Disturbios Da Era Informacional_Luis Eduardo Tavares DM 2010
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8/6/2019 Disturbios Da Era Informacional_Luis Eduardo Tavares DM 2010
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC-SP
Luis Eduardo Pinto Tavares de Almeida
Distrbios da Era Informacional:conflitos entre a propriedade intelectual e a cultura livre
MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS
SO PAULO
2010
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Sumrio
Introduo 1
PARTE I
Contexto
1. Revoluo Informacional 5
2. Capitalismo Informacional 10
3. Trabalho Imaterial 14
4. Sobre a Tecnologia 20
5. A propriedade intelectual 28
PARTE II
Atores Emergentes6. Cotidiano e Poltica 41
7. A tica hacker 42
8. Homebrew Computer Club 47
9. Free Software Foundation 49
10. Do software livre ao hardware livre 51
11. Pirate Bay 58
PARTE III
Poltica, Arte...
12. Procedimentos de apropriao e ressignificao 63
13. SUPERFLEX: arte relacional e ps-produo 69
14. MetaArte 77
...e Mdia
15. Ao Global dos Povos 80
16. Mdia Ttica 84
PARTE IV
Institucionalidades Emergentes
17. Cultura Livre 88
18. Os Commons 97
19. Partido Pirata 99
Consideraes Finais 106
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Introduo
As transformaes que ocorrem no mundo de hoje tem a caracterstica de
instaurar em ns a experincia de um estado de permanentes mudanas, decorrentes donvel de acelerao alcanado pelo ritmo das inovaes tecnolgicas. Esse efeito que
sentimos no campo cognitivo foi particularmente grande na ltima dcada,
prenunciando ser ainda maior nesta que se inicia. Ainda assim, no campo social, parece
que estamos no limiar de algo que pouco a pouco vai realizando novas potencialidades e
tambm sendo condicionado por foras conservadoras. Encontramo-nos em uma
transio que vem sendo interpretada de diferentes formas, por diferentes ngulos e,
como tal, nos impe grandes dificuldades de anlise pelo fato de lidarmos com o
inacabado.
O que designa a profundidade das transformaes em curso so mudanas no
sistema de produo e a emergncia de um novo marco tecnolgico comparvel com
outros grandes marcos da histria da civilizao como a agricultura, a cidade, a escrita,
a imprensa e a mquina automtica, com a diferena de que este tanto um meio de
produo quanto um meio de comunicao, constituindo um conjunto maior de
implicaes, das quais apenas comeamos a compreender. As novas tecnologias ps-
mecnicas possuem atualmente um lugar preponderante em nossa vida cotidiana,
mediando grande parte de nossas relaes sociais e tambm com a natureza e, por isso,
assumem um papel de destaque nas discusses sobre a sociedade contempornea. As
tecnologias da informao e comunicao tambm tem um papel de destaque nesta
dissertao, porm sem uma abordagem reificada. As tecnologias so o instrumento e,
portanto, so antes consequncia do que causa, embora causem muitos efeitos. As
revolues tecnolgicas so, todas, resultado da evoluo das foras produtivas e este
o elemento principal que devemos compreender.
O que nos ajuda a entender o processo de transformao em curso e que,
portanto, permeia todo este trabalho a instituio da propriedade intelectual, enquanto
um fenmeno sociolgico que exprime importantes tenses do mundo atual. A
propriedade intelectual que, ao longo da histria, vem se transformando em conjunto
com a economia capitalista, hoje se encontra na grande encruzilhada do capitalismo na
sua fase informacional, no choque gerado entre o fluxo da informao no ambiente
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constitudo pelas novas tecnologias e os bloqueios privatistas que buscam o controle
desse fluxo. Nesta encruzilhada esto elementos formadores de novas subjetividades
que configuram movimentos sociais, projetos polticos, formas de represso, criao e
prticas cotidianas. Os rumos e solues possveis, pouco a pouco, vo se definindo no
horizonte, sobretudo a partir das articulaes e criaes dos circuitos de produo
constitudas fora da alada capitalista, mas em grande parte capturados por ela. Essas
encruzilhadas nos pem diante da iminncia de uma nova economia, cuja realizao
mais ou menos efetiva de seus pressupostos depende das circunstncias criadas no jogo
entre os atores envolvidos no processo e, neste momento, muitas questes encontram-se
ainda sem definio. So estas linhas de instabilidades que procuramos apreender no
mundo atual, onde se confrontam formas de controle e transformao social,
continuidades e rupturas com a ordem estabelecida, poder e liberdade.
Identificamos uma rede de atores emergentes que se colocam contrrios ordem
vigente, protagonizando os conflitos em torno da propriedade intelectual, bem como o
contexto que os envolve e forma seus projetos sociais. Mas damos destaque a quatro
experincias distintas que tem em comum estarem neste mesmo campo de disputa. So
elas a MetaReciclagem, que prope a recuperao e reuso de computadores descartados
e equipamentos eletrnicos de baixa tecnologia, como contraponto obsolncia
programada da indstria da informtica geradora de desigualdades e externalidades
ambientais; SUPERFLEX, coletivo de artistas dinamarqueses, cuja forma de arte
relacional problematiza diretamente as questes envolvidas na produo com destaque
s questes relativas propriedade intelectual; Pirate Bay, site sueco de
compartilhamento de arquivos, que resiste s fortes presses da indstria fonogrfica e
cinematogrfica hollywoodiana; e Partido Pirata, partido oficializado na Sucia, cuja
plataforma consiste basicamente na reforma dos copyright, na abolio das patentes e
no direito, na liberdade e na privacidade do acesso, compartilhamento e criao de bensculturais
A dissertao est dividida em quatro partes.
Na Parte I, que chamaremos de Contexto, buscaremos um panorama geral do
cenrio que constitui as problemticas em questo. Nesta parte descrito o processo de
transformao em curso como uma Revoluo Informacional, sucessora da Revoluo
Industrial, e da qual participam um novo sistema de produo - o Capitalismo
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Informacional -, uma nova organizao do trabalho - o Trabalho Imaterial Ps-fordista -,
um novo complexo tecnolgico de produo e comunicao, bem como as
transformaes cruciais na instituio da propriedade intelectual. Nesse contexto, ao
expormos o novo cenrio tambm apresentaremos as contradies que ele instaura e
seus conflitos decorrentes.
Na Parte II Atores Emergentes, procuraremos situar algumas vertentes onde se
formam novos projetos sociais e de onde emergem novos atores contrrios ordem
hegemnica, bem como suas formas de ao poltica e suscetibilidades a capturas por
essa ordem. Nesse sentido, o destaque para tica hacker, tpica da sociedade
informacional, e sua potncia criadora neste contexto que a torna tambm poltica, mas
uma poltica que est presente no cotidiano, no prprio trabalho e no lazer. A tica
hacker hoje amplamente disseminada nos movimentos de contestao, apresentando-
se, inclusive, em nossos objetos de estudo MetaReciclagem e Pirate Bay que nos
dedicaremos a expor nessa parte.
Na Parte III Poltica, Arte e Mdia, exploraremos outras vertentes, onde se
formam novos projetos sociais, seus atores e ao poltica. A convergncia entre arte e
mdia so um forte componente do sistema de produo informacional que se estende
para alm das demandas do capitalismo e, dessa forma, um componente forte da ao
poltica. Procuraremos demonstrar essa questo investigando os procedimentos de
apropriao e ressignificao presentes na arte e como servem de modelo para as lutas
contemporneas, por meio da exposio do coletivo SUPERFLEX e, mais uma vez, da
MetaReciclagem. Em relao mdia, ela tambm est cada vez mais impregnada nas
prticas cotidianas e, consequentemente, na ao poltica de movimentos sociais que
fazem pleno uso desses instrumentos de comunicao como foi o caso da Ao Global
dos Povos ou, ento, dos movimentos que atuam diretamente nesse campo, fazendo de
suas aes polticas, aes comunicativas, como os movimentos de Mdia Ttica. Na Parte IV Institucionalidades Emergentes, buscaremos mostrar a
confluncia dessas diferentes correntes no movimento da Cultura Livre, que ir buscar
reformas concretas no sistema criando novas institucionalidades. Usaremos o caso do
Creative Commons, da forma de propriedade coletiva chamada de Commons, distinta da
privada e pblica estatal, e da possibilidade de sua manuteno legal o que implica outra
legislao. E, por fim, do Partido Pirata sueco, que recentemente elegeu dois
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representantes para o Parlamento Europeu e inicia a sua investida em reformas
significativas no campo da propriedade intelectual.
Quanto metodologia de pesquisa, utilizaremos uma bibliografia diversificada
para investigao do contexto atual e suas problemticas aqui abordadas. E, para a
investigao dos atores, em alguns casos houve a possibilidade de contatos diretos,
sobretudo com a MetaReciclagem com cujos participantes realizamos entrevista e
captamos contedos a partir de palestras. Com o SUPERFLEX, tambm foi possvel um
contato direto por ocasio de uma vinda do grupo para o Brasil, mas tanto quanto a eles
como, principalmente, quanto aos demais, foi empregada uma ampla pesquisa na
internet, acessando documentos, entrevistas, reportagens de jornais e outros materiais
que nos permitiram pesquis-los. Vale dizer, que a internet hoje possui excelentes
recursos que nos permitem pesquisar em diversos idiomas, mesmo aqueles que no
temos o mais leve conhecimento. Por meio dogoogle translator, conseguimos pesquisar
em sites suecos, dinamarqueses e alemes, obtendo valiosos dados que de outra maneira
nos seriam completamente inacessveis. A Wikipdia tambm responsvel por nos
mostrar o caminho dessas valiosas fontes.
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PARTE I
Contexto
1. A Revoluo Informacional
A Revoluo Informacional designa o conjunto das transformaes em curso nos
planos tecnolgico, da organizao do trabalho, das configuraes sociais e nas
faculdades perceptivas humanas. Este conceito foi formulado por Jean Lojkine, em
meados da dcada de 1990, para estabelecer as distines necessrias com as
caractersticas do mundo emergido com a Revoluo Industrial; situando, assim, o
momento de transio em que nos encontramos. Dessa maneira, caracterizamos edestacamos as tendncias atuais a serem observadas em nossos objetos de estudo,
sobretudo em seus embates com a ordem vigente.
