Caminhos Da Saude Publica No BR Livro

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Caminhos da sade pblica no BrasilJacobo Finkelman (Org.)

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros FINKELMAN, J., org. Caminhos da sade no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 328 p. ISBN 85-7541-017-2. Available from SciELO Books .

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com emoo e alegria que introduzo os leitores a este belo documento que registra as relaes da Organizao PanAmericana de Sade (OPAS) com nosso pas nos ltimos cem anos. Criada em 1902, contempornea, portanto, Fundao Oswaldo Cruz, a OPAS tem sua trajetria profundamente vinculada s vicissitudes, erros, acertos, esperanas e, tambm, aos fracassos e problemas dos sistemas de sade do continente americano. importante salientar que a documentao que nos traz Caminhos da Sade Pblica no Brasil mostra que a contribuio da OPAS com o pas e deste com a Organizao foi algo que modernamente se denomina "um caso de sucesso". Nsia Trindade Lima, Joo Baptista Risi Junior, Roberto Passos Nogueira e Otvio Azevedo Mercadante lideram os grupos que prepararam os textos sobre a trama de parcerias, mtuo respeito e cooperao que caracterizaram durante este sculo de existncia o Brasil e a OPAS; sobre a evoluo das condies de sade do pas ao longo deste tempo e sobre a evoluo do nosso sistema pblico de sade. No so apenas autores analisando uma histria, mas protagonistas desta mesma histria em tempos, posies e funes diversas. Os textos que abrem este livro, de Sir George Alleyne, diretor da OPAS, e Jacobo Finkelman, representante da Organizao

Caminhos da Sade Pblica no Brasil

FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Marchiori Buss Vice-Presidente de Desenvolvimento Institucional, Informao e Comunicao Paulo Gadelha EDITORA FIOCRUZ Coordenador Paulo Gadelha Conselho Editorial Carlos E. A. Coimbra Jr. Carolina M. Bori Charles Pessanha Jaime L Benchimol Jos da Rocha Carvalheiro Jos Rodrigues Coura Luis David Castiel Luiz Fernando Ferreira Maria Ceclia de Souza Minayo Miriam Struchiner Paulo Amarante Vanize Macedo Coordenador Executivo Joo Carlos Canossa P. Mendes

ORGANIZAO PAN-AMERICANA DA SADE Comit Editorial do Centenrio Presidente Jacobo Finkelman Comit Editorial Carlos Wilson de Andrade Filho Jos Carvalho de Noronha Maria Regina Fernandes de Oliveira Mrio Scheffer Milton Thiago de Melo Nsia Trindade Lima Paulo Henrique de Souza Ren Dubois

Jacobo FinkelmanOrganizador

Caminhos da Sade Pblica no Brasil

Copyright 2002 dos autores Todos os direitos desta edio reservados FUNDAO OSWALDO CRUZ/EDITORA e ORGANIZAO PAN-AMERICANA DA SADE/ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE

ISBN: 85-7541-017-2

Capa, Projeto Grfico: Carlota Rios e Gordeeff Editorao Eletrnica: Ramon Carlos de Moraes Reviso: Fernanda Veneu, Fani Knoploch e Janaina de Souza Silva Superviso Editorial: Maria Cecilia G. B. Moreira

Catalogao-na-fonte Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho F499c Finkelman, Jacobo (Org.) Caminhos da sade pblica no Brasil. / Organizado por Jacobo Finkelman. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 328p. ilus., tab., graf., mapas 1. Poltica de sade-Brasil. 2. Organizao Pan-Americana da Sadehistria. 3. Sistema de sade-Brasil. I. Ttulo. CDD-20.ed.-362.1 2002 Editora Fiocruz Av. Brasil, 4036 - 1 andar - sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ Tels.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 http://www.fiocruz.br/editora e-mail: [email protected]

AUTORES E COLABORADORESJacobo Finkelman (Organizador) Mdico, mestre em sade pblica e administrao em sade, representante da Organizao PanAmericana da Sade (OPAS) no Brasil [email protected]

CAPTULO 1

Nsia Trindade Lima Cientista social, doutora em sociologia, pesquisadora e diretora da Casa de Oswaldo Cruz da Fundao Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ) e professora de sociologia da Universidade do Estado doRio de Janeiro (UERJ)

[email protected] Contribuies Abel Laerte Parker Administrador, mestre em biblioteconomia e cincia, diretor do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informao em Cincias da Sade (BIREME/OPAS) [email protected] Eduardo Correa Melo Mdico veterinrio, mestre em administrao e em planificao em sade animal, diretor do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA/OPAS) [email protected]

CAPTULO 2

Joo Baptista Risi Junior (Coordenador) Mdico, com especializao em vigilncia epidemiolgica, coordenador do Projeto de Informao em Sade da OPAS [email protected] Roberto Passos Nogueira (Coordenador) Mdico, doutor em sade coletiva, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) e do Ncleo de Estudos em Sade Pblica da Universidade de Braslia (NESP/UnB) [email protected] Colaboradores Adelemara Mattoso Albnzi Estatstica, tcnica da Diviso de Epidemiologia e Vigilncia do Instituto Nacional de Cncer (INCA) do Ministrio da Sade [email protected] Andr Monteiro Alves Pontes Engenheiro de minas e de sade pblica, mestre em sade pblica, assistente de pesquisa do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes (CPqAM) da FIOCRUZ [email protected] Antonio Carlos Silveira Mdico, com especializao em sade pblica, consultor temporrio da OPAS [email protected] Carlos Antonio Pontes Engenheiro civil, mestre em engenharia sanitria, pesquisador visitante do CPqAM/FiocRuz [email protected] Celso Cardoso Simes Demgrafo, doutor em demografia, pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estattica (IBGE) [email protected] Eduardo Hage Carmo Mdico, doutor em epidemiologia, coordenador geral de Vigilncia Epidemiolgica do Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI) da Fundao Nacional de Sade (FUNASA) do Ministrio da Sade [email protected] Fernando Ribeiro de Barros Mdico, mestre em sade pblica, coordenador de Vigilncia de Doenas de Transmisso Respiratria do CENEPI/FUNASA/Ministrio da Sade [email protected]

Germano Gerhardt Filho Mdico, com especializao em pneumologia, professor adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) [email protected] Gerson Fernando Mendes Pereira Mdico, mestre em epidemiologia, coordenador nacional da rea tcnica de Dermatologia Sanitria do Ministrio da Sade [email protected] Ines Lessa Mdica, doutora em medicina, professora da Ps-Graduao do Instituto de Sade Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) [email protected] Jarbas Barbosa da Silva Junior Mdico, mestre em sade pblica, diretor do CENEPI/FUNASA/Ministrio da Sade [email protected] Larcio Joel Franco Mdico, livre-docente em medicina preventiva, professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo (USP) [email protected] Marceli de Oliveira Santos Estatstica, mestre em sade pblica, tcnica da Diviso de Epidemiologia e Vigilncia do INCA/ Ministrio da Sade [email protected] Marcelo Medeiros Economista, mestre em sociologia, pesquisador do IPEA [email protected] Marcia Regina Dias Alves Estatstica, bacharel em cincias estatsticas, tcnica da Diviso de Epidemiologia e Vigilncia do INCA/Ministrio da Sade [email protected] Maria Ceclia de Souza Minayo Sociloga, doutora em sade pblica, pesquisadora titular da FIOCRUZ, coordenadora cientfica do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violncia e Sade (CIAVES/FIOCRUZ) e representante regional do Frum Mundial de Cincias Sociais e Sade [email protected] Maria Goretti P. Fonseca Mdica, doutora em sade pblica, epidemiologista da FUNASA/Ministrio da Sade [email protected]

Maria Helena P de Mello Jorge Advogada, doutora e livre-docente em sade pblica, professora associada da Faculdade de Sade Pblica (FSP) da USP [email protected] Maurcio Barreto Mdico, doutor em epidemiologia, professor titular do ISC/UFBA [email protected] Mauro da Rosa Elkhoury Mdico veterinrio, com especializao em sade pblica e epidemiologia, gerente tcnico do Programa de Controle da Raiva do CENEPI/FUNASA/Ministrio da Sade [email protected] Ruy Laurenti Mdico, doutor em medicina e livre-docente em epidemiologia, professor titular da FSP/USP [email protected] Sabina La Davidson Gotlieb Odontloga, doutora e livre-docente em sade pblica, professora associada da FSP/USP [email protected] Valeska Carvalho Figueiredo Mdica, mestre em sade pblica, gerente da Diviso de Epidemiologia e Vigilncia do INCA/Ministrio da Sade [email protected] Zuleica Portela Albuquerque Mdica, mestre em nutrio humana, profissional nacional do Projeto de Promoo deSade da OPAS

zuleica@ bra.ops-oms.org

CAPTULO 3

Otvio Azevedo Mercadante (Coordenador) Mdico, mestre em sade pblica, professor associado da Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo (FCM/Sta.Casa SP) e secretrio executivo do Ministrio da Sade [email protected] Colaboradores Alfredo Schechtman Mdico, mestre em sade coletiva, assessor da rea tcnica de Sade Mental do Ministrio da Sade [email protected]

Bianca Antunes Cortes Enfermeira, doutora em engenharia de produo, pesquisadora associada do Departamento dePesquisa da COC/FIOCRUZ

[email protected] Ermenegyldo Munhoz Jnior Arquiteto e urbanista, com especializao em demografia e planejamento, assessor do secretrio-executivo do Ministrio da Sade gyl.munhoz saude.gov.br Eugnio Vilaa Mendes Odontlogo, doutor em odontologia, consultor independente em desenvolvimento de sade [email protected] Julio Alberto Wong Un Mdico, doutor em sade pblica, supervisor do Programa de Controle do Cncer e seus Fatores de Risco do INCA/Ministrio da Sade [email protected] Marcelo Medeiros Maria do Socorro A. Lemos Mdica, com especializao em epidemiologia e infectologia, consultora tcnica do Projeto de Promoo de Sade da OPAS [email protected] Miguel Malo Serrano Mdico, mestre em sade internacional, coordenador do Projeto de Promoo de Sade da OPAS [email protected] Ricardo Henrique Sampaio Meirelles Mdico, com especializao em pneumologia, sub-chefe da Diviso de Controle do Tabagismo e outros Fatores de Risco de Cncer do INCA/Ministrio da Sade [email protected] Roberto Passos Nogueira Srgio Piola Mdico, com especializao em sade pblica, pesquisador do IPEA [email protected] Solon Magalhes Vianna Odontlogo, livre-docente em sade pblica, consultor do IPEA e membro do Conselho Nacional de Sade [email protected] Valeska Carvalho Figueiredo

IMAGENS

Pesquisa Nsia Trindade Lima (Coordenadora) Cristiane Batista Cientista social, mestre em cincia poltica, assistente de pesquisa da COC/FIOCRUZ [email protected] Fotografias e reproduo das imagens Roberto Jesus Oscar Fotgrafo do Departamento de Arquivo e Documentao da COC/FIOCRUZ [email protected] Vincius Pequeno de Souza Fotgrafo do Departamento de Arquivo e Documentao da COC/FIOCRUZ [email protected]

SUMRIO

Prefcio Apresentao

13 17

1. O Brasil e a Organizao Pan-Americana da Sade: uma histria de trs dimenses Nsia Trindade Lima 2. As Condies de Sade no BrasilCoordenadores

23

117

Joo Baptista Risi Junior e Roberto Passos Nogueira

3. Evoluo das Polticas e do Sistema de Sade no Brasil Otvio Azevedo MercadanteCoordenador

235

Imagens

315

PREFCIO um prazer poder prefaciar Caminhos da Sade Pblica no Brasil, produzido como parte da celebrao do Centenrio da Organizao PanAmericana da Sade(OPAS)

no Brasil. Devo felicitar os que conceberam o

ttulo do livro, pois ele transmite uma forte imagem do que foi o passado e do que o futuro pode ser. Muitos so os caminhos que, quando seguidos, conduzem boa sade, e o conceito de caminho tambm implica que h um comeo, um estado atual e um espao adiante. H um caminho adiante a ser construdo, o qual dever ser melhor que o do passado, pois teremos a vantagem de conhecer as armadilhas e os perigos a serem evitados. Essa imagem apropriada para o conjunto daOPAS.

