4. O Estado absolutista

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Na discussâo precedente dos Estados tradicionais nao fiz, na realidade, mençâo à sociedade feudal. Tampouco devo tentar suprir uma avaliaçâo sistematica da ordem feudaI no que segue. TaI tâtica, em um primeiro momento, soa bastante estranha. Pois coma podemos entender as caracœristicas especfficas dos Estados modernos sem exami-nar 0 contexto ,do feudalismo eurapeu a partir do quaI ele surge? Entretanto, é pre.cisa-mente porque 0 Estado moderne tem sida, corn freqüencia, reconhecido unicamente nesse cenârio, corn suas origens em uma ordem medieval desimegrada, que suas qualida-des dis tintas sâo muitas vezes subestimadas l . 0 feudalismo europeu tem certas caracte-rfsticas que 0 separam tanto de outras sistemas feudais coma de outros tipos de socie-dades de classes2• Aiguns desses elementos foram de importância vital nos processos que levaram à formaçao do Estado moderno. Mas, concentrando-se nisso, tende-se a induzir a uma interpretaçâo "progressista" da historia, exemplificado pela materialis-mo historico, no quai 0 dinamismo do Ocidente moderno é traçado em uma seqüêncîa,

1. Cf. CCHM. vol. 1, pp. 182-186. 2. É claro que tOll afmnaçao afase.:!. bruscamente uma vanedade de quest6es complexas bastante debatidas por

historiadores, que uma discuss1io maÎs detalhada deveria examÎnar necessariamente em algum momento. Apesar de Olntiga. provavelmente a discllssào geral mais ûtil em inglês ainda é a de Rushton Coulborn, Feudafism in Hisrory, Princeton, Princeton UniversilY Press, 1956. Cf. também Owen LattÎmore, "Feudalism in Hlstory". Post a.nd Present, 12, F Cheyet[e. Lordship and Commlmirv in A4edweval Europe, New York, 1968 . -

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o ESTADO-NAÇÂO E A VIOLt:NC1A

ligando 0 mundo classico, feudalismo e sociedades modernas3. Nao desejo negar que haja aspectas unieos aa lango do desenvolvimento da Europa, para a quaI devemos olhar para explicar a gênese da modernidade. Mas minha preocupaçao principal é de-monstrar que os Estados modernos padern sec comparados, de um modo genérico, aos tradicionais. Assim, naD procura fornecer uma interpretaçâo de camo os Estados abso-lutistas desenvolveram-se a partir do feudalismo; naD me preocuparei corn a data da emergência do absolutismo de um modo exato, ou em analisar as diferenças entre Estados em particular corn relaçâo às peculiaridades tfplcas do domînio absolutista. Meus objetivos sao mais tipolôgicos e comparativos. Ao apontar apenas 0 quâo diferen-tes os Estados modernos sao de todas as fonnas de Estado tradicionaJ, eu me empenho em esclarecer alguns elementos centrais de descontinuidades da modernidade referi-das anteriorrnente.

Em vez de começar corn uma caracterizaçao do Estado absolutista como uma forma especîfica, devo prirneiramente considerar os aspectos do sisterna de Estado europeu. Para 0 sistema de Estados que foi consolidado nos séculos XVI e XVII nao existiam apenas as condiç6es nas quais cada Estado individual foi fonnado, mas tam-bém ele foi envolvido nesse processo de formaçao.

o Sistema de Estados Absolutistas

Antes do desenvolvimeuto do absolutismo, a Europa jâ possuîa, obviamente, um sistema de Estado - uma' diversjdade de Estados freqlientemente em guerra. Corn a sua chegada, 0 sistema estatal foi grandemente transfonnado e, na verdade, pela primeira vez, surge algo claramente identificavel coma "Europa", no sentido moderno que es-tou atribuindo. É comum admitir que a queda de Constantinopla em 1453 foi 0 começo da pressao otomana sobre a independência européia. No entanto, corn exceçao do fato de que os turcos estavam fazendo invas6es importantes ao continente ha: bastante tem-po, a "Europa" entao, mais precisamente, significava "cristandade". 0 Sagrado Impé-rio Romano e 0 Papado conferiram ao Cristianismo sua identidade, embora 0 preceden-te nao fosse uma fonnaçao Imperial no sentido discutido anteriormente. A bem conhecida afinnaçao de Valéry de que a Europa "é somente uma penînsula da Âsia", tem um fundo de verdade se aplicada aos Estados feudais europeus, que aparecern mais à peri-feria de grandes culturas rnundiais do que como uma civilizaçao em seus prôprios domînios. Como Barraclough apontou, corn pertinência, a idéia tradicional de que a

3. Perry Anderson, Pœisages from Antiqllity to Feudalism. London. New Left Books. 1974, e Lineages of rhe Absolutis! Stace, London. New Left Books, 1974.

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uoidade da civilizaçâo européia medieval "era composta da lfngua latina, da herança devemos

i!.oegar que c1âssica, e da religiâo cristà"-I é algo de mftico. 0 Império Romano concentrava-se no

é de- Mediterrâneo. induindo partes substanciais da Asia e da Âfrica, mas nao englobava 'co, 80S todas as Ilhas Britânicas, a Escandinavia ou a Alemanha. a latim medieval era soroeu-

te um elemento cultural estabelecido e duradouro em certas :lreas do continente, e Defi

o Papado nern 0 Sagrado Império Romano eram genuinamente universais t::m seu ape-10. 0 império bizantino CIa 0 centra principal do pader consolidado. localizado em direçào aos limites do que mais tarde veio Il ser a "Europa"s.

o absolutismo mudou tudo isso. Certamente ele nao conduziu a urna nO\;a Euro-pa unificada. Muito pelo contrârio; 0 continente europeu separou-se novarnente pelas divisôes entre os Estados e pelas cicatrizes da guerra. Mas a Europa, no entanto, [or-nau-se uma ordem politica corn vinculos claros e discernîveis do sistcma de Estado-naçao que surgiria mais tarde. No sistema dos Estados feudais, os principados espalha-dos pelo continente, em sua maioria, eram pequenos. As conex5es entre eles, formadas tanto pacificarnente quanta pela guerra. ocorriam, em geral, entre segmentas de uma classe dominante que, do mesma modo que as sociedades de classes camo um toda, estavam distantes da cultura e das atividades do resto da populaçao. s6b 0 absolutismo, o Estado passa a ter um carâter mais "piramidal", mesmo se a grande maioria dos seus sûditos continuasse a viver suas ..... idas tanto quanta antes. A consalidaçâo interna do Estado serviu mais claramente para acentuar suas formas territoriais e é durante 0

periodo do absolutlsmo que a Europa mudou em relaçao as fronreiras do Estado. Na Europa feudai, as fronteiras eram limites cronicamente dîsputados e nebulosamente administrados. A "diplomacia" existia mas era do tipo tradicional. Em outras palavras, consistia, na maior parte, em tentativas de corromper outros grupos oferecendo, merca.-dorias e recqmpensas, ou extorquir [ributos, 0 que seria uma admissao de dependência-. A experiência diplbmâtica tinha alguns antecedemes na época feudal, mas, na maior parte, era uma mudança inovadora, que surgiu a. partir do século XVI. É a melhor expressao do surgirnento de nID nova tipa de sisrema estatal, dominado pela guerra e pelos Estados tradicianais, mas dependendo também do reconhecimento de cada Esta-do das esferas de aulonomia legitimada de outras.

A diplomacia francesa efa a lider, jâ que 0 Estado francês era a mais poderoso no setor ocjdental do continente; mas a instituiçao de atividades diplomaticas pennanen-tes estabeleceu-se rapidamente par toda a Europa. Se LUIS XIV era 0 prot6tipo do monarca absolutista, sua administraçaa era também a mais notavelmente avançada no

4. Maurice Ashley, The Golden Centllry. F.umpl! 1598 1917. Loodon, Weiàeofeld. 1969, p. 217. j. Geoffrey Barrac1ough, European Unity in Thollght & Actjan, Oxford. Basil Blackwe\!. 1963. Comparar

René Albrecht-Carré. The Unity ofEI/rope: na London. Sec1œr & Warburg. 1966.

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que concerne a treinamento e estratagema diplomaticos. 0 Conde d'Avaux, ern razao de sens despachos, produziu algo como uma descriçao padronizada da pratica da nova ordem diplomatiea dos Estados europeus. Os ministros de Estado francès possuiarn uma série complexa de fontes de mformaçao sobre a posiçâo e a riqueza de outras Es-tados, conlidos em rclatôrios regulares e memorandos6 • A importância especifica dissa é que caracteriza a extensào das aCÎvidactes de vigilância na esfera internacional, aju-dando assim a constituir 0 que posteriorrnente se charnoD de "relaçoes internacionais" como um fenômeno, Nada similar parece ter existido i:ll1teriorrnenle em toda a longa hlstôrÎa dos Estatlos, e é um elemento essencial coma linha divis6ria entre a sistema moderno de Estado-naçaa e 05 tipas precedentes, Mesmo na França do sécuIo XVII, a diplomacia era organizada de modo bas tante rudimentar. Ao final de seu reinado, Luis XIV continuou a enviar generais e dérigos para importantes. Os dipIomatas residentes [inhâm pouco em termos de treinamemo para suas tarefas, e as rniss6es ruais prestigiosas eram quase que unicamente prerrogativas dos altos niveis da nobreza.

mente no século XVIII a maiaria dos paîses passou a ter grandes corpos diplomaticos, em casa ou no exterior, trabalhando permanentemente em assuntos externos.

Vma grande inovaçao do periodo do absoIutismo foi 0 estabelecimento de congres-sos7. Havia encontras internacionais na Idade Média, especialmente entre eclesiâs-ticos, e alguma da etiqueta desenvolvida aIi sobreviveu até mais tarde. Mas os congres-sos eram essencialmente diferentes, e foram corretamente descritos coma "0 grande marco do século (XVII)"8. Antes daquele século, os representantes de diversos Estados encontravam-se às vezes em um lugar: mas 0 Congressa da Vestfalia, ao final da Guer-ra dos Trinta Anos era, em varias aspectas, radicalmente diferente. Foi alga pr6xima de um congressa geral europeu, preocupado em defmir as relar.rGes entre a divcrsidade dos Estados europeus. Os t;::ncontros ocorreram em duas cidades, Münster e Osnabriick, e cnvoJveram representantes de cada Estado europeu, com exceçao daqueles de regi6es menas centrais coma Inglaterra, Polônia e Dinamarca. À época da morte "de XIV, outros nOVe congressos haviam sido realizados, ainda que nenhum tâo grande e

te como 0 da Vestf:ilia. A abundância de tratados que surgiram esrabeieceram uma au-toridade estatal territorial par toda a Europa em cada congresso sucessivo, e

res guerras e conflitos trouxeram futuros encontras no seu caITÙnho. Do século XVII em diaute, a hist6ria da Europa foi decisivamente influenciada par tais encontros, qua-se sempre seguîndo penodas de gUt:::rra prolongada, até Yalta.

o canceito de "equilibrio de poder" entre os Estados europeus tornou-se faITÙlîar

6. Cf. Meinecke, Der Idee der Star:fsrason, Berlim. R. Olcenbourg. 1924. 7. E. M Sarow, A Guide fO Diplomatie Praetice. London, Longman, 1922; Garretl Mallingly, Rennaissanee

Diplomaey, London. Jonalhan Cape, 1955. 8. G. N. Clark, The Seventeenth CentLtl)', Oxford, Clarendon Press, t947, p. 135.

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e demasiadamente corriqueiro, tornando diffcil de se entender 0 quanta isso foi novo para 0 século XVII, ou 0 quanto isso se tomou importante, dai por diante, para 0 siste-ma estatal absolutista e para 0 sistema de Estado-naçâo. Os tratados de Utrecht

leceram as suas primeiras bases sôlidas; posteriormente, tomaram-se um principio reco-nhecido pelos Estados tanto no sentido de empreender uma guerra camo para reivindicar a paz. Era uma teoria de equilibrio aIcançâvel tao plena e conseqüente para 0 desenvol-vimento das sociedades modemas, como a da "mao invisivel" na esfera das relaç6es econômicas. Sua importância nao depende unicamente da idéia de um equilibrio de forças a ser ativamente conquistado pelos lfderes dos Estados. Mais importante é 0

reconhecimento explîcito da legitimidade dos outras Estados, nenhum dos quais corn 0

direito de universalizar os seus proprios principios de administraçao ou leis às custas de outros. É uma formula para a organizaçao, no sentido que defini este termo no inîcio do capitulo. Mas é, ao mesmo tempo, uma fôrmula para a "anarquia". pOls cada Estado, ao obter aceitaçâo de sua prôpria soberarua, reconhece as esferas separadas de soberania dos outros. Como Sore! observou, "forma-se, dessa maneira. entre os grandes Estados, uma espécie de sociedade de partîcipaçâo: eles pensam conservar aquilo que possuem, ganhar na proporçao de seu capital e impedl[ a cada um de seus associados de fazer a lei para os outras"'}. Se a frase "uma espécie de sociedade de participaçao" é muito forte, ajuda a apreender 0 aspecta paradoxal de um sistema de Estado cada vez mais integra-do, 0 que, todavia, confere um reconhecimento forte e explicito à legitirnidade dis tinta de todos os Estados vinculados entre si.

Os Estados da Eurapa podiam ser divididos em duas categorias: aqueles que estlvessem aptos a explorar a nova doulrina e a expandir-se, por meio da diplomacia e da guerra; e aqueles que, como resultado, perderam grandes extens6es de seu territério ou se fragmemaram completamente. 0 risco de guerra era mais exacerbado do que diminufdo, porque as manobras diplomâtîcas poderiam levar à eclosâo de conflitos armados onde nao havia nenhuma intençâo; e. tendo começado, 0 impacta de alianças consolidadas poderiam desencadear uma confrontaçao militar muito mais abrangente do que teria sido 0 caso lO• A de. uma eclosao "acidental" de guerra em uma Iarga escala seria promovida por uma relativa escassez de informaçao sistemâtica que os Estados poderiam reunir, tante internamente quanta de um sobre 0 outra. Os recursos de um inimigo ou de um aliado poderiam ser grosseiramente mal avaliados,

9. A. Sorel, L'Europe et la Révolution Française, Paris, E. Plon, 1885, vol. l, pp. 33-34. Cf. Manning sobre a emergência da "meta-diplomacia" - a atribuiçao da individualidade para os Esmdos de um modo desconhe-cida nas formas anteriores de Estado. C. A. W. Manning, The Nature ofInternarional Society. London, Bell, t962.