Ambos os perodos, da Revoluo Industrial e da Revoluo Informacional, os
quais, numa anlise mais ampla, correspondem respectivamente entrada da
Modernidade e da Ps-modernidade, so marcados por mutaes no modo de produo
capitalista, das quais participam revolues tecnolgicas. Assim, equiparar o processo
atual com seu antecessor implica, em primeiro lugar, considerarmos os aspectos
relativos quele evento do final do sculo XVIII, a comear com o sentido de revoluo
embutido no conceito.
A palavra revoluo designa uma mudana radical de amplo e profundo
alcance social que altera as estruturas mesmas da sociedade. Desta forma, Eric
Hobsbawm fala sobre a Revoluo Industrial como sendo provavelmente o mais
importante acontecimento da histria do mundo, pelo menos desde a inveno da
agricultura e das cidades (Hobsbawm, 2000: 45). Numa rpida perspectiva, foi
constatado pela histria que a Revoluo Industrial inseriu um novo modo de produo,
o sistema de fbrica; desencadeou uma revoluo tecnolgica de mquinas automticas;
iniciou, assim, um processo progressivo de substituio das habilidades humanas por
dispositivos mecnicos, tendo a energia de fontes inanimadas (vapor, gs, carvo,
petrleo, eletricidade) tomado o lugar da energia humana e animal; deflagrou uma
acelerao contnua da produo e inovaes tecnolgicas; produziu novos atores
sociais; alterou a balana de poder a favor de uma ascendente burguesia urbana;
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modificou a relao entre os povos, a nossa relao com o planeta e a nossa percepo
do tempo. Foram, portanto, profundas implicaes, que comprovam o carter
revolucionrio do processo, a partir das quais podemos pensar no processo atual e
examinar em que medida este apresenta um grau de transformaes semelhantes.
A Revoluo Informacional e isto veremos mais apuradamente ao longo da
pesquisa apresenta no mundo de hoje tambm um novo modo de produo
denominado capitalismo informacional, donde se insere uma organizao ps-fordista
do trabalho, o trabalho imaterial; uma revoluo tecnolgica de mquinas ps-
mecnicas que se afiguram agora, alm de serem extenses de nossos msculos e
membros, como extenses de nosso sistema nervoso, que passa a ser um sistema de
informao. O ritmo das inovaes tecnolgicas se intensificou a ponto de adquirir uma
velocidade de escape ou uma acelerao da acelerao, tal como salienta Laymert
Garcia dos Santos (2003a: 141; 232) ao citar os pensadores da tecnologia, Mark Dery e
Richard Buckminster Fuller. As tecnologias da informao medeiam grande parte das
relaes humanas, sobretudo pelo padro da simultaneidade que amplifica a
comunicao de cada indivduo e a modifica substancialmente. Dessa forma, tambm
medeiam uma nova relao nossa com o cosmos, alterando significativamente nossas
faculdades perceptivas. No que se refere produo de novos atores sociais e balana
de poder, veremos ao longo deste trabalho os conflitos estabelecidos entre atores
emergentes e aqueles da ordem vigente.
Em geral, os efeitos apresentados pelo processo da Revoluo Informacional so
efeitos prolongados da Revoluo Industrial que, aps um alastramento global de
duzentos anos, criou os suportes necessrios , exponencialmente mais veloz,
disseminao da Revoluo Informacional. Esses prolongamentos de efeitos podem se
dar tanto como continuidades quanto como rupturas. O carter mais geral do processo
atual, e que o define em oposio ao antecessor, a preeminncia do tratamento deinformaes nas prticas sociais. Nas palavras de Jean Lojkine (2002: 14): a
transferncia para as 'mquinas', de um novo tipo de funes cerebrais abstratas (o que
propriamente caracteriza a automao) est no corao da revoluo informacional, j
que tal transferncia tem como consequncia fundamental deslocar o trabalho humano
da manipulao para o tratamento de smbolos abstratos e, pois, desloc-lo para o
tratamento de 'informaes'. A originalidade da Revoluo Informacional desdobra-se
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em inmeras consequncias, das quais se destacam as tenses geradas pela replicao e
fluidez da informao nas atuais condies tecnolgicas e o mpeto capitalista em
mercantiliz-las, o que constitui o principal elemento de nossa pesquisa.
Para Lojkine assim como para os diferentes autores que trabalhamos na
pesquisa o perodo industrial est sendo suplantado pelo informacional, no
significando, com isso, uma simples substituio, mas sim uma interpenetrao na qual
os aspectos informacionais tem um papel preponderante. Nas palavras deste autor: a
informao no substitui a produo, assim como a indstria no substituda pelos
servios. Antes assistimos a uma nova interpenetrao entre informao e produo
[...] (Lojkine, 2002: 15). Nesse sentido, a ideia de informacional representa um
avano no entendimento do processo contemporneo em relao vaga definio de
ps-industrial utilizada por Daniel Bell, na dcada de 1970, momento em que
importantes aspectos da nova ordem ainda no haviam emergido suficientemente e com
maior clareza. Ao falar em substituio inexorvel (apud Lojkine, 2002: 239) das
atividades industriais fundadas na manipulao da matria por atividades fundadas no
tratamento da informao, Bell presume as mesmas formas de submisso do operrio s
mquinas mecnicas existentes no perodo anterior, mas agravadas com o que chama de
tecnologias do intelecto, em que a cincia abstrata substituiria a experincia
concreta dos saberes-fazeres produtivos. O operrio alienado da fase industrial
tornado completamente desnecessrio na fase ps-industrial, cujo ideal, para Bell,
representa a construo de fbricas totalmente automatizadas, comandadas por um
computador central, em que algoritmos embutidos nas mquinas tomam as decises no
lugar dos julgamentos intuitivos (Lojkine, 2002: 239-40). No entanto, o que a
Revoluo Informacional tem mostrado desmente estes prognsticos.
As novas tecnologias da informao no assumem as funes cerebrais do
trabalho humano, pelo contrrio, elas ainda requerem uma qualificao maior dosoperrios no tratamento da informao e combinam cincia e experincia. Vamos
explorar melhor essa questo ao analisarmos o trabalho imaterial; por ora, vale apontar
que Lojkine refuta a tese de Bell, do surgimento de um poder tecnocrtico sem
precedentes, com seu conceito de Revoluo Informacional. Ele observa que o
instrumento informtico pode permitir, conectado a novas tcnicas de telecomunicao,
a criao, a circulao e a estocagem de uma imensa massa de informaes outrora
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monopolizadas, e em parte esterilizadas, por uma pequena elite de trabalhadores
intelectuais (Lojkine, 2002: 15). Todavia, essa potencialidade que entra em conflito
com os padres vigentes e pe em relevo o confronto entre duas concepes acerca dos
usos destes instrumentos, como observado no caso das organizaes: de um lado, uma
concepo elitista e tecnocrtica, que reserva a informao estratgica a um pequeno
grupo de dirigentes; de outro, uma concepo autogestionria, que visualiza, na
revoluo tecnolgica atual, no o prolongamento das antigas tendncias, mas ao
inverso, uma verdadeira revoluo organizacional, que implica o acesso de todos e todas
as informaes e, por consequncia, o autogoverno os homens (Lojkine, 2002: 149).
Reside, portanto, nessas possibilidades de ruptura, o carter revolucionrio do processo
atual, contrariamente noo de ps-industrial que, embora se refira ao processo como
substituio inexorvel de modelos, aponta para o prolongamento exacerbado de
certos aspectos do perodo industrial.
O conflito que se coloca em torno da informao , portanto, fundamental em
virtude do papel que esta assume no perodo atual. A Revoluo Informacional,
caracterizada pela preeminncia da informao nas atividades produtivas, possui
implicaes que ultrapassam a ordem cultural, tendo em vista a ciberntica que instituiu
a noo de informao como substrato comum entre a matria inerte, o ser vivo e o
objeto tcnico. E, como destaca Laymert Garcia dos Santos (2003b: 10-11), selou a
aliana entre o capital, a cincia e a tecnologia, e conferiu tecnocincia a funo de
motor de uma acumulao que vai tomar todo mundo existente como matria-prima
disposio do trabalho tecnocientfico. H, contudo, um novo vis econmico aberto
pela preeminncia da informao. Considerando sua natureza imaterial, a informao
impe grandes dificuldades ao ser tratada nos mesmos padres que os elementos de
natureza material. O criador da ciberntica, Norbert Wiener, j observara, h meio
sculo, a dificuldade em tratar a informao como mercadoria, devido sua capacidadede circulao e transparncia, que tornam o seu valor, prioritariamente, no-mercantil.
Procurou demonstrar a disfuncionalidade do monoplio privado da informao,
especialmente das formas criativas (arte e cincia), considerando, por exemplo, que as
inovaes cientficas no ocorrem seno a partir de um trabalho de equipe, mediante
formas de cooperao. O conhecimento assim criado assentado no trabalho coletivo e
no compartilhamento de informaes, as quais, guardadas, no teriam o mesmo valor
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que a sua livre circulao (Wiener apud Lojkine, 2002: 17). Sendo, assim,
reencontramos aqui, em escala mundial, o desafio central da Revoluo Informacional:
a partilha da informao, da qual a apropriao privada e o monoplio social so
tambm uma fonte de ineficcia e de paralisia mesmo para aqueles que a
monopolizam (Lojkine, 2002: 237).
