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A concretização ativa dos direitos fundamentais... Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 11 A CONCRETIZAÇÃO ATIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO POR MEIO DA SUPERAÇÃO DO LEGADO EPISTEMOLÓGICO-POSITIVISTA DA NEUTRALIDADE THE ACTIVE IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN CONTEMPORARY CONSTITUTIONALISM THROUGH OVERCOMING THE LEGACY OF EPISTEMOLOGICAL- POSITIVE NEUTRALITY Jairo Néia Lima 1 Resumo O presente estudo que ora se descortina tem por escopo a análise de um dos legados do positivismo jurídico, quais sejam, os seus pressupostos epistemológicos, dando ênfase à neutralidade imposta pelo juspositivismo. Característica esta que fundamentava o alcance do verdadeiro conhecimento imune a qualquer valoração por parte do sujeito. Palavras-chave: Direitos fundamentais; constitucionalismo; contempora- neidade. Abstract The present study reveals that it is now scope to an analysis of the legacy of legal positivism, that is, their epistemological assumptions, emphasizing the neutrality imposed by juspositivismo. Characteristic that cemented the power of true knowledge immune to any evaluation by the subject. Keywords: Fundamental rights, constitutionalism; contemporary. Sumário: Introdução. 1. Positivismo Jurídico. 2. A neutralidade (legado epistemológico- positivista) como óbice à concretização dos direitos fundamentais. 3. Da superação da neutralidade. Conclusão. Referências bibliográficas. 1 Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná UENP/Campus Jacarezinho-PR. Professor da Faculdade do Norte Pioneiro FANORPI. Bolsista da CAPES.

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A CONCRETIZAÇÃO ATIVA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS NO CONSTITUCIONALISMO

CONTEMPORÂNEO POR MEIO DA SUPERAÇÃO DO

LEGADO EPISTEMOLÓGICO-POSITIVISTA DA

NEUTRALIDADE

THE ACTIVE IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN CONTEMPORARY CONSTITUTIONALISM THROUGH OVERCOMING THE LEGACY OF EPISTEMOLOGICAL-

POSITIVE NEUTRALITY

Jairo Néia Lima1

Resumo

O presente estudo que ora se descortina tem por escopo a análise de um dos legados do positivismo jurídico, quais sejam, os seus pressupostos epistemológicos, dando ênfase à neutralidade imposta pelo juspositivismo. Característica esta que fundamentava o alcance do verdadeiro conhecimento imune a qualquer valoração por parte do sujeito.

Palavras-chave: Direitos fundamentais; constitucionalismo; contempora-neidade.

Abstract

The present study reveals that it is now scope to an analysis of the legacy of legal positivism, that is, their epistemological assumptions, emphasizing the neutrality imposed by juspositivismo. Characteristic that cemented the power of true knowledge immune to any evaluation by the subject.

Keywords: Fundamental rights, constitutionalism; contemporary.

Sumário: Introdução. 1. Positivismo Jurídico. 2. A neutralidade (legado epistemológico-

positivista) como óbice à concretização dos direitos fundamentais. 3. Da superação

da neutralidade. Conclusão. Referências bibliográficas.

1 Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP/Campus

Jacarezinho-PR. Professor da Faculdade do Norte Pioneiro – FANORPI. Bolsista da CAPES.

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INTRODUÇÃO

Tornou-se constante no meio da pesquisa acadêmica o debate em torno do

positivismo jurídico e, principalmente a partir da segunda metade do século XX, a

discussão em torno de sua crise e possível superação. Tal fato se deve à inegável

contribuição dessa doutrina que se iniciou no campo filosófico e aportou em terras

jurídicas para fundamentar um modo próprio de formação e aplicação do direito. O

presente estudo que ora se descortina tem por escopo a análise de um dos legados

do positivismo jurídico, quais sejam, os seus pressupostos epistemológicos, dando

ênfase à neutralidade imposta pelo juspositivismo. Característica esta que

fundamentava o alcance do verdadeiro conhecimento imune a qualquer valoração

por parte do sujeito.

A concretização dos direitos mais elementares do ser humano é imposição

do constituinte originário que vislumbrou a possibilidade de transformação da

realidade brasileira tão excludente e marginalizante. Tais direitos da pessoa humana

podem acabar inefetivos se o responsável pela decisão levar em conta somente a

observação distante e neutra do objeto para a formação do seu julgado, uma vez

que, nem sempre é possível subsumir os fatos de uma sociedade tão complexa e

dinâmica em uma moldura legislativa prévia, ainda que geral e abstrata. Por isso,

faz-se necessário o debate em torno do caráter epistemológico do modo de

aplicação do direito com base positivista e sua possível superação a fim de que essa

atividade seja norteada pela realização máxima dos mandamentos constitucionais.

Para trilhar esse caminho, a pesquisa elaborada traz em seu início

considerações breves em torno do jusnaturalismo e o surgimento do positivismo

jurídico, apresentando ainda as principais características que envolvem o tema, sem

pretensão de esgotá-las. Na sequência, levanta reflexões acerca dos modelos

exclusivo e inclusivo do positivismo jurídico e sua possível (in)compatibilidade com o

atual ordenamento constitucional. Já num segundo item, apresentam-se os

pressupostos epistemológicos do positivismo, sua pretensão de cientificidade bem

como a neutralidade como uma das suas consequências, sem deixar de levar em

conta a forma como essa neutralidade se infiltrou na concepção do julgador.

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A pretensa neutralidade como característica essencial do sujeito

cognoscente e do julgador é analisada ainda sob o viés do novo constitucionalismo

que exige a realização máxima dos direitos fundamentais, como verdadeiros centros

irradiadores de transformação social. Esse comprometimento com a transformação

social dos mais necessitados é fundado no pensamento filosófico da Filosofia da

Libertação, que é abordada em determinado ponto do texto.

Por fim, o trabalho discute a respeito da neutralidade do julgador como um

possível obstáculo à realização dos direitos fundamentais e sua superação ou não

em tempos de Estado Democrático de Direito com constituições principiológicas e

normativas. Ressalte-se que o presente estudo não tem o intento de esgotar a

temática, tampouco trazer conclusões descomprometidas com a concretização plena

da dignidade da pessoa humana – vetor valorativo do ordenamento jurídico

brasileiro.

1 POSITIVISMO JURÍDICO

As origens históricas do jusnaturalismo remetem à Antiguidade Clássica,

com relação mais direta com a cultura grega, e seu eixo central gira em torno da

existência de um direito natural. Esse direito seria universal, imutável, conhecido por

meio da razão e imposto pela natureza ou pelo próprio Deus (modelo metafísico). O

direito natural é anterior ao homem, por tal motivo este deve obediência àquele.