\0. Cf. Meinecke, op. ciro

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assim como a capacidade de uro Estado em particular de levar adiante uma guerra pro-longada. Jâ na metade do século XVIII Lorde Chesterfield observou ern uma cacta a seu filho: "hâ uma parte do conhecimento polîtico que é samente para pesquisa e CODver-saçâo: isto é, 0 atuai estado de cada poder na Europa corn relaçâo aas três pontas im-portantes de força, impostos e comércio"ll. Os esforços colahorativos dos Estados euro· peus, na parte leste do continente, renderam frutos de um modo altamente conseqüente, ao buscar a derrota da liltima grande ameaça de uma formaçao imperial externa de lipo tradicional - 0 Império Otomano. A expulsào dos turcos nos ponoes de Viena no final do século XVII foi uro evento talvez Hia importante para a poslerior C1scensao do Gci-dente coma - se Edward Meyer e Weber eslao certos - a vitoria grega em Maratona tinha sido hâ mil e quinhentos anos. Corn a retirada progressiva dos turcos, a "questào do Oriente" começou a se transformar uma forma reconhecidamenle modema.

Seguindo a emergência dos principais fundamentos de um sistema de Estado monitorada reflexivamente na época do absolutisrno, novas fromeiras começam a sec estabelecidas entre os Estados, embora muitas delas tenharn se mantido. Deve ser en-fatizado que nào é unicamente em celaçào à substüuiçao de fronteiras par limites que a Estado modemo difere dos tradicionais. A natureza da territorialidade do Estado trans-forma-se à luz de teorias bastante dis tintas de soberania do Estada que coincidem corn a surgimemo do Estado absolutisla. A concepçao do "Estado soberano" lem sida 150

fregiientemenle discutida coma uma questao puramente interna, que é vâlido enfatizar que necessariamente hâ implicaçôes extemas para a Estado em relaçao aos outcos. 0 Estado deve ter autoridade exc1usiva dentro de seu prâprio domînio, Iodas os outras direitos sao confendos pela soberano e revogados por ele. Par sua real natureza, essa f6rmula delineia uma distinçâo claramente definida entre a autoridade de Estados di-versos, e dâ uma nova importância às demarcaç6es territoriais entre eles.

As relaçôes entre os Estados feudais eram totalmente voltadas para a aquisiçao de territ6rios, camo anexos de propriedades dinâst,icas, formando quantidade de provÎn-cias definidas de um modo amorfo. Os territônos dos governantes medievais naD eram necessariamente contînuos, mas freqüentemente espalhados e divididos. Enquanto um monarca pudesse ter a ambiçao de consolidar todas as suas terras em um ûnico territa-rio, nao fazia grande diferença se isso naD fosse alcançado. Além disso, obviamente, dentro de territ6rios considerados corna rnonarguicos dos Estados feudais havia exten-sas âreas nas quais os éditas do rei ou nao eram absolutamente reconhecidos, ou efeti-vamente eram nulos. A centralizaçao do poder polîtico associado ao absolutismo nao eca urn simples pcocesso de expansao do controle efetivo sobre as âreas jâ nontinalmen·

Il. Citado em Clark. op. cit.

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te sujeitas à autoridade do govemante. Requeria uma alteraçao substD.ncial nos limites externos e internas dos Estados. Um rei poderia ter uma parte de territ6rio localizada bem dentro de terras reivindicadas par outro. a favorecimento dos direitos do sobera-no, podcria. a partir da(, envolver intrinsecamente gr.mdes embates e, no minima, con-duzir pacificamente a realinhamentos lie territ6rios entre os Estados. Um exempla das ambigüidades envolvidas é dada pelas diferentes interpreœçoes histôricas que foram feitas a partir da mudança de situaçâo no principado de Sedan em meados do sécuta XVII I1 . Sedan é freqüentemente considerado um reino distinto. Mas outres 0 conside-rarn como lIma provincia limÎtrofe do grande Estado da França. no quaI a monarca nao era capaz de manter mais do que uma autoridade mînima. As hesitaçôes dos historia-dores nâo sac particularmente uma surpresa, elas refletem, em parte, 0 que ocorria na época. Os dllques de Buillon mantinham a domînio direto sobre a ârea. mas deviam algumas de suas possessôes aos bispos de Liège que, par sua vez, eram principes que deviam obediência à coroa francesa. A famîlia ducal abandonou Sedan em troca de outras aceas na França. Em aigumas ocasiôes, isso tem sida considerado par alguns bistorio.dores camo anexaçâo prévia de territôrio estrangeiro. por outras, coma a consoli-daçao do poder reai sobre 0 territôrio francês.

No processo de realinhamento das fronteiras dos Estauos, os limites previamente ex.istentes nâo eram somente alterados, mas alterados de fonna a se tomarem fronteiras no sentido dado anteriormente. Foi um processo que nao atingiu seu ponta mâximo senlio jâ bem no século XIX, especialmente em lugares menas organizados do continen-te. No século XVII. muitas fronteiras permaneceram COIDO tinham sido tradicional-mente: difusamente definidas, e nâo tenuu relaçao direta corn a atividade politiea ou econômica de seus respectivos Estados. Na repûblica holandesa. por exemplo, havia uma variedade completa de irregularidades e inconslstências. julgadas em teITIlOS de novas concepçœs de soberania mais do que de velhas prâticas. Inûmeras porç6es do lerril6rio holandês foram completamente ebroinadas do segmenta principal do Estado. Os feudos espanhôÎs, par outro Iado. existiam dentrp desse segmenta. Os bispas de Liège manrinham um dominio conjunto sobre a territ6rio holandês. Foram

te as guerras e as conseqüências dos congressos dos séculos XVII e XVIlI que organi-zaram os limites em fronteiras, embora muitos desses limites tenham sido dcixados intocados por esses acontecimentos. No século xvn surge, pela primeira ve7., a prâtica de dar às populaç6es fronteiriças uma "opçào" de perlencer a um Estado ou a outra. Assim, quando varias cidades na Holanda espanhola foram apropriadas pela França em um tratado de 1640, para aqueles que viviam ali foi dada a escolha de, ou permanece-

12. Idem, pp. 141 e ss.

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i se rnanterem espanh6is ou alemâes, como haviam sida anterionnente. A progressào de i limites para fronleiras como consenso mûtuo delineados em um mapa nao aparece,

entretanto, senào no século XVIII: LI. primeîra fronteira IiteraJmenle desenhada como limite, aparentemente foi construida sorncntc no ana de 1718, como parte de um trata-do feito em relaçao a Bandees naquele ana lJ.

Outras inovaçôes que se tomaram da maior importância na configuraçao do sIste-ma reflexivamente monîtorado dos Estados-naçao que surgiriam, fizcram sua primeira apariçao apenas nos estagios finais da "era do absolutismo". Vma é a dourrina das fronteiras naturais. Nos Estados tradicionais, os lideres certamente tentaram muitas vezes assegurar 0 domînio sobre as âreas que ofereciam uma proteçao namral contra invas5es de outros Estados. Mas, tt::ndo sido eluborada a partir do século XVIII, a idéia âe que um Estado deve, lanto quanto possîvel, ter fronteiras namrais. estava intimamen·

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, te ligada à coerência largamente disseminada do Estado corn'o uma unidade adminis-trativa. Nâo era apenas proreçao em detenninadas âreas de limites controversos, mas uma ênfast:: sobre 0 aspecta integral da situaçao do Estado que havia por tras da nova doutrina. As fronteiras "naturais" em questâo nao eram parâmetros que de alguma forma ligavam um Estado aD meio geogrâfico, mas sim uma expressao de uma concep-çâo altamente desenvolvlda de soberania do Estado. As "fronteiras natmais", por fim,

também pas5aram a ser vistas em termos de homogeneidade lingüistica ou cultural das populaçôes dentro dos Estados. Mas issa é um fenômeno ainda mais recente, e algo compleramente especîfico à emergência do Estado-naçao europeu.

É clara que a formaçao de um sistema estatal ret1exivamente monitorado na Europa nao era apenas um conjunto externo de mudanças bâsicas no absolutismo. Esse desenvolvimento era tambérn contemporâneo à expansiio do pader de certos ESlados .europeus por mar. a que se tomou a "Europa" era uma regiao pequena se comparada

. aos Estados imperiais mais ao leste, e era menor mesmo do que havia sida 0 Império Romano. Parece notâvel, e na realidade mesmo impossîvel, que um mosaico de Esta-dos separados teria, cada vez mais, a capacidade de conquistar, ou de rnanter 50b sua influência, îmensas âreas no resto do mundo. Deve ser enfatizado que isso era, na ver· dade, bastante extraordinârio - nao hâ nada que se compare a esse fenômeno na histô-rîa passada dos Estados e que tenha se mantido durante milhares de anos. Entretanto, a questao que procurei levantar nos poucos paragrafos precedentes é a de que a Eumpa, por volta do século XVll, naD era mais do que um mosaicD de Estados. A soberania independeme eonsolidada de eada ESlado em parlleu!ar (ou melhor, aqueles EstadDs

l3.ldem, p, 144.

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que foram capazes de sobreviver às guerras e às realocaç6es rerritoriais que ocorreram durante séculos) cra, ao mesmo tempo, parte de UID processo de completa integraçâo entre os Estados.

o domînio dos mares que os europeus adqlliriram. todavia, naD pode ser explica-do como um resultado imediaco dissa, mas dependm de um numero de aspectas bastan-te contingentes. A época das viagens marftirnas de longa disrância, e 0 que, para 0

ponto de vista dos europeus, cra a "descoberta" do mundo, é anterior aos desenvolvi-mentos tecnol6gicos que tornaram a potência naval européta irresisLfvel. No século XIII havia uma certa quantidade de trocas a longa distância corn a China de sedas, especiarias, e outras poucos bens. A China era. de fato, melhor conhecida pelos euro· peus do que a Îndia, desde quando alguns viajantes atravessaram 0 continente da Âsia em busca de comércio, pois os mercadores arabes controlavam 0 comércio dos portos indianos para a Eurepa através do Oriente Médio. A desmtegraçao do império tcirtaro de Khû.n alterou essa situa13o, ja que a regime rvling, na China, começou a isolar cada. vez mais os învasores daquele Estado. A Europa ficou mais separada do resta do mun-do do que havia sida antes, desde que a invasâo dos turcos otomanos deslocou outras rotas de comércio. Foi em parte par essas razoes que aventureires ("exploradores", como fornecedores especializados de conhecimento geografico, vieram somente mui-lO mais tarde) começaram a seguir novas rotas que "abriram" 0 resta do rnundo para a Eurepa. 0 empreendimento das sempre ousadas viagens pela mundo cra, sem dûvida, c de um modo geraI, estimulada pelo impacta do Renascimento, mas nao parcce ter si-do influenciado diretamente por ele. A recuperaçâo da Geografia de Ptolomeu, disponibi-lizada primeiramente em um;) ediçao impressa ern 1475, teve uma influência intelec-tuai generaIîzada considerâveL Mas Colombo, aparentemente, nao a tinha lido, e estava muito mais em débita para corn a Imago Mundi, um trabalho escrito por um acadêmico do final da Idade Média, Cardea! d'Aillyl<,

o absolutisrno, de fato, coincidiu corn um periodo no quaI estava se realizando a maioria das grandes- viagens de descobrimento e as principais formas geogrâficas dos continentes no mundo conhecidas. Em um certo sentido, é clara, 0 signifi-cado disso tudo dificilmente pode ser diminuîdo. Qualquer que seja a sua magnitude ou 0 seu alcance territorial, os grandes impérios do passado nunca a1cançaram um conhecimento genufno do planeta como um todo. Por mais cosmopolitas que eles pudes-sem ser, 0 seu conhecimento foi sempre, basicamente, um "conhecimento local"ls. Pela primeira vez na histôria, seres humanos viviarn em um mundo no quaI, apesar do etnocentrismo do pensamento europeu, tinham um "conhecimento universal". Se isto é

14, Roger Lockyer, Hapsburg and Bourbon Europe 1470-1720, London, Longman, 1974. ',ir\5. Clifford Geertz, Local Knowledgl'. New York, Basic Books, 1983.

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/1 uma descontinuidade para corn as épocas anteriores, também 0 é a expansâo das forças armadas e a força comercial maritirna. Todos os impérios de grande escala tiveram algurn tipa de comércio a longa disWncia, e havia muitas Estados menaces cuja pros-1 peridade foi construfda amplamente corn uma mistura de comércio e de poder rnarîti-mo. Mas nenhuma "civilizaçao mundiaj" importante anterior unica-1, mente pela poder maritimo como 0 Ocidente veio a se tomar, corn 0 desenvolvimento de operaçoes de comércio pela mar em larga escala, e corn 0 colonialîsrno J6 • 0 desen-volvimento do absolutismo foi, sem düvida, facilitado pela riqueza trazida para a Eu-fopa pela influxo de metais preciosos. Mas, novarnente, haYia pouca conexao direta entre eles, e seria tolo tentar enquadrar tudo isso em algum tipa de estrutura funcionalisra. Rouye uma calmaria no processo de descoberta geogrâfica e de expansào comercial par uro periodo de cerca de uro século a partir de 1650. A organizaçao da Vestfâlia con-feriu aos paises europeu5 uma considenivel concentraçâo de energias em seu proprio

! conlineme. As politicas comerciais eram restritivas mais do que expansionistas e a co-1 lonizaçao, corn exceçào da América Latina, era também arnplam'ente uma questâo de ! bases militares em outras a.reas do mundo. A expansâo do capitalismo comercial e de-pois do industrial, em llma escala global, nâo terra sido possivel sem a inauguraçào do "universalismo" ocidental; mas isso teve origern ern outras fontes '7 . 0 fenômcno prin-cipal de ligaçâo seria a superioridade do poder naval europeu, que perrnitiu Ievar 0

capitalismo cornercial, em grande medida, para diversas partes do planeta.

o Estado Absolutista como Orl?anizaçiio

Assim, em termos do desenvolvimento de um nove ripo de sistema estatal retle-xiyamente monitorado. 0 absolutismo começou a romper corn as descontinuidade::; que separavam 0 mundo rnoderno das épocas anteriores. 0 absolutisITlo ainda manteve muitos elementos da ordem feudaJ que 0 precedeu. e foi mais dîverso do sîstema de

\ seu herdeiro, do que tinha sido do feudalismo. Se nao posso concordar corn a contribuiçao de Anderson de que "em diplomacia [...] 0 indicador da dorninaçâo feudal no Estado absolutista é evidente", nâo ha discussâo a respeito de suas observa-ç6es de que os Estados absolutlstas eram "composiç6es hibridas", "cuja 'modemida.de'

16.0 termo "0 Ocideme" é obviamente de origem basrante recente, e foi escolhido por autores cantinentais fespecialmente os alemàes) algum tempo antes de ter :;ido de usa disseminado entre Q.Ç escritores de Hngua inglesa

17.lsso significa discordar da fonnulaçao de Wallerstein da "ceoria do sÎstema mundi.1.l" que, obviameme. Lem

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Page 11: 4. O Estado absolutista

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superficial cada vez mais revela um arcaîsmo subjacente'·l%. 0 que é importante ao julgar a novidade do Estado absolutisla nao é compara-Io apenas em relaçao ao feuda-lismo, como geraçôes de historiadores 0 fizeram, mas contrasla-lo a outras formas de Estados tradicionais em geral. 0 Estado absolutista é ainda. segundo minhas palavras, um Estado tradicional. Issa quer dizer que. em algumas de suas principais

cas mantém·se uma sociedade de classes. Mas em reluçao a outras aspectas, tem carac-terfsticas dificilmente encontravds em qualquer outTO lugar.

