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O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS Landolfo Andrade de Souza Sumário: Introdução – 1. Proteção jurídica do meio ambiente - 2. Políticas públicas ambientais - 3. Papel do Ministério Público na temática ambiental; 3.1. Base normativa; 3.2. Necessidade de aprimoramento da atuação institucional – 4. Instrumentos extrajudiciais para a atuação do Ministério Público na implementação de políticas públicas – 5. Necessidade do Controle Jurisdicional; 5.1. Fundamento constitucional; 5.2. A adequação da ação civil pública; 5.3. Alcance do Controle Jurisdicional: mínimo existencial e reserva do possível; 5.4. Os critérios da razoabilidade e proporcionalidade – 6. Considerações finais - Bibliografia Introdução Objetiva este artigo enfocar o papel do Ministério Público na implementação das políticas públicas ambientais. Inicialmente, será examinado o marco normativo relativamente à proteção do meio ambiente no Brasil, com destaque para a constitucionalização da proteção ambiental na Constituição de 1988. Em um segundo momento, será desenvolvida a análise do tema “políticas públicas ambientais”, avaliando-se a obrigação do Estado brasileiro de realizar os objetivos fundamentais previstos no artigo 3º da Constituição

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O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS

Landolfo Andrade de Souza

Sumário: Introdução – 1. Proteção jurídica do meio ambiente - 2. Políticas públicas ambientais - 3. Papel do Ministério Público na temática ambiental; 3.1. Base normativa; 3.2. Necessidade de aprimoramento da atuação institucional – 4. Instrumentos extrajudiciais para a atuação do Ministério Público na implementação de políticas públicas – 5. Necessidade do Controle Jurisdicional; 5.1. Fundamento constitucional; 5.2. A adequação da ação civil pública; 5.3. Alcance do Controle Jurisdicional: mínimo existencial e reserva do possível; 5.4. Os critérios da razoabilidade e proporcionalidade – 6. Considerações finais - Bibliografia

Introdução

Objetiva este artigo enfocar o papel do Ministério Público na implementação das políticas públicas ambientais.

Inicialmente, será examinado o marco normativo relativamente à proteção do meio ambiente no Brasil, com destaque para a constitucionalização da proteção ambiental na Constituição de 1988.

Em um segundo momento, será desenvolvida a análise do tema “políticas públicas ambientais”, avaliando-se a obrigação do Estado brasileiro de realizar os objetivos fundamentais previstos no artigo 3º da Constituição Federal1, aos quais se acresce o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, da CF), sobretudo no que diz respeito à concretização dos direitos fundamentais que dependam de ações para sua promoção, caso do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Finalmente, será lançado o desafio para uma participação mais efetiva do Ministério Público na implementação de políticas públicas ambientais no Brasil, quer seja administrativamente (preferencialmente), quer seja judicialmente, o que representará, na prática, um sensível avanço na proteção e promoção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

1. Proteção jurídica do meio ambiente

1Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;  III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

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O meio ambiente, direta ou indiretamente, vem sendo tutelado no Brasil desde as Ordenações Afonsinas, com uma intensa produção legislativa nesta área na década de sessenta2.

No ano de 1981, entrou em vigor a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente3, importante marco na história da proteção ambiental brasileira, a partir do qual o meio ambiente passa a ser protegido de maneira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado (resguardam-se as partes a partir do todo), com autonomia valorativa (é, em si mesmo, bem jurídico) e com garantias de implementação (facilitação do acesso à Justiça). Antes disso, a tutela era dispersa (assegurava-se o todo a partir das partes).

Afastando-se da metodologia de seus antecessores legislativos, a Lei n. 6.938/81 não só estabeleceu os princípios, objetivos e instrumentos da Política nacional do Meio Ambiente, como ainda incorporou, de vez, no ordenamento jurídico brasileiro o Estudo de Impacto Ambiental, instituindo, ademais, um regime de responsabilidade civil objetiva para o dano ambiental, sem falar que lhe coube conferir ao Ministério Público, pela primeira vez, legitimação para agir nessa matéria.

Com idêntica filiação holística, é aprovada, em 1988, a Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente (Lei 9.605/98), concluindo o círculo da regulação legal (que agora é administrativa, civil e penal).

Somente na década de 70 é que os sistemas constitucionais começaram a reconhecer o ambiente como valor a merecer tutela especial. Foi assim com as novas constituições dos países que saiam de um regime ditatorial, como, numa primeira leva, Grécia, Portugal e Espanha, e posteriormente, numa segunda onda, Brasil.

Ainda hoje, importantes sistemas jurídicos, aí se incluindo os Estados Unidos, protegem o meio ambiente sem contar com apoio expresso ou direto na Constituição.

A despeito disso, razões várias (como a equiparação com os demais direitos fundamentais e o reforço da obrigação jurídica de os poderes públicos respeitarem o meio ambiente) recomendam a constitucionalização do ambiente, podendo ser essa considerada uma tendência mundial, o que certamente foi percebido ao constituinte brasileiro de 1988.

A análise do constitucionalismo brasileiro indica que foi somente no texto de 1988 que se estabeleceu, de maneira específica e geral, a proteção ao meio ambiente. De fato, se, por um lado, normas de viés ambiental não são novidades em nossas constituições, por outro, nenhum outro texto constitucional havia antes demonstrado de forma tão clara a importância da defesa do meio ambiente para nossa sociedade.

2 Entre tais documentos legais, pode-se citar o Código Florestal de 1965, os Códigos de Caça, Pesca e Mineração, surgidos em 1967, mesmo ano da Lei 5.318 (Política Nacional de Saneamento). 3 Lei n. 6.938/81.

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A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a trazer todo um capítulo dedicado ao meio ambiente, complementado por outros dispositivos esparsos que, de forma direta ou indireta, cuidam também da matéria.

A norma básica, de caráter fundamental, está posta no caput do art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Esse direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem como titulares, diz a norma, todos, vocábulo que, por não estar, de forma clara, qualificado homocentricamente, pode referir-se tanto a todos os seres humanos como, numa perspectiva mais biocêntrica (e moderna), a todos os seres vivos.

Da norma constitucional retira-se que são destinatários dos deveres associados a esse direito tanto o Poder Público, o Estado, como ainda a coletividade, ou seja, cada um dos seres humanos, individual e socialmente considerados.

Preocupada em assegurar a efetividade desse direito, ao mesmo tempo em que impôs a todos sanções e a obrigação de reparar os danos causados4, a Constituição cominou deveres específicos ao Poder Público: a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; b) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;  c) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; d) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; e) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; f) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; g) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.5

No plano constitucional, o dever do Poder Público de proteger o meio ambiente também é extraído das normas que definem as competências administrativas e legislativas das entidades políticas.