O surgimento da modernidade, que também pode ser relacionado com a

conquista da América em 1492, trouxe consigo a passagem do teocentrismo

medieval para o antropocentrismo, entre outros legados. O jusnaturalismo passa

então a dar ênfase à razão humana e não mais à origem divina; nesse contexto é

importante a contribuição de Hugo Grócio (1583-1645) em sua obra De jure belli ac

pacis.

O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência disto vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza. (GRÓCIO apud BOBBIO, 1995, p. 20-21, grifo do autor)

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A desvinculação do caráter metafísico possibilita ainda o crescimento do

conhecimento fundado na razão e do ideal de liberdade em confronto com a

Monarquia Absoluta. Sob essa influência, a burguesia ascendente tomou os

postulados libertários do jusnaturalismo para derrotar o absolutismo e assim chegar

ao poder, pois “os princípios teóricos do jusnaturalismo consagram a anárquica

rebeldia contra a ordem opressora e discricionária, bem como a via revolucionária

para a libertação e para a conquista do poder” (WOLKMER, 2000, p. 156).

Nesse mesmo sentido,

A crença de que o homem possui direitos naturais, vale dizer um espaço de integridade e de liberdade a ser preservado e respeitado pelo próprio Estado, foi o combustível das revoluções liberais e fundamento das doutrinas políticas de cunho individualista que enfrentaram a monarquia absoluta. (BARROSO, 2006, p. 20-21)

A tomada do poder pela burguesia aponta o apogeu do jusnaturalismo,

todavia as promessas anunciadas por essa doutrina não ultrapassaram os limites da

própria classe burguesa, não beneficiando dessa forma aqueles que mais

precisavam dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O auge do

jusnaturalismo pode ser observado outrossim na transposição do direito racional

para os códigos – nova forma de sistematização do direito iniciada pelo Código Civil

napoleônico de 1804. Ao ser incorporado sob a forma codificada não se via outra

fonte de direito que não a própria legislação. O caráter revolucionário foi substituído

pelo da manutenção/estabilização, abrindo espaço para uma nova forma de explicar

e aplicar o direito: o positivismo jurídico.

O positivismo no seu aspecto jurídico tem como solo sobre o qual é

construído o fenômeno das grandes codificações do século XIX. O direito natural

transposto para os códigos deixa de ter suas características essenciais e se

transforma num instrumento formal de aplicação jurídica. Para Bobbio, “o positivismo

jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo”

(1995, p. 26, grifo do autor). No processo histórico que erigiu o direito positivo como

o único direito, a dualidade direito natural e direito positivo foi vista de variadas

formas. Na Antiguidade o direito natural não era superior ao positivo, pois esse era

visto como especial em relação àquele. Já no período medieval houve uma

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superioridade do direito natural porque era visto como emanação da vontade divina.

Ao final desse processo, o direito natural deixa de ser considerado direito e somente

o direito positivo é qualificado como tal (BOBBIO, 1995, p. 25-26), demonstrando a

partir daí a sua supremacia que iria influenciar sobremaneira o modo pelo qual o

direito seria compreendido.

O positivismo apontado até o presente momento vincula-se ao positivismo

denominado de jurídico com forte influência da Escola da Exegese francesa, no

entanto, essa corrente de pensamento pode ser verificada em diversos setores das

ciências: tem-se o positivismo filosófico de Augusto Comte, o positivismo sociológico

de Émile Durkheim, o positivismo histórico utilizado por Leopold Von Ranke e outros

(FONSECA, 2009, p. 144-146), para estabelecer uma delimitação mínima o estudo

apresentado abordará apenas o positivismo jurídico.

Em que pese as diferentes formas em que o positivismo jurídico foi

analisado (Bentham, Kelsen, Hart e inúmeros outros), alguns pontos em comuns

podem ser encontrados nessa doutrina. As principais características do positivismo

jurídico podem ser assim elencadas (BOBBIO, 1995, p. 131-134):

a) Direito como fato e não como um valor: o positivismo objetivava dar um

caráter científico ao direito, por isso, a atitude do positivista se encerra na

observação do objeto tal como ele é e não como deveria ser, caberia somente a

descrição da norma e não uma tomada de posição frente a ela.

b) Direito em função da coação, ou seja, o direito estabelece a forma como a

coação estatal irá ser utilizada a fim de conformar os comportamentos sociais.

c) Legislação como única fonte do direito: em contraposição ao direito do

século X ao XII em que predominava o pluralismo das fontes (direito das

corporações, das comunas, dos reinos, equidade, costumes), o positivismo jurídico

ao promulgar os grandes códigos sepulta as formas extraestatais de formação

jurídica e o Estado assume a monopólio da produção do direito dando início ao

monismo jurídico2.

2 O monismo “atribui ao Estado Moderno, o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas,

ou seja, o Estado é o único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas

de relações sociais que se vão impondo” (WOLKMER, 1997, p. 40-41). Em contraposição, o

pluralismo jurídico “não só deixa de associar o Direito com o Direito Positivo, como, sobretudo,

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d) Teoria imperativa da norma jurídica: a definição da norma jurídica tem a

estrutura de um comando (autoridade do sujeito ativo, obrigação do sujeito passivo,

a razão de obedecer está na vontade superior de quem emana e o não cumprimento

da obrigação gera sanção).

e) Coerência e completude do ordenamento jurídico: diversamente do

período pré-codificação quando o direito era essencialmente fragmentário, as

codificações objetivaram formar um documento único que pudesse regular todas as

condutas humanas, por tal motivo, o ordenamento jurídico deveria ser completo e

coerente, isento de lacunas e antinomias.

f) Interpretação mecanicista: a atividade interpretativa deveria restringir-se à

declaração e reprodução do direito preexistente, não podendo ter qualquer

conotação criativa ou produtiva de um novo direito.

g) Positivismo jurídico como ideologia: não bastava a obrigação de

obediência aos postulados juspositivistas era necessário considerar correto tal

procedimento, como se houvesse uma obrigação moral de obediência ao positivismo

jurídico, “por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como

também de querer o Direito” (BARROSO, 2006, p. 26, grifo do autor).

