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    Cultura:

    Grácio Editor

    coord, Maria Manuel Baptista

    Metodologias e Investigação

    Coleção Estudos Culturais

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    Cultura:Metodologias e InvestigaçãoCoordenação: Maria Manuel baptista

    Grácio Editor

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    Título

    Cultura: Metodologias e Investigação

    Coordenação

    Maria Manuel Baptista

    Coordenação Editorial

    Rui Alexandre Grácio

    Capa

    Frederico da Silva

    Design gráfico e paginação

    Grácio Editor | Frederico da Silva

    Impressão e acabamento

    1ª edição Agosto de 2012

    ISBN: 978-989-8377-34-0

    © Grácio Editor

    Avenida Emídio Navarro, 93, 2.o, Sala E

    3000-151 COIMBRA

    Telef.: 239 091 658

    e-mail: [email protected]

    sítio: www.ruigracio.com

    Reservados todos os direitos

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    ÍndiceEstudos Culturais: um campo gravitacional, uma tessituraintelectual | Maria Manuel Baptista ............................................................................................................5 

    1. Metodologias em Estudos Culturais........................................

    O quê e o como da investigação em Estudos Culturais | Maria Manuel Baptista................15

    Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais | Moisés de Lemos Martins...29

    Para uma etnografia dos públicos em acção | João Teixeira Lopes........................................43

    Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise | Rosa Cabecinhas...53

    Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística | Joaquim Barbosa ................................71

    Research topics and methodologies in film studies | Anthony Barker .................................97

    História oral? Dilemas e perspectivas | Maria Manuela Cruzeiro........................................113

    O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica | Alba Carvalho.....125

     

    2. Investigação em Estudos Culturais

    Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita | Dália Dias ..............................................149(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana

    sobre o colonialismo | Maria do Rosário Girardier.................................................................177

    La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonicode Miguel de Barrios | Miquel Beltran e Joan Llinàs ...............................................................203

    Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas | Jean-Marie Rabot ............235

    O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil:

    um evento comunicacional de interfaces culturais | Severino Alves Filho........................267

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    Estudos Culturais:um campo gravitacional, uma tessitura intelectual

    A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se, na última dé-

    cada, realidades cada vez mais presentes nos contextos universitários,o que se fica a dever, em primeiro lugar, à valorização social crescente

    que tem sido concedida a esta área, quer nos mais latos e clássicos

    domínios da formação humanística e artística, quer enquanto factor

    de conhecimento e compreensão das novas dinâmicas sociais e cul-

    turais da contemporaneidade. Acresce ainda a esta valorização aca-

    démica e social, a tomada de consciência generalizada do potencial

    económico que detém, tendo mesmo nascido recentemente uma áreacientífica auto-designada por Economia da Cultura.

    Partindo deste reconhecimento, o presente trabalho procura

    fazer o levantamento dos principais desafios teóricos, práticos, me-

    todológicos e académicos desta área do saber, assumindo como ponto

    de partida para a reflexão a tradição anglo-saxónica dos Estudos Cul-

    turais, questionando as suas limitações e dificuldades epistémicas,

    mas também assumindo as virtualidades que lhe são próprias e quese encontram ainda longe de estarem exauridas.

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    Em primeiro lugar, gostaríamos de deixar claro ao leitor despre-

     venido o quanto esta área dos Estudos Culturais é menos uma disci-plina, academicamente ‘policiada’, com os seus ‘especialistas’ e

    paradigmas consensualmente estabelecidos (a este propósito valerá

    a pena reler o já clássico livro de Thomas Kuhn, A Estrutura das Re-

    voluções Científicas), com metodologias previamente determinadas e

    configurações interdisciplinares rígidas ou sequer estabilizadas, mas,

    mais do que isso, trata-se de uma área ‘pós-disciplinar’, quer dizer,

    um lugar de encontros e partilha de saberes, métodos e experiências

    de investigadores de diversas áreas, que têm em comum um interesse

    particular pelas questões culturais.

    Do nosso ponto de vista, é pelo facto de os Estudos Culturais

    constituírem um lugar de prática intensa de interdisciplinaridade, es-

    timulando a constituição de equipas muito heterogéneas que se for-

    mam a propósito de projectos específicos de investigação, cuja acção

    se encontra sobredeterminada por uma questão ou problemática

    científica concreta, frequentemente esgotando-se no terminus desseprocesso investigativo, que, em nosso entender, esta área se apresenta

    fluida e instável, mas simultaneamente tão desafiante e intelectual-

    mente estimulante.

    Mais do que uma disciplina científica clássica (modo de organi-

    zação científica tipicamente Moderna), os Estudos Culturais, tal como

    os compreendemos e são apresentados neste volume, representam-

    se como um centro gravitacional (constituído em primeiro lugar peloproblema sob investigação), que atrai investigadores de muitas áreas,

    interessados em participar na desafiante aventura de co-construção

    do conhecimento científico.

    Procurando uma inserção na tradição nacional, mas também in-

    ternacional, o conjunto de estudos que aqui se apresenta teve, como

    núcleo original, as conferências apresentadas no Seminário Ibero-

    Americano em Metodologias de Investigação em Cultura, organizadopela linha de investigação ‘Cultura portuguesa: declinações latino-

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    americanas’ do Centro de Línguas e Culturas da Universidade de

    Aveiro, em Novembro de 2008.O que é a Cultura, que temáticas analisa, quem a investiga e

    como é possível produzir resultados científicos, rigorosos, fiáveis e

    relevantes neste domínio constitui o núcleo de questões cujas respos-

    tas este livro se propõe, pelo menos em parte, tratar.

    As principais linhas que atravessam todos os textos que integram

    a primeira parte deste volume, e abordam algumas das principais

    preocupações metodológicas dos Estudos Culturais, podem sinteti-

    zar-se do seguinte modo:

    a) procura sistemática da inter, pluri e transdisciplinaridade;

    b) articulação das temáticas, teorias e metodologias das ciências

    sociais com as das ciências humanas;

    c) construção de metodologias abertas e críticas, em diálogo in-

    tenso com a própria empiria;

    d) utilização reflectida de metodologias quer explicativas e com-

    preensivas, quer quantitativas e qualitativas, quer intensivas eextensivas;

    e) valorização da vida, do quotidiano, dos públicos, do concreto

    e do senso comum, em articulação com a teoria e as metodo-

    logias de investigação.

    Assim, num primeiro estudo de abertura deste volume procurá-

    mos apresentar o domínio de investigação dos Estudos Culturais, num

    texto que sintetiza e discute as características comuns da investigaçãonesta área: abordámos a história da transformação deste campo em do-

    mínio científico, reflectimos sobre o seu actual estatuto académico e

    disciplinar, apontando, por fim, as principais linhas de desenvolvimento

    e metodologias de investigação usadas internacionalmente nesta área.

    Num segundo texto, Moisés de Lemos Martins procura partir de

    um reflexão crítica sobre a imensa latitude do ofício do sociólogo, so-

    bretudo daqueles que se debruçam essencialmente sobre os fenóme-nos da Comunicação (como é o seu caso), para discorrer sobre a sua

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    própria prática ao nível dos Estudos Culturais, trabalho que o tem

    aproximado do labor de hermeneuta, por força da ‘cinética domundo’, hoje mergulhado numa ‘modernidade trágica’.

    Nesta senda de reflexão sobre a Cultura, e partindo ainda do ter-

    reno próprio da Sociologia, o terceiro texto, da autoria de João Tei-

    xeira Lopes sublinha algumas das principais tensões e exigências no

    concreto fazer da Sociologia da Cultura, referindo a importância de

    nos determos e meditarmos cuidadosamente na ambiguidade dos fe-

    nómenos de recepção cultural, articulando a diversidade e o grau deautonomia e crítica dos públicos com as formas de legitimação e im-

    posição do poder (dos poderes).

    Um quarto texto parte do paradigma próprio da Psicologia Social

    e discute o quanto o domínio das representações sociais, as suas meto-

    dologias e a diversidade dos seus níveis de análise nos colocam de ime-

    diato no centro da investigação cultural, tratando—se também aqui,

    como refere Rosa Cabecinhas, de compreender as práticas individuaisà luz de representações que são sociais e historicamente construídas.

    É ainda tomando como central a temática da Cultura que Joa-

    quim Barbosa nos introduz nos principais núcleos da investigação

    linguística, no âmbito dos quais destaca o conjunto de estudos e preo-

    cupações da sociolinguística, sublinhando não apenas a sua actual re-

    levância na contribuição para a resolução de problemas educacionais,

    mas também políticos e ideológicos do mundo contemporâneo.São, igualmente, os elementos educacionais e de investigação que

    estão no centro da reflexão que Anthony Barker nos apresenta no do-

    mínio dos Estudos Fílmicos, no contexto de um Departamento de

    Estudos Literários português. Apresentando um balanço detalhado e

    crítico da sua riquíssima experiência neste domínio, sublinha algumas

    das barreiras institucionais, teóricas e técnicas em fazer avançar este

    género de investigação, apesar da apetência que os investigadores ju-niores revelam por este domínio dos Estudos Culturais.