A Constituição não deixa dúvida ao dispor que podem legislar, em matéria de proteção do meio ambiente, a União, os Estados e o Distrito Federal. Esses entes políticos têm competência legislativa concorrente sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação

4 CF, art. 225, § 2º.5 CF, art, 225, § 1º.

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da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”6, bem como sobre “responsabilidade por dano ao meio ambiente”7.

Os municípios, a seu turno, receberam autorização constitucional para “legislar sobre assuntos de interesse local”8 e “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”9. Em outras palavras, detêm o poder de legislar em matéria ambiental, desde que se trate de matéria de caráter local ou, então, para complementar as normas jurídicas promulgadas pela União e estados.

No que tange à competência administrativa (competência de implementação), território do poder de polícia, a Constituição atribuiu, de forma comum, à União, Estados, Distrito Federal e Municípios o poder-dever de “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” 10 e preservar as florestas,a fauna e a flora”11.

Após a constitucionalização do Direito Ambiental e do reconhecimento do meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental12, de terceira dimensão, transindividual, busca-se agora a realização da tarefa mais árdua, consistente na concretização das normas protetivas do meio ambiente.

2. Políticas públicas ambientais

No tópico anterior apresentou-se uma rápida visão da constitucionalização da proteção ambiental e dos deveres instituídos ao Poder Público para a efetivação dessa proteção.

O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral.

Compete, pois, ao Poder Público, concretizar os comandos gerais contidos na ordem jurídica e, para isso, cabe-lhe implementar ações, programas e políticas dos mais diferentes tipos. No ponto, escreve Eros Grau: “(...) assim, o government by policies substitui o government by law”.13

6 CF, art. 24, inciso VI.7 CF, art. 24, inciso VIII.8 CF, art. 30, inciso I.9 CF, art. 30, inciso II.10 CF, art. 23, inciso VI. 11 CF, art. 23, inciso VII.12 Nesse sentido, o reconhecimento do STF, no julgamento da ADI/MC 3.540, em 01.09.2005, Rel. Min. Celso de Mello.13 Graus, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo: RT, 1990, p. 17.

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Essas políticas, denominadas políticas públicas, são conceituadas por Oswaldo Canela Junior como “o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas”.14

Na visão dos autores franceses Y. Mény e J. C. Thoenig, “uma política pública se apresenta sob a forma de um programa de ação governamental num setor da sociedade ou num espaço geográfico”.15

É justamente por meio das políticas públicas que o Estado poderá, de forma sistemática e abrangente, realizar os objetivos fundamentais previstos no artigo 3º da Constituição Federal16, aos quais se acresce o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, da CF), sobretudo no que diz respeito à concretização dos direitos fundamentais que dependam de ações para sua promoção, caso do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Impende asseverar que a implementação das políticas públicas ambientais deve se dar da forma mais ampla possível, uma vez que a ela estão constitucionalmente vinculados todos os órgãos do Estado, inclusive o Judiciário. De fato, considerando que toda atividade política exercida pelos Poderes Executivo e Legislativo deve se compatibilizar com a Constituição, caberá ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, se os atos de governo guardam conformidade com os comandos constitucionais de gestão ambiental.

Desse teor o magistério de Clarissa Ferreira Macedo D’Isep:

“(...) É do Poder executivo que se extrairá a ideia de políticas públicas ambientais como toda iniciativa pública organizada, dotada de planos, metas e instrumentos próprios para gerir o meio ambiente (...) do Poder Legislativo advém a instrumentalidade normativa, pois é do poder normativo que se extrai o caráter impositivo das leis e dos princípios, efeitos da constitucionalização da matéria ambiental que conduz à jurisdicionalização das políticas públicas ambientais, o que resulta no dirigismo ambiental legal-normativo. Ao Poder Judiciário coube o poder-dever de controle, o que pode ser dar tanto no âmbito preventivo como no repressivo. É o que denominamos dirigismo ambiental judicial.”17

Tem-se, assim, uma dupla face de concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: via formulação e implementação (legislativa e administrativa) de políticas públicas e via judicial.

14 Canela Junior, Oswaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 88-89.15 Y. Mény e J. C. Thoenig, Politiques publiques, Paris: PUF, 1989. 16Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;  III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 17 D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. NERY JÚNIOR, Nelson e MEDAUAR, Odete. Políticas Públicas Ambientais: estudos em homenagem ao Professor Michel Prieur. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 163.

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A seguir, serão examinados a base normativa, os desafios institucionais e os principais instrumentos (extrajudiciais e judiciais) para a atuação do Ministério Público na implementação das políticas públicas ambientais.

3. Papel do Ministério Público na temática ambiental

3.1. Base normativa

O Ministério Público brasileiro desempenha um papel central na proteção do meio ambiente, diferentemente de seus similares europeus18, atuando em todas as formas de implementação: na preventiva e administrativa – ao instaurar inquérito civil preventivo, expedir recomendações ou firmar termos de ajustamento de conduta -, na judicial, reparatória ou repressiva – ao propor ação civil pública ou ação penal.

Pelo menos em tese, o Ministério público já exercia, já de muito tempo, a persecutio criminis em matéria de criminalidade ambiental, seja no Código Penal ou na Lei das Contravenções Penais.

No início da década de 1980, quando a doutrina nacional reverberava os avanços científicos internacionais relacionados aos direitos difusos e coletivos, coube à Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981) ampliar os horizontes implementadores da instituição, legitimando o Ministério Público a ajuizar ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente, ou seja, a defender, num único processo, direito que diz respeito a toda a coletividade19. Foi o surgimento da ação civil pública.

É verdade que algumas poucas ações civis públicas de caráter ambiental foram ajuizadas pelo Ministério Público, com base nessa legislação. Como bem observa Hugo Mazzilli, “foi somente depois, com o advento da Lei 7.347/85, que o Ministério Público começou efetivamente a trabalhar de forma mais intensa na área ambiental”20.

Essa mudança na forma de atuação do Ministério Público tem uma explicação muito simples: a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 24 de julho de 1985), para além de lhe conferir legitimidade para o ajuizamento de ações civis públicas em matéria ambiental, confiou-lhe um poderoso instrumento investigatório de natureza inquisitiva, a saber, o inquérito civil21.

18 Impende destacar que os Ministérios Públicos da Europa, embora tardiamente, começam a despertar para a questão ambiental. A título de exemplo, vale citar o esforço que vem sendo feito pelo Ministério Púnlico português, estimulado, no plano da formação, pelo CEJ – Centro de Estudos Judiciários.19 Lei 6.938/91. Art. 14, § 1º. (...) “O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao meio ambiente”. 20 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 145.