Na verdade,

quando a Organizao foi fundada em 1902, seu foco de ateno era as doenas infecciosas, e o caminho era claramente direcionado conquista dessas enfermidades, com as ferramentas e os programas ento disponveis. Hoje, reconhecemos que o espectro de doenas que os pases tm de enfrentar mais complexo, como tambm o caminho que tm a seguir. Os pases devem lidar com um verdadeiro mosaico de enfermidades e procurar

as ferramentas apropriadas para abordar, simultaneamente, mltiplos problemas. Estou particularmente feliz de ver a importncia dada promoo da sade, pois acredito que a aplicao astuciosa de estratgias pertinentes representa um meio eficaz para tratar os complexos problemas defrontados na luta para melhorar a sade do povo brasileiro. Durante os ltimos cem anos, a OPAS seguiu diferentes caminhos em sua eterna busca por ser til aos pases da Regio. Houve um tempo no qual a Organizao foi reativa aos problemas de sade dos pases. Hoje o enfoque muito mais proativo, ns cooperamos tecnicamente usando vrias abordagens, apropriadas situao de sade dos pases, individualmente. No h dvida, entretanto, que os caminhos que procuramos e trilhamos esto todos voltados para melhorar a sade dos povos das Amricas, na perspectiva de que essa sade seja distribuda mais equitativamente. importante que livros como este tenham um sabor histrico, no servindo apenas para que as geraes futuras possam reconhecer a luta daqueles que os precederam. tambm importante observar os eventos histricos de sade no contexto de outras circunstncias sociais e apreciar as solues que tiveram de ser buscadas. Com essa anlise, podemos encontrar meios de evitar alguns perigos e avanar mais rapidamente nos caminhos para a melhor sade. A histria dos progressos realizados neste pas importante para as Amricas e, possivelmente, para o mundo. Por seu tamanho, o Brasil apresenta vrios tipos de microrregies, o que, de certa forma, pode ser representativo de quase qualquer pas no hemisfrio. Caminhos da Sade Pblica no Brasil assinala, com singeleza, as diferenas que existem entre as regies do Brasil. Por conta dessa diversidade, organizou-se um sistema de informao capaz de demonstrar a natureza das diferenas e o tipo de sistema de sade que certamente ir reduzir essas brechas. A coragem de estabelecer o sistema nico de sade e, ao mesmo tempo, de rumar para a verdadeira descentralizao, um aspecto histrico deste livro que chamar a ateno de muitos no exterior. Esta coragem e

determinao de que todos os caminhos a serem seguidos conduzem sade so vistas em muitos outros lugares. A OPAS sente orgulho de estar associada produo desta obra e estamos agradecidos aos diversos autores que detalharam a relao deste pas com a nossa Organizao. Orgulhamo-nos dessa relao e poderamos acrescentar numerosos exemplos da participao positiva do Brasil na vida de nossa Organizao. Tenho insistido em que, neste ano do Centenrio, nosso foco no deve estar primariamente dirigido ao que aOPAS

fez, mas sim ao que foi

alcanado na sade nas Amricas, com a assistncia da Organizao. Caminhos da Sade Pblica no Brasil um bom exemplo desse enfoque. Desejo que seja lido e apreciado por muitos, no apenas pelos detalhes que fornece sobre o que ocorreu na sade no Brasil, mas tambm por revelar os homens e as mulheres que fizeram essa histria medida que trilharam os diversos caminhos condutores melhoria da sade.

George A. O. AlleyneDiretor da Organizao Pan-Americana da Sade

APRESENTAOEste livro, que parte das comemoraes do centenrio da Organizao Pan-Americana da Sade(OPAS)

no Brasil, surgiu da idia de elaborar

uma viso ampla daquilo que foi, no decorrer do sculo XX, a evoluo das polticas, os principais programas e o desenvolvimento dos servios voltados para a melhoria da sade dos brasileiros. Pensamos que um livro de tal natureza deveria ir alm do relato histrico e contribuir, de algum modo, para entender melhor o processo gradual de consolidao da sade, entendido como um direito do cidado e um dever do Estado, tal como est expresso na Constituio brasileira de 1988. Com esse propsito, um grupo seleto de autores foi convidado a contribuir com Caminhos da Sade Pblica no Brasil, relatando uma histria muito rica sobre os desafios e as lutas que mudaram os perfis demogrficos e epidemiolgicos do pas. Este livro tem o valor de reunir muitos aspectos histricos significativos, de analisar as tendncias dos principais problemas e dos indicadores de sade e de discutir os principais critrios adotados pela sociedade brasileira para organizar o seu sistema de sade.

Bastaria um exame superficial dos principais indicadores de sade para reconhecer que, ao longo do perodo em estudo, o Brasil fez progressos significativos. A populao total passou de aproximadamente 20 milhes de habitantes, em princpios do sculo XX, para mais de 170 milhes, cem anos depois. mortalidade infantil, estimada para incios do sculo XX em aproximadamente 190 por mil nascidos-vivos, agora de 29,8, como valor mdio nacional. A mortalidade por enfermidades infecto-contagiosas passou de 45,7% do total de bitos, em 1930, para 5,9%, em 1999, e a expectativa de vida mais que duplicou no sculo XX, passando de 33,7 anos, em 1900, para 68,6 anos, em 2000. Assim como o Brasil fez avanos importantes em matria de sade, tambm evidente a persistncia de inegveis problemas estruturais, que determinam profundas desigualdades sociais, includas a as de sade. Embora a mortalidade infantil tenha sido drasticamente reduzida nos ltimos decnios, as diferenas interregionais mostram hoje que, nos estados da regio Sul, com melhores condies de vida, a taxa de 19,7 por mil nascidos-vivos, contra 44,2 na regio Nordeste, onde persistem maiores nveis de pobreza. Tal situao no particular do Brasil, pois, em todos os pases em desenvolvimento, constatam-se diversos graus de iniquidade quanto ao acesso, qualidade e aos resultados dos diferentes programas de sade. Caminhos da Sade Pblica no Brasil aborda como o pas foi capaz de incorporar, na organizao de seus programas de sade, os elementos terico-conceituais emergentes que sustentaram a evoluo de seus paradigmas da sade, considerando os diferentes momentos de seu desenvolvimento social, poltico e econmico. Mostra ainda como esses estgios de desenvolvimento, nacional e regional, influram, por sua vez, na formulao e na transformao das polticas e programas de sade, desde os estgios iniciais, dominados por um modelo de produo orientado exportao de matrias-primas de origem agrcola, passando pela expanso urbano-industrial, at o momento atual, em que o Brasil luta por definir seu espao como protagonista em um mundo de crescente globalizao e interdependncia.

Esta publicao compe-se de trs captulos. O primeiro, 'O Brasil e a Organizao Pan-Americana da Sade: uma histria em trs dimenses', escrito por Nsia Trindade Lima, analisa o desenvolvimento da sade pblica brasileira, a partir das teorias contagionistas em voga nos finais do sculo XIX e do incio da escola bacteriolgica emergente, e de que forma as doutrinas e os embates tericos de ento influram no enorme esforo realizado para controlar as grandes endemias de febre amarela, peste e varola que assolavam o continente americano. Neste captulo tambm se descrevem as relaes entre o Brasil e a OPAS em diferentes momentos, nos quais ambos, o pas e a Organizao, tentavam ampliar as fronteiras da sade, sobretudo durante a primeira metade do sculo XX. dado especial destaque ao papel que cada uma das partes desempenhou nesta parceria e convergncia de interesses, da qual surgiram importantes programas regionais e vrias iniciativas que permitiram ao pas criar e desenvolver instituies que hoje atuam de forma destacada em prol da sade nacional e internacional. Assim, o captulo destaca a criao e o papel que vm desempenhando dois centros pan-americanos sediados no Brasil, institudos por acordos firmados entre a OPAS e o governo brasileiro: o Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA), localizado em Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro, criado em 1951, e a Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), com sede na cidade de So Paulo, criada em 1967. O captulo 2, 'As Condies de Sade no Brasil', coordenado por Joo Baptista Risi Jr. e Roberto Passos Nogueira, apresenta resumidamente a evoluo dos principais indicadores demogrficos e epidemiolgicos, assim como alguns dos determinantes bsicos da sade. So analisadas as tendncias de algumas das doenas transmissveis, entre elas, as que foram erradicadas, algumas que se encontram em fase de declnio, outras que apresentam uma situao epidemiolgica estacionria e, finalmente, certas enfermidades emergentes. Discute-se tambm a crescente importncia das doenas no transmissveis e as novas prioridades em sade, como os problemas derivados dos acidentes e da violncia. Aborda-se ainda o tema das

desigualdades e iniquidades em sade, observado a partir dos diferentes padres epidemiolgicos prevalentes no pas. O terceiro captulo, 'Evoluo das Polticas e do Sistema de Sade no Brasil', coordenado pelo Secretrio Executivo do Ministrio da Sade, Dr. Otvio Azevedo Mercadante, aprofunda alguns dos aspectos relacionados com as origens e transformaes dos sistemas pblicos de sade do Brasil at a criao do Sistema nico de Sade (SUS), em 1990, inspirado nos princpios e valores de universalidade, integralidade e solidariedade, consagrados na Constituio brasileira de 1988, assim como aborda a forma pela qual o SUS evoluiu at a data atual. Fornecem-se, neste captulo, informaes valiosas sobre os recursos disponveis e o papel que o Estado assumiu para garantir o direito sade de todos os brasileiros. Discute-se, tambm, o papel da promoo da sade, a partir das concluses das grandes conferncias mundiais sobre o tema, a fim de tornar ainda mais amplos os horizontes da sade no Brasil. Indicam-se alguns dos desafios a serem considerados na consolidao do SUS, tendo em conta a necessidade de fortalecer operacionalmente a resolutividade e a qualidade dos servios de sade, na medida em que se avana nos processos de descentralizao e regionalizao e, igualmente, na medida em que cresce o nmero de interlocutores e parceiros, demandando um compartilhamento de responsabilidades quanto conduo, prestao e financiamento dos servios de sade no pas. Essas sugestes se sustentam, em parte, em dois exerccios realizados recentemente. O primeiro, apoiado na metodologia Delphi, aplicada peloIPEA

em 2001; e o segundo, organizado em conjunto pelo MinistOPAS,

rio da Sade e pela

em 2002, com base em proposta que detalha as

'funes essenciais da Sade Pblica', seguindo recomendaes aprovadas pelo Conselho Diretor da OPAS. Caminhos da Sade Pblica no Brasil produto do trabalho rduo e dedicado da autora do captulo I e dos coordenadores dos dois outros captulos, e traz a contribuio de inmeras e destacadas personalidades da

sade pblica brasileira, cujos nomes esto referidos em folhas que antecedem esta apresentao. Queremos render tributo e reconhecimento aos doutores Walter Wyman, Rupert Blue, Hugh S. Cumming, Fred L. Soper, Abraham Horwitz, Hector Acuna, Carlyle Guerra do Macedo e George Alleyne, que, com sua viso, coragem e entusiasmo, construram a mais antiga organizao de cooperao tcnica internacional especializada em sade em nvel mundial. Tambm gostaramos de recordar e render homenagem aos que me antecederam como representantes daOPAS

e da OMS no Brasil. Brasil, motivo de grande honra e prestigiada instituio brasi-

Para a Representao da

OPAS no

satisfao que Caminhos da Sade Pblica no Brasil seja co-editado com a parceria da Fundao Oswaldo Cruz(FIOCRUZ),

leira que celebrou seu centenrio no ano 2000. A FIOCRUZ, instituio do Ministrio da Sade, e a OPAS tm histrias convergentes em interesses e desafios. Dedicamos este livro a todos, mulheres e homens, trabalhadores da sade pblica; aos cientistas e gestores, aos funcionrios brasileiros da OPAS e aos de outras nacionalidades, que elegeram, como desafio de vida, lutar pela contnua e permanente melhoria da sade da populao, no Brasil e nas demais regies do continente e do mundo.