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    De dilemas e perspectivas nos fala também Maria Manuela Cru-

    zeiro numa reflexão sobre a sua já extensa prática de investigação nocontexto da História Oral, centrando-se muito particularmente na

    discussão epistemológica e metodológica deste modo de construção,

    análise, explicação e compreensão cultural, concluindo mesmo pela

    necessidade de articular os modos de produção da ciência e da arte.

    Em jeito de balanço e reflexão mais global acerca das principais ca-

    racterísticas metodológicas que perpassam as diversas investigações da

    ‘galáxia’ ou ‘centro gravitacional’ que temos estado a designar por Estu-

    dos Culturais, Alba Carvalho encerra a primeira parte deste livro com

    uma profunda e instigante reflexão sobre o exercício do ofício da pes-

    quisa e o desafio da construção metodológica, sublinhando a articulação

    dos diversos modos de construção do conhecimento com a tradição do

    fazer científico e técnico, defendendo uma rigorosa ‘ecologia dos saberes’,

    numa espécie de ‘tear reflexivo’ ou ‘tessitura intelectual’.

    Sem pretender de modo nenhum encerrar as questões aqui le-

     vantadas (pelo contrário, pretendemos abrir o debate sobre esta área,em Portugal), julgamos que, no seu conjunto, o livro que agora se

    apresenta inaugura uma discussão que se quer clara e assumidamente

    comprometida com a realidade cultural envolvente, tanto na Acade-

    mia como na Polis. Partindo da Cultura (qualquer que seja o nível de

    análise ou o grau de implicação vivencial que com ela tenhamos) e

    procurando a ela voltar no final das nossas investigações, quisemos

    neste livro dinamizar uma área de discussão epistemológica em tornodos Estudos Culturais, abandonando o pressuposto (culturalmente)

    muito disseminado de que se trata de um domínio sobre o qual tudo

    se pode dizer ou fazer, e o seu contrário também.

    E foi por sabermos o quanto os terrenos do ensino e da investiga-

    ção em Cultura têm de potencialmente equívoco e pantanoso, que pro-

    curámos recolher múltiplos olhares e reflexões, buscando activamente

    uma diversidade considerável de pontos de focagem académica e dis-ciplinar. No ponto de cruzamento e intersecção destes múltiplos olhares

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    quisemos situar a discussão em torno das metodologias que cada área

    utiliza para abordar as questões culturais, mas também apresentarexemplos muito concretos de abordagem multi e transdisciplinar na

    investigação de um conjunto de questões muito diferentes, mas que

    podem inspirar outros investigadores que desejem praticar o desafiante

    ‘politeísmo metodológico’ (como lhe chama Moisés Martins) para que

    os Estudos Culturais, pela sua própria natureza, nos convocam.

    Assim, se na primeira parte deste volume (que intitulámos Meto-

    dologias em Estudos Culturais) apresentamos as diversas perspectivas

    epistemológicas e metodológicas de investigadores que, embora oriun-

    dos de áreas científicas diversas (Filosofia, Sociologia, Psicologia Social,

    Linguística, Estudos Fílmicos, Literatura e História Oral), praticam de

    há longo tempo a investigação no domínio cultural, na segunda parte

    (que apresentamos sob o título Investigação em Estudos Culturais)

    podem ser encontrados um conjunto de estudos que ilustram, no con-

    creto, a prática científica geneticamente interdisciplinar desta área.

    O primeiro, intitulado «Ritmo e dissidência: uma experiência deescrita» procura colocar em diálogo os Estudos Literários e os Estudos

    Artísticos (especificamente a Música e a Pintura), enquanto o se-

    gundo, «(Inter)-Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre

    o colonialismo», estabelece inusitadas pontes de diálogo entre os pen-

    samentos de Boaventura Sousa Santos e Eduardo Lourenço por um

    lado, e Eça de Queirós por outro, nas questões respeitantes ao colo-

    nialismo português, usando como conceito-chave uma das questõescentrais dos Estudos Culturais: a Identidade; por seu turno, o terceiro

    texto apresenta-nos um estudo que mostra até à saciedade o modo

    como Literatura (e a Poesia em particular) e Filosofia concorrem para

    o estudo de um dos mais prevalecentes e importantes problemas éti-

    cos, morais e religiosos da humanidade: a questão do livre-arbítrio;

     já o quarto texto cruza a análise sociológica com a filosofia da história

    e a fenomenologia da vida, procurando o significado colectivo (his-tórico, em primeiro lugar) das práticas individuais, recorrendo tam-

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    bém à Literatura no intuito de aprofundar criticamente os sentidos

    menos evidentes dos comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas; finalmente, o quinto e último estudo articula paradigmas

    teóricos e instrumentos metodológicos oriundos quer da investigação

    em Cultura Popular, quer da Linguística e ainda do Marketing, de

    modo a compreender o campo hoje delimitado por um neologismo

    que sinaliza o nascimento de uma nova área no âmbito dos Estudos

    Culturais: o folkmarketing.

    Por fim, refira-se o prazer que constituiu poder editar um livro

    com uma tal riqueza reflexiva e capacidade prospectiva, que recolhecontribuições nacionais e internacionais de grande relevo, acolhendo

    no seu seio um diálogo que em Portugal só agora verdadeiramente

    começa. Se outras virtualidades não tiver, que este livro pelo menos

    sirva para deixar claro o quanto a área dos Estudos Culturais revela

    uma importante fecundidade teórico-prática e uma evidente vitali-

    dade académica, plena de potencialidades de trabalho em redes inter

    e transdisciplinares, quer no contexto nacional, quer internacional.

    Aveiro, 8 de Julho de 2009

    Maria Manuel Baptista

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    1. Metodologias em Estudos Culturais

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    O quê e o como da investigação

    em Estudos Culturais

    Maria Manuel Baptista1

    A área de Estudos Culturais é intrinsecamente paradoxal, objecto

    de discussão e incerteza. Caracterizando-se por uma forte presença

    académica nos discursos intelectuais, revela discórdias internas pro-fundas em relação a praticamente tudo: para que serve, a quem ser-

     vem os seus resultados, que teorias produz e utiliza, que métodos e

    objectos de estudo lhe são adequados, quais os seus limites, etc.

    Na verdade, se algum ‘método’ há nos Estudos Culturais ele con-

    siste na contestação dos limites socialmente construídos (por exem-

    plo, de classe, género, raça, etc.) nas mais diversas realidades

    humanas. A ‘naturalização’ dessas categorias tem sido precisamenteobjecto de grande contestação a partir dos Estudos Culturais. Não

    admira, por isso, e desde logo pela marca da contestação e crítica

    constantes com que nasceu e da qual se alimenta, que este domínio

    científico tenha tantas dificuldades em auto-limitar-se.

    A história dos Estudos Culturais, enquanto disciplina académica

    está efectivamente marcada pela contestação, já que, aquando da sua

    emergência nos anos 70 ela formula e procura corresponder a uma‘viragem cultural’ das ciências sociais e humanas. Num mesmo mo-

     vimento contribuiu, igualmente, para destabilizar as fronteiras de dis-

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    1 Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro – Portugal. Comunicaçãoapresentada ao Seminário Ibero-Americano em Metodologias de Investigação emEstudos Culturais, Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro,6 de Novembro de 2008.Toda a correspondência relativa a esta comunicação deve ser enviada para Maria

    Manuel Baptista, Departamento de Línguas e Culturas – Universidade de Aveiro,3810 Aveiro – Portugal ou via e-mail: [email protected]

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    ciplinas já com longa tradição académica, como a História, a Socio-

    logia, a Literatura, entre outras.Com efeito, os Estudos Culturais têm funcionado como agente e

    sintoma na reconfiguração da estrutura disciplinar quer das Huma-

    nidades quer das Ciências Sociais, num processo que ainda hoje está

    em curso e se encontra longe de estar terminado.

    1. Características comuns da investigação em Estudos Culturais

    Na prática, os Estudos Culturais abrigam um conjunto múltiplo

    de investigadores e investigações de formação muito diversa (nem

    sempre compatível) e de origens académicas e geográficas muito di-

    ferentes. Muitos investigadores chegam a esta área por razões inte-

    lectuais e até políticas muito diferentes.

    De qualquer modo, há traços distintivos na forma como é prati-

    cada a análise cultural e é sobre esses elementos, por vezes contradi-tórios, equívocos e polémicos, que procuraremos desenvolver a

    presente reflexão.

    A primeira característica que gostaríamos de destacar é a ideia

    de complexidade (Morin, s/d) a qual se revela primariamente como

    um profundo compromisso com a ideia de complexidade do fenó-

    meno cultural. Para além disso, os investigadores desta área colocam

    um particular ênfase na produção contextual, multidimensional econtingente do conhecimento cultural, procurando reflectir nos re-

    sultados da sua investigação a complexidade e o carácter dinâmico e

    até, frequentemente, paradoxal do objecto cultural que abordam.