Issa nia é tao fcicil de se distinguir se alguém sup6e, coma alguns a fizeram, que o absolutismo é um tipo de despotismo oriental de ordem menor. Nao somente tais anâlises repetem 0 erra ao assegurar que os impérios burocrâticos centralizados eram muito mais coesos do que 0 eram na realidade, camo falharam em dar 0 devido peso a determinados aspectas distintos do dominio (e das reivindicaçôes de legitimidade) dos monarcas europeus. Estes centram-se amplamente tanto na noçâo quanta na atualidade de soberanial9. Os governantes dos ,Estados tradicionais erarn sempre, em uro certo sentido, "soberanos": eles eram reconhecidos (ao menos por aqueles do baixo escalâo do aparatu de Estado) por serem a suprema autoridade na ordem polîtica. Como os monarcas absolutistas, eles rcivindicavam legitimidade pela referêncla aos sîmbolos sagrados; a noçâo do "direito divion" de governo, em seu significado cenrral, dificil-mente é uma inovaçao européia, mesmo que sua fonna especffica passa Mas os governantes tradicionais em outras lugares nao tinham, de certo modo, incorporado o Estado dentro de sua pr6pria pessoa; eles se assentavam sobre 0 topo do poder. 0 simholismo religioso do "direito divino" deveria ser visto, na realidade, coma uma indumentma tradicional ern algo muito novo - 0 desenvolvimenw de "governo" no sentido moderno, afigura do governante sendo uma expressâo personalizada de uma entidade administrativa seculari:::,ada.

A moldagem progressiva do conceito de "soberania" nas maos de pensadores polîticos do século XV ao final do século XVII é ilustrativa a esse respeito. "Soberano" sugere uma conexao etimolôgica con: a idéia de um govemante individual, mas esta nao é a sua origem principal, 0 que ajuda a explicar porque foi facilmente transferida para uma forma impessoal de "soberania". Antes de Bodin, 0 termo "soberano" linha sido aplicado coma um adjetivo, de modo impreciso, a qualquer indivîduo de posiçao. Nos séculos XV e XVI, na Inglaterra, mesmo um personagem relativamente menor, tal

18. Anderson. op. cil., pp. 39 e 29. Anderson afuma que a diplomacia "foi uma das grandes invençoes institu-cionais do periodo". e que "corn a sua emergência um sistema de Estado intemacional surge na Europa". (p. 37).

19. Ver Quentin Skinner. The Foundalions of Modem Politica.l Thought, Cambridge. Cambridge University Pres5, 1978,2 vol., especialmente 0 vol. 2. pp. 286 e ss.

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o ESTAD()-NAÇJ.O EA VIOLÊNClA

como um abade mitrado, era oficialmente referido corno uro soberano, mas somente porque ele cra 0 chefe de uma organizaçao eclesi<:î:stica. a termo era usualmente

gado para se refenr a caracteristicas das organizaçôes cm si - très cortes soberanas de lei foram reconhecidas na França, por exemplo2D, Ao afinnar (corn aIgumas reserv<ls) que deve haver apenas urn soberano, Bodin nào estava simplesmente afirrnando a

dade transcendente de uro monarca individual, cIe estavu descrevendo e defendendo uro sisteroa coordenado de governo administrativo21 • Pade sec reivindicado corn razao, eu pensa, que nem 0 fato de uro regime nao-monârquico, nem as vârias tcarias

nas e libertârias associadas à Revoluçao Ingksa poderiam tcr aconrecido sem 0

cimento prévio de um "dîscurso da soberania"22. Vinculado às teorias polfticas da

ca, 0 conceito de absolutismo estava aberto a elaboraçôes porque justapunha a asserçao de uma autoridade suprema de um indivîduo para uma interpretaçao mais generalizada do poder de Estado, no quaI nao havia, de faro, um papel necessârio para reis ou monar-cas. Uma que a idéia de soberania tornou-se efetivamente um princîpio de gover-no, 0 'caminho estava aberto para que isso se vinculasse à idéia de "cidadanül" - naD mais restrita às comunidades urbanas, mas tendo como referência a "comunîdade" polîtica do Estado eomo um todo. Entretanto, por muito que uma eonexao possa sec pressionada entre 0 direito divino dos reis e a soberania absoluta, Ela se mantém

vel, um foeo de coneentraçao ideolôgica, mas também uma centelha de luta. A temia polftiea do poder do Estado absolurista atuava a uma cerra distâneia da

realidade, crociais como eram as mudanças administracivas que os Estados mais

volvidos exibiam e, obviameme, 0 absolutismo nao era de rodo uma parte, nem regio-nul. nem temporalmente. Nao obstante, certas caracteristicas gerais podern pronta-mente ser distinguidas. Três elementes principais podern ser destacados, cada quaI conectado aos outras: Ci) a centralizaçao e a expansao do poder administrativo; (ii) 0

desenvolvimento de novas mecanismos de Jeis; e (iij) alteraçoes nos modos de gerenci-amento fIscaL

A vida da corte no Estado absolutista, especialmente no exempl.o mais 5untuoso - 0 de Lurs XIV - assemelhava-se àquelas observadas em numerosas sociedades impe-riais. No caso dt: Lui.s XlV, entretanto, ela estava despida do patrimonialismo caracte-ristico tanto dos govemos feudais coma da maioria de outras Estados monârquicos. a centro da corte naD era composto por altos setOres de seu cîrculo familiar, mas por

20 Clark, op. cil., p. 219, cf. Bertrand de Jouvenel, Sovereignty, Cambridge, Cambridge University Press, J957.

2] Cf. C. P. Macpherson, "A Political Theory ofPropeny" em Democrafie Theory: Essays in Relrieval, Oxford, Clarendon Press, 1973, pp. 125 e ss.

22. Cf. Christopher Hill, The World Tumed Upride Down, London, Temple Smith, 2972.

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nobres protegidos e serviçais. Era certamente um reino "polftico" - sempre cheio de intrigas e mexericos - mas nao era parte do mecanismo de administraçao. Isso ajudou a tornar pussfvel a criaçao de urna administraçâo burocrâtica. em princîpio - e ern parte na prâtica - diretamcntc n:sponsâvel pelo governante. Os ministros indicados por Luîs XIV eram freqüentemente da nobreza, mas nem sernpn: cra assim. Eles às vezes se apresentavam pessoalmente. porém, mais usualmente nos conselhos dc governo, vinculados diretamente aos ôrgàos executivos da administraçao, cujos postos, na maior parte. nao eram prebendas, mas ocupados por funcionârios assalariados prafissionais2J •

As polîticas de Colbert eram ativa e deliberadamente orientadas na direçao da consoli-daçao da burocracia desse modo - no sistema de intendants, por exemplo. Começando corn urna tentativa de racionalizar a taxaçao, e centralizl1r a coleta de impostos, Colbert ajudou a construir um sistema hierârquico de administraçào, coordenando funcioni-rios centrais e locais a um grau muita maior do que tinha sido anteriorrnente. Os intendants eram origlnalmente enviados para conduzir pesquisas sobre 0 emprego efeti-vo de recursos fiseais, relatando os resultados de modo a refonnâ-Ios. Porérn, eles per-maneceram nas provÎncias, enviando relat6rios regulares, e tornando-se efetivamente administradores residentes, diretamente responsâveis perante a

A coordenaçao e centralizaçao do poder do Estaoo, na França e por toda a Euro-pa, levou a monarquia a uma confrontaçao corn as organizaç6es corporarivas, incluin-do as cidades, as assembléias e os parlamentos onde eles existiam. As cidades france-sas, muitas das quais desfrutavam uma independência considenivel do aparato polftico central, passaram a ser regulamentadas par prefeitos nomeooos pela Coroa, pela édito de J692. A autoridad" do Parlement de Paris fOl remodelada e diminuida. Em 1673 seu direito de representaçao para considerar a legislaçao foi limitado para urn periodo posterior ao registra de um édito. Todavia, a Coroa deveria consultar regularmente os Estados provinciais no Pays d'État:,', assim como a Assembléia do Clero. Além disso, uma vez que ern muitas instâncias novas posiçoes oficiais eram criadas ao lado das ja existentes, sem repô-Ias t,otalmente, 0 resultado foi uma trama complexa de divisao das relaçoes de autoridade, distribuîdas taoto horizontalmente camo hierarquicamente23

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Aigo similar acontecia ern outra parte, ainda que corn grandes vanaç6es de Estado para Estado. Assim, os Estados da Boêmia. Brandeburgo e Rûssia foram implacavel-mente reprirnidos 0 rei Carlos XI da Suécia impooiu as reuniôes do Riksdag, realiza-das senâo esporadicarnente depois de 1680; antes do final do reino de Felipe IV as

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23. Bem analisado par Hintze, ern Staal und Verfassung, G6ttingen, Vandenhoeck:, 19fi2, pp. 264 e ss. ; 24, John C. Rule, Lollis XIV and the Craft of KingJhip, Columbus, OhIO State University Press, 1969, ii· 25, Lockyer, op. cir., pp. 481-482.

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P de Castilha [oram emasculadas. Considerando que tais organizaç6es eram com-

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fundado sob uma alîança entre a Coroa e J. burguesia capitalista comercial. Essa era, de fato, a visao de Marx. De acordo corn ele, em uma observaçao tipica sobre a questao, "a centralizaçao do poder do Estado, corn seus ôrgàos onipn:sentes do exército eietivo. a polîcia, a burocracia, 0 cleTO, e 0 judiciârio - arguas elabonldos depois de um pIano sistematico e hierarquico de divisao de trabalho - originârios dos tempos da monarquia absoluta, viam na nascenle sociedadc de classe média uma arma poderosa em sua luta contra 0

NaD ha dûvida de que na França, e em grau variâvel em outras IDcais, atgumas das corporaç6es urbanas cooperaram corn 0 aparato do Estado absolutista ascendente de um modo qne os estamentos nao fizeram. Uma certa parcela de autonomia adminîs-trativa das cidàdes foi concedida. em troc a da consolidaçao de estruturas mais ar,nplas de leis que facilitassem a expansao de Interesses comerciais e manufalureiros. Havia diversas razoes para isso. Por um lado, os grupos em questào disL:erniarn as vantagens1; que lhes poderiam advir do desenvolvimento de tais estruturas. Par outra, alguns indivÎ-duos, cada vez mais poderosos, naD estavarn muito prcocupados em defender formas

1, estabelecidas de autonomia corporativa, nas quais as guildas profissionais representa- vam barreîras para a adoçao do trahalho livre assalariado como um meio de ex.pansao da produçao. Entretanto. a mais importante de tudo em 0 fato de que, pela primeira vez, a cidade nao era mais uma forma dâensiva importante na guerra - os avanços em tecnologia militar foram nesse aspecta obsoletos. A crescente obsolescência da cidade, em sua forma tradicional em tennos poHticos, econômicos e rnilitares, é uma das tran- siçôes mais fundamentais iniciadas - ainda que, certamente. naD completa - camo parte da emergência do Estado absollltista.

.A interpretaçao de Marx esta. hoje amplamente desacreditada, coma mesrno os historiadores forte mente simpaticos ao marxismo reconhecem. Assim, Anderson acei-ta que 0 Estado absolurista "nunca foi um arbitro entre a aristocracia e a burguesia, ainda menos um ins[rumento da nasce:nte burguesia contra a aristocracia"n. Ao cOntra-rio, isto é mais acuradamente visto como a expressâo da perpetuaçao de uma classe dominante tradicional, de uma minoria proprietâria de terra que se transformoll, substan-cialmente, em grande parte como uma conseqüência acidental de tentativas de enfren-lar as ameaças interna e extemarnente. Os processos externos que faziam parte do desenvolvimento de um nova sistema estatal sao, em minha opiniao, muito mais im-

26. K. Marx, '"The Civil War in France"', em Marx e Engels, op. cit., 1968, p. 289. 27. Anderson, op. cit., p 18,

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portantes do que muitos historiadores poderiarn supor. Internamente, 0 mais significati-va dos falores foram, provavelmente, como Anderson sugere, as tentativas par parte das autoridades govemantes de enfrentar mudanças que levaram à dissoluçào parcial da autonomia de comunidades camponesas especîficas. 0 resultado foi um "deslocamen-to superior da autoridade", fortalecendo consideravelmente 0 aparato centralizado do poder real. É praticamente certo que a presença das cornunidades urbanas parcialmen-te autônomas foi da maior imponância (junto com ourras influências distîntamente "européias" ou "ocidentais") em prevenir 0 Estado pôs-feudal de esmagar a campesinato de uro modo honrado. Uma ordem polîtica bastante dis tinta estava assim cnada.

