUA de 2003]: os mulás iranianos e os EUA. Omesmo se pode dizer do Talibã no Afeganistão. Os iranianos e os EUA trabalharam juntos. Houve muitas conversas entre eles, sabemos disso. Isso deixou os EUA numasituação difícil. Com relação a Hugo Chavez, não é só ele. Temos também o caso daBolívia, com Evo Morales. Temos o México dividido muito claramente com um partidodizendo que as eleições foram roubadas. Há uma posição intermediária entre Cháveze Castro na figura de Néstor Kirchner [presidente da Argentina de 2003 a 2007]. Etemos o Brasil, que continua no neoliberalismo. À exceção do Brasil, embora aqui hajamovimentos sociais e muitos problemas - basta ler os jornais para saber -, no resto da América Latina, vem sendo criada uma tendência. Não para fazer revoluções comonos anos 1960, mas para instituir reformas que ajudem os pobres. Esse é a diferençaentre esses países e a religião. Em escala mundial, os países produtores de petróleoencontram-se e discutem estratégias. Isso sempre aconteceu. É claro que Chávez vaiao Irã, ele procura Mahmoud Ahmadinejad e eles erguem uma estátua de SimónBolivar [(1783-1830), herói da independência de vários países latino-americanos] emTeerã, o que é inacreditável. Então, Chávez dá uma entrevista na Al Jazeera [emissora jornalística de televisão do Catar, país do Oriente Médio], vista por 26 milhões depessoas. Eles recebem dezenas de milhares de e-mails e 90% desses e-mailsperguntaram quando o Oriente Médio vai ter um Chávez.

    Demétrio Magnoli: Mas a minha pergunta é sobre a aliança política e ideológicaentre Chávez e Mahmoud Ahmadinejad anunciada por Chávez.

    Tariq Ali: Chávez quer criar uma aliança mundial contra os EUA. Não há dúvidanenhuma. A idéia é bem popular em muitos lugares do mundo. Pode não ser no Brasil,mas é popular. Quem se opõe às políticas econômica e externa americanas acha quedeve criar uma frente mundial para atuar em conjunto na ONU [Organização dasNações Unidas], em todos os lugares. Ele tem esse direito. E é o único que faz!Quando ele discursou e anunciou na ONU, até os jornalistas americanos disseram quefoi o único discurso que chamou atenção, porque os outros foram só banalidades eclichês. Por isso, neste mundo neoliberal... E muitos líderes árabes disseram a ele:"Que bom que você disse isso, mas não podemos fazer o mesmo, temos medo".

     Vicente Adorno: Mas o Chávez foi recebido pelo Saddam Hussein, algum tempoatrás, e o Saddam Hussein serviu até de motorista para ele, levou-o dentro de algumdaqueles mercedões que ele possuía e fez ele fazer uma viajem completa lá. Então,quem quer que seja que tiver que representar alguma coisa contra os Estados Unidos vai ser o aliado do Chávez, assim cegamente?

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    Tariq Ali: Chávez visitou o Iraque para discutir o petróleo na Opep [Organização dosPaíses Exportadores de Petróleo]. Ele criticou as sanções ao Iraque, impostas pelaONU e pelos EUA, que causaram a perda de centenas de milhares de vidas. Ele disseque desafiaria o embargo, mas ele não foi o único a fazer essa visita. Há belas fotosde Donald Rumsfeld [secretário de Defesa dos Estados Unidos de 1975 a 1977 e de2001 a 2006] e Hugo Chávez. Há belas fotos de líderes ocidentais com Saddam, fotosde Rumsfeld com Saddam Hussein.

    Demétrio Magnoli: Mas a pergunta [inaudível, fala junto com Tariq Ali] não vê oRumsfeld como modelo, mas vê Chávez como um modelo. A pergunta é por que osenhor não apresenta Rumsfeld como modelo mas apresenta Chávez como ummodelo.