A partir dessa problemtica, observa-se no mundo emergente fortes
potencialidades de se apagar importantes divises estabelecidas pela modernidade, tais
como a prpria fronteira entre cultura e natureza, tendo em vista a ciberntica (Santos,
2003b: 13) ou, do ponto de vista da organizao social, como ressalta Lojkine, entre
industria e servios, entre operadores e operrios, entre tempo de trabalho necessrio
e tempo de trabalho livre, entre atividade profissional e atividade domstica, entre
espao pblico e espao privado. Potencialidades que, segundo este autor, apontam na
direo de uma sociedade ps-mercantil e que esto em funcionamento, apesar das
enormes presses para conservar os padres assentes. Ao longo deste trabalho,
discutiremos essas questes levantadas pelo conceito da Revoluo Informacional, ao
abordarmos os diferentes pontos relativos ao processo, podendo observar em que
medida aparecem nas experincias que formam os objetos empricos da pesquisa. Os
impasses provocados pela emergncia da informao, enquanto principal insumo de
produo, sero explorados a partir dos conflitos em torno da instituio da propriedade
intelectual, conflitos esses que esto ligados s experincias dos grupos que formam o
movimento da cultura livre, com destaque para MetaReciclagem, SUPERFLEX, Pirate
Bay e Partido Pirata.
A Revoluo Informacional um processo que vai alm de uma revoluo
tecnolgica. Ela a expresso da evoluo das foras produtivas, ao conjunto de seus
efeitos. A tecnologia o instrumento e, dessa forma, antes consequncia do que causa,
embora seja causadora de muitos efeitos. A expresso mais evidente da RevoluoIndustrial foi o modo de produo industrial que envolvia tanto uma certa organizao
do trabalho, quanto um certo tipo de tecnologia e que serviu principalmente ao
capitalismo, mas tambm ao socialismo. J o modo de produo que expressa a
Revoluo Informacional , sobretudo, capitalista, o capitalismo informacional que
veremos a seguir.
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2. O capitalismo Informacional
Denomina-se Capitalismo Informacional a etapa do sistema produtivo
caracterizado pela produo de bens informacionais, que so aqueles bens de ordem
imaterial, ao mesmo tempo produtos e insumos dos circuitos de produo baseados na
informao. Podem ser a princpio softwares, imagens, msicas, textos, algoritmos
matemticos, frmulas qumicas, conhecimentos cientficos em geral. Enfim, aquilo que
passvel de ser convertido em informao pela codificao digital e capaz de gerar
inovao. Alm disso, sendo a informao o principal elemento do capitalismo, tanto as
culturas, com seus saberes subjetivos e intersubjetivos, quanto a natureza, na sua forma
mais elementar dos cdigos genticos, so capturadas pelo fluxo informacional dos
circuitos produtivos, tornando-se bens informacionais agregadores de valores de uso e
troca.
Esta etapa, que sucede a produo industrial enquanto sistema hegemnico na
economia capitalista, constituda pela organizao do trabalho imaterial e pelas
tecnologias da informao, as quais instauram novas contradies e, assim, novas
formas de controle e resistncia, poder e liberdade.
Em geral, um sistema de produo pode ser definido pelos elementos
fundamentais promoo da produtividade que o compem. No sistema de produo
agrrio, as fontes de produtividade baseiam-se no aumento quantitativo de mo-de-obra
e dos recursos naturais (em particular a terra), bem como na qualidade desses recursos.
No sistema industrial, as fontes de produtividade baseiam-se na introduo de novos
recursos energticos e tecnolgicos capazes de maximizar a produo. E no sistema
informacional as fontes de produtividade baseiam-se na tecnologia de gerao de
conhecimentos, de processamento da informao e de comunicao entre os elementos
envolvidos, visando a acumulao de conhecimentos e maiores nveis de complexidadedo processamento da informao, num processo de retroalimentao ou feedback. O
sistema informacional de produo, seguindo os paradigmas agrrio e industrial, d-lhes
novas faces, definindo os traos distintivos da sociedade no inicio do sculo XXI.
Na atualidade, estes diferentes sistemas de produo coexistem e se
interpenetram, mas sob a hegemonia do informacional. A ascenso do informacional
no descarta a forma industrial, mas a reconfigura, assim como o sistema industrial em
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ascenso no descartou a forma agrria, mas a transformou. Aquilo que se
convencionou a chamar de modernizao est associado industrializao e, portanto, a
chamada modernizao econmica referia-se passagem do paradigma econmico de
preponderncia agrcola para o industrial. A atual passagem do industrial para o
informacional , assim, um processo deps-modernizao econmica, segundo Hardt e
Negri (2005a: 301). Com a modernizao, a agricultura caiu sob o domnio da indstria
ficando sujeita s suas presses, o que implicou uma queda na produo agrcola (tanto
na percentagem de trabalhadores empregados como na proporo do valor produzido) e,
tambm, numa transformao da agricultura que se tornou industrializada. Sendo o
sistema agrcola um modo de produo pr-capitalista, nos diversos lugares onde ele
imperava funcionavam antigas formas de trabalho comunitrio e propriedade coletiva
que seriam dissolvidas pelo capitalismo industrial. Essa dissoluo, elemento
fundamental da modernizao, levou o nome enclousures, devido ao cercamento e
apropriao usurpativa, pelo capital, das terras comunais de uma coletividade,
estabelecendo a propriedade privada. Hoje, com a ps-modernizao, a indstria passa
por mudanas semelhantes s que ela provocou na agricultura e ambas tornam-se
sujeitas ao novo sistema produtivo, sendo informatizadas. Observa-se um novo processo
de enclousure que procura transformar em propriedades privadas outras categorias de
recursos coletivos, tais como as diversidades culturais e biolgicas, vistas de maneira
extremamente instrumental, pelo capitalismo, como bancos de dados informacionais
que alimentam os circuitos de produo. Dessa forma, a informatizao no apenas
reconfigura as foras produtivas, mas leva o capitalismo para zonas at ento marginais
economia e poltica, com a tecnologia digital e a decifrao do cdigo gentico.
Apresenta-se, ento, uma nova dimenso social, paradoxalmente e, ao mesmo tempo,
molecular e global, como salienta Santos (2003a: 81): Molecular porque no nvel
nfimo e invisvel, no nvel da informao digital e/ou gentica que se produzem suasmaiores realizaes; global porque cada transformao molecular operada est
destinada a ser incorporada e repercutida por uma rede de valorizao planetria.
O processo histrico, em que o desenvolvimento das foras produtivas ocorre,
assinala as caractersticas da tecnologia e seus entrelaamentos sociais. No caso do
sistema informacional de produo, como apontado por diversos autores, ele ocorre
num processo de crise e reestruturao do capitalismo, que lhe confere suas
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caractersticas. De acordo com Manuel Castells (2006a: 55), o fator mais decisivo para
a acelerao, encaminhamento e afirmao do paradigma da tecnologia da informao e
para a induo de suas consequentes formas sociais foi/ o processo de reestruturao
capitalista, empreendido desde os anos 80, de modo que o novo sistema econmico e
tecnolgico pode ser adequadamente caracterizado como capitalismo informacional.
Castells se refere em especial aos fatos decorrentes do esgotamento do modelo
keynesiano de crescimento capitalista que, no inicio da dcada de 1970, se manifestou
sob a forma de inflao desenfreada, sobretudo com o aumento dos preos do petrleo
em 1974 e 1979. Os esforos de reestruturao mediante a desregulamentao,
privatizao e desmantelamento do contrato social entre capital e trabalho, denominado
neoliberalismo, que encontra seu auge na dcada de 1990, utilizaram as tecnologias da
informao como suporte bsico. A inovao tecnolgica e a transformao
organizacional com enfoque na flexibilidade e na adaptabilidade foram absolutamente
cruciais para garantir a velocidade e a eficincia da reestruturao. Pode-se afirmar que,
sem a nova tecnologia da informao, o capitalismo global teria sido uma realidade
muito limitada [] Portanto, o informacionalismo est ligado expanso e ao
rejuvenescimento do capitalismo, como o industrialismo estava ligado sua
constituio como modo de produo (Castells, 2006a: 55). Uma expanso no apenas
territorial, mas, como vimos, tambm dimensional.
O processo de desenvolvimento dessas manifestaes produtivas foi moldado
pelos interesses do capitalismo avanado, mas isso no quer dizer que s pode se limitar
s expresses desses interesses. O grau de ambivalncia dessas tecnologias e a
organizao do trabalho associado a ela, como discutido mais adiante, permitem a
construo de novos paradigmas econmicos, instalando confrontos no interior do
capitalismo.
Caractersticas notveis da passagem do industrialismo ao informacionalismo,ou ps-modernizao econmica, so a descentralizao, desterritorializao e
desmaterializao da produo engendradas pelas condies tecnolgicas
contemporneas. A instantaneidade da informao e da comunicao permite a
circulao, sem custos, de bens informacionais para qualquer parte, assim como o
controle distncia. O resultado foi a disperso das fbricas e o esvaziamento das
cidades fabris, mudanas de eixo geogrfico na balana e poder econmico. A
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reestruturao neoliberal do capitalismo, com a globalizao da produo e do mercado,
aproveitando as oportunidades das condies mais vantajosas para a realizao de lucro
em todos os lugares, serviu-se das potencialidades das novas tecnologias. As mesmas
potencialidades que, no entanto, abrem caminhos para outros paradigmas econmicos.
Desde o inicio das formas ps-industriais, com a crescente importncia do setor
de servios, ou tercirio, o emprego da comunicao no processo produtivo gerou um
sistema em circuito, de feedback entre produtores e consumidores, alterando
substancialmente sua relao. O modelo fordista de produo em massa de mercadorias
padronizadas no sentia a necessidade de se comunicar com o mercado. O modelo
toyotista, na dcada de 1960, estabelece uma relao de comunicao constante,
adaptando a produo s mudanas do mercado. No just in time, de estoque zero e
produo na medida exata da demanda atual do mercado, a deciso da produo vem
depois da deciso do mercado. Como disseram Michael Hardt e Antonio Negri (2005a:
311), seria mais exato conceber o modelo como algo que busca uma contnua
interatividade ou uma rpida comunicao entre a produo e o consumo. Este contexto
industrial oferece um primeiro exemplo em que a comunicao e a informao
desempenham um novo papel central na produo. Pode-se afirmar que a ao
instrumental e a ao comunicativa tornaram-se intimamente interligadas no processo
industrial informacionalizado, mas deve-se imediatamente acrescentar que esta uma
noo empobrecida da comunicao como mera transmisso de dados de mercado.
