Da Paz Liberal a Virada Local Avaliando a Literatura Critica Sobre Peacebuilding

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Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v.2. n.3, jul./dez., 2013 Disponível em: http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/moncoes 46 DA PAZ LIBERAL À VIRADA LOCAL: AVALIANDO A LITERATURA CRÍTICA SOBRE PEACEBUILDING 1 FROM THE LIBERAL PEACE TO THE LOCAL TURN: ASSESSING THE CRITICAL DEBATE ABOUT PEACEBUILDING AUREO DE TOLEDO GOMES Professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Doutor em Ciência Política (USP) E-mail: [email protected] RESUMO: O artigo propõe-se a mapear parte da literatura crítica sobre as operações de peacebuilding. Com tal revisão, pretende-se demonstrar que a discussão sobre o tema transitou entre reformas e críticas estruturais ao modelo liberal de resolução pós-conflito, assim como análises que destacam a importância da análise das dinâmicas locais para a construção de uma paz duradoura. Inobstante importante inovação, tais propostas são passíveis de questionamentos teórico-metodológicos que ainda demandam respostas. Palavras-chave: peacebuilding – paz liberal – virada local ABSTRACT: The article intends to map part of the critiques about peacebuilding operations. With this review, we aim to show that the discussion moved between reforms and structural critiques of the liberal model of post-conflict resolution, as well as other studies that highlight the value of analyzing the local dynamics to build a lasting peace. In spite of such important innovation, these proposals face theoretical and methodological challenges that still need proper answers. Keywords: peacebuilding – liberal peace – local turn 1 O presente artigo é uma versão revista e ampliada da seção 2.3 da tese de doutorado do autor. Agradeço aos pareceristas anônimos da revista Monções pelos valiosos comentários ao artigo. Eventuais incorreções que porventura ainda tenham teimado em permanecer no texto são de minha única e exclusiva responsabilidade.

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Paz Liberal e Virada local em peacebuilding

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    DA PAZ LIBERAL VIRADA LOCAL: AVALIANDO A LITERATURA CRTICA

    SOBRE PEACEBUILDING1

    FROM THE LIBERAL PEACE TO THE LOCAL TURN: ASSESSING THE CRITICAL

    DEBATE ABOUT PEACEBUILDING

    AUREO DE TOLEDO GOMES

    Professor da Universidade Federal de Uberlndia (UFU)

    Doutor em Cincia Poltica (USP)

    E-mail: [email protected]

    RESUMO: O artigo prope-se a mapear parte da literatura crtica sobre as

    operaes de peacebuilding. Com tal reviso, pretende-se demonstrar que a

    discusso sobre o tema transitou entre reformas e crticas estruturais ao modelo

    liberal de resoluo ps-conflito, assim como anlises que destacam a

    importncia da anlise das dinmicas locais para a construo de uma paz

    duradoura. Inobstante importante inovao, tais propostas so passveis de

    questionamentos terico-metodolgicos que ainda demandam respostas.

    Palavras-chave: peacebuilding paz liberal virada local

    ABSTRACT: The article intends to map part of the critiques about peacebuilding

    operations. With this review, we aim to show that the discussion moved between

    reforms and structural critiques of the liberal model of post-conflict resolution, as

    well as other studies that highlight the value of analyzing the local dynamics to

    build a lasting peace. In spite of such important innovation, these proposals face

    theoretical and methodological challenges that still need proper answers.

    Keywords: peacebuilding liberal peace local turn

    1 O presente artigo uma verso revista e ampliada da seo 2.3 da tese de doutorado do autor. Agradeo aos pareceristas annimos da revista Mones pelos valiosos comentrios ao artigo. Eventuais incorrees que porventura ainda tenham teimado em permanecer no texto so de minha nica e exclusiva responsabilidade.

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    INTRODUO

    Uma das discusses mais intensas na rea de Segurana Internacional

    durante os ltimos anos girou em torno da construo da paz em situaes ps-

    conflito civil. Com tal intuito, um dos instrumentos disposio de organismos e

    potncias internacionais so as chamadas operaes de peacebuilding2, as quais,

    em linhas gerais, envolvem estratgias cujo objetivo central criar as condies

    para uma paz duradoura, sobretudo mediante programas destinados a reintegrar

    ex-combatentes ordem poltica, treinamento de polcia civil local e reconstruo

    do Estado de Direito, ou seja, tarefas vistas como solues para o que se entende

    como as causas estruturais das guerras civis (BRAHIMI, 2000; DPKO, 2008).

    Questo decisiva nesse tocante e, em nosso entender, ponto crucial das

    controvrsias em tela aquela relativa natureza das tarefas executadas para

    a construo de uma paz que se pretenda duradoura. A ideia subjacente ao

    diagnstico tradicional sobre a emergncia dos conflitos civis, sobretudo aps os

    atentados terroristas de 11 de setembro, possui em boa medida natureza

    institucional: a ausncia de instituies consideradas mais adequadas para o

    desenvolvimento poltico e econmico em dados pases culminaria no aumento

    de divergncias internas que poderiam extrapolar as fronteiras nacionais e atingir

    outros pases. O problema seria assim resolvido com reformas que incentivassem

    2 Tomando como referncia a publicao conhecida como Doutrina Capstone (DPKO, 2008), podemos dividir as atividades da Organizao das Naes Unidas com vistas resoluo de conflitos em 5 tipos: conflict prevention, isto , o uso de medidas diplomticas para se evitar que tenses inter e/ou intraestatais culminem em violncia aberta; peacemaking, que consiste no uso de medidas para se lidar e findar com os conflitos j em andamento; peacekeeping, o qual se refere ao uso das tcnicas necessrias para se preservar a paz aps um cessar-fogo entre as partes; peace-enforcement, que se refere ao uso de meios coercitivos, inclusive militares, com autorizao prvia do Conselho de Segurana, para se findar com o conflito; e, finalmente, as atividades de peacebuilding, foco deste trabalho.

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    ou mesmo, mediante meios militares, forassem tais pases a se tornarem

    democracias liberais (WESLEY, 2008).

    Atualmente, o conjunto de reformas imbudo da responsabilidade de

    reconstruir tais pases agrupou-se sobre o que se convencionou chamar paz

    liberal. Grosso modo, trata-se de aes cujos objetivos a serem perseguidos so

    a democratizao, estabelecimento do Estado de Direito, proteo dos direitos

    humanos e promoo de uma economia orientada ao mercado em pases sados

    de conflitos civis (RICHMOND, 2006). importante frisar que a lgica que

    fundamenta a escolha de tais estratgias ancora-se na conhecida tese da paz

    democrtica, a qual vincula o tipo de regime poltico dos Estados e o nvel de

    estabilidade do sistema internacional a partir de uma aparente constatao: a

    inexistncia de guerras entre pases com regime democrtico3. Sintomtico do

    sucesso de tais ideias e do alcance que tiveram no apenas no debate acadmico,

    como tambm poltico, a afirmao do ex-secretrio geral da ONU Boutros-

    Boutros Ghali quando da publicao do relatrio Uma Agenda para a Paz,

    primeiro documento da organizao no ps-Guerra Fria que procurava

    sistematizar a prtica das operaes de paz (GHALI, 1992: 35):

    H uma bvia conexo entre prticas democrticas tais como o Estado

    de Direito e a transparncia na tomada de decises e a concretizao

    de paz e segurana em qualquer nova ordem poltica. Estes elementos

    de boa governana devem ser promovidos em todos os nveis das

    comunidades polticas nacionais e internacionais4.

