Viver segundo a Idéia de Natureza

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THEOPHILOS Revista de Teologia e Filosofia – ULBRA A Journal of Theology and Philosophy Vol. 4 - Número 1/2 - jan./dez. 2004 ISSN 1676-1332 COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente João Rosado Maldonado Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor de Graduação das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Capelão Geral Gerhard Grasel Ouvidor Geral Eurilda Dias Roman Revista Theophilos Revista de Teologia e Filosofia – ULBRA Editor Prof. Dr. Manfred Zeuch Editor Associado Prof. Ms. Paulo Augusto Seifert CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS Universidade Luterana do Brasil PROGRAD/Revista Theophilos Prof. Paulo Seifert, Editor Associado Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 11, sala 127 92425-900 - Canoas/RS - Brasil E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilida- de exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte. Conselho Editorial Prof. Dr. Acir Raymann. Univ. Luterana do Brasil. Prof. Dr. André Birmelé. Univ. Marc Bloch – Strasbourg II, França. Prof. Dr. André Klaudat. Univ. Federal do RS, Porto Alegre, RS. Prof. Dr. Deomar Roos. Escola Superior de Teologia, São Paulo, SP. Prof. Ms. Gerson Linden. Univ. Luterana do Brasil. Prof. Dr. Ingo Wulfhorst . Univ. Luterana do Brasil / FLM, Genebra, Suíça. Prof. Dr. James Voelz. Concordia Seminary, St. Louis, MO, USA. Prof. Dr. Jean-Pierre Bastian. Univ. Marc Bloch – Strasbourg II, França. Prof. Dr. Marcelo Marques. Univ. Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. Prof. Dr. Marco Frangiotti. Univ. Federal de Santa Catarina. Prof. Dr. Mark Gilbertson. Texas Lutheran University, Seguin, USA. Prof. Dr. Nestor L. J. Beck . Univ. Luterana do Brasil. Prof. Dr. Paul Weingärtner. Univ. de Innsbruck, Áustria. Prof. Dr. Ricardo Rieth. Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS/Univ. Luterana do Brasil. Prof. Dr. Risto Saarinen. Univ. de Helsinki, Finlândia. Prof. Dr. Sérgio Streffling. Univ. Luterana do Brasil/PUCRS. Prof. Dr. Valerio Rohden. Univ. Luterana do Brasil. Prof. Dr. Valter Kuchenbecker. Univ. Luterana do Brasil. Prof. Dr. Volker Stolle. Theologische Hochschule Oberursel, Alemanha. Prof. Dra. Wanda Deifelt. Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS. Cursos de Teologia e Filosofia Diretor: Prof. Dr.h.c. Leopoldo Heimann, DD EDITORA DA ULBRA Diretor: Valter Kuchenbecker Coord. de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Projeto gráfico e editoração: Isabel Kubaski

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THEOPHILOSRevista de Teologia e Filosofia – ULBRA

A Journal of Theology and Philosophy

Vol. 4 - Número 1/2 - jan./dez. 2004ISSN 1676-1332

COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO”

PresidenteDelmar StahnkeVice-PresidenteJoão Rosado Maldonado

ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugênio Becker

Pró-Reitor de AdministraçãoPedro MenegatPró-Reitor de Graduação da Unidade CanoasNestor Luiz João BeckPró-Reitor de Graduação das Unidades ExternasOsmar RufattoPró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoEdmundo Kanan Marques

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Ouvidor GeralEurilda Dias Roman

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EditorProf. Dr. Manfred ZeuchEditor AssociadoProf. Ms. Paulo Augusto Seifert

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Conselho EditorialProf. Dr. Acir Raymann. Univ. Luterana do Brasil.Prof. Dr. André Birmelé. Univ. Marc Bloch – Strasbourg II,França.Prof. Dr. André Klaudat. Univ. Federal do RS, Porto Alegre,RS.Prof. Dr. Deomar Roos. Escola Superior de Teologia, SãoPaulo, SP.Prof. Ms. Gerson Linden. Univ. Luterana do Brasil.Prof. Dr. Ingo Wulfhorst . Univ. Luterana do Brasil / FLM,Genebra, Suíça.Prof. Dr. James Voelz. Concordia Seminary, St. Louis, MO,USA.Prof. Dr. Jean-Pierre Bastian. Univ. Marc Bloch – StrasbourgII, França.Prof. Dr. Marcelo Marques. Univ. Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte, MG.Prof. Dr. Marco Frangiotti. Univ. Federal de Santa Catarina.Prof. Dr. Mark Gilbertson. Texas Lutheran University, Seguin,USA.Prof. Dr. Nestor L. J. Beck . Univ. Luterana do Brasil.Prof. Dr. Paul Weingärtner. Univ. de Innsbruck, Áustria.Prof. Dr. Ricardo Rieth. Escola Superior de Teologia, SãoLeopoldo, RS/Univ. Luterana do Brasil.Prof. Dr. Risto Saarinen. Univ. de Helsinki, Finlândia.Prof. Dr. Sérgio Streffling. Univ. Luterana do Brasil/PUCRS.Prof. Dr. Valerio Rohden. Univ. Luterana do Brasil.Prof. Dr. Valter Kuchenbecker. Univ. Luterana do Brasil.Prof. Dr. Volker Stolle. Theologische Hochschule Oberursel,Alemanha.Prof. Dra. Wanda Deifelt. Escola Superior de Teologia, SãoLeopoldo, RS.

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Artigos

3 - Valerio Rohden. Viver segundo a Idéia de Natureza

19 - Edvino A. Rabuske. Imanência e Transcendência

33 - Juan A. Bonaccini. A Estratégia Cartesiana nas Meditationes

47 - John Warwick Montgomery, Manfred Zeuch e Paulo Augusto Seifert. Hermenêutica doPonto de Vista Jurídico e Teológico: um Exercício de Integração

61 - Arno Vorpagel Scheunemann. A Ação Cristã: da Honra e Privilégio em Ser Diácono aoPrazer da Aventura Destinal

75 - Anselmo Ernesto Graff. A Santa Ceia em um Contexto Missionário

99 - André Constantino Yazbek. O Hegelianismo de Jean-Paul Sartre em L’être et le néant

117 - Martim Carlos Warth e Acir Raymann. Pístis Iêsou Xristou: uma Releitura

Comunicação

135 - Paulo Augusto Seifert. Leibniz sobre Percepção

145 - Normas editoriais

Sumário

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas

T394 Theophilos : revista de teologia e filosofia / UniversidadeLuterana do Brasil. – Vol. 1, n. 1 (jan../jun. 2001)- .– Canoas : Ed. ULBRA, 2001.v. ; 23 cm.

Semestral.ISSN 1676-1332

1. Teologia – periódicos. 2. Filosofia – periódicos. I.Universidade Luterana do Brasil.

CDU 2:1(05)

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Artigos

Viver segundo a Idéia deNaturezaTo Live according to the Idea of Nature

VALERIO ROHDENDoutor em Filosofia (UFRGS). Professor de Filosofia na Universidade Luterana do Brasil. Pesquisador do CNPq.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperarNossa existência é uma vasta expectaçãoOnde se tocam o começo e o fim.A terra terá que ser retalhada entre todosE restituída em tempo à sua antiga harmonia.Tudo marcha para a arquitetura perfeita:A aurora é coletiva.(Murilo Mendes, 1979, p.104)

RESUMO

No presente trabalho, é analisado o significado da interpretação kantiana dafórmula estóica: “Viver em conformidade com a natureza”. Essa interpretação, basea-da numa Reflexão de Kant, resume-se ao seu acréscimo do termo “idéia” à referida

O presente trabalho foi escrito para o Colóquio Kant – Natureza e Liberdade, ocorrido na Universi-dade Federal de Santa Catarina, entre 31 de maio e 02 de junho de 2004, sob a coordenação daProfa. Dra. Maria de Lourdes Borges. Será também publicado como capítulo de livro a serorganizado por ela e pelo Prof. Dr. José Heck

Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.3-17

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THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

4 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

fórmula. As presentes reflexões limitam-se a verificar o sentido desse pequeno acrés-cimo, que permite compreender mediante o conceito de idéia a aí visada unidade denatureza e razão, desde a perspectiva desta. A reflexão é complementada por referên-cias às contribuições de Cícero e Seneca ao tema.

Palavras-chave: estoicismo, ética, natureza, razão, idéia.

ABSTRACT

The paper analyzes the meaning of the Kantian interpretation of the stoic formula:“to live according to nature”. This interpretation, based on a Kant reflection, isepitomized at his addition of the term “idea” to the mentioned formula. The presentconsiderations are limited to verify the meaning of such addition, which allows tounderstand through the concept of idea the purposed unity of nature and reason, fromthe perspective of the latter. The reflection is complemented by references to thecontributions of Cícero and Seneca.

Key words: stoicism, ethics, nature, idea, reason.

1 IDÉIA DE VIDA

O tema sobre o qual deverei falar-lhes - a interpretação kantiana da fór-mula estóica, “Viver conformemente à natureza” – originou-se da leitura deuma reflexão que consta na antologia elaborada por Jens Kulenkampff: ImmanuelKant. Köche ohne Zunge (1997). A frase é a seguinte: “Der Natur gemäss leben heisst:nicht den Trieben der Natur, sonder der Idee, welche der Natur zum Grunde liegt, gemässleben” (Viver em conformidade com a natureza não significa viver segundo osimpulsos da natureza mas segundo a idéia que se encontra a fundamento danatureza).1 A frase procede da Reflexão 6658, da época de 1769 (Ak XIX, p.125-126). A continuação da frase, na Reflexão, não é muito esclarecedora, por issome dispenso de fornecê-la. Na antologia de Kulenkampff ela situa-se numaseção por ele intitulada “Do amor à vida”.

Entre as frases dessa seção, colabora para a nossa compreensão a fraseda Reflexão 2398, da mesma época: “Nós só concebemos o que nós mesmospodemos fazer” (Kant, 1997, p. 66). Ou seja, então o significado de viver se-gundo a idéia de natureza tem uma implicação operacional ou pratica. Viversegundo uma idéia significa viver de acordo com a razão prática.

1 Kant, 1997, p.81. O destaque em negrito é meu.

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VIVER SEGUNDO A IDÉIA DE NATUREZA

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Mas essa concepção do viver segundo a idéia de natureza apresenta naReflexão 4857, mais tardia e datada de 1776-1778, uma outra dificuldade aoconceito de vida aí desenvolvido: “Unicamente prazer e desprazer constituemo absoluto, porque eles são a própria vida” (Ak v.18, p.11). Esta identificaçãode prazer e vida é, na Crítica da faculdade do juízo, a essência da concepçãoreflexiva da beleza. Somente na beleza o homem sente-se inteiramente ho-mem, porque ela reintegra alma e corpo, animal e racional, só nela o homemsente-se bem no mundo. Na terceira Crítica, tanto quanto na concepção lógi-ca da Crítica da razão pura, Kant revela-se epicurista. Isto se mostra especial-mente no final da Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivosestéticos, da terceira Crítica, onde ele explicitamente se declara concorde comEpicuro, ao escrever:

Não se pode sequer negar, como Epicuro afirmava, quedeleite e dor sejam sempre em última análise corporais,quer comecem da imaginação ou até de representaçõesdo entendimento, porque a vida sem o sentimento doorganismo corporal é simplesmente consciência de suaexistência, mas nenhum sentimento de bem-estar, isto é,da promoção ou inibição das forças vitais; porque o âni-mo é por si só inteiramente vida (o próprio princípioda vida), e obstáculos ou promoções têm que ser procu-rados fora dele, e contudo no próprio homem, por conse-guinte na ligação com o seu corpo.”2

Aliás, também na Metafísica dos costumes, no primeiro parágrafo de sua In-trodução, Kant define a faculdade de apetição como faculdade da vida: “Facul-dade de apetição é a faculdade de ser, mediante suas representações, causa dosobjetos dessas representações. A faculdade de um ente de agir conformementeàs suas representações chama-se vida”.3 Por isso Kant acrescentará logo a se-guir que apetição e prazer estão sempre necessariamente vinculados, ou comocausa ou como conseqüência. O prazer conectado com essa faculdade práticapor excelência chama-se prazer prático (cf. AB 3, Ak 212).

2 Kant 1993, B 129, p. 124. A parte da citação que se encontra entre parêntese e que destaqueiem negrito foi por um lapso esquecida na tradução, tanto na editada em Portugal (Lisboa: Casada Moeda/Imprensa Nacional, 1992) quanto na editada no Brasil. Será acrescentada numa pró-xima edição.

3 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten (MS), AB 1, Ak v. VI p.211.

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6 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

Com isso chegaremos a uma conclusão que pode surpreender interpreta-ções distorcidas da filosofia moral kantiana: a moralidade, do modo como éentendida por Kant, vincula-se necessariamente com a vida e com o prazer. Masveremos que no caso da moral, viver de acordo com a idéia de natureza signifi-cará ter como necessária conseqüência (e não como causa) um prazer na deter-minação da razão prática, mais precisamente, na sua autodeterminação.

Este direcionamento inicial de nossa reflexão para o prazer justifica-sepela sua vinculação com o conceito de vida presente na fórmula estóica queKant interpretou. Naturalmente, veremos que o acréscimo fundamental de Kantà fórmula moral estóica refere-se ao uso e sentido do termo “idéia”. A idéia éuma representação por excelência da razão,4 de modo que, se a interpretaçãode Kant estiver certa, ou seja, que viver de acordo com a natureza quer dizerviver segundo uma idéia que serve de fundamento á natureza, então Kant re-presenta a prática moral estóica como racional. Natureza e razão terão de serpensadas aí unitariamente.

2 UNIDADE DE NATUREZA E RAZÃO EM

SENECA

Essa concepção provém de Zenão (490-430 a.C.) e Crisipo (280-aprox.208a.C.), mas comecemo-la por Seneca (4 a.C.-65 d.C), com quem, especialmentecom as Cartas a Lucílio, Kant mantinha uma relação privilegiada.5 Pois bem, naCarta 124, alínea 14, Seneca afirma que a natureza no seu todo é determinadapela razão. Citemo-lo: “Ou seja, perfeito é enfim aquilo que em comparaçãocom a natureza toda é perfeito, mas a natureza considerada no seu todo édeterminada pela razão: o restante só pode ser perfeito dentro de seu gêne-ro.” (Sêneca, 1991, p. 701).

4 A Reflexão 3917 é muito elucidativa do sentido das idéias puras da razão. Segundo ela, idéiaspuras são reflexivas, ou seja, discursivas e não intuitivas, como supunha Platão. Isto significaque elas não representam objetos mas leis para comparar conceitos empíricos. Logo, enquan-to fundam juízos comparativos ou reflexivos são leis de juízos. Cf. ed. Ak v. 17, p.342.

5 Por exemplo, Maximilian Forschner, em seu livro Über das Handeln im Einklang mit der Natur,Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998, p.104, revelou - e pude confirmá-lo emSeneca – que uma noção essencial na ética de Kant, a diferença entre preço e dignidade, pro-vém literalmente de Seneca, da Carta 71, linha 33.

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VIVER SEGUNDO A IDÉIA DE NATUREZA

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O que Seneca afirma está de acordo com o conceito de idéia de Kant: aidéia representa um todo, no caso, o todo da natureza. A idéia de naturezasignifica, pois, a natureza pensada no seu todo e não em suas especificaçõesou em seus impulsos. Essa forma de representação é própria da razão: a ra-zão, na prática, pensa principalmente o todo da vida, o todo dos homens, ahumanidade. Por isso o conceito de máxima tem de ser entendido (conformeum artigo de Rüdiger Bittner, 2003, que saiu na Studia Kantiana) como o de umprincípio de vida, por isso em um sentido universal (como também fiz constarem uma nota ao § 1 da tradução da Crítica da razão prática; ver Kant 2002, p. 31-32, 2003, p. 581). Os princípios práticos são universais, embora em sentidodiferente quando se trata de lei ou de máxima, mas são universais porque nosdois casos se trata de idéias da razão segundo as quais queremos viver. Trata-se de idéias relacionadas com o todo da vida. Por isso querer viver segundo aidéia de natureza não significa querer viver segundo os sentidos como os im-pulsos ou inclinações, mas segundo a representação do todo da natureza. Otodo da natureza corresponde a uma representação a priori dela, uma repre-sentação prática do sentido do mundo e da vida (veremos que esse todo estáligado à idéia de perfeição e desenvolvimento pleno).

Vejamos a esse respeito mais alguns aspectos dessa relação entre natu-reza e razão, na Carta 124 de Seneca (a última dessa sua obra-prima). Senecapropõe aí como questão, se bom e mau são apreendidos pelos sentidos oupelo entendimento. Ele mostra que são discernidos pelo segundo ou pela ra-zão, porque, se a razão tem por tarefa decidir sobre a vida feliz, sobre a virtudee a honestidade, então também sobre o bom e mau, ou seja, sobre o queconcorda ou não com a natureza. Só que no início da vida, por exemplo nonascimento, a concordância com a natureza não é ainda o bom, mas apenas oinício do bom. Uma criança ainda incapaz de linguagem e de razão é incapaz daprática do que é bom. Ela é apta ao mesmo quando alcança o uso da razão.Por isso Seneca propõe uma escala entre seres vivos privados de razão e seresvivos dotados de razão mas ainda imperfeitos. Primeiro, em entes privados derazão jamais poderá verificar-se o bem; segundo, em entes ainda sem razãonão pode neste momento verificar-se o bem; e, terceiro, naqueles que possu-em razão mas não de um modo perfeito, pode vir a ocorrer o bem mas atual-mente não existe. A natureza, a semente, a árvore, igualmente, possui algo debom, principalmente a fruta ou o trigo maduro. Por conseguinte, o bem sóexiste na natureza totalmente desenvolvida: Ele envolve uma relação do indi-víduo com o todo. O bom indivíduo cuida do todo – esta poderia ser uma teseecologista, mas que envolve primariamente uma relação do indivíduo bom com

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a humanidade inteira e, assim, reciprocamente. “Como toda natureza só reali-za o bem que lhe é próprio quando consumada, assim no homem só existe obem quando a razão está nele completamente desenvolvida” (alínea 11). Logo,em todos os seres vivos ou animais aos quais faltam linguagem e razão, tam-bém não existe o bem. Porque aqueles só podem apefeiçoar-se em suaespecificidade, mas não em relação ao todo. Seneca demonstra-o mediante arelação com o tempo: um animal só tem consciência do presente; o passadoele só recorda quando este volta a ato, por exemplo, quando o animal reencetao início de um caminho. O animal, principalmente, não tem nenhuma relaçãocom o futuro, enquanto em relação a ele o homem vive sob a forma da preocu-pação. Então, pergunta-se Seneca, como um ente pode ter uma natureza per-feita se carece de uma familiaridade com o tempo, ou seja com o tempo emseu todo? A um animal sem linguagem faltam também ordem e plano. Mesmoque ele possua alguma perfeição de sua natureza, não possui o bem em senti-do absoluto, que só seres vivos dotados de razão possuem.

Mas o homem se ilude ao supor que alcança esse desenvolvimento pelomero desenvolvimento ou adornamento de seu corpo, em que os animais [enão só eles, lembremos a frase evangélica: “olhai os lírios do campo!”) seavantajam sobre ele em todos os sentidos. O desenvolvimento próprio dohomem dá-se ao nível da razão, portanto, de uma razão ativa como em Kant.“Tu és um ente dotado de razão. Que bem então se encontra em ti? A razãoperfeita” (alínea 23). Assim, em parcial afinidade com Kant, para Seneca ohomem considera-se feliz quanto todo o contentamento brota da razão.

Dessas observações de Seneca deduz-se que a felicidade do homemnão reside em viver apenas segundo a sua natureza específica, mas no desen-volvimento de um acordo com a natureza no seu todo, isto é, com a idéia denatureza, ou seja, com a razão.

3 UMA RAZÃO SEMINAL

Maximilian Forschner, em seu livro Die stoische Ethik (2ª. ed. 1995) analisaos dois conceitos de natureza envolvidos na fórmula estóica: primeiro de umanatureza universal (koine physis)), no sentido de um todo orgânico do mundo e,segundo, da natureza como estrutura específica de coisas singulares. Nestanatureza específica, considerada isoladamente, podemos encontrar estadosdeficientes, circunstâncias desfavoráveis e males. Mas do ponto de vista do

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todo, todas essas coisas estão de acordo com a natureza, antes, “um certograu de deficiência no particular é necessário à economia e bem-estar do todo”(Forschner, 1995, p. 161). Portanto, o moralmente mau, o contrário à naturezapode existir, de um lado, como elemento de um todo dotado de sentido e, deoutro, como disposição e ação responsável. Porque a harmonia do todo for-ma-se de oposições, não é possível a virtude, segundo Crisipo, se não existe ovício. O problema desta concepção é que se a ação moral se desenvolve emliberdade e, portanto, independentemente da ordem objetiva do todo, ela correo risco de ser jogada a uma esfera subjetiva. Todavia, enquanto a natureza éuma providência que planeja e executa o destino, também a razão moral éativa, individualizada. Desta atividade do logos humano depende se ele alcançaa consumação, sua felicidade ou eudaimonia proposta pelo logos do universo àsua natureza específica. Escreve Forschner (1995, p. 164): “O logos humano éimperfeito enquanto suas atividades não formarem uma unidade sistemática”,ou enquanto ele limita a sua aspiração ao particular, estados e coisas, cujodomínio não esteja em seu poder.

Ludwig Edelstein, no seu livro sobre ética estóica, fala de uma razãoseminal como princípio ativo atuando em todas as coisas particulares, unifi-cando-as e organizando-as. Esse princípio ativo, como energia ou força, é averdadeira natureza das coisas, ou seja, um elemento divino que como princí-pio vivo presente nelas atua também no mundo como um todo. Assim a or-dem não é imposta desde fora, mas se encontra em sua própria força interna.Essa força interna é o logos, como poder de moldar as coisas em sua formacorreta, como o princípio de seu crescimento. A razão só quer realizar-se, este éseu objetivo inerente às coisas e que, como desenvolvimento, só se completae é razão em relação ao desenvolvimento do todo.

Mas como é que a moralidade pode concordar com a natureza? Nãomediante um amour propre no sentido de philautia, mas no sentido de um amorde si enquanto autopreservação. Este cuidado pela autoconservação é racio-nal. Como racional o homem desenvolve um plano de autopreservação, a razãoprática é natural. O dever do homem, a essência do humano, é seguir em suavida esse princípio organizador. A nossa natureza é ser racional. O altruísmosurge da mesma maneira como quando o homem, para poder seguir a nature-za do mundo, isto é, do todo, tem de ser livre de paixões e só aceitar as emo-ções geradas pela razão. A paixão não é natural, o que é natural é a açãoracional. O sábio vive de acordo com a razão e, nesta medida, tem todas ascoisas boas em comum; e assim, fazendo o bem aos outros, o faz também a si

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mesmo. “Só os que não seguem a razão acreditam que o seu bem opõe-se aobem de outros ou que, estritamente, uns são inimigos dos outros e que cadaum se isola na existência pessoal.” (Edelstein, 1980, p. 42). Por isso a razãopresente nos indivíduos é a mesma em todos: “Quando o homem mais é elemesmo, menos é ele mesmo e mais é como todos os outros, de modo que acoisa mais individual, aquela que mais realiza o indivíduo, a razão, é a maisuniversal.” (idem, ibidem). Por isso Edelstein vê nos deveres estóicos a verda-de do imperativo categórico de Kant. Trata-se de uma ética que é a fundaçãode todo o humanismo posterior, e que encontra na existência dos outros ademonstração da irmandade comum de todos os homens (idem, p. 43). Enfim,segundo esse autor, a ética estóica pode ser melhor explicada mediante suareferência à ética de Kant.

4 CÍCERO E A FÓRMULA ESTÓICA

Esta relação da ética de Kant com a ética estóica mostra-se de modoeminente em Cícero, em cujo livro De finibus, livros III e IV, me basearei paraverificar essa relação entre natureza e razão proposta na frase de Kant. Numprimeiro momento esta relação quase não é explicitada, em prol de um apa-rente naturalismo. Mas tudo na obra, principalmente no livro III, concorre paraexplicitar a relação de sua concepção do sumo bem com a fórmula estóicabásica.

Cícero aponta duas formas de conformidade com a natureza, uma quenão é aspirável por si mesma e de algum modo moralmente neutra, e umasegunda, identificada com o sumo bem, como uma forma de vida escolhidapela alma e que ele chama de “concordante”, com um fim que não é externoà sua própria realização, a realização do que é reto. A concordância com anatureza tem como ponto de partida, vinculado à própria autoconsciência, oamor a si mesmo, à sua autoproteção e conservação. Este nível daautoconservação que domina a ética estóica será criticado por Kant comoinsuficiente do ponto de vista da razão prática. Mas Cícero situa a concor-dância com a natureza em vários níveis: primeiro, é concordante com a natu-reza que os pais amem os filhos. Este amor paterno é o ponto de partidapara a abrangente comunidade do gênero humano: “Disso resulta tambémque existe uma familiaridade natural de todos os homens entre si, de talmodo que um homem, porque é um homem, não parece estranho a um ou-

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tro homem.” 6 Que a natureza humana se distinga de uma natureza instintivaé evidenciado pelo pensamento de que o vínculo dos homens entre si superade longe o dos animais em prol de sua própria espécie. Os homens “são pornatureza destinados à vida em comum, à socialização e à formação de Esta-dos” (De fin., III 64). O homem é chamado para uma cidadania mundial, pró-pria de sua natureza, onde o bem de todos precede o bem particular e ondeo que em proveito próprio age em prejuízo dos demais é tão culpado quantoum traidor da pátria.

Esse caráter aparentemente natural da adequação do homem a ummundo humano torna-se obviamente mais equívoco quando Cícero, apoian-do-se no argumento de que, do mesmo modo como nossos membros agemadequadamente ao seu fim ainda antes de concebermos esse fato, também anatureza vinculou e uniu os homens numa sociedade política antes que elesconcebessem sua utilidade, e assim também defendemos uma ordem jurídicanas relações dos homens entre si, que negamos na relação dos homens comos animais. Se a presença de uma ordem jurídica nas relações entre os ho-mens inexiste nas relações entre homens e animais, isto significa que a confor-midade a uma ordem humana tem um sentido maior do que o de uma simplesconformidade a uma natureza animal (cf. De fin., III 67). Mas Cícero extrapolaessa relação de direito à humanidade: é da natureza do homem estabelecerrelações de direito com todo gênero humano. “O homem nasceu para cuidardos homens e protegê-los” (III 68). A prática da justiça e injustiça tem comoparâmetro este direito humano universal a ser tratado simplesmente comohomem.

Assim, querer viver em concordância com a natureza significa necessa-riamente ter em vista o cosmos no seu todo e seu governo (cf.De fin., III 73). Arecuperação desse sentido global do sumo bem é o essencial do livro IV do Definibus. Aí ele se ocupa enfim com Zenão, a quem se atribui a fórmula éticaestóica do viver em conformidade com a natureza. Antes se atribuía a Zenãoalgo semelhante ao que de Kant dissera Tittel, em sua crítica à Fundamentaçãoda metafísica dos costumes, e comentado anonimamente por Kant na Crítica darazão prática, de que ele não havia introduzido nenhum princípio novo na mo-ral, apenas uma nova fórmula. De Zenão também se dizia que não introduziranada de novo na ética, além de uma nova terminologia. Cícero agora querverificar que é que Zenão trouxe de novo. Pois já antecessores dele, especial-

6 Cícero, 1988, p.63. Nas páginas seguintes, citado como De fin., indicando-se o capítulo emnúmeros romanos e a página em números arábicos.

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mente Polemon (ca.315-265 a.C.), filho de Philostrato, chefe da Academia, se-ria o autor da fórmula estóica, de que viver de acordo com a virtude (kat´arete)significa ao mesmo tempo tempo viver de acordo com a natureza (kata physin).Zenão foi discípulo de Polemão (Polemo), que porém não vislumbrou nem de-senvolveu o potencial da fórmula para os estóicos.

Segundo Cícero a fórmula tem três sentidos: primeiro, viver segundo osaber que se tem das coisas que ocorrem por natureza (cf. De fin., IV 15). Estaversão seria de Zenão, referindo-se à ação reta (katórtoma), restrita aos sábios.Segundo, viver na observância dos deveres médios, sendo este um dever apro-ximativo, não perfeito, de que são capazes inclusive os tolos. Terceiro, viver nogozo das coisas que não naturais. Este foge do nosso alcance. A base dafórmula é que toda natureza visa conservar-se, e a arte de viver consiste emconservar o que a natureza nos deu.

Mas a natureza não produziu o homem, apenas esboçou o seu início,como uma estátua, que precisa ser acabada (cf. De fin., IV 35). Sabemos que ofim da razão é a virtude, mas Cícero pergunta qual é o sumo bem do homemtodo. “Se no homem não houvesse outra coisa que precisasse ser acabado, anão ser um determinado movimento do espírito, portanto a não ser a razão,então ele não teria outro objetivo que agir de acordo com a virtude, pois aconsumação da razão é a virtude” (cf. De fin., IV 35). Em que consiste o sumobem do homem todo? Primeiro, no bem de um corpo sem alma? Irrealizável.Segundo, no bem de uma alma sem corpo? Ambas as posições são unilaterais.Terceiro, ambas as partes da alma e do corpo exigem cuidado. Todo ser vivotem um sumo bem próprio. No caso do homem, a natureza deixou-o desenvol-ver-se até a razão: “Ela dá sempre algo mais, de modo tal que aquilo com queela começou ela jamais abandona” (De fin., IV 37). Assim, p. ex., ela acrescen-tou a razão aos sentidos, mas sem abandonar a estes. Assim também a virtudenão pode se fundamentar se ela se refere só à alma e desconsidera o todo, aoqual a conformidade à natureza se refere e para o qual contribui (cf. De fin., IV41). Se a natureza só abarca a razão, então o sumo bem é apenas a virtude. Eo viver segundo a natureza implica, então, afastar-se dela. Assim é errôneo pôro sumo bem apenas na virtude.

A virada na crítica aos estóicos dá-se quando Cícero argumenta que nãose trata de aspirar ao conforme à natureza, mas inversamente é o conforme ànatureza - isto significa, em concordância com a interpretação de Kant, o con-forme à idéia de natureza - que põe em movimento o aspirar e agir (cf. De fin.,IV 48). Cícero defende um progresso para a virtude análogo à paulatina aproxi-

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13Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

mação kantiana, mas sem que ela inclua um progresso a partir do mal. Paracoroar esta parte, permito-me ler uma longa passagem do II livro do De finibus,em que a razão toma a primazia desse desenvolvimento:

Logo, nós entendemos por virtude aquilo que é constitu-ído de tal modo que, com prescindência de toda utilidadee sem nenhum prêmio ou proveito, é por si mesmo louvá-vel. Do que aí se trata deixa-se menos ler na definiçãoque empreguei, conquanto isto já em certo grau seja pos-sível, do que, muito antes, no juízo concordante de todosos homens e nas aspirações e realizações dos melhores,que fazem muito a partir deste único fundamento, de queconvém, de que é certo e virtuoso, mesmo quando elesvêem que eles não obterão nenhum ganho disso. Os ho-mens distinguem-se em muitas coisas dos animais, masprincipalmente em um ponto, de que eles possuem comodom da natureza a razão, um espírito aguçado e vigilante,que com máxima velocidade pode tratar simultaneamen-te de várias coisas e que de certo modo é astuto; ele écapaz de conhecer as causas e conseqüências dos fenô-menos, produzir semelhanças, vincular o separado, vin-cular com o presente o futuro e finalmente projetar a es-trutura completa de uma vida em si conseqüente. A mes-ma razão moldou o homem de tal modo, que o indivíduoprocura a convivência com os outros e concorda com elesmediante natureza, linguagem e costumes. Ele começacom o amor à família e aos seus, vai então adiante e criaprimeiro uma comunidade com seus concidadãos, e en-tão com todos os mortais: ele recorda-se, como Platãoescreveu a Archita, que ele vão veio ao mundo para sisó...” (De fin., II 45)

5 CONCLUSÕES KANTIANAS

A consideração da fórmula estóica desde a perspectiva kantiana da idéialeva, se não a uma transformação, pelo menos a uma limitação do naturalismoético antigo. A tese de Kant, na Idéia de uma história universal desde um ponto de vistacosmopolita, de que a natureza, entendida aí em dois sentidos, um empírico, em

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que apresenta regularidades curiosas, como as dos casamentos, no entantofundável cientificamente segundo princípios da razão pura, e uma naturezacomo Providência, a natureza assim entendida é guiada por uma idéia: de quea natureza promove o desenvolvimento do homem na direção de uma socie-dade cosmopolita, baseada no Direito. A elaboração mais acabada desta pers-pectiva encontra-se elaborado em À paz perpétua e coroada na conclusão daDoutrina do Direito, onde a paz é declarada o sumo bem político. Trata-se deuma idéia de cunho regulativo, mas praticamente constitutiva: ou seja, como agente pode em princípio realizá-la, se tem a obrigação de lutar por ela, inde-pendentemente do grau de aproximação que em relação a ela conseguiremosconquistar. O futuro da humanidade é a paz, estruturada juridicamente.

Procurei demonstrar em trabalho anterior que a razão kantiana coincidecom o conceito de humanidade, sendo por isso essencialmente sociável ecosmopolita. Nesse estudo chamei a atenção para a fundamentação racional,em Kant, da tendência do homem à sociedade, numa espécie de inversão daperspectiva antiga, baseada numa inclinação natural à mesma. Nele escrevi:

O homem não é originariamente social, mas sociável: égraças à sua capacidade de impor-se uma obrigação ra-cional que o homem é capaz de sociedade. A racionalidadeé uma capacidade de sociedade e é idêntica à sociabili-dade. Pela capacidade de obrigar-se, responsabilizar-se,ser cidadão, o homem tem condições de vida coletiva. Acapacidade de vida em sociedade fundada no Direito é acapacidade de agir segundo regras e princípios de convi-vência. Sem essa capacidade e disposição de deixar-seguiar por eles, a sociedade é impossível. Com isso ficaclaro o sentido da sociabilidade legal: ela é a capacidadee disposição a deixar-se guiar por princípios do Direito.(Rohden, 1994, p.104)

Em relação a um outro texto, Presumível início da história humana (1786), deKant, destaquei a origem moral da instituição da sociedade:

O último passo da razão – o passo anterior referiu-se aosentido da folha de parreira, de recusa, de idealização, depassagem do apetite animal ao amor, e do agradável ao

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15Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

belo – [passo] que elevou o homem totalmente acima deuma sociedade de animais e, portanto, a uma sociedadeentre homens, deu-se quando o homem concebeu-secomo fim e não como simples meio (natural), a partir doque cada homem pôde reconhecer-se em relação ao ou-tro como igual participante dos dons da natureza. Estalimitação que a razão introduziu na vontade de cada umcom respeito aos outros homens, [escreve Kant] “foi, muitomais que a inclinação e o amor, necessária à instituiçãoda sociedade”.7 Uma limitação da razão – de um homemnão utilizar o outro como meio ou como simples natureza– é, com vistas à igualdade de direitos de cada um, condi-ção necessária da instituição da sociedade. Portanto, aigualdade entre os homens e a possibilidade da socieda-de assentam não sobre uma razão pragmática, mas sobreuma razão prática, que vê cada um na perspectiva do fimterminal da liberdade, e a partir da qual nenhum tem odireito de dispor do outro a seu bel prazer. É pela razãoque o homem deixa o suposto paraíso terrestre, passan-do da rudeza à humanidade, trocando o guia do instintopelo da razão, o tutoramento da natureza pelo estado deliberdade. (Rohden, 1994, p. 104-105)

Em resumo, o pleno desenvolvimento das disposições humanas numestado cosmopolítico é uma idéia.

Esta idéia foi o acréscimo kantiano necessário à explicação do sentidoda fórmula estóica, porque o viver em conformidade com a natureza significa-va uma forma de conviver no todo do mundo, o mundo correspondente aologos greco-romano. O humanismo estóico, cuja ética partia do reconhecimen-to de todo outro simplesmente por ser homem, desenvolveu-se numa pers-pectiva ético-política, que concentrou a sua formulação acabada no humanismoético-político de Kant. Por duas razões: primeiro, porque segundo PeterCoulmas, em Weltbürger. Geschichte einer Menschheitssehnsucht (1990), não se pro-duziu até hoje nenhum acréscimo notável à concepção cosmopolitica estóica;segundo, porque a criação das Nações Unidas, construída após a última gran-de guerra pelo conjunto das nações da terra por uma humanidade ansiosa depaz, é uma aplicação quase literal do texto kantiano de 1795. “O Estoicismo

7 KANT, i. Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte, A 11, Ak v.VIII, p.114.

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16 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

formulou um conceito de cosmopolitismo que se tornou determinante [ouparadigmático] para os séculos helenísticos e o Império Romano. Fundamen-talmente novos elementos de pensamento, capazes de transformar a estrutu-ra interna ou a conseqüência postulativa, jamais foram depois acrescenta-dos.” (Coulmas, 1990, p. 113). Ele cita a seguir um pensamento do imperadorromano (161-180) e filósofo estóico Marco Aurélio, em nada diferente das for-mulações de Platão e Cícero, mas de forte apelo intuitivo: “Nós homens fomoscriados para a cooperação como os pés, as mãos, as pálpebras e as arcadasdentárias superior e inferior” (apud Coulmas, p. 118). O apelo intuitivo do textofavorece-nos a compreensão de que a cooperação humana, a que a ética nosobriga, é uma necessidade tão forte como a da cooperação dos pés, das mãos,das pálpebras, dos dentes e, enfim, podemos acrescentar, da natureza e darazão entre si.

O texto da Idéia de uma história universal, de Kant (2003, p. 6), afirma, emsua terceira proposição, que a natureza quis que no homem tudo dependessede sua razão, inclusive sua felicidade. A razão é, pois, a base tanto do desen-volvimento de sua natureza como da sociedade e da felicidade. E graças aessa base racional, o homem precisa do Direito tanto quanto precisa do outro.À diferença da razão estóica, a razão kantiana não se reduz a meio daautoconservação humana, mas se eleva a princípio de julgamento do que ébom ou mau para ela. O que com isso nos interessa ressaltar é que a interpre-tação da fórmula estóica, viver em conformidade com a natureza, enquanto éentendida pelos estóicos no sentido de conceber-se num cosmos como formade vida ético-política, presume a idéia platônica em sua versão kantiana. Porisso repito a frase de Kant: “Viver em conformidade com a natureza significaviver não em conformidade com os instintos da natureza, mas segundo a idéiaque se encontra no fundamento da natureza”. Significa, enfim, pensar a natu-reza como logos. O cosmos antigo era um mundo humano, estético. Cícero eKant pensaram-no como mundo moral, ou seja, como tarefa de todos nós emconjunto, expressa pela idéia prática.