    Tariq Ali: Claro, mas para mim, não há modelos de verdade. Mas eu acho que Chávezé uma força positiva. Não que eu deixe de criticar alguém, mas, no mundo de hoje, eleé uma força positiva. Por que os EUA deveriam decidir quem visita um líder ou não?Os EUA impõem um embargo a Cuba há quanto tempo? Mesmo assim, Lula [LuísInácio Lula da Silva, presidente do Brasil de 2003 a 2010] foi visitar Fidel [Castro,

    chefe de Estado de Cuba de 1959 a 2008]. Kirchner também. Todo líder latino-americano desafia o embargo agora. Foi isso que Chávez fez no Iraque e não é tãoerrado. Por que deveria ser? A pior... Na pior época de Saddam Hussein, quando elematava os curdos [povo que habita o norte do Iraque e os países vizinhos], usavagases venenosos contra eles, ele era um grande aliado do Ocidente. Essa era arealidade.

    Samuel Feldberg: Em referência ao Iraque, o senhor é um dos maiores críticos daintervenção norte-americana no Iraque. Em uma entrevista à revista Z , de março de2006, o senhor declarou que "a presença norte-americana no Iraque, apoiando curdose certos colaboradores xiitas [uma das duas principais vertentes do islamismo, ao

    lado da sunita; os xiitas eram reprimidos por Saddam Hussein, sunita], talvez seja omaior responsável pelo processo que tende a levar a uma guerra civil no Iraque". A minha pergunta é: o Iraque estava melhor, a população iraquiana estava melhordurante o governo de Saddam Hussein? E [se] esses conflitos não aconteciam poruma imposição, [pelo] regime iraquiano, da supremacia sunita. E qual a sua visão deum possível futuro para o Iraque, com ou sem a continuidade das tropas norte-americanas no país?

    Tariq Ali: Se você quer saber se os iraquianos estavam em melhor situação antes dainvasão, eu digo que sim. Muitos iraquianos também acham isso. Eles dizem isso. A 

    Guerra do Golfo, nos anos 1990, foi desastrosa, mas quando ela acabou, eles disseramque em três semanas, os serviços de água e luz estavam normalizados. Os EUA estãono Iraque há mais de três anos e ainda há cidades que não funcionam. Nesse nível deordem social e do que está disponível para a população, é um verdadeiro desastre.Um verdadeiro desastre. O que vai acontecer quando os EUA saírem? Eles terão quesair. É difícil ficar lá. Muitas coisas vêm sendo discutidas. Uma delas seria a divisãode facto do Iraque. O Curdistão continuaria sendo um protetorado, como foi por 12anos antes da invasão do Iraque, desde a Guerra do Golfo [referência à “zona deexclusão” no norte do Iraque, imposta pelos EUA em 1990, dentro da qual militaresiraquianos não podiam entrar]. Os líderes curdos pagavam muito caro. Essa é uma

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    possibilidade. Para o resto do Iraque, a pergunta é bem diferente. Se os EUA saírem,parece-me óbvio o que vai acontecer, a menos que haja mais intervenções. Os xiitasno poder vão dizer: "O único país da região a quem podemos nos aliar não é a ArábiaSaudita, onde estão os wahabitas - sunitas radicais -, nem o Egito, ou qualquer dessespaíses. Nosso único aliado possível é o Irã. Vamos fazer um bloco com o Irã,estabelecer um pacto de segurança, fazer acordos econômicos com eles". Se issoacontecer, será o elemento mais forte de todo o Oriente Médio. Os EUA vão permitir

    isso? Não sabemos. Depende de muitas outras coisas, mas a intervenção americanadestruiu o Iraque e desestabilizou toda a região, como estamos vendo agora. Comoisso vai se desenvolver nos próximos cinco ou seis anos vai depender de muitosimponderáveis que não podemos imaginar.

    Paulo Markun: Bem, vamos fazer mais um rápido intervalo e eu lembro a você, queestá em casa, que, pelo site: www.culturamarcas.com.br  ou pelo telefone 3081-3000,código aqui de São Paulo, você pode obter os três livros: O melhor do Roda Viva -internacional, cultura e poder , que reúnem vinte entrevistas, das melhores já feitaspelo programa, em cada um desses volumes. Nós voltamos já, já com o programa.