André-Jean Arnaud também traz os pressupostos de uma Teoria do Direito

positivista:

a) não há Direito Natural e só o Direito Positivo existe; b) o Direito é tido como um conjunto de regras, ou seja, de mandamentos que expressam um produto da vontade humana ou da autoridade; c) esses mandamentos emanam do soberano ou do Estado; d) eles são relacionados a sanções, que garantem a aplicação do Direito pela força; e) eles formam um sistema fechado, completo e coerente; f) a atividade dos juízes é uma atividade lógica, posto que toda decisão pode ser deduzida de regras previamente emitidas pelo soberano, sem referência aos fins sociais ou às regras morais. (ARNAUD apud ARCELO, 2009, p. 21)

Tais características podem ser encontradas com maior ou menor

intensidade a depender do referencial teórico adotado, todavia, de alguma forma

admite a existência do Direito sem o Estado e, mais ainda, que pode existir até Direito Positivo

sem Estado e equivalente ao do Estado” (WOLKMER, 1997, p. 56).

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pelo menos uma delas esteve presente nas construções teóricas que tinham como

ponto de partida o positivismo jurídico.

O juspositivismo, ademais, conheceu outras vertentes que resultaram dos

debates entre Herbert Hart e Ronald Dworkin na década de 70 do século XX.

Quero lançar um ataque geral contra o positivismo e usarei a versão de H. L. A. Hart como alvo, quando um alvo específico se fizer necessário. Minha estratégia será organizada em torno do fato de que, quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito de direitos e obrigações jurídicos, particularmente naqueles casos difíceis

3 nos quais nossos problemas com

esses conceitos parecem mais agudos, eles recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões. Argumentarei que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras. (DWORKIN, 2002, p. 32-33)

Dworkin propôs um modelo diferenciado de regras e princípios e Hart

rebateu as críticas feitas sobre a sua obra O Conceito de Direito, trazendo uma nova

defesa do positivismo jurídico. “Ao se defender, Hart assume uma posição menos

radical do positivismo e abre espaço ao que veio a ser consagrado como ‘modelos

qualificativos de positivismo jurídico’” (MOREIRA, 2009, p. 237).

Os modelos qualificativos de positivismo jurídico podem ser divididos em:

positivismo exclusivo e positivismo inclusivo. O positivismo jurídico exclusivo

“acentua que, como uma questão de necessidade conceitual, as determinações do

direito nunca podem estar em função de considerações morais” (DUARTE;

POZZOLO, 2006, p. 42). O membro que mais representa essa forma de positivismo

está no nome de Joseph Raz. Para aqueles que defendem essa corrente, a

categoria de “direito” só pode advir das fontes sociais e jamais de qualquer

3 É importante observar a crítica que Lenio Streck faz em torno da divisão entre casos fáceis e

difíceis. Para ele, considerar a existência dessa dualidade é desconsiderar a pré-compreensão de

um problema, ou seja, é manter o esquema sujeito-objeto onde ser fácil ou difícil estaria no objeto

independente dos pré-juízos do sujeito. “Casos fáceis (easy cases) e casos difíceis (hard cases)

partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo que lhes é condição de possibilidade: a

pré-compreensão (Vorverständnis). Esse equívoco de separar easy cases de hard cases é

cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teoria discursivo-argumentativas, valendo

citar, por todos, Alexy e Atienza” (STRECK, 2008, p. 299). Streck conclui dizendo, “o problema de

um ‘caso’ ser fácil (easy) ou difícil (hard) não está nele mesmo, mas na possibilidade – que advém

da pré-compreensão do intérprete – de se compreendê-lo” (2008, p. 301).

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referência sobre o mérito ou conteúdo da norma, há uma separação completa entre

direito e moral. A sanção e a autoridade competente são os critérios exclusivos para

a legitimação das normas jurídicas. Objetiva ainda conhecer o direito tal como é,

abstraindo-se de qualquer tentativa de corrigi-lo ou questioná-lo (DIMOULIS apud

MOREIRA, 2008, p. 238).

Essa forma de positivismo não é adequada ao atual estágio de

desenvolvimento do direito, principalmente em tempos de constituições normativas e

principiológicas em que os direitos fundamentais ocupam um local de destaque no

ordenamento jurídico representando ainda o foco de resistência contra as possíveis

arbitrariedades cometidas tanto na esfera pública como na particular. O positivismo

jurídico exclusivo não se preocupa com a legitimidade do direito já que permanece

distante dos anseios sociais sendo transformado em instrumento mecânico de

perpetuação do status quo, assim, deixa de ser visto como obrigação de

transformação da realidade social.

Do outro lado, a vertente do positivismo jurídico inclusivo contou como

primeiro adepto com Herbert Hart na publicação do posfácio à sua obra O Conceito

de Direito quando rebate as críticas feitas por Dworkin. O positivismo inclusivo

ameniza as afirmações do positivismo exclusivo afirmando que é possível que o

direito possa estar em função de considerações morais, no entanto, essa relação

não é necessária.

Para o positivismo exclusivo os critérios morais não pertencem ao sistema

jurídico, já para o positivismo inclusivo a moralidade poderá ser uma condição de

legalidade desde que haja uma regra de reconhecimento para tanto.

É preciso deixar assentado que, quando a regra de reconhecimento incorpora algum princípio moral junto aos outros critérios de reconhecimento de um sistema jurídico, nitidamente ela está transformando uma determinada fonte social com caráter moral em condição de legalidade naquele sistema. É dizer, que a regra de reconhecimento, como regra convencional, adota determinadas razões morais como critérios de reconhecimento e validação de outras regras jurídicas aceitas pelos indivíduos de uma comunidade. (DUARTE; POZZOLO, 2008, p. 49)

A questão que se impõe é se o positivismo inclusivo pode ser uma teoria

apta a explicar o fenômeno jurídico em tempos de neoconstitucionalismo. Em que

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pese a abertura aos parâmetros morais que essa forma de positivismo possibilitou,

não se deve perder de vista que as raízes continuam plantadas em solo positivista. A

possibilidade de padrões morais serem fontes de legitimação do direito não quer

dizer muita coisa para essa vertente, pois ficam na dependência da regra de

reconhecimento. Se essa regra não permitir não poderá haver a relação entre direito

e moral. O positivismo inclusivo ainda recebe críticas no sentido de que os princípios

enquanto padrões morais são distanciados do ordenamento jurídico não gerando

qualquer obrigação no âmbito do direito.