    3 O debate sobre a paz democrtica tornou-se tema de grande disputa terica e emprica na rea de Relaes Internacionais. Aos interessados, sugerimos a excelente reviso da literatura realizada por Chan (1997), assim como o conhecido trabalho de Russet e ONeal (2001). Por fim, apesar das bases liberais de ambas, neste trabalho diferenciaremos paz democrtica de paz liberal: enquanto o primeiro conceito far referncia a este debate especfico da dcada de 1990, o segundo se relaciona s estratgias utilizadas para a estabilizao de pases sados de conflitos civis.

    4 Todas as tradues livres do ingls para o portugus apresentadas ao longo do texto so de nossa responsabilidade e para uso exclusivo neste artigo.

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    No toa, especialmente ao final da dcada de 1990 e incio dos anos

    2000 as operaes de peacebuilding, mediante, por exemplo, (1) a formatao

    dos acordos de paz, (2) a cooperao tcnica entre as partes envolvidas, (3) a

    imposio de condicionalidades, em conjunto com organismos financeiros

    internacionais, para incentivar reformas polticas e econmicas em troca de ajuda

    financeira, e, finalmente, (4) pelo prprio exerccio de tarefas governamentais por

    parte dos interventores, contribuiriam para a criao de democracias liberais em

    contextos ps-conflito (PARIS, 2002).

    Contudo, atualmente a paz liberal encontra-se sob intensas crticas

    (COOPER, 2007). Os legados do Afeganisto e do Iraque e a qualidade da paz

    construda em contextos ps-guerra civil, no qual a recorrncia dos conflitos seria

    uma ameaa latente, foram entendidos como os principais indcios de tal crise.

    Ademais, consoante Mac Ginty (2011), quatro ameaas especficas desafiariam a

    hegemonia liberal, quais sejam: (1) problemas no campo, isto , dificuldades, por

    exemplo, na implantao de um regime democrtico ou mesmo as desigualdades

    econmicas oriundas da implementao de um novo regime econmico; (2) crise

    de confiana vis--vis a efetividade de grandes projetos de interveno; (3) a no

    adeso dos atores locais ao projeto liberal, seja por negao aberta, seja por

    desconhecimento, dado que algumas intervenes no possuem capilaridade

    para alcanar o interior dos pases; e (4) a concorrncia de formas no liberais

    de resoluo de conflitos avanadas por atores de peso como China, Rssia e

    Israel, os quais possuem estratgias distintas da abordagem liberal para os

    problemas de segurana adjacentes s suas fronteiras.

    luz de tamanha controvrsia, a meta do artigo passar em revista parte

    da literatura crtica sobre o modelo liberal de peacebuilding e assim apresentar

    uma proposta para a organizao da discusso sobre o tema. Ainda que modesta,

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    a proposta se justifica dada a pouca sistematizao de tal debate no Brasil5 e os

    desafios terico-metodolgicos, e consequentemente prticos, que os estudos

    crticos sobre peacebuilding precisam responder para se consolidarem como

    potenciais projetos concorrentes e no apenas uma nova forma de aplicao -

    da paz liberal.

    Para tanto, elegemos trs eixos principais para a organizao do texto:

    primeiramente, apresentaremos as crticas reformistas, isto , aquelas que

    essencialmente questionam a forma como as operaes so realizadas, e no seu

    contedo; as crticas estruturais, as quais interrogam o peacebuilding a partir do

    prprio funcionamento do sistema internacional; e o que a literatura sobre o tema

    chama de virada local, a qual destaca a importncia da dinmica local para o

    sucesso da estabilizao ps-conflito. Por fim, na ltima seo do trabalho,

    tecemos algumas consideraes sobre o atual estado da arte da literatura

    acadmica sobre o tema.

    AS CRTICAS REFORMISTAS

    Sob o eptome crticas reformistas enquadramos os argumentos que no

    desafiam o projeto intelectual e poltico da paz liberal, porm questionam a

    execuo do mesmo. Sobremaneira, trata-se de propostas com vistas a alterar as

    estratgias de liberalizao poltica e econmica, mas cujo objetivo final ainda

    construo de democracias liberais orientadas ao mercado. Exemplar dessa

    corrente so os trabalhos de Simon Chesterman e Roland Paris, objetos de estudo

    desta seo.

    5 Salvo melhor juzo, at o momento a nica tentativa de sistematizao deste debate no Brasil o bom trabalho de Silva (2012). J no exterior existem outras revises desta literatura, como aquela realizada por Chandler (2010) e Richmond (2005), mas com eixos distintos do mapeamento aqui proposto.

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    A principal contribuio de Chesterman (2004; 2007) localiza-se na

    questo relativa tenso em se estabelecer as condies para um governo

    nacional legtimo e sustentvel mediante um perodo do que chama de

    autocracia externa, na qual atores internacionais tomariam as rdeas de

    atividades governamentais at que o Estado sob interveno tenha as condies

    consideradas adequadas para ter o controle local do processo. A grande crtica

    do autor forma como a ONU pe em marcha suas operaes de peacebuilding

    centra-se especialmente em um descompasso entre o fim almejado das misses

    em contraposio aos meios para se alcan-lo.

    De forma especfica, Chesterman argumenta que a transferncia do poder

    para uma autoridade nacional mediada por eleies deve ser o propsito central

    de qualquer administrao transicional (transitional administration). Contudo, o

    meio para tanto, usualmente ancorado na ideia do controle local (ownership) e

    que pode significar desde consulta e prestao de contas dos atores externos at

    a participao ativa dos atores locais durante o processo, no parece ser o mais

    adequado, visto que as autorizaes para as interveno estariam embasadas no

    diagnstico de que o governo local carece das capacidades institucionais

    necessrias para exercer seu poder ou mesmo que a presena internacional veio

    da necessidade de se transformar toda a estrutura poltica do pas. Assim sendo

    (CHESTERMAN, 2007: 7):

    Se pareceu apropriado minar o controle local com a deciso de mandar

    milhares de tropas para o territrio, a cessao das hostilidades no

    um bom indicador de que as razes que levaram interveno militar

    de fato desapareceram. Pior, a restaurao prematura do controle local

    pode culminar no retorno de prticas polticas (ou falta delas) as quais

    demandaram inicialmente a interveno. O controle local (ownership)

    certamente o fim desejado das operaes, mas quase que por definio

    no o meio adequado.

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    O autor defende, portanto, a ideia de que o controle local seja passado

    para a populao apenas quando o pas tiver as capacidades institucionais

    adequadas para governar. Dessa forma, trazendo o exemplo da ocupao dos

    EUA na Alemanha ps-Segunda Guerra Mundial, na qual inicialmente a

    participao local no processo poltico era baixa, Chesterman defende a

    relativizao do controle local como meio para estabilizao, pois seria

    contraprodutivo afirmar o controle domstico se os recursos ainda so

    majoritariamente controles por atores internacionais e se a agenda externa ainda

    predominante no processo, o que poderia gerar, no mnimo, frustraes que

    tendem a levantar suspeitas sobre o papel da interveno. Em sntese, nesse

    sentido que as administraes transicionais contemporneas podem se

    beneficiar em serem mais, e no menos, coloniais (CHESTERMAN, 2004: 47).