O Organizador

1O BRASIL E A ORGANIZAO PAN-AMERICANA DA SADE: UMA HISTRIA EM TRS DIMENSESNsia Trindade Lima

O papel desempenhado pela sade na configurao das relaes internacionais a partir da segunda metade do sculo XIX ainda no foi suficientemente avaliado. A conscincia a respeito do 'mal pblico',1 representado pelas doenas transmissveis, e da necessidade de estabelecer medidas de proteo em nveis nacional e internacional contriburam para a criao de fruns e organismos de cooperao em escala mundial. Diferentes explicaes poderiam ser enunciadas, mas deve-se destacar o crescente fluxo de mercadorias e pessoas, assim como o de doenas. Aes de proteo sade foram objeto de constantes debates e tentativas de normalizao. At mesmo quando a eminente ecloso de conflitos entre os Estados nacionais, em seu processo de expanso imperialista, colocou em evidncia o tema da guerra, a agenda de sade intensificou-se como questo internacional. As relaes entre guerras e fenmenos mrbidos vm merecendo, inclusive, a crescente ateno de historiadores que avaliam o impacto de epidemias como as de clera na Europa do sculo XIX. Do mesmo modo, pouco ainda se investigou por que o continente americano detm a primazia na cooperao internacional em sade, a despeito da organizao de Conferncias Sanitrias Internacionais, desde 1851, na Europa. A industrializao e a expanso dos mercados no mbito do desenvolvimento do capitalismo, com a consequente intensificao das trocas internacionais, no so condies suficientes para explicar tal fato. Determinadas doutrinas e aes possivelmente interferiram nesse processo, em particular o pan-americanismo e o crescente protagonismo dos Estados Unidos da Amrica do Norte no continente. A Organizao Pan-Americana da Sade(OPAS)

no s o mais anti-

go organismo de cooperao na rea de sade, mas tambm uma das primeiras instituies de cooperao internacional. A sade foi o setor de ativiRefiro-me a conceito de Wanderley Guilherme dos Santos, que define 'mal pblico' como fenmeno que atinge a todos os membros de uma coletividade, independentemente de terem contribudo para seu surgimento e disseminao. Segundo o autor, "ningum pode ser impedido de consumir um bem coletivo, se assim o quiser (...) ningum poder se abster de consumir um mal coletivo, mesmo contra a sua vontade" (Santos, 1993:52).1

dade em que as controvertidas idias sobre pan-americanismo2 puderam, de algum modo, se expressar. De sua atuao, destaco neste texto, que se volta para as relaes entre o Brasil e a OPAS, a idia de que nem sempre tal papel deve ser aferido pelas influncias mais diretas em termos de apoio ou desenvolvimento de programas relevantes nos pases. Houve, desde as primeiras dcadas do sculo XX, crescente intercmbio entre especialistas e gestores de sade, e o papel do organismo deve tambm ser considerado em termos da construo de uma agenda comum e, de certo modo, de uma comunidade de especialistas. esse papel de elaborao e divulgao de idias que procuro avaliar neste trabalho.3 Uma histria de cem anos com ntidas descontinuidades apresenta naturalmente uma srie de dificuldades em seu processo de reconstituio. Qualquer tentativa de sistematizao no far justia diversidade de eventos e atores sociais. A proposta deste captulo no poderia deixar de ser modesta - apresentar uma viso panormica, necessariamente incompleta, e sugerir esforo permanente de preservao da memria e de anlise do processo histrico, cuja riqueza e relevncia so aqui apenas brevemente anunciados. Mas qual o papel da OPAS nos diferentes perodos que se poderiam delimitar para a reconstituio de sua histria? Nos documentos oficiais e nos balanos que marcam o ano do centenrio, o papel de coibir as doenas transmissveis, notadamente a febre amarela e a peste bubnica, de grande circulao entre os portos, destaca-se como ao preponderante em suas origens. Progressivamente, verificar-se-ia uma ampliao das aes e do prprio conceito de sade que as fundamenta. Talvez o fator mais relevante a2 O tema merece anlise mais cuidadosa, impossvel de ser realizada nos limites deste trabalho. Os que o discutem tendem a diferenciar a corrente hispano-americana, que tem em Simon Bolvar o principal expoente, e a tese do pan-americanismo, na verso norte-americana, especialmente o que tem origem na chamada doutrina Monroe. Ver, a respeito, Veronelli & Testa (2002). 3 Este trabalho seria impossvel sem a pesquisa e sistematizao de fontes realizadas por Cristiane Batista. Agradeo s contribuies de Aline Junqueira, Cristina Fonseca e Lisabel Klein e aos profissionais da Representao da OPAS no Brasil, em particular ao Dr. Jacobo Finkelman.

acompanhar a histria da organizao, no obstante o peso diferenciado quanto formulao e aplicao de polticas especficas, esteja na formao de uma base comum para o desenvolvimento da agenda de problemas e da adoo de polticas de sade, particularmente nos pases da Amrica Latina e Caribe. Com base nessa compreenso, este captulo tem por objetivo apresentar em grandes linhas as caractersticas e diferenciaes da histria da OPAS durante estes cem anos, em sua relao comidias,propostas de reforma sanitria, aes e polticas de sade adotadas pelo Brasil. Nem sempre as relaes so diretas, mas, como procurei demonstrar, o estudo da histria da sade no Brasil pode ser enriquecido ao se considerar a dimenso das relaes interamericanas. As principais fontes utilizadas em sua elaborao foram os Boletins da Oficina Sanitria Pan-Americana, outros documentos oficiais e depoimentos de importantes lideranas no desenvolvimento das atividades da organizao. Para tornar mais claro o texto, optei por dividi-lo em sees. Na primeira, comentam-se as atividades at 1947, quando ocorreu importante mudana nos rumos da organizao devido ao programa de descentralizao, e sua transformao em organismo regional da Organizao Mundial da Sade (OMS), criada em 1946. Na segunda seo, discutem-se os principais aspectos da gesto de Fred Soper, que dirigiu a OPAS de 1947 a 1958. Durante esse perodo, com o fortalecimento da organizao, estabeleceu-se cooperao mais efetiva com o governo brasileiro, evidenciada, entre outras medidas, pela criao do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA) , pelo apoio ao laboratrio de produo da vacina de febre amarela, na Fundao Oswaldo Cruz, e pela criao da Zona V de representao regional, com sede no Rio de Janeiro. Na terceira seo, apresentam-se os grandes temas que envolveram as relaes do Brasil com a OPAS no perodo que se estende de 1958 a 1982, marcado pela relao entre desenvolvimento e sade e pelas propostas de

reforma do ensino mdico. Os documentos que mais bem expressam os novos conceitos e propostas para a sade so A Carta de Punta del Leste, firmada em 1961, e a Declarao de Alma-Ata, que, em 1978, definiu a meta "sade para todos". A partir da dcada de 1950, observa-se tambm a presena daOPAS

na criao de importantes instituies e inovaes na rea(BIREME),

de sade ambiental. No ensino mdico, destaca-se, entre outras importantes iniciativas, a criao em 1967 da Biblioteca Regional de Medicina sediada em So Paulo. Na dcada del970, observam-se importantes nexos entre as aes daOPAS e

a articulao inicial do movimento sanitarista no Brasil. Em um con-

texto marcado por regimes autoritrios, acentua-se o papel desse organismo na reviso do ensino mdico, na valorizao das cincias sociais e no desenvolvimento da medicina social. Outros temas em destaque foram a erradicao da varola no mundo, meta alcanada inicialmente nas Amricas, e a criao do Programa Ampliado de Imunizao, em 1976, pelaOPAS/OMS. OPAS e

Na quarta seo, discorre-se sobre as relaes entre a

o Bra-

sil, a partir de 1982, quando foi eleito pela XXI Conferncia Sanitria PanAmericana, realizada em Washington, o primeiro brasileiro a ocupar o cargo de diretor geral: Carlyle Guerra de Macedo. Discutem-se as principais iniciativas daOPAS

durante essa gesto, com nfase nas que mais diretamente se

relacionavam com o Brasil, procedendo-se do mesmo modo no que se refere gesto de George Aleyne, com incio em 1994. O foco principal da discusso encontra-se nos desafios colocados para aOPAS

e para os pases

latino-americanos diante da crise econmica e das propostas de reforma do Estado, ento em curso. O Brasil oferece neste contexto um campo bastante amplo de reflexes dada implantao, em 1988, do Sistema nico de Sade (SUS). Ateno especial atribuda, finalmente, proposta de ampliao da agenda de sade para as Amricas.

A agenda de sade pblica no Brasil e o papel das Conferncias Sanitrias PanAmericanas (1902-1947)

Sade como questo internacionalNo sculo XIX, o conhecimento cientfico sobre as condies de sade das coletividades humanas encontrava expresso no estudo da higiene, disciplina que se formava sob a influncia do intenso processo de transformaes pelo qual passavam as sociedades europias com o advento da

industrializao e da urbanizao. Londres, Paris, Berlim e, no continente americano, Nova Iorque, atingiram a marca de um milho de habitantes naquele sculo, caracterizando o fenmeno da formao das sociedades de massas e de intenso processo de publicao de relatrios mdicos e propostas de reformas sanitrias e urbanas.4 A associao entre cidade massiva e patologia era uma constante, ao mesmo tempo que o receio diante da desordem e a necessidade de respostas em termos de polticas pblicas podia ser verificado nos diferentes pases europeus, ainda que com significativa variao nas propostas de reforma. No caso da Alemanha, por exemplo, levaram o mdico Rudolf Virchow a propor aes baseadas na idia da responsabilidade dos mdicos como advogados dos pobres e na caracterizao da medicina como cincia social (Porter, 1998). Naquele cenrio, entendia-se por higiene o estudo do homem e dos animais em sua relao com o meio, visando ao aperfeioamento do indivduo e da espcie (Latour, 1984). Alcanando notvel desenvolvimento na Frana, antes mesmo do desenvolvimento da bacteriologia, a tentativa de normalizar a vida social, com base em preceitos ditados pela higiene, foi um fenmeno to notvel que levou Pierre Rosanvalon (1990) a falar de um "Estado higienista" (Lima, 1999). As bases epistemolgicas da higiene, at a segunda metade do sculo XIX, encontram-se no chamado neo-hipocratismo, "uma concepo ambientalista da medicina baseada na hiptese da relao intrnseca entre doena, natureza e sociedade" (Ferreira, 1996: 57). O neohipocratismo deu origem a duas posies que, durante os sculos XVIII e XIX,, alternaram-se na explicao sobre as causas e formas de transmisso de doenas: a contagionista e a anticontagionista ou infeccionista (Ackerknecht, 1948).4

O Rio de Janeiro, ento capital da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, contava em 1900 com uma populao de 700.000 habitantes.