O aperfeioamento das tecnologias e, consequentemente, do nvel de
comunicao no processo produtivo, consagra a rede como modelo ps-fordista de
organizao da produo sobre a linha de montagem. A rede no-linear e acntrica
interliga, simultaneamente, diferentes pontos em produo compartilhada, gerando um
envolvente e complexo circuito defeedback, do qual a internet a maior expresso. As
redes de computadores, modelos arquetpicos da morfologia social das redes,apresentam dois tipos, cada qual exprimindo diferentes relaes de poder: redes
clientes/servidor e redes peer-to-peer (p2p) par-a-par em portugus. No primeiro
caso, existe um servidor ou computador central cuja finalidade servir s necessidades
de outros computadores (clientes). Trata-se da reproduo de uma estrutura piramidal,
da produo industrial no contexto das redes informacionais. A rede p2p uma
arquitetura em que cada nodo, ou computador, est interligado aos demais e tem direitos
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e obrigaes equivalentes. Sua finalidade facilitar o intercmbio de informaes entre
um grande nmero de usurios da rede (Perrone e Zukerfeld, 2007: 172-3). O diagrama
da produo e comunicao disposto pelas redes p2p tem grandes implicaes, ele
compartilha funes, funde papis, nivela o poder entre os nodos da rede. A internet
uma rede global p2p e, portanto, estabelece essas funes para toda a sociedade,
gerando uma forma de produo social, que pode ou no ser direcionada ao mercado,
mas da qual todos os que estejam conectados so potenciais produtores. As relaes
entre produtores e consumidores, global e local, tornam-se opacas e conceitos como
prosumidores e glocalso criados neste contexto. Entretanto, esses aspectos, embora
reais, so uma tendncia tpica ideal, uma vez que no se realizam plenamente por
funcionarem sob relaes de poder encasteladas que lhes so contrrias e que os
condicionam. Segundo Hardt e Negri (2005a: 318): A descentralizao e disperso
global dos processos e lugares de produo, caractersticas da ps-modernizao e da
informatizao da economia, provocam uma centralizao correspondente do controle
sobre a produo. O movimento centrfugo de produo equilibrado pela tendncia
centrpeta de comando. Nesse ponto, reside uma grande questo: as tendncias
apropriativas dos recursos culturais e genticos pelo capital manifestam a vontade de
uma regulamentao internacional pela instituio dos Direitos de Propriedade
Intelectual, dando margens a novos autoritarismos. H, no momento, uma constante
tenso entre a plena realizao das potencialidades das redes p2p e o poder vigente, da
qual o site de compartilhamento de arquivos Pirate Bay um dos grandes protagonistas.
3. Trabalho Imaterial
A forma emergente de trabalho da Revoluo Informacional o trabalho
imaterial, conforme designao de Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, entre outros. Otrabalho imaterial a forma de trabalho ps-fordista que rene as caractersticas da
economia ps-industrial, baseada numa nova relao produo/consumo, presente na
indstria e no tercirio, seguindo uma curva ascendente dentro do capitalismo desde o
perodo aps a Segunda Guerra Mundial e da qual no resultam bens materiais durveis,
mas bens informacionais. Ele estabelece rupturas ao modelo fordista pela arquitetura da
organizao laboral baseada na rede e a dinmica colaborativa que ela proporciona; pelo
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deslocamento das funes manuais s funes cerebrais dos trabalhadores, implicando
maior qualificao; e pela entrada do conhecimento e do saber enquanto principais
foras produtivas. Configuram-se, nestas formas de organizao e prticas laborais,
correspondentes formas de ao poltica e resistncia que desafiam o controle da
produo e o bloqueio de seu principal insumo, a informao.
A formao de um circuito de feedback entre a produo e o mercado
consumidor, bem como os produtos da decorrentes tem o trabalho imaterial como
interface. A produo cultural, seja audiovisual, moda e publicidade, a produo de
software, a gesto do territrio e a pesquisa cientfica, relacionada a todas elas, so
formas de produo imaterial que geram bens informacionais e que, por meio da
comunicao em todo o processo produtivo, instauram uma dinmica colaborativa,
distinta da cooperao por tarefas parcelares, do trabalho taylorista/fordista. Sendo
assim, o trabalho imaterial se constitui em formas imediatamente coletivas e no
existe, por assim dizer, seno sob forma de rede e fluxo (Lazzarato e Negri, 2001: 50).
Este processo comunicativo e colaborativo da produo , tambm, um processo de
produo de relaes sociais cuja matria-prima a subjetividade e os saberes-fazeres
da experincia prpria dos agentes envolvidos. Ele no se satisfaz com mercadorias
padronizadas, mas consiste em agregar valor mercadoria por meio de contedos
informativos e culturais singulares. A produo de subjetividade cessa, ento, de ser
somente um instrumento de controle social (pela reproduo das relaes mercantis) e
torna-se diretamente produtiva (Lazzarato e Negri, 2001: 46-47).
Enquanto que no trabalho industrial fordista, de produo padronizada em
massa, a subjetividade do operrio era expulsa do ambiente de produo, no trabalho
imaterial ps-fordista, a subjetividade do operrio convocada ao ambiente de
produo. Os trabalhadores ps-fordistas devem entrar no processo de produo com
toda a bagagem cultural que eles adquiriram nos jogos, nos esportes de equipe, naslutas, nas disputas, nas atividades, musicais, teatrais, etc. nessas atividades fora do
trabalho que so desenvolvidas sua vivacidade, sua capacidade de improvisao e
cooperao (Gorz, 2003: 19). a alma do operrio que deve descer a oficina
(Lazzarato e Negri, 2001: 25).
A estrutura organizativa do trabalho imaterial, que permite a intercomunicao
geral entre os diferentes elementos da produo, incluindo os consumidores, a
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estrutura da rede, que ascende sobre a da linha de montagem. A organizao do trabalho
sob essas condies ultrapassa os padres desencadeados pela Revoluo Industrial,
caractersticos da modernidade. Torna-se desnecessria a concentrao dos
trabalhadores nos espaos de confinamento das fbricas e a massa de trabalhadores das
grandes indstrias do sculo XX d lugar a pequenas equipes descentralizadas. A
interconexo geral e seus processos comunicativos criam uma forma colaborativa de
produo em que os conhecimentos so compartilhados e tambm as diferentes funes.
A especializao de funes (em muitos casos extrema), resultante do parcelamento de
tarefas que se complementam para formar o produto, deslegitimada nas condies
atuais em privilgio da versatilidade e multifuncionalidade dos trabalhadores. Antigas
divises de trabalho, tais como entre operadores e operrios, podem tornar-se opacas
nesse contexto e, mesmo, se fundirem. Andr Gorz (Gorz, 2003: 60), define o processo
de trabalho da seguinte maneira: Pessoas que cooperam, que se coordenam e se
ajustam livremente umas s outras em projetos que definem juntas, tero tendncia a
individualmente se superarem. E o resultado obtido no necessariamente se cristaliza
num produto fechado; a potencialidade dos produtos informacionais dos quais o
software livre o modelo mais emblemtico a de manterem-se abertos ps-
produo, novas significaes, conservando-se em processo, em fluxo de alimentaes
interativas que Pierre Lvy denomina de inteligncia coletiva, descrevendo-a como
um coro polifnico improvisado (Lvy, 2007). Em contiguidade com este modelo, at
mesmo objetos materiais acabados e, a priori, fechados, podem ser abertos a novos
fluxos de significaes, tal como demonstrado pela prtica da MetaReciclagem que
abordamos nesta pesquisa.
O acesso rede pressupe um novo instrumento de trabalho, o computador, ou
instrumentos mveis multifuncionais como o celular. Hardt e Negri (2005a: 311-12)
sugerem que o trabalho imaterial pode ser pensado em analogia ao funcionamento deum computador, operando na forma de rede e fluxo, tendo em vista que a Revoluo
Informacional fez das mquinas interativas e cibernticas prteses integradas a nossos
corpos e mentes, redefinindo as prticas e relaes de produo juntamente com todas
as prticas e relaes sociais. As pessoas em geral, estando full time conectadas rede,
com seus dispositivos de acesso mveis, esto assim conectadasfull time ao processo de
produo e, com isso, mesclam o tempo de trabalho e o tempo de vida, o trabalho
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profissional e o trabalho domstico, tal como anunciado por Jean Lojkine. Aspecto
esse do trabalho imaterial que favorece a subsuno das formas de vida culturais e a
produo da subjetividade produo do capitalismo informacional.
Alm da arquitetura organizacional rizomtica da rede, outra caracterstica
marcante e repleta de implicaes da passagem ao trabalho imaterial ps-fordista o
deslocamento da prtica de manipulao de objetos prtica de tratamento de smbolos
abstratos, ou seja, de uma funo mecnica a uma funo cerebral do trabalho. O
tratamento eficaz de uma imensa massa de informaes, em fluxo na rede, depende de
uma maior qualificao intelectual dos operrios, antes exclusiva dos postos de trabalho
mais altos. Essa qualificao deve manter-se em formao permanente, no ritmo das
constantes inovaes. Mas, alm da qualificao formal do operrio, o tratamento eficaz
da informao tambm depende da qualidade de seus saberes, que caracterizam a
subjetividade individual. Nesse sentido, importante fazermos a distino, tal como
Andr Gorz (2003), entre os conhecimentos formalizados e objetivados da cincia, que
so adquiridos pelo ensino formal, e os saberes no formalizveis da experincia
cotidiana, tradicionalmente vinculados ao tempo livre, e que so revalorizados nesse
processo de informatizao da produo como fontes geradoras de valor. A conjugao
entre conhecimentos (cincia) e saberes (experincia), que opera tambm uma
interpenetrao entre trabalho e vida cultural, torna-se, portanto, a principal fora
produtiva do capitalismo informacional. Ela recobre e designa uma grande diversidade
de capacidades heterogneas, ou seja,sem medida comum, entre as quais o julgamento,
a intuio, o senso esttico, o nvel de formao e de informao, a faculdade de
aprender e de se adaptar a situaes imprevistas; capacidades elas mesmas operadas por
atividades heterogneas que vo do clculo matemtico retrica e arte de convencer
o interlocutor; da pesquisa tcnico-cientfica inveno de normas estticas (Gorz,
2003: 29). Diferentemente do trabalho mecnico dos operrios de fbrica do capitalismoindustrial, essas habilidades requeridas pelo trabalho imaterial no podem ser pr-
determinadas pelo comando da produo e, nesse sentido, embora capturadas pelo
capital, podem constituir-se em espaos-tempos autnomos.