21 Art. 8º, § 1º.

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A Constituição de 1988, além de dar sede constitucional à legitimatio ministerial, a ampliou, fazendo-a valer igualmente para outros interesses transindividuais. Nos termos do art. 129, III, da CF/88, entre as funções do Ministério Público está “promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

Finalmente, a Lei 8.078/990 (Código de Defesa do Consumidor), no plano processual, estendeu a outros interesses difusos e coletivos (aí se incluindo a matéria ambiental) o regramento conferido aos interesses ou direitos dos consumidores; além disso, alargou o campo de aplicação da class action brasileira ou, na sua nomenclatura, “ação coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos”22, permitindo sua utilização também para a proteção do meio ambiente, e introduziu mais um instrumento de proteção dos direitos transindividuais: o compromisso de ajustamento de conduta.

Embora a atuação do Ministério Público na proteção ambiental seja relativamente recente, é inegável o muito que já se fez, merecendo o modelo brasileiro o respeito interno e aplausos internacionais. Em interessante estudo, Sylvia Cappelli informa que o Ministério Público é responsável pelo ajuizamento de mais de 90% das ações civis públicas na defesa do meio ambiente23.

Mas é preciso avançar, principalmente na formulação e implementação das políticas públicas ambientais, campo em que a atuação ministerial pode ser decisiva para a concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

3.2. Necessidade de aprimoramento da atuação institucional

Não é objetivo deste trabalho lançar um olhar mais aprofundado sobre as alternativas para o aperfeiçoamento da atuação do Ministério Público na defesa do meio ambiente, mas sim participar e contribuir para o debate jurídico nessa temática tão cara para a coletividade, verdadeira destinatária da atuação ministerial.

Conforme visto, para o Estado atingir seus objetivos constitucionais, entre os quais a proteção ambiental, faz-se necessária a realização de metas, ou programas, que implicam o estabelecimento de funções específicas aos Poderes Públicos: o que se convencionou denominar “políticas públicas ambientais”.

Quanto ao Ministério Público, somente influenciará positivamente na formulação e implementação dessas políticas se otimizar sua forma de atuação, mediante a identificação dos principais problemas, definição de metas, estratégias e sistemas de gerenciamento em matéria de implementação ambiental.

22 Arts. 91 a 100.23 Ação civil pública ambiental: a experiência brasileira, análise da jurisprudência. Revista de Direito Ambiental, ano 9, n. 33, São Paulo: RT, jan,-mar.2004, p. 175.

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Para realizar tal missão, algumas questões precisam ser enfrentadas, todas de interesse imediato à realização daquilo que Antônio Herman V. Benjamin denominou “Projeto de Implementação Ambiental do Ministério Público”24:

a) a questão da vontade política: trata-se de algo diferente da vontade determinada pela lei. Algo exógeno e não endógeno; algo ainda artificial e visto com curiosidade, na melhor das espécies, e com animosidade ou desconficança, às vezes;

b) a questão da especialização: se é para seriamente proteger o meio ambiente, impende, em primeiro lugar, que os Promotores de Justiça e Procuradores da República com atribuições nessa matéria tenham um mínimo de especialização. Um Promotor de Justiça ou Procurador da República que acumula atribuições variadas e muitas vezes díspares, mesmo quando desafiado por graves problemas ambientais, não terá condições de dispensar-lhes a atenção merecida, seja no que se refere à preparação do caso, seja no decorrer do processo. A máxima popular alerta que “um homem de sete ofícios é um homem sem ofício”. Por outro lado, na proteção do ambiente – lógica essa aplicável também a outros interesses supraindividuais, como consumidor, improbidade administrativa etc. – a eficiência recomenda que tais atribuições sejam delimitadas não pelo enfoque da atividade implementadora em si considerada (civil ou criminal), mas pelo bem ou sujeito protegido (meio ambiente, consumidor, patrimônio Público etc.);25

c) a questão da independência: a proteção do meio ambiente, pelos interesses econômicos e políticos que movimenta, exige segurança funcional e esta, por sua vez, requer a previsão de cargo fixo para o titular do dever-poder de implementação;

d) a questão da formação: os Promotores de Justiça e Procuradores da república precisam ser submetidos a rigoroso e contínuo treinamento ( = formação ou educação dirigida), tanto em questões jurídicas ambientais, como também mas disciplinas que cuidam, sob os mais variados enfoques, do tema;

e) a questão das prioridades: violações há aos milhares, a cada minuto e a cada quilômetro, e os recursos do Ministério Público são finitos. Logo, prioridades e programas, por meio de um planejamento estratégico, precisam ser, inadiavelmente, traçados para que se consiga de cada centavo investido o máximo de eficiência;

f) a questão do aparelhamento: a problemática ambiental é muito complexa, demandando, de conseguinte, a concessão de recursos materiais e técnicos mínimos para

24 Manual Prático da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente. São Paulo: Imprensa Oficial do estado de São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo, 2005, p. 88-93.

25 Alguns Estados da Federação implementaram Promotorias Temáticas, em razão de determinado ecossistema ou unidade de conservação, alcançando a uma Promotoria atribuição para atuar na área correspondente ao bem protegido. Outros, ainda, criaram Promotorias Regionais, onde o Promotor especializado amplia sua atribuição para atender as cidades de determinada região que, por suas peculiaridades, indicam a necessidade de concentração da atribuição em uma Promotoria, trazendo maior efetividade em razão da especialização do órgão ministerial. Outra experiência interessante é a das Promotorias Volantes, que se deslocam para determinada região considerada prioritária, por determinada época do ano ou com algum ecossistema importante para atender a demanda específica. Normalmente são realizadas inspeções, audiências e compromissos de ajustamento, num esforço de atuação periódico e determinado no tempo. Por fim, os núcleos de atuação regionalizada, instituídos a partir das Bacias Hidrográficas (caso do GAEMA no Estado de São Paulo).

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que o Promotor de Justiça e o Procurador da República possam identificar, analisar e entender as situações com que se defronta. Elementar a esse aparelhamento é a constituição de um corpo pericial básico, suficiente para dar os primeiros elementos de convicção ao Ministério Público, inclusive facilitando a identificação de outros especialistas disponíveis nos mais variados órgãos e instituições, uma vez delimitado o problema ambiental em questão; e

g) a questão do acompanhamento e dos indicadores de implementação: o órgão de execução do Ministério, em face das características peculiares da problemática ambiental, necessita continuamente de um quadro atualizado e geral de seu objeto de trabalho e dos resultados concretos de sua atuação.

Penso que todas as questões levantadas pelo eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antonio Herman Benjamin, constituem um necessário ponto de partida para uma atuação mais eficaz do Ministério Público na implementação das políticas públicas.