Segundo a concepo contagionista, uma doena podia ser transmitida do indivduo doente ao indivduo so pelo contato fsico ou, indiretamente, por objetos contaminados pelo doente ou pela respirao do ar circundante. De acordo com tal concepo, uma doena causada por determinadas condies ambientais continuaria a se propagar, independentemente dos miasmas que lhe deram origem. As prticas de isolamento de doentes, a desinfeco de objetos e a instituio de quarentenas consistem em resultados importantes dessa forma de explicar a transmisso das doenas. J a concepo anticontagionista defendia o conceito de infeco como base explicativa para o processo de adoecimento, ou seja, uma doena era adquirida no local de emanao dos miasmas, sendo impossvel a transmisso por contgio direto. No difcil avaliar as consequncias de um debate aparentemente restrito a pressupostos etiolgicos. Com efeito, posies anticontagionistas desempenharam papel decisivo nas propostas de interveno sobre ambientes insalubres - guas estagnadas, habitaes populares, concentrao de lixo e esgotos - e nas propostas de reforma urbana e sanitria, nas cidades europias e norte-americanas, durante o sculo XIX. Ainda que seus pressupostos cientficos tenham sido avaliados como equivocados aps o advento da bacteriologia, os efeitos positivos da abordagem ambientalista para a melhoria das condies de sade tm sido lembrados por vrios estudos (Rosen, 1994; Duffy, 1990; Hochman, 1998). Alguns autores, entretanto, enfatizam as formas de controle sobre o comportamento social, as condies de trabalho, de habitao e alimentao das populaes urbanas, indicando o processo normalmente entendido como medicalizao da sociedade (Machado et al., 1978). Associados a pressupostos liberais e de defesa de reforma social (Ackerkenecht, 1948), ou identificados a posies de cunho autoritrio, semelhana da forma usual de se analisarem as teses contagionistas, os infeccionistas (ou anticontagionistas) lideraram importantes projetos e propostas de reforma sanitria.

Essas posies devem ser vistas, no entanto, como tipos de causalidade e no como chaves classificatrias, nas quais devem ser enquadrados os mdicos. Trata-se de explicaes no necessariamente antagnicas, pois, muitas vezes, um mdico atribua ao contgio a origem de determinada doena, enquanto explicava outras como consequncia de miasmas. O prprio conceito de neo-hipocratismo tem merecido a ateno de trabalhos recentes em histria da medicina. Neles, o neo-hipocratismo visto como referncia para concepes que pouco retinham dos fundamentos hipocrticos, a que recorriam, porm, em seu processo de legitimao (Gadelha, 1995). Tanto na verso contagionista como na anticontagionista, uma das caractersticas mais marcantes da higiene no perodo que antecedeu a consagrao da bacteriologia consistia na indeterminao da doena.5 O ar, a gua, as habitaes, a sujeira, a pobreza, tudo poderia caus-la. Afluidezdo diagnstico era acompanhada pela impreciso teraputica. Essa caracterstica tambm permitia que os higienistas atuassem como tradutores dos mais diversos interesses. O estudo de Bruno Latour (1984) sobre a consagrao de Louis Pasteur e da bacteriologia na Frana traz um argumento pertinente presente reflexo. O ponto mais relevante da anlise do autor consiste em propor uma viso alternativa consagrada em toda uma linha de histria da medicina social. Estudos clssicos como o de George Rosen (1994), por exemplo, entendem que a bacteriologia teria gerado o abandono das questes sociais pela sade pblica. Tudo se resumiria "caa aos micrbios", deslocandose a observao do meio ambiente fsico e social para a experimentao confinada ao laboratrio.

5 Essa polarizao representa uma simplificao do debate cientfico. Entre os extremos, podem ser historicamente identificadas nuanas nas concepes mdicas sobre o que hoje denominamos doenas infectocontagiosas. Durante o sculo XIX, tambm encontramos explicaes fundamentadas no conceito de contgio, consideradas vlidas para algumas doenas, e a atribuio de causas infecciosas, para outras. No Brasil, isto fica claro nos estudos histricos sobre a febre amarela (Benchimol, 1999, 2001; Chalhoub, 1996).

O que teria acontecido, segundo Latour, seria uma mudana nas representaes sobre a natureza da sociedade. Em sua perspectiva, tratavase de uma lio de sociologia dada pelos pastorianos, uma vez que o que indicavam era a impossibilidade de se observar relaes sociais e econmi cas sem considerar a presena dos micrbios. Seria impossvel identificar relaes entre pessoas, pois os micrbios estariam presentes em toda parte, assumindo o papel de verdadeiros mediadores das relaes humanas. O micrbio poderia mesmo promover a indistino das barreiras sociais entre ricos e pobres, como afirmavam legisladores de fins do sculo XIX. Este ponto foi abordado de forma muito sugestiva pelo mdico norteamericano Cyrus Edson, que, em fins do sculo XIX, apresentou o micrbio como "nivelador social". As aes pblicas de sade seriam uma decorrncia do encadeamento de seres humanos e sociedades reveladores da "dimenso socialista do micrbio" (Hochman, 1996: 40). Em suma, o estudo dos micrbios entrelaava-se fortemente ao da prpria sociedade, redefinindo relaes, formas de contato e as noes de pureza e de risco.6 As proximidades entre medicina e sociologia, durante o sculo XIX, tm sido lembradas por diferentes estudos que observam a transposio de teorias e metforas, por exemplo, o recurso a metforas baseadas em analogias orgnicas na proposta de filosofia social de Saint-Simon e na sociologia de Emile Durkheim. O estudo realizado por Murard & Zylberman (1985) refora o argumento at aqui apresentado. Os autores entendem que a higiene de fins do sculo XIX e incio do sculo XX pode ser entendida como cincia social aplicada. Observam que, desde 1829, anunciava-se o programa dos higienistas na Frana: a medicina no teria por objeto apenas estudar e combater as doenas; ela apresentava fortes relaes com a organizao6

importante observar que no procedem tentativas de estabelecer uma relao de causalidade direta entre o conhecimento cientfico, mais especificamente o referido bacteriologia, e sentimentos de averso ao que considerado impuro e perigoso sade. Este ponto enfatizado especialmente nas obras de Norbert Elias (1990) e Mary Douglas (1976).

social. As idias divulgadas em peridicos, como os Annales

d'Hygine

Publique et de Medicine Lgale, em um momento marcado por aes de combate clera e febre amarela, indicariam a articulao da medicina com problemticas sociais. semelhana da anlise de Latour, os autores observam que os pastorianos representaram, at certo ponto, uma continuidade em relao aos higienistas que discutiam anteriormente as idias de transmisso das doenas. Consideravam um equvoco atribuir, mudana nas explicaes sobre contgio e nfase em pesquisas laboratoriais, uma alterao radical no que se refere ao escopo da ao dos higienistas. Em outras palavras, a nfase no papel dos micrbios na transmisso das doenas no implicaria o abandono de temticas sociais. Na verdade, deslo cava-se a ateno, dirigida anteriormente para o meio ambiente, para as pessoas infectadas, acentuando-se os aspectos normalizadores da higiene sobre a sociedade. A literatura tem sido mais atenta a esse ideal e discurso normalizador, deixando um pouco de lado o problema de como encontra efetividade no plano das relaes sociais. Baseada fundamentalmente em fontes elaboradas por mdicos do sculo XIX, muitas vezes o que se faz reificar as interpretaes elaboradas por eles sobre seu papel e capacidade de interveno, reiterando o binmio cidade-doena, e as relaes entre medicina e controle do espao urbano.7 Em geral, os movimentos de reforma da sade pblica na Europa, quer na Frana, Alemanha ou Inglaterra, tenderam a se voltar para os cenrios urbanos e, ainda que destacassem a associao cidade massiva e doena, revelavam certa dose de otimismo na crena de que a higiene permitiria intervir positivamente sobre o insalubre espao urbano. O otimismo diante da possibilidade de interveno cientfica compensava o sombrio diagnosti7

Para uma crtica dessas tendncias, na historiografia europia e na produo intelectual brasileira sobre medicina social, ver o artigo de Rezende de Carvalho & Lima (1992).

co associado cidade que emerge com o advento do capitalismo industrial.8 Como vrios estudos tm revelado, os narradores oitocentistas descrevem a cidade como cenrio privilegiado de observaes das manifestaes mais perversas das novas relaes de trabalho e sociabilidade. A cidade, ento, passa a ser vista como "laboratrio social", onde se poderiam observar os aspectos disruptivos da nova ordem: a fome, a doena, a embriaguez e a loucura (Rezende de Carvalho & Lima, 1992). No se deu apenas no plano interno s naes o impacto do fen meno menso desse processo ocorreu nas relaes internacionais, com a intensificao do comrcio e as implicaes negativas da instituio das quarentenas nos portos martimos. As controvrsias cientficas ocorreriam tambm nos primeiros fruns internacionais criados no campo da sade: as Conferncias Sanitrias Internacionais. A doena mais marcante durante o sculo XIX foi o clera, dando origem que foi considerada a primeira pandemia no perodo de 1817-23, e que atingiu progressivamente pases do Golfo Prsico e aqueles banhados pelo Oceano ndico. O padro tradicional da expanso dessa doena se viu alterado pela maior densidade do comrcio internacional e dos movimentos militares derivados da dominao britnica na ndia. Uma segunda pandemia ocorreu em 1826, atingindo desta vez a Rssia, o Bltico e finalmente a Inglaterra (Veronelli & Testa, 2002). A terceira atingiu a Amrica (1852-59) e a quarta, com incio em 1863, chegou a Nova Iorque em 1863, Buenos Aires em 1866 e, em 1867, regio onde se deflagrava a Guerra do Paraguai, afetando as tropas aliadas e paraguaias.9 Sob o impacto das epidemias de clera e febre amarela, realizou-se em Montevidu, em 1873, uma conveno sanitria em que se firmou uma8

Esse ponto fica muito claro no estudo de George Rosen (1979) sobre a histria do conceito de medicina social. Segundo o autor, esse conceito est intimamente associado ao desenvolvimento do capitalismo e emergncia das questes social e urbana. Consta que Francisco Solano Lpez, lder paraguaio, tambm contraiu a doena.