Conforme salientado em diversos estudos [Gorz (2003: 15), Lazzarato e Negri
(2001: 28) e Negri (2003: 92)], a transformao do trabalho material em trabalho
imaterial j havia sido assinalada como hiptese por Marx nos Grundrisse. Ele previa
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que o trabalho tornar-se-ia progressivamente imaterial medida em que dependesse
cada vez mais de energias intelectuais e cientficas, destruindo as condies sob as quais
a acumulao anteriormente se desenvolvia. A consequncia seria a transformao da
fora de trabalho em Intelectualidade de Massa (General Intellect) que no pode ser
medida pelo tempo ou pela quantidade de trabalho empregado, pois depende da
potncia dos agentes envolvidos na produo e suas relaes com o estado geral da
cincia e do progresso da tecnologia (Lazzarato e Negri, 2001: 28). A fora produtiva
que hoje se constitui pelos conhecimentos e saberes coletivos formam um General
Intellect ativado e organizado pelos processos comunicativos e colaborativos do
trabalho, sempre em busca de novas conexes e relaes. Como tal, ela torna o
referencial taylorista da mensurao do trabalho, por unidades de tempo e movimento,
ultrapassado.
O processo da Revoluo Informacional expresso pelas transformaes do
trabalho, como aqui exposto, apresenta uma expanso do capital sobre reas at ento
reservadas da vida cotidiana e da personalidade do trabalhador. Um novo paradigma de
poder se revela nesta fase da produo capitalista. Por um lado, h uma grande nuvem
de informaes que envolve toda a sociedade interconectada em rede e estimula a
designao de sociedade da informao. Entretanto, a fora produtiva sob a forma de
General Intellect, embora seja uma construo coletiva, encontra-se ao lado do capital,
nas suas formas de propriedade intelectual, e comandada por ele, designando a
sociedade de controle identificada por Gilles Deleuze (2007, 219-226). Segundo o
filsofo, o poder disciplinar que vigorou no perodo industrial funcionava por meio de
espaos de confinamento dos quais participava a fbrica. O indivduo passava a vida por
entre espaos de confinamento que o moldava, mas estes eram descontnuos, havendo
lacunas na passagem entre um e outro. Na sociedade de controle do perodo
informacional, os espaos de confinamento deram lugar aos espaos abertos que socontnuos e o indivduo, agora full time conectado produo, mais do que moldado ,
ento, modulado poder que se exerce no espao-tempo contnuo. Seu processo de
subjetivao das horas livres, ou seja, a dimenso cultural de sua vida capturada e
colonizada pelo processo produtivo e posta em funcionamento a favor dos interesses do
capital. O General Intellect feito propriedade intelectual bloqueado de forma a
impedir atos criativos que produzam modelos sociais alternativos.
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Todavia, este um processo cheio de instabilidades, a comear pela
ambivalncia das tecnologias da informao, cuja flexibilidade permite diferentes
apropriaes, impossveis rigidez da tecnologia mecnica. A interpenetrao e
hibridizao entre trabalho e vida, cincia e experincia faz da produo de
subjetividade uma importante fora de produo geradora de valor. Embora esta
produo esteja, em grande parte, sujeita ao capital, ela o excede devido sua dinmica
descentralizada e colaborativa e por suas mltiplas conexes, constituindo momentos de
dessujeitamento, como potncia criadora dos indivduos e da coletividade. Trata-se da
produo de novas formas de organizao, de fruio e compartilhamento de
informaes, conhecimentos e saberes, enfim, de novas maneiras de viver. Processos
esses que o capitalismo, para se manter, deve tentar a todo custo interromper e bloquear.
Neste sentido, que Antonio Negri (2003) define a crise que se processa no
interior do capitalismo. Desde que o capital passou a oferecer o instrumento ao
trabalhador, os conhecimentos do processo produtivo se separaram do trabalho,
tornando-se tambm capital. Uma vez que conhecimentos e saberes so bens
abundantes, isto , sua utilizao no reduz o estoque deles, estes precisam ser
bloqueados por meio da propriedade intelectual como forma de gerar valor monetrio
pela sua escassez artificial. Mas, quando o instrumento de trabalho, constitudo pelas
tecnologias da informao flexveis, so reapropriados pelo trabalhador, ento o capital
no tem mais a possibilidade de articular o comando sobre o instrumento. Quando isto
acontece, e quando o trabalho constitui uma totalidade de conhecimentos, suportado e
posto em produo pela intelectualidade de massa, ento o controle poltico exercido
atravs da guerra. A guerra (e somente a guerra) ento a forma de controle exercida
pelo capital parasitrio, a crise que se torna dispositivo de ordem capitalista (Negri,
2003: 96).
Se o General Intellectpode ser convertido em informao digital para entrar noscircuitos de produo, a fluidez e replicao ontolgica da informao digital podem
socializar o General Intellect. Segundo Andr Gorz (2003: 10): Hoje a capitalizao do
conhecimento se detm em uma nova fronteira. Todo conhecimento passvel de
formalizao pode ser abstrado de seu suporte material e humano, multiplicado quase
sem custos na forma de software e utilizado ilimitadamente em mquinas que seguem
um padro universal. Quanto mais se propaga, mais til ele a sociedade. Seu valor
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mercantil, ao contrrio, tende a zero: o conhecimento torna-se um bem comum acessvel
a todos. Uma autntica economia do conhecimento corresponderia a um comunismo do
saber no qual deixam de ser necessrias as relaes monetrias de troca.
As caractersticas do novo sistema de produo, a organizao do trabalho
imaterial e a natureza de seus produtos informacionais emergem na sociedade
contempornea enquanto ativaes do processo de reestruturao global do capitalismo
ao qual servem de suporte. Trata-se de um processo de expanso do capitalismo em que
este se metamorfoseia juntamente com as formas de poder. Anda assim, abrem-se novas
e potentes possibilidades de construes de modelos sociais alternativos que se
expressam em diferentes grupos em suas prticas que tensionam a ordem estabelecida.
Vimos como o principal foco desta tenso encontra-se na antinomia entre a livre
circulao e compartilhamento da fora produtiva informacional, constituda por
informaes, conhecimentos e saberes, e a economia capitalista da escassez em atrito
com essa lgica. Sendo assim, em torno da propriedade intelectual que se desenrolam
as aes dos grupos que analisamos na pesquisa.
Tambm ntido o papel da tecnologia da informao, ao mesmo tempo causa e
consequncia, texto e pretexto desse processo. Procuramos discutir melhor o papel
dessas tecnologias a seguir.
4. Sobre a Tecnologia
Tendo em vista a presena cada vez maior da tecnologia no mundo
contemporneo, procuramos aqui situar o papel que ela exerce nas transformaes em
questo, a partir da delimitao de sua dimenso poltica, objetivando, com isso, evitar
uma abordagem reificada da tecnologia nos processos analisados.
A tecnologia um domnio social que abrange inmeras formas, tais como umconjunto de tcnicas, conhecimentos, regulamentos, mtodos, ferramentas e objetos
artificiais em geral. A tecnologia expressa a prpria sociedade, suas habilidades e
formas de aplicao do conhecimento. Seus entrelaamentos com o social so de tal
grau que a compreenso de uma dimenso poltica da tecnologia torna-se difusa ao
passo em que se torna, tambm, relevante medida da permanente progresso de sua
presena e importncia em todas as esferas de nossa vida. Considerando as
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problemticas das coletividades humanas e as relaes de poder como especificidades
da poltica, uma dimenso poltica da tecnologia deve aparecer nas suas relaes com as
formas de convvio e controle social, assim como com as possibilidades de resistncia e
transformao.
Seguindo os passos do filsofo alemo Martin Heidegger, encontramos os traos
fundamentais da tecnologia naquilo que, em suas palavras, a determina do comeo ao
fim. So duas caractersticas levantadas pelo filsofo: a primeira o carter de coisa,
humana, de ser inventada e dirigida pelo homem e para o homem; a segunda o seu
imperativo instrumental que passa por qualquer coisa que o homem manipula, do qual
ele se serve na perspectiva de uma utilidade (Heidegger, 1999: 18). Os objetos
tecnolgicos mais dspares se igualam quando tomados nessas duas representaes,
como um machado de pedra paleoltico e um moderno satlite espacial de comunicao,
para usar o exemplo do prprio filsofo. Essas duas caractersticas gerais, a
antropolgica e a instrumental, apontam para um mesmo propsito da tecnologia, o da
extenso das habilidades humanas, isto , a ampliao dos sentidos, das capacidades e
da potncia do sujeito que a cria e a manipula, tanto nas suas relaes com a natureza
quanto nas suas relaes com outros homens. Revela, assim, os aspectos de uma
dimenso poltica imanente da tecnologia, o fato delas agirem diretamente sobre nossas
maneiras de pensar, nos modos de convivncia e nas relaes de poder. A existncia de
uma tecnologia poltica esta relacionada a seu campo de aplicao e o caminho que ela
ir seguir depender da intencionalidade do homo politicus que a opera.
Ao longo da Histria, cada nova etapa do desenvolvimento produtivo pe em
funcionamento tecnologias mais complexas, cuja extenso de sua aplicao corresponde
a sua dimenso poltica. Testemunha este fato, a Revoluo Industrial, pelo grau de
complexidade das tecnologias deflagradas e o nvel de seus entrelaamentos sociais.