O problema reside no fato de que o positivismo – renovado ou não – possui vícios que o tornam incompatível com as exigências do direito entendido nos quadros do novo constitucionalismo do século XX, que passa por uma verdadeira revolução de conteúdo. [...] Desse modo, o que deve ser considerado como superado no positivismo – nas suas mais variadas formas – é a análise que deve ser feita não apenas sobre a vigência da lei, mas sobre sua validade substancial. E isso faz a diferença, exatamente porque na diferença – que é ontológica – entre texto e norma e entre vigência e validade, que se encontra o ponto de superação da lei plenipotenciária, “blindada” pelas posturas positivistas contra os valores substanciais da Constituição e da intervenção da jurisdição constitucional. (STRECK, 2005, p. 157-158, grifo do autor)

Denota-se, portanto, que o positivismo jurídico em ambas as formas

apresentadas não consegue dar conta de forma suficiente à abertura proporcionada

pelos princípios constitucionais que trazem consigo uma carga moral e exigem um

comprometimento maior do operador jurídico com as necessidades concretas,

afastando-se da concepção formal e avalorativa que o positivismo jurídico impõe.

Paolo Comanducci elenca ainda três formas de abortar o positivismo:

ontológico, ideológico e metodológico (2008, p. 340), que muito se aproximam dos

aspectos do positivismo jurídico trazidos por Bobbio4. Para o positivismo ontológico

4 Para Bobbio (1995, p. 233-238), o positivismo jurídico apresenta-se sob três aspectos, quais

sejam, um método para o estudo do direito, uma teoria do direito e uma ideologia do direito. A

ideologia do direito positivista pode se expressar tanto de forma extremista como moderada. Como

teoria, o positivismo jurídico abarca as seguintes concepções: a teoria cognitiva, legislativa e

imperativa do direito (formam a teoria juspositivista em sentido amplo), a teoria da coerência e

completude do ordenamento jurídico e a teoria da interpretação mecanicista do direito (juntamente

com as teorias anteriores formam uma teoria juspositivista em sentido estrito). No tocante ao

método, o método positivista corresponde ao método científico para se fazer ciência jurídica. Ao

concluir o seu estudo, Bobbio afirma: “dos três aspectos nos quais se pode distinguir o positivismo

jurídico, me disponho a acolher totalmente o método; no que diz respeito à teoria, aceitarei o

positivismo em sentido amplo e repelirei o positivismo em sentido estrito; no que concerne à

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o único direito existente é aquele posto artificialmente pelos seres humanos dotados

de autoridade para tanto. Já o positivismo ideológico encara o fenômeno jurídico em

razão da obrigatoriedade de obediência das normas. Por fim, o positivismo

metodológico defendido por Comanducci resume-se na afirmação de que é possível

identificar e descrever o direito tal como ele é (COMANDUCCI, 2008, p. 340-343).

Como visto, o debate em torno do positivismo jurídico alcançou um novo

status a partir da segunda metade do século XX. O reconhecimento da

normatividade dos princípios possibilitou uma evolução do direito que até então

havia convivido apenas com os princípios como pautas metafísicas (jusnaturalismo)

e posteriormente com os princípios com caráter supletivo da legislação (positivismo).

Tal redirecionamento foi denominado de pós-positivismo. A respeito do tema, são as

palavras de Luis Roberto Barroso: “o pós-positivismo não surge com o ímpeto da

desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia

sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele

reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade” (2006, p. 28). Paulo Bonavides se

manifesta no seguinte sentido:

é na idade de pós-positivismo que tanto a doutrina do Direito Natural como a do velho positivismo ortodoxo vêm abaixo, sofrendo golpes profundos e crítica lacerante, provenientes de uma reação intelectual implacável, capitaneada sobretudo por Dworkin, jurista de Harvard. Sua obra tem valiosamente contribuído para traçar e caracterizar o ângulo novo de normatividade definitiva reconhecida aos princípios. (2000, p. 237)

Ao se reconhecer a normatividade dos princípios, o ordenamento jurídico se

abre para que por meio deles se penetrem conteúdos morais de justiça5.

As divisões trazidas até aqui têm o objetivo de dar uma visão ampla em

torno das discussões atuais em torno do positivismo jurídico, sem a pretensão de

esgotá-las. O fenômeno do positivismo jurídico abarca um rol extenso de disputas

teóricas e filosóficas que não caberiam no presente trabalho. Todavia, o esforço até

ideologia, embora seja contrário à versão forte do positivismo ético, sou favorável, em tempos

normais, à versão fraca, ou positivismo moderado” (1995, p. 238). 5 Frise-se a posição de Lenio Streck que vê na compreensão hermenêutica dos princípios uma

possibilidade de “fechar” a interpretação com o objetivo de diminuir o espaço da discricionariedade

do intérprete (2008, p. 304-305).

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aqui despendido é suficiente para avançar-se na análise e partir-se para o viés

epistemológico do positivismo.

2 A NEUTRALIDADE (LEGADO EPISTEMOLÓGICO-POSITIVISTA) COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O positivismo, como demonstrado acima, gerou influências em diversos

ramos do pensamento humano, seu objetivo maior era dar um caráter científico a

eles. Com o direito não poderia ser diferente, para o positivismo jurídico o fenômeno

jurídico, de forma especial o estudo da norma jurídica, deveria ser encarado tal qual

as ciências físico-matemáticas (unitarismo epistemológico) e para isso era

necessária a adoção de alguns pressupostos epistemológicos a fim de que o

conhecimento produzido pelo direito pudesse ser qualificado como verdadeiramente

científico, estes foram trazidos por Boaventura de Sousa Santos quando cita

Anthony Giddens6.

O primeiro pressuposto está na constatação de que a realidade é dotada de

exterioridade. Segundo essa afirmação, o objeto existe independentemente do

sujeito, é bastante em si e não precisa do sujeito para ter sua existência confirmada

(FONSECA, 2009, p. 146). O sujeito deve se manter do lado de fora para que não

interfira no processo de conhecimento do objeto, sob pena de subjetivar o referido

processo, situação essa que se afasta das bases positivistas que viam na

objetivação o caminho indispensável para a verdadeira ciência.

Como consequência da concepção anterior, o segundo pressuposto está na

asserção de que o conhecimento é representação do real. Se o objeto é dotado de

exterioridade própria, ou seja, é em si mesmo, a operação de conhecimento do

6 “Para os efeitos aqui prosseguidos, entendo por positivismo o que Giddens designa por filosofia

positivista, ainda que caracterize de modo algo diferente. Trata-se de uma concepção que se

assenta nos seguintes pressupostos: a “realidade” enquanto dotada de exterioridade; o

conhecimento como representação do real; a aversão à metafísica e o caráter parasitário da

filosofia em relação à ciência; a dualidade entre fatos e valores com a implicação de que o

conhecimento empírico é logicamente discrepante do prosseguimento de objetos morais ou da

observação de regras éticas; a noção de “unidade da ciência”, nos termos da qual as ciências

sociais e as ciências naturais partilham a mesma fundamentação lógica e até metodológica”

(SANTOS, 1989, p. 52). Para uma delimitação mínima, o trabalho apresentado restringe-se a

apenas alguns desses pressupostos.