    Por sua vez, uma das primeiras contribuies de Paris para o debate foi a

    crtica ao estado da arte em que se encontrava a literatura sobre operaes de

    paz ao final dos anos 1990. Segundo o autor (PARIS, 2002), estes estudos, ao

    privilegiarem as implicaes operacionais das misses, sobretudo aps o final da

    Guerra Fria, acabavam por negligenciar, por exemplo, os pressupostos

    ideolgicos de tais empreitadas. Para alm de um exerccio de resoluo de

    conflito e um fenmeno que surgiria em reao s chamadas Novas Guerras

    (KALDOR, 1999) ou mesmo aos Estados Falidos, as transformaes das operaes

    de paz aps a Guerra Fria seriam reflexo de uma conjuntura maior, a qual

    procuraria globalizar um modelo de governana domstica a democracia liberal

    do centro para a periferia do globo.

    Nessa toada, Paris (2002) faz um paralelo entre as correntes operaes e

    as misses civilizadoras da era colonial: a despeito do abandono de uma

    linguagem retrgrada que contrapunha civilizados e brbaros, hoje as misses

    ancorar-se-iam na crena da superioridade da democracia liberal como forma de

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    governo a ser transplantada para os pases da periferia do sistema. Em adio a

    este argumento, o autor sugere que alm de refletir interesses dos interventores

    e de agncias internacionais, as operaes de paz seriam tambm constrangidas

    pelo que chamou de cultura global, ou seja, normas internacionais que

    legitimariam certas polticas e desautorizariam outras (PARIS, 2003). Destarte,

    aps a Guerra Fria a democracia liberal poderia ser considerada a forma mais

    legtima de governana domstica e todas as misses seriam embasadas nesse

    princpio.

    Inobstante apontamentos pertinentes, entendemos Paris como um

    reformador. Dito de outra forma, de forma semelhante Chesterman, o autor

    acredita que democracia e economia de mercado so variveis essenciais para a

    resoluo dos conflitos, mas que as atuais misses pecam por fazerem uso de

    estratgias de implantao equivocadas. Em sua obra mais conhecida (PARIS,

    2004), o autor desenvolve a hiptese de que as misses da dcada de 1990 foram

    guiadas por uma lgica de liberalizao: no mbito poltico, liberalizao seria

    sinnimo de democratizao, enquanto que, na esfera econmica, a diretriz

    apontaria para a necessidade de consolidao de uma economia de mercado.

    Sua proposta, ento, uma nova estratgia para as operaes de paz

    denominada Institucionalizao antes da Liberalizao (Institutionalization before

    Liberalization), ou seja, partindo-se da premissa de que democratizao e

    reformas orientadas ao mercado devem ser o objetivo das misses, mas que tais

    metas so transformaes muito profundas e podem tumultuar a frgil paz em

    construo, para se evitar quaisquer efeitos desestabilizadores seria importante

    que (PARIS, 2004: 7):

    Primeiro, os interventores deveriam postergar a introduo de reformas

    democrticas e pr-mercado at que uma rede rudimentar de

    instituies domsticas capazes de administrar as tenses da

    liberalizao tenham se estabelecido. Em segundo lugar, assim que tais

    instituies estiverem em funcionamento, os interventores devem

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    administrar os processos de democratizao e reformas econmicas de

    forma incremental e a partir de etapas, ao invs de imediatamente

    libertarem a competio poltica e econmica. A estratgia contm

    outros elementos, mas seu ponto principal o seguinte: o que

    imprescindvel no imediato ps-conflito no so eleies rpidas,

    efervescncia democrtica ou mesmo uma terapia de choque na

    economia, mas sim uma abordagem gradual e controlada para a

    liberalizao, combinada com a imediata construo de instituies

    governamentais que controlem as reformas polticas e econmicas.

    Ainda dentro deste conjunto de elementos, tambm fazem parte da

    estratgia de Institucionalizao antes da Liberalizao: (1) esperar at que as

    condies estejam maduras para eleies, ou seja, aguardar at que partidos

    moderados estejam dispostos a competir sem retornar s armas e que as

    instituies polticas estejam prontas para administrarem o embate eleitoral; (2)

    fomentar instituies que premiem a moderao e no o extremismo; (3)

    promover uma boa sociedade civil, aquela interessada em findar com as

    polarizaes e que d suporte para partidos polticos moderados; (4) controlar o

    discurso de dio na imprensa e na sociedade; (5) adotar polticas econmicas que

    reduzam os conflitos, tais como investimentos em infraestrutura que melhorem

    a qualidade de vida das pessoas e no polticas de arrocho fiscal e controle de

    gastos, por exemplo; e (6) a construo de instituies estatais efetivas, isto ,

    aquelas que cumpram as funes supracitadas alm de outras consideradas

    essenciais de um Estado moderno6.

    6 O vis reformador do autor ainda mais saliente em um de seus ltimos textos. A despeito de crticas relativas ateno inadequada s condies institucionais domsticas para o sucesso da democratizao e das reformas pr-mercado, a falta de coordenao entre os diversos atores internacionais envolvidos, a pouca vontade poltica dos interventores para completar as tarefas, assim como os recursos exguos para as misses e a baixa participao da populao local nas principais decises relativas s reconstrues, dentre outras, Paris (2010) afirma que parece no haver alternativa ao peacebuilding liberal e que tais misses podem e devem ser reformadas, mas dizer que as mesmas fizeram mais mal do que bem seria uma acusao no mnimo exagerada.

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    Assim, concordando com e estendendo a apreciao de Silva (2012), em

    boa medida o cerne da crtica reformista de Chesterman e Paris jaz no diagnstico

    de que o problema da imposio do projeto liberal reside nas lacunas

    institucionais que tais sociedades apresentam para a recepo de novas ideias

    que as iro reorganizar poltica e economicamente. Logo, o norte de estratgias

    como a Institucionalizao antes da Liberalizao uma execuo gradual de tais

    reformas para que os pases em questo consigam sustentar instituies que, em

    ltima instncia, incentivem o conflito poltico disputas eleitorais e econmico

    a lgica de mercado guiada pelas leis de oferta e demanda -, mas que no

    incentivem a populao a recorrerem violncia para resolv-los7.

    AS CRTICAS ESTRUTURAIS

    Mediante a rubrica crticas estruturais entendemos as abordagens

    inspiradas principalmente por ideias neogramscianas e ps-estruturalistas que

    interrogam a existncia das operaes de peacebuilding a partir do prprio

    funcionamento do sistema internacional. Trocando em midos, so anlises que

    questionam, por exemplo, se as causas dos conflitos em questo no seriam

    intrnsecas ao funcionamento do sistema capitalista internacional, ou mesmo se

    as operaes de peacebuilding contribuiriam para a manuteno da atual ordem

    internacional. Salvo melhor juzo, bons indicadores de tais estudos so as obras

    de Mark Duffield, Michael Pugh, David Chandler e Ian Taylor8.