    [intervalo]

    Paulo Markun: Estamos de volta com o programa Roda Viva   que, esta noite,entrevista o escritor, historiador, cineasta e ativista político paquistanês, radicado naInglaterra, Tariq Ali. O programa desta noite, ele está sendo gravado e por isso nãopermite a participação dos telespectadores. Mas, de todo modo, você pode fazer suascríticas, sugestões, ou propostas para o programa. O endereço é:www.tvcultura.com.br/rodaviva e você manda por aí o seu e-mail. Tariq, você tem sidomuito interessado na América Latina e muito crítico em relação ao governo Lula, queo senhor apoiou no início. O que faz uma pessoa ver à distância e enxergar tantofracasso no governo do PT [Partido dos Trabalhadores, o partido de Lula]?

    Tariq Ali: Primeiro eu diria que a distância não é tanta. Porque, na época da ditaduramilitar no Brasil, muitos intelectuais brasileiros foram para a Europa, para Paris, paraLondres e outros lugares e nos encontrávamos com freqüência, publicávamos seusensaios e textos na Europa. Era uma ligação bem próxima com a Europa. Então,quando o PT foi criado, conhecíamos muitos dos seus membros. Eu conhecia muitagente que fundou o partido. Então, era muito grande a esperança de que esse seriaum partido transformador. Quando Lula foi eleito, eu estive aqui. Pouco antes daeleição, estive aqui e vi o entusiasmo em Porto Alegre, em Ribeirão Preto e em outroslugares que visitei. Eu me sinto bem próximo deste país, de muitos de seus

    intelectuais e políticos. [Fernando Henrique] Cardoso [presidente do Brasil de 1995 a2002] escreveu para a [revista política britânica] New Left Review nos anos 1970 e1980. Ele escrevia ensaios para a revista. A distância não era sentida. Na verdade, euera solidário ao que Lula tentava fazer. Mas, então, ele teve de fazer uma escolha,uma escolha que se apresenta a um líder como ele ou a um país a cada trinta anos. Vou usar o poder que o povo me deu para transformar o país de alguma forma ou voucontinuar no caminho de antes? Muitos de seus consultores o aconselharam - e eleaceitou esse conselho - a comandar o país como se fazia antes. Tomada essa decisão,o que estamos vendo hoje é inevitável. Ver o presidente do Brasil ser questionado por jornalistas que perguntaram a ele: "O senhor está envolvido na corrupção?" e ouvi-lo

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    dizer: "Não estou envolvido", totalmente na defensiva. "Não estou envolvido". Um dos jornalistas disse que não acreditava e ele ficou repetindo isso. É uma história muitotriste, é uma tragédia.

    Oscar Pilagallo: Essa decepção que o senhor teve com o governo Lula, tem mais a ver com a questão das acusações de corrupção ou com relação a um passado quehavia, do PT, e, no momento em que ele se tornou governo, acabou, não se conferiu -uma coisa mais ideológica, mais relacionada à prática? Em que momento o senhorsentiu que a decepção realmente chegou: “a partir deste momento, o governo não émais o que eu esperava dele”?

    Tariq Ali: Como estou dizendo, a corrupção foi a conseqüência lógica da política e daideologia que Lula e seus consultores resolveram seguir, o que foi um rompimentocom a ideologia do PT. Quando falo de ideologia, não me refiro a nada radical, mas aum partido social-democrata, que prometeu reformas na educação, na saúde. E vocêconhece o estado da educação neste país...! Venho muito aqui e a situação é chocante,é muito ruim. Se um governo como o do PT não consegue nem melhorar a qualidadeda educação para a maioria dos cidadãos, é uma grande tragédia para o Brasil. O que

    aconteceu com a corrupção não me surpreendeu totalmente. O que me deixa comraiva, por exemplo, é um dos consultores, um verdadeiro neoliberal - antes trotskista,agora neoliberal – [Antônio] Palocci [ministro da Economia de 2003 a 2006], que foiacusado e, para evitar as acusações e conseguir imunidade, tenta ser eleito deputadofederal. O Congresso fica desacreditado, é uma tragédia quando essas coisasacontecem. Isso faz da democracia algo muito abstrato para a população. Acho que oque houve foi uma combinação das duas coisas.

    Emir Sader: Faz um pouco mais de um ano da execução do brasileiro [Jean Charlesde Menezes] pela polícia britânica no metrô de Londres [aparentemente confundidocom um terrorista]. Você escreveu um capítulo em seu livro sobre esse tema. Eu

    queria que você resumisse o que foi que exatamente aconteceu. E depois? Apurou-se,investigou-se um pouco mais sobre esse acontecimento?