Diz-se ponto de partida porque o Ministério Público, antes de se tornar um importante agente nesse cenário, precisa aperfeiçoar e implementar a sua própria política de atuação, cuja legitimidade será proporcional ao grau de participação dos membros da instituição, da sociedade organizada e da comunidade científica na discussão e elaboração desse plano de ação.

Por certo que a implementação de um plano de atuação ministerial na implementação das políticas públicas dependerá de um aperfeiçoamento da própria administração institucional, com maior enfoque no planejamento e no controle dos resultados. Aquilo que se convencionou denominar modelo gerencial de administração pública, no qual o administrador deve deixar de lado a obsessão pelo seguimento de normativas formais e migrar a atenção na direção da sua verdadeira missão, é dizer, deve substituir o foco no controle de inputs para o controle de outputs e impactos de suas ações, e para isso adotar a administração por objetivos26.

Bem cuidadas essas questões, será perfeitamente possível construir um diagnóstico preciso dos principais problemas a serem enfrentados na temática ambiental, a partir do qual serão definidas as prioridades da atuação institucional, bem como o planejamento estratégico, sem prejuízo de um monitoramento constante dos resultados concretos dessa atuação27.

26 OSBORNE, David; GAEBLER, Ted. Reinventing government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector. Reading, MA: Addison-Wesley, 1992. Originalmente, as ideias do modelo gerencial se desenvolveram com maior intensidade nos Estados Unidos, quando a abordagem de Osborne e Gaebler foi utilizada no programa de governo do partido democrático nas eleições presidenciais de 1992, e posteriormente usada como base para o Government performance results act de 1993 e o programa nacional de desempenho da administração pública (national performance review) durante a administração Clinton-Gore.27 Uma experiência positiva nesse sentido foi a criação do “Núcleo de Políticas Públicas” no Ministério Público do Estado de São Paulo, que tem por objetivo definir um plano de ação focado justamente na atuação ministerial na implementação de políticas públicas.

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Nesse cenário, o Ministério Público terá plenas condições de influenciar positivamente na formulação e implementação das políticas públicas ambientais, quer seja administrativamente (preferencialmente), quer seja judicialmente (quando inevitável), o que representará, na prática, um grande salto de qualidade no desempenho institucional nessa temática.

4. Instrumentos extrajudiciais para a atuação do Ministério Público na implementação de políticas públicas

O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127, caput).

Para o fiel desempenho de sua missão constitucional, não basta ao Ministério Público agir para corrigir atos comissivos da Administração que porventura desrespeitem os direitos constitucionais do cidadão; é igualmente necessário agir para corrigir os atos omissivos, ou seja, para a implantação efetiva de políticas publicadas visando a efetividade da ordem social prevista na Constituição Federal de 1988.

Nesse sentir, o Ministério Público conta com importantes instrumentos extrajudiciais e judiciais, que podem e devem ser empregados para o controle da omissão administrativa na implementação de políticas públicas ambientais.

A experiência mostra que a solução extrajudicial dos problemas ambientais, notadamente em matéria de implementação de políticas públicas, tem se revelado mais eficaz que a via judicial. 

De fato, além dos já conhecidos problemas do Poder Judiciário - morosidade no julgamento das demandas, falta de sensibilidade no enfrentamento da temática ambiental, incipicente especialização e inconvenientes na produção da prova pericial - outros fatores explicam a vantagem de se buscar uma solução extrajudicial para a omissão estatal, relegando a judicialização das questões ambientais a segundo plano (na hipótese de insucesso extrajudicial).

Os instrumentos administrativos conferidos ao Ministério Público permitem que a instituição promova uma ampla negociação com a Administração e com os entes privados responsáveis pela implementação de políticas públicas. Esse espaço de negociação é importante por vários motivos:

(i) possibilita que se considerem todas as condicionantes que envolvem a questão posta (ex: técnicas, temporais, orçamentárias), o que aumenta a eficácia da implementação das decisões adotadas;

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(ii) permite que sejam acordadas mudanças em procedimentos da administração que não são necessariamente ilegais, mas se mostram ineficazes para a proteção ambiental;

(iii) a solução só é adotada, no mais das vezes, após várias reuniões com órgãos públicos, comunidade científica e sociedade organizada, propiciando a adoção de decisões consensuais e, por conseguinte, com maior legitimidade.

Exclusividade ministerial, o procedimento investigativo denominado Inquérito Civil permite ao Promotor de Justiça ou Procurador da República que o preside a formação de sua convicção sobre os fatos trazidos a seu conhecimento, apontados como violadores de interesses e direitos transindividuais.

Quando se pensa no objeto do inquérito civil, logo vem à mente a ideia de que ele visa a instruir a inicial da futura ação civil pública. Na verdade, essa é uma visão reducionista. Os fins do inquérito civil não se restringem ao aparelhamento de uma possível ação coletiva. Ele visa, na verdade, a fornecer ao Ministério Público subsídios para que possa formar seu convencimento sobre os fatos, e, sendo necessário, identificar e empregar os melhores meios, sejam eles judiciais ou extrajudiciais, para a defesa dos interesses metaindividuais em questão.

Muitas vezes, será mais vantajosa ao interesse metaindividual, em vez de partir-se para o confronto judicial, a via da composição amigável, por meio do compromisso de ajustamento de conduta. Seja como for, na maioria das vezes, ainda que o caso se resolva mediante esse compromisso, o melhor instrumento para prepará-lo será o inquérito civil, pois, por meio dele é que a instituição conseguirá identificar todas as medidas necessárias à reparação do dano ou ao afastamento do perigo, a serem incluídas como cláusulas do compromisso.

Quando se pensa em políticas públicas ambientais, o compromisso de ajustamento de conduta, sem dúvida, é um importante instrumento de atuação extrajudicial do Ministério Público. Revestindo-se de natureza de título executivo, na forma do parágrafo 6º do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), introduzido pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), constitui ferramenta eficiente para a tutela dos interesses e direitos metaindividuais.

No âmbito das políticas públicas, o Ministério Público poderá firmar compromissos de ajustamento com os entes responsáveis pelas ações materiais que garantam à coletividade a fruição dos direitos assegurados na Constituição de 1988. Om isso, fomenta a Instituição ministerial a definição de políticas locais para o trato da questão ambiental, obrigando o Poder Público, mediante compromisso de ajustamento de sua conduta, à adoção das providências necessárias e adequadas ao atingimento das finalidades do Estado Social de Direito.

No curso do inquérito civil, seu presidente pode reunir elementos de convicção para concluir ser conveniente, antes de outras medidas adicionais, o

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encaminhamento de uma recomendação ao investigado, exortando-o a, por exemplo, cessar a ameaça ou a atitude ofensiva ao interesse atacado.