    7 Sintomtico dessa preocupao do autor com a estabilidade em sociedades sadas de conflito a recuperao que faz da conhecida obra de Samuel Huntington, Ordem Poltica em Sociedades em Mudana, para construir seu argumento e defender o gradualismo das reformas em tela.

    8 As primeiras obras de Oliver Richmond poderiam ser enquadradas como ps-estruturalistas, sobretudo seu livro de 2002. Contudo, optamos por discutir suas ideias a partir de sua proposio de uma paz hbrida, foco da seo seguinte, pois as consideramos marcos iniciais do que se convencionou chamar virada local.

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    De matriz neogramsciana, Michael Pugh (2005a; 2005b) procurou avaliar o

    que transmitido mediante as operaes de peacebuilding e como tais

    elementos contribuem para a manuteno da ordem internacional. Em primeiro

    lugar, Pugh argumenta que os relatrios que guiam as misses em campo muitas

    vezes executam reformas econmicas liberalizantes que privilegiam o capital

    internacional em detrimento da situao in loco, o que contribuiria para

    perpetuar a desigualdade entre periferia e centro.

    De acordo com o autor, as transformaes avanadas pelas operaes de

    paz em sociedades sadas de conflito so feitas muitas vezes por meio da reduo

    do papel do Estado, da promoo de privatizaes e da confiana nas

    exportaes e em investimentos diretos estrangeiros como mecanismos para se

    fomentar o crescimento econmico. Essa linha de raciocnio teria contribudo,

    segundo Pugh (2005a), para, por exemplo, o Banco Europeu para Reconstruo

    e Desenvolvimento ter se recusado a financiar a reconstruo da infraestrutura

    estatal na Bsnia e privilegiar aes relativas criao de um ambiente que

    atendesse aos interesses do capital externo.

    Diante de tal quadro, tornar-se-ia cada vez mais legtimo e necessrio

    perguntar quais interesses seriam privilegiados nas operaes de paz atuais. A

    resposta de Pugh (2005b, p. 34) no otimista visto que consideradas

    congenitamente incapazes de se autogovernarem, as sociedades sadas de

    conflitos necessitariam de formas de tutela que inevitavelmente refletiriam mais

    os interesses dos interventores. Essa representao depreciativa dos pases um

    ponto importante no argumento do autor, pois: (1) reforaria a superioridade dos

    valores liberais dificultando assim lidar com as causas estruturais das injustias

    que alimentam as instabilidades no sistema; (2) contribuiria para a busca de apoio

    poltico para as operaes; e (3) serviria para preencher um possvel vazio de

    ameaas e manter as dualidades entre Ns e Eles no mundo do ps-Guerra Fria.

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    Taylor (2007, 2010) caminha terica e empiricamente em seara similar de

    Pugh. Comungando da ideia de que a paz liberal um conjunto de reformas cuja

    meta precpua seria a construo de um arranjo institucional que permitisse que

    o setor privado se instalasse em pases sados de conflitos civis, sua contribuio

    para o debate reside, sobretudo, na compreenso de como a sociedade civil

    nessas regies criada. De suma importncia nesse processo a atuao de

    doadores internacionais, os quais selecionam e financiam aquelas camadas da

    sociedade sob reconstruo mais alinhadas ao projeto liberal e que teriam

    condies de exercer a hegemonia em nvel local. Contudo, mediante a anlise

    do peacebuilding em pases africanos, Taylor (2007) argumenta que a

    implantao do projeto liberal dificultada, pois as elites africanas possuem

    srias dificuldades para exercerem a hegemonia. Segundo o autor (TAYLOR, 2007:

    559):

    (...) o Estado moderno que a paz liberal pressupe ou demanda

    dependente da distino burguesa-liberal entre pblico e privado, a

    qual garante ento o espao para que a poltica adquira uma identidade

    que assegure sua diferena da economia. Contudo, a lgica da poltica

    em boa parte da frica a completa fuso entre pblico e privado. Em

    boa medida, o Estado o principal campo de batalha pelo qual tanto a

    dominao poltica quanto econmica pode ser alcanada.

    A grande consequncia deste quadro segundo o autor seria a dificuldade

    de instalao de uma hegemonia burguesa com base econmica independente

    do Estado, considerada essencial para a instalao da paz liberal. Dessa forma,

    teramos um arranjo poltico e econmico sumamente patrimonialista, no qual a

    corrupo, e no a dominao hegemnica, seria a liga que une todo o sistema.

    Quando a liderana cai, o que se seguiria seria a disputa aberta e por vezes

    violenta - para o controle do Estado.

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    Com insights ps-estruturalista, especialmente a concepo foucaultiana

    de biopoder9, a crtica de Mark Duffield (2001, 2009) paz liberal emerge com

    base na sua anlise sobre os conflitos civis da dcada de 1990.

    Segundo o autor, a partir da dcada de 1970 houve uma importante

    transformao no capitalismo mundial: de uma lgica expansiva e inclusiva, que

    procurava agregar todos os territrios, cada qual contribuindo para o

    funcionamento do sistema como um todo, teramos agora um movimento de

    concentrao e excluso, ou seja, o comrcio, finanas e complexos industriais

    formais estariam cada vez mais concentrados em determinadas regies das

    Amricas, Europa Ocidental e Leste Asitico, enquanto que outras regies -

    coligidas pelo autor no termo Sul e que reuniriam a frica, sia Central, entre

    outros - estariam excludas do sistema formal10. Essa excluso teria ocorrido pelo

    fato que a demanda por produtos tradicionais produzidos por esses pases teria

    declinado, os investimentos diretos tornaram-se arriscados devido a conflitos

    civis e governos instveis, a fora de trabalho no seria qualificada, dentre outros

    fatores.

    Paralelamente a esta reconfigurao do sistema capitalista hodierno,

    teramos uma reinterpretao da natureza da segurana. Principalmente aps o

    final da Guerra Fria, a preocupao com guerras interestatais deslocou-se, dando

    9 Foucault chama de biopoder esta forma de domnio que tem como campo de aplicao a vida da populao e est conectado com o desenvolvimento de formas especficas de conhecimento. Segundo o autor, a velha potncia da morte em que se simbolizava o poder soberano agora, cuidadosamente, recoberta pela administrao dos corpos e gesto calculista da vida. Desenvolvimento rpido, no decorrer da poca clssica, das disciplinas diversas escolas, colgios, casernas, atelis; aparecimento, tambm, no terreno de prticas polticas e observaes econmicas, dos problemas de natalidade, longevidade, sade pblica, habitao e migrao; exploso, portanto, de tcnicas diversas e numerosas para obterem a sujeio dos corpos e o controle da populao. Abre-se, assim, a era de um biopoder (FOUCAULT, 2007: 152).

    10 Duffield (2001) argumenta que tal excluso no significa um vcuo de qualquer tipo de atividade econmica transnacional nessas regies ou mesmo uma excluso total. De acordo com o autor, o Sul estaria se integrando ao capitalismo liberal por vias informais, mediante o aprofundamento de todos os tipos de atividades paralelas e transnacionais com os pases do Norte, muitas delas at consideradas ilegais, como trfico de drogas e armas, por exemplo.