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sujeito será capaz de descrever a essência do objeto. Assim explicita Ricardo

Marcelo Fonseca:

A tarefa do sujeito (do “pintor”) é meramente mecânica, é meramente passiva. Ele não pode “representar” a paisagem – pois isso implicaria no fato dele ter que imprimir na pintura a sua técnica, o seu conhecimento de pintura, enfim, a sua “subjetividade”; ele deve, isso sim, “apresentar a paisagem” como ela é, pois o conhecimento, segundo o positivismo, tem essa capacidade de apresentá-lo. (2009, p. 148)

Dessa concepção resulta o ideal de objetividade do conhecimento científico

conforme as palavras de José Carlos Köche:

O ideal de objetividade, por sua vez, pretende que as teorias científicas, como modelos teóricos representativos da realidade, sejam construções conceituais que representem com fidelidade o mundo real, que contenham imagens dessa realidade que sejam “verdadeiras”, evidentes, impessoais, passíveis de serem submetidas a testes experimentais e aceitas pela comunidade científica como provadas em sua veracidade. (2009, p. 32, grifo do autor)

Sob esse pressuposto, a apresentação do objeto deve estar desvestida de

qualquer subjetividade por parte do sujeito, denotando uma atitude essencialmente

neutra por parte de quem irá conhecer.

O terceiro e último pressuposto epistemológico consiste na existência da

dualidade entre fatos e valores. Nessa separação incisiva os fatos relacionam-se

exclusivamente com os objetos e os valores restringem-se à ordem dos sujeitos. “No

processo cognitivo, entende-se que não existem valores no objeto bem como não se

pode encontrar uma instância fática com o sujeito” (FONSECA, 2009, p. 149).

Complementando, Luiz Fernando Coelho afirma:

A partir de algumas teses de Carnap e Wittgenstein, sobretudo, o paradigma epistêmico do positivismo lógico propôs-se a desenvolver um discurso que assegurasse o autocontrole do discurso teórico e, por outro lado, estivesse apto a identificar-se como representação fiel do mundo, legitimada pela verificação, seja a compreensão empírica, seja a demonstração analítica. Aceitando as premissas basilares da filosofia positivista, procuraram privilegiar a consistência lógico-formal do discurso científico, submetendo-se

ao ideal de sua axiomatização. (2003, p. 57)

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Adotando-se todos esses pressupostos epistemológicos os positivistas

acreditavam alcançar o conhecimento puro e verdadeiro do objeto, principalmente

pela atitude neutra por parte do observador. A respeito da origem histórica do

problema da neutralidade científica, Hilton Japiassu afirma:

No clima da sociologia alemã, onde o problema surgiu de modo mais explícito no início de nossos séculos, duas posições se defrontam: de um lado, situam-se os defensores da neutralidade cientifica; do outro, os partidários de um engajamento por parte dos cientistas. Os “neutros” acham que os “engajados” acabam por envolver-se no sistema social vigente e por justificá-lo. Os “engajados” acusam os “neutros” de absenteísmo: quem cala consente; e o silêncio contra o regime é uma forma de justificá-lo. (1975, p. 32)

Todavia, essa neutralidade infiltrou-se de forma incisiva na forma de

conhecer e aplicar o direito transformando-se num verdadeiro dogma da

neutralidade que se impôs como característica essencial dos julgadores. Sua

atuação deveria ter cunho descritivo dos dados objetivos repassados pela realidade

fática, se atuasse de forma prescritiva comprometeria a neutralidade e por

consequência todo o processo científico.

Nesse sentido,

O cérebro do magistrado receberia imparcialmente e passivamente as informações advindas e já prontas de fora, provenientes da relação jurídica processual e das normas jurídicas positivadas. O conhecimento não seria nada mais do que o resultado do processamento de tais informações. O conjunto de informações captadas pelo magistrado é proveniente do primado da lei como regra geral abstrata e universalmente obrigatória (positivismo jurídico). A atividade do juiz não passaria de uma tarefa vinculada ao conhecimento, sendo a interpretação uma mera leitura da norma escrita. (SOUZA, 2008, p. 183-184)

Nesse ponto, é importante diferenciar, ainda que modestamente, a

neutralidade da imparcialidade judicial. A neutralidade que recebeu forte influência

da epistemologia positivista, como demonstrado acima, está relacionada com a

abstenção ideológica por parte do julgador, a desconsideração com o direito a ser

protegido. A imparcialidade, por outro lado, configura-se como um legado garantista

da Modernidade relacionado com a atividade jurisdicional a fim de que não houvesse

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subordinação do Poder Judiciário em relação aos demais poderes. Artur César de

Souza ao tratar do tema aduz:

A partir do término da 2ª Guerra Mundial, a exigência da imparcialidade judicial tornou-se um postulado universal consubstanciado nos diversos tratados internacionais difundidos nas democracias ocidentais. Atualmente, esta garantia encontra-se reconhecida na Declaração dos Direitos Humanos (art. 10), Declaração Americana dos Direitos do Homem (art. 26, 2), Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14, I), Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (art. 6, 1) etc. (2008, p. 28)

No âmbito processual a imparcialidade está ligada aos casos de

impedimento e suspeição que estão disciplinados nos artigos 252 e 254 do Código

de Processo Penal e artigos 134 e 135 do Código de Processo Civil.

José Renato Silva Martins afirma:

A posição aqui assumida é que neutralidade é a possibilidade da manutenção da indiferença diante de um quadro que manifesta posições antagônicas; posições estas que precisam ser pacificadas no âmbito do intermediário social, que é o local privilegiado assumido pelo Direito. [...] pode-se afirmar que a imparcialidade é um pressuposto processual de existência válida do processo, dando às partes igualdade de condições para exercerem suas atividades postulatórias e instrutórias na formação do convencimento do magistrado. (2007, p. 69-70)

A neutralidade enraizada no positivismo jurídico afasta o julgador da relação

jurídica processual que se impõe diante dele, mantém-no então do lado de fora, pois

a realidade é dotada de exterioridade própria, exclui a interação-construção do

julgador com o caso concreto. Essa forma de atuar apresenta, outrossim, outra

incompatibilidade com a atual fase de desenvolvimento histórico do homem (a qual

este trabalho reputa a mais grave), qual seja, continuar postulando a neutralidade

como uma característica essencial para o julgador impede que o mesmo atue de

forma mais efetiva na proteção dos direitos fundamentais e, por consequência, das

minorias sociais. Em outras palavras, o rol de direitos e garantias que a Constituição

Federal de 1988 elenca pode estar comprometido se encontrar na prática forense

julgadores que levantam a bandeira da neutralidade como impedimento à

participação ativa na concretização daqueles direitos.