REFERÊNCIAS

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CÍCERO, Marcus Tullius. Über die Ziele des menschlichen Handelns. De finibus bonorum

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17Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

et malorum. Herausgegeben, übersetzt u kommentiert von Olof Gigon und LailaStraume Zimmermann. München und Zürich: Artemis, 1988.

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Endereço/AddressProf. Dr. Valerio Rohden

Universidade Luterana do Brasil/ Curso de FilosofiaAv. Farroupilha, 8001 – Prédio 11, Sala 27

92425-900 – Canoas/RS – BrasilE-mail: [email protected]

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Texto revisado para publicação, em razão de doença do autor, pelo prof. Ms. Fausto dos SantosAmaral, do Curso de Filosofia da Universidade Luterana do Brasil. Agradecemos a gentileza doautor em permitir tal trabalho.

Imanência e TranscendênciaImmanence and Transcendence

EDVINO A. RABUSKEDoutor em Filosofia. Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

RESUMO

Sob o título Imanência e Transcendência, inspirado em Béla Weissmahr, são expostos,antes, alguns pressupostos filosóficos (lógicos e ontológicos) do conhecimento de Deus. Apartir dos quais, diante do debate da tradição, indicando os problemas que a questão apre-sentada envolve, o autor pretende mostrar de que maneira podemos falar do inefável.

Palavras-chave: Filosofia e Teologia, lógica, linguagem, imanência,transcendência.

ABSTRACT

With the purpose to discuss some issues related to the ideas of immanence andtranscendence, the author first presents some philosophical presuppositions (logicaland ontological) of the knowledge of God. From that, considering the traditionalapproaches and pointing to the problems involve in the question, the author tries toshow how we may speak of the ineffable.

Key words: Philosophy and Theology, logic, language, immanence,transcendence.

Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.19-31

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1 INTRODUÇÃO1

Durante toda a História da Filosofia, até o começo do século XX, a reli-gião era um dos seus temas mais discutidos. Pode-se mesmo dizer que a exis-tência e a natureza de deus era a questão central. Filosofia e religião eramirmãs rivais; rivais, mas inseparáveis. Não se entende, por exemplo, Kant eHegel, sem a luta contra as concepções religiosas vulgares, consideradas su-perstições, e contra as teologias oficiais, consideradas dogmáticas.

No século XX a rivalidade se tornou velada e indireta. Não há mais atu-almente ateus militantes – o último foi Sartre. Nos livros e nas aulas de Filoso-fia se elimina o problema de Deus: “se queres ouvir falar de Deus, vá a umaigreja e assista a uma missa!”. Muitos professores, mesmo católicos, enquantofilósofos se dizem agnósticos.

O desconhecimento mútuo de Filosofia e de Religião é prejudicial a ambas.A filosofia ou se reduz a uma Teoria das Ciências e da Linguagem, que aliás ospróprios cientistas dispensam, porque já têm o seu método; ou se reduz àÉtica, com intermináveis discussões acerca da fundamentação última. A reli-gião, por sua vez, se torna dogmática e cada vez mais fanática. Doutro lado, éinegável, por exemplo em Carnap e em Popper, o ataque indireto à Religião,sob o título de “Metafísica”. Mas então, conheçam melhor o seu adversáriopara não combater uma caricatura!

A Filosofia é um assunto muito difícil, e que só se penetra com muitoesforço e longo fôlego, sem nunca chegar a resultados definitivos. É uma mar-cha pelo deserto, com pequenos oásis, mas sem nunca chegar à terra prome-tida.

A principal dificuldade reside nisto; que sempre está em jogo o todo. Oprocedimento não é linear, mas circular. O discurso filosófico não é propria-mente um “encadeamento de idéias”(Descartes), mas uma rede, um tecido.Ou se compreende tudo, ou nada.

Antes de expor as minhas idéias sobre imanência e transcendência, vouacenar a alguns pressupostos filosóficos do conhecimento de Deus. A ques-tão da existência ou não existência de Deus se decide antes de ser colocadaexplicitamente. Com isto também ficam marcados alguns fatores do ateísmo e

1 Este artigo é inspirado em : WEISSMAHR, Béla. Teologia Natural. Barcelona: Herder, 1986.

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do indiferentismo religioso. Vou acenar a quatro pressupostos, que secomplementam mutuamente, circularmente.

1 – A experiência transcendentalA experiência é a forma de conhecimento em que a realidade está ime-

diatamente presente à consciência. Para muitos, só a experiência sensível temimportância para o conhecimento, seja como fonte (empirismo), seja comocritério de verificação ou comprovação de enunciados (neopositivismo). A ex-periência sensível é imediata, explícita e voltada a um objeto particular. Mas,por ocasião da experiência sensível, necessariamente faço uma experiência im-plícita, atemática, do ser, do absoluto, que denomino experiência transcendental(o termo é de Karl Rahner, com evidente ponta antikantiana). É uma experiên-cia imediata-mediata: imediata, porque atinge realmente o absoluto; mediata,porque isto só ocorre por ocasião da experiência sensível de objetos contin-gentes. A base antropológica do “com”(com-experienciar) é a constatação deque os sentidos, o entendimento (Verstand) e a razão (Vernunft) sempre ope-ram conjuntamente – a separação é abstrata.

Contra Kant: a distinção entre o a priori e o a posteriori deve ser matizada.Também os primeiros princípios do ser e do pensar se experimentam ou com-experimentam de alguma forma. Não construímos o real, este se “mostra”.Também o concluído por raciocínio, quando se trata do real (enunciados exis-tenciais) pertence ao conteúdo da nossa experiência.

Antes de falar expressamente de Deus, deve-se descobrir o absolu-to ou o incondicionado da verdade, do valor, do sentido da vida, etc. Aoafirmar algo, suponho que o dito seja verdade e, ao supô-lo, suponhoalgo incondicionado. As asserções explícitas certamente são relativas,falíveis. Mas o fato de que nós podemos saber prova a presença do abso-luto no nosso conhecimento. A liberdade supõe apreender qualquer ob-jeto particular como um valor relativo; ora, apreender o relativo comorelativo supõe a abertura ao incondicionado, fundamento de qualquervalor e da responsabilidade moral. Buscamos o sentido da vida. Ora, asatuações particulares só têm sentido quando o todo a que pertencemtem um sentido, quando participam dum sentido último, que garante har-monia e plenitude.

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Isto é importante para o nosso tema. Todo o conhecimento de deus seefetiva sobre a experiência de Deus. Mas esta não é direta, a modo duma intuiçãointelectual, mas por ocasião do conhecimento dos entes mundanos, trans-cendendo-os. O conhecimento de Deus é o desenvolvimento metódico daexperiência transcendental. Muitos, ateus e crentes, julgam que se chega à féem Deus por influência de fora (bom exemplo, educação, etc.), ou atravésduma “experiência religiosa”, carregada de emoção (carismática). Como mui-tos não fazem tal experiência, não se interessam por Deus; dizem que, se Deus“morre”(na sua vida), não deixa saudades.

2 – Argumento básico: o princípio da não-contradição performativaO princípio da não-contradição performativa (não semântica ou lógi-

ca, mas pragmática) proíbe que haja uma contradição entre o ato de afir-mar e o conteúdo proposicional. Enunciados metafísicos são aqueles quenão posso negar sem me contradizer performativamente. “Sei algo”, “exis-te o absoluto”, “conheço a realidade em si mesma”: quando nego um des-ses enunciados, ainda o estou afirmando tacitamente. Que enunciado ver-dadeiro é aquele que também poderia ser falso, só vale do contingente.“Sócrates está sentado” pode ser verdadeiro ou falso. Mas há enunciadosque nunca podem ser falsos. Nadamos no absoluto, embora – isto nãodeve ser esquecido – a sua explicitação é sempre relativa, contingente emesmo falível.

Um dos fatores do ateísmo é o relativismo, que está amplamente di-fundido. Diz-se o seguinte: quando saímos dos limites metodologicamentetraçados das Ciências particulares, e tentamos construir uma teoria globalsobre o todo da realidade, da história, da vida humana, caímos necessaria-mente no relativismo, no ceticismo, ou então no irracionalismo, noemotivismo.

Esquece-se que o sujeito só pode conhecer o relativo como relativo, ocontextual como contextual, o subjetivo como subjetivo, sobre o pano de fundo dumconhecimento implícito do absoluto, do válido universal e necessariamente.

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3 – Articulação lógico-linguística: dialéticaimplícito-explícitoComo já foi insinuado no item anterior, o nosso conhecimento e a nossa

linguagem se movem em dois níveis: o explícito é o claro, o distinto, o objetivável,o abstrato. Implícito é o apenas com-experienciado, o com–conhecido, masque se refere ao real em toda a sua concretude, ao incondicionado que éconhecido simultaneamente em cada conhecimento, ao horizonte. Entre am-bos os níveis há uma dialética, no sentido de complementaridade. O indizívelexplicitamente tende a dizer-se, sem nunca consegui-lo de todo, mediante aalusão, a metáfora, o símbolo, a analogia. O Positivismo, o Neo-Positivismo, aFilosofia Analítica só reconhecem um único nível do conhecimento e da lin-guagem como cognitivamente relevante. Célebre é a afirmação de Wittgenstein:“O que se pode dizer se pode dizer claramente; acerca do que não se podedizer claramente se deve calar”. Mas ele mesmo fala do “místico” que é oestético, o ético e o religioso. O positivismo leva ao secularismo, portanto aoateísmo. Mas o fator principal do ateísmo não são as teses de Feuerbach, deNietzsche, de Freud, de Sartre e outros, que poucos conhecem a fundo, mas amentalidade cientificista: que somente as Ciências e a Tecnologia fornecem clare-za, certeza, segurança e salvação.

Portanto, um dos pressupostos do conhecimento racional de Deus é umaconcepção ampla e profunda da razão. A razão é mais do que a capacidadedum conhecimento exato e expresso com claridade conceitual. Devo trabalharem dois níveis: procurar o máximo de clareza e, ao mesmo tempo, alimentar aminha consciência com os conteúdos mais ricos, profundos e mesmo tene-brosos, inspirando-se na Mitologia, no Romantismo, no Existencialismo, naFenomenologia da Religião, etc. Até a Psicanálise, com sua “semântica de pro-fundidade”, dá que pensar...

4 – Princípio lógico-ontológico: a analogia do serAqui chegamos ao pressuposto filosófico mais importante do conheci-

mento racional de Deus, resumo dos pressupostos precedentes. É decisivopara o nosso tema: imanência e transcendência.

O conceito de ser é o mais vazio ou o mais pleno: segundo Hegel, é“nem mais nem menos do que nada”. Para Tomás de Aquino, é o conceito

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mais pleno: o ser é a perfeição fundamental. Ambos têm razão. No plano doexplícito, “ser” é o conceito mais pobre, pois explicitamente não diz se é realou possível, se é material ou espiritual, se é todo ou parte, se é vivo ou morto,etc.; implicitamente, porém, abrange tudo, pois tudo é ser, como sugere aexperiência transcendental e confirma o princípio da não-contradiçãoperformativa.

Se levo a sério a minha experiência, em toda a sua extensão e profundi-dade, devo dizer que há graus de ser: anorgânico, orgânico, espiritual, contin-gente, absoluto, etc. Para as Ciências objetivantes e neutras, fato é fato; nãohá mais fato ou menos fato. Na visão filosófica, posso crescer no ser,autosuperar-me, aproximar-me da perfeição infinita no ser.

Os graus de ser, em certo sentido, são quantitativos, o que se exprimepela idéia de participação – o finito participa do infinito. Mas, doutro lado,entre um grau menor e um grau maior há um salto qualitativo e mesmo umsalto substancial. É isto que se exprime pela analogia.

A analogia se refere ao conhecimento. Se a diferença de graus fossesomente quantitativa, estaríamos no conhecimento unívoco; se fosse somen-te qualitativa, estaríamos no conhecimento equívoco. O conhecimento análo-go une o quantitativo e o qualitativo.

Na base do conhecimento analógico está a analogia do ser. Os entes sãoanálogos. Aristóteles, no “Tratado das Categorias”, fala de coisas sinônimas,homônimas e parônimas. Coisas sinônimas têm o mesmo nome e a mesmaessência, por exemplo, “animal” é tanto o irracional como o racional, no mes-mo sentido de essência genérica. Coisas homônimas têm apenas o mesmonome, mas essência diferente, por exemplo, “cão”, dito do animal e da conste-lação. Coisas parônimas têm uma essência (e um nome) em parte coincidente,em parte diferente, por exemplo, “gramática” e “gramático”. Mas Aristótelesnão chegou ao conceito mais profundo de analogia, porque, segundo ele, en-tre o mundo e deus há uma ruptura total (chorismós).

2 IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA

Deus é transcendente e imanente ao mundo. É transcendente porque tempropriedades radicalmente contrapostas aos seres mundanos. Deus é o fun-

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damento do seu ser, é infinito, simples, imutável, único... causa primeira detudo quanto existe, é o criador de todas as coisas pela comunicação do ser.Mas também é imanente, porque entre quem comunica o ser e quem o recebe,entre causa e efeito, entendidos metafisicamente, deve haver uma íntima co-munhão do ser, até uma identidade, mas sem negar a diversidade radical. Dis-se S. Agostinho: “Espero que quem pensa espiritualmente já terá visto claroque nenhuma só natureza pode ser oposta a Deus” (De Fide et Symbolo 7; PL40, 185). E Tomás de Aquino escreveu: ”Enquanto a coisa tem ser, Deus temque estar presente nela (...) e certamente do modo mais íntimo” (SumaTheologica I q. 8 a.1).

Usando termos mais rigorosos, vamos colocar o nosso problema emtoda a sua agudeza: Deus é totalmente distinto do mundo e, por isto mesmo,é onipresente a este mundo. Deus não se distingue do mundo como uma coisase distingue da outra. Mas o que S. Agostinho entende por “pensar espiritual-mente”. Em todo caso, o pensamento humano dificilmente suporta a unidadedos contrários, a “coincidentia oppositorum”(na expressão de Nicolau de Cusa).Por isto, na história do pensamento, ou se acentua a transcendência ou aimanência. O deísmo e o panteísmo aparecem continuamente.

1 – Deísmo e panteísmoO deísmo foi defendido explicitamente por um grupo de iluministas ingle-

ses e franceses, nos séculos XVII e XVIII. Simplificando, esta é a concepção:Deus criou o mundo e depois se retirou. O que é negado é a Revelação divina(Bíblia), a Providência divina, a onipresença de Deus, enfim, a imanência. Deusé transcendente, e acabou; o mundo mesmo deve resolver os seus problemas.Deus é imaginado segundo o modelo dos entes mundanos, com a única dife-rença de ser o ente supremo. A transcendência é entendida, mais ou menos,como separação espacial.

Apesar das críticas (teólogos cristãos, Kant, Hegel e outros), esta repre-sentação ainda hoje está amplamente difundida; é a concepção vulgar, aceitatacitamente por muitos crentes. É o primeiro passo para o ateísmo, passo quemuitos não dão abertamente, por razões extra-filosóficas e extra-teológicas:insegurança psicológica, medo de decepcionar parentes e amigos, medo deperder o emprego (de professor, de pároco, etc.).

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O panteísmo é um erro mais filosófico. A realidade, na sua essência, deveformar uma unidade, e todo sistema filosófico é, duma forma ou doutra, ummonismo, de que o panteísmo é a expressão religiosa. O universo se identificacom Deus ou flui necessariamente dele. Deus deve ser impessoal. Um panteístaassumido é SPINOZA: Deus é a única substância absoluta e o mundo e osentes particulares são meras modificações.

O politeísmo (atualmente professado em várias correntes do Espiritis-mo) é uma mistura ambígua de deísmo e de panteísmo. Os deuses, no plural,dum lado, são entes supramundanos – elemento deísta. Doutro lado, neles semanifesta uma única realidade misteriosa – elemento panteísta.

2 – Pressupostos ontológicosComo pensar isto: um ente pode ser imanente e transcendente a outro,

se se leva a sério os conceitos “imanente” e “transcendente”? Para o nossoproblema, devemos radicalizar a pergunta: é possível pensar isto: quanto maisidêntico, tanto mais diferente? Parece ocorrer um delito flagrante contra oprincípio da não-contradição, regra de todo pensar lógico.

Como vimos acima, o pensamento humano se move em dois níveis: oabstrato ou unívoco e o ontológico ou analógico. Quando se pensa a unidadee a diversidade segundo o seu conceito abstrato, então elas se excluem. Ou éidêntico, ou é diferente. Quanto mais iguais são dois entes, menos diferentese vice-versa. Isto vale do conhecimento das coisas, coisista. Como os antigose os medievais tomavam, sem se dar plena conta, o conhecimento das coisasmateriais por modelo de todo conhecimento, não conseguiram resolver o pro-blema central da Ontologia, o problema do uno e do múltiplo. Mas no campoespiritual e intersubjetivo, unidade e diversidade se condicionam mutuamente. Veja-mos quatro pontos, que só vamos circunscrever, sem descrever e analisar.

1) O corpo próprio: Tenho um corpo e sou o meu corpo. O corpo éobjeto de conhecimento e faz parte do sujeito do conhecimen-to. É o elo de ligação entre o eu e o mundo, faz que eu seja ser-no-mundo. Vivo o meu corpo como unidade e, ao mesmo tem-po, como distinto do eu: é a mim que doem os pés, a cabeça...embora pés e cabeça sejam membros diferentes.

2) O conhecimento é identidade e diferença. Quando conheço uma

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árvore, torno-me árvore, mas sem mesclagem física. Pelo con-trário, quanto mais me uno ao objeto, tanto mais me diferen-cio dele. A identidade em ato supõe a diferença do sujeito emsi e do objeto em si. Aristóteles vislumbrava isto, ao dizer: “Aalma é, de alguma maneira, tudo”.

3) O amor é identidade e diferença. Quanto mais me dôo ao outro,procuro o seu bem e me identifico com ele, tanto mais descu-bro a minha identidade, diferente da identidade do outro. Iden-tidade não é homogeneidade; diferença não é heterogeneidade.A sabedoria da língua latina, distingue entre idem e ipse, entremesmidade e ipseidade. A união diferenciadora do amor não é umaidéia “poética”(no sentido, vulgarmente errado, de pura ficção),mas é uma realidade que todos podem experimentar e que al-guns pensadores tentaram descrever (Husserl, George H. Mead,Teilhard de Chardin e outros)2 .

4) Para a fé cristã a SS. Trindade é a identidade absoluta (natureza)dos absolutamente diferentes (pessoas) – oposição absolutados absolutamente idênticos. Este dogma cristão não teve in-fluência na Filosofia, porque se julgava ser assunto exclusivoda Revelação bíblica – com exceção de Nicolau de Cusa.

O mútuo condicionamento de unidade e diferença não é somente umassunto da experiência ou da fé, mas é também assunto do conhecimentofilosófico. Para isto basta manter firmes as duas intuições de Aristóteles: a) Oser é o comum a todas as coisas; b) o ser se diz de muitas maneiras. Os entesse identificam e se diferenciam no ser. Cada ente é bipolar; nenhum elemento sepode subordinar ao outro, pois se condicionam mutuamente.

A bipolaridade interna do ser dos entes cresce com o seu grau de ser.Quanto mais perfeito é um ente, tanto mais “participa” do que é comum atodos os entes; portanto, tanto mais se identifica com os outros, tanto mais é“imanente” em todos os outros. E, ao mesmo tempo, tanto mais é ele mesmode modo próprio, tanto mais se distingue dos outros e os “transcende” e é“transcendido” por eles.

2 A exposição mais completa desta temática encontra-se em Paul Ricoeur. O si-mesmo como um outro.Campinas: Papirus Editora, 1991.

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Mas é preciso distinguir. Há uma identidade que é uma perfeição: iden-tidade em virtude do ser comum; e uma identidade que é imperfeição: a iden-tidade por falta do modo individual de ser – ser mera repetição de outro.Correlativamente, há uma diferença que é uma perfeição: a diferença em virtu-de do modo individual de ser; e uma diferença que é uma imperfeição: por faltado ser comum. Para os antigos e os medievais, afora o dogma da SS. Trindade,a diferença, a multiplicidade sempre era considerada como imperfeição. O idealseria que tudo fosse idêntico – o monismo, de que Parmênides foi o maiordefensor.

3 – Imanência e transcendênciaDeus está imanente em tudo, até a identidade com aquilo que dele rece-

be o ser. A criação é a comunicação do ser: Deus comunica o seu ser, mas demodo “parcial” (fora da SS. Trindade); ao mesmo tempo, transcende da manei-ra mais perfeita tudo quanto existe por participação.

Mas há aqui dificuldades quase insuperáveis. Isto porque a tensão infi-nita e a unidade mais íntima são absolutamente singulares e únicas. A relaçãodos entes mundanos com deus não é algo posterior à sua existência já consti-tuída, mas é posta por Deus; é uma relação transcendental (omnens est relatum).

A identidade de Deus com a criatura significa que Deus, à sua maneiradivina, é criatura. A identidade da criatura com Deus significa que ela é divina,mas de modo limitado. O mundo tem uma transcendência face a Deus nestesentido: o ser do mundo, recebido de deus, é realmente o ser próprio do mun-do. Deus quando dá, dá mesmo.

Tudo isto pode ser interpretado de modo panteísta, se não se atende aoprincípio fundamental de que quanto maior é a unidade, tanto maior é a diver-sidade. Dependência de Deus e autonomia face a ele crescem na mesma medida.Portanto, nem panteísmo, nem deísmo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo que acabamos de dizer, de modo mais sugestivo do quediscursivo, podemos tirar duas conclusões.

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1 – O paradoxo fundamental e sua fecundidadeSegundo a concepção aqui proposta, todos os paradoxos da Filosofia

remetem a um paradoxo fundamental: Que no ser os entes coincidem e sediferenciam. E não posso separar os aspectos, como se os entes em partefossem idênticos e em parte diferentes. São totalmente idênticos e totalmentediferentes.

Deve-se acentuar com toda a energia: Isto não é pensável, se pensar éformar idéias claras e distintas, objetivas e unívocas. Mas não se pode tirar aconclusão de Habermas (1990): devemos desenvolver um “pensamento pós-metafísico”, porque a Metafísica, depois de dois e meio milênios, não conse-guiu resolver o seu problema central, o do uno e do múltiplo. O pensamentocategorial e unívoco não é o único nível da racionalidade. Aliás, o próprioHabermas afirma a necessidade de uma “razão mais ampla”, mais abrangente,que envolve a subjetividade, a ética, a pretensão da verdade, de correçãonormativa e de sinceridade. Eu acrescentaria: uma razão que procura dar con-ta da experiência humana em toda a sua profundidade. Se com isto a razão seaproxima da poesia e da Religião, que mal faz isto? Infelizmente, é esta a nossalimitação: o que se ganha na precisão, se perde na profundidade. Isto não éum convite para a preguiça intelectual. É preciso procurar o máximo de rigor,contanto que não seja às custas do conteúdo.

Se se aceita o paradoxo fundamental, então é possível dar uma respostarazoável a muitos problemas, que retornam contínua e teimosamente no cur-so da história. No plano filosófico: o problema do uno e do múltiplo, daimanência e transcendência; nos tempos modernos, a disputa autonomia-heteronomia, o conceito de intersubjetividade, a possibilidade da evoluçãocomo auto-superação e outros. No plano teológico: a compreensão da SS.Trindade, o conceito de criação; nos tempos modernos, a disputa razão natu-ral – “sola fide”, a relação entre liberdade e graça; atualmente a disputahorizontalismo do engajamento ético – verticalismo duma espiritualidade mís-tica, e outros, sem falar da controvérsia deísmo-panteísmo.

2 – Podemos falar do inefávelAqui há problemas muito sérios. Quem não os reconhece e continua

ensinando o catecismo para crianças, ou continua preso a certos manuais deTeologia Natural, está, sem o querer, fomentando o ateísmo. Mas também

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peca quem insiste tanto na inefabilidade de Deus, quem repete, tanto “sei quenão sei nada”, que o ouvinte ou leitor acaba dizendo: Se não sabemos nada deDeus, vai ver que Ele nem existe!

Todas as afirmações sobre Deus são falsas para quem somente conside-ra válida e confiável a linguagem objetiva e exata. O fundamento da linguagemsobre Deus, origem e fim último. Deste fato deriva o caráter dialético da lin-guagem sobre Deus. Tomás de Aquino fala duma “tríplice via”: da afirmação,da negação e da superação ou elevação.

Afirmação: De Deus posso predicar tudo que é positivo, que é valor ouperfeição, porque entre causa e efeito necessariamente há uma certa identida-de.

Negação: No discurso teológico devo excluir: a) Tudo que é um mal (p.ex. a cegueira); b) todas as perfeições que incluem essencialmente a finitude(p. ex. o corpo); c) a maneira finita como as perfeições, em si mesmas puras, serealizam no finito (p. ex. o nosso modo de ser, de conhecer, de amar).

Superação: Ao negar a forma finita da perfeição, esta se transforma des-de o mais íntimo. Cada predicado aplicado a Deus conserva, e ao mesmotempo, muda a sua significação originária, já que identidade e diferença não sepodem separar. Portanto, nem a univocidade da afirmação, nem a equivocidadeda negação, mas o salto dialético para a “síntese” da analogia. A negação nãoempurra ao indeterminado, mas desperta o conhecimento atemático da pleni-tude do ser.

Mas a linguagem especulativa da Filosofia e da Teologia é insuficiente.Ela deve ser entrecruzada com a linguagem simbólica, para que se interanimem.A metáfora é a analogia do poeta, a analogia é metáfora do filósofo e do teó-logo. Escrevi em outro lugar: “A Ontologia, empregada na Teologia, assenta napredicação de termos transcendentais: Deus é o ser subsistente, a verdade, obem, a inteligência infinita, etc. A metáfora assenta na predicação de significa-ções ‘que trazem consigo o seu conteúdo material’: ‘Deus é o meu rochedo’,‘o poder do seu braço’, ‘Eu sou o caminho’, .... São dois discursos diferentes,duas linguagens. Se a Teologia quer ser Ciência, deve usar conceitosespeculativos, que exprimem perfeições puras. De outro lado, se não quer serum discurso abstrato, alheio à experiência humana, deve debruçar-se incansa-velmente sobre a linguagem metafórica da Bíblia” (Rabuske, 1994).

Isto se justifica pela unidade interna do conhecimento dos sentidos, do

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entendimento e da razão. Mas ambas, a linguagem especulativa e a simbólica,só têm poder na medida em que se baseiam sobre e experiência; tratando-sede Deus, sobre a experiência transcendental.

REFERÊNCIAS

HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1990.

RABUSKE, Edivino. Filosofia da Linguagem e Religião. Porto Alegre: Edipucrs, 1994.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus Editora, 1991.

WEISSMAHR, Béla. Teologia Natural. Barcelona: Herder, 1986.

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A Estratégia Cartesiana nasMeditationes1

The Cartesian Strategy on the Meditationes

JUAN A. BONACCINI Doutor em Filosofia (UFRJ/Freiburg i. Br.), Professor do Departamento de Filosofia e Vice-Coordenador do

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRN.

RESUMO

O propósito do trabalho consiste em esclarecer minimamente a relação queexiste entre os aspectos históricos, teológicos e epistemológicos que norteiam o pro-jeto cartesiano de fundar a ciência na metafísica. Em primeiro lugar, apresenta-se umainterpretação histórica das razões que levam Descartes a encetar sua empresa a partirdo método da dúvida e da hipótese de um gênio maligno que me engana. A seguir, osprincipais passos da estratégia cartesiana são descritos e analisados. A tese defendidaé a de que Descartes procura a certeza da verdade do conhecimento a partir da hipó-tese de uma incerteza absoluta. Sugere-se que tomando como base a possibilidade doDemônio me enganar o tempo todo Descartes mostra a necessidade de uma verdadefundada ontologicamente em Deus (ordem do ser) mas justificada epistemologicamentea partir do Cogito (ordem do conhecer).

Palavras-chave: Descartes, metafísica, certeza.

1 Texto lido em Natal no Café Filosófico/II. O trabalho vai dedicado a Raul Landim, que me ensi-nou a ler Descartes, e certamente vai dizer que não aprendi o suficiente quando o ler.

Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.33-46

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ABSTRACT

The purpose of this work is to clarify minimally at least the relation between thehistorical, theological and epistemological aspects which guide the Cartesian projectof founding science on metaphysics. First, it is presented a historical interpretation ofthe motives that lead Descartes to conduct his undertaking from the method of doubtand from the hypothesis of a deceiving malignant Genius. Second, the main steps ofthe Cartesian strategy are described and analyzed. The thesis here defended is thatDescartes search for knowledge certainty from the hypothesis of an absolute uncertainty.It is suggested that, taking as foundation the possibility of the Demon deceive me allthe time, Descartes shows the necessity of a truth founded ontologically on God (theorder of being), but justified epistemologically on the Cogito (the order of knowing).

Key words: Descartes, metaphysics, certainty.

À GUISA DE INTRODUÇÃO

Muita gente conhece os textos de Descartes, pelo menos os mais lidos,o Discours de la Méthode, as Meditationes de prima philosophia, os Principia philosophiae,asRegulae ad directionem ingenii. Mas poucas vezes se atenta para o fato de que umhomem de ciência como Descartes esteja preocupado em erigir uma metafísicae fundamentá-la de modo último como a base necessária de todas as ciências.Ignora-se por que um cientista como Descartes crê ser imperioso demonstrara existência de Deus, a distinção essencial entre corpo (divisível) e a alma(indivisível) e a possibilidade real de um conhecimento certo e indubitável acercados corpos e suas relações. Dois problemas, relacionados entre si, são res-ponsáveis por essa preocupação de Descartes: a condenação e subseqüenteretratação de Galileu, que despertou o horror cartesiano perante o risco de sercondenado pela Inquisição e pela Ortodoxia da Igreja (Gaukroger, 1999, p.358-359), e o desafio cético, em voga depois da tradução de Sexto Empíricopor Henri Estienne e sua conhecida re-apropriação por Montaigne e Charron(Ricken, 1994, p. 9-10). Por um lado, Descartes precisa mostrar que não é umherege e que a ciência que está a construir é compatível com os dogmas daIgreja; mais ainda, que essa ciência deve ser fundada metafisicamente em tais dogmas2 .

2 De acordo com a conhecida distinção entre a ordem do conhecer e a ordem do ser, cabelembrar que é o Deus bom e veraz que é o fundamento de todo conhecer na ordem do ser, muitoembora isto precise ser demonstrado partindo de um princípio indubitável - eu sou, eu existo -, imune ao desafio cético, na ordem do conhecer, num procedimento mais ou menos análogo ao dageometria, onde se demonstram passo a passo teoremas a partir de axiomas evidentes.

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Com isso ele atinge tanto a ortodoxia tradicional que renega e persegue a novaciência (por ser incompatível com os dogmas), como as várias formas defideísmo que se utilizam do arsenal cético, ora para atacar a revolução cientí-fica, ora para atacar a Reforma, ora para defendê-la3 . Por outro, Descartesprecisa refutar os céticos, neopirrônicos ou não, que defendem a impossibili-dade do conhecimento indubitável na ciência humana4 .

Assim, do lado fideísta, ao erguer a tese de que nada pode ser conheci-do, porque não pode ser demonstrado com certeza, e por isso a revelação é aúnica certeza que podemos aceitar, o desafio cartesiano é duplo: primeiro,mostrar com argumentos racionais que podemos conhecer com certeza, e se-gundo que esta certeza não só não é incompatível com os dogmas da revela-ção, mas ainda se funda racionalmente sobre alguns deles (por exemplo, aexistência de um criador perfeito, do livre arbítrio no homem, da alma imaterial,etc.). Face ao outro lado que Descartes enfrenta, trata-se de utilizar e inclusiveaprimorar as armas dos céticos. Trata-se de enfrentá-los e vencê-los na arenade sua própria suspeição. O famoso método da dúvida funciona como o fiocondutor através do qual Descartes conduz o leitor da incerteza à certeza daverdade, quer este seja cético acerca da possibilidade de um conhecimento(metafísico ou matemático) indubitável e infalível na esfera humana, quer sejacético acerca do alcance do conhecimento sensível dos corpos físicos e desuas relações entre si.

SOBRE A ESTRATÉGIA CARTESIANA

Por isso o ponto de partida somente pode ser uma dúvida que abarquea falta de certeza tanto do conhecimento sensível quanto do racional, a qualse concretiza na hipótese de uma ignorância e uma incerteza absolutas, grau zero decerteza e conhecimento, plasmada na suposição de um gênio maligno que meengana o tempo todo (Primeira Meditação, § 12). A passagem da suspensão dojuízo acerca de crenças sobre a existência e as propriedades dos objetos denossas idéias sensíveis e sobre a evidência das naturezas simples que são

3 Fideísmo, num sentido geral, consiste numa postura filosófica presente em autores renascentistase pós-renascentistas que se caracteriza grosso modo pela negação ou limitação dos poderesda razão em detrimento da revelação, da fé ou da simples crença em certas verdades. Sobreisso veja-se Popkin, 2000, pp. 19ss. Cf. Rosenfield, 1996, pp. 44ss.

4 Ibidem, pp. 271ss, 301ss.

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objeto das matemáticas (através do argumento do sonho e da hipótese doDeus enganador, respectivamente), para a certeza absoluta acerca da existên-cia de um Deus que não nos engana e valida nossas crenças na evidênciainfalível das matemáticas e na existência dos corpos e das suas propriedadesfora das nossas idéias (bem como na existência de uma alma diferente denosso corpo), ocorre por ocasião de uma hipótese extremamente sugestiva.Esta tem por função fazer com que eu me lembre, para não incorrer em erro, de que nãodevo confiar cegamente nos sentidos (visto que eles não me permitem determinar seestou acordado ou dormindo quando penso que vejo coisas fora de mim), nemna razão (porque se Deus me enganasse 2 mais 2 poderia não ser igual a 4; emesmo que eu não acreditasse em Deus, deveria admitir que minha naturezadeve-se a uma ou mais causas menos perfeitas do que Deus seria, se Ele exis-tisse, e nesse caso seria assaz provável que me enganasse, pois quanto menosperfeita fosse a causa da minha existência, maior seria a possibilidade de queeu me enganasse!). A hipótese serve fundamentalmente como uma estratégiapara conquistar algum conhecimento, se por ventura isto for possível, ou aomenos para que tome ciência da minha absoluta ignorância, entregando ospontos ao ceticismo: a idéia é que partindo da hipótese da incerteza absoluta (namedida em que existiria não um Deus, mas o Diabo, a saber, um malin génieresponsável pela minha existência e pelo meu modo falível de ser, o qual fariauso de todo o seu poder e de toda a sua indústria para que eu me enganasse,mesmo nas coisas que acredito serem mais indubitáveis e evidentes), talvez eupossa conquistar alguma certeza: basta para tanto que pelo menos algo possa re-sistir ao teste da dúvida em que o demônio me faz afundar. Basta que eu possaexperimentar algo acerca do qual o gênio maldoso não possa me enganar,mesmo utilizando toda a sua indústria e todo seu poder. Se isso for possível,terei uma primeira certeza inabalável, como que a pedra fundamental de umpossível edifício de conhecimentos.

Agora bem, geralmente se admite que a preocupação de Descartes nãoé tanto pôr em dúvida o poder da razão como reafirmá-lo, e que como bomracionalista só está preocupado em questionar o conhecimento sensível5 . Ascoisas não são bem assim, porque nesse caso não se explicaria por que Des-cartes não parou de duvidar no momento em que as naturezas simples resis-tem ao argumento do sonho, que justamente por isso não atinge a evidênciadas matemáticas. É verdade que o modelo ideal de conhecimento científico e

5 Frankfurt, pp. 61ss. Apud Plínio J. Smith, 2000, pp. 114-115, quem, como nós, também parecesustentar que Descartes questiona não só o conhecimento sensível, mas também o racional.

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de certeza que Descartes tem em mente é racional, e que é por excelência oconhecimento matemático. E é também verdade que a certeza do conheci-mento sensível se funda metafisicamente em Deus, mas epistemologicamentena geometria, não sendo, portanto, tão certo quanto o racional. Todavia, seDescartes chega a questionar o critério epistêmico da evidência matemática, ejustamente através de uma opinião acerca da onipotência divina (e de nossafalibilidade finita), é porque põe também em dúvida o conhecimento racional6 .E por quê? Por que Descartes, que é um homem de ciência, um físico e ummatemático, duvidaria do poder da razão? A resposta não pode ser simples. Épreciso compreender o contexto da discussão para entender a eficácia e olugar das alegações cartesianas.

Num sentido geral, se Descartes leva a sério o desafio cético, pode dizer-se grosso modo que deve seguir à risca sua estratégia de vencer os céticos comas próprias armas. Se os céticos questionam o poder da razão tanto quanto opoder dos sentidos, para poder demonstrar a possibilidade de um conhecimen-to racional é preciso refutar o argumento cético contra a possibilidade de umconhecimento racional. Para refutá-la, porém, é preciso apresentá-la, saber qualo seu ponto alto e qual o seu ponto fraco. Assim, Descartes reconstrói o argu-mento cético e finge defendê-lo para depois poder refutá-lo. Mas aí é que está oquid: por que reconstruí-lo tal como o reconstrói na Primeira Meditação? Por queduvidar do poder da razão humana a partir de uma dúvida sobre a evidência dasnaturezas simples que são objetos das ciências de coisas simples como a geo-metria e a aritmética? Eis em todo caso uma boa questão.