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    lugar a uma crescente vilanizao do subdesenvolvimento e a afirmao contnua

    do nexo entre segurana e desenvolvimento:

    O foco das novas preocupaes de segurana no so as ameaas de

    guerras interestatais, mas o perigo do subdesenvolvimento como fonte

    de conflito, atividade criminal e instabilidade internacional. Esta

    reinterpretao, ademais, significa que a lgica do sistema de

    excluso, a ideia de que o subdesenvolvimento perigoso e

    desestabilizador proporciona justificativas para contnua vigilncia e

    engajamento (DUFFIELD, 2001: 7).

    Excludos do sistema capitalista formal e representados como ameaas

    estabilidade internacional devido ao fracasso em alcanarem um modelo poltico

    e econmico de governo nos moldes liberais, essa seria, portanto, a situao dos

    pases do Sul no sistema internacional. Assim, haveria um consenso de que os

    problemas do Sul poderiam ser resolvidos apenas com medidas que os retirassem

    do caos social e os transformassem em entidades polticas estveis e cooperativas

    e, para tanto, as reformas avanadas pela paz liberal. Em suma, as polticas liberais

    em pases sados de conflito seriam formas de biopoder cuja meta seria a

    conteno dos problemas do Sul no Sul, evitando que os mesmos atingissem o

    centro do capitalismo.

    Ademais, tal situao redundaria na figura do governance state (DUFFIELD,

    2009: 166): um regime de financiamento ou mecanismo para pases dependentes

    crnicos de ajuda externa que proporciona estabilidade na relao doador-

    Estado, visto que envolve o ltimo na formatao e na distribuio dos recursos,

    mas d ao primeiro o controle formal. Por esse prisma, a comunidade no atuaria

    de forma externa ao Estado; pelo contrrio, ela faria parte do Estado, ditando os

    rumos das reformas polticas e econmicas. Todavia, devido forma como se d

    a relao entre interventores e pas-alvo, os primeiros no teriam que prestar

    contas sobre suas responsabilidades frente a quaisquer problemas no processo

    de reconstruo.

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    No menos incisivas so as crticas de David Chandler (2006, 2007, 2010)

    discusso ora em tela. De acordo com o autor, as atuais prticas de reconstruo

    de Estados apresentam contradies que, ao menos at o momento, no foram

    solucionadas e talvez nem se pretenda que sejam. Em primeiro lugar, ao

    privilegiar a construo de instituies polticas pela via externa, e guiadas pelas

    normas da boa governana, as atuais operaes deixariam pouco espao para

    que estas mesmas instituies desenvolvessem laos com as foras sociais dos

    pases. Assim, as prticas de boa governana seriam apresentadas como uma

    soluo tcnica para os problemas da esfera poltica dos pases sob interveno,

    reduzindo o processo poltico administrao de solues tecnocrticas, ao invs

    de se pensar a poltica como uma forma de se resolver as tenses inerentes de

    qualquer sociedade. O seguinte trecho sintetiza seu argumento (CHANDLER,

    2007: 81):

    H uma tendncia dos interventores internacionais em separar as

    reconstrues de Estados da poltica domstica nos pases sob

    interveno: as reconstrues seriam vistas como cientficas, processos

    tcnicos ou administrativos que no requereriam a consolidao de um

    consenso popular para dar populao local participao no processo

    decisrio. Enquanto no ps-Segunda Guerra Mundial as administraes

    externas de Alemanha e Japo engajaram a populao no projeto de

    reconstruo social, econmica e poltica, e por meio disso

    conseguiram alto grau de legitimidade popular, as administraes

    internacionais da Bsnia, Kosovo e Iraque, por exemplo, incluram

    apenas poucos no processo de produo e implementao poltica.

    Assim, consoante Chandler, encontraramos um grande dilema na

    exportao da democracia para pases sados de conflitos. Fundamentado em

    prticas de boa governana, proteo aos direitos humanos e eleies, o formato

    das atuais reconstrues no deixaria espao para a autonomia e

    autodeterminao daqueles para os quais a democracia est sendo exportada.

    Essa mesma democracia seria vista como panaceia panaceia tcnica,

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    importante frisar - para todos os problemas da esfera poltica de pases

    considerados fracassados ao invs de ser considerada um processo pelo meio do

    qual as foras sociais determinariam e dariam contedo para o que os gregos

    chamavam de boa vida.

    Se as prticas correntes de interveno tomaram tais formas e possuem tais

    contradies seria porque, de acordo com Chandler (2006), mediante esse

    formato potncias ocidentais e instituies internacionais conseguem exercer o

    poder sem prestar contas para a populao local ou mesmo para a audincia

    externa. Seriam formas de se negar o exerccio do poder por parte desses atores

    externos assim como tambm negar as responsabilidades que os mesmos teriam

    nas reconstrues, argumento que Chandler condensa na expresso Imprio em

    Negao (Empire in Denial). Tais aes, ao mesmo tempo em que verbalizam

    parcerias com os pases fracassados criariam novas formas de dominao que, no

    limite, dariam origem a Estados Fantasmas (Phantom States), cujas instituies

    possuem financiamento externo, mas carecem de legitimidade social e poltica.

    No menos estimulante a crtica que Chandler enderea tambm aos

    prprios crticos da paz liberal. Conforme o autor, em certa medida um dos

    consensos entre os crticos que a falncia do projeto liberal seria oriunda da

    grande dose de liberalismo dos interventores, isto , se no fossem liberais

    demais, eventualmente a assistncia e/ou interveno externa poderiam ser

    menos problemticas. Todavia, tal descrio redundaria numa viso das

    populaes dos pases sob reconstruo como um Outro no-liberal, ora como

    barreira para as aspiraes liberais, pois no possuem as capacidades

    institucionais para tanto, ora como aquele que resiste ao projeto liberal, o qual

    ameaa a sua existncia poltica e econmica. Logo (CHANDLER, 2010: 10):

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    A crtica se torna pedido de desculpas dado que esse foco discursivo

    sobre o no-Ocidental ou Outro no-liberal frequentemente

    sustentada para explicar a falta de sucesso da estabilizao ps-conflito

    e, por isso, sugerem que democracia ou desenvolvimento podem no

    ser metas apropriadas, ou mesmo que as expectativas devam ser

    substancialmente diminudas ou alteradas para lidarmos com a

    diferena11.

    luz de tal questionamento, uma linha mais promissora para se interrogar

    o peacebuilding seria, portanto, compreend-lo no como um empreendimento

    que almeja transformar sociedades no-Ocidentais em redutos liberais, mas sim

    como prticas para manuteno de dado status quo. Em suma, uma crtica

    direcionada no s aspiraes liberais, porm s polticas e prticas

    intervencionistas.

    A VIRADA LOCAL

    Em alguma medida, possvel argumentar que o que hoje chamamos de

    virada local nos estudos de peacebuilding poderia ser considerado um retorno

    ao local, porm em registro distinto. Fazemos tal assertiva, pois no incio dos anos

    1990 parte significativa dos trabalhos sobre a ocorrncia dos ditos novos conflitos

    civis centrava suas atenes na dinmica local dos pases em tela. Em outras

    palavras, a causa primria dos embates residiria, por exemplo, na poltica

    identitria (KALDOR, 1999), isto , a reivindicao do poder estatal com base em

    uma identidade poltica, religiosa, clnica, dentre outras, ou mesmo na vingana

    11 A primeira vista poderia ser considerado no mnimo estranho apontar Chandler como um crtico estrutural, e no pertencente virada local, a partir de tal questionamento. Contudo, nossa opo por este enquadramento deve-se ao fato de que a crtica acima apresentada direcionada inclusive para autores como Oliver Richmond que tendem a enfatizar a importncia do local nas operaes de peacebuilding. Como ser abordado na prxima seo, o cuidado dos autores alinhas virada local em no romantizar e/ou exotizar as populaes locais e entender o peacebuilding como uma empreitada hbrida em muito se inspira em crticas como as desenvolvidas por Chandler.