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A Constituição Federal de 1988 inaugurou em terras brasileiras o que se

denominou de Estado Democrático de Direito, que inovou na peculiar atenção dada

aos princípios constitucionais e em especial aos direitos fundamentais. As inovações

nesse campo relacionam-se com sua situação topográfica no início do texto

constitucional; o extenso rol desses direitos; o status reforçado conferido pelo art. 5°,

§ 1° (aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais) bem como a cláusula de

abertura do art. 5°, § 2° e o amplo sistema de controle de constitucionalidade. Não

se pode deixar de levar em conta o destaque inovador no tocante à dignidade da

pessoa humana como fundamento da República (art. 1°, III, da CF) bem como aos

objetivos fundamentais da República brasileira elencados no artigo 3° do referido

texto7.

Esse legado do constituinte originário não pode ser desprezado pelos

operadores do direito sob pena de a Constituição não irradiar toda a sua

potencialidade. O real significado da ordem jurídica em tempos atuais está na

seguinte afirmação de Lenio Streck:

É preciso compreender que o direito – neste momento histórico – não é mais ordenador, como na fase liberal; tampouco é (apenas) promovedor, como era na fase conhecida por “direito do Estado Social” (que nem sequer ocorreu na América Latina); na verdade, o direito, na era do Estado Democrático de Direito, é um plus normativo/qualitativo em relação às fases anteriores, porque agora é um auxiliar no processo de transformação da realidade. (2008, p. 289, grifo do autor)

Os direitos fundamentais são a arma que o operador jurídico tem à sua

disposição para enfrentar os abusos, desmandos, arbitrariedades e corrupção que

mancham e destroem a estrutura política brasileira. Diante dessa exigência

normativa, o Poder Judiciário deve tomar posição a favor da Constituição e de suas

normas, tal fenômeno tem sido designado de ativismo judicial. Para LuÍs Roberto

Barroso, ativismo judicial é “uma atitude, a escolha de um modo específico e

7 Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação.

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proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e o seu alcance”

(2009, p. 06). As condutas ativistas podem ser assim elencadas:

(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de

políticas públicas. (BARROSO, 2009, p. 06)

Na esfera infraconstitucional,

a partir do momento histórico em que se postula a existência de um processo justo e équo, legitima-se maior atuação do órgão jurisdicional tanto na esfera do processo civil como no âmbito do processo penal, uma vez que eventual atividade probatória ex officio não tem o condão, por si só, de ferir o direito fundamental ao juiz imparcial. (SOUZA, 2008, p. 106-107)

8

Tais posturas denotam um Judiciário preocupado com as necessidades que

emergem dos casos conflituosos com vistas a sanar tais problemas mediante a

realização máxima dos princípios e direitos fundamentais, fazendo uma opção pela

transformação da realidade social por meio do direito, principalmente daqueles que

mais necessitam do amparo estatal e que muitas vezes não o encontram na

legislação e nas políticas públicas. Resta ao Judiciário, como última trincheira, a

concretização dos direitos mais elementares ao pleno desenvolvimento humano9.

8 A produção probatória ex officio por parte do juiz recebeu atenção especial pela Lei 11.690/2008

que alterou o Código de Processo Penal, em especial o artigo 156 Para Eduardo Cambi: “extrai-se

do novo art. 156 do CPP que são as parte que têm o ônus de alegar e de provar, exercendo o juiz

função complementar na atividade de produção da prova. Os poderes instrutórios do juiz somente

se justificam para assegurar elementos de provas, considerados necessários, adequados e

proporcionais (art. 156, I), ou dirimir dúvidas sobre pontos relevantes (art. 156, II), mas a iniciativa

judicial deve ser sempre motivada (art. 93, IX, CF/1988)” (2009, p. 30, grifo do autor). 9 Essa consciência crítica e pró-ativa também é vislumbrada por Luiz Fernando Coelho quando

afirma: “O jurista situado na dimensão crítica é ao mesmo tempo um político consciente, que,

conhecedor das mazelas e do grau de manipulação a que estão sujeitas as leis e os próprios

valores que as informam em favor dos privilegiados da sociedade e contra os reais interesses do

povo, luta contra o status quo, também, denominado establishment, e faz de seu lugar profissional

uma trincheira nessa batalha ingente contra as injustiças sociais” (2003, p. 190, grifo do autor).

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Assim, a atitude pró-ativa dos julgadores é incompatível com a permanência

do dogma da neutralidade judicial10, pois este impede a aproximação do julgador

com o conflito e as necessidade sociais que dali defluem, principalmente no Brasil

onde as camadas mais desfavorecidas sofrem com o constante descaso por parte

dos poderes públicos. Chaïm Perelman afirma: “Um juiz não é expectador objetivo e

desinteressado, cujo julgamento seria justo porque, descrevendo fielmente o que se

vê, se amoldaria a uma realidade exterior dada. Com efeito, ele não pode contentar-

se em deixar os próprios fatos falarem: deve tomar posição a respeito deles” (1996,

p. 196).

A postura crítica defendida no presente trabalho tem como pano de fundo

um embasamento filosófico, pois não há que se falar em teoria crítica sem

fundamento na filosofia. A superação da neutralidade tem como objetivo a

aproximação do julgador com a realização dos direitos fundamentais que, em última

instância, são a salvaguarda dos excluídos sociais – chaga histórica em países

latino-americanos especialmente.

Esse é o ponto de partida da Filosofia da Libertação que tem como

referência Enrique Dussel.

Sem querer me arrogar o direito de representar um movimento amplo, a Filosofia da Libertação, que eu ponho em prática desde 1969, toma como ponto de partida uma realidade regional própria: a pobreza crescente da maioria da população latino-americana; a vigência de um capitalismo dependente, que transfere valores para o capitalismo central, a tomada de consciência da impossibilidade de uma filosofia autônoma dentro dessas circunstâncias; a existência de tipos de opressão que estão a exigir não apenas uma filosofia da “liberdade”, mas uma filosofia da “libertação”. (DUSSEL, 1995, p. 45-46, grifo do autor)

Tal filosofia pretende romper com a tradição eurocêntrica instituída a partir

do paradigma da Modernidade (1492), onde não há humanidade fora dos domínios

10

Para Artur César de Souza essa discussão deve ir além, pois precisa atingir a própria

imparcialidade judicial a fim de instrumentalizá-la em prol da inclusão social, numa atitude

denominada por ele de “parcialidade positiva”. Assevera: “A desigualdade social, econômica e

cultural deve ser a mola propulsora para se postular uma nova leitura da (im)parcialidade do juiz,

uma leitura que não deixe de levar em consideração essa grave distorção interiorizada no âmbito

do processo penal e civil” (2008, p. 20).