A resposta tem a ver com algo apontado no início: Descartes precisademonstrar que a sua ciência é a de um bom cristão; que ainda que concordeem parte com a nova ciência em ascenso (copêrnico-galileana) não se trata deuma heresia. Duvidar do poder da razão, de um lado, implica reconhecer coma Igreja (ou admitir reconhecer em princípio, ex hypothesis) que o poder da razãohumana não é ilimitado, que ela é falível; que ela no fim de contas não podedispensar o auxílio divino. Que a matemática não veio substituir a Providência!Mas, curiosamente, Descartes faz isto, de início, com um argumento muitoforte, que retira da própria Igreja, e que reenvia uma objeção aos teólogos docírculo de Mersenne: se Descartes duvida do poder da razão, pondo em ques-

6 A única coisa que ele confessa não poder colocar em questão são os primeiros princípios, asaber, as noções comuns como o princípio de identidade ou o de que do nada nada se produz,por exemplo, uma vez que ninguém poderia colocá-las em questão sem incorrer em absurdo, eportanto o próprio ceticismo deve admiti-las para poder duvidar.

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tão a evidência matemática, o caso é que somente faz isso apelando para umaconseqüência direta de um atributo divino. Se Deus tudo pode, o que meimpede de pensar que ele possa estar a me enganar? Com isso, se bem quereconstrua a seu modo uma dúvida acerca do conhecimento racional, comoos céticos, à medida que se apóia numa formulação teológica opta por dar-lheuma vertente fideísta: ao duvidar da certeza das matemáticas põe em suspenso aum só tempo o conhecimento racional, como o ceticismo tradicional, e concorda com a Igrejasobre o caráter falível da nossa razão, fingindo opor-se à moderna tese da matematização douniverso. O seu fim, porém, é justamente a fundamentação metafísica do proje-to moderno desta matematização, a justificação de sua física e de sua geome-tria (Arango, 1995, pp. 47ss; Cottingham, 1989, p. 114).

A estratégia tem em vista, como foi dito, demonstrar contra os céticosque existe um mundo externo de corpos extensos em movimento governadospor leis matemáticas, e que existe uma ciência humana capaz de conhecê-loscom sucesso; e contra a Igreja que se utiliza do arsenal cético para negar eatacar a ciência moderna, Descartes argumenta que uma ciência destes cor-pos, ainda que fundada na razão, não é uma heresia; porque a razão retira asua garantia de legitimidade precisamente do auxilio divino. Como?

DESCARTES ENTRE DEUS E O DIABO

A resposta a esta questão exigiria uma análise detalhada das Meditações,e de outros aspectos da obra matemática e científica de Descartes. Aqui, po-rém, não se pode realizar tamanha tarefa. O que eu então posso fazer éesquematizar com grandes pinceladas o quadro da estratégia argumentativade Descartes em seu caminho para a certeza, ou seja, explicar os passos quevão da posição metodológica da incerteza na aplicação do método da dúvidaaté a demonstração de tudo que tinha sido posto em dúvida a partir da primei-ra certeza conquistada por resistir à dúvida. É o que faço brevemente a seguir,para concluir mostrando como Descartes finge metodologicamente sucumbir à in-certeza demoníaca para chegar à ciência através de Deus.

Após culminar a Primeira Meditação, Descartes não deixou mais nadaem pé. Duvidou do conhecimento racional pondo em questão a minha evidên-cia de que 2 mais 2 é igual a 4, se Deus me engana, ou se sou falível pornatureza, e duvidou do conhecimento sensível pondo em questão o estatutoontológico dos corpos e de seus atributos através da constatação de que não

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tenho como saber se sonho ou durmo quando os vejo. A hipótese do gêniomaligno reforçou a dúvida fazendo com que eu me lembre da dubitabilidade detodas as minhas crenças, a fim de não confundir sua mera probabilidade comuma certeza inabalável (I, §11). Na Segunda Meditação, Descartes começa entãopor relembrar tudo que pôs em dúvida e refletir se há algo que seja certo. Aípercebe que para duvidar, pensa, e que para que o gênio maligno o engane, épreciso que pense. Mas como para pensar é preciso existir, é preciso que sejaindubitável que ele exista: se ele não existisse, o gênio não poderia enganá-lo. Afinal,como poderia enganar alguém que sequer é algo ou alguém, que não existe?Impossível até para o gênio. Logo, eu sou, eu existo, diz Descartes nas Meditações.Ou: Penso, logo existo, segundo a famosa e incompreendida frase do Discurso doMétodo. Com isso conquista uma certeza inabalável, porque é indubitável, masque ainda não é uma verdade, porque ainda não se demonstrou que a verdade é possí-vel, nem que pode ser identificada à certeza, uma vez que a hipótese do gêniomaligno pôs em questão toda certeza e, portanto, toda vez que eu parar de pensarem que se penso é preciso que exista, e que se me engano penso, e por isso se o gêniome engana é porque existo, toda vez que - por exemplo - eu me esquecer disso e meentregar ao devaneio de qualquer pensamento, como que tenho calor ou frio, que émeio-dia, que minha perna dói ou que está chovendo, o gênio maligno ainda podeestar a me enganar e eu não tenho como saber se o que penso é certo ou não, se os objetos dasminhas idéias existem fora delas ou não etc. Portanto, essa primeira certeza é muitotênue, tanto que alguns comentadores a chamam de “persuasão”, mas delaDescartes pode não obstante extrair algumas conclusões (cfe. Landim, 1994).

A primeira é que observando minha única certeza eu posso refletir sobresuas propriedades essenciais e aventurar uma análise de minha essência, umaclassificação do que pertence a meu espírito e do que a ele não pertence.Posto que no Cogito - Eu sou, eu existo - conquistei a certeza de minha existên-cia, mas ainda não a certeza sobre minha essência, “eu, que sou, ainda não seio que sou”; não até descobrir, depois, analisando o conteúdo da certeza doCogito, que sou uma coisa pensante, uma coisa que pensa, i.e. que afirma,que nega, que duvida, etc. Daí porque não é tão fácil conhecer o meu corpocomo o meu espírito: porque imediatamente sei com clareza e distinção quaisos atributos da minha essência pensante, mas não acontece isso com o meucorpo, mergulhado na incerteza desde o argumento do sonho, o qual foi refor-çado com a hipótese do gênio maligno que sempre me engana.

A segunda é que observando minha única certeza eu posso refletir sobresuas propriedades essenciais e aventurar uma definição provisória das condi-

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ções de toda certeza. Daí posso extrair uma regra geral. Essa regra consistirá naclareza e na distinção que eu observo em minha certeza de que se o gênio me enganaeu existo. Contudo, como minha certeza só vale enquanto nela penso atual-mente, ela não pode ser considerada verdadeira. Assim a regra dela extraídasó será validada ao provar que a certeza do Cogito é verdadeira, e não umamera certeza subjetiva (i. é, que só vale enquanto a penso atualmente). Assim,para que essa regra geral da certeza se torne uma regra geral da verdade épreciso demonstrar a realidade objetiva das idéias claras e distintas, quer di-zer, demonstrar que os objetos aos quais elas se referem existem verdadeira-mente. O que redunda em eliminar a hipótese do gênio maligno que me enga-na e rui os alicerces objetivos de minhas idéias7 .

De modo que o problema maior que Descartes enfrentará a partir daTerceira Meditação é o de eliminar a hipótese da incerteza absoluta, a saber, ahipótese do gênio maligno; e o único modo de fazê-lo será demonstrando quenão existe; que bem antes existe um Deus, Ser Perfeito, que por isso mesmonão pode me enganar, porque o erro e o engano maculariam sua perfeição. NaQuarta, Descartes irá então demonstrar que esse Deus não pode ser causa demeus erros nem de meus enganos, os quais são antes provocados pela minhafinitude, a saber, pelo conflito gerado entre a ambição infinita de minha vonta-de de conhecer e o limite cognitivo do meu entendimento, fazendo com queem meus juízos afirme (ou negue) mais do que posso conhecer.

A Terceira Meditação, porém, mediante uma análise das representaçõestinha chegado ao fato de que somente proposições ou juízos são passíveis deverdade ou falsidade, e portanto, se o gênio maligno me engana só poderáfazê-lo toda vez que afirmo (ou nego) uma proposição como verdadeira oufalsa, e não enquanto tenho uma mera idéia, uma volição, um sentimento, ouimagino qualquer coisa. Dentre os juízos, Descartes mostra que aqueles nos

7 Daqui parte a famosa objeção acerca do círculo cartesiano. O problema surge porque eu extraioa regra geral da análise do Cogito (da proposição: eu sou, eu existo), mas como este não é umaverdade, pois só é certo enquanto penso nele, a própria regra geral não pode ser verdadeira, ainda,a não ser momentaneamente, como o Cogito, e só poderá ser validada ao refutar a hipótese dogênio maligno e provar a existência de um Deus bom e veraz. Mas eis que o problema aparece,porque todos os passos que me levam a esta prova de Deus e de sua garantia da verdade sãofeitos com base na suposição da validade da regra geral. Numa palavra: provo que Deus existecom base na regra geral de que só é verdadeiro o que é claro e distinto, mas a demonstração deque só é verdadeiro o que é claro e distinto se funda na demonstração de que Deus existe, e ébom e veraz! Sobre isso veja-se: Landim, 1994, pp. 21ss; Rodis-Lewis, s/d, pp. 47-51; Cottingham,1989, pp. 97ss., e 1995, pp. 34-5; Beyssade, 1997. Vide também Andrade, 2001.

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quais parece que me engano com mais facilidade são os que se referem eparecem corresponder às coisas que penso como objetos extramentais deminhas idéias sensíveis. De fato, conforme a Primeira Meditação, o argumentodo sonho não me permite decidir com certeza se existem os objetos das mi-nhas idéias sensíveis para além das mesmas (já quanto à incerteza das idéiasmatemáticas, a sua recuperação, prévia demonstração da existência de umDeus Bom e Veraz nas Meditações Terceira e Quinta, só ocorrerá nesta última).Mas a demonstração da existência de Deus na primeira parte da prova daTerceira Meditação diz respeito à prova da objetividade. Pela primeira vez, ten-do demonstrado que a única causa da minha idéia de Deus como um ser infini-to, dotado de infinitas perfeições, só pode ser a existência objetiva (extramental)de Deus, dado que eu, finito, não poderia ser a causa dessa idéia (em virtudedo princípio segundo o qual o efeito não pode conter mais realidade do que acausa); pela primeira vez, assim, fica demonstrado o valor objetivo de umaidéia clara e distinta - da idéia clara e distinta do infinito.

A partir daí estão dadas as condições para que a regra de certeza deduzidado Cogito e enunciada no início da Terceira Meditação se torne, agora sim, aregra geral da verdade. E as evidências que antes valiam apenas no presente,agora valerão também no passado, quando apenas me lembrar delas, e suacerteza se estenderá ao futuro, posto que o que é verdadeiro permanece igual.A oscilação (III, §4) que se dava entre a certeza de uma evidência clara e distin-ta, que era posta em questão ao deixar de ser atual e passar à memória, e acerteza que eu experimentava quando pensava que o gênio maligno me enga-na, será finalmente suprimida. Se não existe o gênio do mal, mas um Deus, eeste não me engana, tudo que valia apenas enquanto eu pensava atualmente,a saber a clareza e distinção, agora valerá para sempre.

No entanto, as idéias sensíveis de corpos e suas propriedades não seapresentam com tanta clareza e distinção. E a segunda parte da prova daexistência de Deus na Terceira Meditação8 (que para alguns é uma outra pro-va)9 , só vem reforçar a primeira parte: se Deus não fosse causa da minha idéiaDele, o problema não seria apenas não poder explicar o fato da minha idéia deinfinito (malgrado a objeção de Hobbes!), o problema é ter de admitir umaoutra causa que não Ele, a saber, uma causa finita e imperfeita para minha

8 Vide a Carta a Mesland de 2 de maio de 1644. Apud Beyssade, 1991, pp. 87-88. Cf. Rodis-Lewis,op. cit., p. 39.

9 Por exemplo, para os editores que fizeram as notas explicativas da tradução brasileira da Medi-tações (Coleção Os Pensadores, 2ªedição, São Paulo, Abril, 1979, pp.pp. 99ss), que aqui usamos.

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existência. Assim as duas partes da prova da existência de Deus nesta Medita-ção nada resolvem além da preparação para a validação da regra da verdade,uma vez que eliminam a hipótese de um Deus que pudesse me enganar, asaber, de um gênio maligno, demoníaco, que teria me criado para se divertircom meus erros10 . Mas com isso ainda nada se resolve da dúvida acerca daexistência dos corpos extensos e de suas propriedades enquanto objetos deminhas idéias sensíveis, nem tampouco acerca da dúvida que recai sobre asentidades matemáticas, ambas objeto das Meditações Quinta e Sexta.

Todavia, se a Quarta Meditação explica que o erro não se deve a Deus,como foi anunciado acima, mas ao homem, o que é uma conseqüência dademonstração da existência de Deus, ela acaba por levar a cabo de maneiraexplícita aquilo que a Meditação Terceira fizera de modo implícito, a saber, avalidação da regra geral da verdade: porque Deus não é responsável pelo erro,mas nós, e porque ele é o modelo de toda clareza e de toda distinção, é que aregra da certeza se torna de fato regra de verdade.

Toda vez que retenho minha vontade nos limites de meuconhecimento, de tal modo que ela não formule um juízosenão a respeito das coisas que lhe são clara e distinta-mente representadas pelo entendimento, não pode ocor-rer que eu me engane; porque toda concepção clara edistinta (...) deve ter necessariamente Deus como seuAutor. (Quarta Meditação, § 16)

Feito isso é que Descartes se propõe no início da Quinta Meditação apli-

10 Cumpre notar que na Primeira Meditação a Hipótese de um Deus Enganador e de um GênioMaligno não podem ser identificadas. A primeira serve para questionar a evidência atual dasmatemáticas perante um homem que crê em Deus, mas é insuficiente para convencer um ateu que sedeus é todo-poderoso ele pode me enganar! (Daí a necessidade do argumento da falibilidade a partir dacausa imperfeita de minha natureza no § 10 da Primeira Meditação). Com a hipótese do gêniomaligno tudo é posto em questão (inclusive a memória - Segunda Meditação, §3), pois elereforça a dúvida acerca da existência de corpos sensíveis e suas propriedades para além dosmeus pensamentos ao mesmo tempo em que generaliza a dúvida para todos os referentes denossos pensamentos, colocando em dúvida inclusive a evidências e a certeza das matemáticas,tanto para um crente como para um ateu. Na Terceira Meditação, porém, Descartes pareceidentificar ambas as hipóteses, tanto no começo (§§ 4-5) como no fim (§§ 39-40), talvez pelofato de que a prova da existência de um Deus Bom e Veraz (que só se completa nos §§30-41)refute de uma vez ambas as hipóteses, a de um Deus Enganador e a de um Demônio (o malingénie); ou talvez porque um Deus Enganador só pode ser um demônio.

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car a regra recentemente conquistada para “desembaraçar-se de todas as dúvi-das” e ver “se não é possível conhecer nada de certo no tocante às coisas mate-riais” (Quinta Meditação, § 1º). Só que antes disso, diz, é preciso validar aquelasidéias que se encontram no nosso pensamento, notadamente as idéias mate-máticas. Examinando as idéias claras e distintas de essências (naturezas simples,na Primeira Meditação), Descartes chega a examinar e validar a verdade dasmatemáticas. Este é talvez o lugar mais importante da metafísica cartesiana,porque é aqui que vai ser demonstrada a priori a objetividade de uma ciênciamatemática acerca dos corpos, a saber, independentemente da existência destes.

Se o gênio maligno não me engana, porque não existe, e se existe umDeus que garante a verdade do meu critério de certeza (enquanto clareza edistinção), então não posso duvidar das verdades matemáticas quando pensonelas, porque elas me aparecem com uma clareza e uma distinçãoinquestionáveis. Além disso, enquanto idéias claras e distintas que são verda-deiras, elas devem corresponder a algo objetivo. Dessa lógica é que parte a prova daexistência de Deus nesta Meditação: se toda idéia clara e distinta não é ape-nas certa, mas também verdadeira, porque corresponde a algo objetivo, entãoposso derivar disso uma outra prova da existência de Deus. A Sua idéia clara edistinta me obriga a reconhecer que “tudo quanto reconheço pertencer clara edistintamente a esta coisa pertence-lhe de fato” (Quinta Meditação, §7), e,portanto, que existe. Porque a existência de Deus apresenta-se ao meu espíri-to, ao refletir sobre sua essência, como algo tão certo quanto a essência dasverdades matemáticas. E, mais ainda, porque a essência da primeira garante naordem do ser (não na do conhecer) essência das segundas11 .

Esta prova, fundada na reflexão sobre a essência de Deus, garante aconstância do resultado: essências são eternas, e assim a esta prova nos ofe-rece a certeza de que Deus existe eternamente como nosso modelo de certezae garante da verdade12 . “E assim reconheço muito claramente que a certeza e

11 “Pelo menos penso ter descoberto como se pode demonstrar verdades metafísicas de umamaneira mais evidente que as demonstrações da Geometria” (Carta a Mersenne de 15 de abrilde 1630), apud Rodis-Lewis, op. cit., p. 45. Cf. Rosenfield, op. cit., pp. 204ss.

12 Isto, de um certo ponto de vista, poderia ser formulado da seguinte maneira: na ordem do conhe-cimento, a regra geral da verdade é validada explicitamente na Quarta Meditação (ainda que ascondições para tanto sejam garantidas no fim da Terceira); porém, até a Meditação Quintaprovar que Deus é a fonte das Verdades Eternas (a partir da clareza e distinção das essências matemá-ticas) só posso dizer que minhas evidências atuais e passadas são validadas por serem claras edistintas, portanto que a regra garante não só a atualidade mas também a memória, mas semainda poder garantir a constância da nossa crença em evidências claras e distintas no futuro(que é garantido a partir da prova ontológica).

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a verdade de toda ciência dependem tão-só do conhecimento do verdadeiroDeus” (Quinta Meditação, §15)13 . Desse modo, esta Meditação abre o cami-nho para que se recupere a certeza acerca “das coisas que pertencem à natu-reza corpórea, na medida em que ela pode servir de objeto às demonstraçõesdos geômetras...” (Ibid.). A Sexta Meditação, assim, vai poder encerrar o círcu-lo do retorno e revalidação de todos os conhecimentos que tinham sido pos-tos em dúvida na Primeira.

As coisas sensíveis pensadas como correlato extramental de nossas idéiasde corpos e de suas propriedades vão ser demonstradas como existentes apartir do fato de que são possíveis enquanto objeto das demonstrações geo-métricas, o conteúdo das matemáticas puras (Sexta Meditação, §1º). A análiseda imaginação e sua distinção essencial do intelecto traçam o caminho peloqual a existência das coisas materiais será provada primeiro como provável,mas no fim como algo acerca do qual não temos razão para duvidar, conside-rando agora que Deus não nos engana. A virtude de imaginar, dirá Descartes,parece depender não do meu espírito, mas do meu corpo; e assim as coisasque eu me represento como corpos parece que as represento enquanto sereferem a algo em mim, ao meu corpo. Isso leva Descartes a uma análise retro-ativa da sensação, uma recapitulação de tudo que tinha sido posto em dúvidareferente aos sentidos. Essa análise leva-o a admitir que, se Deus não meengana, os corpos existem e provocam minhas sensações (Sexta Meditação,§§20-21).

A partir da distinção entre imaginação e intelecto, recém conquistada,Descartes retoma o problema da distinção entre o corpo e a alma, que tinhasido garantida parcialmente com a conquista da terceira certeza no fim daSegunda Meditação. Agora vai ser encarado para demonstrar que tenho ra-zões para acreditar que minha alma é totalmente diferente do meu corpo (oque permite deduzir que ela não se decompõe). Se, não obstante, a naturezanos ensina que temos um corpo, temos que admitir que a nossa alma está defato intimamente ligada a ele (Sexta Meditação, §§17-24).

Se, contudo, disso não se segue que minhas percepções sensíveis dei-xem de ser confusas, e possam por isso mesmo não corresponder em princí-pio exatamente àquilo que os objetos são, pelo menos é certo que possuem

13 Daqui arranca o problema de saber como é que um ateu pode ser um bom geômetra. A respos-ta de Descartes é mais ou menos a seguinte: ele pode aprender Geometria e fazer demonstra-ções corretas, mas sem saber por quê.

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todas as propriedades extensas, i.e. geométricas, que eu compreendo com cla-reza e distinção (Sexta Meditação, §20)14 . Assim algumas das essências mate-máticas recuperadas na meditação anterior (extensão, figura, etc.) vão coinci-dir com as essências (suas propriedades imutáveis) das coisas sensíveis. Ecom isso temos o princípio da fundamentação metafísica da física cartesiana.Porque assim é possível uma ciência das coisas sensíveis, na medida em quepossuem propriedades matemáticas e qualidades quantificáveis.

Assim chega a hora de rejeitar todas as dúvidas passadas que aindaestavam pendentes. O problema do erro, já tratado na Meditação Quarta, re-aparece agora do ponto de vista de nossos juízos errôneos sobre os objetosdo mundo sensível, que deverão ser explicados de modo a recuperar o queneles é confiável.

Certas sensações e sentimentos que nos aparecem como percepçõesconfusas, e nas quais nos enganamos ou podemos incorrer em erro, dão-sedesse modo justamente por dependerem da obscura união que existe de fatoentre o meu corpo e a minha alma. E isto porque mesmo que Deus seja bom enão me engane, a minha natureza é falível. Porém, a minha falibilidade deixauma margem de sucesso suficiente para a conservação do meu corpo; e paraque minha propensão ao erro não comprometa a integridade de Deus. Se ossentidos me enganam, não é senão poucas vezes; e, no mais, não somentenão me enganam, diz Descartes, como também me mostram corpos que meuintelecto pode conhecer. E quando me enganam, posso usar o meu intelecto eminha memória para corrigi-los.

De igual maneira, agora posso compreender que não durmo e que o sononão é igual à vigília, posto que a memória não pode juntar nossos sonhos e dar-lhes a seqüência coerente que possui a nossa vigília. Se eu tiver dúvidas, podereiligar as sensações das coisas à seqüência de minha vida e verificar se há coerênciaentre ambas, a fim de não me enganar. E se Deus não me engana, dirá entãoDescartes, não sou nisso enganado. Pois ainda que esteja sujeito a falhar, dada aminha finitude e a confusão de algumas de minhas idéias, possuo outro tantomaior de idéias claras e distintas e de ferramentas para afastar-me dos erros eenganos a que por vezes somos como que arrastados (Sexta Meditação, §§40-42).

Assim encerra-se a estratégia cartesiana de fundamentação metafísicada certeza dos diversos tipos de conhecimento questionados pelo ceticismo epela desconfiança dos teólogos. Se ela funciona ou não, é um problema que

14 Cf. Descartes, Princípios de Filosofia, II 4-5.

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não podemos solucionar aqui. Que ela é originalíssima, arguta e digna de refle-xão, entretanto, creio, não nos há de ficar esquecido.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Edson. O problema da circularidade na fundamentação da ciênciadas Meditações Metafísicas de Descartes. Princípios, Natal, 9 (2001), pp. 18-36.

BEYSSADE, Jean-Marie. Sobre o círculo cartesiano. Analytica 2, 1 (1997), pp. 11-36.

BEYSSADE Michelle. Descartes. Lisboa: Edições 70, 1991

COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. Lisboa: Edições 70, 1989.

DESCARTES, René. Meditações. 2. ed. São Paulo: Abril, 1979. Coleção Os Pensa-dores.

FRANKFURT, Harry. Demons, Dreamers and Madmen. Indianapolis: New York: Bobs-Merrill, 1970.

GAUKROGER, Stephen Descartes: uma biografia intelectual. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999.

LANDIM, Raul. Pode o Cogito ser posto em questão? Discurso, São Paulo, 24 (1994),pp. 9-30.

RICKEN, Friedo. Antike Skeptiker. Muenchen: Beck, 1994.

SMITH, Plínio J. Ceticismo filosófico. Curitiba: EDUFPR, 2000.

POPKIN, Richard. História do ceticismo de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francis-co. Alves, 2000.

ROSENFIELD, Denis. Descartes e as peripécias da razão. São Paulo: Iluminuras, 1996.

RODIS-LEWIS, Geneviève. Descartes e o Racionalismo. Porto: Rés, s/d.

Endereço/Address:Prof. Dr. Juan A. Bonaccini

Universidade Federal do Rio Grande do NortePrograma de Pós-Graduação em Filosofia

Av. Senador Salgado Filho, s/nLagoa Nova

59078-970 – Natal/ RNE-mail: [email protected]

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Hermenêutica do Ponto deVista Jurídico e Teológico:um Exercício de IntegraçãoHermeneutics, Legal and Theological: an Exercise inIntegration

JOHN WARWICK MONTGOMERYPh.D. (Chicago), LL.D. (Cardiff), D.Théol. (Strasbourg), Advogado nas ordens dos Estados CA, WA, VA, DC eSuprema Corte dos USA, e Paris, teólogo, Professor emérito de Direito e Humanidades, Universidade de Luton,

Inglaterra, Professor de Apologética e Direito Trinity College e Theological Seminary, Indiana, U.S.A.

MANFRED ZEUCH *Dr. em Teologia (Universidade Marc Bloch, Strassbourg II, França) e Professor nos Cursos de Teologia e

Mestrado de Direito da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

PAULO AUGUSTO SEIFERT *Mestre em Filosofia (PUCRS/UFRGS) e Professor nos Cursos de Filosofia e de Direito da ULBRA.

RESUMO

No texto, o autor examina o dilema hermenêutico contemporâneo em jurispru-dência tomando como pano de fundo a hermenêutica teológica. A relação histórica

* Tradutores do artigo para o português; inédito nesta língua, o artigo foi apresentado em inglêsna 31a. Conferência Anual da Association of Law Teachers (Associação dos Professores deDireito), ocorrida na Court School of Law, Inglaterra, abril de 1996.

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estreita entre a interpretação de textos destas duas áreas torna tal comparação nãosomente interessante, mas também potencialmente valiosa para chegar-se a uma filo-sofia mais satisfatória para a interpretação de matérias jurídicas.

Palavras-chave: hermenêutica jurídica, hermenêutica teológica, filosofia dodireito.

ABSTRACT

In the present essay, the contemporary hermeneutic dilemma in jurisprudencewill be examined against the background of theological hermeneutics. The closehistorical relationship between the interpretation of texts in these two realms makessuch comparison not only interesting but also potentially valuable for arriving at amore satisfactory philosophy for the interpretation of legal materials.

Key words: legal hermeneutics, theological hermeneutics, philosophy of law.

“É útil conhecermos algo dos usos das diferentes nações”, opinava Des-cartes, “a fim de formarmos melhor juízo com respeitos aos nossos próprios”(Descartes, 1987, p. 6). O mesmo certamente é verdade quanto a disciplinasacadêmicas. Áreas alheias à nossa própria podem trazer considerável contri-buição para a resdolução de problemas que parecem ser insolúveis vistas daperspectiva interna da própria área.

No presente ensaio o dilema hermenêutico contemporâneo em jurispru-dência será examinado em relação ao pano de fundo da hermenêutica teológi-ca. A relação histórica estreita entre a interpretação de textos destas duasáreas1 torna tal comparação não somente interessante, mas também potenci-almente valiosa para chegar-se a uma filosofia mais satisfatória para a inter-pretação de matérias jurídicas.

O PANO DE FUNDO JURÍDICO

Desde cedo na história do Direito foram desenvolvidos cânones para acorreta construção de documentos legais, e permanecem conosco até hoje. O

1 Conforme a breve discussão acerca de “interpretação teológica” em Greenawalt, 1992, pp. 83- 85; e, em geral, Berman, 1983, especialmente o capítulo 4 (“Fontes teológicas da tradiçãojurídica ocidental”), pp. 165ss. Uma interessante referência, mais antiga, é Ekelöf, 1958.

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Concise Dictionary of Law, de Oxford, lista as seis “principais regras de interpreta-ção estatutária”, quais sejam:

(1) Um ato deve ser construído como um todo, demaneira a evitar inconsistências internas.(2) A palavras que contenham razoavelmente somen-te um sentido dê-selhes este sentido independente-mente do resultado. É a chamada regra literal.(3) A palavras ordinárias dê-se-lhes os seus sentidosordinários e às técnicas seus sentidos técnicos, a me-nos que resulte em absurdos. É a chamada regra deouro.(4) Quando um ato objetiva reparar um defeito na lei,toda ambigüidade deve ser resolvida de maneira a fa-vorecer este objetivo. (A regra do prejuízo).(5) A regra do ejusdem generis (da mesma natureza): quan-do uma lista de ítens específicos pertencentes à mes-ma classe é seguida por palavras gerais (como em “ga-tos, cães e outros animais”), as palavras gerais deveser tratadas como confinadas a outros ítens da mesmaclasse (neste exemplo, a outros animais domésticos).(6) A regra do expressio unius est exclusio alterius (a inclu-são de um é a exclusão do outro): quando uma listade ítens específicos não é seguida de palavras geraisdeve ser tomada como exaustiva. Por exemplo, “finsde semana e feriados públicos” exclui dias úteis.2

Na lei dos contratos a parol evidence rule [regra de evidência] aplica amesma filosofia hermenêutica: textos integrados não podem ser acrescen-tados a, subtraídos de ou modificados por admissão de evidência extrínsecade acordos orais ou escritos anteriores ou contemporâneos; evidênciaextrínseca é admissível a fim de esclarecer ou explicar o texto integrado,mas nunca quando contradisser o texto.3 A constução de um título ouescritura segue a mesma abordagem: “presume-se as partes de haveremtencionado dizer o que de fato disseram, de maneira que suas palavras

2 Martin, 1987, p. 189. Para uma discussão mais completa desses canônes, veja, inter alia : Broom,1924, cap. 8 (“The Interpretation of Deeds and Written Instruments”), pp. 342-444; Maxwell,1953; e Cross, 1987.

3 Cf. Uniform Commercial Code, sec. 2-202.

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devem ser construídas assim como estão colocadas”.4 E no âmbito maisalto da interpretação constitucional americana a mesma filosofia prevale-ce; assim o Chief Justice John Marshall em Gibbons v. Ogden:

Como homens cujas intenções requerem não haja qual-quer segredo geralmente empregam as palavras que maisdiretamente e adequadamente expressam as idéias quequerem veicular, os inspirados patriotas que compuseramnossa Constituição e as pessoas que a adotaram devemser entendidas como tendo usado as palavras em seu sen-tido natural e como tendo pretendido dizer o que disse-ram. Se da imperfeição da linguagem humana devesse ha-ver sérias dúvidas sobre a extensão de dado poder, é regrabem estabelecida de que os objetos para os quais foi dado,especialmente quando tais objetivos estão expressos nopróprio instrumento, deveriam Ter grande influência sobrea construção... Não conhecemos qualquer regra para cons-truir a extensão de tais poderes a não ser as que são dadaspela linguagem do instrumento que os confere, relaciona-dos aos propósitos para os quais foram conferidos.5

Com respeito à interpretação de documentos legais em geral, Lord Bacon(The Advancement of Learning, II. 20. viii.) resumiu num aforismo:

Non est interpretatio, sed divinatio, quae recedit a litera.Interpretação que parte da letra do texto não é interpre-tação mas adivinhação.Cum receditur a litera, judex transit in legislatorem.Quando o juiz parte da letra, torna-se legislador.

Modernamente, Sir Roland Burrows com admirável clareza expressa omesmo foco:

4 Odgers, 1956, p. 21. A passagem citada oferece um desafio a e refutação da assim chamada“falácia intencional” como praticada usualmente na interpretação bílbica contemporânea; vejaMontgomery (ed.), 1974, pp. 30-31, 41.

5 Gibbons v. Ogden, 9 Wheaton 187-89 (1824).

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A corte deve cuidar para que a evidência não seja usadapara completar um documento que a parte deixou incom-pleto ou para contradizer o que ela disse, ou para substi-tuir algum palavreado ao que está sendo efetivamenteusado, ou para suscitar dúvidas, que de outra forma nãoexistiriam quanto à intenção. Quando a evidência é admi-tida em conexão com a interpretação, ela sempre é restri-ta àquela que ajudará a Corte a encontrar o significadodas palavras usadas, e a dar, assim, efeito à intenção ne-las expressa. (Burrows, 1946, p. 13)

Agora, é verdade que entre pensadores contemporâneos das áreasda teoria política e jurídica (filosofia do direito) a abordagem hermenêuticaclássica descrita aqui não tem feito uninanimidade. A mais radical das filo-sofias jurídicas de hoje, o movimento do Critical Legal Studies (Estudos Jurí-dicos Críticos = CLS), que atingiu seu ápice nos anos 1970 com os traba-lhos de Roberto Unger e Duncan Kennedy, argumenta, à modadesconstrutivista, contra praticamente todos os instrumentos jurídicos;levando as dúvidas do Realismo Jurídico Americano sobre a objetividadede operações legais virtualmente ao ponto de solipsismo existencialista, oCLS considera o intérprete jurídico como todo-importante, e o texto comoum infinitamente maleável vale-tudo instrumentalizado para ativismo polí-tico.6 Mas o CLS revelou-se definitivamente incapaz de aplicação práticano campo jurídico uma vez que sua posição fica aquém da própria RegraJurídica (ver especialmente Harris, 1987). O impacto do CLS sobre a ativi-dade jurídica do dia-a-dia tem sido virtualmente nulo.

O Professor Ronald Dworkin, sucessor de H.L.A. Hart na cadeira de juris-prudência de Oxford, que mantém esta interpretação, em Direito e em outrasáreas, está preocupado especialmente com propósito: “mas os propósitos emjogo não são fundamentalmente os de algum autor, mas os do intérprete. Porassim dizer, interpretação construtiva é colocar propósito sobre um objeto ouprática” (Dworkin, 1986, p. 52). À primeira vista parecece que Dworkin estádisposto a sacrificar o texto em favor do intérprete, mas ele insiste que “inter-pretação construtiva” não significa que “um intérprete pode fazer de uma práxisou obra de arte tudo o que quiser fazer” (ibidem). O texto ou o objeto de

6 Conforme Unger, 1986; Kelman, 1987; Fitzpatrick and Alan Hunt (eds.), 1987; e Douzinas eoutros, 1993, especialmente o capítulo 3: “Hermes versus Hercules : Hermeneutics and AestheticsAs Legal Imperialism”, pp. 55 - 73, 274.

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interpretação é um residual dado que limita o que o inter´rete efetivamentepode fazer como ele.

Além disso, Dworkin está tão infeliz com o Realismo Jurídico Americanoe tão horrorizado com o Critical Legal Studies – e com razão, em nossa opinião,- que ele desenvolveu sua tese “de uma só resposta correta”: entende ele que,em casos decisivos, juízes podem de fato chegar a uma única resposta correta,baseados objetivamente na tradição legal existente.7 Tal ponto de vista, em-bora possa ser incompatível com o conceito dworkiniano da “interpretaçãoconstrutiva”, mostra entretanto de fato ele é um objetivista que se recusa asacrificar a integridade da tradição legal documentária aos caprichos subjeti-vos do intérprete.

Os mais influentes teóricos contemporâneos da hermenêutica jurídicasem dúvida são os da ala da “intenção original” – pensadores que sustentam(como o Chief Justice John Marshall) que os textos devem ser interpretados noseu sentido original, e não modificados para encaixarem-se na agenda do in-térprete. Robert Bork, por exemplo, admite que é difícil fazer uma análise psi-cológica dos pais fundadores a fim de descobrir o que realmente “tenciona-ram” ao construirem a Constituição Americana (um dilema trazido à baila porconstitucionalistas liberais tais como Laurence Tribe), e prefere destarte a ex-pressão “compreensão original”: “Não é do que os autores do Bill of Rightstinham em suas mentes que estamos realmente falando, mas sim o que aspessoas que votaram por ele entenderam estarem votando”.8

Se, no entanto, tentando determinar a “intenção original” do autor indo-se além ou acima de seu texto, traz grandes problemas (Sibelius, por exemplo,desesperou-se ao tentar explicar o verdadeiro intento e significado de seuFinlândia!, o mesmo dilema atinge ouvintes ou leitores originais do texto: tam-bém eles podem ter entendido errado o texto – por uma série de fatores pes-soais, sociais ou culturais.

Assim, parece que a análise acadêmica mais sofisticada de interpreta-ção jurídica parece focalizar na abordagem de Wittgenstein-Popper approach:a analogia do sapato e do pé (a interpretação é como o sapato e o texto é

7 Ronald Dworkin, em Law, Morality and Society : Essays in Honour of H. L. A. Hart, ed. Hacker andRaz (Oxford : Oxford University Press, 1977), pp. 58-83.

8 Robert Bork, entrevista em “Bork v. Tribe on Natural Law, the Ninth Amendment, the Role of theCourt,” Life, Fall Special, 1991, pp. 96-99. Para sua posição em detalhe, veja Bork, 1971 e 1990;e Bronner, 1989.

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como o pé: procura-se a interpretação que melhor se adapte ao texto, permi-tindo ao próprio texto determinar isto). Aqui, a “intenção” ou “compreensão”é determinada pelo próprio texto.9

Tal abordagem sustenta completamente o princípio de ao texto deve serpermitido interpretar-se a si mesmo – no sentido de que quando interpretaçõesdiferentes ou contraditórias do texto são oferecidas, cada uma delas será trazidaa exame do próprio texto para verificar-se qual delas a ele melhor se adapta. Poresta razão as interpretações funcionam como teorias científicas, que são arbi-tradas pelos fatos que elas procuram explicar: em última análise, os fatos deci-dem o valor de nossas tentativas em compreendê-los (Montgomery, 1970).

No modelo Wittgenstein-Popper, o intérprete traz para dentro do textoos seus preconceitos (a prioris, presuposições, tendencies), mas é também otexto que os julga. E o significado do texto não há de ser estabelecido porconsiderações extrínsecas, pois tal resultaria em um regresso infinito. ( Se otexto ou fato dado não possui nenhum significado inerente e for preciso ape-lar para além dele a fim de obter sua verdadeira significação, então aquilo devetambém ser verdadeiro dos fatos extrínsecos aos quais se apela. “Insetosmaiores têm em suas costas insetos menores para mordê-los/ E insetos meno-res têm insetos ainda menores/ e assim por diante – ad infinitum.”) É claro,considerações extrínsecas podem ser usadas para clarificar ambigüidades, masnunca para contradizer o significado claro de um texto.10

9 Como exemplos da contribuição da análise wittgensteiniana para a hermenêutica jurídica, em-bora centrados mais nas Investigações Filosóficas do que no Tratado Lógico-Filosófico, vejaEvans, 1989, pp. 16-19, 25-26, 29-30, 188.