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    dos pobres (KAPLAN, 1994), das pessoas que estariam encontrando dificuldades

    para viver em um mundo cada vez mais interdependente. Em sntese, as causas

    das guerras civis no ps-Guerra Fria seriam explicadas pelas deficincias locais

    que agora, num contexto de globalizao, ultrapassavam as fronteiras estatais.

    Todavia, a atual virada local na discusso sobre peacebuilding distingue-se

    na medida em que emerge a partir de uma crtica ao projeto liberal de

    reconstruo ps-conflito e atenta-se para a dinmica local como uma tentativa

    de se construir uma paz duradoura. Dentro desse campo de investigao, os

    trabalhos de Oliver Richmond e Roger Mac Ginty so exemplares dignos de nota.

    Em sntese, as principais crticas dos autores paz liberal estariam calcadas nos

    dez pontos abaixo assinalados:

    um projeto etnocntrico, dirigido pelo norte e que pretende

    reproduzir formas de paz e governana alinhadas aos interesses de tais

    atores;

    Trata-se de uma empreitada elitista, controlada pelas elites locais e

    internacionais;

    Centra-se essencialmente em questes de segurana, privilegiando

    ordem e estabilidade em detrimento de uma possvel emancipao;

    superficial, dado que se preocupa mais com o conflito direto do que

    com suas causas estruturais;

    Possui natureza tecnocrtica, uma vez que reduz a construo da paz a

    uma srie de atividades tcnicas;

    rgida, pois baseia-se em modelos pr-definidos;

    orientada por interesses de curto prazo, dado os oramentos

    limitados e a alternncia de governos nos pases financiadores;

    Privilegia uma viso neoliberal para organizao da economia;

    Cria-se uma paz ilusria, visto que pouca altera as relaes de poder j

    existentes na sociedade;

    No h conexo entre as expectativas internacionais e as demandas

    locais (MAC GINTY, 2011: 41-42).

    Assim sendo, a partir da constatao de que a paz liberal no conseguiria

    avanar para alm de uma paz virtual, na qual a recorrncia dos conflitos seria

    uma ameaa latente, tivemos uma mudana significativa nos trabalhos sobre

    reconstruo ps-conflito: em detrimento de um vis que inescapavelmente

    comparava as deficincias de pases ditos falidos com as virtudes dos pases do

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    Ocidente e indagava o que faltava e/ou o que precisava ser transplantado para

    os primeiros, agora se opta por questionar que relaes polticas, econmicas,

    sociais e culturais de fato existem nessas regies antes da tentao de adjetiv-

    las como caos social ou fracasso estatal.

    Prope-se, portanto, um maior engajamento com o local, porm evitando-

    se uma inverso de polos e assim exotizando-o ou romantizando-o. Nesse

    sentido, nos ltimos anos houve um investimento terico e emprico significativo

    em trabalhos que advogam a ideia de uma paz ps-liberal ou mesmo de uma paz

    hbrida. Ancorados em boa medida pela perspectiva ps-colonial, os estudos sob

    questo procuram destacar a capacidade de agncia da populao local e como

    a mesma negocia, resiste ou mesmo subverte o projeto liberal de reconstruo

    ps-conflito. Nessa toada, para a construo de tais questionamentos central a

    ideia de hibridismo, oriunda, sobretudo, dos trabalhos de Homi Bhabha (2007).

    Em sntese:

    Projetos sociais, econmicos e polticos sustentam-se a partir da

    emergncia e manuteno de fronteiras: o sistema de classe e castas,

    monarquias e dinastias, disciplina militar e religio, para nomear apenas

    alguns. A noo do hbrido, ou mesmo um espao intersticial entre duas

    entidades, sugere que fronteiras so porosas e, portanto, questiona a

    base da separao e a relao hierrquica superior-inferior constituinte

    das ordens sociais e polticas (MAC GINTY, 2011: 71).

    Assim sendo, Richmond (2002; 2005; 2010) diferencia quatro geraes de

    estudos sobre paz e resoluo de conflitos12. A primeira gerao, herdeira das

    ideias do realismo poltico, parte da premissa de que o conflito uma tendncia

    biolgica e que a nica sada garantir uma ordem mnima baseada em Estados

    e sem violncia aberta entre os mesmos. A segunda gerao, ao trazer para as

    12 No argumento inicial, apresentado em 2001 e aprofundado no livro de 2002, Richmond identifica trs geraes. Ao retrabalhar suas ideias para o livro de 2010, o autor aponta a emergncia de uma quarta gerao.

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    anlises as necessidades humanas e causas estruturais dos conflitos13, procuraria

    resolver os conflitos, ao invs de apenas administr-los, apresentando ideias

    como as de que paz demandaria desenvolvimento econmico, por exemplo. A

    terceira gerao, por sua vez, enfatiza abordagens multidimensionais para

    consecuo da paz, com uma gama variada de atores atuando em campo e

    prescrevendo democratizao, estabelecimento do Estado de Direito, direitos

    humanos, mercados livres e globalizados e desenvolvimento nos moldes liberais

    como soluo para os problemas. Implcito nesse discurso estaria a crena

    cosmopolita de que uma verso universal sobre a paz normativamente possvel

    por meio de aperfeioamento cientfico das estratgias a serem implementadas.

    Nessa terceira gerao, a paz alcanvel aquela que combinaria a

    construo da paz de cima para baixo, ou seja, a paz pode ser imposta de fora

    mediante a aplicao de mecanismos de governana por parte dos atores

    internacionais para controlar e tentar resolver os problemas das sociedades sob

    interveno. Ao atender mais os interesses dos interventores, em especial atores

    internacionais como a ONU, organizaes financeiras internacionais e ONGs, o

    resultado dessas intervenes seria a criao de instituies estatais fracas

    levando a uma situao em que a populao no confiaria no novo Estado e na

    economia.

    13 A segunda gerao foi influenciada por estudos como os de Johan Galtung (1990), que diferencia trs tipos de violncia. Teramos assim a violncia direta, caracterizada, por exemplo, por um assassinato; a violncia estrutural, cuja melhor representao seria a morte das pessoas devido pobreza; e, por fim, a violncia cultural, tudo aquilo que nos impede de enxergar os fatos acima descritos como problemticos ou que procuram justificar essas mesmas aes. Findamos com a violncia direta ao mudarmos o comportamento do conflito (trazendo os contendores armados para a mesa de negociao, por exemplo); a violncia estrutural extinguir-se-ia quando so removidas as contradies e injustias da sociedade; e a violncia cultural terminaria quando ocorrem mudanas nas atitudes dos atores frente as injustias que ocorreriam cotidianamente. Dessa tipologia seria possvel derivar os conceitos de paz negativa, caracterizada pela cessao da violncia direta, e paz positiva, a superao das violncias estruturais e culturais.