    Uma outra característica muito frequente na análise praticada

    pelos Estudos Culturais consiste no compromisso cívico e político

    (no sentido grego e mais radical de intervenção e envolvimento nos

    assuntos da polis) de estudar o mundo, de modo a poder intervir nelecom mais rigor e eficácia, construindo um conhecimento com rele-

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    Maria Manuel Baptista

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     vância social (Pina, 2003). Este compromisso político (no sentido

    mais lato e profundo do termo) filia-se num contexto mais generica-mente definido a partir dos princípios da democracia cultural.

    Ou como afirma Barker, «(…) os estudos culturais constituem

    um corpo de teoria construída por investigadores que olham a pro-

    dução de conhecimento teórico como uma prática política. Aqui, o

    conhecimento não é nunca neutral ou um mero fenómeno objectivo,

    mas é questão de posicionamento, quer dizer, do lugar a partir do qual

    cada um fala, para quem fala e com que objectivos fala»(Barker,2008).

    Em suma, os Estudos Culturais (e já desde a sua génese com

    Stuart Hall nos anos 60, no contexto britânico (Hall,1972)) estão ge-

    neticamente ligados a um modo de produção de análise cultural que

    faz convergir princípios e preocupações académicas com uma exi-

    gência de intervenção cívica, ou seja, articula inquietações simulta-

    neamente teóricas e preocupações concretas com a polis.

    Na prática tudo isto apresenta um grande grau de variabilidade

    nas investigações conduzidas no âmbito dos Estudos Culturais, poisesta dupla atenção à teoria e à prática tem resoluções contextuais

    muito diversas, apresenta implicações práticas e cívicas com  focus

    muito diferentes e revela estilos de actuação muito específicos.

    Assim, enquanto para alguns, praticar a investigação em Estudos

    Culturais é uma forma de política cultural que deve sempre resistir a

    disciplinarizar-se no âmbito de uma instituição académica, para outros,

    os Estudos Culturais devem legitimar-se precisamente no contexto aca-démico, o que constitui por si só um objectivo político (Bennett,1998).

    Mas até o aspecto mais estritamente cívico proclamado por muitos

    investigadores na área dos Estudos Culturais pode surgir na academia

    de diferentes formas: o elemento ‘político’ pode estar apenas implícito,

    por exemplo, numa investigação que critíca os discursos dominantes,

    usando toda a metodologia e modelos das ciências sociais mais objec-

    tivistas ou, num outro extremo, apresentar-se como pura desconstruçãocrítica, mesmo que seja através de um acto performativo.

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    O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

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    2. História breve da origem e constituição dos Estudos Culturais

    Vulgarmente a origem desta área de investigação é situada nos

    finais da década de 50 do século XX, em Inglaterra, tendo-se poste-

    riormente espalhado um pouco por todo o mundo este modo de aná-

    lise cultural. A sua institucionalização pode situar-se a partir da

    criação, em 1964, na Universidade de Birmingham do Center of Con-

    temporary Cultural Studies (CCCS). Criado por um professor de Li-

    teratura Moderna (de língua inglesa), Richard Hoggart, o CCCS vem

    a registar uma influência máxima quer em termos geográficos, quer

    em impacto nos meios académicos e extra-académicos com Stuart

    Hall, já nas décadas de 70 e 80 do século XX.

    Do ponto de vista teórico, a inspiração destes estudos pode tam-

    bém situar-se nas obras de Roland Barthes (Barthes,1967, 1972, 1977)

    e Henri Lefebvre (Lefebvre,1966,1970, 1975) (França), Fiedler (Fie-

    dler,1955, 1996) (EUA) e Fanon (Fanon,1967) (Martinique/ França e

    Norte de África), entre outros.Para além disso, e embora sem que, numa primeira fase se tenha

    usado a expressão ‘Estudos Culturais’, apareceu também na América

    Latina sob designações mais genéricas como ‘Comunicação’, ‘História

    Intelectual’, ‘Análise do Discurso’ e ‘Estudos Inter-Disciplinares’.

    O impulso e a inspiração próprias da investigação em Estudos Cul-

    turais espalharam-se por todo o mundo, tornando-se uma área de estu-

    dos transnacional, da Suécia e Alemanha até à Austrália e ao Quénia. Emconsequência deste rápido e prodigioso desenvolvimento, os Estudos

    Culturais passaram a apresentar-se como uma prática intelectual dis-

    persa, cujo único centro talvez tenha passado a ser o de procurar articular

    e fazer dialogar três nós problemáticos essenciais: cultura, teoria e acção

    cívica. Não obstante esta dimensão de fragmentação e pulverização, foi-

    se assistindo, paralelamente, ao nascimento dos Estudos Culturais como

    uma área mais circunscrita e institucionalizada e gozando de reconheci-mento académico num número limitado, mas crescente, de países.

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    Maria Manuel Baptista

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    Recuando ainda um pouco às suas origens, cabe sublinhar que,

    inicialmente, a actividade do CCCS consistia em promover a coopera-ção entre as diversas áreas do conhecimento, procurando estimular a

    investigação em interdisciplinaridade, ao mesmo tempo que enfatizava

    a necessidade e importância de uma ligação prioritária a temas da ac-

    tualidade. Para além disso, procurava, em primeiro lugar, dirigir a sua

    atenção para o estudo das classes trabalhadoras, das culturas de juven-

    tude, das mulheres, da feminilidade, da raça e etnicidade, das políticas

    culturais da língua e dos media, entre muitos outros. O que poderemos

    sublinhar de interesse comum em todos estes objectos de investigação

    é o facto de todos os estudos procurarem revelar os discursos margi-

    nais, não-oficiais, ou daqueles que propriamente não têm voz.

    Em síntese, trata-se de estudar aspectos culturais da sociedade,

    isto é, de tomar a cultura como prática central da sociedade e não

    como elemento exógeno ou separado, nem mesmo como uma dimen-

    são mais importante do que outras sob investigação, mas como algo

    que está presente em todas as práticas sociais e é ela própria o resul-tado daquelas interacções.

    Nos anos 70 do século passado, o CCCS integrava criticamente

    contribuições teóricas diversas que iam desde o pós-estruturalismo

    francês (a linguística estrutural de Saussure (Saussure,1960) e a se-

    miótica social de Roland Barthes (Barthes,1972), bem como a psica-

    nálise de Lacan (Lacan,1977) e o marxismo estrutural de Althusser

    (Althusser,1969, 1971) e até Gramsci (Gramsci,1968, 1971), sinteti-zando o paradigma estruturalista e o culturalista.

    O elemento central desta integração teórica e destes múltiplos

    aportes metodológicos passou a ser a prática duma actividade crítica,

    que se tornava apelativa porque abordava questões da experiência

    quotidiana, esta que se constituía de modos cada vez mais complexos,

    contraditórios e fraccionados. Por outro lado, recuperavam-se ques-

    tões sobre a contemporaneidade que as academias haviam conside-rado triviais ou difíceis de estudar.

    21

    O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

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    Metodologicamente, em vez de se compartimentarem os proble-

    mas, passou-se então a integrar diversos métodos capazes de daremconta, através do uso de diferentes perspectivas, da complexidade

    multifacetada de um problema em particular, abandonando qualquer

    pretensão de encontrar explicações causais e definitivas para as rea-

    lidades em estudo. Assim, mais do que interdisciplinaridade tratava-

    se essencialmente de reconhecer a complexidade e as limitações de

    objectividade no contexto dos Estudos Culturais.

    Será já nos anos 80 e 90 que se assiste à institucionalização dos

    Estudos Culturais em diversas partes do mundo, estabelecendo-se

    programas académicos e departamentos, centros de investigação, re-

     vistas, organizações profissionais, etc. Em 2002 o CCCS (que foi, en-

    tretanto, transformado em Department of Cultural Studies and

    Sociology) encerra as as suas actividades, apesar do crescente inte-

    resse pelos Estudos Culturais em todo o mundo.

    3. O estatuto disciplinar e académico dos Estudos Culturais

    Os Estudos Culturais apresentam-se, desde a sua génese, menos

    como uma disciplina e mais como um ‘campo gravitacional’ para in-

    telectuais de diferentes origens (Bennett,1992). Entre as diversas for-

    mações dos investigadores que trabalham nesta área, destacam-se

    aqueles que são oriundos dos Estudos Literários, Linguística, Socio-logia, História, Antropologia, Comunicação, Geografia, Estudos Fíl-

    micos, Psicologia, Educação e Filosofia; menos presentes, mas por

     vezes participantes empenhados no desenvolvimento de projectos de

    investigação em Estudos Culturais encontram-se economistas, juris-

    tas e peritos em relações internacionais.