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ata pelo Brasil, Argentina e Uruguai determinando medidas comuns de preveno em relao a doenas como clera asitico, febre amarela, peste e tifo. Em 1887, realizou-se, no Rio de Janeiro, novo colquio entre esses pases em que se estabeleceu a Conveno Sanitria do Rio de Janeiro (Veronelli & Testa, 2002). A experincia das epidemias de clera no sculo XIX, na Europa e nos Estados Unidos, teve papel determinante na percepo das elites polticas sobre os problemas sanitrios, favorecendo aes polticas, criao de organizaes e interveno dos Estados nacionais na resoluo dos problemas de sade e nas reformas urbanas (Briggs, 1961). Sua conotao de pandemia implicou no apenas a transformao da sade em problema de natureza coletiva em sociedades particulares, mas sua compreenso como tema de poltica internacional. A constituio de sistemas sanitrios representa captulo importante na constituio do Estado de Bem-Estar (De Swaan, 1990; Hochman, 1998) e, ao mesmo tempo, processo crucial para a percepo das doenas transmissveis como tema central na configurao das relaes internacionais. Foi nesse quadro que, em meados do sculo XIX, tiveram incio as Conferncias Sanitrias Internacionais, fruns de debate cientfico sobre as controvrsias em torno das causas e dos mecanismos de transmisso de doenas, e poltico, uma vez que se tratava de estabelecer normas e procedimentos comuns entre os pases que enfrentavam problemas como as epidemias de clera e de peste bubnica. Essas conferncias reuniam basicamente pases europeus e expressavam a contradio entre a crescente insegurana - em face da ampliao das epidemias e da prpria emergncia do conceito de pandemia - e a idia de progresso que se afirmava e encontrava representao simblica nas Grandes Exposies Internacionais. Sugestivamente, a primeira Conferncia Sanitria e a primeira Exposio Internacional ocorreram no mesmo ano, 1851, respectivamente em Paris e Londres (WHO, 1958).

Oito anos aps este colquio e na mesma cidade, foi realizada a segunda Conferncia. A terceira Conferncia realizou-se em 1866, em Constantinopla, e a seguinte, em Viena, em 1874. A quinta Conferncia Sanitria Internacional foi a primeira a se realizar no continente americano e teve lugar em Washington em 1881. Aristides Moll, editor cientfico da Oficina Sanitria Pan-Americanana, nas dcadas de 1920 e 1930, chegou a apont-la como a primeira conferncia sanitria pan-americana (Veronelli & Testa, 2002; Moll, 1940). Entretanto, a representao dos pases americanos era basicamente dos corpos diplomticos, com reduzida presena das autoridades sanitrias nacionais. Um dos fatos mais significativos, durante a quinta Conferncia, foi a participao de Carlos Finlay, delegado especial de Espanha, representando Cuba e Porto Rico. Finlay apresentou sua teoria sobre a transmisso da febre amarela, considerando-a como uma concepo alternativa aos argumentos contagionista e anticontagionista. A posio do cientista estava fundamentada na seguinte hiptese: a presena de agente inteiramente independente para a existncia tanto da doena como do homem doente, mas absolutamente necessrio para que a enfermidade fosse transmitida do portador da febre amarela ao indivduo so. Este agente, ou vetor, era um mosquito, e sua hiptese s foi considerada plenamente demonstrada vinte anos depois.10 Apenas em 1903, na sexta Conferncia, consideraram-se como fatos cientficos estabelecidos o papel do rato na transmisso da peste e do Stegomia fasciata (atualmente Aedes aegypti) na transmisso da febre amarela. Essa resoluo teve evidentes efeitos prticos, de crucial importncia para o intercmbio e comrcio internacionais, devido ao problema acarretado pela quarentena dos navios.

10 Antes de Finlay, investigaes sobre a transmisso da malria levaram alguns mdicos a sugerir vnculos entre mosquitos e febre amarela, como foi o caso de e John Crawford, em 1807. Tambm Louis Daniel Beauperthuy (1825-1871), mdico e naturalista francs que trabalhou na Venezuela, apresentou a hiptese da transmisso da febre amarela por mosquitos (Cueto, 1996a).

Os debates sobre a transmissibilidade das doenas nunca foram estritamente cientficos. No que se refere imposio de quarentenas, a politizao do tema seria flagrante uma vez que interferiam no fluxo comercial, no comrcio internacional e no deslocamento populacional. O clera, a peste e a febre amarela eram as trs doenas em relao s quais havia maior ateno dos pases; seu significado transcendia aes especficas de combate e consistiram importantes elementos na prpria configurao e reconfigurao dos Estados modernos. No caso das Amricas, a febre amarela, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, era considerada o grande desafio de poltica sanitria, especialmente no que se refere ao comrcio entre as naes. Em parte, desempenhou no continente americano papel similar ao do clera na Europa. Foi uma das doenas mais marcantes da histria da sade pblica brasileira, com impactos sobre os processos polticos e o desenvolvimento cientfico no pas.

Brasil: imenso hospitalAs imagens que associam o Brasil a doenas, especialmente s de natureza transmissvel, ao contrrio do que a primeira impresso pode indicar, so relativamente recentes em nossa histria. At a segunda metade do sculo XIX, prevalecia a idia de "um mundo sem mal", caracterizado por uma natureza e um clima benvolos e pela longevidade de seus habitantes, conforme expresso utilizada por Srgio Buarque de Holanda, em Vises do Paraso, para se referir s impresses suscitadas pelos textos de cronistas e viajantes (Lima, 2000). A despeito de registros de incidncia de varola e febre amarela desde o perodo colonial, no incio do sculo XIX, as referncias a um pas saudvel ainda eram frequentes. As principais cidades, particularmente o Rio de Janeiro, ento capital do Imprio, que, no final daquele sculo, era

considerada um celeiro de doenas, no eram vistas do mesmo modo, tal como se pode observar no discurso do renomado mdico Francisco de Mello Franco: No s pelo que tenho observado por mim mesmo, mas segundo o que tenho inquirido de mdicos que, por muitos anos com grande reputao, tm praticado nesta capital do Brasil, no se encontra febre alguma contagiosa (...) o que na verdade maravilha a quem exercitou a clnica na Europa, onde o contgio de algumas febres conhecido at mesmo do povo. (Ferreira, 1996:96) O impacto da epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, de 1849 a 1850, alterou sensivelmente essa imagem pblica. O fato de ter feito vtimas fatais na elite favoreceu a compreenso do quadro sanitrio do Brasil como um problema cientfico e poltico importante, ampliando a repercusso das polmicas mdicas sobre o assunto. As controvrsias sobre as origens, causas e formas de transmisso das doenas infecciosas so inmeras e tm sido bastante documentadas nos estudos sobre histria da medicina e nas pesquisas histricas sobre o Rio de Janeiro (Benchimol, 1999). Do "mundo sem mal", passou-se a lidar com expresses opostas, como a de Rui Barbosa que, em discurso de homenagem pstuma a Oswaldo Cruz, em 1917, referiu-se ao Brasil como o "pas da febre amarela". No mesmo texto, o intelectual baiano afirmava que, ao debelar a epidemia dessa enfermidade no Rio de Janeiro, Oswaldo Cruz promovera a efetiva "abertura dos portos s naes amigas" (Barbosa, 1917). Cada doena evocava, por sua vez, uma srie de temas que despertavam inevitveis tenses sociais; entre elas, as motivadas pela referncia a diferentes padres imunolgicos dos grupos tnicos que formavam o Brasil. Consideravase, por exemplo, que a febre amarela vitimava mais os brancos e os imigrantes europeus do que a populao de origem africana (Chalhoub, 1996). No incio do sculo XX, o surto de peste bubnica que assolou Santos viria agravar o quadro sanitrio e a percepo pblica sobre os riscos representadas pelas epidemias. A criao do Instituto Butantan, em So

Paulo, e do Instituto Soroterpico Federal, atual Fundao Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, foram iniciativas importantes, com impacto decisivo no desenvolvimento das cincias biomdicas e na sade pblica (Stepan, 1976; Benchimol, 1990a; Benchimol & Teixeira, 1993). A histria da sade pblica no Brasil , em larga medida, uma histria de combate aos grandes surtos epidmicos em reas urbanas e s denominadas endemias rurais, como a malria, a doena de Chagas e a ancilostomose. Em contraste com o que ocorrera durante as epidemias de febre amarela, essa doena afetava indistintamente brancos e negros e chegou a ser apontada como principal responsvel pela apatia do trabalhador brasileiro e pela "nacionalizao" do imigrante europeu. Sua presena em textos de mdicos, de leigos, e em representaes iconogrficas foi muito intensa e alcanou expresso em um dos mais importantes personagenssmbolo dos pobres na literatura brasileira: o Jeca Tatu de Monteiro Lobato. A crtica s perspectivas ufanista e romntica sobre a natureza e o homem brasileiros e a nfase nos males do Brasil aproximaram o discurso mdico de textos literrios e ensasticos que se propuseram a esboar retratos do pas. Especialmente no perodo da Primeira Guerra Mundial, a afirmao da nacionalidade, que encontrou expresso em movimentos como a Liga de Defesa Nacional, confrontava-se com a denncia feita por mdicos, educadores e outros profissionais de que o analfabetismo e a doena estavam presentes em todo o territrio. Consta inclusive que a clebre frase "o Brasil um imenso hospital", proferida pelo mdico Miguel Pereira, em 1916, foi uma reao a discursos enaltecedores da fora e da higidez dos sertanejos que, se convocados, garantiriam a integridade territorial e poltica do pas (Lima, 1999; Lima & Hochman, 1996). A campanha pela reforma da sade pblica e pelo saneamento dos sertes alcanou repercusso nacional com a publicao de uma srie de artigos de Belisrio Penna no jornal Correio da Manh, em 1917, reunidos posteriormente no livro Saneamento do Brasil (1918). Tratava-se, segun

do expresso de Miguel Couto (apud Britto, 1995: 23), presidente da Academia Nacional de Medicina, de lanar uma "cruzada da medicina pela ptria"; ao mdico cabia substituir a autoridade governamental, ausente na maior parte do territrio nacional. Nessa cruzada, fazia-se sentir a crtica oligarquizao da Repblica, especialmente ao princpio da autonomia estadual, que impedia uma ao coordenada, em nvel federal, capaz de promover o combate s epidemias e endemias e melhorar as condies de sade da populao. A campanha sensibilizou progressivamente nomes expressivos das elites intelectuais e polticas do pas e teve como um dos marcos mais significativos a criao da Liga Pr-Saneamento do Brasil, em fevereiro de 1918, em sesso pblica na Sociedade Nacional de Agricultura. A leitura da ata da fundao demonstra o interesse em reunir nomes expressivos nos meios militares, entre os engenheiros, mdicos e advogados, alm de parlamentares e do prprio presidente da Repblica, Wenceslau Braz, que ocupou o cargo de presidente honorrio. Miguel Couto, Carlos Chagas Juliano Moreira, Rodrigues Alves, Clovis Bevilacqua, Epitcio Pessoa,11 Pedro Lessa, Aloysio de Castro12 e Miguel Calmon integravam o conselho supremo da associao. Um dado interessante consistiu na formao de delegaes regionais em vrios estados e na designao do ento coronel Cndido Rondon para presidir a delegao de Mato Grosso (Sade, 1918, n. 1). Ainda que congregasse tantos nomes de expresso, apresentandose como um movimento de carter amplo, orientado por um nacionalismo que queria resgatar as "coisas nacionais" e livrar o pas dos males representados pela doena, a campanha do saneamento enfrentou vrios obstculos, no conseguindo aprovar no Congresso Nacional uma de suas principais11 12

Presidente da Repblica no quinqunio seguinte, Epitcio Pessoa ocupava na poca o cargo de senador.