Os efeitos do absolutismo em fortalecer a domînio burocratico de um Estado ter-ntorialmente delirnitado nâo deve ser exagerado. A afirmaçao de Marx, nao obstante, é somente em relaçâo à emergência do Estado-naçao, a de que um aparato do poder de Estado administrativo centralizado toma-se "ubîquo". Se isso pode ser considerado de fonna justificada coma 0 mais alto desenvolvimento dl? Estado absolutista, a França, sob LUIS XIV, eS[ava ainda razoavelmente longe da forma de Estado-naçao. Foi, de certa maneira, possivelmente 0 paîs mais homogêneo da Europa. A maioria de seus habitantes falava a mesma lîngua, ainda que as diferenças entre os dialetos usados cm varias provfncias fossem extremas para padr6es posteriores. Ylas em alguns pomos centraÎs 0 alcance do aparato de Estado pennaneceu bastante limitado. Mesmo 0 mo-narca nao era simplesmente 0 rei da França; no sul ele era tidü, e ele assÎm se autoproclamava, como 0 Conde de Provença, enquanto em Dauphiné ele era a Delfim de Viennois. Se a carâter fechado da comunidade carnponesa foi substancialmente enfraquecido, as regi6es mantiveram grande parte do controle administrativo sobre os seus pr6prios neg6clos. Tanto em relaçao à administraçao legal quanta fiscal havia grandes vmiaçoes regionais e justaposiçôes de critérios de aplicaçôes. Voltaire obser-vou que "0 que é justo e direito em Charnpanhe nae deve ser julgado injusto ou errado na Nonnandia"Z&. Mas tal situaçao mantém-se até 0 final do reinado de Luîs XlV. Enquanto 0 direito romano predominou nas cortes do suaeste, em outras âreas provin-ciais 0 direito consuetudinârio ainda prevalecia. Além disso, às veze5 uma simples cornunidade poderia estar sujeita a mûltiplos tipes de sistcmas legais. Por exemple, no Beauvaisis havia aigumas aldeias onde 0 direito consuetudinârio variava de acordo cam intimeras diferenciaçoes19. A despeite das realizaçoes de Colbert e de outras mi-nistros em regularizar 0 sistema de impostos, os métodos de caleta de taxas permane-ceram inconstantes. A fonna bâsica de taxaçao direta, a faille, era coletl1da por funcio-

28. CÎtado em William F. Chun:h, The Greatnes.t ofLouis X/V, MYlh or Realiry.'. Boston, Mass, He::lth, 1959, p.47.

29. Pierre Goubert, Beauvaü et le Beauvaisis de /600 Ô. 1780, Paris, SEUPEN, 1960, pp. 13 e ss

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o EST.4DO-NA ÇA0 E.Jo VIOLÊNClA

nârios respons.1veis pela Estado central. Outras impostos eram fixas, e 0 Pays d'États tinha seus prôprios procedimemos de coleta de taxas. Ademais, havia dois tipas de taille, uro coletado principalmente sobre a terra, e aplicado especialmente no sul, e outra em forma de ta,'(açao pessoa!. Mllitas categorias de indivfduos estavam isentas da taille, assim como a maioria das grandes cidades. Ao lango do reinado de Luis XIV, aI-gumas cidades manriveram tarifas sobre 0 comércio em grande parte dentro da França, enquanto conduziam 0 livre comércio corn outras Estados de fora.

É contra esse panorama que 0 desenvolvimento do sisteroa legal e fiscal, 50b 0 ab-solutismo, devena sec avaliado. Nâo hâ duvida de que ele cleu uro passo extremamente importante na consolidaçao do aparato de Estado. :NIas era tao transÎtôrio quanto os outras aspectos do Estado absolmista mencionados. A promulgaçâo de côdigos abstratos de lei, que se aplicam a toda a populaçao de um Estado, é estreitamente vÎnc111ado à noçâo de soberania. Se 0 absolutismo era visto somente coma a concentraçao da autoridade nas maos do monarca, a desenvolvimento da lei poderia ser definido coma a subordinaçâo do conjunto da ordem polîrica ao desejo de um déspota. Mas se a Estado absolutista é considerado nos termos da coordenaçao de "administraçao soberana", a expansao do direi-to codificado aparece totalmente sob outra luz. É, assim, uma parte essencial de um apa-rata de poder generalizado. Mais do que 0 brinql1edo do monarca, indica um caminho a nm sistema legal para a quaI a monarca é tamo formalmente irrelevante, quanta estaria sujeito aos mesmos principios legais camo todos os outras membras da sociedade.

Diversos aspectos do desenvolvimento do direito padern ser distinguidos junto corn o surgimento do Estado absolurista. Dm é a crescente promulgaçao de estatlltos designa-dos para serem aplicados de uma forma impessoal para 0 conjunto da populaçâo, sem exclusâo de categorias. Desse modo, Luis XIV definiu uma variedade de côdigos de pro-cedimentos de tal tipo, cobrindo tanto 0 direito criminal coma 0 civil. A importância de um tal acontecimemo, para 0 quaI hâ paralelos em outros Estados europeus principals, é sem du vida lim.itado apenas para a fonnulaçao de nm corpus geral de lei, embora certa-mente significativo. Estâ tmhbém no conceito que 0 monarca poderia criar e reforçar a nova lei. No feudalismo, os estamentos reivindicavam prerrogativas de cararer tradicio-nal que também tinham 0 direilo de sancionar. corn 0 uso da força se necessirio. 0 gover-nante territorial tinha direitos similares, mas deveria entrar em acordo corn os estamentos em qualquer modificaçao de procedimentos legais. No Estado absolutista, as corpora-ç5es e as organizaç5es de fora do aparato administrativo central tomaram-se, quando muito, "uma audiência privilegiada, cujos componentes poderiam ser isentos corn benevo-lência dos efeitos desagradâveis (especialmente os fiscais) dos novos regulamentos"Jo.

30. Gianfranco Poggi, The Developmenl ofthe Modem Scare, London, Hutchinson, 1978, p. 73 A discussào de Poggi do desenvolvimenw da lei no Estado absolurista, ainda que breve, é exemplar,

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Dm segundo fator da maior importància refere-se às mudanças no conteûdo da lei, mais especificamente em relaçao à propriedade privada. A redescoberta do direito romano representou uma parte significativa ao definir essas mudanças, embora seu papel possa ser especialmence se a caracterizaçao de suas origens for leva-da a sério. Aiguns aspectas do direito "romano" do periodo fwal e pôs-medieval nao sao encontrados na Antigüidade como um todo, e outros foram substancialmente modifi-cados, tais como as noçoes de dominium e possessio. De acordo corn Weber, as "autênti-cas" instituiç6es do direito romano eram um pouco mais abstralas do que as do direiw germânic031 . 0 processo de "redescoberta" do direito romano, a partir dai, também re": fonnulou iSS032 . Em sua forma reconstituîda, 0 direito romano fomeceu os meios de

paraçao da propriedade privada do domînio "pûblico" de um modo nao acessivel para a ordem feudal. Isso era mais evidente do que qualquer elemento especifico dessas leis empregadas na realidade para definir a propriedade privada, ja que nas cidades 0 côdi-go comercial foi concebido de forma a dever muito pouco à herança romana. A diferen-ciaçao entre jus e Lex, entretanto, tomou os esforços fonnalizados pela administraçao absolutista de grande conseqüência para 0 desenvolvimento polftico e econâmico subse-qüente. A ultima fomeceu uma base pronta para a tentativa dos govemames de superar as licenças medievais em favor de sua prôpria capacidade de legislar. Mas a anterior, ao mesmo tempo e em um certo nivel como parte de um mesmo processo de legislaçao, ajudou a elaborar novas possibilidades de "propriedade privada", tanto da terra como de mercadorias fora do alcance do poder do Estado. Nao se trata de um paradoxo a de-fesa de que 0 efeilo da mudança na natureza da lei era simultaneamente para suportar o domînio total da classe fel1dal tradicional, como para ajudar a confirmar a crescente força do capital comercial e manufatureiro.

Dm terceiro conjl1nto de mudanças nos da lei refere-se ao côdigo penal e aos modos de sançao apropriados pela aparato de Estado. Muita atençao tem sido dada pelos historiadores ao desenvolvimento das propriedades gerais da lei sob 0

absolutismo, mas muito pouco tem sido escrito sobre as mudancas que afetam 0 c6digo, ' penal especificamente. No periodo do absolutismo iniciou-se 0 encarceramento e a ex-tensiio de açôes cerceadoras controladas pelo Estado, substituindo as fonnas de sançao das comunidades locais que tinham sido predominantes anterionnente. Ha conex6es intimas entre os dois primeiros tipos de transformaçiio juridica mencionados, e um terceiro. A idéia de que uma autoridade soberana unitâria deveria substituir 0 corporati-vismo feudal- e que essa é a condiçâo de eliminaçao de um conilito civîl- encontrada em uma roupagem diferente em Bodin e em Hobbes, incorpora uma ênfase na "ordem"

3 L Weber. op. cit., 1978. voL 2. pp. 800-802. 32. Cf. P. Vinogradoff, Roman Law in Mediaeval Eu.rope, London. Harper, 1909.

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o E5TADO-.NAÇAO E A 'v70LÈNCIA

ou na disciplina social. Portanto, de acordo corn Bodin, por exempla, 0 "objetivo do Estado" é produzir uma "vida bem organizada"33, A justaposiçao de "ordem" e "anar-quia" (existente também, em lima forma diferente, no sistema estatal) é intrînseca à concepçâo de soberania. Aponta 0 caminho, nao apenas do reconhecimento da neces-sidade de uma disciplina social generalizada, mas para a emergência de uma idéia de "desvio". Embora, coma em muiras peculiaridades do absolutismo, houvesse amplas variaç6es entre os diversos paises, é nos séculos XVI e XVII que as organizaçôes carcerârias se disseminararn. A reorganizaçao do hôpitaL général de Paris em 1657 é sintomatico das tendências do perfodo. Ele foi construido a partir de um nûmero de velhos edifîcios agrupados em um, mas em outras cidades novos prédios corn esse prop6sito foram consrruîdos - em Liao, por exemplo, tal construçao foi iniciada jâ em 1612. Dm estatuto de 1676 ,exigia que cada cidade francesa acima de um determinado tamanho construîsse ûm hôpital général a partir do exemp10 parisienseJ4 .

Desenvolvimenros semelhantes ocorreram anterionnente na Inglaterra - sem duvi-da relacionados a uma racionalizaçao administrativa da autoridade do Estado bastante precoce ali - corn a construçao de casas de correçâo datando de um édito de 1575. Isso nao se estendell e foram, depois. amplamente substituîdas pela estabelecimento de asi-los para pobres. Entretanto, a Inglaterra poderia se orgulhar, pois tem sido considerada Como 0 primeiro exemplo do "encarceramento modemo" na Europa - amplamente copiado em outras paîses - Bridewell, estabelecido em 1556. Bridewell pode ter sido 0

modelo para 0 Rasp Huis em Amsterdam, embora algllns refutem ISS03). Existiu, de fa-ro, um tipo de puniçao disciplinar, anterior ao estabelecimemo de Bridewell e reformato-rios semelhantes no resto da Europa. Esses eram os confinamentos penitenciârios dos monastérios. Aiguns dos principais grupos monastîcos desenvolveram regulamentos para a puniçâo corretiva de ofensores por meio do confinamento e do isolamento do transgressor. Os monastérios nao eram a fonte mais prôxima das primeiras casas de, correçao, mas existe uma Ùgaçâo entre eles e 0 sistema de encarceramento do final do século xvm e XIX - um fenômeno do Estado-naçao mais do que do Estado absolutis-ta. É claro que a disseminaçâo das organizaç6es carcerârias nao estava limitada à esfera da criminalidade coma tal, mas formava um fluxo muito mais amplo de mudança social associado ao absolutismo, maximizado mais tarde no Estado-naçâo. a doente, 0 louco, e outras categorias foram segregados do restante da populaçao "normal" (saos/ cllmpridores da leifsaudaveis). 0 que Doemer, seguindo Foucault, chama de a "época

33. Preston King, The Ideology ofOrder, London, Allen & Unwin, 1974, p. 75. 34. Cf. Klaus Doemer, Madmen and the Bourgeoisie, Oxford, Bil5il Blackwell, 1981. 35, Sean McConville, A History of English Prison Administration, London, Routledge & Kegan Paul, 1981,

pp.3Iess.

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[575. lsso

o ESTADOABSOLL71STA E 0

da segregaçào da insensatez" (1650-1800), pode razoavelmente ser descrito como uma época na quaI "a igreja e a sociedade capitalista-burguesa ainda nao podiam induiT as vârias formas do irracional, especialmente os pobres e os dementes"J6.

Se alguns desses elementos sâo bas tante peeullares ao Estado absolutista, a necessÎ-dade de um gerenciamento fiscal nao é. Isso quer dÎzer que, coma todos os Estados, 0

Estado absolutista dependia da coleta de impostos em larga escala. na perseguiçao de confrontaçôes militaTes prolongadas. eausava uma vazâo ünensa nos re-cursos dos grandes Estados. Foi ca1culado que no final do século XVI mais de três quar-tas da arn:::cadaçao do Estado espanhol tinha sido gasto corn propôsitos militares. De acordo corn Clark, durante todo 0 sécula XVII houve apenas sete anos durante os quais nao houve maiores contlitos entre os Estados europeus. Em um desses anos os grandes exéreitos foram, de fata, mobilizados para batalhas, houve uma troca de artilharia, e uma guerra em grande escala foi evitada Somente a lima pouea distância de SUD. eclosao. A gllerra "tomou-se urna industria do Estado"37. É clara que os Estados têm sernpre empreendido,gLlcrras. Mas hâ ocasii5es em que a conduçào de uma guerra tDma-se mais onerosâ e complexa, com as mudanças tecno16gicas em armD.mentos e mudançns no

final do , r:absolutis-

àesfera asocial

;olonco, (saos!

"época

recrutamento e treinamento de militares, a administraç5.o de recursos tiseais relevantes tomou uroa dimensao difercnte. A expansao precoce do capitalismo certamente deu um impeto maior (0 quao distante, e exatamente de que modo, ainda é uffia controvérsia) pela demanda de enorrnes somas de dinheiro para financiar as açoes militares. Cma das principais séries de acontecimentos que influenciaram 0 padrao subseqüente do sistema estatal europeu foi a bancarrota da Espanha, atingindo 0 seu apice no final do século XVII, quando aquele pals nao podia reunÎT as tropas para colocâ-Ias em campo. A França estava perto da bancarrota na rnudança do século XVII, mas a reforma da administraçao fiscal (seguindo também a chamada "crise geral")JB ja referida em rdaçao a Colbert, detlniu à padrao que 0 resto da Europa seguiuJ9 .

Como a maioria dos aspectas do Estado absolutista, as intluências centralizadoras e burocrâticas que a racionalizaçao das finanças promoveu eram relativame.nte rudimen-tares. 0 de coleta de impostos preservou uma forma de prebenda direto no Cen-tro do sistema administrativo. Havia tantas isençôes em taxaçâ-o direta originadas dt:: categorias e regiôes que nenhum pal.s possufa algo como 0 sistema de taxaçao graduada que veio posteriormente. A informaçao sobre receitas das quais tal sistema dependia,

36. Doemer, op. cit., pp. 15-16. 37. Clark, op. cit., p. 98. 38. Trevor Ashton. Crüü in Europe 1560·1660. London, Routledge & Kegan Paul, 1965. É claro que 0 tema

da "crise geral" lem sido discutido quase que ad nauseam na !ireratura subseqüente. 39. Urna fDote essenciaJ para 0 inîcio do séculD XVII na França é A. D. Lublinskaya, French Absolutism: The

Crucial Phase. 1620-29, Cambridge, Cambridge University Press, 196&, capitulDS 3 e 5.