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europeus. É uma filosofia voltada àquele que sempre esteve fora do sistema-mundo

europeu, ou seja, o “Outro”.

Da nossa parte, como latino-americanos, participantes de uma comunidade de comunicação periférica – dentro da qual a experiência da “exclusão” é um ponto de partida (e não de chegada) cotidiano, isto é, um a priori e não um a posteriori – nós precisamos obrigatoriamente encontrar o “enquadramento” filosófico dessa nossa experiência de miséria, de pobreza, de dificuldade para argumentar (por falta de recursos), de ausência de comunicação, ou pura e simplesmente, de não-fazermos-parte dessa comunidade de comunicação hegemônica. (DUSSEL, 1995, p. 60)

Pretende ainda encontrar a racionalidade desse povo pobre, oprimido e

miserável que não é diferente em relação àqueles que o dominaram, simplesmente

é “Outro”, que necessita de desenvolvimento das suas potencialidades humanas. O

pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do

ópio, o judeu dos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita

a manipulações ideológicas não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e

simplesmente a “estima de si mesmo”, é preciso então encontrar a Razão daqueles

que estão fora da Razão dominadora (DUSSEL, 1995, p. 18-19).

Essa base filosófica exige que o julgador veja o oprimido como pessoa

liberta da dominação, pois só assim será possível assegurar-lhes os direitos

fundamentais que a eles protegem11. Para tanto é imprescindível o abandono do

dogma da neutralidade judicial.

Por fim, deve-se ter em mente que a tomada de posição ativa em favor da

concretização dos direitos fundamentais dos mais necessitados por parte do julgador

não tem o intento de transformar o Judiciário num super-poder ou ainda numa

ditadura de juízes, pois tais situações vão de encontro ao próprio princípio

democrático. O que se postula é uma posição intermédia que dê conta de efetivar os

mandamentos constitucionais de dignidade humana sem, por outro lado, ruir a

estrutura dos poderes constituídos e a soberania popular.

11

“O juiz não deve tematizar o outro (vítima inferiorizada na relação jurídica processual), mas deixar

transparecer um desejo metafísico de proferir uma decisão équo e justa, pois o juiz, em relação às

vítimas do sistema, tem uma responsabilidade ética pré-originária à totalidade do sistema jurídico

dominante” (SOUZA, 2008, p. 254).

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3 DA SUPERAÇÃO DA NEUTRALIDADE

A necessidade de neutralidade para se alcançar a realidade do objeto tal

como ele é (no campo jurídico, a norma) não se sustenta até mesmo no terreno das

ciências físico-matemáticas, pois “a simples escolha de um artefato (e não de outro),

de uma hipótese (e não de outra), com o fito de realizar um experimento ou orientar

um raciocínio, importa em um juízo de valor, que impregnará todo o processo, ainda

que, desta opção em diante, seja orientado pela rigorosa lógica” (AZEVEDO, 2000,

p. 48-49, grifo do autor). O argumento da separação rígida entre fatos e valores

também é contestado nesses termos:

Todo conhecimento, enquanto processo de apreensão de um objeto por um sujeito, inclui o trabalho do sujeito sobre o objeto: o sujeito seleciona o que lhe interessa na realidade. É por isso que todo fato é de algum modo valorado. Se não é valorado, é porque não é conhecido, isto é, não despertou interesse no sujeito. Este só vê na realidade os pontos que lhe interessam. [...] Na realidade, o fato é resultado de uma valoração. Nesse sentido, o conceito de neutralidade é irreal: é um modo de conferir valor a uma atitude de preferência a outras. (JAPIASSU, 1975, p. 41)

Abordando o aspecto epistemológico, Luiz Fernando Coelho afirma:

A problemática epistemológica viu-se totalmente repensada a partir da epistemologia crítica contemporânea, a qual relativizou e reduziu a suas reais dimensões o conhecimento pretensamente objetivo e “verdadeiro” da ciência e desmistificou a pretensão de neutralidade do saber acumulado ao longo dos séculos. (2003, p. 59)

Na esteira do mesmo raciocínio, verificou-se que a metodologia científica

tradicional com bases positivistas não dava conta de responder o seguinte problema:

os progressos das ciências naturais não eram acompanhados pelas ciências sociais,

logo, “a consciência crítica passou a exigir novas posturas a partir do momento em

que se verificou ser muito mais importante construir uma sociedade justa e

compatível com a dignidade humana, do que descrever neutralmente como se

processam as relações sociais” (COELHO, 2003, p. 59).

O próprio conceito de ciência é atualizado a fim de vê-lo não como uma

descrição objetiva e avalorativa da realidade, mas como ordenação racional dessa,

visando transformá-la (COELHO, 2003, p. 61). Assim, é possível falar em Ciência

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Jurídica, pois abandona-se o conhecimento descritivo de uma realidade desvestida

de qualquer valoração. Se a neutralidade, portanto, não se sustenta no seu ramo de

origem, com maior razão não se pode mantê-la como um pilar sólido do direito. A

descrição do objeto de conhecimento como se fosse uma realidade exterior ao

sujeito contrapõe-se à ideia de que o conhecimento é um construído, ou seja, o

conhecimento não é passivo, mas deriva das interações do ser vivo com o mundo.

Humberto Mariotti ao prefaciar a obra de Humberto R. Maturana e Francisco

J. Varela, assim expõe a síntese do pensamento desses autores: “A

transacionalidade entre o observador e aquilo que ele observa, além de mostrar que

um não é separado do outro, torna indispensável a consideração da subjetividade do

primeiro, isto é, a compreensão de como ele experiencia o que observa” (2001, p.

16). Para Maturana e Varela todo conhecer depende da estrutura daquele que

conhece (2001, p. 40), por isso a incompatibilidade entre a pretensa neutralidade por

parte do sujeito cognoscente, do observador, do intérprete, do julgador.