    Apesar desta diversidade, o que não podemos deixar de sublinhar

    é que daqui resulta um cruzamento disciplinar que não é só misturacaótica mas, frequentemente, verdadeira interdisciplinaridade que

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    Maria Manuel Baptista

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    procura resolver um conjunto de problemas culturais através do uso

    de paradigmas teóricos, metodológicos e estilísticos de origem diversa.Como se pode facilmente deduzir do que ficou dito, também a

    educação e a formação nesta área apresenta conflitos teóricos e prá-

    ticos, os quais têm conduzido a disputas, mas também a consensos

    diversos (como é o caso, entre outros, de algumas discussões entre as

    áreas dos Estudos Literários e dos Estudos Culturais (Silvestre,1999)).

    Porém, a maior clivagem nesta área diz respeito às diferenças

    entre a aproximação mais ‘textual’ (tipicamente das ‘humanidades’)

    e a mais ‘sociológica’ (tipicamente ligada às ‘ciências sociais’), onde o

    diálogo interdisciplinar, quer ao nível metodológico quer teórico, é

    mais difícil. No entanto, e de um modo um tanto paradoxal, é no

    ponto de convergência entre estas duas tendências que os Estudos

    Culturais são mais inovadores e podem trazer as mais importantes

    contribuições para o progresso e desenvolvimento científicos.

    4. Linhas de desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais

    A propósito das linhas de desenvolvimento da investigação em Es-

    tudos Culturais, refira-se, em primeiro lugar, todo um conjunto de tra-

    balhos que se têm centrado no estudo dos fenómenos de mercantilização

    generalizada, induzidos pela cultura contemporânea (sublinhe-se aqui a

    importância de uma postura crítica trazida pela Escola de Frankfurt, mastambém a relevância da reflexão sobre a agenciosidade, preconizada por

    Marx). Esta linha de investigação tem frequentemente conduzido os in-

     vestigadores a desenvolverem os seus projectos centrando-se nas relações

    entre o poder e os mercados, articulando-os com a cultura popular, ou

    desenvolvendo as relações entre textos e audiências, na linha dos estudos

    de Pierre Bourdieu (Bourdieu,1984) e Certeau (Certeau,1984).

    Uma outra vertente importante no âmbito dos Estudos Culturaistem aprofundado fenómenos ligados à noção de Estado nas sociedades

    23

    O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

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    capitalistas contemporâneas. Estes projectos têm ido desde os ‘apare-

    lhos ideológicos do Estado’ de Althusser (Althusser,1980) até aos tra-balhos sobre o poder e o micro-poder de Foucault (Foucault,2008).

    Um terceiro domínio de interesse no âmbito dos Estudos Cultu-

    rais tem-se desenvolvido em torno do estudo sobre a luta pela hege-

    monia e contra-hegemonia (Gramsci,1978) com consequências na

    produção do sentido e nas diversas representações (do Estado, mas

    também dos movimentos cívicos e sociais), bem como sobre a con-

    dição pós-moderna de abandono e descrédito das meta-narrativas

    (Lyotard,1987).

    Já o estudo relativo aos modos de construção política e social das

    ‘identidades’, abordando as questões da nação, raça, etnicidade, diás-

    pora, colonialismo e pós-colonialismo, sexo e género, etc. têm sido

    das temáticas mais investigadas nos últimos anos, dando origem a

    uma importante massa de resultados de grande qualidade e impor-

    tância fora e dentro das academias.

    Por fim, e mais recentemente, os investigadores destas áreas têm-se centrado no estudo dos fenómenos relacionados com a Globaliza-

    ção, articulando-a com questões de desterritorialização da cultura,

    movimentos transnacionais de pessoas, bens e imagens. Neste domí-

    nio tem sido ainda objecto de pesquisa a nova sociedade em rede, fe-

    nómenos de terrorismo, choques civilizacionais, a crise ambiental

    global, entre outras temáticas.

    5. Principais metodologias usadas nos Estudos Culturais

    Sublinhe-se que, no âmbito dos Estudos Culturais, tem havido

    muita produção sobre metodologia (Alasuutari,1995, Gray,2003,

    Mcguigan,1995) e pouca sobre métodos. De qualquer modo, de uma

    forma geral, os estudos nesta área são predominantemente qualitati- vos e a verdade é entendida como relevando essencialmente do

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    Maria Manuel Baptista

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    campo da interpretação e do ensaio crítico. Em todos os casos, a vi-

    gilância auto-crítica e a reflexividade sobre os métodos a usar temsido vista nesta área como o elemento crucial a garantir o rigor e a

    qualidade dos resultados.

    De acordo com Barker (Barker,2008), de entre as metodologias mais

    frequentemente usadas nos Estudos Culturais destacam-se as seguintes:

    a) Metodologia etnográfica, que enfatiza o elemento viven-

    cial da experiência

    b) Abordagem textual

    c) Estudos de recepção

    Quanto à metodologia etnográfica (Rorty,1989, 1991)ela de-

    signa essencialmente procedimentos de observação participante, en-

    trevistas em profundidade e grupos focais. Tem como elemento

    fundamental a concentração no detalhe do quotidiano enquadrando-

    o no todo da vida social. Para isso, procura articular de forma pro-

    funda e fundamentada a abordagem empírica e teórica.

    Sublinhe-se o quanto, nesta perspectiva, a investigação em Estu-dos Culturais trabalha essencialmente com problemas de ‘tradução’

    e justificação, não procurando propriamente a ‘verdade objectiva’, mas

    a compreensão do significado mais profundo dos discursos e das re-

    presentações sociais e culturais.

    Compreende-se assim que esta metodologia se encontre parti-

    cularmente apta para abordar questões de cultura, estilos de vida e

    identidades.Por seu turno, a abordagem textual apresenta resultados diversos

    de acordo com os diferentes modos de tratar o texto: numa perspectiva

    semiótica o texto é visto como signo, procurando encontrar-se aí ideo-

    logias e mitos; numa perspectiva essencialmente ligada à teoria nar-

    rativa os textos são vistos e compreendidos como histórias que

    procuram explicar o mundo e fazem-no de forma sistemática, com

    uma estrutura frequentemente repetitiva (Neale,1980, Todorov,1977);por fim, a abordagem desconstrucionista, na linha de Derrida, pro-

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    O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

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    cura, quer nos campos da literatura quer no âmbito da teoria pós-co-

    lonial, surpreender os pares hierárquicos clássicos da cultura ocidental(homem/mulher, preto/branco, realidade/aparência, etc.), distin-

    guindo o que um texto diz daquilo que ele significa.

    Finalmente, e no que se refere aos estudos de recepção, a investi-

    gação parte da consideração de que o sentido do texto é activado pelo

    leitor, audiência ou consumidor. O modo como um tal processo se de-

    senvolve em cada contexto histórico e social é o objecto destes estudos.

    No âmbito dos estudos de recepção, têm-se desenvolvido duas

    linhas fundamentais:

    a) o modelo ‘codificação/descodificação’ (Hall,1981), que subli-

    nha o facto de a codificação ser polissémica, pelo que a des-

    codificação da mensagem pode não coincidir com o sentido

    original, sobretudo se uns e outros não partilharem o mesmo

    meio cultural, social, económico, etc.

    b) o modelo clássico da tradição hermenêutica e literária (Gada-

    mer,1976, Iser,1978), que defende a perspectiva de que a com-preensão depende sempre do ponto de vista daquele que

    compreende. Assim, o leitor também produz sentido não

    tanto a partir do sentido inicial, mas das oscilações entre o

    texto e a sua própria imaginação.

    6. Conclusões

    A teoria ocupa um lugar central e determinante nos Estudos Cul-

    turais, pois proporciona os instrumentos lógicos para pensar o

    mundo de um modo mais profundo, crítico e rigoroso. Na verdade,

    os Estudos Culturais rejeitam a ideia empiricista de que o conheci-

    mento é simplesmente uma questão de coligir factos, a partir dos

    quais as teorias seriam deduzidas para, em seguida, serem elas pró-prias testadas e validadas pelos factos.

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    Maria Manuel Baptista

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    Pelo contrário, nos Estudos Culturais a teoria está sempre impli-

    cada no trabalho empírico através de um conjunto de decisões me-todológicas e posicionamentos epistemológicos presentes sobretudo

    nas fases de escolha do tópico a investigar, na focalização da investi-

    gação, bem como pelo uso de paradigmas, teses e conceitos através

    dos quais a empiria é interpretada e discutida.

    Deste modo, é objectivo primeiro dos Estudos Culturais cons-

    truir um discurso crítico e auto-reflexivo que procure constantemente

    redefinir e criticar o trabalho já feito, repensar mecanismos de des-

    crição, de definição, de predição e controlo das conclusões a que se

    chega, bem como ter um papel desmistificante em face de textos cul-

    turalmente construídos e dos mitos e ideologias que lhes subjazem.