127

Page 20: 4. O Estado absolutista

(

..

l o ESTADO-NAÇAD EA VIOLÊNClA

r- naD poderia efetivamente ser reunida, mesmo pela mais uvançado dos Estados. É 00[-

I malmente aceito que a Prtîssia, 50b Frederico, 0 Grande, foi 0 mais burocrarizado dos 1 - Estados europeus. Mas 0 tamanho e 0 alcance que sua administraçao aüngia era peque-t, no se comparado rnesmo ao menos burocratizado dos aparatos de Estado dos Estados-1

naçao. Na Prussia, na época, havia um funcionârio pûblico para cada 450 habitantes; na

!,i

Alemanha, em 1925, havia um para cada 46 pessoas da populaçao. É razoâvel atrrmar, como um observador comenta, que 0 Estado absolutîsta criou "um govemo cujas deci-soes foram realmeme implantadas (quer dizer, um govemo efetivu)". Mas também é justo dizer, como 0 mesmo autar 0 faz, que mesmo no século XVIII a Europa "ainda era es-erava" das instituiç5es "que haviam sido estabelecidas durante a Idade Média"4D.

o Estildo absolu6sta, entao, é uma ordem politiea distinra em diversos aspectos bisicos, se à generalidade dos Estados tradicionais. 0 desenvolvimento dos Estados europells começa a divergir dos padrües preestabelecidos de surgimento e queda dos impérios. Isso envolve, acima de tudo, a formaçao de um novo tipo de sistema estatal reflexivamente monitorado, associado substancial e conceitualmeme ao desenvolvimento da soberania. A idéia de soberania, vineulada slmultaneamente à posiçao do governante absoluüsta e à formaçao de um centralismo buroerâtico eleva*

.,:. do, é um dos elementos mais importantes, ligando 0 desenvolvimento "interno" do Estado à consolidaçao "extema" do sistema do Estado.

Pader }';lilitar do Estado Absalutista ao Estado-Naçào

[nûmeras batalhas e guerras, crescente.s em tamanho e destruiçao, modelaram a alinhamento territorial tanto dos Estados absolmisras cuma dos Estados-naçao emer-gentes na Europa. 0 de haver "Estados continuos" naD deveria [lOS irnpedir de ,ver o deslumbrante panorama de mudanças que ocorreram através dos séculos. Coma Till)' ressalta,

a grande maioria das umdades polîticas qUt: estavalll proclamandQ independência e força por volta de 1500 desaparecerarn nos poucos sécu!os seguLntes, esmagados ou abSOtvidos par outras Estados em farmaçao. A maioria s:..lbstancial dOlS llnidades que chegaram <:l auquiriJ UIlI;]. existência reconhecida como Est;ldos durame aqueles lambém desapa:eceram. E daquelas poucas qlle sobreviveram ou emergiram no século XIX coma Estados autônomos, somente algumas atuar3rn eft:tiv31l1ente - sem considerar quai 0 critério de efetivi-dade que es ramas

,10. E. N. Willial7ls, The.1ncienf Regime in Ellrnpe. London, Bodley Head, L970, pp. 2 e 14. 41. C. Tilly, "Refleclions on the Histoi)' of European Stale-making" em seu volume editado The Formarion of

Narionaf Slares in Europe, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 38.

128

Page 21: 4. O Estado absolutista

)s. É nor-izado dos :ra peque-, Estados-tantes; na ,1 afrrmar, IJjas deci-;méjusto ja era es-»40

aspectas 1vimento

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oESTADO ABSOLUTISTA. E 0 ESTADO-NAÇAo

Diversos padroes geopolîticos sào observâveis na transiçao do absolutismo à fase inlcial do desenvohirnento do Estado-naçâo no século XIX42 . Dm é a surgimento e decIinio da influência espanhola. Ao falar do papel da "Espanha" na Europa, América e além, nos séculos XV e XVI. obviamente nffo nos referimos ao Estado-naçao que mais tarde surgiu corn esta denominaçao. 0 poder espanhol era "imernacional" no sentido tradicional da Europa f<uda!. Carlos V, também chefe do Sagrado Império Romaro, governou sobre VIDaS dominios espanh6is, Nâpoles e Sici1ia, 0 Ducado de Milio. terri-t6rios dos Habsburgos na Alemanha e proximidades, e nas coIônias do outro Indo do Atlântico. Havia pouca ligaçâo entre eles que nao fosse J sua submissao formaI à Coroa espanhola. Mas nao é difîcil supor que, dadas certas diferenças na liderança do Estado, a Espanha teria se tarnado a centra de um novo império de tipo tradicional.

Por volta do inicio do século XVII, esta possibilidade desapareceu rapidamente; a diminuiçâo da primazia espanhola deixou uma marCll permanente sobre 0 resto da Emopa e. conseqüentemente, no mundo. Se os ingleses tivessem sido derrotados no mur na época da Armada, é difîeil visllalizar que 0 que viria a ser a Grâ-Bretanha .se, . tomaria um'a liderança do poder comercial e indllstrial. 0 declfnio da Espanha apres-sou a fragmentaçao daAlemanha, um fenômeno cuja importância sena difîcil de subesti-mar. A falência du monarquia espunholu em tomar vantagem sobre 0 vâcuo de poder na Europa Ocidemal trouxe um declinio temporârio à França, perrnitindo que aquele paîs. ma.is tarde, nâo somente recuasse na arena palîtiea, mas se tomasse 0 poder dominante eu.ropeu. A França absolutista é 0 primeiro exemplo de um Estudo que desempenhou um papei diretivo na polîtica européia sem se tomar uma entidade transnacional do velho tipo, e assim genuinamenle apresemou-se no înicio da era moderna.

Nilo é sOmente da questao das guerras e da conduçao da diplomacia que se trata aqui; igualmente importante foram as mudanças em tecnologia e organizaçao militares de grande a1cance, que em paite precederam e em parte acompanharam a surgimenro do absolutismo. É necessârio sobriedade por parte dos historiadores ocidenraîs quando isso é comparado ao que jâ existia na China, mas a diferença que elas fizeram para 0

curso da hi-st6ria européia foi bastante fundamental. A Chin<l, por volta do século )\"I, possuîa grandes exércitos e uma variedade de armamentos ausentes na Ocidente, acres-centando a isso 0 usa da pélvora no século XliI para lançar projéteis"-J. Parece ter havi-do uma enorme inovaçao tecnolôgica na gueTTa e nas priiticas militares na China nos séculos XII e XIII. Ainda que livesse havido um longo perfodo em que 0 interesse chi-

42, Analisadode forr.la fascinante em Clark, op. cil.. pp. 155 e ss 43. Frank A. Kierman e John K. Fairbank, Chinese Ways in \ota'1are. C<lmbridge, Mass, HarvMd University

Press, 1974. Ver, em especial, 0 anigo de Herbert Franke., "Siege and Defence of Towns in Mediaeval f' 'l,lI'China", op_ cir,

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Page 22: 4. O Estado absolutista

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[, o ESTADO-NAÇÂO EA VIOLÊNCIA

nés em poderio maritimo eca marginal, no começo do século XV a China desenvolveu 1 1 uma esquadra de grandes proporç6es, facilmente capaz de empreender 0 tipo de explo-

raç5es e iniciativas comerciais levada adiaote pelos europeus-l4. Além dissa. empre-r smos cornerciais construiram e administraram suas pr6prias esquadras, comerciando

pOI rodo 0 sul da Âsia e leste da Afriea. Novamente, é fâcil ver um curSQ passfvel que a 1 histôria mundial romaria - ao contrario de Ma;( Weber - se as conex6es entre 0 desenvol-! vimento tecno16gico. 0 exército e a expans50 do capitalismo comercial na China tives-

t sem progredido posteriormente-l5• Principios confucianos. desprezo pelo militarismo, e,

em um menor grau, pelo comerciunte, sem duvida aluararn de um modo difuso para inibir taI progressao. Mas a influência mais importante era uma decisâo diretamente polftica. Dm pouco antes de meados do século XV, expediç6es de longa distância pelo Oceano fndico eram proibidas por éditos imperiais, coma 0 foi imediatamente ap6s a construçâo de navios capazes de realizar as viagens necessârias. As invas6es bem-suce-didas de miss6es militares e comerciais no Oriente, no inîcio do periodo da expansao, marîtima ocidental, foram sem dûvida facilitadas por essa mudança de·atitude.

Corn 0 risco de uma simplificaçao demasiada, poderia ser dito que havia très con-juntos de desenvolvimentos militares que decisivamente infiuenciaram 0 surgimento do Estado absolutista (mas que também foram infiuenciados). Dm era 0 de série interli-gada de mudanças tecnolâgicas em annamentos, que tomararn certos meios terrestres de empreendimento de guerras largamente obsoletos. 0 segundo era 0 da emergència acentuada de um poder dentro das forças armadas, tanto em relaçâo ao comportamento no campo de batalha, quanto aD treinamento militar em geral. A "discipli-na", no usa contemporâneo do termo, originada em um contexto militar, ainda mantém uma ressonância especiallâ. 0 terceiro foi 0 desenvolvimento da força naval européia, que, de alguma fonna, do século XVI em diante (em parte, novamente, pelas

tecnol6gicas) pcovou ser imbatîvel no resto do mundo. Ainda que haja exemplos anterio-res de Estados corn objetivos militares e comerciais significativos, tais como a Fenîcia, a Europa forneceu 0 ûnico exemplo de um império extenso baseaqo ûnica e exc1usivamen-te no controle dos oceanos. Entretanto, muitos impérios tradicionais possivelmente de-pendiam de comunicaç6es realizadas via marîtima, e suas expansoes normalmente resul-tavam de seu controle sobre grandes extens6es de terra sem acesso ao mar.

Exércitos medievais eram normalmente compostos de contingentes oscilantes que serviam a um senhor em tcoca de arrendamento. Eles se arrnavam corn espadas

i

44. Charles O. Hucker, Chinese Govemment in Ming Tl:mes: Seven Studies. New York, Columbia University Press, 1969. Dm esrudo muito Liti] da força militar chinesa aparece no capitula 2 de William H. McNeill, The Persuir afPower, Oxford, Basil Blackwell, 1983.

45. Cf. Kautsky, op. cil.. capitulas 2-3.

130

",,'.Cc

Page 23: 4. O Estado absolutista

oESTADO ABSOLUT1STA E 0 ESTADO-NAÇAO

curtas e lanças. Jâ que a guerra ocorria entre cavaleiros, 0 usa de fonnaçôes de ir..fanta-) de explo- ria era largamente evitado. A logîstica de suprimento era contra a preservaçao de qual-:;0, empre- quer coisa além de bandos armados de soldados durante um detenninado perîodo de ,merciando tempo. Exércitos de qualquer tamanho poderiam normalmente ser sustentados apenas slvel que a por umas poucas semanas, geralmente no verao. A existência de castelos fortificados. e )desenvol- mais tarde de cidades muradas, deu aos defensores grandes vantagens sobre os seus 'bina tives- atacantes46 • Durante a Guerra dos Cern Anos, no século XIV, alguns bandos guerreiros tarismo, e, foram promovidos coma mercenârios por indivîduos comissionados pelos monarcas, lifuso para havendo também "companhias livres" de soldados que vendiam seus serviços em troea iretamente de pilhagem e promessas de terras. Entretanto, nenhum desses tipos de exército tinha :ância pela qualquer forma de existência estâvel. Onde as recompensas eram insuficientes, ou 0

nte apôs a exército se dispersava ou optava pela banditismo; se fossem bem-sucedidos, os lideres seriam considerados aliados dos senhores. 0 dorninio do cavaleiro andante no inicio

l expansâo do feudalismo na Europa foi grandemente influenciado. por uro artifîcio técnieo sim-de. ples mas altamente eficiente, 0 estribo de ferr0 47 . Isto permitiu que a lança earregada a très con- pela guerreiro tivesse 0 impacta do cavala e do eavaleiro, em vez daquele vindo apenas

da força do braço humano. No entanto, os eustos da produçao e manutençao das armadu-;rie interli- ras e dos equiparnentos eram extraordinariamente caros para os padrôes da econornia i terrestres feudal- 0 que amIinaria qualquer um, exceto os muito ricos. Como Finer comenta, era mergência a!go como um soldado contemporâneo fomecendo um tanque e a tripulaçâo, corn total relaçao ao serviço de apoio48 •

, "discipli- o desenvolvimento do areo inglês e da lança, como os usados pela infantaria la mantém suîça (adotando a idéia das tâticas usadas pelos romanos nos ûltimos anos do lmpério) 1européia, eram mudanças complementares em tecnologia militar que ajudaram a dissolver as mudanças técnicas teudais de batalha. A segunda efa consideravelmente mais do que a os anterio- primeira, pois, para dominar 0 arco inglês, era necessârio um perîodo substancial de a Fenicia, aprendizado e a milfcia inglesa nâo prestava serviços mercenârios na Europa continen· lusivamen- taI. Os lanceiros suîços eram compostos principalmente de e sua fonna-Imente de- çao no campo de batalha requeria urna coordenaçao disciplinada. A Confederaçao .ente cesul- Suîça tornou-se uma fonte da quaI os soldados eram recrutados de toda a Europa; suas

tâticas foram adotadas pela rnaioria dos exércitos europeus bem-sucedidos até 0 século l'Scilantes Xv. Entretanto, a lança foi gradualmente superada por armarnentos que utilizavam a ,c

espadas

46. Charles W. C, Oman, The Art of War in the Middle Ages, 375-1515, Ithaca, Comell University Press, 1953. iVniversity Ver também Sidney Toy, A Hisrory ofForrificationfrom 3000 BC ra 1700, London. HeînemWln, 1955.