Aloysio de Castro era o diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Miguel Couto, presidente da Academia Nacional de Medicina quela poca, foi eleito presidente do conselho supremo. Na prtica, a Liga Pr-Saneamento foi dirigida pelo diretor-presidente do diretrio executivo, o higienista Belisrio Penna.

propostas: a criao do Ministrio da Sade.13 A soluo para uma maior centralizao das aes sanitrias no mbito federal ocorreu em 1920, com a criao do Departamento Nacional de Sade Pblica, dirigido desde sua fundao at 1926 pelo cientista Carlos Chagas. Note-se que esse tema - a unificao dos servios de sade e a constituio de uma autoridade sanitria nacional - esteve tambm fortemente presente no debate da OPAS. Como veremos com mais detalhes, dessa gerao de cientistas, Oswaldo Cruz, Raul de Almeida Magalhes e Carlos Chagas representaram o Brasil na condio de delegados nas Conferncias Pan-Americanas de Sade, e os dois ltimos participaram tambm do corpo diretivo da organizao. A construo de uma identidade profissional mais delimitada pode tambm ser relacionada s mobilizaes dos anos de 1910 e 1920. A nfase na sade coletiva e nas chamadas endemias rurais marcou a constituio do Departamento Nacional de Sade Pblica e a formao de novas geraes de profissionais. O termo sanitarista substituiu progressivamente a referncia tradicional aos higienistas, indicando especializao profissional e maior distino entre as atividades cientficas no laboratrio e as atividades de sade pblica. Tal processo no ocorreu isoladamente no Brasil e contou com a participao ativa da Fundao Rockefeller no ensino mdico, como foi o caso da criao da cadeira de higiene na Faculdade de Medicina de So Paulo, em 1918 (Castro Santos, 1987, 1989). Muitos profissionais brasileiros completaram seu processo de especializao, nas dcadas de 1920, 1930 e 1940, na Escola John Hopkins de Higiene e Sade Pblica, importante centro de pesquisa e ensino financiado pela Fundao Rockefeller nos Estados Unidos (Fee, 1987). Um dos efeitos mais notveis da campanha consistiu na criao dos postos de profilaxia rural em diferentes estados, que significaram, ainda que13 A anlise da relao entre o movimento sanitarista e a implementao de polticas de sade est desenvolvida nos trabalhos de Castro Santos (1987) e Hochman (1998).

pequeno fosse o resultado para a melhoria das condies de vida, a presena do Estado na implementao de polticas de ateno sade de populaes que, como afirmaram Arthur Neiva e Belisrio Penna (1916: 199), s sabiam de governos "porque se lhes cobravam impostos de bezerros, de bois, de cavalos, de burros". Ainda possvel afirmar que a campanha transformou em problema social, tema de debate pblico, uma questo que at aquele momento encontrava-se em foco especialmente nos peridicos mdicos - a doena e o abandono como marcas constitutivas das reas rurais do Brasil.14 Entre os estudos que se dedicaram a analisar as polticas de sade pblica durante a Primeira Repblica, o de Luiz Antnio de Castro Santos trouxe uma contribuio relevante ao propor uma abordagem mais processual para as relaes entre movimento sanitarista, polticas de sade e construo da nacionalidade, acentuando que causas diversas poderiam ser apontadas. Identificou duas fases das aes sanitaristas durante a Primeira Repblica: a primeira voltada ao combate s epidemias urbanas, quando as preocupaes com a sade dos imigrantes desempenharam papel central; a segunda, ao saneamento rural, em que se fez sentir a fora das idias nacionalistas ento em debate (Castro Santos, 1985, 1987). O papel que o movimento pela reforma da sade pblica desempenhou na consolidao do Estado nacional no Brasil foi bem explorado por Gilberto Hochman (1998), que, com base no conceito de interdependncia social, relacionou as possibilidades de expanso territorial da autoridade pblica ao impacto das idias cientficas sobre transmissibilidade de doenas. Os caminhos trilhados pelos sanitaristas nesse perodo, a partir da abordagem da doena como principal problema nacional, interagiram decisivamente com questes cruciais da ordem poltica brasileira: as relaes entre o pblico e o privado e entre poder local e poder central. Temas que, ademais, desnecessrio lembrar, permanecem de evidente atualidade.14 Deve-se notar que, dificilmente, os debates no campo mdico restringiam-se aos peridicos especializados. Artigos tratando de polmicas cientficas eram publicados nos jornais da grande imprensa. Ver a respeito os trabalhos de Benchimol (1999) e Ferreira (1996).

O debate sobre a identidade nacional no Brasil tem origens muito anteriores, mas alcanou considervel expresso durante a Primeira Repblica, uma vez que muitos intelectuais associaram, a essa forma de governo, o iderio do progresso e a afirmao do processo civilizatrio em um pas que parecia estar condenado por seu passado colonial e escravista, e pela propalada inferioridade racial de sua populao. Os intelectuais que participaram da campanha do saneamento partiam de uma crtica idia da inviabilidade do pas como nao, contestando qualquer tipo de fatalismo baseado na raa ou no clima, ao mesmo tempo que se opunham s verses ufanista e romntica que consideravam idealizar a natureza e o homem brasileiros.15 Entre os principais resultados do movimento de reforma da sade durante a Primeira Repblica (1889-1930), destaca-se a consolidao da imagem de uma sociedade marcada pela presena das doenas transmissveis, o que, de forma satrica, encontraria, mais tarde, expresso em Macunama, de Mario de Andrade: uPouca sade, muita sava: os males do Brasil so".

A organizao da sade nas dcadas de 1930 e 1940: de imenso hospital a laboratrio de sade pblicaOs estudos histricos sobre a constituio da rea de sade no Brasil tm privilegiado o perodo da Primeira Repblica, o que em parte pode ser explicado pela centralidade poltica que o tema recebeu e sua percepo como problema-chave - problema vital, como o denominou Monteiro Lobato. Foi o perodo da proposta da primeira reforma sanitria, cuja tnica radica

O ufanismo, termo utilizado em estudos recentes para se referir corrente de pensamento que propunha a autocongratulao dos brasileiros, encontrou sua expresso mxima no livro Porque me Ufano de meu Pas, do monarquista Conde de Afonso Celso (Oliveira, 1990; Carvalho, 1994).

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va-se na crtica oligarquizao do pas e ausncia de uma ao coordenada em nvel nacional. Foi tambm o perodo das primeiras reformas urbanas, da busca de sua europeizao, seguindo principalmente o modelo da Paris de Haussman (Benchimol, 1990b). Essa visibilidade das questes referidas sade nas trs primeiras dcadas do sculo XX possivelmente contribuiu para ofuscar processos importantes nos momentos posteriores que antecederam a criao do Ministrio da Sade em 1953. O fato que, a partir da dcada de 1920, com a criao do Departamento Nacional de Sade Pblica, comeou a ser gestado o modelo centralizado de longa sobrevivncia na rea. Aps a criao do Ministrio de Educao e Sade, em 1931, e principalmente com a reforma implementada pelo ministro Gustavo Capanema, em 1941, a estrutura verticalizada e centralizadora encontraria expresso com a criao dos Servios Nacionais de Sade. A constituio de um aparato estatal na rea de sade iniciou-se efetivamente nos anos 1920, ganhando carter nacional e acelerando-se na dcada seguinte, ao mesmo tempo que se diferenciaram dois setores: a sade pblica e a medicina previdenciria. A dcada de 1930 representou um momento decisivo tanto pelo estabelecimento da proteo social, com base em um conceito de cidadania regulada pelo mundo das profisses (Santos, 1979), quanto pela reforma no mbito das aes de sade. A reforma administrativa no Ministrio da Educao e Sade, em 1941, implicou a verticalizao, centralizao e ampliao da base territorial de efetiva ao do governo federal, cuja caracterstica anterior era o excessivo peso no Distrito Federal. A estrutura verticalizada e organizada por doenas uma das caractersticas da histria da sade pblica no Brasil que se manteria nos anos posteriores (Fonseca, 2001). O exame do organograma de 1942 do Departamento Nacional de Sade, subordinado ao Ministrio da Educao e Sade revela uma estruturao voltada para doenas es

pecficas, naquele momento organizadas por servios nacionais: de febre amarela, malria (ao qual se subordinavam aes profilticas contra doena de Chagas e esquistossomose), cncer, tuberculose, lepra e doenas mentais. Alguns sanitaristas com atuao relevante nesse contexto, muitos com formao especializada na Universidade John Hopkins, viriam posteriormente a desempenhar papel de destaque na OPAS. Entre os nomes com expressiva atuao, no perodo e em dcadas subsequentes, destacam-se Joo de Barros Barreto, Mario Pinotti, Geraldo de Paula Souza, Manoel Ferreira, Marcolino Candau e Ernani Braga. Estudos mais extensos e aprofundados sobre sua trajetria e seu papel na sade pblica consistem em importante ponto para uma agenda de pesquisa em histria da sade pblica no Brasil. Note-se, inclusive, que Marcolino Candau foi tambm o segundo diretor geral da OMS, cargo que ocupou de 1953 a 1973. No caso de Joo de Barros Barreto, pode-se dizer que representou a autoridade sanitria do pas no perodo mais extenso frente da poltica nacional de sade. Diretor do Departamento Nacional de Sade, entre 1938 e 1945, foi responsvel pela extenso dos postos de sade no territrio nacional e pela consolidao da estrutura verticalizada dos servios de combate s doenas. Atribuiu tambm prioridade ao registro estatstico das campanhas de sade pblica, contribuindo para a implantao de um sistema de informaes sobre as doenas transmissveis e a captura de vetores. Essa gerao, que teria momentos importantes de sua trajetria profissional, durante o Estado Novo, mantinha laos com as lideranas de sade pblica nos Estados Unidos e participara das instituies que orquestraram com o governo brasileiro agncias e programas de forte impacto no combate a epidemias de febre amarela e malria, caso dos servios estabelecidos em consrcio com a Fundao Rockefeller e das aes do Servio Especial de Sade Pblica (SESP), criado em 1942. No caso deste ltimo, observa Marcolino Candau:

os Ministros das Relaes Exteriores das Repblicas Americanas realizaram, de 15 a 28 de janeiro de 1942, no Rio de Janeiro, uma Reunio de Consulta, cuja ata final documenta, no captulo "Melhoramentos em Sade Pblica", esse importante marco da histria desse campo de ao governamental (...) Dessa reunio resultaram entendimentos entre os Governos do Brasil e dos Estados Unidos da Amrica que levaram criao, em 1942, no Ministrio da Educao em Sade, de um Servio Especial de Sade Pblica destinado a desenvolver inicialmente no Vale do Amazonas e, em seguida, no Vale do Rio Doce, atividades gerais de sade e saneamento que tambm incluiriam o combate malria, a assistncia mdico-sanitria dos trabalhadores ligados ao desenvolvimentoeconmicodas duas regies (...), o preparo e o aperfeioamento de mdicos e engenheiros sanitaristas, de enfermeiras e outros profissionais de sade, (apud Braga, 1984: 104) O que vale a pena destacar o fato de esses programas terem tido impacto relevante na formao ou consolidao da liderana de sanitaristas brasileiros e, mais do que isso, o fato de o Brasil poder ser considerado um grande laboratrio de conhecimentos e prticas de sade pblica, de crucial importncia na trajetria tambm dos norte-americanos. Fred Soper talvez seja o mais notvel exemplo desse fato. Em suas memrias, a experincia no Servio de Febre Amarela e na campanha de erradicao do Anopheles gambiae realada como elemento decisivo para a atuao posterior em outros pases da Amrica e da frica. De imenso hospital, o Brasil transfor mara-se em grande laboratrio e escola para as campanhas de sade pblica e formao de um novo tipo de sanitarismo.