Uma nova estrutura de poder cristalizada no sistema de fbrica torna definitiva aimportncia da tecnologia na sociedade industrial emergente, sendo o maquinismo sua
maior expresso. Atravs da fbrica mecanizada, a mobilizao das foras produtivas
coordenadas pelo poder central do Estado Nao ir direcionar o desenvolvimento e a
inovao tecnolgica reproduo, manuteno e ampliao da ordem vigente. Os
objetos tecnolgicos criados sob essas condies so inevitavelmente polticos,
comportando ideologias e projetos de poder. Tecnofilia e tecnofobia so produtos dessa
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poca. A acelerao do ritmo das inovaes tecnolgicas, que se sucedem num lapso
cada vez mais curto de tempo, reunindo e fazendo convergir um nmero crescente de
tcnicas, torna possvel e visvel a tendncia expanso ilimitada do domnio
tecnolgico que, por um lado, alimenta as utopias de progresso, advindas da filosofia
das luzes e, por outro, gera distopias como as descritas pelo gnero literrio da fico
cientfica, fundado no sculo XIX. As mquinas, substituindo a habilidade do arteso e
a fora humana e animal pela energia de fontes inanimadas, foram o alvo das primeiras
revoltas de trabalhadores que atribuam a elas a responsabilidade por seus malogros,
como o movimento ludista de quebradores de mquinas, por volta de 1812. O carter
irresistvel do avano do domnio tecnolgico abriu as cortinas para a iminente tragdia
e, assim, para o surgimento de uma conscincia que deseja impor limites a ele.
Foi, portanto, com a Revoluo Industrial e a forte presena do maquinismo que
se iniciaram as reflexes filosficas sobre a tecnologia, sendo Karl Marx um dos
primeiros a destac-la no contexto de uma teoria social e econmica de longo alcance.
Marx define o homem em relao aos outros animais como o nico capaz de criar suas
prprias ferramentas e condies de vida de forma imaginativa e consciente. Ele define
as tecnologias como os instrumentos de trabalho, transformadores da natureza conforme
objetivos coletivos humanos que geram produtos com valores de uso e troca e sendo
elas prprias tambm esses produtos. Os instrumentos de trabalho desempenham um
importante papel entre as foras produtivas, pois eles incorporam a capacidade
transformadora das sociedades, bem como os usos que as sociedades, sempre em
processos conflituosos, decidem dar a seu potencial tecnolgico.
As tecnologias, como pode ser notado em diferentes casos demonstrados nesta
pesquisa, influem sobre a organizao social e econmica e as condiciona, mas,
enquanto instrumento, ela , primeiro, uma consequncia. Como diz Deleuze (2005:
49), as mquinas so sociais antes de serem tcnicas. Ou melhor, h uma tecnologiahumana antes de haver uma tecnologia material. De acordo com esse autor, cada tipo
de sociedade pode ser representada por um certo diagrama de foras e este seleciona os
dispositivos que melhor o aprouverem. Os dispositivos entrelaam os plos do visvel e
do enuncivel, fazendo-nos passar de um ao outro sem sentir. A tecnologia, portanto,
rene a arquitetura e o discurso, o mecanismo e o programa, a funcionalidade e a
ideologia num mesmo agenciamento. Acontece, com isso, que, submersos na
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contiguidade da ordem social e tecnolgica, e naturalizados a ver nesta uma relao
unvoca, os membros da sociedade perdem a capacidade de pensar e agir alm do j
dado. A produo de conhecimentos tcnicos que no segue o diagrama dificilmente
consegue se impor e estes so, assim, eliminados.
O maquinismo da Revoluo Industrial fora selecionado e obedecia ao diagrama
disciplinar do sistema de fbrica e no se conseguia imaginar outra aplicao para as
mquinas automticas. Elas atuaram na expropriao do controle da produo dos
trabalhadores artesanais, convertendo seu ofcio em uma srie de movimentos adaptados
e ritmados pela mquina. O meio de trabalho convertido em autmato ergue-se perante
o operrio durante o prprio processo de trabalho, sob a forma de capital, de trabalho
morto que domina e suga sua forma viva (Marx, 1974: 244). Essas crticas foram
retomadas por Herbert Marcuse no interior dos debates da Escola de Frankfurt sobre a
racionalidade instrumental. Declarava ele que o homem fora condicionado aos
padres de comportamento ditados pela mquina, os quais foram pr-estabelecidos pelo
comando da produo. A subjetividade do indivduo apagada tornando-se ele mesmo
um instrumento da tecnologia. Para alm da fbrica, Marcuse apontava a propagao
dessa ordem aos diversos subprodutos da tecnologia no corpo social, ou seja, ao prprio
funcionamento da sociedade. Ele ilustra esta constatao com a ideia de um homem que
viaja de carro numa estrada: Vrios sinais e placas dizem ao viajante o que fazer e
pensar; at chamam a ateno para as belezas naturais ou marcos histricos. Outros
pensaram pelo viajante e talvez para melhor. Aquele que seguir as instrues ser mais
bem sucedido, subordinando sua espontaneidade sabedoria annima que ordenou tudo
para ele (Marcuse, 1999: 79-80). Contudo, ao definir a tecnologia, ele ainda chama a
ateno para sua ambivalncia, por estar associada a um tipo de sociedade que a utiliza:
a tecnologia , ao mesmo tempo, uma forma de organizar, perpetuar (ou modificar) as
relaes sociais [] ela pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto aescassez quanto a abundncia, tanto o aumento, quanto a abolio do trabalho rduo
(Marcuse, 1999: 73-74). A funo da tecnologia, os objetivos para os quais ela ser
programada, suas implicaes sociais so definidos e comandados por um conjunto de
valores e verdades que formam uma racionalidade. A racionalidade instrumental,
voltada para a mxima eficincia, adaptando todos os meios para um fim e geradora de
uma padronizao de pensamentos e comportamentos era a racionalidade identificada
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pelos filsofos de Frankfurt como a dominante na metade do sculo XX. Podemos dizer
que esta a racionalidade do sistema de produo industrial fordista. Contudo, Marcuse
contrape, racionalidade dominante, outros valores e verdades que pensam a
tecnologia como instrumento de libertao do homem, que ele os chama de
racionalidade crtica. A racionalidade crtica cria situaes de conhecimento capazes
de interromper e inverter a ordem dominante e, portanto, subversiva. Trata-se de uma
manifestao de liberdade sob as tramas do controle social, embora muitas vezes sejam
capturados pela ordem dominante, retirados de seus contextos originais e
despotencializados. Dessa forma, ele frisa: Uma racionalidade assim s pode se
desenvolver totalmente em grupos sociais cuja organizao no seja padronizada pelo
aparato e suas formas dominantes ou em seus rgos e instituies (Marcuse, 1999:
87).
Estas reflexes de Marcuse deram-se no contexto da sociedade industrial e suas
mquinas mecnicas rgidas, pouco afeitas maleabilidade. Veremos como as
possibilidades de manifestao da racionalidade crtica tornam-se muito maior na
sociedade informacional e suas correspondentes tecnologias flexveis e fludas.
A partir das problemticas da tecnologia industrial e seu carter poltico
irredutvel, vamos agora considerar as tecnologias informacionais. Vimos como a
Revoluo Informacional foi condicionada pelo processo de reestruturao global do
capitalismo e, temos assim, que as tecnologias da informao foram selecionadas pelo
diagrama de controle da produo ps-fordista. Porm, a ontologia dessa nova
tecnologia traz em si um grau de ambivalncia muito maior que as tecnologias da
sociedade industrial. Antes, a ambivalncia encontrava-se na tcnica que podia ser
aplicada para produzir mquinas com diferentes funes. Mas, estando uma mquina
acabada e voltada para uma funo especfica, como uma fiadora de tecido movida a
vapor, com tempos e movimentos pr-programados, dificilmente se poderia dar a elaoutra funo, outro significado. Diferentemente, com as mquinas informacionais como
um computador, um software, um celular, possvel reprogram-las e dar a elas usos
distintos daqueles concebidos pelos fabricantes. So caractersticas tpicas dos bens
informacionais, de manterem-se abertos a novas possibilidades de significaes,
como apontamos anteriormente. Veremos como a experincia da MetaReciclagem
demonstra isso.
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A ontologia das tecnologias da informao que configuram sua dimenso
poltica e ambivalncia de maneira distinta das tecnologias mecnicas, foram descritas
por Marshall McLuhan que, desde a dcada de 1960, anteviu uma srie de implicaes
que hoje experimentamos. Para ele: As tecnologias criam ambientes. Cada uma
reorganiza imediatamente os padres de associao humana e criam, na realidade, um
novo ambiente que introduz uma mudana, talvez mais sentida do que percebida, nas
relaes e nos padres sensoriais (McLuhan, 2009: 72). Assim, os primeiros passos
das contemporneas tecnologias da informao deram-se com a domesticao da
eletricidade, no sculo XIX, e sua aplicao nos meios de comunicao, comeando
com o telgrafo, cujo padro de funcionamento veio romper com os modelos
mecnicos. O padro de funcionamento eltrico o circuito e este introduz o feedback.
Por mais que se continuasse a pensar como os padres mecnicos de organizao
linear e experincia num s plano e se tentasse usar os novos instrumentos maneira
daqueles modelos, os padres de organizao em circuito e envolvimento contidos
neles inevitavelmente emergiram. Vejamos como McLuhan descreve a passagem: A
tecnologia Gutemberg era extremamente mecnica. De fato, teve uma grande influncia
na revoluo mecnica posterior da linha de montagem e da fragmentao das
operaes e funes, que constituiu o funcionamento da industrializao. [] E, ento,
repentinamente surge a eletricidade ou o eletromagnetismo que parece baseada num
princpio totalmente diferente, sendo, como consideram alguns, uma extenso do
sistema nervoso e no apenas do corpo. Se a roda uma extenso dos ps, as
ferramentas das mos, costas e braos, o eletromagnetismo afigura-se como uma
extenso dos nervos, que passa a ser principalmente um sistema de informao. ,
sobretudo, um sistema defeedbackou de retorno (McLuhan, 2009: 76).