McNeill, 47.1. T. White. Mediaeval Technology and Social Change. Oxford. Clarendon Press, 1962. capÎtulo 1. 48. Samuel E. Finer, "State and Nation-building in Europe: The RoIe of [he Military". em TiJly (ed.). op. cil.,

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Page 24: 4. O Estado absolutista

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1 o ESTADO-NAÇJ"O fA VlOLÊNCfA. força exploslva da p61vara, certamente uma das mais significativas mudanças tecno16gi-

cas na historia da humanidade, 0 canhao teve profundas conseqüências na feiçào da civîlizaçao modema, porque no formato da antiga artilharia, ajudou nitidamente a redu-zir a importância do castelo e da cidade camo receptaculo de poder milîtar. Dm canhâo é uma învençao "industrial", no sentido da termo quando aplicado à Revoluçao Indus-triaL Quer dizer, trat<t-se de um artefato mecânico cujo fmpeto depende da aplicaçao de fontes inanimadas de energia material4",

o exército espanhol estava entre os primeLros a usar canhàes cm larga escala entre a infantarla. Algo como 1I6 de seus wldados nas guerras italianas levavam ca-nhôes: a maioria, no entamo, permanecia como lanceiros. Urna variedade de armas explosivas foram tentadas no inlcio, mas as duas mais importantes eram os arcabuzes de 10 libras' .. 5 pés" e masqueres de 15 libms"" e 6 pés" ", Em mendas da sécula XVl, o mosquete de dois canos, disparado de um descanso bifurcado, lornou-se a arma prin-cipal; lançava uma bala de 2 onças"·'" que podia penetrar qoolquer forma de armadu-ra existente, e passu{a um alcance de aproxLmadamente 300 jardus 5lJ • Urou grande guan-tidade de outros equipamentos tinha. de seT canegada para 0 funcionamento dos canhÔes. o gue poderia naD ocorrer em mâs condiç6es clirnâticas. Entretanto, 0 seu usa exîgia uma disciplina rigorosa, porque havia cen,;a de uma centerra de movirnentos difererrtes necessarios para obter qualquer tipo de togo nipido, 0 poder de foga concentrado de fi-leiras de homens exigia mesmo uma coordenaçào mais severa e rotincira,

A artilharia de campo rapidamente se tomaria um fator significativo para a impo-siçao do sltio, e mcsmo sua imobilidade ajudou a transferir os locais das batnlhas longe da concentraçao dos caste10s e das cidades - a subjugaçao de um exércîto em um tef-reno àberto perrnitiria trazer as peças de artilharia, subseqüentemente à açào, contra as fortificaç6es fixas, se necessârio. Os novas tipos de fortificaçoes inventadas para comba-ter os explosivos naD tinham particularmente t:onexào corn ::ts âreas urbanas. 0 canhàa, assim como a polvora, poderia ter sida onginalmente Ilma invcnçao chinesa, mas 0 de-

49. A mecnnizaçao de armamentos prel.--ede cm ,éculos sua aplicaçào ils "logîsticas da guerra". Os cavalos te' a força huma na perm,lJ1eccram a base do tranSpolle mi[irar mesmo na Prime ira Guerra Mundial, na quai 0

e;té[cico britânico enviou mais toneladas deave;:l e feno no :'ronre do que muniçao. Ao longo da hiSIOJia da civilizaçào um soldado de infantaria, em média, nat) poderia marchar mais dû 'lue de doze a dezoito milhas (aproximadamente de 19 a 29 km. N. T.) por dia, ou carregar mais do que em tomo de Blibras (aproxima-damente 3,6 kg. N. T.), inciuindo provisao para duas sem:lnas. Cf. S. 1.. A. MarshalL The So/dier's Load and the Mobiliry ofa Nation, W:lshington, Combat Forces Press, 1950.

,., 4.5 kg (N. T.l. ·"k 152 cm (N. T.).

6,8 kg (N. T.) . •.•** 183 cm (N. 1.), .,,·... H .." 57 g (N. T.J.

50.270 m (N. T.). Tbeodore Rapp, Wûr ÎII fhe Modem World, p, 7.

132

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Page 25: 4. O Estado absolutista

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5 J. Pitrim Sorokin, Sociai and Cli/tural Dynamics, l';"ew York, American Book Company, 1937, vol 3. 52. Rapp, op. cic., p. 7.

optaram por uma carreira militar mais profissional. Na França, e em alguns outras

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senvolvirnento deles pelas europeus, sob uma pressâo de guerras mais ou rnenos contÎ-nuas, levou a um grande avanç05\ . Gustavo Adolfo (que corn Mauricio de Nassau deve ser classificado coma 0 maior inovador entre os lideres milîtares no perfodo absolutis-ta) foi 0 responsavel pelas duas principais contribuiçôes à tecnologia militar. Ele estava entre os primeiros a manter continuas campanhas de inverno, algo que se tomall passi-vel pelas alteraçôes que fez no modo de transporte militar e de suprimento. Mas ele também ajudou a inventar UID nova cartucho que, junto com UID calibre de mosquete mais leve, tornaram as armas de batalha mais faceis de serern transportadas. Carregar e recarregar tornoll-se significativamente mais rapido, cam novas formaçôes em campo de batalha 1:: a conseqüente aumenta da capacidade ofensiva das tropas armadas em re-laçâo às outras. A posterior invençao da espingarda e da baioneta levou a guetTa, de for-ma decisiva, na direçao modema. A espingarda aumentoll sobremaneira 0 poder de fago, enquanto a baioneta fez do carregador de canhao, aD rnesmo tempo, um lanceiro. Os dias de imensas fileiras de lanceiros haviam terrninado.

Os diversos desenvolvimentas tecnolâgicos em armamento do sécula XlII aa final do século XVII naD podern ser separados facilmente das mudanças organizacio-nais rnilitares e das rnudanças nas relaç6es entre as forças armadas e 0 Estado. Tadavia, nâo é diffcil ùemonstrar que elas foram conseqüências naturais de œinos e principados mmultuados da ordern feudal. Quanto menor. mais os Estados organizados de forma tradicional eram absorvidos pelas novas concentraç6es de forças rnilitares, ou sirnples-mente se tomavarn irreJevantes para as principais intluências modeladoras do destina do europeu. Os avanços em tecnologia militar favoreceram decididamente aqueles Estados que podiam. porquaisquer meios, nao apenas rnobîlizar grandes contin-gentes, mas e emprega-los de forma regularizada.

É consenso que as companhias francesas "de ordenança"' (isto é, de urna força padronizada), criadas durante a Guerra dos Cern Anos, compuseram 0 primeiro exérCÎ-to efetivo a dever sua obediência diretamente ao rnonarca. Em 1445, a rei francês em-pregou vinte dessas cornpanhias anualmente, e garantiu 0 pagamenro aos seus mem-bras com a intermédio do Estado. Elas eram de cern "lanças" cada e inumeros aficiais, cada lança incluindo um soldado, seu escudeiro, dois arqueiros, um valete e um pajem5J . Eles eram uma força montada. nao infantaria, e nao ha particularmente uma linha direta de conexào entre eles e os exércitos efetivos que viriam mais tarde. Entretanto, corn a sua formaçào, urna clara divisao começou a ser estabelecida entre os proprietârios de terra que estavam preocupados corn suas propriedades e aqueles que

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, ,i o ESTADO-NAÇAO EA VIOLÊNCJA ,

paîses, isso convergiu para um abismo entre 0 recrutamento militar e as ocupaçôes da maioria do campesinato. Corno 0 feudal levée acabou, os instrutores SUfÇŒ dos regi-mentas da infantaria francesa recrutavam seus soldados predominantemente nos "enfmus perdus" - os vagabundos rurais e a plebe. No final do sécul0 XV, os exércitos franceses e espanh6is eram sem dû vida as forças dominantes na Europa. e 0 exército francês em particular tinlla tamada, em alguns aspectas, uma fonna reconhccidamenre moderna. Isso gueT dizer que estava vinculado il uma autoridade do Estado (pela monarca), que estava equipado corn armamentos explosivos - junta corn outras .armas - e possufa um nûcleo permanentemente organizado.

A ascensâo da França e 0 declinio da Espanha como potências militares podem ser dramaticamente demonstrados pela mudança no tamanho de seus exércitos ao lon-go de a,proximadamente um século, como se vé no Quadro 35J .

"! Quadro :1 Exérdro Espan.lwl Exérâro Francis iL 1

t630 3DO'100 150.000 '" '.\.1

, 165D 100,000 lOO,DOO

'l' 1670 10,000 120,000

1700 50.000 400.000

o simples crescimento dos exércitos entre os pafses lfderes desde 0 declfnio do periodo feudal até 0 final do século XVIII, é um dos mais surpreendentes aspectas da histôria militar eurapéia. A batalha de Hastings envalveu cerca de 12.000 homens, corn

.ê:,i 0 mesmo numera do outra Iada, Gustavo Adolfo reuniu 30.000 para .." suas campanhas, e """allenstein talvez 100.000 - farmalmente ele eca apenCLs um farne-cedor militar, mas. na realidnde, era um governante guase imperial par direito. Entretan-to, foi 0 crescirnento do exérciro francés, coma 0 Quadro 3 demonstra, gue se tümou 0

aspecto mais impressionante das forças armadas européias. Sob Luîs XIV, 0 exército francês superou em nûmero ü do império romano no seu auge - um îndice do grau de pader administrativo e fiscal gerado pela principal Estado absolutisla que, certamente. nao era por isso facilmente capaz de cresolver tudo a seu modo. 0 final da Guerra ùos Trima Anos, um momento fundamental de transiçao na consolidaçao de um sistema es-tatai reflexivamente monitorado, foi também marcado par uma expansao radical nO

53 Geoffrey Parlier. "The 'Military Revolution' 1660-A Myth?" ,Journal of Modern History, 48, 1976, p.206. 1

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Page 27: 4. O Estado absolutista

o ESTADO ABSOJ.UTISTA E 0 ESTADO-NAÇAO

Jaçœs da tamanho dos exércitos efetivos na maioria dos principais Estados europeus. Deve ser

dos regi- enfatizado. entretanto, que, na reaIidade. por toda a parte esses exércitos eram forma-: "enfants dos principalmentt: por mercenârios, em geral vindos de paîses mais pobres. Mesmo

franceses no final do século XVII havia poucas casernas espalhadas pela Europa; as tropas eram

ancês em aquarteladas entre os civis.

moderna. o porler naval nao é obviamente apenas uma extensao das forças armadas terres-

rca), que tres. a aceSso das rotas marîtimas difere amplamente entre os Estados dependendo da

'SsuÎa um sua posiçao geogrâfica; a hîstôria naval é inevitavclmence a de urn modo particular de transporte; e os navios devem ser geridos par aqueles que dedicam sua vida a esse

$ podem jetivo. Em qualquer marinha relativamente permanente, os navios que se destinam à s ao 10n- questào especifica da guerra devem ser amparados por uma variedade de embarcaç6es

que providenciern outras serviços, além das facilidades terrestres. Como Brodie afir-ma, urna marinha que tivesse apenas navios de guerra seria como urna estrada de ferro que tivesse apenas locomotivas54 • Nos tempos feudais, a principal concentraçao do poder maritimo "europeu" localizava-se no .MediterrâJ;leo e a embarcaçâo bâsica de luta - a galera - nao havia mudada muito durarÎte séculos. Obviamente, no Mar do Norte e no AtI5.ntico havia ja aventureiros marftimos - os escandinavos; mas a despeito de suas extraordinirias exploraç6es, eles nunca passaram de intrépidos marinheiros, comercîantes e bandidos saqueadores, nao compondo uma "marinha" no sentido co-mum. Como um vefculo de guerra. a galera dependia de abalroamentos e abordagens, ou era simplesmente um veîculo de transporte para os soldados que entrariam em com-bate em terra. A invençao de embarcaç6es a vela que poderiam sobrcviver em qualquer

Mmo do clima e que, assim, nâo estariarn confinadas à base do Mediterrâneo, foi um fator que ectos da tomou as galeras ultrapassadas. Muito mais impurtante era a aproxîmaçao de canh6es

corn para as guerras marîtirnas. As embarcaçoes a vela poderiam concentrar uma hateria de 100 para arti1haria tais corna os canh6es podiam fazer ern terra nos pIanos de cèrco. Nao sornen-nfome- te as galeras, mas embarcaçoes a vela geralmente mais leves, movidas a monçào, vin-ntI'etan- das do Oriente, nao podiam se equiparar às naves européias fortemente armadas. As omouo e.xército

• ûltimas poderiarn também navegar prôximas ao vento, técnica desconhecida dos navegadores orientais cuja ûnica experiência estnva restrita aos mares de monçao.

gran de a fato de que os Estados corn fortes interesses no Mediterrâneo se mantinham amente, presos ao mo disseminado das galeras até 0 final do século XVI fOl um dos fatores que

dos contribuiu a trazer projeçao aos ingleses, holandeses, e mnis tarde aos franceses, coma emaes- ft," ".", as principais forças navais. Issa, por sua vez, influenciou bastante 0 declfnio nao sornen-lical nO te da Espanha, mas de uma variedade de Estados mediterrâneos que forarn, no penodo

48,1976, 54. Bernard Brodie. A Guide to Naval Srralegy, Prin.ceton., Princeton University Press, 1958.

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DESTADO-NAÇAOEA V10LÊNCIA

pos-feudal. de importância fundamental no conjunto da distribuiçào de poder na Euro-pa. Assim como 0$ exércitos terrestres, mas persistindo por um perioda mais longo, as esquadras de paîses marîtimos cram compostas, em Slla maioria. de mercenârios, naD pertencentes aD Estado. Ccrea de 40% da Armada em composta de gale6es pertencen-tes à Coroa Espanhola, 0 restante eram embarcaç6es mercantis armadas; e somente 16% da esquadra înglesa consistia em embarcaç6es de guerra rcaP5. Marinhas regula-res datam principalmente da parte fmal do século XVII, em cuja época as naus comer-ciais foram forçadas il se retirar em funçao do crescimento taoto do poder ùe fago cornu dos estratagcmas das embarcaç6es de guerT<L Todavia. a força armada das em-barcaç6es comerciais que percorriarn 0 mundo em busca de comércio e pilhagem, era formidavel; em meados do século XVI, e por um longo perîodo depuis, "as navcs européias podiam contar corn uma esmagadora superioridade em encontros armados corn ernbarcaç6es de concepçao diversa em qualquer oceano no mundo"56.

Se essas .vmas transformaçôes das torças armadas terrestres e navais tivessem simplcsmcnte acompanhado 0 desenvolvimento do Estado absolutista, ou se fossem apenas 0 resultado desse desenvolvimento, nao haveria motivo em oferecer um relato tao bem documentado da historia militar. Mas a mudança ùa natureza do poder militar é muito mais importante para explicar nao somente a natureza do absolutismo, mas também 0 carâter do Estado-naçao .

. Varias aspectas principais do desenvolvimento do Estado curopeu foram rnolda-dos de um modo decisivo pelos resultados contingenciais das confrontaçôes rniIitares e das guerras. Nada mostm mais claramente a quaa improvâvel é considerar a emergên-cia das sociedades modemas como 0 It:sultado de um tipo de modelo evolucionârio que inexoravelmente iria dos detriws de aluviao da Suméria à posteriar maquinaria das fâbricas na Europa. Se Carlos Magno. ou outra govemante, tivesse co.lseguido restabe-lecer uma formaçao imperial na Euwpa corn a a1cance e a influência do Irnpério Rer mano, nao ha dûvida de 0 continente teria "estagnado", da mesma maneira que mais tarde p'areceu. aos observadores ocidentais. ter acontecido aos grandes irnpérios do Oriente. 0 "capitalismo" podia ter se desenvolvido em outra parte do rnundo dê modo geral; mas 0 resultado mais provavel, certamente, seriJ que a historia poderia ter seguido um curso inteiramente diverso, Se os mongois no século XIII tivessem escolhi-do os limites da Eurupa para concretizar suas vitorias, em vez de estarem mais preocu-pados corn 0 Oriente, ou se 0 Império Otomano tivesse tido vitorias comparaveis no século XVII, a "Europa" nâo teria existido como uma entidade s6cio-polftica.