0 Brasil e a atuao da

OPAS

em sua primeira fase

No longo perodo que se estende da criao da OPAS at 1947, pode-se afirmar que dois elementos foram os mais relevantes em sua relao com os pases que a integravam: a difuso de idias cientficas e relacionadas a aes de sade - principalmente por meio das Confern

cias Sanitrias Pan-Americanas e do Boletim da Oficina Sanitria PanAmericana16 - e a proposta de regulao da notificao e formas de combate s doenas transmissveis com a aprovao do Cdigo Sanitrio Pan-Americano em 1924. No Brasil, o debate e as campanhas contra a febre amarela e seu vetor ocupavam posio de destaque, o que se estenderia at a dcada de 1950, com a criao de um programa de erradicao do Aedes aegypti para o continente americano. Seria simplificador, no entanto, observar, apenas do ponto de vista das aes de combate a essa doena, as relaes e as influncias recprocas entre os fruns promovidos pela OPAS e as aes de sade pblica realizadas no Brasil. No existem muitas fontes sobre a atua o de brasileiros nesse organismo, mas, principalmente pelas Conferncias Pan-Americanas, podem-se levantar algumas possibilidades de interpretao. possvel identificar, no mbito desses fruns, temas que constituam a agenda de sade pblica no Brasil, principalmente a idia de reforma da sade pblica com a criao de um Ministrio da Sade. Em janeiro de 1902, na cidade do Mxico, realizou-se a segunda Conferncia Internacional dos Estados Americanos. Atendendo recomendao de seu Comit de Poltica Sanitria Internacional, a Conferncia aprovou a convocao de uma conveno geral de representantes dos organismos sanitrios das repblicas americanas para decidir sobre a notificao de enfermidades, o intercmbio dessa informao entre as repblicas, a realizao de convenes peridicas sobre a matria e o estabelecimento de uma oficina permanente em Washington para coordenar essas atividades. A primeira Conveno Sanitria Internacional foi realizada em Washington, de 2 a 4 de dezembro de 1902, e criou a Oficina Sanitria Internacional, que funcionou como apndice do servio de sade pblica dos EUA, acumulando o Cirurgio Geral, chefe desse servio, a direo da Oficina Sanitria Internacional at 1936 (OPAS, 1992; Macedo, 1977; Bustamante, 1972).16

Passarei a me referir publicao como Boletim. Nas referncias bibliogrficas empregarei a sigla BOSP.

Em 1905, realizou-se a segunda Conveno Sanitria, que estabeleceu propostas relativas a quarentenas e notificao de enfermidades no continente. Seria, segundo alguns autores, a precursora do Cdigo Sanitrio Pan-Americano. Em dezembro de 1907, teve lugar a terceira na cidade do Mxico, cabendo a Oswaldo Cruz representar o Brasil. Em 1909, na Costa Rica, ocorreu a quarta reunio em que se props a mudana do nome Conveno para Conferncia e, em 1911, a quinta Conferncia, realizada em Santiago do Chile, em que se decidiu nomear a Oficina como Oficina Sanitria Pan-Americana, responsabilizandoa pela elaborao de um projeto de Cdigo Sanitrio Martimo Internacional. Representaram o Brasil Ismael da Rocha e Antonino Ferrari (Barreto, 1942). Com a ecloso da Primeira Guerra Mundial, houve um longo intervalo e, em 1920, na cidade de Montevidu, realizou-se a sexta Conferncia Sanitria Internacional, em que compareceu como delegado brasileiro Raul Leito da Cunha. A Conferncia ratificou o nome do Cirurgio Geral do Servio de Sade dos EUA, Hugh Cumming, como Diretor da Oficina, posio que ocupou at 1947, apesar de ter deixado o cargo de Cirurgio Geral dos EUA em 1936. Nessa conferncia, deliberou-se pela criao do Boletim Pan-Americano de Sade, publicado mensalmente a partir de 1922, cujo nome foi alterado posteriormente para Boletim da Oficina Sanitria Pan-Americana. Na VI Conferncia Sanitria, a Oficina definiu sua reestruturao. Pouco a pouco, estendeu seu raio de ao e constituiu um centro consultor (Ata da IX Conferncia). Em Havana, 1924, na VII Conferncia Sanitria Pan-Americana, contando com Uiz do Nascimento Gurgel e Raul de Almeida Magalhes como delegados do Brasil, aprovou-se o projeto do Cdigo Sanitrio Martimo Internacional, logo designado como Cdigo Sanitrio Pan-Americano. Esse documento foi objeto de discusses posteriores pelo Poder Legislativo de cada pas integrante do organismo, para efeito de ratificao, e definiram-se como suas finalidades (Soper, 1948): 1) prevenir a propagao internacional de infeces ou doenas susce tveis de serem transmitidas a seres humanos;

2) estimular e adotar medidas cooperativas destinadas a impedir a introduo e a propagao de doenas nos territrios dos governos signatrios ou procedentes dos mesmos; 3) uniformizar o registro de dados estatsticos relativos morbidade nos pases dos governos signatrios; 4) estimular o intercmbio de informes que possam ser valiosos para melhorar a sade pblica e combater as enfermidades prprias do homem. Quatro anos mais tarde, em Lima, a VIII Conferncia estabeleceu um Conselho Diretor para a Oficina e aprovou que ela atuasse coletando dados para a Oficina Internacional de Sade Pblica, criada em 1907, com sede em Paris(BOSP,

ano 7, n. 1, jan. 1928). Representado por Joo Pedro de

Albuquerque e Bento Oswaldo Cruz, o Brasil levou, para esse colquio, informe sobre sade materno-infantil e seus progressos no pas, apresentando documento elaborado por Antnio Fernandes Figueira. A despeito dos trabalhos histricos sobre a OPAS ressaltarem o papel da VII Conferncia, devido aprovao do Cdigo Sanitrio, o exame do colquio realizado em Lima requer anlise mais cuidadosa, uma vez que demonstra preocupaes que superavam as medidas sanitrias nos portos. Isso no significa que o Cdigo Sanitrio Pan-Americano no se mantivesse como tema central, algumas discusses detendo-se no carter de recomendao ou obrigatoriedade dos artigos do documento. Nesse debate, uma referncia importante foi a participao de Carlos Chagas em 1926 na Conferncia Sanitria Internacional, realizada em Paris. O cientista brasileiro defendera a proteo dos pases do Atlntico, quanto a doenas resultantes do intenso fluxo migratrio, e redigiu o texto sobre os princpios tcnicos e cientficos da profilaxia da febre amarela. Como mecanismo de cooperao tcnica, instituiu-se o cargo de Comissrios Itinerantes (viajeros) - funcionrio dos servios nacionais de sade que poderiam ser cedidos Oficina e que deveriam prestar colaborao s autoridades sanitrias dos pases signatrios. A VIII Conferncia aprovou tam

bm um anexo ao Cdigo Sanitrio e definiu o processo de ratificao, completado apenas em 1936, com a assinatura pelas 21 repblicas existentes na Amrica. O processo de ratificao teria mesmo de ser longo, pois implicava aprovao das medidas preconizadas pelo Poder Legislativo dos pases americanos. As conferncias sanitrias, ao inclurem como ponto central de seu programa os informes dos pases, contribuem para que se compreenda a importncia de algumas enfermidades, aspectos do quadro sanitrio e aes em curso. No caso da VIII Conferncia, encontram-se, por exemplo, evidncias sobre semelhanas do quadro sanitrio dos Estados Unidos em relao aos demais pases americanos. A delegao norte-americana, formada por Hugh S. Cumming, John Long e Bolvar Lloyd, apresentou informe sanitrio abrangente sobre o pas, com dados sobre as seguintes doenas: tuberculose, cncer, tracoma, bcio, febre ondulante (zoonose), lepra, encefalite epidmica, sarampo, febre das montanhas rochosas, difteria e paludismo. Des tacou-se a reduo da malria nos EUA, observando-se, contudo, que a doena permanecia como um dos mais graves problemas higinicos em certos pontos do pas. Outros temas mencionados foram varola, peste, notificao de doenas transmissveis, administrao de higiene, inundaes do rio Mississipi, toxicomania, leite, proteo s mes e filhos e higiene industrial. Proposio importante apresentada pela delegao do Uruguai refe ria-se obrigatoriedade de vacinao contra varola. No texto do Cdigo Sanitrio, havia a opo pela quarentena, o que era contestado pelos delegados daquele pas. Segundo a proposta enfatizada no documento, tratava-se de compatibilizar os preceitos do Cdigo Sanitrio com a Conveno de Paris. No que se refere s doenas venreas, ocorreu debate sobre as medidas mais adequadas para coibir os efeitos negativos da prtica da prostituio. O delegado do Panam defendeu o controle mdico e John Long, representante norte-americano, simplesmente a proibio, exemplificando com o que ocorrera no Chile. Em sua perspectiva, a prostituio clandestina geraria menos problemas, uma vez que reduziria o nmero de parceiros

sexuais. Note-se que esse debate foi tambm muito intenso no Brasil com predomnio da tese do controle sanitrio e orientao mdica (Carrara, 1996). Durante a VIII Conferncia, em que se discutiram prioritariamente assuntos concernentes ao Cdigo Sanitrio Internacional, o tema que provocou mais controvrsias, a julgar pelas atas publicadas no Boletim, foi a recomendao da unificao da autoridade sanitria nacional nos pases, seja pela criao de um Ministrio da Sade, seja pela criao de um Departamento Nacional de Sade. Durante o debate, houve clara manifestao, contrria dos delegados argentinos. A delegao do Peru apresentou documento sobre a criao de Ministrios da Higiene, denominado As bases em que se apia a criao do Ministrio da Higiene, propondo que a VIII Conferncia Sanitria PanAmericana reiterasse sua adeso reforma do Estado, com nfase na criao de ministrios consagrados aos assuntos mdico-sanitrios ou departamentos nacionais que centralizassem os servios sanitrios. Como observa Paz Soldan(BOSP, ano 7, n. 1, jan. 1928, p. 146):