10 O princípio correspondente da hermenêutica bíblica clássica é que materiais extra-bíblicos podemser usados ministerialmente, mas nunca magisterialmente, na interpretação do texto sagrado.Na cena jurídica inglesa, prevalece, em alguns ambientes que a recente decisão da Câmara dosLordes em Pepper (Inspector of Taxes) v. Hart and Others (Times Law Report, 30 November1992) corrói o princípio hermenêutico fundamental de que estatutots devem interpretar a simesmoss, já que ela permite o registro do debate parlamentar (“Hansard”) auxiliar em suainterpretação. Contudo, Pepper claramente não remove a regra clássica, pois a decisão expres-samente faz “uma modificação limitada à regra existente, sujeita a salvaguardas estritas”. Estassão: (1) o uso de Hansard é permitido somente “coo um auxílio ao interpretar legislação que [é]ambígua ou obscura ou cujo significado literal conduz ao absurdo”, e somente “onde tal mate-rial claramente revela o dano visado” pela legislação; e (2) mesmo em tais situações, é altamen-te improvável que qualquer uso possa legitamamente ser feito de um pronunciamento parla-mentar “outro que aquele do ministro ou outro promotor de um projeto de lei”. Dessa maneira,Pepper é nada mais que uma glossa à regra de ouro e à regra do dano dos canônes clássicos dahermenêutica jurídica (veja regras 3 e 4 na lista correspondente à nota 3, supra).

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HERMENÊUTICA TEOLÓGICA

Paralelamente às regras clássicas para a construção de documentoslegais encontra-se a tradicional abordagem “histórico-gramatical” à interpre-tação da Bíblia. Como apresentada em tratados clássicos tais como o deMilton S. Terry, Hermenêutica Bíblica, esta filosofia interpretativa sustenta serpossível conhecer objetivamente o texto escriturístico, que tem ele um signi-ficado claro, perspícuo, e que este siginificado pode ser descoberto se épermitido ao texto interpretar-se a si próprio, sem a adulteração pelos pre-conceitos pessoais do intérprete. O professor Eugene F. A. Klug resume talabordagem, que dominou o campo da interpretação escriturística pelo me-nos desde a Reforma11 até o surgimento do criticismo bíblico moderno, daseguinte maneira:

É um princípio fundamental assumir que há um sentidointencionado, literal, próprio para cada passagem na Es-critura (‘sensus literalis unus est’); também que a Escritu-ra é seu melhor intérprete (‘Scriptura Scripturaminterpretat’ ou ‘Scriptua sui ipsius interpres’). ... O senti-do literal, dessa maneira, vem primeiro e cada intérpretedeve evitar que aquilo que está sendo comunicado sejaobscurecido por suas próprias idéias, a fim de que o sig-nificado não se perca. 12

Em contraste diamétrico – e análogo à abordagem crítica aos estudoslegais no reino da jurisprudência - está o assim chamado “círculo hermenêutico”de Rudolf Bultmann e os seguidores contemporâneos do formgeschichtlicheMethode e filosofias hiper-críticas. Aqui, o texto e o intérprete são postosjunto de forma que uma compreensão objetiva do texto, “isenta de pressupo-sições”, está for a de questão: o intérprete sempre traz ao texto sua própriacompreensão, e a interpretação é produto tanto do texto sobre o intérprete

11 O esquema interpretativo “quadrúplo”, medieval, baseia-se em um fundamento histórico-gramático: os níveis exegéticos figurativo, moral e analógico tinham seu ponto de partida nosignificado literal do texto. Portanto, as diferenças efetivas entre a hermenêutica “católica” e a“protestante” não devem obscurecer seu fundamento comum.

12 Eugene F. A. Klug, “‘Sensus Literalis’ — das Wort in den Wörtern, eine hermeneutische Meditationvom Verstehen der Bibel,” 12/5 Evangelium (December, 1985), 165-75.

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quanto do intérprete sobre o texto. 13 E isto será verdadeiro não somente doatual intérprete vis-à-vis ao texto, mas também do escritor ou editor originaldo mesmo: nem os eventos descritos no texto nem a descrição que deleresulta podem em momento algum representar, em um sentido absoluta, asverdade objetiva. Um texto é ultimamente inseparável de seu Sitz in Leben nosentido mais lato deste termo.

O filósofo Roy J. Howard propõe “três aspectos importantes dahermenêutica contemporânea”: (1) “Não há tal coisa como um saber sem pres-suposições.” (2) “Assim como não há uma postura uniforme a partir da qualcomeçar a pensar, assim não há um termo uniforme no qual parar. Ahermenêutica está desejosa de repensar a lógica dialética de Hegel, sem noentanto aceitar sua conclusão de uma mente absoluta.” (3) O reconhecimentohermenêutico de que a intencionalidade está presente e é operativa e efetivade ambos os lados ... e de uma forma dialética. Tal efetividade pode residir nacondição social do pesquisador (cfe. Habermas e Winch) ou na lógica própriade sua atividade de pesquisa (cfe. von Wright), ou na escolha e maneira dasquestões que ele propõe à experiência (cfe. Gadamer).14

Quais têm sido as consequências no âmbito teológico desta abordagemsubjetivística do “círculo hermenêutico”? Nos estudos veterotestamentários,tentativas de interpretar o texto usando literature extrínseca do Oriente Próxi-mo e as assim chamadas “formas literárias” resultaram na fragmentação doslivros bíblicos e na alegação de autoria múltipla e edição e redação não-histó-ricas. A mesma abordagem em estudos ugaríticos e greco-romanos produziuum caos equivalente: meu professor de clássicos na Universidade Cornell, nadécada de 50, observou estranhamente que após 65 anos deste tipo de coisana erudição Homérica, “nós finalmente abandonamos tal abordagem e con-cluímos que, se Homero não escreveu a Odisséia, foi ela escrita por alguém como mesmo nome que viveu pela mesma época”. A tentativa de produzir uma“Bíblia policromática”, para mostrar em cores as diversas fontes bíblicassubjacentes falhou completamente: os higher críticos não consequiam con-cordar entre si quando uma suposta fonte desaparecia e outra surgia.

13 Conforme o original ensaio de Bultmann, “Is Exegesis Without Presuppositions Possible?,”conveniently available in English translation in Kurt Mueller-Vollmer (ed.), The Hermeneutics Reader: Texts of the German Tradition from the Enlightenment to the Present (Oxford : Basil Blackwell, 1986), pp.241-48. Há tradução brasileira em Rudolf Bultmann: Crer e Compreender, Artigos Selecionados. Ed.Walter Altmann. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1987, pp. 223-229.

14 Howard, 1982, pp. 165-66. Sobre as variedades do alto criticismo contemporâneo, veja McKenzieand Haynes, 1993.

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Na pesquisa neotestamentária, os esforços em atribuir palavras e açõesde Jesus a diversas “comunidades de fé” da igreja primitiva resultaram da mes-ma forma em fracasso subjetivo. Os “Seminários sobre Jesus” de Robert Funk,nos Estados Unidos, acabaram se reduzindo a votações, com bolas coloridas,acerca da genuinidade dos dittos de Jesus contidos nos Evangelhos. Ironica-mente, o valor histórico objetivo destes materiais permanece tão sólido comosempre: o problema está na hermenêutica aplicada a eles. A. N. Sherwin-White, eminente especialista em Lei Romana, argumentou energicamente con-tra os críticos:

É surpreendente como, enquanto os historiadores Greco-romanos se tornaram mais confiantes, o estudo das narra-tivas do Evangelho, no século XX, iniciando com materialnão menos promissor, teve no devenvolvimento docriticismo da forma reviravolta tão deprimente que os seusexpoentes mais importantes aparentemente mantêm – tan-to quanto um amador pode entender o assunto – que oCristo histórico é incognoscível e que a história de sua mis-são não pode ser escrita. Isto parece curioso quando com-parado com o caso do mais conhecido contemporâneo deCristo, que como Cristo é uma personalidade bem docu-mentada – Tibério César. A história de seu reinado é co-nhecida a partir de quarto fonts: os anais de Tacitus e abiografia de Suetonius, escritos cerca de oitenta ou noven-ta anos mais tarde, o breve relato contemporâneo deVelleius Paterculus, e a história de Cassius Dio, do terceiroséculo. Estas fontes discordam entre si da forma mais in-tensa possível, tanto em assuntos maiores de ação oumotivação política, quanto em detalhes específicos sobreeventos menores. Qualquer um admitiria que Tacitus é amelhor das fonts, mas, apesar disso, nenhum historiadormoderno sério aceitaria, pelo valor de face, a maioria dasafirmações de Tacitus sobre os motivos de Tiberius. Mas,isto não invalida a crença de que o material de Tácito podeser usado para se escrever uma história de Tibério. 15

15 Sherwin-White, 1963, p. 187. Sobre os problemas acadêmicos relativos ao criticismo da formae ao criticismo da redação, ver as referências em Warwick Montgomery, Letter to the Editor, 3/12 Ecclesiastical Law Journal 45-46 (January, 1993), e Montgomery, 1979.

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LIÇÕES HERMENÊUTICAS A SEREM

APRENDIDAS

A hermenêutica teológica está hoje retornando à interpretação clássica,“histórico-gramatical”, baseada no princípio de que se deve permitir aos tex-tos que interpretem a si mesmos (veja, por exemplo, Maier, 1994 e Thiselton,1992). Tentativas de dar à postura subjetiva do intérprete uma funçaõ normativena tarefa hermenêutica provaram-se catastróficas, pois deixaram o texto àmercê das pressuposições do intérprete e do Sitz im Leben.

O que pode a hermenêutica legal aprender de sua contraparte teológi-ca? Para concluir, vamos brevemente sugerir algumas lições.

(1) Mesmo se épocas passadas – especialmente, a racionalística, ilumi-nada, liberal mente occidental dos séculos 17 e 18 – erraram ao negligenciar adimensão subjetiva, nosso século (o qual é chamado, pela série filosóficaMentor, de “A época da análise”) moveu-se em direção ao extremo oposto. Aobjetividade do mundo externo e do significado textual deve ser reconhecida.Mesmo o princípio de indeterminação, de Heisenberg, não poderia ter sidodescoberto sem a possibilidade de uma investigação objetiva do mundo exter-no no qual o princípio está imerso! Confundir o significado de um texto com apostura subjetiva de seu intérprete irá certamente destruir o empreendimentohermenêutico. Este o erro do comediante Robert Benchley, que dispendia ashoras de laboratório em seu Curso de Biologia desenhando a imagem de seupróprio eyelash tal como aparecia no campo microscópico – ou o do astrôno-mo italiano Schiaparelli, cujos “canais” marcianos podem talvez ter sido osveios de seu próprio olho projetados em suas lentes telescópicas (Montgomery,1970).

(2) Na batalha entre, por um lado, os realistas legais e H.L.A. Hart, e, poroutro, Ronald Dworking, o ultimo está certamente com razão quando argu-mento em favor da “única resposta correta” na interpretação de textos legais ena tomada de decisão judicial. Princípios, não políticas, é o caminho para umajurisprudência sound, na tomada de decisões judicial. Princípios, não políti-cas, é o caminho paras uma jurisprudência sólida, e o teste Wittgenstein-Popperde “adequado” significa que, entre interpretações ou juízos diversos e contra-ditórios, uma resposta fundamentada harmonizará melhor com o texto ou atradição textual, e, dessa maneira, fornecerá a interpretação que em um senti-do bastante próprio pode-se dizer ter sido criada pelo póprio texto.

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(3) Subjetividade sempre permanecerá um fato descritivo na interpreta-ção. Mas jamais deve ser elevada a um status normativo. Na verdade, é umsinal de maturidade que aprendamos em geral a subordinar nossos gostos eaversões subjetivas à natureza do mundo externo tal como de fato é. Textos –no âmbito legal e em outros – devem poder dizer o que eles desejam, e nãoserem forçados a dizer o que nós queremos que digam. Como disseaforisticamente o intérprete bíblico clássico J.A. Bengel: “Te totum applica adtextum : rem totam applica ad te.” 16

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16 J.A. Bengel, Preface to his manual edition of the Greek New Testament (1734). Tradução: “Apli-ca-te inteiramente ao texto: [então] aplica por inteiro o assunto a ti mesmo.”

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Endereço/ Address:Universidade Luterana do Brasil

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A Ação Cristã: da Honra ePrivilégio em Ser Diáconoao Prazer da AventuraDestinalChristian Action: from the Honor andPrivilege of Being a Deacon to the Pleasureof the Destiny Adventure

ARNO VORPAGEL SCHEUNEMANNAssistente Social, Doutor em Teologia: Aconselhamento; Professor de graduação e pós-graduação em ServiçoSocial na ULBRA; Professor convidado no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, São Leopoldo, RS; Presi-

dente da Associação Brasileira de Aconselhamento – ABAC.

RESUMO

Este artigo resgata a honra e o privilégio presentes na ação cristã em detrimentoda humilhação, dor, sofrimento e obrigação historicamente associadas à mesma. Des-taca importantes transformações sócio-culturais que caracterizam a intensidade edinamicidade relacional e afetiva atuais. Afirma a necessidade de uma ação cristã res-paldada na honra e privilégio diaconais que, sensível às transformações sócio-cultu-rais, possibilite enraizamento dinâmico, prazer e aventura tanto aos agentes quantoaos “usuários” deste servir.

Palavras-chave: ação cristã, complementaridade, nomadismo, enraizamentodinâmico, aventura destinal.

Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.61-74

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ABSTRACT

This article rescues the honor and privilege present in Christian action asopposed to the humiliation, pain, suffering and obligation historically associatedwith diakonia. It detaches important sociocultural transformations thatcharacterize the current intensive and dynamic relationship and affectivity. Itaffirms the need of a Christian action backed in the deacon honor and privilegethat, sensitive to the sociocultural transformations, make possible a dynamicrootedness, pleasure and adventures to the agents as well as to the “ users “ ofthis serving.

Key words: christian action, complementarity, nomadism, dynamic rootedness,destiny adventure.

1 INTRODUÇÃO

O termo bíblico que melhor expressa a ação dos cristãos individual-mente e como igreja é diaconia. Historicamente associou-se dor, sofri-mento e obrigação à mesma. Neste artigo, pretendo resgatar a honra eprivilégio implicados nesta diaconia. Além deste resgate, sinalizo trans-formações sócio-culturais atuais que demandam uma diaconia sensível àintensidade e dinamicidade afetivas e relacionais atuais.

Considerando a presença da igreja na sociedade, defendo que de-veríamos falar em AÇÃO CRISTÃ, não Serviço Social, nem AssistênciaSocial, uma vez que as leis de regulamentação da Assistência Social e doServiço Social não o permitem. Além disso, não deveríamos falar em As-sistência Cristã pois Ação Cristã aproxima-se mais da Diaconia bíblicaque uma eventual Assistência. Esta ação cristã não pode ser resumida àatividades, atos ou ativismos, mas concebida como processo prático re-sultante dum determinado modo de ser e viver, cuja efetivação transfor-ma o jeito de ser e viver vigentes.

Abordo este tema em três partes: Natureza da Ação Cristã; Demandassócio-culturais; Desafios para a ação cristã.

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A AÇÃO CRISTÃ: DA HONRA E PRIVILÉGIO EM SER DIÁCONO AO PRAZER DA AVENTURA DESTINAL

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2 NATUREZA DA AÇÃO CRISTÃ

A ação mais comum das comunidades cristãs tem sido e é doar ali-mentos, roupas, remédios, dinheiro, etc. Esta ação, por um lado, pode trans-formar-se em algo prazeroso, estimulador para a fé cristã. Por outro, podetransformar-se num fardo, num peso que leva a diferentes queixas. As quei-xas mais comuns decorrentes deste processo costumam ser: as pessoasnão valorizam o que a gente faz; estas pessoas não querem nada-com-nada; vendem adiante o que a gente dá; não tem como traze-las para aigreja; não dá para liberar nossos espaços (pavilhão, lar da congregação,escola) porque eles não sabem cuidar; fazer algo com eles em nossas ins-talações resultará em despesas porque vidros serão quebrados, cadeiras emesas serão estragadas.

Queixas como as acima costumam ser proporcionais ao processo delimitação da Ação Cristã ao Assistencialismo. Isto é, quanto maisassistencialismo (satisfazer apenas a necessidade mais gritante das deman-das sociais – não têm comida, dá-se cesta básica; não têm o que vestir,dão-se roupas e calçados) tanto maior a tendência às queixas.

Doações todo mundo faz. Em si isso não passa de assistência huma-nitária. Não precisamos ser cristãos para realizarmos a assistência humani-tária. O fato de sermos cristãos não garante qualidade para a nossa açãohumanitária. Realizar uma assistência humanitária é dever de qualquer ci-dadão em nossa sociedade. Pelo nosso contrato social (expresso na Cons-tituição e Legislação vigentes) somos responsáveis pela vida e direitos unsdos outros como família, como sociedade, e como Estado. Também aqui, ofato de sermos cristãos ou não, não faz diferença porque, tanto cristãosquanto não-cristãos, estão debaixo do mesmo contrato social. Realizandoa assistência humanitária não estamos fazendo nada além de cumprir umdever social nosso.

Bom, temos que nos fazer algumas perguntas. Tem alguma coisa quediferencia a assistência humanitária da ação cristã? Ação Cristã é um ele-mento que compõe a natureza da Igreja cristã ou uma tarefa que a Igrejapode ou não realizar? Em outras palavras, é possível ser Igreja cristã mes-mo não realizando a ação cristã? Elementos para sinalizar possíveis res-postas podem ser encontrados na diaconia neotestamentária.

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O termo diaconiaNão dá para negar que no NT “diaconia” , na maioria das vezes, significa

“servir à mesa”. ( ver Collins, pp. 46ss) Denota, não um servir sob obediência,mas um servir como relação com o semelhante. Trata-se duma ação que pres-supõe um “tu”. No entanto, não um “tu” com quem eu livremente me relacionoda forma como quero, mas um “tu” a quem me subordino a mim mesmocomo um diakonon (Wilhelm Brandt, apud Collins, 1990, p. 48). O problemaque vejo é associar isso a uma espécie de “moral da humilhação” ou ao“dolorismo”, tão visíveis no contexto brasileiro.

É importante notarmos que no mundo grego “diáconos”, palavra usadano Novo Testamento para identificar a pessoa que serve, indicava tambémuma pessoa enviada pelo rei (ou senhor) para intermediar eventuais brigasou desentendimentos de diferente natureza. “Diáconos” era o enviado e o medi-ador do rei na realização da sua obra e na defesa de seus interesses.1 Eraalguém que executava uma ação em nome de alguém que o enviou. Logo, ser“diáconos” significava, prioritariamente, usufruir do privilégio de ser en-viado, o embaixador do rei ou do senhor e, ao mesmo tempo, executarseu poder e sua autoridade. Portanto, cargo de liderança e honra. (verCollins, 1990, pp. 169ss)

Sensível a estes detalhes, servir, no Novo Testamento, passa a ter muitomais a ver com “envio”, “poder”, “autoridade” do Servo Jesus Cristo que comqualquer humilhação ou levantar de pó que possamos imaginar. Diácono lem-bra mais um enviado do Senhor Jesus que está ávido e feliz por usufruir oprivilégio de ser um realizador do poder e da autoridade deste Senhor,porque, no batismo, foi chamado para tal. Quer dizer, ação cristã não é sim-ples ação nossa, mas realização do poder de Deus através de nós e da nossaação. Poder este que a tudo criou e mantém. Vejam a dimensão da ação cristã,que tende a parecer tão pesada, fraca, pequena e sem sentido!!!

Entendo que qualquer igreja que crê e confessa a justificação do pe-cador nos moldes da Teologia da Cruz de Lutero não poderá negligenci-ar esta dimensão da honra e do privilégio no servir, sob pena de elamesma transformar-se num peso a mais sob o ombro dos seus fiéis,

1 É significativo que na Septuaginta “diaconia” aparece só numa situação: identificando um envi-ado do rei que realiza a obra deste rei. Nas demais situações o equivalente hebraico (ebed –servo) é traduzido por douleuo, latreuo e leiturgeo.

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A AÇÃO CRISTÃ: DA HONRA E PRIVILÉGIO EM SER DIÁCONO AO PRAZER DA AVENTURA DESTINAL

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pois procurará estimular com a força da lei, negligenciando a graça da jus-tiça sob a cruz.

O exemplo diaconal de JesusA afirmação de Jesus, após o lava-pés, “Porque eu vos dei o exemplo,

para que, como eu vos fiz, façais vós também” (João 13.15) sinaliza outroelemento que compõe a natureza da ação cristã. Exemplo, aqui, vem da palavragrega “hipodeigma” (Hipodeiyma). Hipodeiyma é formado por “hipó”, que, com acusativo,significa sob, debaixo de, e “deigma”, que significa exemplo. Jesus está dizendo: “vosdei o exemplo que está sobre vocês”. Qual é o exemplo de Cristo? Ir aoencontro, salvar as pessoas, independente do que elas tenham feito, simplesmen-te porque Deus as ama e quer acolhe-las. Quer dizer, Jesus inaugurou uma novaforma de estender a vida que Deus disponibiliza para suas criaturas: ir ao encon-tro das pessoas não baseado no que elas são, têm ou merecem, mas mo-vido pelo amor de Deus. Amor este que leva Paulo a afirmar:

Eu poderia falar todas as línguas que são faladas na terrae até no céu, mas, se não tivesse amor, as minhas pala-vras seriam como o som de um gongo, ou como o baru-lho de um sino. Poderia ter o dom de anunciar mensa-gens de Deus, ter todo o conhecimento, entender todosos segredos e ter tanta fé, que até poderia tirar as monta-nhas do lugar, mas, se não tivesse amor, eu não seria nada.Poderia dar tudo o que eu tenho e até mesmo entregar omeu corpo para ser queimado, mas, se eu não tivesseamor, isso não me adiantaria nada. (...) agora existem trêscoisas: a fé, a esperança e o amor. Porém a maior delas éo amor (1 Coríntios 13. 1-3,13).

Jesus nos colocou debaixo deste amor, como se fosse um grande guar-da-chuva. Quem está debaixo deste amor “naturalmente” está habilitado paraacolher as pessoas sem olhar para o que elas têm, são ou fazem que as tornedignas ou merecedoras da nossa ação. “...façais vós também” não é imperati-vo ético de obrigação, mas um dever da natureza: sob o meu exemplo, deveisfazer isso”. Não é por nada que neste mesmo contexto Jesus afirma que ele é aVideira e que os ramos que estão nele “produzirão muito fruto” (João 15.5). As-sim como é natural que o ramo unido à videira produza fruto, é natural que

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quem está sob o exemplo de Cristo naturalmente acolha sem procurar algo quefaça as pessoas merecedoras da sua ação. É mais uma questão de constataçãoque de obrigação. Logo, exemplo aqui não é algo para ser imitado ou cum-prido, mas é algo no qual estamos organicamente incluídos

Assim, o exemplo sob o qual Cristo nos coloca não é uma “moral” a serseguida ou obrigação a ser realizada, mas uma “forma” a ser vivenciada. Nistoreside a honra: somos diáconos de alguém com quem estamos organicamenteunidos. Tão unidos que já agora estamos assentados com Cristo nos luga-res celestiais (Efésios 2.6). Ou, tão unidos que estamos dentro dele: “no ba-tismo... fomos revestidos por Cristo” (Gálatas 3.27). Organicamente dentrode Cristo, não há outra alternativa a não ser dar continuidade à obra de Cristo!Não como obrigação moral, mas como graça e privilégio de alguém que “jáagora” está assentado nos lugares celestiais em Cristo!!!

3 DEMANDAS SOCIOCULTURAIS

As demandas abordadas a seguir não estão diretamente relacionadasà falta de acesso aos direitos humano-sociais. Trata-se de demandas existen-ciais, contudo socialmente “formatadas”, influenciadas e/ou determinadas.

Grande vazioO grande vazio (ver Carvalho & Neto, 1994) configura-se, no capitalismo

tardio, porque a tecnologia veio e vem de mãos dadas com o capital. Cada vezmais pessoas estão sem ter o que fazer. A angústia cresce na mesma propor-ção em que percebem que o trabalho não existe mais para elas e, em conseqü-ência, faltarão condições para a satisfação das necessidades básicas.

Não é por nada que sociedades desenvolvidas, como a japonesa, apre-sentam hoje os mais altos índices de suicídio. Gerações inteiras foram“formatadas” sob o princípio da utilidade pragmatista e, no atual estágio docapitalismo, são-lhes escamoteados os referenciais (talvez os únicos) que ain-da traziam algum sentido para a existência sob tal formatação: ser útil na pro-dução e no consumo.

Neste particular não basta refletir sobre a falta de sentido. É preciso

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“vivenciar” laços de pertença e sentido, cujo paradigma supere o da utilidade.A ação cristã não pode limitar-se ao “conhecimento de causa”. Ela precisarespaldar-se em “vivência de causa”. Precisamos vivenciar relacionamentosque ajudem as pessoas a superarem o vazio existencial resultante desta exi-gência capitalista de que só se é alguém quando produzimos ou consumimoso que este sistema quer. Precisamos superar o ter. O que implica em superar odar. É preciso viver, caminhar com as pessoas.

Quebra da complementaridadeEm nossa sociedade, somos jogados numa luta individual ferrenha por

libertações e vitórias pessoais, como formas “inteligentes” de organizar a vida.Desde pequenos somos incentivados a competir, concorrer, vencer e, conse-qüentemente eliminar outros. A consciência e o interesse porcomplementaridade mútua, como caminho viável para a construção de umaidentidade psicossocial individual e coletiva, não vai além de alguns momen-tos ou ações esporádicas.

Esta falta de complementaridade acentua-se na vida das pessoas que,por causa do êxodo para as cidades maiores, perderam os vínculos com afamília mais extensa, com sua comunidade e igreja de origem. Muitas destaspessoas, agora nos centros maiores, não conseguiram construircomplementaridades de apoio onde moram e, além disso, ficaram sem acomplementaridade com o mundo do trabalho: estão desempregadas.

Neste contexto de falta de complementaridade, qualquer ação cristãque queira ser efetiva precisa contemplar a construção da complementaridadenegada ou escamoteada sob o protagonismo deste projeto neoliberal. Cons-truir pontes, parcerias, ações conjuntos entre e com as pessoas na família, naigreja, na comunidade será mais importante que satisfazer necessidades indi-viduais, por mais importantes que elas sejam.

Nomadismo, errância, aventura, vida dupla eterritorialização dinâmicaAo longo dos últimos 300 anos, até os anos 1970, controle, fechamen-

to, amestramento e normatização caracterizaram a dinâmica social. Esta dinâ-

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mica social amestrada passou a oferecer proteção em troca de submissão,isto é, negação da vontade, prazer e desejos próprios. Este amestramentocaracterizou-se como um processo de violência contra as pessoas e a nature-za a ponto de “enervar o corpo social, fazer com que alterasse seu procedi-mento até torna-lo amorfo, indeciso e totalmente dúbio quanto à vontade”(Maffesoli, 2001, 24). Talvez esteja aí um processo que leva tantas pessoas egrupos a uma espécie de não-compromisso e indiferença diante dos aconteci-mentos cotidianos.

Este fechamento, este controle dos diferentes aspectos da vida alimen-tou a semente da circulação, da errância/nomadismo (Maffesoli, 2001, pp. 27ss).Um dos primeiros sinais foram os movimentos e manifestações de 1968. Abusca por um outro lugar, por outras pessoas, por outros valores, por outrasrelações, por não-pertencimento a ninguém, privilegia a “sensabedoria”2 emdetrimento da sabedoria lógico-racional e objetiva da modernidade.

A busca por um outro lugar resulta do e “formata” o princípio/pulsão daerrância3 . Refere-se à pulsão de “estabelecer uma outra relação com o outro ecom o mundo. Uma relação menos ofensiva, mais carinhosa e trágica”4 (Maffesoli,2001, p. 29). Isto é, sem destino previsto ou conhecido antecipadamente. Estapulsão repousa sobre a impermanência das coisas, dos seres e de seus relaciona-mentos levando as pessoas a gozarem, no presente, o que é dado ver e o que édado viver no cotidiano. Esta vida intensa encontrará “seu sentido numa sucessãode instantes, preciosos por sua própria fugacidade” (Maffesoli, 2001, p. 29).

A aspiração pelo outro (lugar, pessoa, valor, ética, etc) baseia-se nestaerrância. Tem no nomadismo5 sua forma de existir e articular-se e, na aventu-ra, seu espírito. Trata-se de aspiração pelo outro como busca destinal (buscanão planejada racionalmente).

Nesta busca destinal - onde a aventura reside na busca do desconhe-

2 Sabedoria chinesa que privilegia o intervalo, a pausa musical, o silêncio, a ausência. Para asensabedoria, o não –pertencimento a um lugar é a própria condição de uma realização plenade si. Isto é, o ser humano realiza-se como ser humano à medida que não pertence a um lugar.

3 Conceito que Maffesoli constrói a partir da figura do estrangeiro em G. Simmel.4 Trágica, não com catastrófica ou fatal, mas, sem destino e alternativas antecipadamente defini-

dos. Tanto as alternativas quanto o destino constituem-se e configuram-se ao longo do cami-nho.

5 Conceito que Maffesoli articula a partir da figura do celibatário nômade (que move-seanomicamente) de Emile Durkheim.

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cido e, o êxtase, no desfrute prazeroso dos elementos, pessoas, valores queo passeio propicia – o vínculo social é tribalizado6 , é fusional7 . Na buscadestinal o que importa é viver o trágico dia-a-dia. Ou seja, viver intensamen-te cada momento do presente como se fosse para sempre ou a derradeiracoisa a ser feita.

Aos olhos da perspectiva moderna, esta vida intensa e errante parece-se com uma superfície que descolou do seu fundo e que, a qualquer momentopoder afundar, porque não há nada calculado e definido antecipadamente.Como se não tivesse vínculos. Como se fosse só aparência. Como se tudoflutuasse. Como se o indivíduo e a vida social não pertencessem a lugar ne-nhum. Contudo, esta duplicidade de estar vivendo aquilo que está descoladodaquilo que é sólido é uma forma de liberdade, uma forma de introduzir agita-ção naquilo que está estável, ou inquietude naquilo que está cheio de certe-zas. Trata-se duma perspectiva de alternativas, de desvios como possibilida-des. Não de debilidade e falsidade. O que leva a fortes e intensos sentimentosde pertença pontuais, resultando uma identidade aberta, com muitas possibi-lidades.

Esta vida dupla na dialética flutuante-fixo, lugar-não-lugar, longínquo-próximo, sólido-vazio faz com que a territorialização individual (identidade) esocial (instituição) não mais sejam estáticas, identitárias, mas dinâmicas eaventurosas.

A dialética da vida dupla produz a pluralidade da pessoa. Pluralismo,não como dubiedade, mas como uma nova forma de ser e existir nos diferen-tes espaços e instituições.

Este “eu” multifacetado é vivido mediante diferentes processos iniciáticoserrantes (não racionalizados) que possibilitam viver o “êxtase” da aventura, doencontro com o outro, do usufruto do não-lugar e, ao mesmo tempo, median-te uma infinidade de re-ligações contínuas e inconstantes/não-continuadas.

6 Tribos são constituídas em torno e a partir dos diferentes elementos e momentos prazerososque a história destinal possibilita. Cada tribo expressa-se mediante sinais, gestos, costumesespecíficos. Estes elementos de expressão dificilmente podem ser interpretados a partir decategorias econômico-políticas (como finalidade, sentido da história, vínculo estrutural) quecostuma-se usar para analisar o vínculo social.

7 Em detrimento das racionalizações ou legitimações a priori (antecipadas e calculadas) que insis-tem em ver no indivíduo o eixo da vida social, prevalece o grupo fusional. Este caracteriza-se,não por juntar ou interligar diferentes individualidades, mas por possibilitar um intersubjetividadeonde fundem-se trocas, afetos, valores, solidariedades básicas, auxílios mútuos.

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Esta identidade plural, não-fixa, não-presa possibilita uma nova filosofiade vida: “todos os momentos se equivalem, a existência está totalmentepresente em cada um dos fragmentos, ainda o minúsculo ou o mais insig-nificante” (Maffesoli, 2001, p. 121). Isso gera uma sede de viagem que “levaa percorrer o ano o mais possível ao ritmo de períodos breves, marcan-do fortemente a partida e a chegada” (idem, ibidem). No entender deMaffesoli, aí se expressa o espírito do tempo atual.

O espírito do tempo se expressa na precipitação e na ve-locidade. Mas uma velocidade que, em fim de corri-da, por sua própria aceleração, apresenta uma cer-ta forma de imobilidade. O que é importante na inten-sidade do momento é a perseguição do prazer pelo pra-zer. A busca pelo prazer não se esgota no ato, que nãomais se projeta sobre o futuro. Ao mesmo tempo, essecuidado dos ‘bons momentos’, não se orientando de for-ma alguma no sentido de uma finalidade a ser atingida,acentua, paradoxalmente, a própria idéia do caminhar. Umcaminhar como uma sucessão de instantes intensos.(Maffesoli, 2001, p. 121)

A diáspora, o êxodo, o caminho, a errância são alternativas para o serhumano pós-moderno completar-se, realizar-se, pois sua essência é relacional,social (não fechada ou egotista). Estar a caminho viabiliza acolher o outro ou oOutro8 e ser acolhido por ambos (dialética do re-ligar-se). Quanto mais a cami-nho, maior a possibilidade e mais intensa a experiência de re-ligar-se com ooutro e o Outro.

Nesta dinâmica errante, a pessoa precisa perder-se para encontrar-se.Isto é, deixar de voltar-se para si e sobre si e entrar com tudo naquilo queestá acontecendo. Perder-se no vazio da retirada solitária. Perder-se na mo-bilidade social errante dos grandes centros, feita de sucessivas passagens

8 Maffesoli usa “Outro” para designar o Ser Transcendente (Deus, Buda, Alá…) e “outro” para desig-nar os semelhantes humanos. Na Filosofia Latino-Americana, “outro” designa o semelhante numaperspectiva dominadora na qual eu defino, caracterizo o que ele pode ser ou não a partir do meuuniverso, da minha totalidade. “Outro” designa o semelhante numa perspectiva libertadora. Nes-ta eu conheço-o a partir da sua auto-revelação. Reconheço-o e aceito-o a partir desta revelação.Não sou eu quem digo quem ele é ou pode ser. Aceito-o como sujeito do seu universo, da suatotalidade, pois assim ele se revela para mim, quer isso faça sentido para mim ou não.

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ao imprevisível. Perder-se na infinidade de ligações momentâneas para ga-rantir a sobrevivência. Perder-se, negar-se na experiência com o Transcen-dente. Perder-se na viagem turística ao desconhecido. Perder-se na experi-ência do inédito, em subseqüentes experiências iniciáticas. Ser errante. Es-tar a caminho.

Quem alimenta este “perder-se para re-encontrar-se” torna-se rebeldeem relação aos diversos princípios que regem a realidade. O rebelde, por suavez, é suspeito porque “tem a liberdade do lobo e do pássaro” e conta com o“recurso das florestas”9 , que possibilitam a aventura de “escapar por pouco”.O rebelde caracteriza-se pela “fuga da casa” (de tudo o que é fixo) para encon-trar-se, para misturar-se, para fusionar-se com o outro e/ou Outro desconheci-dos, imprevisíveis e desafiadores. Eis a aventura que o recurso das florestaspossibilita: a aventura de todos os possíveis.

Igualmente, à semelhança do povo no Êxodo, o território só é possívelpor sua negação. Javé (o Outro do povo Judeu) é o Deus do povo, não doterritório. Negar o território, não fixar-se nele, sair de casa, aventurar-se noOutro rumo ao desconhecido e imprevisível viabilizou o prazer, o deleite doterritório – a Terra Prometida. Estar sem a casa, errância em direção ao des-conhecido gera a ausência que arde. Ou seja, a sensação de que está semnada e, ao mesmo tempo, tudo é possível acontecer. Ausência que leva ao“viver intenso” de cada instante e ligação que esta caminhada destinaldisponibiliza. O projeto, a planificação à longo prazo, o plano de carreira dãolugar à intensidade do instante que expressa-se nas variações dos sentimen-tos amorosos, nas incoerências políticas e ideológicas, nas mobilidades exis-tenciais e profissionais, etc. É o caminhar que salva, não o enraizamentofixante.

4 DESAFIOS PARA A AÇÃO CRISTÃ

Relaciono primeiro três desafios decorrentes dos fundamentos bíblico-teológicos pois deles depende a natureza do enfrentamento dos demais.

9 Fugir, misturar-se ao outro lugar (floresta) e seus elementos de forma imprevisível. Estar lá e, aomesmo tempo, poder , num instante, ocultar-se tanto dos de fora quanto dos que estão flores-ta. Processo que viabiliza alternativas de fuga diante das artimanhas e ataques daquilo que estáclaro e estabelecido (a civilização moderna)

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Perceber-se na ação cristã como enviado de Deus que opera com Seupoder e Sua autoridade! Eis o primeiro desafio: diaconia é encarnação dopoder e autoridade amorosas daquele que envia! Ação cristã não é peso ousofrimento. É privilégio! É honra!

Reconhecer que Diaconia (ação cristã) não é tarefa ou atividade quepode ou não ser realizada. Ela é elemento constitutivo da natureza da Igreja.Ou a igreja é diaconal ou não é igreja de Jesus Cristo!

Perceber que como perdoados em Cristo estamos sob o seu exemplo.Estamos organicamente unidos com ele. Logo, “naturalmente” estamos habi-litados para acolher sem procurar algo na pessoa acolhida que a faça merece-dora do acolhimento.

Na superação da falta de complementaridade e do grande vazio temosmuito a fazer sem nenhum rancho ou cesta básica. Uma pesquisa realizadaentre 1994 e 1997 pelo Instituto de Pesquisa Social, Paris, França indicou que38% das pessoas Sem Domicílio Fixo, após 3 anos, elegeram como necessida-de-primeira encontrar alguém para conversar (Bourdieu, 1998). Somos desafi-ados a fazer o que As ações humanitárias costumam não fazer: caminhar comas pessoas! Quantas relações de apoio e significado podem ser vivenciadasjunto às pessoas que Deus coloca em nosso caminho!!! Temos muito a fazerna superação do Grande Vazio da Quebra da Complementaridade sem nenhu-ma cesta básica ou rancho.