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    O pouco engajamento com a populao culminaria, segundo o autor, na

    romantizao do local (RICHMOND, 2009), ou seja, a viso de que os habitantes

    locais seriam (1) exticos, informais ou inacessveis; (2) incapazes de ter um papel

    substantivo na reconstruo, pois os mesmos no teriam a competncia

    necessria para a construo de ordem formal liberal; (3) desonestos e

    incivilizados; e (4) um repositrio de capacidades locais que agentes

    internacionais poderiam cooptar. A grande consequncia dessa percepo que

    no haveria espao para a populao local agir nos processos e que questes

    relativas ao bem-estar dos habitantes seriam relegadas, visto que seria

    contraproducente o engajamento com os locais. Devido a todos esses

    apontamentos, Richmond (2001: 335) afirma que:

    Conquanto terceiros sejam Estados, acadmicos, peacekeepers ou

    organizaes tenham mudado seus objetivos para a questo da

    segurana humana, e talvez com a melhor das intenes, ainda so

    relutantes em admitir que seus papis e o impacto das suas aes no

    esto apenas fazendo a paz, como tambm exportando ordem,

    possivelmente de forma no intencional, mediante o sistema de valores

    e de modelos econmicos, polticos, sociais, culturais e normativos que

    moldaram o seu prprio desenvolvimento.

    Uma quarta gerao de estudos sobre paz e conflito, a partir das crticas aos

    problemas da terceira gerao - em especial a dificuldade em se lidar com temas

    como justia e reconciliao, identidade, gnero e pelo carter impositivo da paz

    uma vez que h pouco dilogo com a populao local caminharia atualmente

    por duas searas. Inspirados nos trabalhos de Habermas, alguns autores apontam

    para atores no-estatais e formas de governana da sociedade civil como

    possibilidades de se criar uma paz emancipatria que contemple os interesses da

    populao local. Outros, inspirados sobretudo pelos trabalhos de Foucault,

    enxergam os mecanismos acima descritos como formas de biopoder, por meio

    dos quais determinados atores conseguiriam capacidade e seriam autorizados a

    intervir em aspectos privados da vida humana.

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    Duas contribuies de ordem terico-metodolgica so, salvo melhor

    juzo, dois dos principais argumentos desenvolvidos por Mac Ginty (2011; 2013)

    para o debate em tela. A primeira contribuio do autor refere-se a um modelo

    metodolgico para compreender o processo de hibridizao em sociedades que

    passam por intervenes com o fito de construir a paz. Por conseguinte, o autor

    argumenta que tal processo seria resultante da correlao entre as seguintes

    variveis: (1) a habilidade e poderes dos agentes externos em forar a observncia

    (compliance) do modelo liberal de construo da paz; (2) os incentivos externos

    para a instalao da paz liberal; (3) a habilidade dos atores locais em resistir,

    ignorar ou se adaptar as intervenes; e, por fim, (4) a habilidade desses mesmos

    atores em apresentar e manter alternativas ao modelo liberal: (MAC GINTY, 2011:

    9):

    Em segundo lugar, ao comungar da ideia de que as abordagens tradicionais

    tratam paz mediante uma definio negativa, entendida como ausncia de

    conflito, assim como ao compartilhar da ideia de que a mesma uma prtica

    cultural, o autor procura desenvolver diretrizes para novos indicadores

    preocupados em mensurar paz em seus prprios termos. Nesse sentido, os novos

    indicadores deveriam ser construdos a partir das prticas cotidianas das

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    populaes e a eleio de quais seriam os mais adequados ficaria a cargo dos

    participantes do projeto de reconstruo e de seus informantes, da mesma forma

    em que devem ser adaptveis mudana, perdendo, portanto, capacidade de

    generalizao.

    Todavia, os indicadores construdos a partir de tais diretrizes seriam

    construdos de baixo para cima, definidos e empregados pelas comunidades em

    tela, teriam o formato de descries das condies e prticas locais e,

    consequentemente, conseguiriam transmitir uma gama de informaes

    significativa as quais no seriam obtidas mediante os indicadores tradicionais.

    Nesse sentido, exemplos de indicadores locais seriam a retomada de prticas

    culturais que teriam declinado durante o conflito, a sade e adoo de ces de

    rua14, o aumento do nmero de donos de loja que pintam suas fachadas, dentre

    outros. Como o autor sugere, a ideia no eliminar as ferramentas tradicionais,

    mas sim aprimor-las: os indicadores locais poderiam atuar paralelamente aos j

    conhecidos, agregando valor, preciso e sentido para a construo da paz15.

    Tudo somado, temos uma discusso em boa medida normativa sobre

    peacebuilding a partir das crticas ao projeto liberal. Segundo Richmond (2011),

    devemos deixar de lado a concepo de paz liberal como um produto da

    modernidade ocidental aplicvel nos mais distintos contextos e partirmos do

    pressuposto de que a construo da paz uma prtica cultural, com razes em

    convenes sociais e polticas muito diferentes umas das outras. Assim, uma paz

    ps-liberal ou hbrida implicaria um engajamento com o Outro, procurando

    entender a dinmica local, confrontando as dificuldades, mas tambm

    14 Em tempos de guerra o nmero de animais de rua cai devido violncia e diminuio de lixo orgnico, pois as pessoas consomem menos, o que deixa de atrair os animais.

    15 Em comunicao pessoal com o autor, Roger Mac Ginty disse que a proposta dos indicadores locais atraiu a ateno da ONU e que atualmente est levando adiante um projeto para desenvolv-los para 5 pases da frica Subsaariana.

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    aproveitando as oportunidades de tal contato para a construo de uma paz

    realmente orgnica.

    Ademais, uma agenda de pesquisa orientada na busca de uma paz ps-

    liberal poderia investigar mais pormenorizadamente temas como tradies

    culturais locais, as operaes de paz como processos emancipatrios

    preocupados com o cotidiano e a segurana humana, como criar processos

    decisrios comandados pelos locais e como agentes internacionais poderiam

    auxiliar nesse processo e pensar a paz para alm do Estado liberal. Logo, a

    proposta da virada local :

    (...) O engajamento com o local, e com as maneiras em que a paz

    formada pelas foras locais (e internacionais) no render-se s foras

    do capitalismo global ou mesmo aos pressupostos de superioridade

    ontolgica do Ocidente. Pelo contrrio, mostrar como o poder circula

    e como a legitimidade mesmo nos recantos mais obscuros demanda

    prestao de contas. pensar tambm a possibilidade de emancipao

    e empatia num contexto local e global, a partir de valores, identidades

    e necessidades dos sujeitos locais, em detrimento de supostos

    interesses nacionais e internacionais, de elites marxistas, liberais ou

    neoliberais cujas narrativas sobre a paz e sobre o suposto papel de uma

    vanguarda, de instituies internacionais ou mesmo do mercado global

    raramente conseguiram ter sucesso (MAC GINTY; RICHMOND, 2013:

    780).