Para Luiz Fernando Coelho, “nas ciências sociais, a neutralidade ideológica

é uma impossibilidade epistêmica, pois o sujeito não é mero observador que

descreve um objeto enquanto se situa fora dele, mas um partícipe do social,

enquanto o reconstrói como ordem real e conceitual” (2003, p. 63). A afirmação de

que sujeito e objeto existem separadamente serve como fundamento para a

manutenção da neutralidade judicial, pois mantém o julgador externo à relação

jurídica-processual em que as partes são objetos integrantes.

Importante destacar nesse ponto a nova visão epistemológica denominada

de biocêntrica trazida por Maturana e Varela. Propõem romper com a concepção

representacionista cuja principal característica é a separação sujeito-objeto12. Nesse

sentido:

12

A proposta dos referidos autores não se restringe à superação do representacionismo sujeito-

objeto, mas vai além ao sugerir que os seres humanos são autônomos, isto é, “autoprodutores –

capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento

e conhecem o viver. [...] Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente

informações e comandos vindos de fora” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 14). Esse modo

contínuo de produção de si próprio é denominado de organização autopoiética.

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31

Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. (MATURA e VARELA, 2001, p. 10)

No âmbito processual, o juiz é guiado pelo processo e pelas partes, bem

como por suas experiências de vida que nele interferem. Quem se diz neutro

apegando-se exclusivamente à lei, já nesse momento não é mais, pois a lei carrega

em si a ideologia de um momento histórico de uma determinada classe detentora de

poder e quem faz essa escolha está se comprometendo com a manutenção daquela

ordem. Não se pode perder de vista, além disso, que a consequência do abandono

da neutralidade científica repercute na tarefa jurisdicional e de forma mais específica

na pessoa do julgador.

Ao se postular a “neutralidade” na função de julgar, distante dos conflitos internos e externos do magistrado, eleva-se essa imagem pública a um corolário sobre-humano ou divino, o que, na verdade, nada mais significa do que um produto de manipulação de imaginação coletiva que passa a assimilar e a exigir uma conduta do juiz nessa perspectiva. (SOUZA, 2008, p. 136)

O conceito de neutralidade é incompatível com o de ser humano, pois este

tem suas opiniões, experiências de vida, traumas, objetivos, que não podem ser dele

apartados. Bem exemplifica essa situação a frase do poeta e dramaturgo romano

Terêncio: “homo sum, humani nihil a me alienum puto”, “sou humano, nada do que é

humano me é estranho”. O homem, ao interpretar ou conhecer, leva em conta a sua

compreensão prévia do mundo que é única em decorrência das particularidades da

vida de cada um. Zaffaroni ainda complementa: “Não pode o juiz ser neutro porque a

neutralidade ideológica não existe, salvo sob a forma de apatia, do irracionalismo ou

da decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém, muito

menos de um juiz” (1994, p. 109)

A concretização dos direitos fundamentais em prol daquelas pessoas que se

encontram excluídas do jogo social (fora da totalidade dominante) não alberga um

juiz neutro e insensível aos problemas sociais que o Brasil enfrenta. O

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32

comprometimento com os valores constitucionais afasta a ficção da neutralidade do

julgador.

A neutralidade proposta pelo positivismo se enraizou no seio teórico e

prático do direito, no entanto, em tempos de neoconstitucionalismo não se pode

deixar de levar em conta que o direito deve ser encarado como um instrumento de

transformação da realidade a fim de realizar a inclusão social daqueles que sempre

tiveram negados os direitos minimamente essenciais a uma vida digna. Para

Herkenhoff: “Na sociedade de classes em que vivemos, dividida e antagônica,

agravada, no caso do Brasil, pelas imensuráveis diferenças econômicas entre ricos

muito ricos e pobres muito pobres, ninguém é neutro, e o jurista também não é

neutro” (1999, p. 58).

Ao se defender a neutralidade não se está fazendo outra coisa senão a

manutenção de uma ordem elitista e excludente, mansa com os ricos e dura com os

pobres (BARROSO, 2006, p. 05). A realização pró-ativa dos direitos fundamentais

não pode se afastar das necessidades humanas ainda mais em países de grande

exclusão social como é o caso do Brasil. Para tanto, alguns mitos ou paradigmas

precisam ser superados, pois impedem a realização da justiça em cada caso

específico.

A venda da deusa da Justiça necessita ser retirada para que se possa reconhecer no processo a racionalidade do outro, a sua diferença sociocultural-político-econômica. A balança, diante da realidade latino-americana, deve ser desequilibrada, a fim de representar as desigualdades sociais, econômicas e culturais, existentes num contingente regrado por injustiças sociais. E a espada, por fim, deveria ser substituída por uma “lupa”, para que possam avistar as concepções ideológicas que existem por detrás de um determinado ordenamento jurídico de cunho capitalista e globalizante. (SOUZA, 2008, p. 255, grifo do autor)

Por fim, não se pretende defender o caos jurídico ou ainda a ditadura do

Judiciário, mas a função Judiciária como também as outras funções não podem se

afastar da observância dos mandamentos valorativos da República Federativa do

Brasil que demonstram um caráter eminentemente inclusivo. Esse comprometimento

revela a impossibilidade de se manter a neutralidade. “Pode-se tentar ver as coisas

com a maior objetividade possível; mas não se pode vê-las com outros olhos exceto

os nossos próprios” (CARDOZO apud SOUZA, 2008, p. 141).

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33

Que os olhos dos julgadores brasileiros estejam focados na realidade em

que se inserem, visto que a sua miopia pode comprometer a realização efetiva da

dignidade humana.

CONCLUSÃO

Denota-se, assim, a grande influência que o legado epistemológico da

neutralidade exerceu sobre o modo como o direito é definido e compreendido.

A neutralidade científica penetrou no âmbito do direito e atrelou-se à

concepção do julgador, ou seja, ao sujeito cognoscente do mundo jurídico. Colocou-

se o juiz no patamar de um cientista que, analisando a realidade dos autos, proferiria

uma decisão neutra, desvestida de qualquer comprometimento com os direitos

fundamentais. Todavia, tal concepção não está adequada ao atual Estado

Democrático de Direito inaugurado entre nós em 1988, pois a partir dessa data, a

República brasileira assume com a anuência popular o compromisso de realizar a

transformação da realidade por meio da concretização dos direitos e garantias

fundamentais. Essa promessa é voltada principalmente para aqueles que sempre

foram marginalizados, excluídos e oprimidos pela classe dominante.

Portanto, superar a neutralidade é medida que se impõe não só pelas atuais

contestações de âmbito epistemológico que afirmam que o conhecimento é um

construído pela interação, mas principalmente pela necessidade de se utilizar o

direito como uma bandeira daqueles que acreditam na transformação social.

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