    Tariq Ali: O que aconteceu foi uma grande tragédia. A polícia estava decidida amostrar publicamente que era valente e forte, queria dizer que era capaz de defendera população etc, etc. Eles seguiram o homem errado saindo de casa. Nem sequersabemos... Uma casa no sul de Londres. Se eles tivessem seguido o homem certo, nãosabemos se o ato seria justificável, porque ninguém sabe quem era o homem certo.Seguiram esse rapaz de pele escura desde a casa dele e disseram que estavamseguindo um terrorista que estava com bombas para causar explosões. Essa história

    não parece verdadeira. Se ele era terrorista, por que não o detiveram na hora? Porque o deixaram entrar em um ônibus? Ele poderia ter explodido o ônibus. Elesseguiram o ônibus, que chegou à estação de metrô. O sujeito estava calmo, tinhabilhete do metrô, pegou um jornal e se acomodou no vagão. Ele foi cercado na hora eficou aterrorizado, com cara de assustado. A polícia ligou para alguém e outro grupoentrou no vagão e o matou a tiros. Eles ficaram trinta segundos atirando. Olhe para oseu relógio, acione-o e conte trinta segundos. Todo esse tempo eles ficaram atirando.Foi uma execução em público. Foi isso. Era para mostrar que eles eram valentes, e ocoitado do rapaz morreu. Eles ainda não tiveram a decência de fazer umainvestigação adequada. Os policiais que o mataram foram suspensos, mas já estão

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    trabalhando de novo. No inquérito, eles disseram que seguiram ordens.

    Emir Sader: Mesmo o prefeito de Londres [Ken Livingstone] gostou que nãohouvesse punição da execução?

    Tariq Ali: O prefeito ficou nervoso, na época. Ele deveria ter se pronunciado mais,porque ele costuma ser muito objetivo nessas questões, mas ele não se pronuncioumuito a respeito. Nós nos pronunciamos. Escrevi sobre isso no [jornal] The guardian,

    fui me encontrar com a família e fui solidário, mas não houve uma investigaçãoadequada, porque ela revelaria... ora, estamos falando da Grã-Bretanha: não hágrupos de policiais armados entrando em trens e matando. Alguém de um posto muitoalto deu a ordem. Queremos saber quem deu essa ordem e por quê. Isso ainda não foirevelado.

     Vicente Adorno: A imprensa questionou isso o suficiente?

    Tariq Ali: A imprensa não questionou o bastante, isso é verdade. Nas primeiras 24horas, se você observar, toda a imprensa deu: "Terrorista morto em Londres".

     Vicente Adorno: Sem nenhuma apuração?Tariq Ali: Um jornalista de um jornal regional da Escócia, o Sunday Harold, que nãoestá entre os grandes jornais, fez uma ótima investigação. Ele a publicou em trêspartes, é a melhor investigação e não foi citada em nenhum outro veículo. Ele é um jornalista comum, um homem honesto e achou que aquilo não fazia sentido. Ninguémnotou. Usei a investigação no meu livro e coloquei o nome dele, mas ninguém oconvidou para escrever, ninguém perguntou a ele quais eram suas fontes, porque eletinha dados.

     Vicente Adorno: Isso aí ratifica, ao seu ver, a opinião tão má que o senhor tem da

    imprensa, de que o senhor disse que a imprensa, hoje em dia, é, no mínimo, relapsacom tudo que acontece, que não existe uma posição crítica?

    Tariq Ali: Não, o que eu digo é mais cuidadoso. O que eu digo é que o espaço naimprensa para opiniões discordantes está cada vez menor. Não digo que a imprensaseja inútil. Claro que não e isso se aplica a todos os lugares, mas, se você observar osgrandes jornais europeus hoje, ou no Brasil, por exemplo, vai perceber um declínioem relação ao padrão de antes. Isso é triste para os leitores dos jornais, porque, paracriar uma opinião pública vigilante e alerta, precisamos de uma imprensa com váriospontos de vista. Sem isso, se ela ficar cada vez monótona, falando sempre no mesmotom, ela afeta a cultura política e isso é triste.