O envio de recomendações a órgãos públicos e entidades prestadoras de serviços públicos é deferido aos Ministérios Públicos Estaduais na LONMP, e o emitente da recomendação deve requisitar ao seu destinatário a sua divulgação imediata e adequada, bem como lhe responder por escrito.28 Para o MPU, a previsão é mais ampla, aventando o art. 6.º, XX, da LOMPU a possibilidade de expedi-las visando não apenas à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, como também ao respeito aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, e a fixação de prazo razoável para a adoção das providências cabíveis.

Pode o Ministério Público, pois, estimular a implementaçao de políticas públicas ambientais também através do importante instrumento da recomendação, de notável caráter moral e político, além de eficácia comprovada no plano fático29. No ponto, escreve Luiza Cristina Fonseca Frischeisen30:

“(...) será mais eficiente, na exata proporção que o Administrador entenda o Ministério Público como um agente que também tem como atribuição constitucional a construção de mecanismos eficazes para o efetivo exercício dos direitos da ordem social constitucional. Nesse sentido, o Ministério Público estará mais uma vez atuando como um canal de mediação de demandas coletivas existentes na sociedade, criando mais um canal de comunicação entre a comunidade e a Administração”.

Deve-se frisar, contudo, que a recomendação é um meio acessório de tutela dos interesses difusos e coletivos, não podendo ser utilizada como medida substitutiva ao compromisso de ajustamento de conduta ou à ação civil pública.31

A previsão tópica das situações em que se mostra cabível – e exigível – não afasta a possibilidade de realização de audiências públicas em hipóteses diversas das contempladas na legislação ambiental32. Como bem observa Ximena Cardozo Ferreira, as audiências públicas “podem ser convocadas pelo Ministério Público sempre que o problema enfrentado as torne convenientes para a conciliação dos interesses em conflito”33.

28 LONMP, art. 27, parágrafo único, IV.29 Como ocorreu no Estado de São Paulo com a formulação da política pública de pesca no reservatório da Usina Hidrelétrica Sérgio Motta, no rio Paraná, recomendando o Ministério Público ao Ibama que procedesse à alteração da Portaria nº 21/93, e tem ocorrido com a expedição de recomendações aos municípios do mesmo Estado para criação dos Conselhos e Fundos Municipais de Assistência Social.30 FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 140.

31 Res. CNMP 23/2007, art. 15, parágrafo único.32 Como nos casos de EIA/RIMA, na CTNBio e no procedimento do orçamento participativo, a título ilustrativo.

33 FERREIRA, XIMENA CARDOZO. A atuação do Ministério Público na implementação de Políticas Públicas da área ambiental. Extraído do site www.mp.rs.gov.br, data de acesso: 19/09/2012

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Na prática, as audiências públicas são verdadeiros instrumentos do exercício da democracia, induzindo à cidadania participativa que conduzirá o alcance das finalidades do interesse público, mediante a adoção de medidas com alto grau de legitimidade.

Assim, através dos instrumentos administrativos do Inquérito Civil, das Recomendações, do Compromisso de Ajustamento de Conduta, das Audiências Públicas, que surgem como alternativas à jurisdição, pode o Ministério Público atingir com maior eficiência seus objetivos constitucionais, inclusive no que diz respeito ao controle das políticas públicas ambientais.

5. Necessidade do Controle Jurisdicional

5.1. Fundamento constitucional

Conforme visto, a implementação de determinados fundamentais, muitas vezes, depende de que o Estado cumpra obrigações de fazer impostas a ele pela Constituição ou pelas leis, normalmente afetas à área de alguma política pública (de educação, de saúde, de saneamento básico, ambiental etc.).

A resistência do Poder Público em concretizar esses interesses leva, com frequência, ao ajuizamento de ações civis públicas, em que sobressai o conflito entre dois pilares do Estado Democrático de Direito: o princípio da independência dos Poderes e a garantia do acesso à Justiça.

Em tais ações, o autor, de seu lado, invoca a necessidade de obrigar a Administração a adimplir seus deveres constitucionais e legais, a fim de que o administrado não seja lesado nos correspondentes direitos à saúde, à educação, à segurança, ao meio ambiente equilibrado etc.

Quando o direito é expressamente previsto na Constituição ou na lei, não há que se falar em norma simplesmente programática, em simples diretriz para política pública. Onde há direito subjetivo do cidadão não há discricionariedade do Estado, de modo que a atuação do Judiciário para determinar sua implementação não é ingerência indevida no Executivo, mas sim uma garantia constitucional (CF, art. 5.º, XXXV).

Nesse sentido, o escólio de Oswaldo Canela Junior34:

“(...) Política estatal – ou políticas públicas - entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins

34 CANELA JUNIOR, Oswaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 88-89.

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primordiais do Estado. (...) Como toda atividade política (políticas públicas) exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de ‘atos de governo’ ou ‘questões políticas’, sob o prisma do atendimento do Estado (art. 3º da CF/1988).”

Esse controle não fere o princípio da separação dos Poderes, entendido como vedação de interferência recíproca no exercício das funções do Estado. Mas os Poderes, além de independentes, devem harmonizar-se para que os objetivos fundamentais do Estado sejam alcançados. Por isso, ainda segundo Oswaldo Canela Junior, “cabe ao Poder Judiciário investigar o fundamento de todos os atos estatais a partir dos objetivos fundamentais inseridos na Constituição (art. 3º da CF brasileira)”.

Noutro giro, anote-se que a conveniência e a oportunidade do ato administrativo encontram limites nos princípios da moralidade, da razoabilidade e da eficiência, aferíveis pelo Judiciário. Ante a omissão da atuação do Executivo na formulação e execução de políticas públicas, o Judiciário pode, excepcionalmente, determinar sua realização, mormente se for imposta pela própria Constituição.

Como já dissemos em outra oportunidade, “nas ações civis públicas em que se postula a condenação da Administração em obrigações de não fazer, esse embate é menos tenso”35, pois não se lida com os óbices da falta de previsão orçamentária e dos limites de gastos previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal. Esses entraves, porém, estão presentes quando se busca condenar a Administração a uma obrigação de fazer.