    Sublinhe-se que nenhuma das linhas de investigação propostas

    no âmbito do Estudos Culturais se exclui mutuamente, antes sugerem

    múltiplas possibilidades de cruzamentos, até porque os métodos uti-

    lizados apesar de serem diversos, podendo complementar-se. É pre-

    cisamente este apelo à interdisciplinaridade que se constitui, noâmbito dos Estudos Culturais, como um desafio à construção de uma

    cultura de diálogo entre as diferentes disciplinas.

    Em síntese, as questões próprias da investigação em Estudos Cul-

    turais multiplicam-se e constituem focos problemáticos de luta inte-

    lectual contínua, que têm apenas como ponto unificador o conceito,

    equívoco e problemático, de Cultura. Apesar disto, os investigadores

    têm revelado ao longo dos anos a invariável e persistente vontade emse comprometerem com a complexidade do fenómeno cultural, co-

    laborando na construção do que pode-ríamos designar pela

    (inter)disciplina ou pós-disciplina que é hoje o domínio de investi-

    gação dos Estudos Culturais.

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    O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

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    Maria Manuel Baptista

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    Para um ‘politeísmo metodológico’ nos

    Estudos Culturais

    Moisés de Lemos Martins1

    1. Ofício de sociólogo

    Sendo eu um sociólogo, não são todavia as ferramentas-feticheentre os cientistas sociais aquelas que por norma utilizo. Os historia-

    dores utilizam fundamentalmente os arquivos. Os antropólogos

    fazem da observação participante a sua ferramenta principal. Os psi-

    cólogos sociais recorrem por regra a metodologias experimentais e

    empíricas, às escalas de atitudes, aos estudos focais e às entrevistas, e

    utilizam com a mesma mestria e eficácia os inquéritos. Sabemos

    como os geógrafos e os demógrafos se tornaram especialistas na uti-lização dos inquéritos. E também os cientistas políticos. Mas foram

    os sociólogos quem mais fez pela popularidade dos inquéritos e das

    entrevistas. Generalizando, talvez não seja excessivo dizer que não

    existem cientistas sociais para quem o inquérito e o seu tratamento

    estatístico não sejam uma importante ferramenta de investigação.

    Sendo sociólogo, não têm sido estes, todavia, os meus caminhos.

    Tenho passado quase toda a minha vida académica a ler e a interpretartextos. E textos de variado tipo: textos de carácter político, mas tam-

    bém textos de natureza religiosa, e ainda textos pedagógicos e filosó-

    ficos, e mesmo textos literários. Ora, quem lê textos e se entrega à

    tarefa de os interpretar é um hermeneuta. E é assim que me vejo, como

    um hermeneuta. Interpreto textos, não apenas com preocupações aca-

    démicas, mas igualmente com preocupações cívicas. E comparo-os.

    31

    1 Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade doMinho. [email protected]

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    Se não falasse do interior do campo das Ciências Sociais, ninguém

     veria nada de especial nesta minha estratégia de investigação. Quemse ocupa de literatura, por norma não faz coisa diferente: lê e compara

    textos. Mas que um sociólogo faça isso e que, com o decorrer do

    tempo, faça apenas isso, instala uma dúvida teórico-metodológica,

    dado o facto de o trabalho do sociólogo, deste modo perspectivado, o

    aproximar do trabalho do filósofo e do crítico literário.

    Hoje ensino e investigo Sociologia da Comunicação. E também

    Teoria da Cultura. Apenas de há meia dúzia de anos para cá, meocupo mais de imagens do que de discursos. E sobretudo tenho-me

    interessado pela importância crescente das imagens tecnológicas na

    cultura2, sendo esta uma cultura de «comunicação generalizada», no

    dizer de Gianni Vattimo (1991: 12), ou uma cultura da «rede», nas

    palavras de Manuel Castells (2002), depois de Olivier Donnat (1994:

    284) lhe ter chamado «cultura do ecrã» e Lash e Urry (1994: 16) a

    terem caracterizado pelo «paradigma do vídeo». Mas durante umadúzia de anos ensinei Semiótica e Teoria do Discurso. E apenas em

    meados dos anos oitenta, mesmo no princípio da minha carreira aca-

    démica, é que trabalhei com o inquérito e a entrevista, que são, pois,

    para mim, uma espécie de arqueologia do meu modo de trabalhar.

    Para simplificar, direi que o meu território é o dos Estudos Cul-

    turais, nos exactos termos em que Armand Mattelart e Érik Neveu

    (2003) os concebem. Instabilizando fronteiras entre disciplinas aca-

    démicas, o que sempre enformou o meu modo de trabalhar foi a pro-

    dução de um olhar que questionasse as implicações políticas do

    cultural. Nos Estudos Culturais este propósito estende-se da interro-

    gação sobre o modo como o meio social, a idade, o género e a iden-

    tidade ‘étnica’ afectam as relações que estabelecemos com a cultura,

    32

    Moisés de Lemos Martins

    2 O meu mais recente estudo: Martins, M. (2009), «Ce que peuvent les images. Trajet

    de l´un au multiple», Les Cahiers Internationaux de l´Imaginaire, 1: CNRS, pp. 158-162.

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    à indagação sobre o modo de compreender a recepção dos conteúdos

    dos média (programas televisivos, matérias da imprensa, filmes, pu-blicidade) pelos diversos públicos, passando pela larga indagação

    sobre os estilos de vida, próprios da sociedade de consumo, uma so-

    ciedade globalizada e marcada pela experiência electrónica.

    Vou inspirar-me no texto de Roland Barthes (1987) «Ao Semi-

    nário / no Seminário» para dar o tom à proposta que entendo fazer-

     vos. Vou, pois, falar do meu ofício e do modo como o exerço. Estive,

    há tempos, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa Conferência

    sobre «A Regulação dos Média», organizada pela Entidade Regula-

    dora para Comunicação Social (ERC). Apresentei e comentei um es-

    tudo feito por sociólogos, intitulado Estudo de Recepção dos Meios de

    Comunicação Social (2008). Foram seus autores principais os Profes-

    sores José Rebelo, Cristina Ponte e Isabel Ferin.

    O estudo deu conta de uma sondagem nacional feita sobre a re-

    cepção dos média. Aplicou inquéritos a alunos de escolas da grande

    Lisboa. Está, portanto, polvilhado de mapas e gráficos. E tem muitasobservações de cariz etnográfico, autorizadas pela utilização da me-

    todologia dos grupos de foco, que é feita a imigrantes e a idosos. Os

    investigadores são sociólogos experimentadíssimos na sua arte, sabem

    do seu ofício e têm um grande traquejo em estudos desta natureza.

    Este estudo sobre a recepção dos média pelos portugueses em

    geral, e também por segmentos específicos da população, desi-gna-

    damente crianças e jovens, idosos e imigrantes, colocou-me a mim,pessoalmente, perante um aliciante desafio, sendo eu um investigador

    da comunicação, como aliás os autores do estudo que eu analisei.

    Pus-me a pensar em algumas das conclusões a que tenho che-

    gado em vinte anos de investigação sobre os média e confrontei-me

    com as conclusões do estudo. Uma das questões que me tenho colo-

    cado tem sido a de interrogar a relação que os actores sociais têm com

    os média, seja os média clássicos (imprensa, rádio e televisão), sejaos novos média digitais (Internet, ciberjornalismo, blogues, etc). E

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    Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

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    era essa, também, exactamente, uma das questões que me colocava o

    estudo: que relação têm os distintos públicos com os distintos média?Que usos lhes dão? O que é que pensam deles? O que esperam deles?

    Como é que se sentem afectados por eles? Sentem-se muito ou pouco

    satisfeitos com eles?

    Tanto eu como os investigadores deste estudo interrogamos práticas

    sociais. Mas não o fazemos da mesma maneira. Quando falamos de prá-

    ticas sociais, somos por regra confrontados com dois modelos de acção

    social, que constituem outros tantos modos de inscrever as práticas no

    tempo da comunidade. Por essa razão, nem sempre são de bom conví-

     vio, embora pudessem e devessem saber coabitar pacificamente.

    2. A cinética do mundo e a construção do olhar

    Um dos modelos de acção social insiste na ideia de que o indiví-

    duo é autónomo, livre e racional. E é este, sem dúvida, o modeloadoptado pelos investigadores que referi. Mesmo «públicos sensíveis»,

    como as crianças e os jovens, os idosos e os imigrantes, que tantas

     vezes têm visto ser coarctada, ou então ignorada, em todo o caso di-

    minuída, a sua capacidade de acção autónoma, livre e racional, são

    neste estudo perspectivados em termos activos, com ideias próprias

    sobre a realidade social e como participantes e contribuintes na es-

    truturação dessa mesma realidade.Mas existe um outro modelo de acção social. Esse modelo arti-

    cula as nossas acções com um quadro de constrangimentos histórico-

    sociais que nos são impostos. E tem sido esse o meu caminho.