    Por fim, o quadro abaixo apresentado uma tentativa para sintetizar os

    principais desenvolvimentos da literatura aqui revisada:

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    Sntese das abordagens

    Nome Representantes Argumentos principais

    Crticos reformistas

    Simon Chesterman

    Crticas forma de execuo,

    e no ao contedo, das

    operaes de peacebuilding

    Roland Paris

    Crticos estruturais

    Michael Pugh

    Peacebuilding como

    ferramenta de manuteno

    do status quo internacional e

    como forma de biopoltica

    para controle de sociedades

    sadas de conflitos

    Ian Taylor

    Mark Duffield

    David Chandler

    Virada Local

    Oliver Richmond

    Importncia da anlise da

    dinmica local, sem

    romantiz-la e tampouco

    exotiz-la.

    Peacebuilding como um

    fenmeno hbrido.

    Roger Mac Ginty

    CONSIDERAES FINAIS

    O modesto intuito da presente reviso apresentar aos interessados parte

    do atual estado da arte sobre os estudos crticos acerca das operaes de

    peacebuilding. Aps tal esforo, podemos notar que, diferentemente do incio

    dos anos 1990, quando o foco dos estudos sobre operaes de paz transitavam

    ora entre descrio das misses finalizadas ou em andamento, ora entre anlises

    que buscavam produzir manuais de lies aprendidas, assim como faziam uso de

    metodologias especificas como estudos economtricos, para avaliar como as

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    misses poderiam ser melhor efetivadas, vemos que a discusso sobre a paz

    liberal e a virada local proporcionou uma oxigenao terica na discusso,

    sobretudo ao indagar o estatuto ideolgico das misses, seja apoiando ou seja

    questionando a qualidade do projeto liberal.

    Inobstante crticas pertinentes, as indagaes propostas por todas as trs

    vertentes aqui resenhadas so passveis de questionamentos, os quais, salvo

    melhor juzo, ainda permearo a discusso sobre o tema nos anos vindouros.

    Assim sendo, cabe-nos nestas consideraes finais fazer um apanhado do que

    consideramos serem os principais problemas apresentados at o momento pelos

    autores em tela.

    Com relao queles que defendem reformas do projeto liberal, aqui

    representados por Chesterman e Paris, duas grandes questes ainda encontram-

    se em aberto. Primeiramente, como o prprio Paris j antecipara, as estratgias

    propostas para reformar a execuo da paz liberal podem eventualmente pecar

    por gerar uma situao de dependncia externa, alm dos altos custos envolvidos

    em tamanho engajamento internacional.

    Frente a tal quadro, os autores argumentam que em boa medida no h

    alternativa, dado que se tratam de situaes complexas e que o engajamento

    deve ser o suficiente para restaurar o governo central de tais pases. Em termos

    de implementao em campo, decerto trata-se de um ponto importante, porm

    em nosso entendimento especialmente a estratgia de Paris - a qual

    efetivamente uma proposta, e no uma diretriz, como a de Chesterman -

    precedida por uma viso do pas em questo como um local vazio, isto ,

    carecendo de desenvolvimento e de instituies e, portanto, culminando na

    construo de uma relao quase que pedaggica entre interventores e

    populao. Logo, alm da potencial dependncia, teramos tambm uma viso

    depreciativa sobre as sociedades alvo das misses.

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    No toa, termos-chave para Paris so promoo de uma boa sociedade

    civil, partidos polticos e sistemas eleitorais que premiem a moderao,

    controle do discurso de dio, entre outros. No nossa inteno fazer apologia

    violncia, mas sim mostrar que a partir de determinada reificao de

    identidades de interventores externos e populao local possvel desautorizar

    questes como, por exemplo, que outros interesses estariam sendo privilegiados

    a partir da construo de democracias liberais orientadas ao mercado e minimizar

    a participao local em seu prprio processo de reconstruo.

    precisamente na esteira deste questionamento que, conforme vimos,

    surgem as crticas estruturais. Os autores alinhados a esta perspectiva, cada qual

    a seu modo, passam a enxergar as operaes de peacebuilding como um

    mecanismo de reproduo de determinada ordem internacional, isto , ao invs

    de se tratarem de mecanismos para resoluo de conflitos, as misses deveriam

    ser entendidas como sintomas de um sistema internacional que cria suas prprias

    deficincias. Certamente, estamos frente a uma das mais potentes crticas s

    operaes de paz, que inclusive leva-nos a refletir sobre a natureza extremamente

    desigual do sistema internacional contemporneo, mas que ainda carece de uma

    resposta para a questo relativa a o que fazer frente a conflitos civis no curto

    prazo. Aqui, cabe a conhecida pergunta de Nicholas Wheeler (2002): se existe a

    possibilidade de resultados positivos de uma interveno, se a mesma findar

    com as mortes, os interesses dos interventores podem eventualmente serem

    variveis que impeam que se salvem estranhos?

    Finalmente, a virada local, a despeito de sua contribuio para romper com

    determinada viso pejorativa sobre pases at ento considerados falidos,

    tambm alvo de disputas tericas e prticas. Conforme muito bem apontado

    por Silva (2012: 80), a proposta de paz hbrida no consegue escapar de uma

    dicotomia entre o internacional e o local, culminando numa reafirmao de

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    identidades, sem tensionar o particular que se pretende universal e o universal

    presente no particular. Ademais, por vezes o local visto de forma homognea

    e elevado ao estatuto de agente autnomo, capaz de fazer escolhas racionais e

    definir suas preferncias, mas limitado por princpios e valores definidos por

    agentes externos, o que, em ltima instncia, pode ser entendido como uma nova

    forma de se legitimar intervenes externas, pois o foco seria to somente em

    entender como o local deveria ser includo na construo da paz.

    Em alguma medida, Mac Ginty e Richmond (2013) reconheceram tais crticas

    e as apontaram como aquelas que merecem profunda reflexo, alm de tambm

    apontarem outra interrogao: qual a relao entre poder e paz e como uma

    paz emancipatria relaciona-se com, ou emerge de, prticas de poder? So

    questes ainda em aberto e que demandam reflexo, mas percebe-se tambm

    que a despeito de todo o investimento terico dos autores em abordagens que

    questionam a viso de identidades essencialistas e homogneas, h a

    preocupao com uma paz que leve emancipao.

    Nessa direo, acrescentamos ns agora, se estamos tratando de

    identidades heterogneas, que emergem a partir do contato ou que seriam

    resultados de disputas de poder por meio das quais um particular em

    determinado consegue impor seu projeto e passa a ser visto como universal, no

    seria interessante pensarmos em possibilidade de vrias emancipaes ao invs

    de uma emancipao? Dito de outra forma, ao menos em nosso entendimento

    h um paradoxo em destacar o carter heterogneo do local, mas afirmar apenas

    uma emancipao possvel.

    Assim, sendo, salvo melhor juzo, acreditamos que as prximas curvas de

    debate to instigante cercaro tais questes e demandaro imerses tericas e

    metodolgicas cada vez maiores, sobretudo em termos de se possvel acessar

    o local, que tipo de emancipao possvel, se tal virada seria apenas um

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    movimento discursivo legitimador para intervenes e qual o estatuto tico-

    normativo do peacebuilding. Cremos que tal investimento de suma

    importncia, pois, apropriando-nos das palavras de Goodhand (2006: 45),

    praticantes que relegam teoria podem acabar tornando-se escravos

    inconscientes das teorias de terceiros.

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