O fato é que, mesmo quando se busca impingir ao Poder Público o cumprimento de uma obrigação de fazer, os tribunais de superposição (STF e STJ), em diversas ações civis públicas, já reconheceram a possibilidade jurídica de pedidos visando a compelir a Administração: a) a suprir a carência de professores em unidades de ensino público (CF, arts. 205, 208, IV, e 211, § 2.º);36 b) a assegurar vagas em creches e pré-escolas da rede pública para crianças até determinada idade (CF, art. 208, IV, e ECA, arts. 54, IV, e 208, III);37 c) a prestar assistência médica (consultas e cirurgias) satisfatória e prioritária às crianças e aos adolescentes, com imposição de cronograma para conferir celeridade aos atendimentos (CF, art. 227, caput, ECA, arts. 7.º e 11);38 d) a restabelecer a regularidade do serviço de coleta de lixo, por se tratar de serviço público relevante, regido pelo princípio da continuidade, e por ser imprescindível à garantia dos direitos à saúde e ao meio ambiente hígido;39 e) a realizar obras de recuperação do solo, imprescindíveis ao meio ambiente;40 f) Municipal a regularizar, às expensas do 35 ANDRADE, Adriano. MASSON, Cleber. ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos esquematizado. Método, 2011, p. 92. 36 STF, RE 594.018 Agr, 2.ª Turma, rel. Min. Eros Grau, DJe 07.08.2009.37 STF: AI 664.053 AgR, 1.ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 03.03.2009, DJe 27.03.2009; RE 463.210 AgR/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Carlos Velloso, j. 06.12.2005, DJ 03.02.2005; STJ: REsp 511.645/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 18.08.2009, DJe 27.08.2009; REsp 510.598/SP, 2.ª Turma, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17.04.2007, DJe 13.02.2008. 38 STJ: REsp 577.836/SC, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 21.10.2004, DJ 28.02.2005.

39 STJ: REsp 575.998/MG, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 07.10.2004, DJ 16.11.2004. 40 STJ: REsp 429.570/GO, 2.ª Turma, rel. Eliana Calmon, j. 11.11.2003, DJ 22.03.2004.

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implantador, loteamentos clandestinos e irregulares, para respeito dos padrões urbanísticos e o bem-estar da população (art. 40 da Lei 6.766/1979).41

Nesse passo, incumbe ao Poder Judiciário brasileiro, como consequência da assunção de novas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição Federal de 1988, proceder ao controle das políticas públicas, com o exame de sua implementação, adequação ou correção, na conformidade dos mandamentos constitucionais.

Assim, constatada a omissão da Administração Pública em dar efetividade a normas constitucionais ou infraconstitucionais instituidoras de direitos sociais fundamentais – dentre os quais o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado –, sujeitar-se-á o ente estatal aos sistemas de controle previstos na ordem jurídica brasileira, notadamente o controle social exercido por intermédio do Ministério Público, e também do Poder Judiciário, nos casos em que o conflito for judicializado.

5.2. A adequação da ação civil pública

A ação civil pública é, ao lado da ação popular e do mandado de segurança coletivo, um dos mais úteis instrumentos de defesa de interesses metaindividuais.

O advento da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985) foi fruto de estudos e debates envolvendo professores e profissionais do direito que, a partir de meados da década de 1970, sob influência da doutrina italiana e das class actions dos países de sistema jurídico common law, notaram a necessidade de desenvolver ferramentas processuais mais adequadas para a solução dos conflitos de interesses transindividuais.

Não é demais observar, porém, que, antes mesmo do advento dessa lei, o Ministério Público já estava legitimado a ajuizar ações civis voltadas à reparação de danos ao meio ambiente, com base no art. 14, § 1.º, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – LPNMA (Lei 6.938/1981).

Concebida no ordenamento jurídico nacional por meio dos diplomas legais supracitados, foi alçada ao status de garantia constitucional fundamental pela Carta da República de 1988, prevista no inciso III do artigo 129.

Reveste-se a ação civil pública de grande relevância no controle da omissão administrativa na implementação de políticas públicas, porquanto a partir dela pode-se compelir o ente estatal a atuar de forma a dar concretude aos direitos sociais previstos na Constituição, em especial no que concerne à Ordem Socioambiental. 

Sobre a adequação da ação civil pública para a implementação de políticas públicas, confira-se o magistério de Hugo Nigro Mazzilli42:

41 STJ, REsp 448.216/SP, 1.ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 14.10.2003, DJ 17.11.2003.

42 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

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“(...) A ação civil pública ainda se presta para que o Ministério Público possa questionar políticas públicas, quando do zelo para que os Poderes Públicos e os serviços de relevância pública observem os direitos assegurados na Constituição. Com certeza não poderá o Ministério Público pedir ao Poder Judiciário administre no lugar do administrador; contudo, poderá cobrar em juízo a aplicação de princípios da Administração que possam estar sendo descurados, e, com isso, restaurar a legalidade”.

Em suma, dada a natureza difusa do meio ambiente, revela-se adequado o manejo da ação civil pública pelo Ministério Público, com vistas a afastar a omissão estatal na implementação de políticas públicas indispensáveis à proteção desse direito fundamental.

5.3. Alcance do Controle Jurisdicional: mínimo existencial e reserva do possível

A maior dificuldade do Judiciário, diante da existência de inúmeros direitos fundamentais consagrados na Constituição, está em saber se cabe, em relação a todos eles, o seu controle sob a ótica da constitucionalidade. Vale dizer, a grande questão hoje consiste em definir o alcance desse controle jurisdicional das políticas públicas.

Respeitados os entendimentos contrários, pensamos que todos os direitos fundamentais, inclusive o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, têm aplicabilidade imediata e, por consectário lógico, podem ser tutelados judicialmente, em caso de ausência ou inadequação das políticas públicas que comprometam sua efetiva implementação. Nessa linha de pensamento, sustenta Dirley de Cunha Junior43:

“(...) Todas as normas definidoras de direitos fundamentais, sem exceção, têm aplicabilidade imediata, independentemente de concretização legislativa, o que permite que o titular do direito desfrute da posição jurídica por ele consagrada. Na hipótese de eventual omissão estatal, impeditiva de gozo desses direitos, pode e deve o Judiciário, como Poder apto a proporcionar a realização concreta dos comandos constitucionais quando provocado por qualquer meio processual adequado, suprir aquela omissão, completando o preceito consignador de direitos diante do caso concreto”.

Admitimos, outrossim, que o princípio da dignidade da pessoa humana é um importante parâmetro para a definição do alcance do controle jurisdicional das políticas públicas. Referido princípio tem um conteúdo básico, sem o qual se poderá dizer que o indivíduo se encontra em situação de indignidade.

A esse conteúdo dá-se o nome de mínimo existencial, cuja inobservância autoriza o controle da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo pelo Poder Judiciário, sem que se possa invocar, em defesa, a cláusula da reserva do possível.

43 CUNHA JUNIOR, Dirley. Controle judicial das omissões do poder público. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 664.

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O mínimo existencial é considerado um direito às condições mínimas de existência humana digna, cuja implementação exige prestações positivas por parte do Estado: “(...) A dignidade humana e as condições materiais de existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados44”.