As grandes transformaes no sistema produtivo e na organizao do trabalho
que ultrapassam os modelos lineares para estabelecer uma comunicao entre todos osagentes da produo e destes com o mercado so, assim, propiciados pelo padro
eltrico de funcionamento em circuito das novas tecnologias da informao e
comunicao. A velocidade eltrica e a comunicao simultnea provocaram fraturas no
diagrama de foras da sociedade industrial ao engendrar a participao, envolvendo o
pblico consumidor no processo de produo, seja de bens econmicos ou de obras de
arte.Segundo McLuhan (2009: 40-41): Quando a informao circulava lentamente, sob
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poltica (Enzensberger, 1979: 45). Para perpetuar as estruturas de poder vigente, estas
tecnologias precisam ser mantidas sob controle e seu potencial abafado, porm, as
tentativas de se faz-lo nos moldes dos regimes autoritrios do sculo XX so
conseguidas apenas s custas do estancamento tecnolgico, de forma que a viso de
George Orwell manifesta uma compreenso no dialtica e obsoleta dos meios de
comunicao.
Primeiramente, dado o grau de desenvolvimento das comunicaes no interior
da sociedade contempornea, o exerccio de um controle central torna-se impraticvel.
Uma superviso completa exigiria um sistema de controle que seria maior que o
prprio sistema. [] E um servio de censura que desenvolvesse seu trabalho de forma
extensiva, se converteria necessariamente no maior ramo industrial da sociedade
(Enzensberger, 1979: 53). As interferncias no sistema de comunicao e produo, tais
como o vrus e a pirataria, so inevitveis e podem se propagar rapidamente, fazendo
com que o regime ameaado, para coibi-las, tenha de lanar mo de medidas policiais e
militares. O estado de exceo, ou a guerra como afirma Antonio Negri, aparece como
alternativa permeabilidade da informao. De toda maneira, esses controles ainda so
disfuncionais ao prprio sistema como afirma Enzensberger (1979: 54): As sociedades
de industrializao avanada dependem de um livre intercmbio de informaes: as
'necessidades objetivas', continuamente invocadas por seus controladores, voltam-se
contra eles mesmos. Qualquer intento de suprimir os fatores random, qualquer
diminuio de fluidez e qualquer deformao da estrutura de informao tem que
conduzir, com o tempo, a uma espcie de embolia. Por fim, o autor conclui ressaltando
que o potencial transformador das novas tecnologias consiste em serem elas tanto meios
de comunicao quanto meios de produo e uma vez encontrando-se nas mos das
massas, so meios de produo socializados (Enzensberger, 1979: 79).
Entretanto, vimos com Laymert Garcia dos Santos que a noo de informao e,consequentemente de tecnologia da informao, vai mais alm dos aspectos culturais
relacionados estruturao entre emissor e receptor, abrangendo a matria inerte, o ser
vivo e o objeto tcnico. Ou seja, sendo a informao o substrato comum entre cultura e
natureza, podemos compreender o tamanho alcance da dimenso poltica das
tecnologias da informao.
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progresso tecnolgico contra o bem da humanidade. Hoje, por diversos exemplos,
podemos constatar a veracidade da segunda tese, principalmente, diante de tentativas de
uma expanso sem limites da propriedade intelectual que fortalece poderosos
monoplios estabelecidos e joga na ilegalidade uma srie de prticas criativas. Segundo
Santos (2007: 44): Isto porque a transformao da proteo em obstculo se explicita
como metamorfose da inveno-como-bem-da-humanidade em inveno-como-arma-
de-competio, metamorfose que se d no momento em que o valor tecnocientfico da
inveno se 'traduz' como propriedade monopolizada pelas corporaes, por meio da
linguagem jurdica.
A associao da propriedade intelectual com travamento de inovaes, por sua
vez, j vem de longe. Movimentos anti-patentes existem, ao que sabemos, pelo menos
desde o sculo XIX, como movimentos liberais anti-monoplios. O prprio Walter
Benjamim, em Pequena Histria da Fotografia relata uma questo notvel nesse
sentido: Quando depois de cerca de cinco anos de esforos Niepce e Daguerre
alcanaram simultaneamente esse resultado [fixar as imagens da cmera escura], o
Estado interveio em vista das dificuldades encontradas pelos inventores para patentear
sua descoberta, e, depois de indeniz-los, colocou a inveno no domnio pblico. Com
isso, foram criadas as condies para um desenvolvimento contnuo e acelerado, que
por muito tempo excluiu qualquer investigao retrospectiva (Benjamim, 1985: 91).
Hoje particularmente interessante a frase de Mark Getty, detentor do maior
banco de fotografias do mundo, a Getty Image, que diz: A propriedade intelectual o
petrleo do sculo XXI. Frase que bem exprime a passagem entre dois sistemas de
produo e suas respectivas tecnologias, energticas no primeiro caso e informticas no
segundo, em que a propriedade intelectual assume um lugar central. Lazzarato e Negri,
afirmam mesmo que a 'economia da informao' tem, neste incio de sculo o mesmo
papel que nos 'trinta gloriosos'1 foi assumido pelo automvel (2001: 75). Entretanto,Mark Getty, originrio de uma famlia britnica que fez fortuna com o petrleo, tambm
exprime com esta frase a viso de uma transio conservadora, em que um novo sistema
de produo se estabelece sem mudana de base socioeconmica. E neste ponto,
ressaltamos que no apenas o crescente poderio que a propriedade intelectual adquire
que a coloca na ordem do dia, mas tambm as prprias condies tecnolgicas
1 Perodo imediatamente ao ps-guerra (entre 1945 e 1975) em que as economias do mundo
experimentam um crescimento.
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ambivalentes deste sistema de produo informacional e as tendncias colaborativas do
trabalho imaterial que engendram formas abertas de circulao de saberes,
conhecimentos e informaes contrrias a propriedade intelectual. Esses sistemas para
desenvolverem-se requerem, no caso dos moderados, uma distenso da propriedade
intelectual, ou para os mais radicais, sua dissoluo. Seja um ou outro, o fato importante
que implicam na iminncia de uma nova economia. De acordo com Ladislau Dowbor:
A realidade que o conhecimento constitui uma grande riqueza, e como a sua
disseminao se tornou virtualmente gratuita, liberar o acesso aumenta o estoque de
riqueza de todos. A era do conhecimento leva naturalmente para a economia da
colaborao, e esta aumenta as chances de democratizao de uma economia que hoje
anda travada pelos sistemas cada vez mais complexos e inteis de cobrana de
pedgios (Dowbor, 2009: 21).
Para se ter a dimenso deste fenmeno contemporneo, importante que
compreendamos as especificidades atualmente assumidas pela instituio da
propriedade intelectual que j atravessa muitos sculos na histria do ocidente. Como
fenmeno social de ordem econmica, a propriedade intelectual, embora mantendo
aspectos constantes, adquire caractersticas prprias de cada momento da evoluo do
capitalismo, uma vez que est atrelada s condies de produo. Procuraremos
distinguir esses momentos, sobretudo a partir da Revoluo Industrial, para
identificarmos as principais questes que hoje esto em jogo.
Em primeiro lugar, tem-se que a propriedade intelectual a propriedade sobre
bens imateriais, pois se refere a ideias, conhecimentos e saberes (saberes-fazeres) e no
ao seu suporte material, o instrumento fsico. Ela inclui aquelas formas que se
denominaram propriedade industrial, como as patentes e as marcas registradas, e os
direitos autorais (copyrights), referentes a bens culturais, como obras literrias,musicais, cinematogrficas. Tanto a propriedade industrial quanto os copyrights tiveram
trajetrias independentes at comearem a convergir no auge da industrializao, na
segunda metade do sculo XIX e, enfim, serem regulamentados pelo mesmo cdigo
jurdico sob a gide do Direito de Propriedade Intelectual (DPI), no perodo da
informatizao, na ltima dcada do sculo XX.
Mas, se considerarmos a propriedade intelectual como parte da instituio maior
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da Propriedade, podemos colocar a questo de em que momento passou a fazer sentido
a apropriao de ideias, conhecimentos e saberes por uma coletividade ou por um
indivduo, proclamada e garantida como lei. Karl Marx (2001) nos fornece um bom
esclarecimento em A evoluo da propriedade, artigo originalmente presente nos
Grundrisse. Segundo o filsofo, em sua origem, a propriedade foi efetivada pelas
formas elementares de produo do homem. A terra, seus frutos, os animais e os
produtos de seu trabalho pertenciam-lhe enquanto elementos inorgnicos da sua
reproduo, eram parte de seu metabolismo com a natureza e, portanto, sua apropriao
da natureza. Em suas palavras: Propriedade no quer dizer originariamente nada mais
seno comportamento do homem perante as suas condies naturais de produo como
pertencentes a ele, como suas, como pressupostos da sua prpria existncia; o seu
comportamento perante elas como pressupostos naturais de si mesmo, que por assim
dizer formam apenas o seu corpo prolongado (Marx, 2001: 341). Assim, sendo a
propriedade efetivada pelas condies elementares da produo, h que se considerar
que estas condies mudam, e mudam com elas o sentido da propriedade.
Nesta primeira situao, a propriedade como a terra era garantida ao homem
enquanto membro de uma coletividade, sendo a propriedade comunitria. Mas, tal
situao dissolvida e alterada com o desenvolvimento das foras produtivas, impondo
outra situao com o surgimento das cidades, da manufatura e do comrcio. O trabalho
manufatureiro, do artesanato urbano, insere outra relao de propriedade, a propriedade
sobre o instrumento de trabalho e, ligado a isso, a organizao por corporaes segundo
ofcios. Neste ponto, Marx (2001: 349) continua: [...] a arte de se apropriar
efetivamente do instrumento, de manuse-lo como meio de trabalho, aparece como
habilidade particular do trabalhador, a qual o pe como proprietrio do instrumento. Em
suma, o carter essencial da organizao de corporaes por ofcios, do trabalho
artesanal como constituindo o sujeito dele como proprietrio deve resolver-se nocomportamento perante o instrumento de produo instrumento de trabalho como
propriedade diferena do comportamento perante a terra, perante o solo (perante a
matria-prima como tal) como prprio.