    Oscar Pilagallo: O senhor atribui isso a quê, exatamente? Porque o fato é esse, hojeem dia, uma imprensa menos crítica, mais monolítica, de apoio aos seus governos,mas o fato é que, até pouco tempo atrás, no final do século passado, na Guerra do Vietnã, a imprensa americana era bastante crítica. De lá para cá, não houve umamudança estrutural muito grande nas empresas - na maneira como o noticiário chegaàs redações, na parte editorial, em nada disso houve uma mudança muito grande.Nesse caso, essa mudança pode ser atribuída a quê, exatamente?

    Tariq Ali: Bem, você tem toda razão, concordo com você. Durante a Guerra do

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     Vietnã, a imprensa americana - e a TV americana, o que é ainda mais importante -,cobriram as notícias muito bem. Justamente por isso, muita gente nos EUA nocomando dessas organizações ouviram em termos bem diretos dos políticos e dospresidentes de empresas: "Em outras guerras, não podemos fazer isso, porquedesmoraliza a população. Veja o movimento contrário à guerra que surgiu nos EUA.Não queremos que isso aconteça". Se você observar, há um filme recente deHollywood chamado  Boa noite, boa sorte, que mostra como foi a degeneração da

    mídia nos EUA. É um filme de George Clooney, um filme maravilhoso e que explicaisso. Existe uma razão estrutural e essa razão tem a ver com o que houve no mundodepois de 1989. Com o colapso do inimigo comunista em escala mundial, já não eranecessário provar que o capitalismo era melhor em termos de democracia, liberdadede imprensa, direitos dos partidos políticos, isso já não era prioridade. Quando ocomunismo existia, isso era prioridade, era uma questão ideológica. Veja nossos jornais. Não podemos publicar comunistas. Vocês podem publicar quem defende ocapitalismo...

    Demétrio Magnoli: Tariq Ali, eu acho que o senhor faz uma bela defesa da liberdadede imprensa e da sua importância para a democracia. Da imprensa, da mídia para a

    democracia, e eu concordo com essa defesa. O que me deixa um pouco atônito é que,ao lado dessa defesa do papel da mídia no debate público, na democracia, o senhordefende também o regime cubano, por exemplo, onde as pessoas são presas porterem fax, por terem uma antena parabólica, por usarem um computador - sãocrimes; então, quanto mais uma imprensa livre. Então, me parece que há um duplocritério permanente no seu discurso que o torna um pouco complicado para seentender. Eu queria entender melhor...

    Tariq Ali: Claro, vou tentar explicar. Para nós, a revolução cubana [de 1959] foiprovavelmente a mais importante da segunda metade do século XX. O que aconteceu

    com ela? Foi totalmente bloqueada. Houve tentativas de invasão do país, muitastentativas de matar os líderes, porque estratégica e geograficamente, Cuba estavamuito perto dos EUA. Isso levou essa revolução, isso a impulsionou a procurar ajudada União Soviética [URSS], a outra grande força. O que aconteceu nos anos 1970foi... Antes disso, nos diversos períodos da revolução, de 1960 a 67, havia muito maisrevistas e revistas que faziam críticas como a  Pensamiento crítico, editada porFernando Martínez, que era uma revista crítica muito sofisticada. Depois do acordocom os russos, todo esse processo acabou, o que foi uma tragédia para a revolução.Eu disse isso aos cubanos, não estou dizendo apenas num estúdio no Brasil. Foi umatragédia. Escritores presos devido às suas opiniões eram uma coisa desnecessária etrágica, que não deveria ter acontecido. Mas, se a partir disso, você me perguntar:“Então, você quer esse regime derrubado pelos EUA?” Não! Ótimo. OK.

    Samuel Feldberg: Eu queria voltar ao Oriente Médio. O senhor mencionou aqui quea condição básica para uma solução dos problemas do Oriente Médio passa pelasolução do problema palestino, ou através da criação de um Estado palestinoindependente, ou, eventualmente, através da chamada “solução de um Estadocomum”. Primeiro: como o senhor vê a fronteira possível entre Israel e um Estadopalestino independente e, se não, o senhor acredita, realmente, na possibilidade daexistência de um Estado único para ambas as populações que possa se manterdemocrático?