Costuma-se incluir no mínimo existencial, entre outros, o direito à educação fundamental, o direito à saúde básica, o saneamento básico, a assistência social, a tutela do meio ambiente e o acesso à justiça, entre outros.45

Assim, cumpre ao Poder Público assegurar, como tarefa prioritária, que a defesa do meio ambiente também seja exercida num nível de proteção que garanta, juntamente com os demais direitos sociais, um mínimo de existência ecológica.46

A inclusão da proteção ambiental naquilo que se convencionou denominar mínimo existencial está em consonância com a ideia de um constitucionalismo fraternal.

Com efeito, analisada a evolução histórica do constitucionalismo, vislumbra-se uma relação lógica entre constitucionalismo clássico- liberdade, constitucionalismo social – igualdade e, finalmente, constitucionalismo contemporâneo - fraternidade.

Essa compreensão não significa que o constitucionalismo contemporâneo visa suplantar a concretização dos valores liberdade e igualdade, mas expressa a necessidade de, sem eliminar as conquistas do Estado Liberal e Social, consubstanciar um Estado Fraternal. Sobre o tema, confira-se o brilhante ensinamento de Carlos Ayres Britto:47

“(...) Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chegando, nos dias presentes, à etapa fraternal da sua existência. Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do desenvolvimento, do meio

44 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de direito da Procuradoria Geral, Rio de janeiro, n. 42, p. 69/70, jul.-set5. 1990, p. 69/70).

45 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 318. Ainda: ROCHA JUNIOR, Paulo Sérgio Duarte da. Controle jurisdicional de políticas públicas. 2009. Dissertação (mestrado) – USP, São Paulo. Orientador Rodolfo de Camargo Mancuso, p. 21-24.

46 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito ao ambiente como direito subjetivo. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 182.

47 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 216.

10 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 8.

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ambiente ecologicamente equilibrado, da democracia e até certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer da interação humana uma verdadeira comunidade; isto é, uma comunhão de vida, pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm como escapar da mesma sorte ou destino histórico (grifou-se)”.

No constitucionalismo fraternal, o ser humano ocupa o centro do sistema jurídico e as atividades dos poderes estatais devem ter em vista a garantia de sua dignidade. É nesse contexto que se inserem as compreensões em torno do direito ao mínimo existencial, bem como a necessidade de realização da justiça social e distributiva, em que se lida com a distribuição de bens comuns para a coletividade.

Pensando-se o ser humano como centro do Ordenamento Jurídico, a garantia do mínimo existencial impõe a preservação do indivíduo, através de standards sociais mínimos. Luis Roberto Barroso aponta que, no âmbito da dignidade da pessoa humana, inclui-se a proteção do mínimo existencial, “locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute dos direitos em geral” Abaixo do patamar mínimo, ainda que haja sobrevivência, não há dignidade48.

Além disso, na conjuntura do constitucionalismo fraterno que marca o Estado Social Democrático de Direito, deve-se relativizar a compreensão individualista dos direitos fundamentais, relacionada à justiça comutativa, para incutir a dimensão da solidariedade. Dito de outra forma, a visão utilitarista dos direitos fundamentais deve ser afastada para alcançar a dimensão fraternal dos mesmos. Pensar em sentido diverso pode dificultar a realização da justiça social, que indica, entre outros aspectos, a necessidade de elaboração e de execução de políticas públicas voltadas à inclusão social e à concretização de direitos fundamentais.

No ponto, cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal, em duas decisões recentes, adotou expressamente a teoria do constitucionalismo fraternal. Uma delas foi na discussão sobre a demarcação da terra indígena Raposa do Sol (Petição 3.388, Relator Ministro Ayres Britto, DJ 19/03/2009); a outra, na discussão sobre a constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos (ADI 3510/DF, Relator Ministro Ayres Britto, DJ 29/05/2008).

Nessa ordem de ideias, é correto afirmar que o Ministério Público está autorizado a ajuizar ações civis públicas sempre que constatar a inexistência ou inadequação das políticas públicas ambientais. Nessas hipóteses, se o Poder Judiciário entender que a omissão estatal compromete o conteúdo básico desse direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não poderá ser invocada por parte do Estado a cláusula da reserva do possível, sob pena de afronta ao Estado Fraternal de Direito.

A jurisprudência do STF caminha precisamente no sentido da inadmissibilidade da invocação da cláusula da reserva do possível nos processos em que esteja em jogo o mínimo existencial (RE 482.611/SC, rel. Min. Celso de Mello).

48 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253.

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Na mesma direção evolui a jurisprudência do STJ, cosoante se extrai do acórdão do REsp 1.185.474/SC, relatado pelo eminente min. Humebrto Martins. Extrai-se da ementa desse julgado a seguinte afirmativa:

“(...) Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que a reserva do poss´[ivel não é oponível à realização do mínimo existencial”.

Nesse sentir, é correto afirmar que somente em relação aos direitos fundamentais que não integram o chamado “mínimo existencial” é que o Poder Público poderá alegar insuficiência de recursos e falta de previsão orçamentária para implementação de políticas públicas.

Contudo, como bem observado por Ada Pelegrini Grinover49, “não será suficiente a alegação de falta de recursos pelo Poder Público”. Esta deverá ser provada, pela própria Administração, vigorando nesse campo quer a regra da inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC), aplicável por analogia, quer a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, que flexibiliza o art. 333 do CPC, para atribuir a carga da prova à parte que estiver mais próxima dos fatos e tiver mais facilidade de prová-los.

Mas não é só: uma vez provadas a insuficiência de recursos e a falta de previsão orçamentária, o Poder Judiciário determinará ao Estado que faça constar da próxima proposta orçamentária a verba necessária à implementação da política pública.

Vale dizer: o acolhimento da alegação de falta de recursos não conduziria à rejeição do pedido de tutela jurisdicional, e sim apenas o seu diferimento, disso resultando a condenação da Administração a duas obrigações de fazer: (i) a de fazer a inclusão no orçamento da verba necessária para o adimplemento da obrigação e (ii) a obrigação de aplicar a verba para a implementação da política pública.

Concluindo, a invocação da “reserva do possível” – restrita aos direitos fundamentais que não integram o núcleo básico da dignidade da pessoa humana - pode levar o Judiciário à condenação da Administração a uma obrigação de fazer em duas etapas: primeiro, a inclusão no orçamento da verba necessária à implementação da política pública; e, em seguida à inclusão, a obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação.

5.4. Os critérios da razoabilidade e proporcionalidade

Malgrado a importância da judicialização da política para resguardar direitos fundamentais, o fenômeno precisa ser materializado com parâmetros de racionalidade, para que não haja hipertrofia do Judiciário e desequilíbrio entre os poderes.