Ora, nesta fase artesanal urbana do desenvolvimento das foras produtivas que
esto localizadas as primeiras manifestaes da propriedade intelectual, na sua forma de
patentes. Devaiah (2006) localiza j na Grcia antiga, na cidade de Sbaris, regio de
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intenso comrcio, aproximadamente em 500 A.C., uma forma de patente na produo de
pratos. Mas principalmente, na organizao urbana medieval, em que se destacam as
corporaes de artes e ofcios, tambm chamadas de Guildas, que as patentes vo
surgir, por meio de concesses reais, como maneira de resguardar s Guildas de uma
cidade ou regio o uso de seu saber na produo de seus respectivos artigos (Devaiah,
2006). A propriedade de ideias, conhecimentos e saberes, portanto, passa a fazer sentido
na medida em que estes so entendidos como instrumentos de produo. Assim como a
propriedade da ferramenta, a propriedade dos conhecimentos e dos saberes necessrios
produo uma maneira de assegurar o que era preciso para viver como produtor nas
cidades. Este sistema de propriedade no mediado pelo simples fato do produtor ser
membro da coletividade como na primeira situao, mas, tal como afirma Marx,
garantido pela habilidade particular do trabalhador em manusear o instrumento, por sua
maestria. Nesta segunda situao, a propriedade no de toda a coletividade, mas
ainda comunitria entre os produtores que formam uma Guilda, do mestre-arteso que
compartilha com seus aprendizes. Alm disso, o trabalhador o proprietrio do
instrumento o proprietrio que trabalha situao essa que vai mudar radicalmente
num novo estgio das foras produtivas, com o desenvolvimento do capital e do
trabalho assalariado. A partir da o instrumento de produo e o trabalho so
intermediados pelo capitalista.
Seguindo o raciocnio de Marx, a fortuna gerada pela expanso do comrcio
martimo e terrestre que ir pouco a pouco convertendo os meios de produo (matria-
prima e instrumentos de trabalho) em capital e desligando-os dos trabalhadores
enquanto suas propriedades. Diz Marx (2001: 362): A nica acumulao pressuposta
no surgimento do capital a da fortuna em dinheiro, que considerada em si e por si
inteiramente improdutiva, tal como surge s da circulao e s pertencente a ela. O
capital forma rapidamente um mercado interno aniquilando todos os ofcios industriaiscolaterais do campo, portanto fiando e tecendo para todos, vestindo todos, etc, em suma,
trazendo na forma de valores de troca as mercadorias anteriormente criadas como
valores de uso imediatos, um processo que resulta espontaneamente de os trabalhadores
serem desligados do solo e da propriedade (mesmo que seja na forma servil) sobre as
condies de produo.
No perodo da modernidade, j nos primrdios do capitalismo industrial, o
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estatuto geral da propriedade tem como principal mudana seu desligamento da tutela
do trabalhador que passa a ter acesso aos meios de produo e reproduo de sua
existncia por meio da troca com o capitalista da nica coisa que continua a dispor, a
sua fora de trabalho. As formas existentes de propriedade intelectual, referentes s
ideias, conhecimentos e saberes, participam desse processo transformando-se em capital
juntamente com os demais meios de produo, como matria-primas e instrumentos de
trabalho. Todavia, foi sempre nebuloso a forma como ocorreu esta paulatina
expropriao do controle da produo do trabalhador artesanal e campons, obrigando-
os, por uma questo de sobrevivncia, a entregar-se ao sistema de fbrica, onde
realizariam operaes simples e repetitivas em troca de um salrio miservel. O prprio
Marx (2001: 355) afirma: Nem a histria sabe algo acerca das cmodas iluses
segundo as quais o capitalista e o trabalhador estabelecem associao. Stephen
Marglin, por sua vez, ao colocar essa questo, atribui ao prprio parcelamento de tarefas
o principal mecanismo desta associao nos moldes como ela se estabeleceu.
Marglin refere-se a esse processo, em que a diviso do trabalho avana para a
separao de tarefas cada vez mais especializadas, at reduzirem todo trabalho do
operrio em uma ou duas tarefas simples mostrada na clebre descrio da manufatura
de alfinetes de Adam Smith como sendo uma forma de parcelamento do prprio
conhecimento da produo, gerando, assim, o sistema de fbrica, ainda antes do
maquinismo. Segundo Marglin (1974: 17), [...] para o capitalista, este era o nico
processo a tornar o seu papel indispensvel. Se cada produtor tivesse podido combinar
as diferentes tarefas que entram no fabrico de alfinetes, rapidamente teria descoberto
que podia colocar-se no mercado do alfinete sem a mediao doputter-outere embolsar
ele prprio o lucro. O conhecimento total da produo era somente o capitalista que
detinha, era, pois, a sua propriedade industrial. Com esta hiptese, Marglin levanta para
nosso presente estudo, uma funo curiosa desempenhada pela propriedade intelectualnas origens da Revoluo Industrial. Bem diferente da relao entre o mestre-arteso -
que compartilhava do conhecimento da produo com seus aprendizes, os quais um dia
se igualariam a ele - o capitalista, apropriando-se desse conhecimento que, em termos
econmicos, significa um bem coletivo, impede que os operrios possam aprender e
imitar os segredos do ofcio, fazendo com que cada um deles conhea somente uma
parte do conjunto.
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Mas Marglin, ainda, expe mais uma questo interessante sobre a propriedade
intelectual, ao demonstrar outra maneira como ela atuou na transferncia da produo
para dentro das fbricas. Uma vez que os direitos de patentes ainda eram frgeis,
podendo ser fraudados em toda parte, a centralizao da produo nos espaos de
confinamento das fbricas, apresentava-se como uma boa soluo, pois permitia uma
aguda vigilncia sobre o trabalho. O autor ento escreve que: Na pratica, na medida em
que a produo se fazia em casas dispersas, era difcil, seno impossvel, detectar e
punir as fraudes sobre patentes. Era muito mais fcil salvaguardar os direitos do
inventor se a produo se concentrasse na fbrica, e este fato basta para orientar a
atividade inventiva para o mercado mais compensador. Pela sua prpria natureza,
muitos aperfeioamentos no eram suscetveis de serem patenteados e as vantagens s
podiam ser postas em evidncia e rentabilizadas no quadro da organizao capitalista
das fbricas (Marglin, 1974: 33).
A tese geral de Marglin, na qual apontou estas diferentes questes, tambm nos
interessa bastante. Para ele, esse processo de transio do modo de produo artesanal
para o industrial, a despeito do grande avano tecnolgico que ele significou, no foi
orientado pela sua eficcia produtiva, como historicamente se afirmou, sobretudo pelo
liberalismo. Foi antes, e esta sua finalidade escamoteada, condicionada pela
acumulao por parte do capitalista. O extremo parcelamento do trabalho no sistema de
fbrica, no foi adotado por ser mais eficaz e no pode explicar-se assim, mas porque
atuava na transferncia do controle da produo pelo produtor direto para o capitalista,
donde a transferncia do saber dos trabalhadores suapropriedade intelectual coletiva
foi um fator determinante. Na exposio dessa tese, especificamente neste ltimo
ponto, Marglin (1974: 33) nos diz o seguinte: Uma inveno, como o saber em geral,
um : a utilizao de uma ideia por uma pessoa no reduz o stockde
saber do mesmo modo que o consumo de um bocado de po reduz o stockde trigo. evidente que os no podem ser distribudos eficazmente pelo
mecanismo do mercado; por isso no se pode defender as patentes em nome da eficcia
econmica. Com essa tese, Marglin pe em xeque o principal postulado no qual se
apoiam os direitos de propriedade intelectual, o de se atribuir a virtude de estimular a
inveno. Ele questiona por que este se tornou o processo estabelecido para
recompensar os inventores e no outro. E responde: Se a instituio das patentes no
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tivesse feito o jogo dos capitalistas mais poderosos, favorecendo os que dispunham de
quantias suficientes para comprar licenas (e, incidentalmente, contribuindo para a
polarizao das classes produtoras em patres e operrios), no se teria tornado o
principal modo de remunerao dos inventores (Marglin: 1974: 34).
Se a propriedade intelectual, como vimos, foi um fator importante entre os
mecanismos que engendraram a Revoluo Industrial nos moldes com que se
apresentou, com o desenvolvimento da economia industrial, ela teve sua importncia
aumentada. Cada vez mais passou a figurar entre os mecanismos tidos como
fundamentais para o desenvolvimento de uma nao. Ainda em meados do sculo XIX,
a transferncia tecnolgica entre naes tinha como principal meio a importao de
mo-de-obra qualificada, tanto que a Inglaterra proibia a emigrao desta mo-de-obra.
Mas, na segunda metade do XIX, o grau de complexidade adquirido pelas tecnologias-
chave tornou a importao de crebros insuficiente para o domnio tecnolgico de um
setor, de forma que essa proibio foi abolida. A transferncia ativa pelo proprietrio do
conhecimento, mediante o licenciamento de patentes passou a ser o principal meio de
transferncia tecnolgica. Mas, sendo as instituies de proteo dos direitos de
propriedade intelectual ainda frgeis, sobretudo sobre patentes estrangeiras, os pases
mais poderosos iniciaram uma empreitada para internacionalizao destes direitos de
proteo, pressionando os demais pases a implementarem leis de patentes mais firmes.
Uma srie de encontros para discutir o assunto foi realizada, comeando pelo Congresso
de Viena, em 1873, e culminando com a Conveno de Paris sobre Propriedade
Industrial, em 1883, e a Conveno de Berna, sobre Direitos Autorais, em 1886. Isto o
que nos mostra Ha-Joon Chang (2004).
O autor questiona o discurso ortodoxo atual, segundo o qual quanto mais forte
for a proteo aos direitos de propriedade intelectual, tanto melhor para o
desenvolvimento econmico, j que a proteo estimula a criao de riquezas. Changrevela que a Sua alou o posto de lder tecnolgico mundial em setores industriais,
como o txtil de algodo, sem contar com uma s lei de patentes at 1907. A Holanda,
que tambm se destacou no campo tecnolgico, abandonou em 1869 sua lei de patentes
de 1817. H uma clara poltica anti-patentes sustentada por ambos os pases que
contribuiu para a disseminao e aperfeioamento tecnolgico, inclusive pelo roubo
(pirataria) de patentes estrangeiras. Segundo Chang (2004: 147), subjacente a essa
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