55. Garrel Ma({ingly, The Defeat ofthe Spanish Armada. London. Jonathan Cape, 1959. 56. McNeill,op. cil., 1983, p 100. Ver também Carlo M. Cipolla, G,tnS nnd Sails ill/he EarlyPhase ofEuropean

Expansion 1400-1700, London, Collins. 1965.

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o ESTADOABSOLUTISTA EO ESTADO-NAÇAO

o sistcma de Estadu europeu nao era simplesmente 0 "ambiente politico" no quaI a Estado absolutista e a Estado-naçao se nesenvoJveram. Foi a condiçao e, cm UIlI

grau significativo, a fonte real desse desenvolvimento. Foram a guerra e os preparati-vos para ela que forneceram a estÎmulo energizante mais patente para a concentraçao de recursos administrativos e de reorganizaçào fiscal que caracterizaram 0 surgimento do absolutismo, As mudanças tecnol6gicas relativas às gllerras eram mais imporTantes do que as mudanças nas técnicas de produçao. Em geral, é um erra comparar a suposta inércia tecnolôgica da Idade Média corn a visao da rapida transfonnaçao tecnol6gica do Renascimento em diante. As mudanças tecnalôgicas nao eram estranhas à vida medievap7, e nao se aceleraram grandemente no penodo pos-feudal, ao menos antes do século XVII. É freqüentemente destacado que as guildas medievais resistiram às mudanças tecno16gicas. mas esquece-se de que a nova autoridade estatal considerava tais mudanças corn certa condescendência corna as corporaçôes comerciais a tinham feüoS8 . a padrao razoavelmente rapido desenvolvimento tecaolôgico em relaçao ao ernpreendimento de uma guerra cra, cm primeiro lugar, basicamente separado do nû-cleo central da produçao, a que 0 afetava muita mais do que se fosse 0 contrario.

A emergência de exércitos efetivos é um fenômeno de grande înteresse sociol6gi-co, mais do que é normalmente reconhecido. Um ponto de vista comparativa pade, às vezes, induzir a certas confusôes aqui, pois os exércitos efetivDs nao saü, como tais, tipi cos da Europa. De uma maneira ou de outra, todos os grandes modelas de socieda-des de classes mantiveram exércitos efetivos - 0 feudalismo é peculiar a esse respeito. Desse modo, pode parecer que nào tenha havido nada particularrnenre novo no desen-volvimento europeu, que na realidade estaria mais alinhado corn 0 que havja existido em outras lugares. Mas iS50 é um engano. Ern outros tradicionais, 0 poder militar era a alicercc principal tan lu do poder administrativo interna do aparato de Estado, quanta da sua defesa extema (ou meios de agressao) contra as ameaças cstran-geiras. Considerando a carâter segmentado das sociedades de classes, é muitas vezes difîcil separar os dois aspectas de uma forma ;lbsolutamente significativa, Mas no Es-tado absolutista, pela primeira vez, cnmeça a aparecer uma situaçao na quaI 0 exército nao é a base principal de preservaçao da "ordem" interna, Essa é uma transiçâo que culmina no Estado-naçao europeu e - assim eu atesto - explica aigumas de suas carac-teristicas estruturais intrînsecas. 0 outra Ladu du desenvolvimento dos meios de se empreender urna guerra é 0 processo de pacificaçao interna previamente mencionado (e discutido de modo mais completa a seguir). Issa nao surgiu corn a aumento no tamanho dos cKércitos, uu pela elaboraçao de uma tecnologia militar. Ao contrario, a

57. Cf. Jean Gimpel, The Mediaeval Machine, Lon::lon, Victor Gollancz, J977. 58. A t'rase é de Clark, op. cie., p. 65.

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;'., i: o ESTADO-NAÇÀOEA VIOLÊNCL\

existência de grandes exércitos efetivos e 0 avança da pacificaçao interna sao expres-! soes complementares da concentrJ.çao de recurSQS administrativos do Estado. Em am-bas os cases trata-se de um avança na expansâo do poeler administrativo.

Neste avança, a organizaçao militar representou um papel fundamental, influen-ciando tanto 0 aparato de Estado como outras organizaçoes, inc1uindo, posreriormente, empresas de negôcio. Pois foi em uma larga extensào da esfera militar, corno Mumford particularmenre nos Iembra59, que 0 pader administrativo, na sua versâo moderna, foi pioneiro. As Înovaçôes de Maurîcio de Nassau, 0 principe de Orange, sao os excmplos mais tipicos dissa, e demonstrarn outras tendências de lango prazo nas organizaç6es

1 rnilitares. Mauricio ajudou a inicîar duas mudanças adrninistrativas conectadas, e mais tarde encontradas em todas as organizaçoes mais burocratizadas - a fonnaçao de um

r corpo de especialistas corn conhecîmento exclusivo de certas técnicas administrativas essenciais, e a criaçâo simultânea de tropas ordinârias "subqualificadas", Hâ um senti-t do bastante eeal nas quais. por meio das intervenç5es de Mauricio, as técnicas do !' [aylorismo inseriram-se na esfera das forças sél:ulos antes de serem conheci-, das par tai nome na produçao industrial 60 • Como van Doom ressalta. cornparando as duas figuras aparentemente muito contrastantes, "cm ambos nos surpreendernos corn 0

conhecimento s6lida da prarica de suas profissoes, seus paderes anaIfticos precisas e um desejo por experimemos que era amparado pela crença firme na capacidade de organizaçâo e de manipulaçâo do comportamento humano"61. Corno Taylor faria, Mauri-cio dividiu os aspectos técnicos das funç5es das trapas em seqüências especîficas, regulares de atividades linicas. Assim, continuando 0 que j<i tinha sido realizado pelos comandantes espanh6is, ele produziu uma quantidade de instruç6es para manuseio de mosquetes e de lanças, senda que cada parte da seqüência dos atos envolvidos era claramente especificada. Os soldados eram requisüados a praticarem estes exercîcios até que pudessem seguir automaticamente os procedimentos "corretos". Em vez de serem tratados camo ';profissionais" especializados no uso de arrnarnentos, os recru-tas tinham de ser treinados para adquirir a familiaridade necessâria corn 0 manuseio de equipamemos militares. Os membros de uma unidade eram ensinados a responder simul-taneamente às instruç5es de comando, parà assim coordenar os mavimentos de cada individuo corn os do grupo coma urn todo.

Sob 0 impacto desses rnétodos de reforma adrninistrativa, mudanças profundas acorreram na nature7a das forças armadas e no comportamento nos campos de batalha.

59. Lewis Mumford, The MyrII o/rhe Machine, London, Secker & Warburg, 1967, e The Peflragorr ofPower; London. Secker & Warburg, 1971.

60. Maury D. Feld, The SrTucrure of Violence, Beverly Hills, Sage, 1977, pp. 6 e sos; ver também Jacques van Doom, The Soldier and Socîal Change, Beverley Hill, Sage, 1975, pp. 9 e 55.

61. Van Doorn. op. cll., p. Il.

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o ESTADO ABSOLUTISTA E 0 ESTADO-NAÇAO

Maurfcio jnstaIoll a primeirn academia militar na CUIopa. cujos ensinamentos acaba-ram se tornanda uma prâtica padronizada ern toda 0 continente. A concepçao modema de "uniforme" e de "disciplina" pode seI identificada pela sua expansao. 0 significado anterior desses rennos cra apenas um adjetivo, mas tomou-se um substantiva assim que vestir Ioupas padronizadas passau a ser Dorma nas forças armada:i>. Assim, até onde conhecemos 0 soldado comum, os unifonnes datam do Ne'Yv Model Army' da Guerra Civil IngIesa. Mesmo no sécul0 XVI, algurnD.s tropas vestiam-se mais ou menas como Ihes agradavam: mas ao longo da maior parte do século XVII, vestir uniformes estabe-leceu-se decididamente entre todas as categorias do exército. A "disciplina" usada para assinalar uma propriedade de alguém que seguia um conjunto de ensinamentos, mas sob a influência do trcinamento militar, veio a ser considerada nao camo 0 recebimen-ta de uma instruçao individual, mas eomo 0 resultado final de tal Na nova maneira de se fazer guerras, a exibiçao pessoal e 0 heroîsmo reduziram-se dramatica-mente em importância, demonstrando que a transiçao da exibiçao (espetâculo) para 0

anonirnato. que Foucault ca,racteriza coma puniçao, nao é associada unicamente 30

A caserna veio a se tomar, em associaçâo intima corn uniformes e corn treinamento regularizado, disciplinatoria

As técnicas administrativa$ de Mauricio eram derivadas, em parte, de procedimen-tos eopiados daqueles usados nas legiôes romaoas, bem coma 0 resultado da adoçâo ùe noçôes de treinamento sugeridas em pedagogia. Elas refletiam processos de reforma adminîstrativa que, por volta do final do século XVII, tinham penetrado bastante nos cîrculos de atividades e têm, coma suasfons el origo, 0 Estado absolutista. Mas 05.0 hâ dû ....ida de que 0 modela do exército - eomo Cromwell deixou clam em um exempla particularmente ousado - foi diretamente considerado par muÎtos claqueles que procu· ravam expandir os recursos administrativos à disposiçao. a cenârio, em tennos coneretos, era obviamente complicado. 0 corpo de oficiais da rnaioria dos Estados mantinham-se hostis à burocratizaçao das forças armadas na medida em que afetava 0

seo pr6prio estilo de vida; nao havia uro corpo de oficiais profissionais antes de 1800. Os oficiais eram meFcenârÎos ou aristocratas; "0 primeiro perseguia lu-cro. 0 ultimo. horna e aventura"64.

a fato de que 0 inîcio do desenvolvimento das forças armadas dos Estados euro-peus foi organizado de um modo "capitalîsta", pode ser relevante para explicar a expan-sac de empreendimentos empresariais que. posteriormente, tomou-se um elemenlo de

* Refere-se ao exército criado par Cromwell (N. T.). 62. Feld, op. cir., p. 1. 63. Foucault, op. cil. 64. Samuel P. Humington, TheSoldier and the Srare, Cambridge. Mass, Harvard University Press, 1951, p. 20.

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o ESTADO-NAÇAO EA '/IOLÉNCIA

taI împortâncîa das instituiçoes sociais do Ocidente. Os prîncipes govemantes da Euro-1 pa p6s-feudal tornararn-se dependentes de empréstimos banqueiros que. em conjun-i

to corn 05 cornandantes mercenârios empresariais, foram os criadores e responsâveis pela bancarrota de monarcas65 . 0 papel dos condottieri e 0 das famHias de banqueiros

1 era de importância fundamental para "escapar" aos padrôes tradicionais de organiza-1 1 çao militar no inîcio da formaçâo dos Estados absolutistas. Mais tarde, como a conti-

nuaçao das guerras se tornou excessivamente cara, aqueles Estados que tinham nego-dada corn sucesso a transiçao do feudaIismo iotactos assumiram 0 controle do crédita. Estamos também tào acostumados a ver 0 surgimento do capitalismo comercial, e

1 depois 0 do indus[rial, como 0 resultado da iniciativa privada, que parece como se uma fase inicial do desenvolvimento capitalista interrompesse a consolidaçao do ES[ildo absolutista. Mas na realidade a partir da atividade de Sully, Colbert e outros, foram de-finidos certos padroes que se rnantêm até hoje. Os Es[ados assumirarn a controle do dinheiro, colocaram 0 seu aparato jurîdico a serviço da garanüa de seus valores, e um sistema nacional de crédiw e débita foi estabelecido. Ainda que banqueiros individuais e outros empresârios tivessem sido afastados dos negôcios, 0 desenvolvimento poste-riOT da empresa capitalista foi, a longo prazo, decisivamente fortalecida em vez de se enfraquecer.

Pma examinar essa questao, em relaçao à fonnaçâo do Estado-naçâo, algumas questoes conceituais bâsicas devem ser levantadas. 0 que significa exatamente "capitalis-mû" quando usado para 0 desenvolvimento econômico da Europa dos séculos XV ou XVI em diante? 0 quanto 0 capitalismo difere en gros do "capitalismo industrial"? E quaI a relaçao que cada um deles rem corn a emergência do Estado-naçao? Estes SaD os problemas que devo enfocar no proxima capitula. Mas primeiro é necessfuio proyer uma conceituaçao do Estado-naçaa.

Estado'-naçtio, Naçtio, Nacionalismo

Os termos "Estado-naçâo", "Naçâo" e "Nacionalismo" sao, muitas vezes, caracte-risticamente nivelados, usados na literatura das ciências sociais e da historia camo se

65. Um trabalho c1âssico sobre a questao é de R. Ehrenberg, Das Zeiralrer der Fuggel; Jena, 1896. Krieg und Kapi!a/ùmus de W Sombart, Duncker and Humbo/t, Munich, t913 pennanece interessante, ainda que algumas de suas idéias centrais sejam agora um tanto desacreditadas. Para uma critica bem conhecida, ver J. U. Nef, War (l'Id Hllmall Progre.rj, Cambridge, Mas:;, Harvard Universüy Press, 1950. Cf. também J. M. Winter, "The Economie and Social Hiswl)' ofWar", no seu War and Economie Development, Cambridge, Cambridge University Press, 1975.

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fossem sinônimos. Mas devo fazer uma distinçao entre elesM . Por "Nacionalismo" quero dizer uro fenômeno que é basicamente psicol6gico - a adesao de indivîduos a uro conjunto de sîmbolos e crenças enfatizado entre membros de uma ordern politica. Embora os sentimentos de nacionalismo freqüentemente coincidam corn a distribuiçao real da populaçao dos Estados, e enquanto aqueles que governam os Estados modernos normalmente procuram promover tnis sentimentos sempre que

vel ha, sem dûvida, uma clara correspondência entre eIes. Por "Naçaa" refiro-me a u-ma coletividade existente dentro de um territ6rio claramente demarcado, sujeito a uma unidade administrativa, refle:<ivamente monitorada tanto pelo aparato de Estado inler· no coma pOI aqueles de outras Estados. Tanta a naçao quanta a nacianalismo SaD

proprîedades distintas dos Estados modernos, e no contexto de sua emergência origi-nal, assim camo em outros loeais, ha mais do que uma cunexao fortuit<l entre eles. Nào pode haver nacionalismo, ao menos em sua forma modema, sem a formaçao de na-çoes, embora a correlaçao inversa seja mais problematica.