Nós nos realizamos pertencendo a um lugar (casa, família, empresa, igrejaetc) porque tivemos a nossa personalidade e consciência formatadas nestaperspectiva de nos fixarmos a ou em algo. Pessoas que cresceram sem estaspossibilidades de pertencimento fixo costumam não ver tanto valor nas nos-sas formas de pertencimento, pois tiveram poucas ou nenhuma coisa fixa paraestruturar sua personalidade e consciência. Estas pessoas nos desafiam nanossa ação cristã a planejarmos ações e atividades que possibilitem viver in-tensamente o que está proposto. Contudo, sem que isso implique em tirar-lhes a mobilidade familiar, social e cultural.

A vida dupla nos desafia a privilegiarmos ações que possibilitem fortese intensos sentimentos de pertença pontuais. A preocupação com o fixo,o contínuo e o duradouro precisa estar a serviço da intensidade pontual. Mo-mentos, ações e movimentos pontuais são importantíssimos!!

Nosso vínculo na ação cristã precisa ser fusional (fundar-se em trocas,

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afetos, valores, solidariedades básicas, auxílios mútuos), pois esta passou aser uma das necessidades básicas neste contexto de fragmentação e isola-mento da vida e das pessoas.

A territorialização do indivíduo (construção da sua identidade) e aterritorialização social (articulação com as diferentes instituições: família, es-cola, igreja, empresa, etc) deverá ser dinâmica (em movimento constante) eaventurosa. Na sociedade moderna, crescemos controlando a aventura por-que ela leva as pessoas a se perderem, a deixarem de conquistar as coisas. Poroutro lado, pessoas sem as mínimas condições de vida tiveram sua vida trans-formada numa constante e sofrida aventura diante do nada, diante do desco-nhecido. O ponto fixo, o território econômico, social e afetivo estável, quepossibilita o prazer na aventura, foi e é-lhes escamoteado. Saborear a aventu-ra hoje, em ambos os casos, torna-se mais importante que usufruir uma con-quista. Nossa ação cristã precisa privilegiar o prazer da aventura em detrimen-to da certeza da conquista (dum espaço, dum trabalho, duma cesta básica,duma casa). Talvez aí esteja uma das razões de tantos trabalhos em nossaigreja acabarem à medida que deixam de ser uma aventura para as crianças,jovens e adultos!!!

Neste contexto uma das coisas mais importante que temos a fazer éconstruir e ajudar a construir relações/vínculos das pessoas consigo mesmas,com sua família e pessoas significativas, com os serviços assistenciais públi-cos e privados. Aliás, foi isso que Jesus fez. Na maioria dos relatos de ajuda ecura transparece que Jesus articulou as pessoas curadas. Isto é, Jesus pediaque voltassem para sua família, para sua igreja, que se apresentassem aossacerdotes etc.

Por fim, o que traz possibilidades para as pessoas é o estar a caminho,não o enraizamento fixo. Por outro lado, para a aventura ser prazerosa, precisado enraizamento, dos pontos que fixam material, relacional e emocionalmen-te. Contudo, um enraizamento dinâmico “a serviço da aventura”. Somos desa-fiados a sermos Igreja de Jesus Cristo percebendo-se a caminho, em movimen-to, em ação. Não uma instituição fixa que realiza tarefas e ações, mas umacomunidade diaconal em movimento. A vida das pessoas e das instituiçõesdepende mais do movimento, do caminho que da permanência fixa. Não é pornada que Jesus disse: “Ide”... e “Eu vos envio”!!!

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REFERÊNCIAS

BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil (Edição Revista e Atu-alizada de João Ferreira de Almeida).

BOURDIEU, PIERRE. A miséria do mundo. 2 ed., Petrópolis: Vozes, 1998, 747 p.

CARVALHO, Maria do C. Brant, NETTO, José Paulo. Cotidiano: conhecimento e crítica.3 ed., São Paulo: Cortez, 1994.

COLLINS, John. Diakonia. Re-interpreting the ancient sources. New York: Oxford, 1990.

MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo – vagabundagens pós-modernas. Rio de Janei-ro: Record, 2001

Endereço/ Address:Prof. Dr. Arno Vorpagel Scheunemann

Universidade Luterana do Brasil/Curso de Serviço SocialAv. Farroupilha, 8001 – Prédio 6 – Sala 24

92425-900 – Canoas/ RS – BrasilE-mail: [email protected]

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A Santa Ceia em umContexto MissionárioThe Holy Supper in a Missionary Context

ANSELMO ERNESTO GRAFF1

Doutorando em Teologia Bíblica (Concordia Seminary, St. Louis, USA). Professor de Teologia na ULBRA ena Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia da Igreja Evangélica Luterana do Brasil

RESUMO

O objetivo desse trabalho é verificar alguns critérios utilizados para a prática dacomunhão fechada na Igreja Evangélica Luterana do Brasil. O foco principal da reflexãoserá o contexto missionário. Quem é bem vindo à Ceia? Esse convite é cristológico?Qual é a interpretação mais comum ao texto de 1 Co 11.28: “examine-se o homem a simesmo e assim coma do pão e beba do cálice”? Como encontrar o ponto de equilíbriona aplicação bem dosada da lei e do evangelho? A meta é desenvolver uma brevepesquisa histórica em alguns pais da igreja, dogmáticos luteranos, num documentoconfessional, em Lutero e outros estudiosos do assunto, a fim de verificar se os princí-pios adotados estão de acordo com a doutrina central e sobre a qual a igreja cristã estáapoiada, a justificação pela fé.

Palavras-chave: dignidade, missão, auto-exame, lei, evangelho.

1 O artigo resulta da apresentação de relatório na aula ministrada pelo Dr. Manfred Zeuch, naULBRA em Julho de 2002: Seminar on the Augsburg Confession.

Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.75-98

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ABSTRACT

The aim of this research is to verify some of the criteria used by the EvangelicalLutheran Church of Brazil (IELB) in the practice of the closed communion. The focuswill be mainly on a missionary context. Who is welcome to the Lord’s Supper? Is thisinvitation Christological oriented? How is usually interpreted 1 Corinthians 1:28: “Aman ought to examine himself before he eats of the bread and drinks of the cup”. Howit is reached the appropriate balance between Law and Gospel in this matter? The goalis to develop a brief research in some of the ecclesiastical Fathers, LutheranDogmaticians, a Confessional document, Luther and others, in order to figure out if theadopted principles are according to the chief article of faith on which the ChristianChurch stands, the Justification by Faith.

Key words: Dignity, Mission, self-examination, Law, Gospel.

1 A PRÁTICA DA CEIA NA IGREJA PRIMITIVA

1.1 As coisas santas para convidados santosA prática na Igreja primitiva poderia ser rotulada como extremamente

rigorosa. Até os próprios cultos eram fechados.

Firm boundaries were drawn around participation in thedivine service. Admission was not for just anybody.Origen points out that Christians are not like thephilosophers whom anybody may attend and listen to.(Elert, 1966, p. 75)

É importante observar que a Palavra não era vedada completamente,mas só depois duma instrução privada e após alguém ter dado provas de suaresponsabilidade e vida digna, que ele era admitido ao culto.

A celebração da Ceia acontecia literalmente com as portas fechadas. Eraum evento separado do culto e apenas os que foram solidamente instruídos éque permaneciam para a Ceia (idem, p. 75). As explicações tanto para a práticado culto restrito bem como da ceia fechada geralmente são apenas especulativas.Elert (1966, p. 77) menciona uma possível linguagem secreta dos cristãos, ou atésupostas práticas criminosas que aconteciam nessas reuniões.

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A SANTA CEIA EM UM CONTEXTO MISSIONÁRIO

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Tertullian taunts his opponents with the question why nojudicial investigation has been made of the closedassemblies of the Christians in which such crimes aresupposedly practiced, he implicitly offers to give a fullaccount of the “secret practices” of the Christians.

Todavia, a razão principal pode ser bem mais simples. O objetivo nãoera guardar segredos, mas evitar que pessoas impuras tivessem acesso ao queé santo. “The holy things for the holy ones”. (idem, ibidem). O conceito desantidade aqui é adquirido através do batismo. É no batismo em que alguémencontra a porta aberta para a participação digna na Ceia.

Through Baptism we become not only saints but also“holy brothers” (Heb 3:1). [E ainda:] One cannot be amember of the body of Christ without Baptism andconsequently also not a partaker of the Holy Communion.(idem, p. 78 e 79)

1.2 A Ceia como comunhãoSegundo o entendimento da Igreja primitiva, a Santa Ceia era essencial-

mente comunhão entre os irmãos e um ato confessional de toda a congrega-ção. Assim, a participação à Ceia era restrita e os acusados de heresias oudivisões pessoais não eram bem-vindos, pois sua participação causaria danosa essa comunhão (Elert, 1966, p. 80). Porém, é interessante notar que paraesse segundo item, a passagem bíblica usada é Mt 5.23-24. Pode se deduzir,que a Ceia está mais para um ato do homem indo até Cristo, do que Cristo seoferecendo aos pecadores com sua graça. A conseqüência prática desta regraé de que antes da celebração da Ceia deveria haver o momento da reconcilia-ção, cujo selo era o ósculo santo, sob pena de receber a Ceia indignamente ecausar prejuízos à comunhão (idem, p. 81).

1.3 A dignidade dos convidados à Ceia segundoCrisóstomoOriginalmente Crisóstomo queria combater o conceito do mero jejuar

como suficiente para a participação na Ceia. Para ele há muito mais coisas

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envolvidas e dirige o foco principalmente sobre a santificação. Só recebe prê-mio aquele que se aproximar à Ceia com uma boa consciência.

So neither will any advantage result from these manifoldlabors and toils with regard to the fast, if we are not ableto enjoy the Sacred Table with a good conscience. (Schaff,1956, vol. IX, p.471)

Em princípio Crisóstomo inclui uma corrente de pecados que devem sermotivo de auto análise a fim de se aproximar à Ceia de modo digno (idem, p.471).

Let every one, therefore, consider with himself what defecthe hath corrected, what good work he hath attained to;what sin he hath cast off, what stain he hath purged away;in what respect he has become better. (Schaff, 1956, vol.IX, p. 472)

Em toda essas considerações é interessante notar a ênfase especial dadaà necessidade de reconciliação entre os irmãos, como requisito primordial àdignidade de participação na Ceia. Esta parece ser a tônica de Crisóstomo afim de determinar o que é ser digno e o que não é.

Let no one who hath an enemy draw near the Sacred Table,or receive the Lord’s Body. Let no one who draws nearhave an enemy. Hast thou an enemy? Draw not near! Wiltthou draw near? Be reconciled, and then draw near, andtouch the Holy Thing”.2

Segundo Crisóstomo, nós estamos autorizados a ter apenas um inimigo,que é o diabo (idem, p. 476), com os outros é necessário a reconciliação a fimde se obter o perdão de Deus.

2 Schaff, 1956, vol. IX , p. 476. A base bíblica para essa afirmação é o texto de Mt 5.23-24, o qualoriginalmente não fala em se aproximar à Ceia, mas para ofertar.

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79Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

Let us not then be negligent of what is our life, let us be inearnest; and do every thing, in order that we may bewithout an enemy, and so present ourselves at the sacredTable. (Schaff, 1956, vol. IX, p. 479)

Num outro sermão sobre 1 Co 11.28, “Examine-se pois o homem a simesmo e assim coma do pão e beba do cálice”, Crisóstomo focaliza sua aten-ção mais sobre o valor da disciplina do Senhor. Todavia, especificamente so-bre a Ceia, ele acrescenta que o exame sugerido para cada participante tornaa questão como responsabilidade do indivíduo. A questão é acima de tudopessoal do comungante. “And he bids not one examine another, but each himself,making the tribunal not a public one and the conviction without a witness”.(Schaff, 1956, vol. XII, p. 164). Nesse caso a indignidade está relacionada àfalta de noção da grandeza desta celebração:

Not discerning the Lord’s body, is not searching, notbearing in mind, as he ought, the greatness of the thingsset before him; not estimating the weight of the gift. (idem,p. 164)

Em princípio, o problema dos Coríntios para Crisóstomo parece ter sidobasicamente horizontal, mas com uma conseqüência vertical.

hearing therefore all these things, let us both take greatcare of the poor, and restrain our appetite, and ridourselves of drunkenness, and be careful worthily topartake the Mysteries.(idem, p. 165)

Sobre Hb 9.24-26 Crisóstomo traça inicialmente a grande distância en-tre os sacrifícios do Antigo Testamento e o sacrifício único de Cristo. A Ceiaaqui é percebida mais como uma performance da lembrança do sacrifício. Oaprovado aqui para tomar parte dessa ação é outra vez a vida santificada.

What then? Which shall we approve? Those who receiveonce in the year? Those who receive many times? Thosewho receive few times? Neither those who receive once,nor those who receive seldom, but those who come with

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80 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

a pure conscience, from a pure heart, with anirreproachable life. (Schaff, 1956, v. XIV, p. 449)

A partir desse ponto é necessário observar que o conceito de santidadedifere daquele da Igreja Primitiva. Lá, a obra é do Espírito Santo no Batismo,aqui a ênfase está sobre a vida consagrada do indivíduo.

2 A CONFISSÃO DE AUGSBURGO E A CEIA

A maioria das referências à Ceia de Cristo na Confissão de Augsburgo éessencialmente teórica. No entanto, suas avaliações podem ter implicaçõespráticas significativas, o que parece ser característico de todo o documento,apenas visualizar de maneira panorâmica os princípios básicos a serem consi-derados. Por exemplo, no Artigo V, que é o Ofício da Pregação, a Ceia é enfatizadacomo meio de recepção do Espírito Santo.

Para conseguirmos essa fé, instituiu Deus o Ofício da Pre-gação, dando-nos o evangelho e os sacramentos, pelosquais, como por meios, dá o Espírito Santo, que opera afé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o evan-gelho, o qual ensina que temos, pelos méritos de Cristo,não pelos nossos, um Deus gracioso se o cremos. (CA,artigo V, p. 30.1-3)3

Aqui parece que há uma possibilidade por vezes suprimida. Se a Ceiatambém é pregação do evangelho, então ela também poderia ser um meiooperador da fé. Acrescido a isso, o artigo XIII, do Uso dos Sacramentos,declara que

com respeito ao uso dos sacramentos se ensina que fo-ram instituídos não somente para serem sinais por que sepossam conhecer exteriormente os cristãos, mas paraserem sinais e testemunhos da vontade divina para

3 As citações da Confissão de Augsburgo serão referidas usando a sigla CA e indicando o artigo.As páginas e linhas se referem à tradução de Arnaldo Schuler, publicada em Confissão deAugsburgo, Artigo V, p. 30.1-3

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81Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

conosco, com o fim de que por eles se desperte e fortale-ça a nossa fé. Essa também a razão por que exigem fé,sendo usados corretamente quando a gente os recebeem fé e com isso fortalece a fé. (CA, art. XIII, p. 34. 1-2)

Mesmo que no final do artigo se mencione a fé como pressuposto bási-co para se participar dos sacramentos, a minha reflexão é que por inferêncialógica geralmente se deduz que o batismo é para despertar e a Ceia para forta-lecer. Essa distinção não é tão clara assim e por isso este artigo, especialmen-te na sua parte inicial, pode também apontar para a chance apontada no arti-go V e observada por Walther4 , que a conversão na hora da Ceia é possível. Ese essa possibilidade existe, então os convidados não precisariam ser neces-sariamente cristãos instruídos, mas a Ceia poderia funcionar como um meioevangelístico e imprimir no coração do comungante as boas notícias da salva-ção em Cristo Jesus.

Com relação especificamente aos convidados dignos à Ceia, a Confis-são de Augsburgo se posiciona de maneira resumida sobre alguns pontos quesão relevantes para o objetivo desse trabalho. Basicamente, o uso do sacra-mento é para consolar as consciências atribuladas (CA, 44.7) para os que fize-rem a confissão de pecados (CA, p. 47.1) e foram submetidos a um exameantes da Ceia (CA, p. 79. 30-33). É interessante notar que esses requisitospodem ser cumpridos num culto que é confessional, que é pregado o evange-lho em sua pureza e a Ceia oferecida com a devida exortação.

3 A CEIA NA VISÃO DE MARTIN CHEMNITZ

Chemnitz apresenta seu ensino sobre Santa Ceia em forma de pergun-tas e respostas. Sua abordagem vai desde o significado desse sacramento,elementos, doutrinas contrárias, benefícios, até a dignidade e a indignidade nasua recepção.

A linha de pensamento em Chemnitz é a santidade, o fator cristológicoe a capacidade de auto-exame. A indignidade está em usar o sacramento semreverência e devoção.

4 Na parte 6 desse trabalho esse assunto será retomado de maneira específica.

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82 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

They that do not discern the body of the Lord, that it is[they] that do not hold that the very sacred food of thisSupper is the body and blood of Christ, but handle anduse it with no greater reverence and devotion than othercommon foods. (Chemnitz, 1981, p. 130)

Também os que vivem em impenitência e sem intenção de correção,bem como sem a fé dirigida unicamente aos méritos de Cristo (idem, p. 130).Ele ainda toma como exemplo a ação positiva e negativa da Ceia em doispersonagens bíblicos, Pedro e Judas.

It follows very surely that Judas, though unworthy, yet justlike Peter, received not only simple bread or wine, but atthe same time also the body and blood of Christ. Peterindeed for salvation, but Judas to judgment. (idem, p. 131)

O aspecto da lei é salientado com toda sua força, contudo a boa notíciatambém é expressa de maneira cristalina. A dignidade de alguém não está emsua pureza ou santidade perfeita, mas na doença reconhecida, o pecado. “Forthey who are healthy do not need a doctor, but they who are not healthy (Mt9:12).

O procedimento que precede a participação na Ceia está baseado emtrês passos. O primeiro é considerar o que é a Santa Ceia e qual a natureza doalimento que está sendo oferecido e recebe-lo com humildade. O segundo éreconhecer com seriedade os pecados como despertadores da ira de Deus eter como intenção corrigir sua vida. E o terceiro é desejar ardentemente agraça de Deus, assim que por meio da fé na obra Cristo, seus benefícios sejamaplicados aos que estão comungando (idem, p. 131-132).

4 A CEIA DE CRISTO SEGUNDO LUTERO

4.1. Os convidados segundo explanação noCatecismo MaiorO requisito básico para tornar alguém digno para receber a Ceia é a fé.

“E como oferece e promete perdão dos pecados, não pode ser recebido de

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outra maneira senão pela fé” (Livro de Concórdia, Catecismo Maior, Sacra-mento do Altar, p. 489.34). Além disso, Lutero salienta como primordial a pre-paração interior e não a exterior, pois é pela fé de coração que este tesouro édesejado e os benefícios apropriados (idem, p. 490. 36-37).

Lutero apenas considera a administração desse sacramento entre cris-tãos já instruídos (idem, p. 490.39) e nem cogita de outros o receberem, noentanto em suas instruções sobre que tipo de pessoa o possa receber, é pos-sível avaliar e perceber quem são os convidados dignos para a Ceia de Cristo.Em primeiro lugar, o sacramento deveria ser vedado àqueles que não estãopreparados para receber o perdão dos pecados, ou porque não o desejam, ouporque não gostam de ser justos (idem, p. 492.58). Ainda é preciso salientarque é fundamental reconhecer que a recepção independe da dignidade pesso-al, e a menos que alguém não queira o perdão e não tenha o desejo de corrigira sua vida, nenhum cristão deveria se privar dele por se considerar indigno,pois é exatamente aí que está a dignidade (idem, p. 493. 61-63).

Lutero parece ressaltar definitivamente o fator cristológico para a ad-missão à Ceia. Ainda que considere os prejuízos para quem não está prontopara receber esse sacramento, ele usa textos5 que revelam sua certeza de queindependente de qualquer tradição ou rito humano, Cristo vai dar as boasvindas aos que dele participarem. Ele não vai obstaculizar ou vedar as bênçãospara ninguém, desde que ele se aproxime com fé e desejoso do perdão.

4.2. Sermões sobre a Recepção DignaEm um sermão de 1521 (Sermon on the Worthy Reception of the Sacrament, LW,

vol. 42, pp. 171-177), Lutero levanta 13 pontos a serem tomados como conse-lhos para a participação digna na Ceia do Senhor. Neles, o reformador abordadiferentes aspectos em todo o processo de administração desse meio da gra-ça. Vida santificada, vida espiritual sadia, responsabilidade pastoral e cristologia.

Em relação à vida santificada a ênfase está na impenitência e cujo peca-do é público. “Those who openly live in sin or who willfully harbor evil thoughts,such as of hatred, of uncleanness, and the like, shall not receive the sacrament.”(idem, p. 171)

5 Ibid., p.493.66; p. 494.71; os textos bíblicos são Mt 11.28 e Mt 9.12.

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Em segundo lugar, ninguém deveria participar da Ceia apenas por hábi-to ou porque é ordem da igreja. Nesses, irá faltar o essencial: uma vida espi-ritual sadia que vai se manifestar na sede pelo sacramento. “There must behunger and thirst for this food and drink; otherwise harm is sure to follow”.(idem, p. 172)

A responsabilidade pastoral está em incitar a fome e a sede nos cora-ções dos cristãos. Ao contrário do Papa que forçava pessoas a se dirigirem aosacramento para realizar a obra, cabe aos pastores o papel de despertar anteso desejo e a espontaneidade para dele tomarem parte. “Since God’s gifts areso great, they demand a great hunger and desire, but they avoid and flee froma forced and unwilling heart” (idem, p. 172). Em outra citação Lutero reforçaesse caráter voluntário de cada cristão. “Then a man no longer heeds thechurch’s command but is happy that he can partake of the sacrament becauseof his own urging and need, without any command or demand.” (idem, p. 173).

O quarto aspecto em relevo no pensamento de Lutero é o cristológico,especialmente quando diz que as palavras da instituição deveriam ecoar emnossos corações como um convite particular do próprio Cristo. “We shouldtake all of these words to heart, placing our trust in them and not doubtingthat with these the Lord invites us to be his guests at this abundant meal.”(idem, p. 173) Nesse convite está a dignidade em participar e qualquer afasta-mento por medo de ser impuro, tem como conseqüência o afastamento daessência do sacramento. “It is just this worry and fear that makes them unworthyand, at the same time, drives out hunger and thirst. Fear and desire cannotexist side by side.” (idem, p. 175). Finalmente, Lutero observa que Cristo vaidar as boas vindas aos que estão cansados e sobrecarregados, pois é isso queas palavras de Mt 11.28 querem dizer. “Therefore these words of his must beunderstood to refer to the labor and the burden of the consciences, which isnothing else than a bad conscience oppressed by sins committed, by dailytransgressions, and by a leaning toward sin.” (idem, p. 176) E como comple-mento é preciso entender que a Ceia segundo Cristo é remédio que os doen-tes precisam. A questão somente é “recognize and feel your labor and yourburden and that you yourself fervently desire to be relieved of these. Then youare indeed worthy of the sacrament.” (idem, p. 177)

Em 1519 Lutero escreveu pela primeira vez um sermão sobra a SantaCeia - Um Sermão sobre o Venerabilíssimo Sacramento do Santo e Verdadeiro Corpo deCristo e sobre as Irmandades. (Lutero, Obras Selecionadas, Volume 1, pp. 425-444). Nesse texto o reformador dá forte ênfase no aspecto comunitário, no

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sentido de que Cristo, os santos e os cristãos formam um só corpo na Ceia (p.429-430). Além disso, ele combate o conceito do opus operatum (p.437) e emtermos práticos dá grande ênfase no sentimento de fraqueza, na fé e no amorcomo elementos primordiais para um indivíduo ser digno de tomar a Ceia.

Quando Cristo ofereceu pela primeira vez a Ceia, o clima era pesado eamedrontador. “Por isso, para que os discípulos se tornassem dignos e aptospara este sacramento, ele os entristeceu primeiro, confrontando-os com suadespedida e morte, o que lhes causou dor e pesar.” (p. 432) Lutero quer ressal-tar aqui que a Santa Ceia á acima de tudo força e consolo para as inseguros eamedrontados pelo pecado e pelo mal.

A segunda ênfase é na vida santificada do indivíduo que a deseja rece-ber e sua relação com o aspecto comunitário da Ceia. Para ele é preciso com-partilhar tanto as bênçãos recebidas na Ceia, bem como também deixar queos males e imperfeições dos outros sejam nossos (p. 433). A base da Ceia é oamor e a paz entre os irmãos. “Trata então de te dedicar a manter comunhãocom todas as pessoas e de jamais excluir alguém por ódio ou ira, pois estesacramento da comunhão, do amor e da união não tolera discórdia e desu-nião.” (p. 436) Mas não é só isso, o que de fato interessa na Ceia é a fé. Aqui éinteressante notar que Lutero de certa maneira “desintelectualiza” a Ceia, afir-mando que o mais importante do examinar-se não está na esfera cognitiva,mas no coração. “A FÉ, que é o que importa. Pois não basta saber o que é e oque significa este sacramento. Não basta saberes que se trata de uma comu-nhão e de uma misericordiosa permuta ou mistura de nosso pecado e sofri-mento com a justiça de Cristo e de seus santos. Tu também precisas deseja-loe crer firmemente que o recebeste” (p. 435). Ir à Ceia é um exercício de fortale-cimento da fé, pois quando se está triste e oprimido pelo pecado e se existir aconfiança que Cristo vai até esse pecador para com ele viver, então poderá sesentir um coração forte e corajoso.

A indignidade para Lutero é não proceder para com o próximo de acor-do com aquilo que se busca junto a Cristo. Se alguém não deseja o bem aopróximo, ou não lhe dá a assistência que Cristo fornece na Ceia, então acabase tornando realidade a condenação proclamada em 1 Co 11.29 (p. 436).

Assim é possível perceber que Lutero apresenta de maneira bemsimplificada a face da dignidade e da indignidade. A primeira está no desejo doperdão, na fé e na disposição para o amor. A segunda na indisposição emcompartilhar as bênçãos recebidas na Ceia.

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5 QUEM É BEM-VINDO À CEIA SEGUNDO

MELANCHTHON

Melanchthon é claro em suas observações sobre a dignidade em partici-par do sacramento do altar. Todavia, ele abre um pouco mais o leque dasexigências para tornar alguém aceitável e digno de ser servido na Ceia do Se-nhor. Assim como em Lutero, na compreensão de Melanchthon deve ser leva-do em conta a vida santificada, arrependimento, consciência da seriedade dopecado e fé que reflete nos benefícios de Cristo. Além disso, também deve serconsiderado o aspecto eclesiológico, visto que a ceia é uma confissão doutrinalde fé. Cabe aos pastores determinar e averiguar a fé individual de cada cristãona congregação e eventualmente vetar a participação à ceia de pessoas quevivem em pecados manifestos (Melanchthon, 1543/1992, p. 149). Também émencionado o caráter cristológico da ceia, no sentido de que a dignidade estáem Cristo e não nos comungantes.

Em relação à santificação, um problema apontado por Melanchthon é apouca freqüência na ceia e participar dela vivendo em pecado sem o devidoarrependimento. “And there is another evil against which we must contend withcare and sternness, so that the unwary do not partake while in the midst ofmanifest vices and attend Communion without repentance.” (p. 147). Comen-tando ainda sobre indignidade e tendo como base 1 Co 11.27, 29, ele acrescen-ta: “they participate unworthily, as the passage says, if they persevere in theirsins contrary to conscience, whether overtly or covertly; likewise, if they do notcome with repentance and faith.” (p. 149) Essa conclusão de Melanchthon evi-dentemente deve ser considerada como uma inferência, pois no contexto origi-nal dos Coríntios havia problemas específicos e os quais deveriam ser examina-dos por aqueles cristãos, a saber, o consumo excessivo de bebida alcoólica, odesentendimento sistemático entre irmãos e a discriminação social.

Quanto à seriedade do pecado, Melanchthon argumenta que as pala-vras da instituição devem ter aspecto didático, a fim de levar as pessoas àreflexão sobre a seriedade do pecado e a conseqüente ira de Deus. “Thesewords first instruct us regarding the great anger of God against our sins, whichthe virtues and merits of neither angels nor men could placate, but which mustbe placated by the death of the Son.” (p. 147). Caso alguém não tenha noçãoexata disso, especialmente não consiga relacionar seu pecado à ira de Deus eà obra de Cristo na cruz, ele não saberá o que está acontecendo e por conse-guinte colocar em risco a recepção dos benefícios de Cristo (p. 147).

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Se para Lutero a fé basta, para Melanchthon não. Ela precisa ser orien-tada e guiada a se agarrar e acreditar no essencial. Em primeiro lugar a fé quedeseja e recebe o perdão dos pecados. Essa quase intelectualização da fé épercebida em outro momento.

Therefore in the reception of the Sacrament it is necessaryto add faith, which is thinking of many very importantmatters, such as the wrath of God against sin; the deathof the Son of God, by which the Father is reconciled; andthe giving of the Gospel and the Sacraments, by which Heapplies to us the promised remission of sins. (p. 148)

Em termos interdenominacionais, Melanchthon é taxativo. Como a ceiaé comunhão e confissão de doutrina, ela fica restrita para os membros de suarespectiva congregação. “When you take the Sacrament, you are showing thatyou accept the teaching of his church and that you want to be a member of hiscongregation, with which you are eating the Lamb [of God].” (p. 149)

Uma outra questão é a responsabilidade ministerial. O papel atribuídoao pastor é determinar doutrina e fé dos indivíduos na congregação. E assimcabe a ele julgar se alguém é digno de participar da ceia ou não e em caso deimpenitência e incredulidade, vetar sua participação (p. 149).

Até aqui Melanchthon soa pouco evangélico ou cristocêntrico em suasobservações. No entanto, ele não omite as boas novas. Para os arrependidos,envergonhados e os que se consideram indignos, a boa notícia é de que ofavor imerecido de Cristo os alcança, para lhes conceder perdão, dignidade epureza para participar da ceia de Cristo (p.149).

6 A CEIA DE CRISTO SEGUNDO ADOGMÁTICA LUTERANA

Pieper começa salientando em sua abordagem sobre os convidados àceia com uma pressuposição importante e potencialmente fundamental parauma compreensão mais coerente da ceia. A igreja cristã apenas administra oque é de Cristo. “The Lord’s Supper is not their institution (Christiancongregation), but Christ’s.” (Pieper, 1953, vol. III, p. 381). O peso desta afir-

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mação obviamente aponta para aquele que deve ser o verdadeiro administra-dor da ceia, Jesus Cristo.

Os argumentos para a prática da comunhão fechada estão essencial-mente ancorados em um fato bíblico relatado nos evangelhos e dois textosbíblicos em Paulo. O fato foi a primeira celebração da ceia, que foi em caráterprivado. Ao contrário das multidões que receberam a pregação do evangelho(Mateus 9. 35), a ceia foi recebida apenas por 12 pessoas (Mateus 26.26-28).

Os textos que confirmariam a prática da ceia somente por aqueles queconfessam a fé no Senhor Jesus são 1 Co 10.14-22 e 1 Co 11.17-34. “TheLord’s table, however is appointed only for the people who have already cometo faith in Christ” (idem, p. 381).

6.1 Diferença entre Palavra e SacramentoPara argumentar em favor de um cuidado maior com a administração da

Ceia, são tomadas as observações feitas por Walther em sua teologia pastoral(idem, p. 382, n. 132), as quais apontam para a diferença entre a pregação doevangelho e da celebração da Santa Ceia. Enquanto o poder e função da Pala-vra é conduzir ao arrependimento e à fé, a Santa Ceia pressupõe a existênciade ambos. Para recebe-la é preciso se tornar um verdadeiro cristão antes, a fimde tomar posse dos benefícios desse sacramento, caso contrário uma partici-pação indigna desperta a ira de Deus.

É interessante observar que Walther admite a possibilidade de conver-são de alguém nas palavras da instituição.

The objection has been advanced that it might occurduring the administration of the Sacrament that anunbeliever, hearing the powerful and perfectly clear wordsof institution (“This is My body, which is given for you; thisis My blood, which is shed for you”), would be brought tofaith in the essence of the Lord’s Supper (the RealPresence) as well as faith in the purpose of the Supper(the remission of sins). This possibility must be granted.(Pieper 1953, citando Walther na nota 132, p. 382)

Todavia, sua posição final é a que deve ser segundo conselho do após-

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tolo Paulo em 1 Co 11.28-29, “examine-se, o homem a si mesmo e assim comado pão e beba do cálice”.

6.2 Os cristãos que devem ser admitidosPara participar da ceia não basta ser cristão, mas um cristão qualificado.

Nem todos deveriam ser aceitos na ceia. Para Pieper (idem, pp.383-385) deveri-am ser aceitos apenas os cristãos que foram batizados, os que são capazes dese examinar, os que crêem nas palavras da instituição e na presença real e aque-les cujos eventuais pecados públicos não sejam removidos. Também faz corretouso da ceia somente aquele cristão que busca o perdão e está disposto a perdo-ar o próximo. Além disso, considerando que a comunhão na ceia é comunhãode fé, somente os cristãos de uma mesma confissão poderão ser aceitos.

6.3. A prática da comunhão abertaPieper (idem, p. 385-386) critica com veemência os pastores que prati-

cam a comunhão aberta. Citando Walther, ele diz que nesse caso o pastor setorna infiel, descuidoso e inescrupuloso. Para ele também não é suficienteapelar para o amor a fim de pratica-la, pois isso seria contrário tanto ao amora Deus como ao próximo, pois estaria sendo ignorado o fato de que essacelebração também deve ser feita adequadamente.

6.4. Questões práticas a serem seguidas (idem, p.386-387)Por um lado uma congregação cristã prova agir com responsabilidade na

administração da ceia, quando existe o registro de intenção prévia para parti-cipação e o pastor examine aqueles cuja vida não lhe é familiar.

Por outro lado, cabe ao pastor e à congregação se precaver em nãobarrar alguém de maneira injusta na participação na ceia. “In his day Lutherhad to warn not only against laxity in practice, but also against legalism andunnecessary rigor.” (p.386). É pertinente observar que Lutero não aprova lon-gas entrevistas e os cristãos fracos no conhecimento ou tímidos, deveriam sertestados numa conversa amigável (p. 387).

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Ainda que em certas ocasiões mesmo cristãos não devam ser admiti-dos, a dogmática luterana também esclarece que não se exige um certo nívelde santificação ou fé mais forte, a verdadeira dignidade está em Cristo. “Butthis wonderful gift is given us for the very purpose of transmitting and pledgingto us the free Grace of God, based entirely on Christ’s satisfactio vicaria anddemanding no worthiness of our own at all” (p. 387). Parece me que ao contrá-rio do que foi afirmado até aqui, nesse ponto começa a transparecer de manei-ra mais nítida o aspecto cristológico da Ceia. “That Christ receives sinners” (p.387). Esse pensamento é reforçado por passagens bíblicas que apontam paraa essência da missão de Cristo em busca dos pecadores perdidos (Mt 9.13 – 1Tm 1.15).

6.5 Responsabilidade pastoralPieper (idem, pp. 388-389) ressalta dois aspectos importantes quanto à

responsabilidade do pastor em administrar ou recusar a Ceia. Primeiro, o pas-tor não precisa necessariamente estar certo da fé daquele que deseja comun-gar. Quem mais senão Deus está nessa função? Segundo, o pastor não podeagir segundo suas convicções morais, pois nem a congregação nem os comun-gantes podem ficar sujeitos a esse tipo de idéia. No entanto, o pastor é direta-mente e pessoalmente responsável diante da congregação e Deus, em relaçãoàs pessoas que ele aceita na ceia do Senhor. Uma eventual suspensão está naalçada do pastor, sempre que os cristãos não se enquadram nos parâmetrosrecomendáveis, especialmente arrependimento e fé. Contudo é preciso notarque a função prioritária dum pastor é encontrar e não afastar. “When souls intheir trials reveal a desire to unburden themselves, the pastor certainly shouldmeet them halfway” (Pieper citando Walther, n.140, p. 390).

7 A CEIA NA TEOLOGIA PASTORAL DO

INÍCIO DO SÉCULO

John H. C. Fritz escreveu sua teologia pastoral para aconselhar especial-mente os pastores em sua prática paroquial diária. A respeito da Santa Ceia,ele enfatiza bastante a responsabilidade do pastor em determinar para quemela deve ser administrada (Fritz, 1932, p. 129). O carro chefe para sustentar

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esse pensamento é especialmente Mt 7.6 e o solene dever de pré examinar eregistrar os que desejam receber o Sacramento do Altar, a fim de não dar o queé santo aos impuros (idem, p. 129-130).

Ele usa palavras de Crisóstomo6 para endossar sua posição de que devehaver inscrição prévia para ceia, a fim de proporcionar uma oportunidade deverificação se uma pessoa é cristã penitente e apta para comungar (idem, p.130). Por um lado, ele simplifica seu pensamento dizendo que a indignidadeestá na ausência do arrependimento e da fé, mas por outro lado, ele adverteque a ceia também é comunhão e confissão pública de fé, assim os altaresluteranos são exclusividade dos comungantes luteranos (idem, p. 131).

Fritz ainda realça que pelo menos uma vez ao ano cada comungante deveriaser investigado, preferencialmente numa conversa amigável, sobre algumas dou-trinas fundamentais da fé cristã. Nesse ponto transparece bastante o ladointelectualizado da fé. Os pontos a serem examinados com o candidato à comu-nhão são: 1. Ele crê que a Bíblia é palavra inspirada de Deus; 2. Nas doutrinasessenciais para a salvação; 3. Confessa que é pecador, confia nos méritos de Cris-to, não está vivendo em algum pecado e está em paz com todos; 4. Crê na presen-ça real e na promessa do perdão na ceia; 5. Crê e confessa a doutrina luterana deacordo com o Catecismo Menor e está certo que a igreja luterana é a verdadeiraigreja ortodoxa (idem, p. 132). Aqui claramente despontam ao mesmo tempo avida santificada, o aspecto cognitivo do cristão e eclesiológico, como portas quedevem ser abertas para se ter acesso ao banquete espiritual de Cristo.