    Inscrevo-me na grande tradição historiográfica de Fernand Braudel

    (1985) e sociológica de Georges Gurvitch (1955), que pensam as prá-

    ticas humanas por relação à temporalidade, que é na verdade o seu

    grande escultor, como diria Marguerite Yourcenar. As práticas huma-nas têm um tempo local, que é o tempo da experiência. Podemos

    34

    Moisés de Lemos Martins

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    dizê-lo com as palavras de Nietzsche, o tempo da «intempestividade»,

    o tempo que está em acto, o «inactual» (1988), e também o tempodas micro-narrativas (Lyotard, 1979), ou então, com as palavras de

    Foucault (apud Eribon, 1991: 45), o tempo biográfico: o tempo do

    nosso embate com as coisas, com os outros e com nós mesmos. As

    práticas humanas têm também um tempo contextual, o tempo de um

    dado campo social, com relações de força que correspondem a posi-

    ções sociais assimétricas dos actores sociais, a posições de mais ou

    menos poder num dado campo social. Entre o tempo da experiência

    e o tempo contextual anda o tempo da prática, ou seja, os constran-

    gimentos da prática, a que se referem, entre outros autores, Wittgens-

    tein (1995: I 202), que lhe chamou regras da prática: «“seguir uma

    regra” é uma praxis». Também Jacques Bouveresse (2003: 140- -141)

    lhe é sensível ao assinalar a «prisão invisível» a que a prática está su-

     jeita. E no mesmo sentido abonam André Joly (1982: 117) ao consi-

    derar uma «consciência pragmática», Anthony Giddens (1990: 278,

    280) ao referir uma «consciência prática» e Pierre Bourdieu (1972)ao insistir num «sentido prático».

    Tenho seguido a hipótese de que as práticas são determinadas

    por um «campo de forças sociais» (Bourdieu), e também por «estados

    de poder» (Foucault), que são forças sociais reificadas, forças sociais

    feitas instituição. Ou seja, as práticas sociais ocorrem no interior de

    uma estrutura com uma lógica social específica, onde se jogam, como

     já referi, relações sociais assimétricas, de mais ou menos poder, ocu-pando os indivíduos determinadas posições de força. No entanto, é o

    conhecimento da natureza e do modo de funcionamento das insti-

    tuições, assim como o conhecimento dos mecanismos que governam

    os fenómenos culturais, que dão aos actores sociais uma possibilidade

    real para modificarem as suas ideias, atitudes e práticas.

    Ou seja, pensando agora no caso dos usos que fazemos dos

    média, dos modos como os imaginamos e das expectativas que temosrelativamente a eles, o meu questionamento difere do dos autores do

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    estudo, uma vez que parte de uma interrogação sobre o quadro actual

    de constrangimentos que nos são impostos, ou seja, parte das regrasda prática.

    Este quadro de constrangimentos, por sua vez, não é dissociável

    daquilo a que chamo «tempo global», que é o tempo da «sociedade

    em rede», o tempo da «economia-mundo» (Wallerstein), o tempo da

    globalização. Uma pergunta, todavia: que quadro de constrangimen-

    tos globais são esses que enquadram a prática? Que regras são essas?

    Assinalo, por um lado, a importância crescente daquilo a que Mário

    Perniola chama «ordem sensológica»; assinalo também a implantação

    de uma sociedade de «meios sem fins» (Agamben); e assinalo ainda

    a actual cinética do mundo, um movimento de «mobilização infinita»

    para ao mercado global, como se lhe refere Peter Sloterdijk.

    Passo a explicitar.

    2.1. Considero que a nossa prática social não é dissociável daquilo

    a que Mário Perniola chama a “ordem sensológica” (1993), que seimpõe à antiga «ordem ideológica», com a sensibilidade e as emo-

    ções a levarem a melhor sobre as ideias e com a bios a misturar-

    se com a techné , podendo falar-se hoje, por exemplo, no

    sex-appeal do inorgânico (Perniola, 2004)), num processo acele-

    rado de estetização geral da existência humana, com toda a expe-

    riência a constituir-se em «experiência sensível». A nossa

    atmosfera é cada vez mais sensitiva e libidinal, com a emoção, odesejo, a sedução e a pele a constituírem-se como valores preva-

    lecentes na nossa cultura. Derrick de Kherckhove (1997) fala

    mesmo, neste contexto, de uma pele tecnológica.

    2.2. Somos hoje também uma sociedade de «meios sem fins»,

    como diz Giorgio Agamben (1995), depois do afundamento das

     verdades tradicionais, da quebra da confiança histórica e da des-locação civilizacional da palavra para a imagem, ou para o ecrã.

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    Moisés de Lemos Martins

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    «Meios sem fins», «história sem Génese nem Apocalipse», uma

    história presenteísta, ou seja, uma história sem teleologia, que jánão caminha para um fim, e também uma história sem escato-

    logia, sem redenção.

    Duas ilustrações sobre este constrangimento da prática, em que

    a sociedade é de «meios sem fins».

    A primeira ilustração tomo-a do poeta austríaco Paul Celan

    (1996). Em o Meridiano, Celan assinala que nós somos seres do

    tempo e que ao tempo três acentos lhe convêm: o agudo da ac-

    tualidade (o tempo do nosso confronto como outro e com as coi-

    sas); o grave da historicidade (o tempo da nossa responsabilidade

    pela permanência do sentido de comunidade); e o circunflexo -

    que é um sinal de expansão tempo - da eternidade (o tempo da

    promessa, que nos arranca à imanência). Simplesmente, o pro-

    blema está em que nos encontramos hoje com todos os acentos

    em falta. A cota da cidadania baixou consideravelmente; o sen-

    tido de comunidade diluiu-se e perdeu para o tribalismo; e os ci-dadãos surgem esgazeados pelo vórtice da velocidade e a

    funcionam cada vez mais como consumidores.

    A segunda ilustração de que o nosso tempo deixou de ser o lugar

    da realização de um propósito narrativo, de um propósito de

    emancipação histórica, de redenção, está bem explícito em O

    Homem sem Qualidades, a monumental obra de Robert Musil

    (2008), que acaba de ser reeditada, em português, pela Dom Qui-xote (com prefácio, comentário e notas de João Barrento). A

    principal personagem da obra, Ulrich, tem consciência de que

    em nenhuma época como na nossa foi acumulado tanto conhe-

    cimento. Mas igualmente em nenhuma época como na nossa os

    homens se sentem tão incapazes de intervir no curso da história.

    E Ulrich somos nós.

    A nossa época vê alterada, deste modo, a sua natureza, de umaestrutura dramática (de contradições com uma síntese reden-

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    Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

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    tora) para uma estrutura trágica (de contradições sem happy 

    end ). É esse o sentido do «regresso do trágico», de que fala Mi-chel Maffesoli (2000), numa das suas obras recentes, L’Instant 

    éternnel. Le retour du tragique dans les sociétés post-modernes.

    2.3. Existe ainda uma outra regra que se impõe à prática e que

    eu gostaria de convocar aqui. Refiro-me ao facto de o humano

    estar a ser investido, acelerado e mobilizado, pela tecnologia, para

    um mercado global. Já nos anos trinta do século passado, Ernest

    Yünger assinalara que a época estava a ser mobilizada pela tec-

    nologia. Usava então uma metáfora bélica. Entretanto, Peter Slo-

    terdijk (2000) fala hoje de uma «mobilização infinita». Esta

    mobilização infinita para o mercado global, através da tecnolo-

    gia, vai colocar o humano numa crise permanente.

    A conjugação destas regras da prática, ou por outra, destes cons-

    trangimentos (relembro-os, ordem sensológica, sociedade de

    meios sem fins, mobilização infinita do humano para o mercado)produz nos actores sociais o cérebro de indivíduos empregáveis,

    competitivos e performantes.

    E eu diria que é essa hoje a nossa condição. O «rei clandestino»

    da nossa época (Simmel), ou seja, as grandes regras da prática são,

    em síntese, o mercado global e o pensamento da técnica. E como con-

    sequência do entendimento que faço deste quadro de constrangimen-tos, em que as tecnologias da informação suportam o mercado global

    e as biotecnologias fantasiam melhorar a vida humana, concluo pela

    «crise permanente do humano», que o mesmo é dizer, crise perma-

    nente da cultura, com a crise da razão histórica, ou seja, a crise das

    grandes narrativas (Lyotard: 1979), e também a crise do narrador

    (Benjamin: 1992), e as consequentes crise da verdade e o “empobre-

    cimento da experiência”.

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    Moisés de Lemos Martins

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    3. A modernidade trágica

    Como já assinalei, o estudo que analisei centra a atenção na ca-

    pacidade de acção autónoma, livre e racional do actor social. Sem dú-

     vida uma capacidade com gradações diversas, que se distinguem por

    faixas de idade específicas, por diferentes localidades, graus de esco-

    laridade e diferenças de género, e mesmo por nacionalidade. No es-

    tudo que eu analisei, essa capacidade tem ainda outros cambiantes

    gradativos, assim nós estejamos a falar de jovens dos 14 aos 18 anos,

    de idosos de mais de sessenta e quatro anos, ou de imigrantes. Penso

    que a referência a «contextos sociais», que existe neste estudo, não faz

    dos «contextos sociais» o equivalente daquilo que eu considero como

    «regras da prática», como constrangimentos estruturais da acção hu-

    mana. E está aí, a meu ver, uma distinção de monta na perspectivação

    da realidade social.