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    Tariq Ali: Veja, a situação está tão ruim na Palestina que qualquer coisa que se digaparece utópica. Quase toda solução nos leva a pensar: "Como conseguir isso?". Se você quiser começar a pensar seriamente, dependendo da solução que você defende...Em toda minha vida política, em quase toda a minha vida, defendi a solução de umEstado para judeus, muçulmanos e cristãos, como foi Jerusalém após a expulsão dasCruzadas. Uma cidade para todos, um Estado para todos, para que todos mantenhamsua identidade cultural e sua posição política, mas um Estado comum. Isso se mostrou

    impossível. Quando vimos que era impossível, eu pensei: "Tudo bem". Falo commuitos palestinos e israelenses, tenho amigos israelenses muito chegados, e eu disse:"Neste caso, se vocês consideram impossível, precisamos de um Estado palestino queseja adequado”. Para que a Palestina seja um Estado adequado, ela precisa, paracomeçar, que Israel se restrinja às fronteiras de 67. Isso não vai acontecer. Está claroque não vai acontecer. De novo, a solução do Estado comum vem sendo considerada. Acho que depois dessa desgraça no Líbano, muita gente em Israel vai dizer: "O que vamos fazer para agüentar até o final do século? Não podemos continuar assim.” Háum historiador de esquerda muito famoso, Isaac Deutscher [(1907-1967), polonês]que, a princípio, era solidário ao sionismo [movimento a favor dos judeus], mas depoisda guerra de 1967, ele declarou que eles estavam ficando como os prussianos[referência ao forte militarismo alemão do fim do século XIX e início do XX, uma dascausas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)]. E ele os avisou, ele disse: "Porfavor, lembrem-se de que há um velho ditado alemão: seu triunfo pode levar à morte.E não engula o que você não consegue digerir". Acho que foi o melhor conselhopossível, mas agora a situação fugiu totalmente ao controle na minha opinião. Não vejo... Estive com membros do Hamas há pouco tempo e eles me disseram: "O que você faria no meu lugar?". Eu respondi: "No seu lugar, eu destituiria a AutoridadePalestina, porque é uma piada, ela não existe, declararia a todos os cidadãos da novaentidade e começaria uma campanha de desobediência civil. Chega de homem-bomba, chega de confrontos violentos. Façam como muitos fizeram em situações decolonização, exijam direitos iguais. [de fato, uma rebelião do Hamas destituiu à forçaa Autoridade Palestina na região de Gaza, em março de 2008]

    Samuel Feldberg: E quem não está interessado nesse tipo de solução?

    Tariq Ali: Eles ficariam quietos, não disseram nada. Eles não rejeitaram, acharaminteressante, mas disseram: "Você não entende nossa situação, é muito difícil. Osisraelenses prendem nossos parlamentares e o nível de brutalidade é muito grande".Eu disse: "Sei disso e, justamente por saber, sugiro que vocês destituam a AutoridadePalestina, porque ela não existe. Vocês não podem fazer nada, vocês são tratados pior

    do que uma ONG [organização não-governamental]. Nesta situação, o que vocês têma perder? Afirmem-se como cidadãos, exijam direitos iguais e vamos ver como fica".

    Paulo Markun: Tariq, vamos fazer mais um rápido intervalo. Lembramos que o Roda Viva desta noite e todos os programas da série, mais de mil programas já realizadosaqui, pela TV Cultura, podem ser encomendados em DVD. Para isso, você acessa osite: www.culturamarcas.com.br   ou o telefone zero-operadora (11) 3081-3000. A gente volta já, já.

    Paulo Markun: Você vê hoje, no Roda Viva, a entrevista com o escritor, historiador,cineasta e militante político Tariq Ali, paquistanês, radicado na Inglaterra. Ele é

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    representante da nova esquerda globalizada. Um intelectual que tem se dedicado aestudar e traduzir para o Ocidente o complexo mundo do islamismo. Tariq Ali é autorde vários livros, muitos deles voltados para a análise crítica das relações justamenteentre os Estados Unidos e o Oriente. Tariq, o senhor, recentemente, neste eventoliterário de Parati, foi vaiado, por parte do público, segundo a imprensa noticiou. Euimagino que, com essa sua militância e essa peregrinação constante defendendoalguns pontos de vista que não necessariamente são aqueles que estão na moda, isso

    deva acontecer com alguma freqüência. O senhor não se sente, às vezes, um "peixefora d'água", como se diz aqui no Brasil, quer dizer, alguém que está indo contra acorrente, quando, talvez, fosse talvez mais fácil pensar de outro jeito?