Fora dessa esfera investigativa, Fritz diz que somente podem ser admiti-dos os batizados, os que têm capacidade de auto-exame, os que não vivemam algum pecado e os que não são heterodoxos ou incrédulos manifestos(idem, p. 150-154).

O batismo precede a ceia, pois através dele que alguém é regenerado erecebido na comunhão da igreja. E assim só os batizados podem ser recebidosno Sacramento do Altar. Ser um participante digno da ceia também requerplena consciência em relação ao pecado, verdadeiro arrependimento e desejoardente de receber o sacramento para perdão dos pecados. Nesse caso estávedada a participação a crianças e pessoas privadas de sua consciência. A

6 Fritz, 1932. p.130 “I would rather let my own body be destroyed than permit that the body ofthe Lord be given to an unworthy person; I would rather let my own blood be shed than permitthat the most holy blood of the Lord be given to an unworthy person.”

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porta também está fechada àquelas pessoas que vivem em pecado e não de-sejam ser libertados dele. Os pecados mais comuns e que se tornam empeci-lhos para a participação na ceia são os desentendimentos e a falta de reconci-liação; a desonestidade e a falta na restituição de eventuais bens; a ingestãohabitual de bebida alcoólica e que se caracteriza assim como pecado; umaocupação profissional anticristã.7 Só aos membros da Igreja Evangélica Luteranaestá livre o acesso à ceia. “We have a right to assume that those who communeat our Lutheran altars confess the faith of our Lutheran Church.” (idem, p.154). Além desses, pessoas que são manifestamente incrédulos não está per-mitido a participação na ceia do Senhor.

8 O ENSINO DE PAULO EM 1 CORÍNTIOS

11.17-34Muitos dos debates práticos a respeito da Ceia giram em torno de 1 Co

10. 14-22 e 1 Co 11.17-34. Na verdade, essas são as únicas referências dasquais é possível pinçar fora subsídios a fim de construir uma doutrina de digni-dade ou indignidade na participação da ceia. “These two texts are the onlyones in the New Testament that actually speak in some way about communionpractice.” (Gibbs, 1995, p. 148).

Além do debate em torno do versículo 28, o texto como um todo apre-senta mais questões relevantes relacionadas à ceia.8 Todavia, a discussão con-

7 Fritz menciona o fabricante de armas ou manufaturamento de drogas. O texto bíblico mencio-nado é de Dt 18.10-12, cujo teor se resume em artes mágicas.

8 Há detalhes controvertidos como a tradução dos vv. 21 e 33 por exemplo. A. Andrew Daspondera que ao invés de “cada um toma antecipadamente a sua própria ceia...esperai uns pelos outros”,poderia se ler “cada um toma a sua própria ceia...recebam uns aos outros”. A segunda opção daria umoutro cenário àquela comunidade. O problema não seria necessariamente receber a ceia antesdos outros, mas a exclusão de pessoas durante a ceia (1998, p. 192). O outro problema, talvezo principal, tem sido em relação ao “sem discernir o corpo” (v. 29). A tendência moderna éconsiderar esse corpo como a igreja, embora as duas opções sejam possíveis. “Paul can use“body” to refer to the sacramental body, as he clearly does in 1 Co 11:27, as well as to theecclesiastical body, as he does in 1 Co 10:17 and in 12: 12-311 (Das, 1998, p. 198). Assim aquestão central é o pecado sendo cometido contra o sacramento ou contra a igreja? MarkSurburg (2000) também analisa esse texto e baseado em aspectos estruturais e léxicos, concluique os problemas horizontais na comunidade de Corinto não diminuem a ênfase sacramentale vertical do texto. Seu objetivo é argumentar contra a interpretação eclesiástica para o

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vergirá principalmente na interpretação geralmente dada a esse versículo, es-pecialmente o significado do verbo “examinar”, termo que tem sido usado emlarga escala para afirmar a necessidade da prática da comunhão restrita daceia e mais especificamente a necessidade de instrução antes de comungar.

8.1. O problema em CorintoOriginalmente o problema em Corinto foi a embriaguez e a atitude de

desprezo dos ricos aos mais pobres (vv. 21-22). Uns tinham demais outros demenos e faltava o autocontrole nos cristãos de Corinto. “They were treatingsome members of the church as if they were more important than othermembers of the same body” (Gibbs, 1995, p. 156). Com isso estava se per-dendo o cerne daquele momento, pois eles estavam esquecendo que aquelacelebração não era só uma janta comum, mas a ceia do Senhor. Por isso, apresença sacramental de Cristo não estava mais sendo reconhecida em meioàquela refeição.

Baseado nesse primeiro detalhe, parece que havia na congregação deCorinto problemas horizontais, de relacionamento entre as classes sociais,com implicações verticais. Por eles não se darem conta que a comunidadeestava celebrando a ceia do Senhor, a falha horizontal se configurava em peca-do vertical contra o sacramento.

A intenção de Paulo então é relembrar os Coríntios da razão principalporque eles estavam se reunindo: celebrar a ceia do Senhor segundo institui-ção do próprio Senhor da ceia, Jesus Cristo. E assim ele entende que é precisoensinar aos cristãos o costume de se examinar antes de celebrar a ceia.

“corpo” em 11.29. Posição que por sinal é defendida por Nélio Schneider (1996), por exemplo.Ele diz que o “examinar-se” não se refere primariamente a uma auto investigação dos pecadosindividuais, mas uma auto-análise levando em consideração o corpo todo. Dignidade é pensarno corpo todo e indignidade nas divisões, no esvaziamento da dimensão comunitária da ceia.Edward A. Engelbrecht, em um artigo, argumenta em favor da comunhão restrita na ceia, poissegundo ele o contexto isagógico aponta para o fato de que ali existia uma congregação forma-da por ele e que se compunha de membros batizados e instruídos (At 18.1-17; 1 Co 1.14-17).Sendo assim, “his words are not addressed to those who are outside of this fellowship, asthough anyone who would visit the congregation for worship could evaluate himself and thesacrament and so approach the Lord’s Table” (Engelbrecht, pp. 118-121).

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8.2. Em que consiste o “examinar-se”Na exegese tradicional, Lenski (p. 480) diz que o contexto mostra

que o examinar-se consiste em duas coisas. Em primeiro lugar ter fé naspalavras da instituição e em segundo lugar remover do coração tudo quepode se chocar contra a recepção do corpo e do sangue de Cristo, o quepode ser feito pelo sincero arrependimento. Lenski é superficial e simpló-rio em sua análise e a rigor não apresenta nada de excepcional. De fato elepode não estar explorando bem o contexto dessa perícope, cujos proble-mas poderiam conduzir a uma outra reflexão sobre o examinar-se.

Para Calvino, que critica inicialmente a posição papista que conside-rava esse verbo como sinal de necessidade de confissão auricular, esseteste é de arrependimento, fé e amor a Cristo. Ele lembra que não é aperfeição que é requerida, pois se fosse assim, ninguém na humanidadepoderia participar da ceia (Calvin, 1948, p. 388).

A tendência moderna não é resumir esse verbo a um exame de arre-pendimento e fé. Gordon Fee, por exemplo, diz que isto não é um chamadopara uma profunda introspecção pessoal, mas testar a atitude de alguémem relação à ceia e especialmente o comportamento em relação aos ou-tros (Fee, pp. 561-562). Como Fee parece interpretar o “corpo” como sen-do a igreja, ele coloca bastante ênfase no testar a atitude horizontal comosignificado do verbo examinar.

Tradicionalmente esse verbo tem sido interpretado para colocar emrelevo a capacidade duma pessoa em testar suas próprias ações e ter cons-ciência do significado da Santa Ceia. Essa interpretação pode ser coeren-te, desde que esse teste esteja vinculado com os problemas específicosvividos pelos Coríntios e que podem ser manifestados em congregaçõeshoje: Ações corrompidas entre irmãos, que podem resultar em falta de re-verência para com a ceia do Senhor. O contexto revela que havia proble-mas em duas dimensões. Na horizontal, pois havia problemas no relacio-namento entre os cristãos e vertical, pois a prática reverente da Ceia esta-va sendo ignorada. Assim, o examinar-se também deve ser bidimensional,primeiro olhar para si e para o lado, a fim de se certificar que há disposiçãopara o amor, autocontrole, respeito. Depois olhar para cima, para o sacra-mento e reconhecer nele não um mero rito humano ou social, mas a pre-sença de Cristo com seu verdadeiro corpo e sangue.

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Baseado em observações feitas por Bornkamm, Norman Nagel dizque a falha dos Coríntios foi sua arrogância. Para ele o problema centralestava no fato de que alguns cristãos se atribuíam o direito de participar daceia. Essa selbstverständlichkeit os tornava indignos de receber a ceia doSenhor (Nagel, 1991, p. 25). Além disso, a natureza da ceia não permitefalar em indivíduos, mas em comunidade, pois o corpo e o sangue não sãoapenas “por mim”, mas “por nós”. Para Gibbs isto estava sendo negado nacomunidade de Corinto e assim está aí a raiz de todo o problema. “This theCorinthians were effectively denying, by their shaming and despising of oneanother. They were not discerning the true nature of the Sacrament”. (Gibbs,1995, p. 160). O caminho então é se examinar a si mesmos, discernindoem primeiro plano os seus erros horizontais, dando as boas vindas a todose ingerindo bebida alcoólica com moderação e em segundo plano discernira natureza da ceia, a fim de cessar o pecado vertical, que é contra o sacra-mento (idem, p. 161).

É interessante observar que Gibbs não fala em excluir, mas promovermudanças (idem, p. 161-162). Isso é um passo lógico talvez muitas vezesignorado e que a igreja primitiva parece ter levado ao pé da letra. Somenteapós a reconciliação entre irmãos que a liturgia do culto tinha continuida-de e a ceia era celebrada. Apenas aqueles irmãos que selavam as pazescom o ósculo santo tinham acesso ao corpo e sangue de Cristo (Nagel,1991, p. 23).

9 CONCLUSÃO

Aidan Kavanagh (1984, pp. 125-126) escreveu que comparecer diantede Deus é sempre uma atividade de risco. É um risco orar, louvar ou seapresentar diante do altar do Senhor para receber a sua ceia. Esse concei-to parece adequado e pode também ser aplicado à prática da Ceia. Podeser arriscado praticar a comunhão aberta, mas pode não ser menos perigo-so quando se limita a participação na Ceia. Ambas as práticas podem inti-midar.

No leque das diferentes abordagens feitas ao longo dos anos, o pon-to de convergência parece oscilar bastante entre a vida santificada do indi-víduo e sua espiritualidade sadia e que consiste essencialmente no arre-

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pendimento e fé. De fato, não há uma clareza para determinar quais são osagentes que realmente qualificam alguém em ir para a ceia completamenteseguro e deixar o pastor mais tranqüilo. Ora a ênfase é na vida consagrada,ora no arrependimento e no desejo do perdão.

A suspeita é que o equilíbrio nessa discussão depende muito do ân-gulo do qual essa questão é tratada. Parece-me que a ceia é muitas vezesvista mais e só perifericamente do que essencialmente. Por um lado, quan-do se fala demasiadamente em santidade, no sentido de vida consagrada,em consciência tranqüila, em não permanecer em pecados e em instruçãoprévia, como fatores essenciais para participação na ceia, o perigo é per-manecer apenas na periferia. O risco é obscurecer o verdadeiro conceitode santidade exigida, perder de vista a verdadeira natureza e propósito daceia, a cura para o pecador arrependido. Além disso, a centralidade dadoutrina da justificação pela fé e a própria obra e missão de Cristo, que éencontrar pecadores e não santos, nos meios que ele instituiu, podem vir aser comprometidos.

Por outro lado, quando se fala em pecadores arrependidos e atribu-lados buscando reconciliação e alívio; em doentes espirituais buscando acura em Cristo, então se está no núcleo da ceia, então se é cristocêntrico,como a própria ceia é em sua natureza e função. Então se está abrindoportas para Cristo encontrar pecadores e celebrar junto com eles a festada reconciliação e da vida.

A comunhão fechada pode não ser lei, mas com certeza é lei comrigor, quando se coloca em relevo uma lista de exigências para ser recebidopor Cristo, fazendo com isso da ceia uma instituição humana e o doceevangelho de Cristo perder o seu brilho. Onde há exigências, lá não háevangelho.

Diante do exposto e considerando um contexto missionário, pode seconcluir que também é um risco fechar a questão sobre o assunto. Háexigências de bom senso na prática, bem como exigências deaprofundamento da pesquisa sobre o assunto.

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Endereço/AddressProf. Anselmo Ernesto Graff

Universidade Luterana do Brasil/Curso de TeologiaAv. Farroupilha, 8001 – Prédio 11 – Sala 27

92425-900 – Canoas/RS – BrasilE-mail: [email protected]

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O Hegelianismo de Jean-PaulSartre em L’être et le néantJean-Paul Sartre’s Hegelianism in L’être et le néant

ANDRÉ CONSTANTINO YAZBEKDoutorando em Filosofia – PUC/SP

RESUMO

A partir de uma caracterização sumária da Fenomenologia de Hegel, pretende-seexplicitar o quanto o pensamento de Sartre é tributário da filosofia hegeliana, que,mediada pela interpretação de Kojève, se fará presente sobretudo no modo através doqual o filósofo concebe a figura do Outro em sua obra L’être et le néant, absolutizando osmomentos violentos e paradoxais da inevitável batalha das consciências pelo reco-nhecimento mútuo.

Palavras-chave: consciência, dialética hegeliana e intersubjetividade.

ABSTRACT

From a succinct characterization of Hegel’s Phenomenology, the paper seeks tomake explicit how much Sartre’s thought debts to the Hegelian philosophy, which,mediated by the interpretation of Kojève, shows itself especially in the way thephilosopher conceives the figure of the Other in L’être et le néant, absolutizing the violentand paradoxical moments of the inevitable battle for mutual recognition of consciences.

Key words: conscience, Hegelian dialectics, inter-subjectivity.

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Ah! quelle plaisanterie. Pas besoinde gril: l’enfer, c’est les Autres.(Garcin)1

Do ponto de vista filosófico, a “descoberta da modernidade” para Sartredeve-se à descoberta não só de Husserl, mas também de Heidegger e deHegel (lido pelo viés da filosofia de Kojève). Os cursos ministrados por Ale-xandre Kojève na “Ecole Pratique des Hautes Etudes”, de 1933 a 1939, tor-naram-se célebres e acabaram por introduzir o pensamento hegeliano para ageração de Sartre. É Bernard-Henri Lévy (2000, p. 162) quem nos adverte aesse respeito:

Ele [Sartre] permanece prisioneiro de uma corrente deleitura fornecida, no fundo, pelas Leçons de Kojève e quesitua Heidegger como um tipo de continuador, um poucomais sofisticado, da Phénoménologie. Sartre, contrariamen-te a Merleau, ao jovem Lacan, a Breton, não assistiu às‘Leçons’ kojèvianas ? É verdade. Mas elas são o ar dostempos destes anos.

A interpretação kojèviana de Hegel – “o ar dos tempos destes anos” –insiste e acentua os momentos paradoxais, excessivos, violentos da relaçãoentre as consciências, ao invés de assinalar o aspecto racional e “pacificante”do pensamento hegeliano. Em outros termos: em Kojève, a descrição hegelianada intersubjetividade toma uma concepção dramática e sangrenta, com acen-to desabusado sobre os momentos de luta e embates entre as consciências.Ora, especialmente no que tange à problemática do Outro e à conseqüenterefutação do solipsismo em L’être et le néant, há uma clara inspiração da doutri-na hegeliana do senhor e do escravo.

Antes de tudo, porém, devemos examinar o que Sartre de fato – aindaque sob a inspiração de Kojève – procura em Hegel.

Sartre reconhece a necessidade de encontrar, para além de Husserl –que, de sua perspectiva, teria promovido a redução do Outro a uma série designificações, de modo que a existência de outrem se resumiria ao conheci-

1 SARTRE, Jean-Paul – “Huis Clos”. In: Théâtre de Jean-Paul Sartre. Collection Soleil. Paris, Gallimard,s.d. p. 182.

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101Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

mento que dele tenho2 – um caminho diverso para a refutação do solipsismo.Assim, Sartre impõe a si a tarefa de demonstrar que o Outro não seria apenasuma aparição empírica, mas também e principalmente a condição da unidadee da riqueza do mundo. Nesta tarefa, em L’être et le néant, o filósofo francês seservirá em larga medida do pensamento de Hegel, em especial de sua

2 Sartre não deixa de considerar o fato de que Husserl também ter-se-ia preocupado em refutaro solipsismo através da demonstração de que o recurso a outrem é condição indispensável daconstituição de um mundo. No entanto, segundo Sartre, ao conservar o “sujeito transcendental”Husserl se viu obrigado a enfrentar o problema do paralelismo de sujeitos transcendentais –assim sendo, ao abordar o “ego empírico” a filosofia husserliana deveria nos remeter para o“sujeito transcendental”. Dessa feita, o Outro não seria jamais o “personagem empírico” que seencontra em minha experiência concreta, mas tão somente o “sujeito transcendental” para oqual tal “personagem” me remete. Por um lado, a filosofia de Husserl se constituiria como umprogresso em relação a Kant, posto que o pai da fenomenologia possuiria a vantagem de com-preender que cada objeto não é constituído apenas por uma simples relação com o sujeito,mas sim revelando-se a uma pluralidade de consciências. Por outro lado, entretanto, a seme-lhança do “sujeito transcendental” de Husserl com o de Kant exige uma solução para o proble-ma da conexão entre “sujeitos transcendentais” para além da experiência. Sartre prossegue emsua análise considerando a possibilidade de se responder às suas exigências do seguinte modo:o “sujeito transcendental” remeteria para outros “sujeitos” pela constituição do conjunto“noemático”. Mas então, diz-nos Sartre, poder-se-ia afirmar que tal “sujeito” remeteria a signi-ficações, e, nesse caso, o Outro estaria reduzido também à significações ou categorias suple-mentares para a constituição de um mundo, não sendo mais um “ser real para além destemundo”, isto é, esvaziado de sua concretude. Sartre admite, contudo, que a “categoria outro”presume uma remissão ao “sujeito”. Entretanto, tal remissão é apenas hipotética, posto quetem o puro valor de um conteúdo de conceito unificador – o que, em última instância, limita osdireitos do conceito unificador ao mundo e, assim sendo, não alcançam o Outro que por natu-reza está “fora do mundo”. Ainda mais: segundo Sartre, Husserl impede a possibilidade decompreender o que significa o “ser extramundano” do Outro, pois define o “ser” como simplesindicação de uma “série infinita de operações a efetuar”. Sartre afirma a impossibilidade demedir o Ser pelo conhecimento, mas alega que mesmo que isso fosse possível o Ser do Outroseria então medido pelo conhecimento que ele toma de si mesmo, e não pelo conhecimentoque tomo dele. Nesse caso, o alvo a ser atingido não seria o conhecimento do Outro, mas simo Outro tendo conhecimento de si, o que é impossível. Segundo Sartre, é justamente porcompreender tal impossibilidade que Husserl definirá o Outro assim como ele se revela para anossa experiência concreta, ou seja, como uma “ausência” – que aos olhos de Sartre, enquanto“ausência”, está desprovida de “intuição”. Assim sendo, se não há “intuição” de outrem nafilosofia de Husserl, o Outro ou não passa de um “noema vazio”, na medida em que correspondeà minha “visada” dirigida em sua direção, ou então assume a forma de um “conjunto de opera-ções de unificação e constituição de minha experiência”, na medida em que aparece enquantoum “conceito transcendental”. Desse modo, não haveria uma resposta decisiva para o solipsista:“Husserl répond au solipsiste que l’existence d’autrui est aussi sûre que celle du monde encomprenant dans le monde mon existence psychophysique; mais le solipsiste ne dit pas autrechose: elle est aussi sûre, dira-t-il, mais pas plus. L’existence du mond est mesurée, ajoutera-t-il, pas la connaissance que j’en prends; il ne saurait en aller autrement pour l’existence d’autrui”(Sartre, 2001. p. 273).

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Fenomenologia do Espírito – cuja descrição dos movimentos iniciais da consciên-cia servirá de modelo para a investigação de Sartre. Convém, portanto, exami-narmos de modo sumário o que Hegel tem a nos dizer acerca das relaçõesentre consciências.

Em sua Fenomenologia3 , Hegel nos apresenta a descrição do momentoinaugural da consciência, ou seja, o momento em que ela é somente certezasensível (sinnliche Gewissheit) – que corresponde ao primeiro capítulo da dialéticahegeliana. Assim, diz-nos Hegel, se existe em matéria de conhecimento algumdado imediato, é a certeza sensível – que não é senão um saber imediato de umobjeto também imediato. A certeza sensível se caracteriza justamente pelo fatode, nesta etapa primeira, a consciência ter-se apenas como um puro eu, nomomento mesmo em que acolhe um saber que é apenas o do imediato ou dosendo. Este saber do imediato, enquanto conteúdo concreto circunscrito ao ter-reno da certeza sensível, se afigura para a consciência como se fosse o conheci-mento mais rico – tanto em amplidão quanto em conteúdo –, uma vez que ela,imediatamente, não encontra nele limites nem divisões. Além disso, este co-nhecimento aparecerá aos olhos da consciência também como o mais verda-deiro, posto que ela tem diante de si a plenitude do objeto, sem ainda qual-quer separação ou distanciamento que a fizesse descartar algo de seu objeto.Entretanto, conforme Hegel e ao contrário do que parece:

Este certeza [sensível] se faz passar a si mesma pela verdademais abstrata e mais pobre. Do que ela sabe, só exprimeisto: ele é. Sua verdade apenas contém o ser da coisa; aconsciência, por seu lado, só está nessa certeza comopuro Eu, ou seja: Eu só estou ali como um puro este, e oobjeto, igualmente apenas como puro isto. /.../ Nem o eunem a coisa tem aqui a significação de uma mediação

3 Em sua introdução à segunda parte de sua obra acerca da Fenomenologia do Espírito de Hegel, JeanHyppolite faz uma importante observação sobre a intenção que preside a primeira parte da obrahegeliana em foco: “A dialética que Hegel apresenta na primeira parte de sua obra sobre a consci-ência não é tão diferente da dialética de Fichte ou de Schelling. Trata-se de partir da consciênciaingênua que sabe imediatamente de seu objeto (ou melhor, acredita sabê-lo) e mostrar que, defato, no saber de seu objeto, ela é consciência de si, saber de si mesma. Portanto, o movimentopróprio dessa dialética que se efetua em três etapas – consciência sensível, percepção, entendi-mento – é aquele que vai da consciência à consciência de si. Entretanto, o objeto dessa consciên-cia se torna para nós o conceito (Begriff). A diferença entre Fichte ou Schelling radica em que Hegelnão parte da consciência de si, ou do eu = eu, mas chega a ela ao pretender seguir as própriasdémarches da consciência não filosófica.” (Hyppolite, 1999. p. 93).

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multiforme. O Eu não tem a significação de um multiformerepresentar ou pensar, nem a Coisa uma significação deuma multidão de diversas propriedades; ao contrário, aCoisa é, e ela é somente porque é. A Coisa é; para o sabersensível isso é o essencial: esse puro ser, ou essa imediatezsimples, constitui sua verdade. A certeza igualmente, en-quanto relação, é pura relação imediata. A consciência é Eu,nada mais: um puro este. O singular sabe o puro este, ouseja, sabe o singular. (Hegel, 1992, pp. 85/86)

Portanto, a certeza sensível (o saber imediato de um objeto também imedi-ato), que parece o conhecimento mais rico e verdadeiro, se revelará a maisabstrata e a mais pobre verdade – porquanto de seu objeto só sabe mesmoque ele é; do sujeito, por sua vez, só constata que é um “este aqui” certo deum “isso ai”; e do saber, por conseguinte, que há apenas uma relação imediataentre os dois termos. A pobreza e a precariedade de tal certeza residem nofato de que ela revela por um lado apenas que a coisa é e, por outro, só permi-te saber de um eu onde primeiro não há diferença alguma. Dito de outro modo:neste caso, a relação com a coisa é a relação imediata de um puro eu singular(das Meinen) que sabe de um isto (das Dieses) também singular e que está referidosomente a si, isto é, que é isto e é meu. Note-se que há aqui de fato um saber,isto é, uma distinção entre a certeza e a verdade. No entanto, por se tratar deum saber imediato, a certeza sensível será igual à verdade, posto que de outromodo ou o saber superaria seu objeto ou este superaria o saber e, em ambosos casos, verificar-se-ia a intervenção de uma certa reflexão, ou seja, uma cer-ta diferença enquanto mediação.

Mas o ponto crucial da argumentação hegeliana se concentra na dialéticainterna da certeza sensível – em primeiro lugar, trata-se de um saber imediato queé também saber do imediato, ou do ente: sabe o Ser e somente o Ser, pois recusatoda mediação ou toda abstração que porventura pudesse alterar seu objeto.Entretanto, ao se aprofundar no exame da certeza sensível, Hegel não deixa desublinhar que há nela mais do que a pura imediatez. Ora, primeiramente, cum-pre dizer que uma determinada certeza sensível, que “põe em jogo” um “esteaqui” e um “isso ai”, é apenas um caso singular de um sujeito e de um objetode conhecimento sensíveis. Em segundo lugar, destaca-se o fato de que exis-tem aqui muitas mediações que, nesta etapa, não são percebidas pela consci-ência. A mais importante destas mediações diz respeito ao fato de que tanto osujeito quanto o objeto são de fato, cada um por seu turno, mediatizados:

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Entre as diferenças sem conta que ali se evidenciam, acha-mos em toda a parte a diferença-capital, a saber, que nestacerteza [sensível] /.../ há um este, como Eu, e um este comoobjeto. Para nós, refletindo sobre esta diferença, resultaque tanto um como o outro não estão na certeza sensívelapenas de modo imediato, mas, ao mesmo tempo, comomediatizados. Eu tenho a certeza por meio de um outro, asaber: da Coisa; e essa está igualmente na certeza median-te um outro, a saber, mediante o Eu (Hegel, 1992, p. 86)

Desse modo, da certeza sensível destacam-se de saída ambos os “isto”:um “este aqui” enquanto eu (ich) e um “isso aí” enquanto objeto (Gegenstand).Assim, ainda em seu movimento inaugural, ou seja, sem abalar sua primeiraunidade, a consciência traz consigo a oposição implícita entre o seu próprioSer e aquilo que sabe de maneira imediata – a diferença entre o sujeito e oobjeto implica já uma certa mediação. Neste sentido, a consciência irá se por-tar ora do lado do objeto (e, nesse plano, há de considerá-lo como o essenci-al) ora do lado do sujeito (que então será posto como o essencial, enquantoque o objeto será o inessencial). Não percorreremos todas as vicissitudesdialéticas que comportam o exame hegeliano destas questões – o itineráriodialético de Hegel levar-nos-ia longe demais. Basta apenas sublinhar o seguin-te: o singular da consciência imediata – enquanto puro eu e enquanto coisa pre-sente sem mediações – sugere de antemão a multiplicidade. Donde aconstatação de que há em jogo muito mais que a mera imediatez: tomada comoum exemplo da relação imediata com o que é, a visada sobre o singular antecipana certeza sensível o caráter mediatizado tanto do puro eu quanto do sendo dacoisa. Sem a coisa singular, não há meios de se chegar à certeza do eu; sem amediação do eu que põe a coisa, a consciência jamais poderia adquirir o tom dacerteza.

Ora, Sartre se utilizará do início da Fenomenologia de Hegel justamentepara sublinhar o fato de que, desde o nível da certeza sensível, constata-se jáuma diferença que evidencia o eu e a coisa (ou o isso) enquanto mediatizados.Trata-se aqui, com efeito, de se escorar no movimento mínimo de diferença esugestão de multiplicidade que se encontram na descrição hegeliana do mo-mento inaugural da consciência. Interessa a Sartre, via Hegel, promover a que-bra da análise estática da consciência e, assim, livrar o terreno dos entulhosque porventura impedissem um acompanhamento dos movimentosconstitutivos dela própria. Destarte, o recurso a Hegel, e em particular à sua

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Fenomenologia, tem a função de destacar a relação entre o reconhecimento doOutro e as imprescindíveis “verdades” e “mediações” que lhe são correspon-dentes – afirma-se aqui o postulado de que a consciência de si não é senãouma relação de sincretismo entre um sujeito e um objeto que ainda não éobjetivado, ou seja, que é o próprio sujeito. Desse modo, o Outro será a medi-ação indispensável para a consciência de si, ou seja, para a minha própriainterioridade. Enfim, a consciência de si em geral reconhece-se em outras cons-ciências de si, que são idênticas entre si e entre a própria consciência emgeral. O que significa dizer, e Sartre efetivamente o diz, que há uma consciên-cia que é Outra e que é mediadora.

A partir de uma série de incursões na Fenomenologia do Espírito, Sartrepretende solapar o solipsismo. Dessa feita, como aludimos anteriormente,nosso autor se servirá da famosa passagem de Hegel sobre a oposição dialéticado senhor e do escravo – o objetivo almejado é o de promover a explicitaçãodas descrições hegelianas acerca do reconhecimento de si e do Outro. Nocapítulo IV da obra hegeliana, intitulado A Verdade da Certeza de si-mesmo, afirma-se o “ser para o outro” como um “estágio necessário” do desenvolvimento daprópria consciência de si. Assim sendo, se acompanharmos de perto a argumen-tação de Hegel, veremos o momento em que a consciência de si procura-se noOutro, ou seja, ela se faz Ser Para-Outro. Ora, à semelhança da consciênciahegeliana, também em Sartre a consciência, para ser consciência de si mesma,deve passar por outrem. Desse modo, Hegel parece realizar um considerávelprogresso em relação a Husserl:

Se, ao invés de observar as regras de sucessão cronológi-ca, nos conformarmos às de uma espécie de dialéticaintemporal, a solução que Hegel dá ao problema, no pri-meiro volume da Fenomenologia do Espírito, parece realizarum progresso importante sobre aquela que Husserl pro-põe. Com efeito, não é mais à constituição do mundo ede meu ‘ego’ empírico que a aparição do outro é indis-pensável: é à existência mesmo de minha consciênciacomo consciência de si. (Sartre, 2001, p. 274)

Em Hegel, e esta é, segundo Sartre, a “intuição genial” do filósofo ale-mão, a condição da consciência de si reside exatamente na existência de outrasconsciências de si. Vejamos mais de perto o procedimento da “intuição” hegeliana:a consciência de si é Desejo e, enquanto tal, só alcança a sua verdade ao encon-

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trar outra consciência de si. Ora, a oposição entre o saber de si e o saber de umOutro é o ponto de partida para que possamos entender em que sentido aconsciência de si é Desejo: enquanto que a consciência, em seu primeiro estágio,não era senão o saber de um Outro, precisamente do mundo sensível em ge-ral, a consciência de si é apenas saber de si – de modo que ela se exprime pelaidentidade do Eu = Eu, ou seja, do “Ich bin Ich”. Desse modo, o Eu é objetopara si próprio – sendo concomitantemente sujeito e objeto põe-se para-si.Entretanto, faz-se necessário observar que, não obstante, esse saber de si não éo primeiro: ele é tão somente o produto da reflexão que parte do ser do mun-do sensível (Outro) e do mundo percebido para só então, com efeito, retornara si mesmo a partir do “ser-outro”. De fato, deve-se sublinhar aqui a assertivahegeliana de que a consciência de si é essencialmente este retorno a si a partir doOutro. Destarte, a consciência de si é justamente por meio desse retorno: ela é,enquanto tal, movimento. Ora, o próprio movimento da consciência de si – suacondição sine qua non de existência – exige a alteridade, isto é, esse mundomesmo da consciência que, assim, é conservado para a consciência de si. Contu-do, tal mundo é conservado não mais como um objeto que reflete passiva-mente a consciência, ou seja, um ser-em-si, mas sim como um objeto negativoque, agora, deve ser negado para dar lugar ao estabelecimento da consciência desi propriamente dita – assim, é na negação do “ser-outro” que advém a própriaunidade da consciência consigo mesma. Enfim, têm-se aqui dois momentosdistintos: 1) a consciência de si é como consciência – e, nesse sentido, lhe seráassegurada a extensão integral do mundo sensível; 2) porém, ao mesmo tem-po, ela só é na medida em que está relacionada com o segundo momento,qual seja, aquele da unidade da consciência consigo mesma. Assim, conformea letra de Hegel:

Com aquele primeiro momento, a consciência-de-si écomo consciência e para ela é mantida toda a extensão domundo sensível; mas ao mesmo tempo, só como referidaao segundo momento, a unidade da consciência-de-siconsigo mesma. Por isso, o mundo sensível é para elauma subsistir, mas que é apenas um fenômeno, ou dife-rença que não tem em si nenhum ser. Porém essa oposi-ção, entre seu fenômeno e sua verdade, tem por sua es-sência somente a verdade, isto é, a unidade da consciên-cia-de-si consigo mesma. Esta unidade deve vir-a-ser es-sencial a ela, o que significa: a consciência-de-si é dese-jo, em geral. (Hegel, 1992, p. 136)

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Claro está: o Desejo a que Hegel se refere é este movimento da consci-ência que nega o Ser, quer dizer, se apropria concretamente dele e o faz seu.Ora, a condição da vida espiritual e social, em Hegel, depende da transição doDesejo para o encontro das consciências de si. Em primeiro lugar, deve-se ter emconta que o objeto do desejo não é um objeto posto em sua independência;em segundo, pode-se dizer que tal objeto, enquanto objeto de desejo, é e nãoé – posto que, se por um lado ele é, por outro, em breve ele não será mais: suaverdade é a de ser consumido, isto é, negado, para que por meio desta negação(do Outro) a consciência de si se assemelhe a si mesma. Sendo assim, a consciênciade si é um desejo que deseja ela mesma – ainda que não saiba disso explicita-mente. Justamente por isso, por ser seu próprio desejo, é que a consciência de sisó poderá encontrar-se ao se encontrar com uma outra consciência de si, valedizer, um Outro desejo. Progressivamente, a dialética teleológica da Fenomenologiahegeliana promoverá a explicitação de todos os horizontes desse Desejo queé a essência da consciência de si: o desejo pelos objetos do mundo dará lugar aodesejo pela Vida, que é um objeto mais próximo de si mesmo; este desejo, porsua vez, deve ceder o lugar ao desejo por outra consciência de si, sendo que,dessa feita, o que se procura no Outro é o próprio desejo – que doravante setraduzirá em desejo pelo reconhecimento do Outro. Enfim, a consciência de siprocura-se no fundo desse desejo e procura-se no Outro.

Note-se, a esse respeito, a maneira pela qual Sartre se aproxima dadialética hegeliana ao formular a questão do reconhecimento do Outro:

Mas o outro não me interessa senão na medida em que éum outro Eu, um Eu-objeto para Mim, e, inversamente,na medida em que ele reflete meu Eu, quer dizer, enquan-to sou objeto para ele. Por esta necessidade, em que eusou, de não ser objeto para mim senão lá, no outro, devoobter do outro o reconhecimento de meu ser. Mas se minhaconsciência para-si deve ser mediada consigo mesma poruma outra consciência, seu ser-para-si – e por conseqüên-cia seu ser em geral – depende do outro. Sou tal comoapareço ao outro. Além disso, posto que o outro é talcomo ele me aparece e que meu ser depende do outro, omodo pelo qual eu apareço para mim – ou seja, o mo-mento do desenvolvimento de minha consciência de mim– depende do modo pelo qual outro aparece para mim. Ovalor do meu reconhecimento pelo outro depende do va-lor do reconhecimento do outro por mim. Neste sentido,

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na medida em que o outro me apreende como ligado aum corpo e imerso na vida, eu mesmo não sou senão umoutro. (Sartre, 2001, pp. 275/276)

Assim, através de Hegel, Sartre pôde vislumbrar o itinerário próprio doreconhecimento e da observação do Outro. Para Sartre, como a citação acimadeixa claro, trata-se de perscrutar o modo através do qual uma consciênciaaparece para outrem e, ao mesmo tempo, se vê refletida e testemunhada porele. Enfim, estamos diante da reciprocidade das consciências que se reconhe-cem. É aqui, com efeito, que Sartre se apropria de duas figuras opostas ecentrais da consciência hegeliana: a do senhor e a do escravo – a primeira érepresentativa da consciência independente, enquanto que a segunda expri-me a consciência dependente. Observe-se o seguinte: os homens têm o impe-rioso desejo de se fazerem reconhecer como consciência de si, e essa paixão,destarte, exige o reconhecimento de outra consciência de si. Assim, os homensestão em luta permanente para extrair de outrem o reconhecimento de si:trata-se de provar aos outros e a si mesmo que se é uma consciência autôno-ma, e só se pode provar tal coisa a si provando-a aos outros e deles obtendoessa prova. Decerto, em Hegel, a luta contra o outro não é senão um conflitoessencial pelo reconhecimento – não obstante as formas que o conflito possaassumir no decurso da história. Ocorre que, ao fazer a experiência da luta peloreconhecimento por parte de outrem, a consciência de si se depara com a expe-riência das relações de desigualdade no reconhecimento, quer dizer, com aservidão e com a dominação.

O ponto de partida da dialética hegeliana do senhor de do escravo é,como sempre, o imediato: a consciência de si – que em sua simplicidade e igualda-de consigo mesma, excluindo o Outro, toma por objeto o seu Eu singular –marca com sinal negativo, isto é, com a rubrica de um objeto que não lhe éessencial, qualquer Outro que lhe apareça. Assim, em sua imediaticidade, oenfrentamento se dá não entre consciências de si, mas sim entre simples indivídu-os imersos no ser da vida. Cada consciência, certa de si mesma mas não daoutra, não possui a verdade em sua certeza, pois cada para-si não se apresen-tou como objeto independente, ou seja, seu objeto não é ainda a pura certezade si mesma. Para tanto, o conceito de reconhecimento exige que cada consciên-cia opere em si, e para outro, esta pura abstração do para-si: trata-se de extir-par de si mesmo todo ser imediato e reter apenas o puro negativo da consciên-cia igual a si mesma. Contudo, apresentar-se assim é comprovar o seu desape-go da vida, demonstrando que não se está preso a nenhum “ser-aí” determina-

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do. De um lado, enquanto operação do Outro, cada consciência visa a mortede outrem; da perspectiva da própria operação da consciência, isso significaque cada qual coloca em risco a própria vida. Destarte, as duas consciênciasse põem à prova e se comprovam por meio da uma luta de vida e morte –arriscando suas vidas, cada qual quer provar a outra que é um puro ser-para-si,para quem todas as coisas se põem enquanto um momento evanescente, in-clusive a própria vida.