    Dado então o exemplo que eu tomo aqui, que é o de a pesquisa

    dos média adoptar distintos modelos de acção social, vou levar umbocadinho mais longe as minhas considerações, antes de concluir esta

    comunicação. Eu entendo, sem dúvida, que as práticas dos indivíduos

    ocorrem e variam com específicas condições de tempo, lugar e inter-

    locução (idade, género, escolaridade, nacionalidade…). É essa, como

    aliás assinalei, a linha condutora dos autores do estudo, em quase qua-

    trocentas páginas, através de sondagens, inquéritos, entrevistas e gru-

    pos de foco. Mas as minhas escolhas metodológicas, que sãodiferentes, conduzem- -me a uma conclusão que também me parece

    importante, tanto na análise do usos que fazemos dos médias, como

    na análise das ideias que temos sobre eles, e ainda, na análise das ex-

    pectativas que temos relativamente a eles. Refiro-me à consideração

    do ‘tempo global’, a que Fernand Braudel e Georges Gurvitch chama-

    ram “tempo longo”, uma temporalidade que caracteriza as estruturas

    económicas, simbólicas e culturais duráveis da sociedade e que afectaas regras da prática.

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    Na perspectiva adoptada pelo estudo dos meus colegas sociólo-

    gos, o ponto de partida é a razão soberana de indivíduos autónomose livres, num tempo contextual, seja de adultos, ou então de crianças,

     jovens, idosos e imigrantes. Nos termos da orientação que tem sido

    a minha, o ponto de partida é o ‘tempo global’, um tempo sensológico,

    de simulacros, de meios sem fins, de mobilização infinita, um tempo

    trágico. Utilizo estas metáforas com carácter heurístico, ou para falar

    como Max Weber, com o carácter de tipos ideais.

    Penso que é, de facto, pela consideração de um conjunto de cons-

    trangimentos globais que se aplicam às regras da prática, que existe

    em Walter Benjamin (1982: 173) essa ideia de que os média esgotam

    a actualidade em novidade, em simulacro do novo, com o quotidiano

    transformado na presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante

    que o nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele.

    E é pela mesma razão, que vemos Guy Debord insistir no cres-

    cente processo de anestesiamento da vida, um processo de congelação

    dissimulada do mundo (Debord, 1991: 16), esgotando-se este em es-

    pectáculo e euforia, meros simulacros, que não passam de “guardiões

    do sono” da razão, para falar ainda como Guy Debord (1991: 16)3.

    Também Norbert Elias viu na excitação uma característica da so-

    ciedade actual, depois de Nietzsche já haver assinalado, há mais de

    um século, o sobreaquecimento do mundo pelo eco de um jornal,

    pensamento que é, aliás, retomado por McLuhan, quando se refere

    ao aquecimento e ao arrefecimento dos média, e ainda por Maffesoli,

    40

    Moisés de Lemos Martins

    3 A ideia de “crise da experiência” começa por ser referida em Benjamin no seu textosobre “O narrador” e parece hoje em fase imparável pela aceleração tecnológica donosso tempo. Agamben fala da impossibilidade em que nos encontramos, hoje, denos apropriarmos da nossa condição propriamente histórica, o que torna “insupor-tável o nosso quotidiano” (Agamben, 2000: 20). Perniola, por sua vez, ao caracteri-zar a experiência contemporânea, introduz o conceito de “já sentido” e interroga-sesobre o sex appeal do inorgânico, que tem tanto de fascinante como de inquietante

    (Perniola, 1993, 2004). Quanto a Baudrillard, conhecemos o seu conceito de reali-zação do real como simulacro (Baudrillard, 1981).

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    ao assinalar a efervescência social, a euforia, processo esse em que

    participam os média.Eu próprio, ao valorizar as regras da prática, formulei em tempos

    a ideia de que os média são «o pensamento da nossa modernidade

    trágica», que recita sempre o mesmo melancólico conto da perma-

    nente hemorragia do humano (Martins, 2002 a).

    Para não concluir

    Foi para mim, como assinalei, um aliciante desafio poder apre-

    sentar aqui, ainda que de forma sucinta, o meu ponto de vista sobre

    metodologias de investigação da cultura. É verdade que o meu en-

    tendimento é feito de convicções fortes. Mas não fecha os olhos nem

    ignora outras ferramentas, mais explicativas do que compreensivas,

    é certo, mais viradas para a estática social do que para a dinâmica,

     para utilizar as clássicas categorias de Comte e Gurvitch, mais in-

    teressadas por aquilo que no social é coisa e estado de coisa, ou seja

    instituição, e não tanto processo, relação, movimento, ou seja, corpo.

     Mas todo o verdadeiro processo hermenêutico, sabemo-lo desde

    Dilthey e Schleiermacher, vive da tenção que explicar e compreender 

    estabelecem entre si. Por opção metodológica, podemos acentuar 

    mais o processo explicativo, do que o compreensivo. Ou então o in-

    verso, acentuar mais a compreensão do que a explicação. O que não podemos nunca é dispensar um pólo do movimento hermenêutico

    em favor do outro4.

    41

    Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

    4 Em 2002, desenvolvi este ponto de vista em A linguagem, a verdade e o poder , espe-cificamente nas pp. 145-163.

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    42

    Moisés de Lemos Martins

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    Para uma etnograa dos públicos em acção

    João Teixeira Lopes1

    No momento actual de desenvolvimento da Sociologia da Cul-

    tura exige-se o exercitar da imaginação metodológica no estudo dos

    públicos. Antes de mais, porque os instrumentos estritamente quan-

    titativos, apesar da grande vantagem de fazerem sobressair determi-nações, regularidades e comparações, negligenciam, por generalismo,

    as trajectórias individuais e dos micro-grupos.

    Importa, por conseguinte, na conciliação entre quantitativo e

    qualitativo, exigência, aliás, do próprio cariz relacional do objecto de

    estudo em causa, construir observatórios de públicos in situ, capazes,

    numa primeira fase, de construir tipos-ideais e perfis (como de resto

     já acontece entre nós, particularmente nos estudos do Observatório

    das Actividades Culturais), para, numa segunda fase, proceder à ca-

    racterização etnográfica dos modos antropológicos de recepção dos

    públicos em formação, para além do necessário mas insuficiente co-

    nhecimento sociográfico, seguindo o princípio defendido por Madu-

    reira Pinto: “procurar conciliar, na organização global da pesquisa,

    isto é, em todo o ciclo que vai da problematização teórica até à fase

    da observação, extensividade e intensividade, por esta ordem (e su-

    blinho: “por esta ordem” ) (...) acredito que a análise conduzida à escalamacro e meso segundo procedimentos de natureza mais extensiva,

    convencionalmente associados à sociologia, tem precedência lógica

    e teórica sobre os procedimentos observacionais ditos «etnográficos»

    (Pinto, 2004: 26).

    Dito isto, a etnografia dos públicos em acção permitirá, assim o creio,

    restituir à sociologia dos modos profanos de recepção, particularmente

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    1 Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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    no que respeita às dimensões corporais, emocionais e afectivas, tantas

     vezes mitigadas ou mesmo silenciadas.Ao falarmos de apropriações e de modos de relação com a cultura

    entramos, já, na rejeição do modelo behaviourista do estímulo/re-

    flexo, pressupondo-se a existência de um agente social implicado na

    (re)produção das estruturas e não um reactor sonâmbulo, um alegre

    robot ou uma marioneta. O receptor cultural, neste sentido, é mais

    um praticante cultural do que um consumidor.

    Será importante, a este respeito, relembrar aos alunos a teoria da

    estruturação de Anthony Giddens e o próprio conceito de agência.

    Aliás, que fique bem claro: o receptor potencialmente apto a reinter-

    pretar mensagens e seleccionar sentidos não é o «novo herói da cul-

    tura» de que nos fala Mike Featherstone. Pelo contrário, pretendo

    referir-me a uma das características ideais-típicas do sujeito social

    contemporâneo.

    Por outro lado, é fundamental partirmos do conceito de art world 

    para compreendermos a cadeia de implicados na produção da obracultural, esticando tal pressuposto até ao receptor. Assim, defendo o

    cariz incompleto, indeterminado e aberto das obras culturais, na es-

    teira de Umberto Eco (Eco, 1989). Mais ainda: o facto de as obras cul-

    turais serem virtualmente ambíguas e plurívocas (tanto na forma

    como no conteúdo - ou não fossem as grandes revoluções formais

     verdadeiras revoluções totais, em que a forma é conteúdo...) é uma

    das condições do próprio agir comunicacional, possibilitando um en-riquecimento do jogo de expectativas e dos próprios mapas culturais

    e simbólicos dos sujeitos.