    Tariq Ali: Primeiro, quero dizer que na minha palestra em Parati, acompanhada pormil pessoas, algumas pessoas fizeram perguntas agressivas. Não fui vaiado. Na verdade, fui muito bem recebido pela grande maioria do público. Estou acostumado.Não me preocupa ouvir perguntas agressivas ou explicar minhas opiniões, porquetemos de fazer isso. É o que esperamos dos outros, então por que não aceitar críticase tudo mais? Mas a crítica deve se basear na realidade, não em posições imagináriasatribuídas a nós. Fico irritado quando alguém me acusa de ter opiniões que

    obviamente não tenho, para fortalecer sua própria causa. Houve um ou dois casosassim no mídia mundial e no Brasil, mas não me incomoda muito. Não fico pensandonisso. Basicamente, quando me fazem uma pergunta, tento dizer a verdade e achoque consigo. Às vezes isso irrita as pessoas, já que a verdade, hoje em dia, pode serdolorosa, sob alguns pontos de vista.

    Paulo Markun: O senhor se sente um órfão do trotskismo?

    Tariq Ali: Não me sinto órfão de trotskismo ou de qualquer outro “ismo”. Eu me sintoindependente. Decidi, nos anos 1980, quando não tinha mais ligações políticas comnenhum grupo, que não seria apolítico, isso nunca foi uma opção. A revista da qual

    participo, a  New Left Review, é uma revista de crítica há quase cinqüenta anos eparticipo dela há 25 anos. Somos um grupo de intelectuais, compartilhamos pontos de vista e discutimos. A revista é bimestral, publicada em inglês e em espanhol. Uma vezpor ano, é publicada em português no Brasil e está presente em lugares como aTurquia. Teremos edições em árabe. Eu me sinto fortalecido pelo fato de termosmantido essa tradição em tempos difíceis, quando uma onda encobriu uma geração ea virou de cabeça para baixo. Pessoas que eram radicais, hoje são reacionárias.

    Emir Sader: Tariq, você considera que a frase do Sartre, "o marxismo é uma filosofiainsuperável no nosso tempo”, continua a ser válida?

    Tariq Ali: Sartre...? Foi isso que você disse...?

    Emir Sader: Jean-Paul Sartre. [(1905-1980), filósofo e escritor francês, formulador doexistencialismo]

    Tariq Ali: Jean-Paul Sartre. Acho que Sartre foi uma grande inspiração para nós nofinal dos anos 1950 e nos anos 1960. Não sou existencialista e nunca fui, mas eletinha uma coragem que me agradava muito, além do fato de ele se posicionar emquestões como a guerra na Argélia [(1954-1962), pela sua independência da França],por exemplo. Numa época em que a França, inclusive muitos comunistas, ficaram em

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    silêncio. Sartre e Simone de Beauvoir [(1908-1986), filósofa, escritora e feministafrancesa] falaram e se posicionaram. E muitas outras coisas que ele fez. A filosofiadele causou impacto em alguns de nós, mas menos em mim, mais em meus colegas...

    Emir Sader: A questão é se... [algumas palavras faladas ao mesmo tempo que outrosentrevistadores] ..."o marxismo   é a filosofia insuperável do nosso tempo". Essaafirmação, para você, continua a ser válida?

    Tariq Ali: Sim, é válida se não for tratada como uma religião ou de forma dogmática.Como descartar boa parte das descobertas intelectuais feitas por Marx? Quando eu volto a ler Marx, normalmente é emocionante. O que não me agrada e nunca meagradou é o uso dos textos de Marx, ou de outros nessa linha, como uma religião.Essa tradição era muito forte na esquerda. Antigamente, numa discussão, bastavafazer uma citação e isso já era suficiente. Era errado na época e hoje é impossível agirassim. Você precisa argumentar. Os textos de Marx, Trotsky e outros são úteis aindahoje.