Conforme Hyppolite :

A relação entre o senhor e o escravo resulta da luta peloreconhecimento. Inicialmente, consideremos o senhor: osenhor já não é somente o conceito da consciência parasi, é sua realização efetiva, quer dizer, é reconhecido poraquilo que ele é /.../. O senhor só é senhor porque reco-nhecido pelo escravo, é autônomo pela mediação de umaoutra consciência de si, a do escravo. Sua independênciaé , portanto, totalmente relativa; mas ainda, o senhor, aose relacionar com o escravo que o reconhece, relaciona-se também, por intermédio dele, com o ser da vida, coma coisidade. O senhor relaciona-se mediatamente com oescravo e mediatamente com a coisa. O senhor relacio-na-se com o escravo por meio da vida (do ser indepen-dente). Com efeito, o escravo não é propriamente escra-vo do senhor, mas da vida; é escravo porque recuou dian-te da morte, preferiu a servidão à liberdade na morte /.../. O ser do escravo é a vida, portanto não é autônomo,mas sua independência está no exterior de si mesmo, navida e não na consciência de si; pelo contrário o senhorse mostrou elevado acima desse ser, considerou a vidacomo um fenômeno, um dado negativo; por isso, é o se-nhor do escravo por meio da coisidade. O senhor relacio-na-se também com a coisa por intermédio do escravo,pode usufruir das coisas, negá-las completamente e as-sim afirmar completamente a si mesmo; a independênciado ser da vida, a resistência do mundo diante do desejonão existem para ele. Ao contrário, o escravo só conhecea resistência desse ser diante do desejo, e por isso nãopode chegar à completa negação desse mundo; seu de-sejo conhece a resistência do real, portanto só faz elabo-rar as coisas, trabalhá-las. (Hyppolite, 1999, pp. 187/188)

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Por meio desta luta por reconhecimento, a consciência oferta sua vida aorisco e, desse modo, faz a experiência de que a vida lhe é tão cara e essencialquanto a pura consciência de si – posto que ao se suprimir a vida se elimina tam-bém a consciência dos lutadores. Neste momento, uma das consciências de si seeleva acima da vida animal: ao se demonstrar capaz de se defrontar com a mortesem recear a perda de sua substancialidade, tal consciência põe o ser-para-siabstrato como a sua essência e assim parece escapar à escravidão da vida – eisa consciência do senhor, aquela que é efetivamente reconhecida; por outro lado,deve-se atentar para uma outra consciência de si, que prefere a vida ao invés daconsciência de si – esta optou pela escravidão e, poupada pelo senhor, será conser-vada apenas como uma coisa que, nesse estatuto, reconhecerá o senhor masnão será reconhecida por ele: trata-se aqui, evidentemente, do escravo. Note-sebem, para a consciência independente (o senhor), a essência é o ser para-si; já para aconsciência dependente (o escravo), a essência é a vida, ou o ser para-outro. Emoutros termos: os dois movimentos centrais da consciência de si vão se separar: atautologia Eu = Eu dará lugar à consciência do senhor, que se elevou acima doser da vida; o Outro, a consciência na forma da coisidade, por seu turno, dará lugarà consciência do escravo, que é consciência somente para o outro – se antes,para a consciência de si imediata, o Eu simples era o objeto absoluto, agora esteobjeto se cinde: de um lado, a pura consciência de si; de outro, apenas a consciên-cia que não é para-si, mas para a Outra. Destacam-se aqui os três termos pre-sentes na dialética que se segue: o senhor, o escravo e a coisidade. Os momentoscorrespondentes ao Si e ao Outro são aqui dissociados por Hegel: enquanto queo Si corresponde ao senhor, que nega a vida em sua positividade, o Outro é oescravo, isto é, uma consciência – não mais que a consciência da vida enquantopositividade, uma consciência na forma da coisidade, no elemento do ser, por-tanto. Ora, o escravo, enquanto consciência de si em geral, comporta-se diante dacoisa de modo negativo e, não podendo anulá-la, transforma-a por intermédiodo seu trabalho – o escravo visa suprimir a coisa. No caso do senhor, como acitação acima explicita, há a pura negação e supressão da coisa – sempre porintermédio da relação imediata.

Hegel engendra aqui uma nova categoria da vida histórica, a saber, aquelado Senhor e do Escravo. No entanto, faz-se necessário ressaltar que, nãoobstante o fato de se tratar de uma categoria que constitui a essência demúltiplas formas históricas, estamos diante apenas de uma experiência parti-cular do desenvolvimento da consciência de si: se a oposição entre os homensconduz à dominação, tal dominação, por sua vez, conduzirá à libertação doescravo:

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Na história, a verdadeira maestria pertence ao escravo tra-balhador, não ao nobre, que somente colocou a sua vidaem jogo, mas afastou de si a mediação do ser-aí vital. OSenhor exprime a tautologia Eu = Eu, a consciência de siabstrata e imediata. O escravo exprimirá a mediação es-sencial à consciência de si, mas desapercebida pelo Se-nhor. Quando efetuar conscientemente essa mediação, oescravo se libertará. (op.cit., p. 186)

A dialética hegeliana do senhor e do escravo, conforme atesta inclusiveJean Hyppolite, consiste em mostrar que o senhor revela-se, em sua verdade,como o escravo do escravo, enquanto que o escravo não é senão o senhor dosenhor: o escravo é a verdade do senhor. Assim, de acordo com Hegel:

A verdade da consciência independente é a consciência escra-va. Sem dúvida, esta aparece de início fora de si, e nãocomo a verdade da consciência-de-si. Mas, como a domi-nação mostrava ser em sua essência o inverso do quepretendia ser, assim também a escravidão, ao realizar-secabalmente, vai tornar-se, de fato, o contrário do que éimediatamente; entrará em si como consciência recalcadasobre si mesma e se converterá em verdadeira independên-cia. (Hegel, 1992, p.149)

Entretanto, como aqui se trata do Hegel de Kojève, há que se apararalgumas arestas: em Hegel, a dialética do senhor e do escravo se apresentacomo o resultado de um processo “histórico”4 , vale dizer, como apenas ummomento da evolução geral do espírito, enquanto que em Sartre essa mesmatese se torna absoluta e é aplicada à condição humana como tal. A influênciade Kojève neste particular é patente – para determiná-la de modo sumário,basta-nos uma citação da Introduction à la Lecture de Hegel:

Quer dizer que o homem só é humano na medida em quequer se impôr a um outro homem, se fazer reconhecerpor ele. /.../ Nestas condições, a luta pelo reconhecimen-

4 Isso não significa dizer que se trate de um “momento particular” da história, ou então da pré-história humana. Como bem nos adverte Hyppolite (1999, p. 185): “/.../ trata-se de uma catego-ria da vida histórica, de uma condição da experiência humana que Hegel descobre pelo estudodas condições do desenvolvimento da consciência de si.”

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to não pode terminar a não ser pela morte de um dosadversários, – ou dos dois ao mesmo tempo. (Kojève, 1947,p. 19/20)

Kojève, que passara seus anos de formação na Alemanha, também haviaabsorvido o impacto propiciado pela filosofia de Heidegger – que se encontra-rá, em suas obras, mediado pela influência de Karl Marx. Segundo PerryAnderson (1999, p. 55), Kojève pretende “esfoliar” o centro do sistema deHegel em um duplo desenvolvimento que, por sua vez, na passagem dametafísica do Absoluto para si mesmo, acabará por substancializar o movi-mento do Espírito através do tempo em duas figuras complementares: 1) afigura existencial – que descreverá a dinâmica da identidade humana como umaliberdade negando sua situação em busca de um desejo, que só poderá sersatisfeito mediante seu livre reconhecimento por outros; 2) a figura social – quetraçará o modelo de relações sociais a partir do desenrolar de sucessivos con-flitos que vão desde a dominação aristocrática, passando pela ascendênciaburguesa, até a “igualdade popular”. Conforme Kojève, estas eram as duasfiguras que se entrelaçavam em uma única narrativa e que imprimiam seu sen-tido à história do mundo. A ação aniquiladora de toda a consciência, em suaorigem mesma e movida por um desejo pelo que não-é, empenha-se em umacompetição com a consciência de todos os outros, pois cada qual quer extor-quir o reconhecimento de si mesmo, o único que pode satisfazê-lo – nessebusca desenfreada, aceita-se o risco da morte a fim de se obter o domíniosobre o outro. Dessa feita, surge o primeiro relacionamento social, a saber, arelação entre o senhor e o escravo na Antiguidade. Eis que, passando emrevista as diversas transformações que se sucedem na história – da escravidãona antiguidade ao mundo capitalista –, Kojève antevê a vitória dos trabalhado-res sobre o capital e proclama em alto e bom som a chegada da revolução queirá assegurar o reconhecimento universal de todos em “igualdade substanti-va”. Ainda conforme Perry Anderson, Kojève não fez segredo algum em relaçãoàs suas fontes inspiradoras, ou seja, Heidegger, Marx e Hegel:

Heidegger tinha compreendido a projeção primordial daexistência humana para a morte na filosofia de Hegel, queresulta da luta de cada consciência para arrancar um tri-buto simbólico – honra ou prestígio – de suas rivais; masignorara em grande parte os processos transformativosdo trabalho. Marx tinha apreendido a dinâmica materialdo trabalho deflagrado pelo impulso para o reconheci-

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mento, mas negligenciara a luta para a morte nela suben-tendido. A filosofia de Hegel uniu esses dois temas: mor-te, luta e trabalho concatenados num só movimento en-quanto a humanidade avança para a sua meta. (Anderson,1999, p. 56)

Ocorre que, no entanto, Kojève baseou sua interpretação de Hegel qua-se que exclusivamente na Fenomenologia do Espírito, o que lhe proporcionoumáxima latitude interpretativa – posto que a Fenomenologia de Hegel, relacio-nando-se imediatamente com a formação do Eu e o desenvolvimento do mun-do, em linguagem e intensidade apaixonantes, convida às mais amplas cons-truções interpretativas, ao mesmo tempo em que retém a maioria dasespecificações empíricas necessárias para elas, não obstante o substrato po-lítico do texto. Nem os primeiros textos teológicos de Hegel, ou então os es-critos de Iena, ou ainda a Filosofia do Direito, As Conferências sobre a Filosofia daHistória, nada disso parece ter sido objeto de leitura sistemática de Kojève.

Sob sua interpretação particular da Fenomenologia de Hegel, Kojève intro-duzirá dois conceitos que passam a dominar a cena de suas Leçons: desejo esatisfação. Notadamente, Kojève extraiu-os da dialética da autoconsciênciano quarto capítulo da obra hegeliana em foco: o desejo humano é fundamen-talmente desejo do que ele não é, ou seja, estamos no terreno da consciênciadesejosa de outros. No âmbito de tal dinâmica é que se desencadeia a disputarecíproca de subjetividades – cuja primeira figura histórica, já vimos, é a dialéticado senhor e do escravo –, na qual está em jogo o reconhecimento. A vitórianessa luta é satisfação. Ora, a autoconsciência, como vimos em Hegel, só reali-za a sua satisfação em uma outra autoconsciência. No entanto, em si mesmo,isso se constitui apenas com um dos vários episódios da consciência – já noquinto capítulo da Fenomenologia hegeliana, os termos “desejo” e “satisfação”desaparecem frente à razão. Satisfação, no espírito hegeliano, é um termousado apenas para circunscrever o objeto da dialética do desejo. Dessa feita,Kojève acaba por realçar o que em Hegel seria tendencialmente abandonadoe/ou suplantado. Note-se bem, em Kojève, uma vez definida a consciênciahumana enquanto não-identidade, e a liberdade como movimento de aniqui-lação do mundo, resta a ela apenas a busca essencial de uma identidade, ouseja, reconhecimento.

Nesse sentido, veja-se como Anderson concebe o ponto de intersecçãoentre Hegel e Sartre:

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A satisfação que procura [a consciência], no esquema ori-ginal de Hegel, é a fusão de sua própria autoconsciênciacomo para-si-mesmo com a sua presença como um em-si-mesmo reconhecido por outros. Foi Sartre quem de-senvolveu a mais famosa construção em torno dessa idéia.No drama fenomenológico de O ser e o nada, a busca pelaconsciência de uma transparência estável no em-si-mes-mo-para-si-mesmo é uma busca inevitável mas impossí-vel: a liberdade é uma paixão inútil. O resto da filosofia deSartre foi uma longa tentativa, por diferentes vias, dereinserção da liberdade como meta ética e política aindaa ser atingida, de volta a uma ontologia que, em primeirolugar, a garantiu como ônus necessário. À versão de Kojèveda dialética do reconhecimento falta o ímpeto /.../ da ver-são de Sartre, mas a lógica de seu relacionamento com odomínio público é a mesma. (Anderson, 1999, p. 62)

De todo modo, claro está que a própria compreensão dialética hegelianaenvolve já a idéia de que toda a realidade é essencialmente negativa – de sorteque a motivação ou luta dos seres se dirige para aquilo que eles não-são. Eis anegatividade hegeliana: a matriz do processo e transformação contínua detoda realidade. O ser hegeliano é, fundamentalmente, um vir-a-ser em constan-te ultrapassamento em direção ao não-ser – ou seja, em direção a tornar-se oque não-é. Com efeito, em Hegel, a idéia de progresso traz consigo a idéia denegatividade, e esta, por seu turno, leva-o a identificar o “Ser” e o “Nada”, umavez que, para algo efetivamente Ser (existir) deve passar a Ser o que não-é.Desse modo, todo o Ser – tomado em sua imediaticidade –, em Hegel, contémjá em si o seu oposto, ou seja, o Nada 5 . Ora, Sartre certamente não passaráincólume pelo contato com a filosofia de Hegel – ainda que esta lhe advenhasob a batuta da interpretação de Kojève.

Cumpre ainda notar também que a desmontagem do “primado do co-nhecimento”, ao qual Sartre se empenha com todo vigor em seu ensaio deontologia fenomenológica, pressupõe a Fenomenologia do Espírito de Hegel que,como é sabido, começa justamente com a crítica à teoria do conhecimento daKant. Aliás, em suas aulas, Kojève sempre insistiu que a fenomenologia hegelianaé mais do que uma teoria do conhecimento, posto que nela é o homem inte-

5 Conforme a letra e o espírito hegeliano: “Or, cet être pur est l’abstraction pure, partant l’absolument-négatif qui, pris pareillement em son immédiateté, est le néant.” Hegel, 1986. p. 202.

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O HEGELIANISMO DE JEAN-PAUL SARTRE EM L’ÊTRE ET LE NÉANT

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gral que é estudado e descrito. A filosofia hegeliana, segundo Kojève, se dirigejustamente contra o dualismo gnosiológico cartesiano – de modo que tratar-se-ia, em Hegel, de restituir a Unidade contra todo dualismo (começando porreduzir a oposição tradicional entre o sujeito cognoscente e o objeto conheci-do).

É Hegel ainda que fala pelas linhas de Sartre, quando o filósofo se refereà superação da relação unívoca estabelecida pelo cogito pela relação recíprocade intersubjetividade – de sorte que, para poder incorporar a existência doOutro (ou seja, a intersubjetividade), o cogito deve se “alargar” para nos reve-lar como um fato a existência do outro e minha existência para o outro:

Hegel se coloca aqui não sobre o terreno da relaçãounívoca que vai de mim (apreendido pelo cogito) ao outro,mas sim da relação recíproca que define como: ‘a capta-ção de si de um no outro’. /.../ Assim, o cogito mesmo nãosaberia ser um ponto de partida para a filosofia; com efei-to, ele só poderia nascer em conseqüência de meu apare-cimento para mim como individualidade, e esse apareci-mento é condicionado pelo reconhecimento do outro. Aoinvés de o problema do outro se colocar a partir do cogito,é, ao contrário, a existência do outro que torna o cogitopossível como o momento abstrato onde o eu se apreen-de como objeto. Assim, o ‘momento’ que Hegel nomeiacomo o ser para o outro é um estágio necessário do desen-volvimento de consciência de si; o caminho dainterioridade passa pelo outro. (Sartre, 2001, p. 275)

Desse modo, a relação unívoca própria ao cogito cartesiano (vale dizer, adicotomia sujeito-objeto) tornara-se insustentável.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Perry. O Fim da História: de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1999.

HEGEL, G.W.F. La Phénoménologie de L’Esprit. Paris, Aubier Montaigne, s.d.

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis, RJ: Vo-zes, 2002.

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THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

116 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

HEGEL, G.W.F. La Science de la Logique. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1986.

HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São Pau-lo: Discurso Editorial, 1999.

KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la Lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947.

LEVY, Bernard-Henri. Le Siècle de Sartre. Paris: Bernard Grasset, 2000.

SARTRE, Jean-Paul. Huis Clos. In: Théâtre de Jean-Paul Sartre. Collection Soleil.Paris, Gallimard, s.d.

SARTRE, Jean-Paul. L’être et le neánt: essai d’ontologie phénoménologique.Collection Tel, Edition Corrigée avec Index par Arlette Elkaïm-Sartre. Paris,Gallimard, 2001.

Endereço/Address:Prof. André Constantino Yazbek

Rua Demóstenes, 249 – Campo Belo04614-011 – São Paulo/SP

E-mail: [email protected]

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Pístis Iêsou Xristou: umaReleituraPístis Iêsou Xristou: a Reexamination

MARTIM CARLOS WARTHDoutor em Teologia (Concordia Seminary, St. Louis, MO.,USA). Professor emérito do Seminário Concórdiade São Leopoldo, RS e Pró-reitor de Representação Institucional da Universidade Luterana do Brasil, Cano-

as RS. Dr. Warth veio a falecer um mês depois que este artigo foi entregue à editora para publicação.

ACIR RAYMANNDoutor em Teologia (Concordia Seminary, St. Louis, MO., USA). Professor do Seminário Concórdia de São

Leopoldo, RS e do curso de Teologia da ULBRA, Canoas, RS.

RESUMO

O estudo apresenta uma alternativa de tradução para a expressão Pístis IêsouXristou na literatura paulina que, normalmente, é traduzida por “fé em Jesus Cristo”. Aproposta é que a tradução mais clara e compreensiva, talvez, não seja esta, traduzidacom o genitivo objetivo, mas sim como “fidelidade de Jesus Cristo”, ou seja, um genitivosubjetivo cujo resultado teológico torna possível a existência da nossa própria “fé”.

Palavras-chave: fé, hermenêutica, fidelidade.

ABSTRACT

This study presents an alternate translation to the expression Pístis Iêsou Xristouin the Pauline literature. Usually, this expression is translated by “faith in Jesus Christ”.

Theophilos Canoas v.4, n.1/2 jan./dez. 2004 p.117-133

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THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

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Our suggestion is that perhaps a more clear and understandable translation is not thisone which chooses the objective genitive. The alternative is to take the expression as asubjective genitive. In this case, the translation would be “the faithfulness of JesusChrist” – a theological result that makes possible the existence of our own “faith”.

Key words: faith, hermeneutics, faithfulness.

INTRODUÇÃO

Desde há muito tempo o professor de teologia se via diante de algunstextos em Paulo que não apresentavam clareza teológica, textos como Roma-nos 1.17, onde não havia uma explicação coerente para a frase “de fé em fé”,ou Romanos 3.22, onde era oferecida uma tautologia enigmática como “medi-ante a fé em Jesus Cristo, para todos os que crêem”, e outros. As edições dasSociedades Bíblicas, tanto de influência evangélica como católica, em geralnão têm oferecido opções convincentes nas diferentes línguas.

Um texto esclarecedor de Paul Pollard surgiu em 1997, reproduzido noConcordia Journal. O assunto que ele aborda é a discussão em torno da expressãopístis Iêsou Xristou, que pode ser tanto um genitivo objetivo, como um genitivo sub-jetivo. Na tradução o genitivo objetivo seria “fé em Cristo”, e o genitivo subjetivoseria “fé ou fidelidade de Cristo”. As Sociedades Bíblicas optaram pelo genitivoobjetivo “fé em Cristo” e até agora fecharam a questão, pois certamente sentiramque “fé de Cristo” não seria possível. Não avaliaram a grande vantagem que seteria em traduzir como “fidelidade de Cristo”. São oito textos em que aparece aexpressão: Rm 3.22, 26; Gl 2.16 (duas vezes), 20; 3.22; Ef 3.12 e Fp 33.9.

Pollard faz uma revisão bibliográfica dos últimos duzentos anos sobre oassunto e diz em sua conclusão que está havendo “novos convertidos” para ogenitivo subjetivo, mas que os adeptos do genitivo objetivo “não naufraga-ram” (Pollard, 1997, p. 228), visto que ambas as traduções são possíveis doponto de vista gramatical. O assunto só se resolve pela exegese teológica.1

1 Pollard, 1997, p. 213, 214, 225, afirma que a maioria dos gramáticos (como A.T. Robinson),exegetas (como Hans Lietzmann e Ernst Käsemann) e estudiosos de Paulo (como RudolfBultmann) preferem o genitivo objetivo. O próprio Lutero aderiu a essa interpretação quandotraduziu como “Glaube an Christum”. Mas a tradução como genitivo subjetivo se encontra naVulgata (per fidem Iesu Christi) e outras traduções antigas (Peshita Siríaca, Copta Saídica, antigoGótico) e mais recentes, como a versão King James (1611) e a versão Espanhola de C. de Reine,revisada por C. de Valera (1602).

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PÍSTIS IÊSOU XRISTOU: UMA RELEITURA

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Para ter a melhor tradução é necessário perguntar pela mensagem fun-damental da Escritura, e como esta mensagem se revela nos escritos de Paulo.A mensagem central é o Evangelho da graça de Deus em Jesus Cristo. O Espí-rito Santo usa o Evangelho (na Palavra, no Batismo e na Santa Ceia) para nosdar e sustentar a dádiva da fé. No ponto matemático da dádiva da fé somosjustificados, ou seja, recebemos o perdão, somos declarados justos, herda-mos a vida eterna e nos tornamos participantes de todos os demais efeitos dagraça de Deus (a fé se torna um poder do Espírito Santo em nós para nos fazerviver uma vida piedosa). Paulo diz que este é o seu ponto central: “Pois não meenvergonho do Evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todoaquele que crê...; visto que a justiça de Deus se revela no Evangelho, de fé emfé...” (Rm 1.16-17).

Tais conceitos precisam estar claros para se avaliar a tradução em focopelo genitivo objetivo ou subjetivo. Como se sabe, o termo pístis (fides) muda desentido numa e noutra opção. Cristo, como Deus-homem, não recebe “fé”pelo Evangelho através do Espírito Santo, pois Ele próprio é o Evangelho. Ele,como totalmente homem e totalmente Deus, é “o Autor e Consumador da fé”(Hb 12.2). Logo, pístis (fides) precisa ter mais de um sentido, até numa mesmafrase, como em “de fé em fé”.

TRADUZIR

Traduzir é uma tarefa delicada, pois além de precisar respeitar o uso dostermos na língua original é necessário fazê-los falar numa nova língua e numanova cultura. Os termos podem ter até muitos significados, como na frase:“Depois que vi a copa cheia de flores, fui para a copa e preparei um pão comcopa e fui olhar a copa na TV.”

Lutero conhecia muito bem “a arte, a dedicação, a razão e o entendimen-to que fazem o bom tradutor”. Ele trabalhava em grupo na tradução da Bíblia (oseu “sinédrio” ou Colégio Bíblico) e lembra que “muitas vezes nos sucedeu ficar-mos quatorze dias, três, quatro semanas buscando e perguntando por uma úni-ca palavra e, mesmo assim, algumas vezes não a encontramos.”2

2 Warth, 2003, p. 199. Lutero trabalhava em grupo, pois sabia que “unus vir, nullus vir” (um homemsó é um homem zero). Mesmo assim era difícil, pois: “Em nosso trabalho em Jó, o M[estre]Filipe, Aurogalo e eu, em quatro dias, às vezes, não conseguimos concluir três linhas”.

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120 Theophilos, v.4, n.1/2 - jan./dez. 2004.

Quando o apóstolo Paulo usa o termo pístis (fides) nas suas cartas ele ousa com, no mínimo, três significados, o que mostra que Paulo é bem “flexível”no seu uso da linguagem.3 Nem sempre é fácil identificar o sentido, pois podeser “fé” ou “fidelidade” ou “convicção, certeza”. Os dicionários oferecem vári-as opções. Arndt-Gingrich oferece para pístis: fidelidade, fé, promessa, convic-ção, piedade, confiança, entre outras (Arndt & Gingrich, 1957, p. 668). Bultmannsugere para pístis: fé, obediência, confiança, esperança, fidelidade.4 O dicioná-rio latino-alemão traduz fides como: confiança, fé, convicção, honestidade, fi-delidade, promessa, garantia, certeza, veracidade.5 Importante é observar queembora os vários sentidos, a tradução correta de pístis não poderá fugir docontexto onde se encontra no corpus canônico.

O CONTEXTO DA ALIANÇA

Assim sendo, é necessário dar atenção ao contexto e à mensagem cen-tral da Escritura. Se a mensagem central trata da graça de Deus em Jesus Cris-to que é recebida pela fé, somos lembrados que tudo depende da “fidelidade”de Deus e de Jesus Cristo a sua Aliança eterna, pois o Evangelho é o cumpri-mento da própria Aliança com o seu povo.6 Só se existe esta “fidelidade” deDeus em Cristo é que pode nascer a nossa “fé” pelo Espírito Santo, em quenos dá a “certeza” da salvação.

Por essa razão Paulo lembra aos romanos a Aliança, que é um dos temascentrais da sua carta. Tudo gira em torno do cumprimento da Aliança eterna.Em Rm 11.27 o apóstolo cita Is 50.20-21 e Jr 31.33-34: “Virá de Sião o Liberta-dor, ele apartará de Jacó as impiedades. Esta é a minha Aliança com eles,quando eu tirar os seus pecados”.

Isso passa despercebido por alguns estudiosos de Paulo. Assim AdolfDeissmann, em seu estudo de Paulo, nem menciona a Aliança de Rm 11.27.Fala de um “testamento” de Deus que nos concede participação na heran-

3 Pollard, 1997, p. 224: “This shows (that) Paul is flexible in his use of language.”4 Bultmann, 1971, p. 205. Mas Bultmann coloca a possibilidade de um genitivo subjetivo de pístis

Iêsu Xristou apenas na nota de rodapé 125, p. 190, pois não aceita essa possibilidade.5 Georges, Karl Ernst, ed. De Imm. Joh. Gerh. Scheller e Georg Heinr. Lünemann. Lateinisch-Deutsches

Handwörterbuch. V. I (Leipzig: Hahn’sche Verlags-Buchhandlung, 1861), col. 1713.6 Pollard, op. cit., p. 219, cita Richard B. Hays no ponto 6: “... Gospel constitutes the fulfillment of

God’s covenant promises to Israel”.

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ça eterna.7 Assim este autor também não fala da “fidelidade de Jesus” àAliança.

Entendemos que na carta aos Romanos Paulo fala muito na fidelidadede Deus em Jesus, mas nas traduções disponíveis não aparece. Esta fidelidadeseria sempre a Sua fidelidade em relação a Sua Aliança eterna. Deus já a esta-beleceu desde a protologia quando promete “o Seu Descendente” (Gn 3.15; cf.Gl 3.16). Ele a repete a Abraão, que era arameu, dizendo “Em ti serão benditastodas as famílias da terra” (Gn 12.3), e Deus coloca esta Aliança no início doDecálogo: “Eu sou o SENHOR, teu Deus” (Êx 20.2). Deus repete inúmeras ve-zes a sua Aliança, dizendo “Vós sereis o meu povo, e eu serei o vosso Deus”(Ez 36.28), especialmente em Jeremias e Ezequiel.8

Lutero reconheceu que o Evangelho da Aliança estava nas palavras “Eusou o SENHOR, teu Deus”, pois lembra no seu comentário ao 2º mandamentoque “o primeiro mandamento instruiu o coração e ensina a fé”.9 Em edições deNürnberg (1531 e 1558) do Catecismo Menor foi preservada a introdução de Êx20.2: “Eu sou o SENHOR teu Deus. Não terás outros deuses diante de mim.”Lutero a repete na Explicação do Apêndice: “Eu sou o SENHOR teu Deus”(Livro de Concórdia, 1980, p. 367, n. 12).

Nas traduções disponíveis (ARA, BJ e BLH) da carta aos Romanos, a pa-lavra pístis com genitivo é somente usada uma vez como genitivo subjetivo nosentido de “fidelidade de Deus” (Rm 3.3: tên pistin tou theou), e outra vez, semgenitivo, em Tt 2.10 como “fidelidade” da pessoa cristã . Em todas as outrasocasiões em que aparece pístis o termo é traduzido por “fé”, mesmo quandoacompanhado de um genitivo.

A tradução de “tên pistin tou theou” para “fidelidade de Deus”, onde ogenitivo de pístis é considerado subjetivo, é correta, pois Deus é considerado osujeito da pístis. O apóstolo afirma que Deus cumpriu a sua promessa de fide-lidade, pois enviou o seu Filho Jesus Cristo, “o Fiel” de Deus para validar parasempre a sua “aliança eterna” com o seu sangue (Rm 11.27; Hb 13.20). O A

7 Deissmann, 1957, p. 175: “...that God has drawn up a ‘testament’ in our favour, and that wetherefore are to expect an ‘inheritance’”.

8 Cf. Raymann, Acir. “`The People of God´ in the Old Testament: the View of Eichrodt and Gutiérrezas Evaluated by Confessional Lutheran Hermeneutics” (Ph.D. dissert., Concordia Seminary, 1999).

9 Lutero. Catecismo Maior (1ª parte, Dos Mandamentos, 2º mandamento, 50) In Livro de Concórdia.Trad. por Arnaldo Schüler (São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1980), p. 402. Cf. p.399, no Apêndice, 30.

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Greek-English Lexicon of the New Testament, de Thayer (1889, p. 514), cita apenasesta passagem de Rm 3.3. como exemplo de pístis com genitivo subjetivo. AHandkonkordanz de Alfred Schmoller também coloca só este texto de Paulo comogenitivo subjetivo. Todas as demais citações de pístis com genitivo ele listacomo genitivo objetivo, com o sentido de “fé em Cristo” (Schmoller, 1960, p.409-411). Entendemos que estas e outras traduções precisam de uma releitura.

A tradução mais óbvia de pístis Iêsou Xristou não é “fé em Jesus Cristo”,como os adeptos do genitivo objetivo nos querem fazer crer. O mais óbvio é ogenitivo subjetivo, (como aparece em Rm 4.16 “a fé de Abraão”), mas o termo“fé” precisa passar para “fidelidade”, (como em Rm 3.3 “fidelidade de Deus”),pois Jesus Cristo é o Fiel de Deus, cuja “fidelidade” tornou a nossa “fé” possí-vel. Com isso se torna mais fácil toda a questão do uso de pístis no Prefácio ena Doxologia final da carta aos Romanos.

PREFÁCIO E DOXOLOGIA: ROMANOS 1.5 E16.26O assunto já se torna importante no prefácio e na doxologia da carta

aos Romanos, que são muito semelhantes. Paulo começa a falar da intençãode sua carta e se apresenta como escolhido, perdoado e enviado de Deus paraanunciar o Evangelho tanto em Roma como nos confins do mundo. No decor-rer da carta Paulo fala de pecado e graça, da fé e da vida cristã, mas a questãode uma “obediência” cristã “da fé” não parece ser o seu assunto, nem noprefácio, nem na doxologia (Almeida diz: “para a obediência por fé”). Paulo falade si mesmo, do Evangelho, da seriedade da graça de Deus em Jesus Cristoque completou a aliança eterna de Deus pelo cumprimento de sua fidelidadeaté à morte.

Por isso, quando Paulo usa pístis em Rm 1.5 e 16.26 ele certamente nãofala da “fé” dos cristãos, mas fala da “fidelidade” de Cristo. O tema de Paulonão é “obediência da fé” e “boas obras” nesta parte, em que ele se apresentacomo enviado de Deus, do Deus do Evangelho. Segundo entendemos ele falada aliança eterna anunciada no Evangelho que foi estabelecida pela “obediên-cia” ou pelo “cumprimento da fidelidade” de Deus em Cristo.10 Esta parece ser a

10 Pollard, op. cit., p. 219, cita Richard B. Hays, dizendo: “...but later he connects obedience andfaith with Christ”.

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melhor tradução no prefácio e na doxologia de Romanos, pois é a mensagemde Paulo aos povos, incluindo os de Roma.

O termo eis upakoên pisteôs só aparece em Rm 1.5 e 16.26, na saudaçãoinicial e na despedida. Em ambos os casos sugerimos que se traduza como“cumprimento da fidelidade” de Deus e não como uma “obediência da fé” doscristãos. Os textos da introdução e da doxologia comparados poderiam tomara seguinte forma:

Romanos 1 Romanos 16v. 1 Paulo, v. 25 Àquele

servo de Cristo Jesus, que tem o poderchamado para ser apóstolo, de vos confirmarescolhido para o Evangelho de segundo o meu Evangelho

Deus e a mensagem de Jesus Cristo,

v. 2 que [o Evangelho] a revelaçãofoi prometido muito antes de um mistério em silêncio,por seus profetas nas Sagradas v. 26 manifestada agora

Escrituras pelas Escrituras proféticas

v. 3 a respeito de Seu Filhoque procede da semente de Davi

segundo a carnee demonstrado como Filho de

Deusem virtude da ressurreição dos

mortos

v. 4 pelo poder do Espírito daSantidade,

Jesus Cristo nosso Senhor

v. 5 por quem recebemos a graça por disposição do Deus eternono cumprimento da sua no cumprimento da sua

fidelidade fidelidadee o apostolado em seu nome dado a conhecer

a todas as nações a todas as nações

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THEOPHILOS - REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA

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v. 6 das quaistambém fazeis parte,

chamados de Jesus Cristo,

v. 7 a todosque estais em Roma,

amados de Deuschamados santos

graça a vós e pazda parte de Deus Pai v. 27 a Deus, o único sábioe do Senhor Jesus Cristo. em Jesus Cristo,

A glóriapelos séculos dos séculos. Amém.

ROMANOS 1.17O texto de Rm 1.17 ainda não fala da “pístis Iêsou Xristou”, que só aparece

em Rm 3.22. Mas já é o pressuposto para a apresentação da “fé” por Paulo.Vamos optar por um genitivo subjetivo, como também faremos na análise dotexto de Rm 3.22, pois entendemos que se trata da “fidelidade de Jesus Cristo”.

Se for correto, então também se explica facilmente um outro uso depístis em Rm 1.17: ek pisteôs eis pistin. Almeida traduz como “de fé em fé”. A NTLHpropõe uma singularidade: “do começo ao fim”. A Bíblia de Jerusalém diz “dafé para a fé”. Foi esquecida a “fidelidade” de Deus em Jesus.11 Se concordar-mos que o primeiro pístis significa “fidelidade”, então o texto de Paulo certa-mente quer dizer que “a justiça de Deus se revela no Evangelho, da fidelidade[deDeus] para a fé”. O Evangelho revela que esta é a “fidelidade” de Deus que cria a“fé” em Jesus Cristo. Assim o texto é muito confortador.

O texto continua, citando Habacuque 2.4, ,traduzido por Almeida como: “Mas o justo viverá pela sua fé”. O termo hebraico

significa “firmeza, constância, fidelidade” (Brown, Driver e Briggs,1972, p. 53). No Antigo Testamento o termo tem um sentido mais concreto,mais palpável. Em razão disso, BDB, nesta passagem, não hesita em traduzi-lo

11 Pollard 1997, p. 220, cita James D.G. Dunn, e diz: “The ek pisteôs phrase in 1.17a is held, inagreement with Dunn, to be a reference to God’s faithfulness.” Citando N.T. Wright, diz: “N.T.Wright, for example, reads ek pisteôs in 1.17a in the light of 3.22 as referring to Jesus’ faithfulness.”

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PÍSTIS IÊSOU XRISTOU: UMA RELEITURA

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por “fidelidade”. (idem) Em Rm 1.17 Almeida traduz esta citação profética como:“O justo viverá por fé”, citado também em Gl 3.11 e Hb 10.38-39. Nesta manei-ra de traduzir, tal citação tornou-se, segundo uma nota da Concordia Self-StudyBible, o “slogan” da Reforma Protestante do século XVI.12 Numa outra nota aConcordia oferece, na mesma página, a palavra faithfulness (fidelidade) como opçãode tradução da palavra pístis em Hc 2.4, sem definir se é da pessoa, de Cristoou de Deus. A Bíblia de Jerusalém usa esta opção e a determina como sendo afidelidade da pessoa justa, pois traduz como: “Mas o justo viverá por sua fide-lidade”.13 Assim sustenta claramente a posição católica da justificação porobras. Ainda argumenta que a LXX transformou o texto de Hc 2.4 para favore-cer Paulo na sua posição, que traduziu “fé” em lugar de “fidelidade”, para defen-der a justificação pela fé.

Conquanto a LXX receba tanto críticas (Franzmann, 1975, p. 90) quantoelogios14 de teólogos luteranos, ela apresenta, neste texto, uma raridade pre-ciosa para o contexto. O Lexicon de Arndt-Gingrich verifica que os textos no NTque citam Hc 2.4 não citam exatamente a LXX, pois esta fala em ek pisteôs mou,que seria traduzido por minha fidelidade (Arndt-Gingrich, 1957, p. 669). Assim otexto de Habacuque seria “Mas o justo viverá pela minha fidelidade”, isto é, a fideli-dade de Deus, negando a tradução católica e dando um novo acento à mensa-gem do NT. Não se perde nada da fé e de sua função de “meio da justificação”,pois o apóstolo Paulo menciona a fé e certamente diz em Rm 1.l7: “A justiça deDeus se revela no Evangelho, da fidelidade [de Deus] para a fé, como está escrito: O justoviverá pela fidelidade [de Deus]”, por causa da preposição bet no original de Hc 2.4.