    Andrea Press relaciona as mudanças na estrutura social com a

    diversificação dos públicos e, consequentemente, dos modos e perfis

    de recepção. A multiplicação de exemplos que esta autora fornece

    será de enorme utilidade para a dinâmica pedagógica (Press, 1994).

    Situemo-nos no já célebre estudo de Radway, Reading the Romance(Radway, 1991). Verdadeiro marco dos Cultural Studies, permitiu um

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    João Teixeira Lopes

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    salto qualitativo no modo de entendimento de como os leitores interfe-

    rem na determinação dos significados textuais, opondo resistência, nãoraras vezes, aos sentidos dominantes. No caso das mulheres, em parti-

    cular, a leitura do romance permitia uma fuga às rotinas dos modelos

    patriarcais de família, criando espaços-tempos de maior autonomia.

    De igual modo, os estudos de Long clarificaram o acto de recep-

    ção como terreno de luta simbólica, envolvendo complexas disputas

    entre as indústrias culturais, os críticos e os públicos. De facto, apesar

    da importância da autoridade cultural na selecção de livros, a inter-

    pretação funciona claramente como resistência ao discurso preten-

    samente soberano dos críticos. Apesar dos parâmetros pós-modernos

    destes últimos, os receptores (de livros, de filmes, de séries televisivas)

    tendem a organizar os seus universos de referência por coordenadas

    «pré-pós-modernas», identificando-se com certas personagens, acre-

    ditando, por vezes, na verosimilhança de cenários e ficções, etc.

    Lichterman é outro dos mais conhecidos estudiosos da recepção

    cultural. Os seus estudos no âmbito da thin culture (superficial, li-geira...), em particular no que respeita aos chamados livros de auto-

    suporte, revelaram que os leitores avaliam os ensinamentos e

    conselhos de forma ambivalente e selectiva, misturando tais sugestões

    com outras referências mediáticas e mesmo experiências pessoais.

    Aliás, este estudo permitiu questionar o muito em voga conceito de

    comunidade interpretativa, já que, na mescla de experiências, mundos

    da vida e papéis sociais, os receptores acabam por circular entre váriascomunidades interpretativas, criando repertórios sincréticos.

    Em suma, apesar de fortes constrangimentos ligados quer à ri-

    gidez da doxa dos campos culturais, para nos situarmos em linha com

    Bourdieu, quer à fixidez de determinadas instâncias, maxime agências

    de consagração/legitimação arbitrária de um sentido único para as

    obras culturais, o ofício de receptor revela-se como um processo ac-

    tivo e criativo, mantendo uma relação complexa e ambivalente comas estruturas do poder.

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    Para uma etnograa dos públicos em acção

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    Hans Robert Jauss, teórico da escola de Konstanz, coloca-se nos

    antípodas de Adorno e Horkheimer. Estes defendem claramente quea verdadeira arte é incomunicável (Adorno e Horkheimer, 1993). Ao

    percebê-la, perdemos o sentido crítico e emancipador, já que é ne-

    cessário um véu de resistência a qualquer mecanismo de empatia,

    projecção ou identificação, tidos como alienantes. Stefan Collini (Col-

    lini, 1993) fala mesmo nos «seguidores do véu», uma espécie de her-

    metismo ou gnosticismo contemporâneo para quem o essencial é não

    ter compreendido. Adorno é, a este respeito, taxativo: “ a arte só é ín-

    tegra quando não entra no jogo da comunicação”. Eco, ironicamente,

    caracteriza os novos gnósticos como aqueles que sentem que “cada

    camada removida ou cada segredo desvendado é sempre a antecâ-

    mara de uma verdade ainda mais ardilosamente oculta”. Ora, como

    defende Jauss (Jauss, 1978), a recepção contemporânea de uma dada

    obra cultural acciona um conjunto de comparações com as obras an-

    teriores, bem como com a evolução do género em que se enquadra e

    com a experiência de vida do receptor.Defendo que esta definição permite uma dupla abertura: por um

    lado, assinala a necessidade de familiaridade com a estrutura da obra,

    o que evita abordagens ingénuas. Por outro lado, dignifica a história

    de vida do sujeito, o seu habitus, as suas experiências e a própria frui-

    ção enquanto constitutiva da função social da arte, assente na comu-

    nicação e na Poiesis: “sentir-se deste mundo e em casa neste mundo”

    (Jauss, 1978: 143). Não se coíbe, pois, o autor em elogiar a experiênciaestética, nem, tão-pouco, as categorias que mobilizam perceptiva e

    cognitivamente os públicos. Ela deve, na verdade, mergulhar “ao nível

    da identificação (...) espontânea que toca, que perturba, que causa

    admiração, que faz chorar ou rir por simpatia e que apenas o sno-

    bismo pode considerar como vulgar” (Idem: 161).

    A experiência estética não renuncia, por isso, à linguagem, verbal

    ou não-verbal, corpo expressivo, comunicante, produtor de sentidoe não apenas mera inscrição ou interiorização das marcas das estru-

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    João Teixeira Lopes

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    turas. O gesto, o olhar, o riso, o choro, a ampla vastidão do sensível e

    da exteriorização da subjectividade socializada são, então, sinais dessamobilização estética. As disposições afectivas – a «estrutura de senti-

    mento», na expressão de Williams, existem, pois, como elementos

    constituintes do horizonte de expectativa, conceito que Jauss utiliza

    para se referir ao “sistema de referências (do receptor) objectivamente

    formulável”. E que lhe permite, aliás, tecer duras críticas a um certo

    tipo de produção cultural que apelida de arte culinária, por corres-

    ponder inteira e pacificamente ao horizonte de expectativas do re-

    ceptor – consideração que, a meu ver, o aproxima, agora, da Escola

    de Frankfurt, pois tem subjacente um a priori sobre a arte, enquanto

    inquietação, subversão e transcendência do que existe. Mas opõe-se,

    com igual veemência, como vimos, à arte que resiste à interpretação

    e à comunicação geradora de experiências sociais – socializadoras.

    Devo acrescentar, no entanto, que qualquer abordagem sobre a

    recepção ficará incompleta sem uma teoria do habitus pessoal e de

    classe e sem uma sociologia dos públicos da cultura. O stock deaprendizagens do receptor, a sua história, pessoal e social, cruzam-se

    com contextos mais vastos de constrangimentos e recursos. Jacques

    Leenhardt coloca o dedo na ferida ao considerar: “os muitos parâme-

    tros de um público dependem dos caracteres fundamentais dos gru-

    pos ou das classes a partir dos quais se definem”. Acrescenta, ainda:

    “o público é uma estrutura social secundária ou dependente (...)

    nunca existe em si mesmo, duplica apenas um recorte sociológico declasses ou de grupos” (Leenhardt, 1982:73).

    No entanto, apenas posso concordar parcialmente com o autor.

    Se me parece correcto afirmar que um público não existe num vazio

    social mas sim em estreita conexão com a estrutura social e uma ma-

    triz de desigual distribuição de recursos linguísticos, perceptivos e

    cognitivos; se, igualmente, sou contra a reificação do conceito, já que

    um público existe, a meu ver, virtualmente, sendo mobilizado em con-textos e circunstâncias concretas e empiricamente observáveis; tam-

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    Para uma etnograa dos públicos em acção

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    bém me parece, todavia, que a circulação reflexiva de sentido, o con-

    texto de recepção, nomeadamente nas suas componentes espaciais einteraccionais (indissociavelmente ligadas) e a própria estrutura se-

    mântica e estilística da obra constituem variáveis da maior importân-

    cia, sem esquecer, naturalmente, os canais e filtros institucionais

    intermediários (instâncias de difusão e de consagração). Jacques Lee-

    nhardt, uma vez mais: “é pois necessário interrogar os caracteres ge-

    rais do que é recebido pelo público se quisermos compreender a razão

    por que determinado objecto se torna assimilável como objecto de

    arte”. E a ênfase, clara, no poder (desigual) dos públicos: “É o público

    que o «faz» quando reconhece que este último responde às exigências

    requeridas pelo código. Se esta consagração não chega, desaparece o

    livro, desprega-se a tela, esquece-se a música. O público é, assim, a

    instância social que decide, em último lugar, como São Pedro, se se

    pode ou não entrar no Paraíso! Mas os paraísos são tão numerosos

    como os públicos! É que o público, no domínio da arte, não ajuíza a

    partir de uma faculdade de juízo estético motivado, mas a partir deum gosto” (Idem: 74).

    Importa, por isso, renovar a nossa abordagem metodológica no

    que se refere à observação dos públicos. Como captar as diferentes

    atitudes estéticas e distintas representações simbólicas sobre um es-

    pectáculo, um quadro ou um livro, de “tipo mais teatral e co