Creio que a medicina social, no atual momento, deve ser aplicada com critrio poltico e que cabe aos higienistas reivindicar para si o direito de governar e dirigir as coisas relacionadas com a sade pblica seno (...) contrrias ao bem e ao progresso sanitrio da coletividade. Um Ministrio de Higiene para os Higienistas. Aqui est minha convico, (grifo meu) A presena e a nfase nesse tema tm importncia especial, pois coloca a reforma do Estado, a reforma sanitria preconizada poca, como uma preocupao importante no debate sobre a adoo de polticas comuns pelos pases americanos. No Brasil, como vimos, desde meados da dcada de 1910, isto estava colocado - a proposta de centralizao dos servios e aes de sade, preferencialmente com a criao de um ministrio. De que forma o tema estava sendo articulado por outros pases da Amrica, sobretudo da Amrica do Sul, matria que merece ateno. No Peru, por exemplo, ocorreu mobilizao social semelhante ao movimento sanitarista brasileiro - o movimento de Riforma Mdica. Seu principal lder, Paz Soldan,

publicou inclusive artigo na revista Sade, peridico oficial da Liga PrSaneamento do Brasil, que encerrava com a frase: "Eugenizar sanear"17 (Lima & Britto, 1996). Importa observar que o mdico peruano atuou tambm durante longo perodo na OPAS (no Peru) - aproximadamente cinquenta anos. Aps a VIII Conferncia, intensificou-se o processo de ratificao do Cdigo, o que possivelmente foi favorecido pelas misses de reconhecimento realizadas a vrios pases, inclusive ao Brasil, por John Long, primeiro e mais importante "comissrio itinerante" daOPAS.18 NO

Boletim Pan-

Americano de Sade (ano 8, n . l l , nov. 1929), aparece a notcia de que o Brasil ratificara o Cdigo em sesso do Congresso de 13/8, publicada no Dirio Oficial em 15 de agosto de 1929. Neste mesmo nmero, publicado o Cdigo Sanitrio em portugus (Cf. pgina seguinte). A VI Conferncia havia institudo o Conselho Diretor da Oficina Sanitria Pan-Americana, que se tornou mais efetivo aps a aprovao do Cdigo Sanitrio. Em reunio dessa instncia deliberativa, realizada em 1929, foi outorgado um voto de aplauso s autoridades sanitrias brasileiras pelos esforos empreendidos no combate febre amarela(BOSP,

ano 8, n . l l , nov.

1929). Alm das doenas transmissveis, o cncer e problemas de nutrio passaram a figurar na pauta das reunies que se seguem VIII Conferncia. Em 1934, a IX Conferncia teve incio com homenagem pstuma a Carlos Chagas. Hugh Cumming lastimou tambm as mortes de Joo Pedro de Albuquerque, do Brasil, e Mario Lebredo, de Cuba - membros do Conselho Diretor da OPAS. A delegao do Brasil, formada por Servulo de Lima e Orlando

A respeito das diferentes correntes eugenistas e de suas especificidades na Amrica Latina, ver o trabalho de Nancy Stepan (1991)18 O Boletim, ano 8, n. 11, relata a visita de Long a diversos pases da Amrica Latina na condio de representante viajero. As informaes mostram que, no Uruguai, o Cdigo Sanitrio havia sido ratificado pelo Congresso; no Paraguai, estava em processo de discusso. O informe sobre o Chile d conta de melhoria nas condies sanitrias: boa gua potvel, leite pasteurizado etc. No caso da Bolvia, refere-se ratificao do Cdigo, pouco tempo depois de sua visita. No Brasil, chegou a 7 de setembro de 1928, fazendo contato com o Dr. Barros Barreto e o Dr. Mattos, destacando, em seu relato, as medidas de controle da febre amarela e da peste.

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Roas, no se pronunciou na seo de informes gerais, pois o que levavam Conferncia referia-se profilaxia da febre amarela e da varola e deixaram ento para faz-lo na respectiva comisso. O Brasil esteve tambm em exposio no relato de Fred Soper, que havia solicitado autorizao para participar como observador, representando a Fundao Rockefeller Em seo secreta apresentou os resultados de

seu trabalho no pas. Na Ata da IX Conferncia Pan-Americana de Sade, h dois momentos de seu relato que merecem ser transcritos: Quando em 1927, se reuniu a VIII Conferncia Sanitria Pan-Americana em Lima, sabamos que a febre amarela existia na regio costeira do Brasil, acreditando-se estar ausente no resto da Amrica do Sul. Desgraadamente, logo desmentiu tal crena o inesperado surto do Rio de Janeiro em 1928 e igualmente a imprevista epidemia de 1929 em Socorro, Colmbia, (p.77) O Brasil tem reconhecido a febre amarela como um problema nacional, porm luz de nossos atuais conhecimentos deve ser considerada como um problema continental (p. 107) (grifo meu) Outro tema importante apresentado IX Conferncia pela delegao brasileira consistiu em tese sobre a univacinao contra a varola, par tindo-se da tese segundo a qual a imunizao pela primeira vacina era definitiva: "Que se sugere aos pases americanos a convenincia de adotar na profilaxia da varola a prtica de uma s vacinao, de acordo com os resultados conclusivos da experincia brasileira" (Ata da IX Conferncia, p. 204). Houve controvrsia em relao tese com contrapropostas apresentadas por delegados de outros pases, principalmente pelo sanitarista peruano Carlos Henrique Paz Soldan. No debate, afirmavam os delegados brasileiros a tendncia conservadora da sade pblica, que seria dominada pela tradio e pela rotina. Por fim, os delegados aprovaram a seguinte deliberao: AIX Conferncia Sanitria Pan-Americana tem tomado conhecimento da comunicao apresentada a seu exame pela delegao do Brasil, pela qual recomenda a prtica da univacinao antivarilica e concorda submet-la ao estudo das autoridades sanitrias dos pases da Amrica, insistindo na convenincia de investigar os resultados da estatstica de revacinao. (Ata da IX Conferncia, p. 269) Durante o evento, apresentaram-se informes e aprovaram-se resolues sobre as seguintes doenas: febre amarela, varola, alastrim (apresentada pelo Dr. Roas a tese de sua autonomia como entidade mrbida), lepra (com destaque para a recomendao de que se proibisse o casamento

de doentes com pessoas ss), doenas venreas, peste (com voto de louvor OPAS e ao Dr. Long) e brucelose. Outro tema importante foi a profilaxia da tuberculose, aprovando-se a seguinte resoluo quanto BCG: "a IX Conferncia Sanitria Pan-Americana, tendo em vista a escassa experincia sobre vacinao BCG na maioria dos pases da Amrica, resolve esperar novas observaes e tratar o assunto na prxima Conferncia Sanitria Pan-Americana" (Ata da IX Conferncia, p. 419). Nas dcadas de 1930 e 1940, o Brasil progressivamente ocupa posio de mais destaque na OPAS, O que culminou com a escolha de Joo de Barros Barreto, diretor do Departamento Nacional de Sade Publica, para Vice-Diretor na X Conferncia, realizada em Bogot, em 1938. Essa afirmao pode ser aferida inclusive pelo expressivo nmero de artigos por ele publicados no Boletim e pelo destaque atribudo a suas intervenes nas instncias de deliberao da OPAS. Durante a 4 Conferncia Pan-Americana de Diretores Nacionais de Sade, Barros Barreto, destacou o problema representado pela navegao area, indicando a necessidade de modificar alguns aspectos do texto da Conveno Sanitria Internacional. Manifestou tambm a preocupao do governo brasileiro com o tema da nutrio. O Brasil tambm se destacava em outros temas de menor expresso na agenda tradicional de sade pblica, como o da higiene mental, sendo apontado como um dos primeiros pases na Amrica Latina a criar o Curso de Psiquiatria e o primeiro, em todo o continente americano, a fundar uma sociedade nessa rea: a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, fundada em 1907 (BOSP, ano 20, n.10, out. 1941). As doenas transmissveis continuavam, entretanto, a ser o destaque nas notcias sobre o Brasil, que oscilavam entre manifestaes de jbilo, como, por exemplo, na manifestao oficial da OPAS diante do sucesso da campanha de erradicao do mosquito Anopheles gambiae, e o registro de surtos epidmicos de outras doenas, como a epidemia de poiliomielite em 1939, no Rio de Janeiro, uma das mais severas registradas no Brasil (BOSP, ano 20, n.10, out. 1941).

A preocupao em veicular, no Boletim da Oficina Sanitria PanAmericana, informaes do governo brasileiro, no campo da sade, esteve presente desde 1926, quando Clementino Fraga era o Diretor do Departamento Nacional de Sade Pblica, e se passou a publicar o 'Noticirio brasileiro'. Aps a revoluo de 1930, com a criao do Ministrio de Educao e Sade, a ateno com a imagem pblica relacionada s polticas sociais e, especifica

mente s de sade pblica, se acentuaria particularmente no perodo autoritrio do Estado Novo (1937-1945). O ministro Gustavo Capanema e, na implementao dos assuntos de sade, Joo de Barros Barreto desenvolveram intensa atividade de divulgao no apenas de sucessos no combate a doenas transmissveis, mas de reorientaes na administrao pblica, com nfase em racionalidade, extenso territorial e constituio de slida burocracia. a partir desse enquadramento, aliado atmosfera da Segunda Guerra Mundial, que pode ser melhor avaliado o impacto da realizao da XI Conferncia Sanitria Pan-Americana, no Rio de Janeiro, em 1942. No plano interno, um ano antes, durante as comemoraes do aniversrio do Estado Novo, o ministro Capanema promovera a I Conferncia Nacional de Sade, dando incio, em um perodo ditatorial, ao estabelecimento de frum de especial significado para a constituio da poltica nacional de sade (Hochman & Fonseca, 2000). A XI Conferncia Pan-Americana de Sade teve incio na data comemorativa da Independncia do Brasil. Em sua comisso organizadora, contou com Barros Barreto (presidente), Raul Godinho (secretrio geral executivo) e, na posio de vogais, com Mrio Pinoti, Carlos S, Dcio Parreiras e Humberto Pascali. Entre seus relatores, figuravam tambm nomes expressivos do sanitarismo e da cincia nacionais: Adelmo Mendona, Carlos Chagas Filho, Eder Jansen de Mello, Francisco Borges Vieira, Francisco de Magalhes Neto, Gensio Pacheco, Geraldo Paula Souza, Guilherme Lacorte, Henrique Arago, Otavio de Magalhes, Paulo Parreira Horta e Samuel Pessoa. Outro evento importante, paralelo Conferncia, foi a Exposio PanAmericana de Higiene, em que se destacavam as realizaes do Brasil no combate s doenas transmissveis, notadamente a febre amarela e a malria. O conflito mundial, e como corolrio a defesa continental e da sade, figurou como primeiro e mais importante tema abordado, inclusive com a indicao de realizao de inqurito sobre a distribuio geogrfica das doenas transmissveis de importncia em tempo de guerra. Sugeriu-se tambm a coope

rao integral entre os servios de sade, militares e civis (Ata Final da XI Conferncia, BOSP, ano 22, n. 3, mar. 1943). Ademais, a primeira metade do sculo XX, e a no reside naturalmente nenhum paradoxo, viu nascer as formas modernas de cooperao internacional e tambm a generalizao da guerra como fenme no sos so to expressivos como o de Fred Soper (1943: 321): Provavelmente o maior obstculo erradicao de enfermidades transmitidas por artrpodes a guerra. Em tempos de paz, o trnsito global, especialmente o areo, uma constante ameaa para esses programas, porm resulta de menor importncia comparado s operaes militares em grande escala. Certamente no existe mais dura prova para as tcnicas de medicina preventiva do que a apresentada pelas condies de prolongada campanha militar e s