    Demétrio Magnoli: Falando da “esquerda globalizada”, expressão interessante doMarkun, no Manifesto de Porto Alegre, que o senhor assinou em 20 de fevereiro de2005, no Fórum Social Mundial, junto com 18 intelectuais, um deles o Emir Sader,que está aqui, o Frei Betto, também brasileiro, tem algumas passagens que medeixaram curioso. Numa delas, o manifesto pede que se removam todas as tropasestrangeiras do mundo, exceto aquelas sob o explícito mandato da ONU, ou seja, aremoção de todas as tropas de ocupação estrangeiras, menos aquelas que estão sobreo mandato da ONU. E, numa outra passagem, o manifesto pede que o Banco Mundial,o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial de Comércio sejamincorporadas ao sistema da ONU. O senhor aqui, hoje, disse que, sob ordens da ONU,o Iraque permaneceu sob sanções terríveis para a sua população. Bem, eu queriaentender - a ONU tem um órgão de poder, que é o Conselho de Segurança, das cinco

    potências [Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China, além de mais 15membros temporários sem poder de veto] - eu queria entender por que a esquerdaglobalizada gosta tanto da ONU.

    Tariq Ali: Preciso fazer uma confissão. Ao assinar um documento como esse, vocênunca chega a um entendimento unânime. Você precisa decidir se de maneira geral émelhor assinar ou não. Não gosto dessas partes que você leu, não concordo com elas.Essa é minha posição. Acho uma bobagem...

    Demétrio Magnoli: O senhor acha que a maioria de quem assinou concorda comisso?

    [...]: Eu também não concordo.

    Tariq Ali: Não sei se a maioria concorda, porque, cada vez mais, desde essaresolução, a ONU mostra mais e mais que é um instrumento do Conselho deSegurança, que é um instrumento dos EUA. A grande maioria dos membros da ONUnão tem voz ativa em nada. É por isso que a reforma da ONU vem sendo pedida pormuitos. Por exemplo, por que a Índia, a África do Sul e o Brasil não estão no Conselhode Segurança? Os EUA não aceitam isso, eles não aceitam um sistema cujo controlepossam perder. Isso não vai acontecer e acho que a ONU vai continuar assim, a

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    menos que aconteça algo inimaginável.

    Samuel Feldberg:  Você acha que a Rússia e a China concordariam com essamudança? Ou essa é uma posição comum de, pelo menos, três grandes potências quenão têm interesse nessa mudança?

    Tariq Ali: O problema com a Rússia e com a China é que, no Conselho de Segurança,eles defendem apenas seus próprios interesses. Quando seus interesses não estão em

     jogo, eles apóiam os EUA. Em troca do apoio aos EUA em determinados temas, elesrecebem apoio americano em outras questões que são do seu interesse. Não existeum único membro no Conselho de Segurança que esteja pensando em políticaexterna. Isso não existe.

    Paulo Markun: Tariq, última pergunta que pode parecer pergunta de programa deauditório, [risos] mas eu vou fazê-la. Seus livros de literatura são romances históricos,basicamente, quer dizer, olham para trás. Quando o senhor olha para frente, emtermos da perspectiva da sociedade, o senhor é otimista?

    Tariq Ali: Bem, quando vejo os eventos recentes na América Latina, isso abre espaço

    para otimismo. Meu último livro, que não é um romance, é um trabalho sobre políticae história, é sobre a América Latina e se chama: Pirates of the Caribbean: an axis of hope [ Piratas do Caribe: um eixo da esperança]. É sobre Cuba, Venezuela, Bolívia,também há referências a Lula no Brasil. Eu não passaria um ano preparando esselivro se não sentisse esperança neste continente. Acho que ela está aqui. Tambémdigo isso no Oriente Médio e em outras partes do mundo. Observem o que acontecena América Latina. Talvez isso produza alguma coisa que seja benéfica para o mundotodo.

    Paulo Markun: Tariq Ali, muito obrigado pela sua entrevista. Obrigado aos nossos

    entrevistadores aqui, a você que está em casa e nós estaremos aqui na próximasegunda-feira com mais um Roda Viva. Uma ótima semana e até segunda.

    Memória Roda Viva

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    Realização:

    Fundação Padre Anchieta - Labjor/Unicamp - Nepp/Unicamp

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