O original hebraico parece confirmar a LXX, pois coloca onde osufixo ô indica “dele”. Assim se traduziria: “Mas o justo viverá pela fidelidadeDele”. Como é Deus quem fala, a LXX decidiu substituir o “Dele” por “mou” (“mi-nha”), não deixando opção para a tradução católica. O Theological Dictionary of theOld Testament também confirma que a LXX nos propõe traduzir Hc 2.4 como “Daminha fidelidade o justo viverá”. A pergunta que se faz é se a LXX tem diante de si um

12 Concordia Self-Study Bible. New International Version (St. Louis: Concordia, 1986), p. 1395: “Itbecame the rallying cry of the Protestant Reformation in the 16th century.”

13 A Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Edições Paulinas, 1985), p. 1789. Na nota “x” do rodapé comen-ta: “No texto da LXX, onde ‘fidelidade’ se torna ‘fé’, São Paulo lerá a doutrina da justificaçãopela fé.”

14 Denker, 1970, enaltece o valor da LXX contando o episódio em que Ferdinand Hitzig, eminenteprofessor de Bíblia e hebraísta, costumava perguntar a seus alunos: “Senhores, vocês possuemuma Septuaginta? Se não a possuem, vendam tudo o que vocês têm e comprem uma Septuaginta”(p. 63). Cf. também, as p. 81 e 85.

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texto hebraico diferente, visto que vav yod e são, por vezes, difíceis de seremdistinguidos nos manuscritos de Qumran.15 De acordo com a LXX e uma possí-vel LXXA, seria possível ler o texto de duas maneiras, com ou sem o mou. Mas aopção pelo mou é muito preciosa para a tradução do NT.

A “Reforma Protestante” nem sempre usou devidamente o seu slogan “Ojusto viverá por fé”, pois não faltou quem pensasse a fé como “causa” (comoboa obra do cristão) da sua justificação, quando apenas é “meio” pelo qual oEspírito Santo nos relaciona com a obra de fidelidade de Jesus Cristo para nosjustificar. Por isso era necessário acrescentar que era “per fidem”(meio), não“propter fidem”(causa). O “propter fidem” (causa) vem depois, quando a fé, comopoder do Espírito Santo em nós, se manifesta em boas obras. Deissmann temuma forma excelente de ressaltar a fé como “meio” da justificação. Diz que “afé não é pré-condição para a justificação, mas é a experiência da justificação”(Deissmann, 1957, p. 170).

ROMANOS 3.22, 25, 26 E 28Agora, no versículo 22, aparece pela primeira vez o pístis Iêsou Xristou, que

Almeida traduz como genitivo objetivo: “fé em Jesus Cristo”. Nossa releiturapropõe que seja um genitivo subjetivo, traduzindo como: “fidelidade de Jesus Cristo”,acompanhando o que já foi dito sobre o texto de Rm 1.17 e Hc 2.4.

Alguns outros também sentiram que o genitivo objetivo (fé em Jesus)poderia ter problemas neste versículo, e talvez deveria ser traduzido comogenitivo subjetivo (fidelidade de Jesus). O próprio G. Stöckhardt chega a discu-tir o assunto, mas chama uma tradução proposta do genitivo subjetivo de“absurdo, que não merece resposta”, quando ataca um pronunciamento de“Beneke, Lange e outros” que sugerem a tradução de “a fidelidade de fé deJesus”, o que evidentemente é absurdo, como o autor sugere.16 Uma posiçãoestranha em relação à fé é sugerida por G. Ebeling, que entende a fé como“autocompreensão escatológica do homem” e, por isso, julgando ser Jesus

15 ÒSchreiner, Josef. . In Botterweck & Ringgren, 1974, Vol. I., p. 318-319.16 Stöckhardt, 1907, p. 139: “Wenn Beneke, Lange und etliche Andere Iêsou Xristou as genitivus

subjecti fassen und von der Glaubenstreue Christi als dem Mittel unserer Rechtfertigung reden,so ist das eine Absurdität, welche keiner Widerlegung bedarf” (Quando Beneke, Lange e algunsoutros tomam Iêsou Xristou como genitivus subjecti e falam da fidelidade de fé de Cristo como meioda nossa justificação, então isso é um absurdo que não precisa de resposta).

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apenas homem, “nem saberia dizer o que se pode objetar contra o uso daexpressão ‘crer como Jesus’”, sem distinguir “entre a fé do próprio Jesus e a fénele”.17 Esta não é a linguagem bíblica a respeito da fé.

O The International Critical Commentary cita o Dr. Haussleiter de Greifswald,18

dizendo que ele tem uma teoria que junta o pístis Iêsou Xristou de Rm 3.22 como pístis theou de Rm 3.3, propondo que Rm 3.22 seja lido como genitivo subje-tivo, como acontece em Rm 3.3. O Commentary considera tal posição um dispa-rate que não recebeu, até então, como crêem, nenhuma aceitação.19 Mas énecessário examinar melhor esta referência a Rm 3.3 (fidelidade de Deus) e3.22 (fidelidade de Jesus Cristo), bem como a inclusão de 4.16 (fé de Abraão)no diálogo a respeito do genitivo subjetivo.

É no mínimo intrigante fazer Paulo repetir no v. 22 a palavra “crêem”, sejá falou em “fé” (Almeida diz: “justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo,para todos os que crêem”). Mas, no nosso entender, Paulo não fala em “fé”.Ele acentua a “fidelidade” de Jesus. Assim o texto certamente deverá ser: “jus-tiça de Deus mediante a fidelidade de Jesus Cristo, para todos os que crêem”. O “crer” é,portanto, resultado da fidelidade de Jesus que revela a justiça de Deus noEvangelho. Por que Paulo faria uma tautologia desnecessária?

Da mesma forma no v. 25 (Almeida diz: “a quem Deus propôs, no seusangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça”) cer-tamente se deve ler “a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante asua fidelidade, para manifestar a sua justiça”, pois é a fidelidade de Cristo, e não anossa fé que causa a propiciação e a justiça.

O v. 26 (Almeida diz: “para ele mesmo ser justo e o justificador daqueleque tem fé em Jesus”) parece sugerir que deveria finalizar assim: “para Ele mesmoser justo e o justificador daquele que está incluído na fidelidade de Jesus”.

Quando também se diz em Rm 3.28 que “o homem é justificado pela fé”,

17 Ebeling, 1968, p. 631; 1966, p. 33. Conforme Warth, 2003, p. 338.18 Pollard, 1997, p. 214-215, diz que a primeira análise acadêmica de pístis Xristou foi feita em 1891

por Johannes Haussleiter, que traduziu como genitivo subjetivo, falando da “fé de Cristo”. Estaposição foi recomendada por Gerhard Kittel que afirma a desnecessidade de traduzir sempreque Cristo é o objeto da nossa fé. (Falta em Haussleiter o conceito de “fidelidade de Cristo”.)

19 Sanday & Headlam, 1968, p. 83-84. “Dr. Haussleiter (Der Glaube Jesu Christi und der christlicheGlaube, Leipzig, 1891) contends that the genitive is subjective, not objective... the theory bringstogether things, like the pístis Iêsou Xristou here with the pístis theou in 3.3, which are really dispa-rate; and it has so far, we believe, met with no acceptance”.

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esta “fé” não é causa da justificação, mas apenas “meio” (per fidem) pelo qual oEspírito Santo nos justifica. A causa é sempre a fidelidade de Jesus Cristo (propterChristum).

ROMANOS 5.1-2Como o texto emenda no final do capítulo 4, que alguém separou, talvez

indevidamente, o capítulo 5 é separado do seu contexto. Este fala da “causada nossa justificação” (4.25) e introduz, no nosso entender, o assunto do capí-tulo 5, onde se deveria ler: “Justificados, pois, por sua fidelidade (ek pisteôs), tenhamospaz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem obtivemosigualmente acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes” (5.1 e 2), e não, comoestá em Almeida, “Justificados, pois, mediante a fé, tenhamos paz com Deus”.

Se já se disser, como quer Almeida, que somos “justificados, pois, medi-ante a fé”, se tornaria desnecessário dizer no v. 2 que por isso “obtivemosigualmente acesso, pela fé, a esta graça”. Seria uma repetição gratuita e fariafaltar a causa da justificação, dando até a impressão de que a fé seria estacausa, quando na realidade é o efeito. Convém repetir sempre que somosjustificados per fidem, nunca propter fidem, isto é, pela fé o Espírito Santo nosrelaciona com o Evangelho, dando-nos a justiça de Cristo (per fidem, propterChristum). A fé, que continua como uma atividade do Espírito Santo em nós,depois da nossa justificação causa agora (propter fidem) a nossa santificação eboas obras.

ROMANOS 14.22-23O terceiro uso do termo pístis está, seguramente, em Rm 14.22-23. Ali

tem o sentido de “convicção, certeza”, que não permite dúvida.

Assim o texto poderia ser: “A convicção que tens [quanto ao comer e beber], tem-na para ti mesmo perante Deus. Feliz quem não se condena naquilo que aprova. Mas aqueleque tem dúvidas, é condenado, se comer, porque o que faz não provém de certeza, e tudo o quenão provém de convicção está errado.”

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1 CORÍNTIOS 12.9, 13.2 E 13.13Paulo parece usar o termo pístis de duas maneiras distintas na primeira

carta aos Coríntios. Quando fala em 1 Coríntios 12 a respeito dos dons que oEspírito Santo distribui à igreja ele não poderia colocar “fé” salvadora no mes-mo nível dos outros dons, como “sabedoria, conhecimento, dons de curar,operações de milagres, profecia, discernimento de espíritos, variedade de lín-guas e capacidade para interpretá-las”. “Fé salvadora” é um dom essencialpara a salvação eterna, enquanto que os outros são relativos. Assim sugeri-mos que pístis aqui seja traduzido como “fidelidade” do cristão, o que ficariasemelhante aos outros dons.

O texto de 1Co 13.2 certamente precisa ser traduzido por “fé”. Não setrata da fides directa que é meio da justificação e é total, porque me dá atotalidade da redenção em Cristo, mas deve tratar-se da fides reflexa, em quea fé é um poder do Espírito Santo em nós que nos leva à vida cristã em amora Deus e ao próximo. Como “reflexa” a fé cresce, pois vai aí todo o desenvol-vimento do conhecimento que leva a criança a se tornar adulto em Cristo. Aípoderia haver um poder extraordinário de Cristo e do Espírito Santo pararemover o que quisesse, mesmo montanhas. O termo “tamanha fé” podeficar, embora se possa pensar em falar “fé total”, “todo poder da fé”, embora serefira sempre à fé reflexa como poder, pois a fé direta é sempre total comomeio.

Em 1Co 13.13 Paulo volta a falar novamente em “fidelidade”, pois jamaisa esperança e o amor podem ser maiores do que “fé”, pois a fé produz “afidelidade, a esperança e o amor”. Só nesse sentido o amor pode ser “maior” quefidelidade e esperança, pois o amor se dirige a Deus e ao próximo. Maior étambém o amor de Deus por nós.

GÁLATAS 2.16, 20 E 3.22Quando Paulo fala em “obras da lei” em Gl 2.16 ele parece referir-se

especificamente a formalidades, como comer ou não comer, ser circuncidadoou não, coisas que havia discutido um pouco antes. Diz então que não é por aíque está a nossa salvação, mas na “fidelidade de Cristo Jesus”, isto é, toda suaobra por nós.

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Assim a tradução (que em Almeida é “sabendo, contudo, que o homemnão é justificado por obras da lei, e, sim, mediante a fé em Cristo Jesus, tam-bém nós temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela féem Cristo e não por obras da lei”) poderia ficar assim: “Sabendo, contudo, que ohomem não é justificado por obras da lei, e, sim, pela fidelidade de Cristo Jesus, também nóstemos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fidelidade de Cristo e nãopor obras da lei”.

O mesmo se aplica em Gl 3.22 (que Almeida traduz como “mas a Escritu-ra encerrou tudo sob o pecado, para que mediante a fé em Jesus Cristo fossea promessa concedida aos que crêem”), onde leríamos: “Mas a Escritura en-cerrou tudo sob o pecado, para que pela fidelidade de Jesus Cristo fosse a pro-messa concedida aos que crêem.”

EFÉSIOS 3.12O texto original parece sugerir a tradução (não como Almeida tem: “pela

qual temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele”, mas) como“pela qual temos ousadia e acesso com confiança por causa da fidelidade Dele”.

FILIPENSES 3.9Novamente volta o mesmo esquema de Paulo. Poderia ser traduzido

(não como Almeida tem: “E ser achado nele, não tendo justiça própria, queprocede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede deDeus, baseada na fé”, mas) assim: “E ser achado nele, não tendo justiça própria, queprocede da lei, senão a que vem por causa da fidelidade de Cristo, a justiça que procede deDeus com a fé”.

1 TIMÓTEO 1.14 E 2 TIMÓTEO 1.13; 3.15Os três textos são semelhantes e parecem sugerir que se traduza no

mesmo esquema de Paulo.

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O v. 14 de 1Tm 1 seria traduzido (não como Almeida faz: “Transbor-dou, porém, a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em CristoJesus”, mas) assim: “Transbordou, porém, a graça de nosso Senhor com a fidelidadee o amor de Cristo Jesus.”

A tradução de 2Tm 1.13 seria (não como Almeida traduz: “Mantém opadrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que estáem Cristo Jesus”, mas) assim: “Mantém o padrão das sãs palavras que de mimouviste a respeito da fidelidade e do amor de Cristo Jesus.”

E 2Tm 3.15 também parece sugerir uma tradução nesta linha. Seria(não como Almeida faz: “E que desde a infância sabes as sagradas letrasque podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus”, mas)assim: “E que desde a infância sabes as sagradas letras que podem tornar-te sábiopara a salvação pela fidelidade de Cristo Jesus.”

CONCLUSÃO

Esta releitura não pretende ser final. Mas é uma tentativa para che-gar ao sentido correto do texto bíblico que, às vezes, parece sofrer na tra-dução. Se, por razões de ordem prática, não conseguimos fazer uma novatradução da Bíblia, ao menos queríamos contribuir para a reflexão sobre aspossibilidades da tradução de pístis, especialmente na sua relação com IêsouXristou.

De acordo com a teologia da Aliança de Deus, nos parece imperativoque a “fidelidade de Jesus Cristo” seja ressaltada, pois dela depende a nos-sa salvação. Se, pois, o termo pístis pode ser traduzido também por fidelida-de – especialmente a partir do Antigo Testamento -, não vemos razões paranão aceitar um genitivo subjetivo na expressão pístis Iêsou Xristou.

Apontamos para outras possibilidades de tradução de pístis em Ro-manos 14.22-23 e vários textos de 1 Coríntios. Talvez conseguimos, aomenos, levantar as opções para entender melhor o texto original. Esta pes-quisa pode ser continuada; o importante é que a luz clara da Escriturailumine o nosso caminhar.

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Endereço/AddressProf. Dr. Acir Raymann

Universidade Luterana do Brasil/Curso de TeologiaAv. Farroupilha, 8001 – Prédio 11, sala 127

92425-900 – Canoas/ RS BrasilE-mail: [email protected]

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Comunicação

Leibniz sobre PercepçãoLeibniz on Perception

PAULO AUGUSTO SEIFERTMestre em Filosofia (PUCRS/UFRGS), Professor no Curso de Filosofia da ULBRA

A temática que me foi solicitada é “percepção em Leibniz”1 . Apresenta-rei, então, o que me parecem ser pontos fundamentais para compreender oque este filósofo tem a dizer sobre o tema. Farei menção a alguns textos pri-mários que julgo adequados para uma exposição introdutória do assunto (aversão em português é de minha inteira responsabilidade), mas no geral segui-rei uma forma expositiva livre, sem me referir à literatura secundária e semdebater interpretações. Além disso, antes de introduzir o tópico, convém umesclarecimento: não me ocuparei com uma eventual evolução do pensamentoleibniziano relativo à percepção, evolução esta maior ou menor de acordocom diferentes intérpretes, alguns mesmo argumentando que Leibniz mantevebasicamente a mesma concepção, apenas refinando a terminologia. Parto doque geralmente se tem chamado a ‘filosofia madura’ de Leibniz, isto é, suaprodução pós-1680, e assumo no momento a consistência com que explicasua teoria da percepção. Segundo ponto: mesmo havendo um refinamentoterminológico nos textos de Leibniz, é preciso lembrar o estilo deste filósofo.A maior parte de seus escritos se dá de forma epistolar, estimulada pela curio-sidade ou oposição alheia, e, em muitos casos, Leibniz procura explicar suasconcepções utilizando a terminologia do interlocutor. Portanto, o refinamento

1 Texto de comunicação apresentada na Universidade Federal do Rio grande do Sul e, posterior-mente, na Universidade Luterana do Brasil.

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é relativo a isto, o que significa que Leibniz adota uma de duas alternativas: oufaz correções, ou, se julga que nenhum mal (teórico) adviria, usa livremente aterminologia que superficialmente contradiz sua própria concepção. Confor-me diz ele nos Novos Ensaios sobre o entendimento Humano I, 1, § 1:

... adaptando-me às expressões usuais, que são com efeitoboas e aceitáveis, e de que até certo ponto podemos di-zer que os sentidos externos são causa, em parte, de nos-sos pensamentos. Examinarei como penso que se devedizer, no sistema comum (assim como os copernicanosfalam sobre o movimento do sol com os outros homens,e com fundamento), que há idéias e princípios que nãoprovêm dos sentidos, e que encontramos em nós semformá-los, embora os sentidos nos dão a ocasião depercebê-los.

Leibniz define percepção de uma forma bastante genérica: como a repre-sentação da multiplicidade na unidade: “O estado passageiro que envolve erepresenta uma multiplicidade na unidade, ou na substância simples...”(Monadologia § 14). Diz ele que se deve distingui-la da apercepção e da cons-ciência, que, na verdade, seriam casos especiais da primeira. Outras idéias ouconceitos relacionados são percepções insensíveis, sensação, apercepção,reflexão, consciência, pensamento, expressão, atenção, apetição.

Para Leibniz, há duas formas pelas quais alguém adquire idéias ou co-nhecimento: através da percepção e através da reflexão. Pela percepção, co-nhecemos aquilo que está fora de nós; pela reflexão, o que está em nós. Masas duas formas interagem permanentemente: a percepção possibilita e suscitaa reflexão, e esta organiza a primeira. Leibniz, nos Novos Ensaios, insiste nopapel das percepções (ou da experiência sensível) para a aquisição das verda-des necessárias (ou inatas), e, por outro lado, no papel da razão para a aquisi-ção das verdades contingentes ou de fato, pois sem a razão não teríamoscomo distinguir o verdadeiro do aparente, já que não é impossível que alguémtenha sonhos duráveis e regrados. Conforme diz ele em uma interessante car-ta, de 1702, à rainha Sofia Carlota da Prússia, carta publicada por Gerhardtcom o título Lettre touchant ce qui est independant des Sens et de la Matiere (Cartaacerca do que é independente dos sentidos e da matéria):

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LEIBNIZ SOBRE PERCEPÇÃO

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Estou, entretanto, de acordo que, no estado atual, os sen-tidos externos nos são necessários para pensar, e que, senão tivéssemos nenhum deles, não pensaríamos (...) ossentidos nos fornecem a matéria para o raciocínio, e nãotemos jamais pensamentos tão abstratos nos quais nãose encontra misturado algo sensível. (G VI, 506). O Sermesmo e a Verdade não são apreendidos inteiramente pe-los sentidos. Pois não seria impossível a alguém ter so-nhos longos e regrados, similares à nossa vida desperta,de tal forma que todas aquelas coisas das quais julgasseaperceber-se por meio dos sentidos seriam tão somentemeras aparências. (G VI, 502)

A percepção daquilo que está fora de nós (as qualidades sensíveis) ad-mite graus. Segundo Leibniz, em momento algum estamos sem percepção,sem representarmos aquilo que está ao nosso redor ou sem sentirmos nossopróprio corpo (julga ele que, dada a conexão de todas as coisas, em cadamomento percebemos o universo inteiro). Mas freqüentemente não nos da-mos conta de muitas de nossas percepções. A estas percepções das quais nãonos damos conta, chama ele de percepções insensíveis ou pequenas percep-ções. Quando temos uma percepção, e dela nos damos conta, Leibniz chamaisto de uma apercepção. Aperceber-se de algo é, pois, ter uma percepçãonoticiável, ou sensível. As pequenas percepções, embora insensíveis, são emprincípio aperceptíveis; se algo nos chamar a atenção sobre elas, o que exigememória, pois há sempre um intervalo entre a percepção, neste caso, e o deladar-se conta, nos aperceberemos delas. Assim, por exemplo, se estamos en-tretidos em alguma atividade, e nossas apercepções estão nela concentradas,continuamos a perceber outras coisas que se encontram ao redor (um ruídoregular ao qual estamos habituados; o sujeito que trabalha ao lado de ummoinho é o exemplo de Leibniz).

Uma percepção sensível, isto é, a apercepção de um objeto externo,constitui uma sensação (conforme Novos Ensaios II, 19, § 1). As sensaçõessão na maior parte dos casos percepções confusas mas claras, isto é, temosconsciência delas e podemos distingui-las umas das outras, mas não temosconsciência do que nelas está. Ou, dito de outro modo, aquilo que não érealmente simples aparece como simples ao sujeito que percebe (ou tem a sen-sação). Por exemplo, sabemos pela sensação que o azul não é o verde, mas aoapercebermos o verde não nos damos conta de que o azul é um dos elemen-tos que o compõem. Para saber disto, necessitamos ter observado um deter-

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minado procedimento, isto é, a mistura do azul e do amarelo. E aqui retorna aidéia de percepções insensíveis. As sensações confusas/claras o são porquecontêm, embora não se reduzam a, uma série de percepções insensíveis. Nocaso, o verde apercebido contém o azul e o amarelo, também percebidos masnão apercebidos. Tomando outro exemplo: em uma festa, quando ouvimos oburburinho que se produz pela conjunção de uma série de conversas, perce-bemos também cada conversa individual (G VI, 534), embora não sejamos ca-pazes de entendê-las individualmente. Pois, para Leibniz, a percepção do com-posto deve incluir a percepção daquilo que o compõe.

Por tais razões, Leibniz por vezes chama as qualidades sensíveis (as co-res, os sons, os odores, os sabores e as qualidade do toque) de qualidadesocultas, já que não sabemos o que são ou em que consistem (Carta a Sofia, GVI, 499). E, portanto, não temos como explicá-los adequadamente. Veja-se ocaso das cores. De acordo com Leibniz, a única forma de explicar a alguém oque é uma determinada cor consiste em apontar para um objeto colorido. Porexemplo, como explicar a alguém que nunca viu algo azul como reconhecer oazul caso lhe seja apresentado? Não há maneira, pois, como diz Leibniz, nãotemos das cores definições nominais, a saber, que nos permitam distingui-lasumas das outras sem jamais tê-las visto. Cito outro trecho da Carta a Sofia

Ninguém é capaz, por exemplo, de fornecer os critériospara reconhecer o azul, se não o viu jamais. De forma queo azul é seu próprio critério, e para que uma pessoa saibao que é o azul, se faz necessário mostrar-lho. (G VI, 500)

Há, nas idéias das qualidades sensíveis, uma insuficiência explicativa,que não poderia ser suprida por uma descrição física. Por outro lado, Leibnizfreqüentemente utiliza explicações físicas para se referir a qualidades sensí-veis (por exemplo, que o calor é um turbilhão de um pó muito sutil). Algunsintérpretes julgam que Leibniz hesita entre duas explicações: 1) a de que po-demos, pela física, desenvolver idéias distintas de qualidades sensíveis, idéiasverbalmente comunicáveis; e 2) a de que só podemos adquirir as idéias destasqualidades através de experiências sensoriais confusas (do que se segue queas idéias mesmas seriam confusas ou incomunicáveis). Talvez esta hesitaçãoseja só aparente, e possa ser esclarecida em dois passos: primeiro, em refe-rência à distinção leibniziana entre três tipos de noções ou idéias; segundo,em referência à teoria leibniziana da expressão.

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Segundo Leibniz, há três tipos de noções ou idéias: as idéias sensíveispropriamente ditas; as idéias sensíveis e inteligíveis; e as idéias propriamenteinteligíveis. As idéias sensíveis são aquelas ligadas particularmente a cada sen-tido externo, como o são as cores (visão) e os sons (audição). As sensíveis einteligíveis são aquelas ligadas ao sentido interno (ou sentido comum). E asinteligíveis são aquelas ligadas ao entendimento. As primeiras e as segundascompõem a faculdade da imaginação, as primeiras sendo claras mas confusas,e as segundas sendo claras e distintas. Uma noção é clara e distinta quandopodemos distinguir o objeto de outros, por meio de signos distintivos e demeios de controle. Leibiz dá como exemplos as noções de número, de grande-za e de figura. Ambos os tipos de idéia se referem a qualidades dos objetos,com a seguinte diferença: quando as qualidades dos objetos são apercebidascomo sensíveis (e nos dão apenas idéias confusas), nós as chamamos de qua-lidades secundárias, e quando as mesmas qualidades são distintamenteexplicadas (e nos dão idéias inteligíveis), nós as chamamos de qualidades pri-márias (conforme Novos Ensaios II, 8, § 9). Dessa forma, a distinção entrequalidades primárias e secundárias não é radical como o é para Locke, comose as primárias constituíssem propriedades dos objetos, mas não as secundá-rias. Leibniz diz, no Discurso de Metafísica § 12, que tanto as qualidades pri-márias como as secundárias, embora em graus diferentes, contêm algo deimaginário e relativo às nossas percepções. Mas em ambos os casos, trata-sede propriedades dos objetos ou fenômenos, e não propriedades de nossasexperiências. “Pois tais qualidades sensíveis são modos ou modificações doscorpos e não de nosso espírito: e nossas sensações são, na verdade, modosde ser da alma, mas que representam aqueles modos dos corpos” (G IV, 576).

E aqui podemos passar à teoria da expressão. Leibniz rejeita qualquerforma de teoria causal, especialmente a das espécies sensíveis dos escolásticos.Para Leibniz, nossas percepções expressam, em diferentes graus, o mundo.Assim, conforme carta a Arnauld de setembro de 1687: “uma coisa expressauma outra quando há uma relação constante entre o que se pode dizer de umae de outra. A expressão é comum a todas as formas, e é um gênero do qual apercepção natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual são es-pécies” (G II, 112).

Na concepção de Leibniz, toda mônada ou substância simples (e, por-tanto, nós como mônadas raciocinantes) representa ou exprime em si todo ouniverso (ou todas as outras mônadas e suas ações). As percepções sensíveissão uma destas formas de expressão, e admitem uma grande variabilidade de

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grau, isto é, podemos perceber um mesmo objeto com maior ou menor clare-za. E ampliar a quantidade e regularidade de percepções distintas, que melhorexpressam o mesmo universo expresso pelas percepções confusas, constituoo objetivo das mônadas, especialmente das raciocinantes, que se esforçamnesta direção. O que Leibniz chama de apetição, a passagem de uma percep-ção a outra. Esta passagem, ou também tendência, é regrada e uniforme (nosentido em que um movimento em linha parabólica é uniforme, não no senti-do de uma linha reta), constituindo assim o que ele chama também de umponto de vista, a especificidade representativa de cada indivíduo, aquilo que odistingue dos demais. Conforme Princípios da Natureza e da Graça §§ 2 e 3:

... uma Mônada em si mesma, e em um dado momento,será distinguida de uma outra tão só pelas qualidades eações internas, as quais não podem ser outra coisa quesuas percepções (isto é, as representações do composto, oudaquilo que está fora, no simples) e suas apetições (isto é,suas tendências de uma percepção à outra) que são osprincípios da mudança (...)cada Mônada é um espelho vivo,ou dotado de ação interna, representativo do universo,segundo seu ponto de vista, e assim ordenado como ouniverso mesmo.

Retornando então ao ponto anterior, sobre a dita hesitação de Leibnizentre a possibilidade de termos idéias distintas e verbalmente comunicáveisde qualidades secundárias e sua impossibilidade. Para Leibniz, algumas idéiasde qualidades sensíveis (as das chamadas qualidades primárias) expressammelhor os objetos ou fenômenos do que outras (as das qualidades secundári-as). Mas em ambos os casos há uma forma de semelhança ou relação exataentre as idéias e os objetos (conforme Novos Ensaios II, 8, §§ 13 e 15). Emsuma, pode-se dizer que, para Leibniz, diferente de Locke, faz tanto sentidodizer que o azul está no objeto quanto dizer que ele tem uma certa figura.

Recapitulando, Leibniz insiste no ponto relativo aos diferentes graus depercepção. Consideramos até o momento a distinção entre percepções insen-síveis e percepções sensíveis (ou percepções inconscientes e percepções cons-cientes). Na linguagem de Leibniz, temos percepções sensíveis (ou sensações)quando nos apercebemos delas, isto é, quando temos consciência (nos da-mos conta) delas. Leibniz atribui esta capacidade também aos animais; diz eleque os animais tem sentimento, isto é, uma percepção acompanhada de me-

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mória. Como mencionei antes, a apercepção de algo freqüentemente deman-da memória da percepção, em razão do intervalo, por menor que seja, entre apercepção e o dar-se conta da percepção. Em nós porém, mônadasraciocinantes, a apercepção vem acompanhada de pensamento reflexivo. Háuma diferença fundamental entre pensar em algum objeto e pensar que sepensa nele. Este é um ato de reflexão, que nos dá uma idéia inteligível.Retornemos à distinção mencionada anteriormente entre os três tipos de no-ção: sensíveis, imagináveis e inteligíveis. Esquematicamente, as primeiras nossão dadas pelos sentidos externos, as segundas pelo sentido interno, e asterceiras pelo puro entendimento.

Dessa forma, além do sensível e do imaginável, há tam-bém aquilo que é somente inteligível, sendo objeto doentendimento apenas, e tal é o objeto de meu pensa-mento quando penso a mim mesmo. Este pensar de mimmesmo, que me apercebo de objetos sensíveis e da mi-nha própria ação que disto resulta, acrescenta algo aosobjetos dos sentidos. Pensar em alguma cor e considerarque nela se pensa, são estes dois pensamentos muitodiferentes, tanto quanto a cor difere do eu que nela pen-sa. ( Carta a Sofia, G VI 501/2)

Nos Novos ensaios, em que Leibniz elabora uma espécie de diálogo comLocke, um dos pontos principais da discussão consiste em saber se todas asverdades dependem da experiência ou se há outras que dependem de umoutro fundamento. Adaptando-se à linguagem usual, Leibniz distingue entreas verdades fora de nós e as verdades que estão em nós. As primeiras desco-brimos pela experiência, e as segundas pela reflexão. A reflexão não se limitaàs operações do espírito, mas se dirige também ao próprio espírito. Há umacontinuidade entre o sentimento e o pensamento (reflexão). Quando Leibnizdistingue entre verdades de razão e verdades de fato (como, por exemplo, nosNovos Ensaios, livro IV, capítulo 2, § 1), ou entre verdades necessárias e verda-des contingentes, e considera que há verdades primitivas (isto é, nãodemonstráveis por uma análise, e, portanto, cognoscíveis por “intuição”) deum e outro tipo, diz ele que as verdades primitivas de fato são duas: primeiro,que penso; segundo, que tenho pensamentos diversos. Estas verdades sãoexperiências imediatas internas, ou, como diz Leibniz, de uma “imediação desentimento”. Pensar é sentir-se. Assim, a primeira reflexão é uma forma pecu-liar de sentimento, e não se pode deduzi-la de uma verdade idêntica, já que ela

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é dada, e, parece, pressuposta no conhecimento das verdades de razão, oudaquilo que está em nós. A proposição ‘Eu existo’ é evidente em grau máximo,não podendo ser provada com base em outra proposição. É, pois, uma verda-de imediata. Afirmar ‘penso, logo sou’ não consiste em provar a existênciapelo pensamento, pois pensar e ser pensante são a mesma coisa, e se digosou pensante já digo sou.

... A apercepção imediata de nossa existência e de nos-sos pensamentos nos fornece as primeiras verdades aposteriori ou verdades de fato, isto é, as primeiras experi-ências; assim como as proposições idênticas contêm asprimeiras verdades a priori, ou verdades de razão... Tantoumas quanto as outras não podem ser provadas, e se cha-mam de imediatas: aquelas, porque há imediação entre oentendimento e seu objeto; estas, porque há imediaçãoentre o sujeito e o predicado.

Qual a relação entre a atividade perceptiva e a identidade de umamônada? Leibniz distingue entre identidade real e identidade pessoal ou mo-ral. A identidade moral é constituída pelas aparências do eu, acompanhada deverdade; a real pelo eu. “O eu faz a identidade real e física, e a aparência do eu,acompanhada da verdade, acrescenta-lhe a identidade pessoal.” (Novos En-saios, livro II, capítulo 27, § 9).

Assim, na identidade moral entram em jogo a memória e a consciênciade si. Na medida em que me recordo que fui eu que fiz algo, ou que estivepresente a um evento passado, e que agora estou fazendo algo ou presente aalgo, posso considerar que sou o mesmo, de antes e de agora. Pode haver,claro, furos nesta identificação: a memória pode enganar (posso lembrar terfeito algo sem realmente tê-lo feito) ou pode sofrer um lapso. Em tais casos,os testemunhos dos outros podem restabelecer a identidade, se foremconspirantes entre si e concordantes com o que me resta na memória e comminha autopercepção presente. Entretanto, isto para Leibniz não garante queseja o mesmo indivíduo; pois, embora esta identidade moral seja um índiceordinariamente confiável de que se trata do mesmo indivíduo, pode não ser ocaso. Podemos imaginar, por exemplo, que em algum outro lugar ou tempo douniverso haja um globo que não difira sensivelmente da Terra, e cada um doshomens que lá habitam não difiram sensivelmente de cada um de nós, quelhes correspondemos. Assim, haveria milhares de pares de pessoas semelhan-

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tes, isto é, com as mesmas aparências e consciências. E Deus poderia transfe-rir os espíritos, com ou sem seu corpo, sem que se dessem conta (conformeNovos Ensaios, livro II, capítulo 27, § 23).

Por isto, é preciso que a identidade real consista em alguma outra coisa,que, para Leibniz, consiste na lei que produz a seqüência de percepções emuma dada mônada. O nexo de percepções constitui a unidade do percipiente,isto é, a continuação e ligação das percepções constitui o mesmo indivíduorealmente. Isto o que Leibniz chama também de apetição, ou princípio de mu-dança, a saber, a regra pela qual se passa de uma percepção à outra. Os indi-víduos, portanto, diferem para Leibniz somente por suas qualidades e açõesinternas, e não por suas aparências, embora estas expressem (ou refletem),mais ou menos confusamente, aquelas.

E quanto à relação mente/corpo? Segundo Leibniz, só existem realmen-te as mônadas e seus estados, e as mônadas são imateriais, embora sempreunidas à matéria. Esta concepção opõe Leibniz tanto ao materialismo comoao dualismo. Leibniz não pode aceitar uma explicação materialista da mente,pois não há como explicar a percepção e a consciência através de princípiosmecânicos, isto é, por figura e movimentos. No parágrafo 17 da Monadologia,Leibniz dá o exemplo de uma máquina ‘pensante’. Supondo que haja, diz ele,uma máquina cuja estrutura a faça pensar, sentir e ter percepções, poder-se-iaconcebê-la aumentada (conservando as mesmas proporções) de forma quealguém pudesse nela entrar e observar seu funcionamento. O que se veria?Apenas as partes movendo umas às outras. Mas nada que explique uma per-cepção. Mas além dessa suposta impossibilidade, Leibniz menciona tambémum outro critério (mais fundamental, se tivermos em vista seus princípiosmetafísicos básicos) que mostraria a impossibilidade de explicar mecanica-mente a consciência, a saber, sua unidade, unidade do Eu que é apercebidapor uma experiência interna. E aqui está a ponte para a recusa do dualismo,pelo mesmo princípio da unidade essencial da mônada ou substância indivi-dual pensante, ‘aquilo que não é verdadeiramente um ser, não é verdadeira-mente um ser. Logo, não há uma substância material extensa, em sentido estri-to, já que tudo aquilo que é material é composto, mas, na metafísica leibniziana,um composto que não contém um elemento material básico e indivisível (comoum átomo, por exemplo), porque é, na verdade, um puro fenômeno. As subs-tâncias materiais não são reais, subsistentes, paralelas às substâncias imateriais,mas fenômenos bem ordenados, cuja “realidade” se deve à atividade perceptivadas mônadas. Assim, a percepção de um objeto sensível, por exemplo, não é

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causada pelo objeto no percipiente, já que o que não existe não pode sercausa do que quer que seja.. Mas o que uma mônada percebe da atividade deoutras mônadas também não é, por sua vez, causado por aquela atividade.Qualquer tipo de teoria causal da percepção está descartada pelo que Leibnizconsidera ser a natureza das substâncias individuais. Contudo, ao contráriodo que alguns acharam, o flerte de Leibniz com uma certa forma de solipsismoé apenas aparente. A hipótese de que existem apenas Deus e eu, conformeapresentada no § 14 do discurso de Metafísica, “... se eu fosse capaz de con-siderar distintamente tudo aquilo que agora me acontece ou aparece a mim,eu poderia ver tudo aquilo que me acontecerá, ou tudo aquilo que aparecerá amim para sempre; o que não falharia, e me aconteceria exatamente da mesmaforma, se tudo aquilo que está fora de mim fosse destruído, desde que restas-sem Deus e eu”, tal hipótese, digo, tem a função tão-somente de ilustrar oponto relativo à independência completa da substância individual de qualqueroutro ser exceto Deus. Assim, embora possível, tal hipótese opõe-se a outrosimportantes elementos da filosofia leibniziana, especialmente à idéia do me-lhor dos mundos possíveis. Pois, se tal hipótese fosse o caso, o mundo seriaimperfeito. Concluindo: a pluralidade de substâncias individuais permite a di-versidade perceptiva de um indivíduo específico, e essa diversidade perceptivasupõe ou aponta para a pluralidade de substâncias individuais.

REFERÊNCIAS

LEIBNIZ, Gottfried W. Die philosophischen Schriften. Hrg. Von C.J. Gerhardt.Hildesheim: Georg Olms, 1978. 7 vol. [GP]

Endereço/AddressProf. Ms. Paulo Seifert

Universidade Luterana do Brasil/ Curso de FilosofiaAv. Farroupilha, 8001 – Prédio 11, sala 127

92425-900 – Canoas/RS – BrasilE-mail: [email protected]

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