No sentido de indiear qUI::: 0 nacionalîsmo é nm desenvolvimento recente, temos de comparâ-Io ils formas preexistentes de identidade de grupo. Barth estâ provavelmen-te ceno ao dizer que os sentimentos de identidade de grupo em todos os tempos e em todos os lugares sao excludentes: coma uro grupo ou uma comunidadc é concebida, depende das caracterîsticas atribuîdas aos outros, aos estrangeirosli1

• Em muitas culm-ras tribais, a palavra que signitica membro da cornumdade é idéntica àquela usada para "hl.lmano", senda que aos estrangeiros n50 cra conferida tai distinçao. A associaçao caracterîstica de estrangeiro corn "bârbaro" tt:rn, às vezes, a mesma conoraçào lingüfsti-ca. Ocasionalmente, os aspectos excludentes parecem ser os ûnicas pelas quais as gidentidades de grupo sac L:onceituadas. Assim, os povas germânicos referem-se a si mesmos corna "entre o.s vênedas e os waLsche" naD tendo nenhum outra meio

tuaI de autodesignaçao. 0 referente de "vênedo" alterou-se de grupos nômades

ses situados no nordeste para os grupos imigrantes eslavas que sc mudaram mais para o sul; eoquanto os "walsche" foram transferidos dos ceItas para us rolnanos i A noçào de "tribo", certameme pressupoe algumas concepçôes de uro grupo descendente, ou a associaçao de tais grupos; e, tais concepçôcs, junto corn os simbolas religiosos, foram em toda a parte as principais fontes de iJenlidade de gmpo e de exclusao. Mitos genea16-gicos parecem ter sida os meio.s mais comuns pelos quais a descendència Ieal e as rela-çoes de parentesco solidificaram-se corn a identidade de grupo, e tinham .'lido tanto parte da histôria das classes dominantes nas sociedades de classes coma no conjunto das culturas. 0 rnesrno nao é verdadeiro para a lîngua. Mesmo em pequenas

141

66. RecapituJando a oferecida em CCHM, vol. t pp. 190-196. 67. Frederik Barth, Elhnie Groups and Bergen. Urliversitats-fur Pager. 1969.

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Ida, ver IbémJ.M.

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des tribais, a lingua naa é, geralmente, percebida coma uro indice significativo de 1 identidade e exclusao. Grupos vizinhos freqüentemente falam a mesma Hngua, ou uma

1 1 variante de]a. As classes domin:mtes fi.1S sociedade.s de classes foram muitas vezes

poliglotas, sendo isto uma expressao do amalgama cultural produzido pela conquista e 1 pela assiIIÙlaçâo parcialtlij A lingua da CQl1e imperial otomana no século XVI, por •

1 exempla, compreendia uro grande nûmero de palavras e frases misras arabes, persas, e l' tureas, e a maioria dos cortesaos podia falar estas e outras lînguas69.1

No feudalismo medieval, como em muitas das sociedades de classes. corn exce-

f· çao dos impérios centralizados burocrâticos, as cortes eram normalmente pcripatéticas. o Sagrado Império Romano nao tinha uma capital fixa; a administraçâo dominante mudava-se regulannente entre varias cidades. A ausência de uIIla capital nos Estados

t tradicionais europeus tanto contribuiu como expressou 0 baixo grau de integraçâo ter-ritorial. Isso ajudou a fortalecer a comunhao de perspectiva e identidatle entre as classes

1 [ dominantes mas, par isto mesmo, inibiu uma extensao dela.s para 0 resto da populaçao.

Aqueles Estados que. relativamente ceda, instalaram capitais fixas, tenderam a sc asso-f ciar às formas mais dis tintas nascentes de sentimento nacionalista, indicando assim que

os meios de propagaçào de sîmbolos de um centra de cultura nacional foram provavel-

mente tao importantes no in.îcio do que qualquer outra identidade mais "espontânea" forjada nos escalôes mais baixos da sociedade. Os dois exemplos bâsicos, a França e a Inglaterra, foram "Estados contînuos" por centenas de anos. Issa quer dizer que eles nao foram conquistados ou sujeitos a um dominio alhelo sobre suas regi6es r..:entrais. Par causa de suas reivindicaçôes mutuas de suas dinastias, 0 seu desenvolvirnento terri- torial e cultural esteve intimamente ligado. Antes do século XllI, ao se ceferir a eias, faria mais sentido falar da existência de dois teinos franceses, um localizado na Europa , continental e 0 outro fora de sua costa, j.i que ambos eram governados par monarcas de lingua francesa, cujo séquito e altos funcionârios também falavam francês. I\a Escôcia, nesse periodo, eram faladas quarra nnguas - franc.ês entre a classe dominante, anglo-saxao em direçào ao sudeste, gâlico nas montanhas (Highlands) e nas ilhas ocidentais, e 0 cel ta nas âreas marginais em direçâo ao sudoeste70

. No entauto, par volta do século XV, houve certa agitaçâo de cunha nacionalisra, estimulado pela experiência de lutas constantes corn os ingleses. Esses sentimentos tiveram suas origens, coma Barrow ob-serva.. nao na comunidade étnica ou lingüfstica, mas na mobilizaçâo do Estado de dife-rentes classes e camadas pela luta contra um inimigo comurn71 •

68. John A. Armstrong, Nations Before Natiollalism. Chapet Hill, University of North Caroline Press, 1982, p. 5. 69. A. D. Alderson, The SirI/cUire of the Ottoman Dynasfy. Oxford, Clarendon Press, 1956. 70. Hugh Seron-Watson, Natiolls and States. London, 1982, pp. 26 e 5S.

71. G. W. S. Barrow, FeudaI Srlrain, London. Amold, 1956, pp. 410 C' 55.

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o ESTADOABSOLUT/STA E 0 ESTADO-NAÇÂO

É clara que esses "nacionalisrnos periféricos" persistem até os nassos dias na Eu-ropa, e a dinâmica de seu desenvolvimento é, em alguns aspectos, diferente daqueles de Estados maiores. Nestes ultimos, a administraçào est.ave} a partir de capitais estabele-cidas no inicio parecem ter sida cmciais. 0 "inglês" data de meados do século XIV, e expandiu-se consideravelmente a partir de costumes estabelecidos em Londres i1 . Par volta do século XVI padern ser prontamente traçados uns pOlicas componentes crociais do "ser inglês", associado aD "falar inglês". Descrevê-lo como "Nacionalismo" é alta-mente duvidoso; 0 nacionalismo que surge nos séculos XIX e XX é "britânico", mais do que "inglês", ainda que atribulado pelos sentimentos nacionalistas, tantoescoceses quanto gauleses. A França expandiu-se de maneira relativamente estâvel pelos séculos desde a Île de France, e certamente nao é acidental que 0 Estado absolutista mais poderoso e centralizado seja também aquele onde a linhagem do nacionalismo modemo pode mais facilmente ser discemida. 0 que nos séculos XVI e XVII veio a se tomar a "França" foi, no entanto, moldadp a partir de uma coleçào de provîncias que eram, no inîcio, dis tintas tanto cultural como lingüisticamente. A batalha de Muret, na primeira parte do século XIII. foi um daqueles eventos que, triviais 0 suficiente em si mesmos, foram pienos de conseqüências. Levou os monarcas do nordeste ao dominio sobre Languedoc, 0 quaI de outra forma teria possivelmente se tomado um Estado poderoso baseado ao longo da costa central do Mediterrâneo e do delta do Ren073 • A expansao do francês foi, em parte, o resultado de uma polîtica estatal deliberada - tomou-se a ûnica lîngua oficial por um édito de 1539. A Académie Française, fundada por Richelieu, tomou-se uma influência importante tanto na forma como na difusao bem-sucedida da lîngua francesa por todo 0

territ6rio do Estado. Entretanto, muitos hisroriadores concordam que os sentimentos nacionalistas no século XVII e no começo do XVIII na França eram tao mdimentares quanto regionalmente especificos. Muitos dos "franceses" pensavam em si mesmos coma pertencendo ou a uma provîncia ou a uma das cidades.

É comum, todavia, retratar 0 naclonalismo em "Estados continuos" coma emer-gindo de uma inevitâvel das doutrinas de soberania que eles adotaram; na verdade hâ pouca associaçâo intrfnseca entre eles. Dm vfnculo foi forjado apenas posteriormen-te; Bodin e seus seguidores nao eram "nacionalistas". A Revoluçao Francesa, inegavel-mente, teve uma influência no posterior florescimento do naciollalismo, no sentido de uma "nation une et indivisible". Mas foi principalmente nos Estados nao unificados e nos principados da Europa central e do norte que as concepç6es modernas de naciona-lismo tiveram suas origens - no Romantismo, mais do que no racionalismo constitucio-

72. Albert C. Baugh, A His/ory of rhe English LangLlage, London, Routledge & Kegan Paul, 1951. 73. Seton Watson, Narions and Srales, pp. 44-45.

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naF4. a nacionaHsmo é essencialmente um fenômeno do final do século XVIII cm dian-te. A questao de coma e porque se deu dessa maneira é 0 que vou retamar mais tarde.

Uma "Naçào", como utilizo 0 termo agui, existe somente quando um Estado tem um alcance administrativo unificado sobre 0 tenit6rio no quaI sua soberania é procla-macla. 0 desenvolvimento de uma pluralidade de naç5es é bâsico à centralizaçào e il expansâo adminjstrativa da dominaçao interna do Estado, ja que a definiçào de fmntei-ras depende sobretudo de uma organizaçao reflexiva do sisteroa de Estado. Podemos acompanhar Jones aD reconhecer quatre aspectas da transformaçao dos limites em fronteiras75. A i550 ele charna de alocaçao, delimitaçao, demarcaçao e administraçào.

A primeira refere-se a uma decisao politica colaborativa tomada entre os Estados sobre a distribuiçao de terrüôrio entre eles. A delimitaçao refere-se à identificaçâo de uma localizaçào especffica da fronteira76• A demarcaçao no esquema de Jones - escrito camo urn guia para administradores publicos e nao somente um estudo acadêmico -refere-se a coma as f[onterras sao realmente traçadas em um ambiente fîsico, Muitas fronterras, mesmo no centra da Europa, hoje, nao sac demarcadas. 0 aparente

lente modemo dos muras construidos pelos Estados tradiclOnais, a mura de Berlim, é uma anomalia, porque simboliza a falência de um Estado moderno em executar um nive! de controle administrativo sobre sua populaçao que as autoridades governantes julgam pr6prtas e necessârias. A fronteira entre a Alemanha Oriental e Ocidental deve ser uma das mais altamente "administradas" do mundo, nos fermos de Jones. Issa quer dizer que um alto grau de vigilância é mantido ao longo dela. Os Estados tradicionais, às vezes, constroem postas nas fronteiras, demandando pagamento, e ocasionalmente documentaçâo, para aqueles que a atravessam. Mas onde eles existiam, estavam, na realidade, normalmente na divisao entre provîncias mais do que entre Estados coma tais. A combinaçao de uma vigilâhcia direta e indireta (funcionârios da aduana e guar-das de fronteira, mais a coordenaçao central de inforrnaçao de passaportes) é um dos aspectos distintos do Estado-naçao.

o é, portanto, um compartimento de poder delimitado - como de-vo argumentar, é 0 poder compartimentalizado proeminente da era modema. Camo is- ' la veio a acontecer, serâ uma das principais tarefas dos capîtulos seguintes explicâ-lo. Mas entre outras coisas, envolve 0 processo de transformaçao urbana e de paciftcaçao interna dos Estados. Esses sao fenômenos que acompanham a criaçao de um "desvio" generalizado como uma categoria e corn os processos de conftsco. Todos os Estados

74. E. Kedourie, Notionahsm, London, Hutcrunson, 1961. 75. Cf. S. B. Jones, Boundary Making: a Hemdbook for Sralesmen, Wushington. Carnegie Endowment for

International Peace Monograph, 1945. 76. Preseou, op. cir., p. 65 .

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tradicionais reivindicaram 0 monopôlio formalizado sobre os meios de violência den-tra de seus territôrios. Mas é somente corn os Estados-naçao que essa reivindicaçao toma-se caracteristicamente mais ou menos bem-sucedida. 0 progressa de pacifica-çâo interna esta intimamente ligado a tal sucesso - eles SaD, nessas circunstâncias, partes diferentes de um tnesmo processo.

Talvez surja a objeçao de que hâ muitas instâncias, mesrno em tempos atuais, de Estados cujo monop6lio dos meios de violência é cromcamente ameaçado em nlvel inter· no por grupos armados; esses movimentos insurgentes, freqüentemente armados e organi-zados, pobremente comparados às autoridades estatais, muitas vezes desafiaram e derro-taram essas autoridades; e que ha niveis difusos de violência em contextos menores, mesmo em sociedades politicamente mais tranqüilas (climes de violência, violência do-méstica e assim por diante), Nenhum deles, entretanto, compromete 0 ponta cm ques-tao, que se refere a uma comparaçao entre Estados-naçao e Estados tradicionais. Ha cirw

cunstâncias nas quais uma guerra civil, envolvendo confrontaç6es crânicas entre armados ou coaliz6es de forças mais ou menos equilibradas, têm sido bastan-

te prolongadas. No entanto, nao somente rais circunstâncias sac altameme incomuns, a prôpria existência de uma "guerra civil" pressup6e uma norma de um Estado autoritârio monopolista. Em contraste. as condiç6es que em um Estado moderne seriam definidas coma exemplos de "guerra civil", ou seja, lutas armadas "internamente" divis6rias. têm sido tipicas de todas as sociedades de classes durante longos periodos. Novamente, gru-pos ou movimentos armadas hoje sao qnase sempre orientados a assumir 0 poder de Es-tado, tanto para tomar um territôrio estatal ja existente, quanta para dividir um territôrio e estabelecer um Estado separado. Tais organizaç6es nao podern e nao "decidem" par urn envolvimento no poder de Estado como freqüentemen-te OCOlTe nos Estados tradicio-nais, Finalmente, naodesejo diminuir a importância on a extensao da violência que ocupa contextos em menor e'scala nas sociedades modernas. Mas estou preocupado. principal-mente, corn os meios de violência associados às ativida-des de forças armadas organiza-das, nao corn a violência como mais uma categoria que acoberta danos fîsicos aos outras.

Associando às implîcaç6es de observaç6es prévias, nos podemos chegar ao seguin-te conceito de Estado-naçâo, que contém todas as variantes e nao esta intrinsecamente ligado a nenhuma caracterizaçâo particular de nacionaIismo. É a mesma definiçao da-da no volume a que este livra sucede. "0 Estado-naçao, que existe em um complexo de outras Estados-naçâo, é uro conjunto de formas institucionais de governo, mantendo um monopolio administrativo sobre um territ6rio corn franteiras (limites) demarcados, seu dorninio sendo sancionado por lei e por um controle direto dos rneios internos e externos de violência"71.

71. CCHM, vol. l, p, [90.

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