49 GRINOVER, Ada Pellegrini. Controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 125-150.

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Observa-se que, não obstante a difusão de procedimentos judiciais em campos de deliberação política, ainda não existe um comportamento amplo do Judiciário no sentido de concretizar, com razoabilidade, direitos fundamentais sociais, em detrimento de determinadas políticas governamentais.

Em outros termos, não se tenciona um ativismo judicial indiscriminado, mas uma atuação baseada, concomitantemente, na racionalidade das decisões judiciais – com uma análise prévia e ponderada dos impactos de suas deliberações para a sociedade – na afirmação de direitos fundamentais, na ampliação da cidadania e na concretização do princípio da fraternidade.

O critério da razoabilidade deverá guiar as decisões do Judiciário nessa temática. Em cada caso concreto, o juiz deverá analisar se a escolha do administrador público respeitou os comandos constitucionais e legais, é dizer, se a medida adotada pelo Poder Público é adequada à satisfação dos interesses maiores da coletividade.

Desse modo, a intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer quando restar demonstrada a irrazoabilidade do ato ou omissão do Poder Público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade, inclusive sob o viés da proibição da proteção deficiente.

Tem razão Alessandro Baratta quando esclarece que, no Estado Democrático de Direito, está-se diante de uma política integral de proteção dos direitos.

Tal definição permite que se afirme que o dever de proteção estatal não somente vale no sentido clássico (proteção negativa) como limite do sistema punitivo, mas, também, no sentido de uma proteção positiva por parte do Estado.50

É ilusório pensar que a função do Direito (e, portanto, do Estado), nesta quadra da história, esteja restrita à proteção contra abusos estatais. No mesmo sentido, o dizer de João Baptista Machado, para quem o princípio do Estado de Direito, neste momento histórico, não exige apenas a garantia da defesa de direitos e liberdades contra o Estado: exige, também, a defesa dos mesmos contra quaisquer poderes sociais de fato. Desse modo, ainda com o pensador português, é possível afirmar que a idéia de Estado de Direito demite-se da sua função quando se abstém de recorrer aos meios preventivos e repressivos que se mostrem indispensáveis à tutela da segurança, dos direitos e liberdades dos cidadãos.51

Tem-se, assim, uma espécie de dupla face de proteção dos direitos fundamentais: a proteção positiva e a proteção contra omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, como também por deficiência na proteção.

50 BARATA, Alessandro. La política Criminal y el Derecho Penal de la Constitución: Nuevas Reflexiones.

51 BAPTISTA MACHADO, João. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra, Coimbra Editora, 1998.

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6. Considerações finais

6.1. Após a constitucionalização do Direito Ambiental e do reconhecimento do meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental, de terceira dimensão, transindividual, busca-se agora a realização da tarefa mais árdua, consistente na concretização das normas protetivas do meio ambiente.

6.2. É justamente por meio das políticas públicas que o Estado poderá, de forma sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição, sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais que dependam de ações para sua promoção, caso do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

6.3. O Ministério Público somente influenciará positivamente na formulação e implementação das políticas públicas ambientais se otimizar sua forma de atuação, mediante a identificação dos principais problemas, definição de metas, estratégias e sistemas de gerenciamento em matéria de implementação ambiental.

6.4. Por meio dos instrumentos administrativos do Inquérito Civil, das Recomendações, do Compromisso de Ajustamento de Conduta, das Audiências Públicas, que surgem como alternativas à jurisdição, pode o Ministério Público atingir com maior eficiência seus objetivos constitucionais, inclusive no que diz respeito ao controle das políticas públicas ambientais.

6.5. Quando o direito é expressamente previsto na Constituição ou na lei, não há que se falar em norma simplesmente programática, em simples diretriz para política pública. Onde há direito subjetivo do cidadão não há discricionariedade do Estado, de modo que a atuação do Judiciário para determinar sua implementação não é ingerência indevida no Executivo, mas sim uma garantia constitucional (CF, art. 5.º, XXXV).

6.6. A conveniência e a oportunidade do ato administrativo encontram limites nos princípios da moralidade, da razoabilidade e da eficiência, aferíveis pelo Judiciário. Ante a omissão da atuação do Executivo na formulação e execução de política pública, o Judiciário pode, excepcionalmente, determinar sua realização, mormente se for imposta pela própria Constituição.

6.7. A maior dificuldade do Judiciário, diante da existência de inúmeros direitos fundamentais consagrados na Constituição, está em saber se cabe, em relação a todos eles, o seu controle sob a ótica da constitucionalidade.

6.8. Todos os direitos fundamentais, inclusive o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, têm aplicabilidade imediata e, por consectário lógico, podem ser tutelados judicialmente, em caso de ausência ou inadequação das políticas públicas que comprometam sua efetiva implementação.

6.9. O princípio da dignidade da pessoa humana é um importante parâmetro para a definição do alcance do controle jurisdicional das políticas públicas. Referido princípio tem um conteúdo básico, sem o qual se poderá dizer que o indivíduo se encontra em situação de indignidade. A esse conteúdo dá-se o nome de mínimo existencial, cuja inobservância autoriza o controle da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo pelo Poder Judiciário, sem que se possa invocar, em defesa, a cláusula da reserva do possível.

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6.10. A inclusão da proteção ambiental naquilo que se convencionou denominar mínimo existencial está em consonância com a ideia de um constitucionalismo fraternal.

6.11. O Ministério Público está autorizado a ajuizar ações civis públicas sempre que constatar a inexistência ou inadequação das políticas públicas ambientais. Nessas hipóteses, se o Poder Judiciário entender que a omissão estatal compromete o conteúdo básico desse direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não poderá ser invocada por parte do Estado a cláusula da reserva do possível.

6.12. Somente em relação aos direitos fundamentais que não integram o chamado “mínimo existencial” é que o Poder Público poderá alegar insuficiência de recursos e falta de previsão orçamentária para implementação de políticas públicas;

6.13. Não será suficiente a alegação de falta de recursos pelo Poder Público: esta deverá ser provada, pela própria Administração.

6.14. O acolhimento da alegação de falta de recursos não conduz à rejeição do pedido de tutela jurisdicional, e sim apenas o seu diferimento, disso resultando a condenação da Administração a uma obrigação de fazer em duas etapas: primeiro, a inclusão no orçamento da verba necessária à implementação da política pública; e, em seguida à inclusão, à obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação.

6.15. A intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer quando restar demonstrada a irrazoabilidade do ato ou omissão do Poder Público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade, inclusive sob o viés da proibição da proteção deficiente.

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