UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB … · Santiago Santos - Salvador, 2014. 3f. –Universidade...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I- SALVADOR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS JOELSON SANTIAGO SANTOS FACA E SEUS CORTES ─ O Sertão Trágico e Feminino de Ronaldo Correia de Brito SALVADOR 2014

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I- SALVADOR

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

JOELSON SANTIAGO SANTOS

FACA E SEUS CORTES

─ O Sertão Trágico e Feminino de Ronaldo Correia de Brito

SALVADOR

2014

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I- SALVADOR

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM

ESTUDO DE LINGUAGENS

JOELSON SANTIAGO SANTOS

Dissertação de Mestrado submetida à Banca de

Defesa Pública do Programa de Pós-Graduação em

Estudos de Linguagens da UNEB – Campus I,

como requisito para a obtenção do Título de

Mestre em Estudos de Linguagens, na área de

concentração: Leitura, Literatura e Identidade, sob

a orientação da Profª Drª Verbena Maria Rocha

Cordeiro.

SALVADOR

2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Santos, Joelson Santiago

Faca e seus cortes: o sertão trágico e feminino de Ronaldo Correia Brito / Joelson

Santiago Santos - Salvador, 2014.

133f.

Orientadora: Verbena Maria Rocha Cordeiro.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de

Ciências Humanas. Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2014.

Contém referências.

1. Brito, Ronaldo Correia de, 1950 -- Crítica e interpretação. 2. Contos brasileiros.

I. Cordeiro, Vebena Maria Rocha. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de

Ciências Humanas.

JOELSON SANTIAGO SANTOS

FACA E SEUS CORTES

─ O Sertão Trágico e Feminino de Ronaldo Correia de Brito

Dissertação de Mestrado submetida à Banca de

Defesa Pública do Programa de Pós-Graduação em

Estudos de Linguagens da UNEB – Campus I,

como requisito para a obtenção do Título de

Mestre em Estudos de Linguagens, na área de

concentração: Leitura, Literatura e Identidade, sob

a orientação da Profª Drª Verbena Maria Rocha

Cordeiro.

Aprovada em 04 de abril de 2014.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Verbena Maria Rocha Cordeiro (Orientadora)

Universidade do Estado da Bahia

______________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Elizabeth Lima Gonzaga

Universidade do Estado da Bahia

______________________________________________________

Prof. Dr. Biagio D'Angelo

Universidade de Brasília

_______________________________________________________

In Memoriam

À minha vó Amália Santiago Ferreira,

que, sem saber ler convencionalmente,

me apresentou o universo das narrativas.

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), pela concessão da

bolsa de estudo que possibilitou a produção deste trabalho;

Aos professores, colegas do Mestrado e demais funcionários do PPGEL- UNEB, pela

atenção, troca de experiências e respeito;

Aos professores Biagio D´Angelo e Elizabeth Gonzaga, pelas importantes considerações

durante o exame de qualificação;

À professora Verbena Maria Rocha Cordeiro, pela orientação pontual, atenta e sempre

inspiradora;

Às minhas amigas de percursos literário e afetivo: Ana Flávia Pereira, Ityara Moreira,

Mariana Barbosa, Elis Angela Franco, Evanice Venâncio, Evaneide Venâncio, Doriana

Pinheiro, Fabiana Marinho;

À mulheres da minha vida Maria da Graças Santiago (In Memoriam), Jocelma Santiago

Santos, Anizia Santiago de Castro e Mayane Santiago de Jesus, pelo crédito e apoio a

mim confiados em minhas escolhas sempre.

Ao Casal Manoel Batista e Dalva Costa pelo acolhimento caloroso em meus trânsitos entre

a capital e o interior.

Enfim, a todos que, de uma maneira ou de outra, ajudaram-me neste trabalho.

“O sertão está em toda parte”

Guimarães Rosa

RESUMO

Pretendeu-se neste estudo uma análise do livro de contos Faca, do escritor contemporâneo

Ronaldo Correia de Brito (2003), tomando como foco o componente trágico da representação

do sertão e do enlevo das personagens femininas nas narrativas. Para tanto, optou-se por um

percurso de estudo a partir dos sentidos e desdobramentos da literatura contemporânea do

autor em questão, considerando-se também a discreta, mas crescente fortuna crítica do

escritor cearense. Além disso, propôs-se uma discussão em torno das concepções de trágico/

tragédia que reverberam em sua obra e da dimensão das personagens femininas na condução

das tramas estudadas. Para análise do corpus de pesquisa, foram utilizados sete contos do

livro, o qual traz em seu repertório temático um conjunto de tramas que refletem, por meio do

inóspito universo do sertão, dilemas inerentes à condição humana como a vingança, os amores

radicalizados e, principalmente, a morte. Essa pesquisa, de traço qualitativo, envereda pelos

interstícios da narrativa em uma leitura crítica da obra em questão, mas por vezes ultrapassa

esses limites, para dar conta de um objeto tão polissêmico. Tomou-se como referência para a

compreensão da inserção da obra na literatura contemporânea, bem como das suas

características de produção, os escritos de estudiosos como Helena Bonito Pereira, Beatriz

Rezende, Karl Eric e Gerard Genette. No que se refere ao sertão, recorreu-se a Nelson

Werneck Sodré, Antonio Cândido e Durval Muniz de Albuquerque Júnior. E para contribuir

no debate acerca do trágico/ tragédia, utilizou-se o aporte de Raymond Williams e Albin

Lesky, e de Junito de Souza Brandão.

PALAVRAS-CHAVE: Ronaldo Correia de Brito; Sertão; Trágico/ tragédia; Feminino; Faca

ABSTRACT

This study intended na analyzes of the storybook Faca of the contemporary writer taking as

focus the tragic componente of the representation of the hinterland and the rupture of the

female characters in the narrative. Thus opted for a course of study from the senses and

unfolding of the contemporary literature of the author in question, considering the discrete

but increasingly critical of the author from Ceará. Also proposed a discussion around the

tragic/tragedy conceptionsi that reverberate in this work and the size of the female characters

in the conduct of the plots studied. To analize the research corpus seven stories from the book

that were used which bring in this tematic repertoire reflecting a set of plots that reflect

through the unhospitable universe of backcountry, dilemas inherent in the human condition as

reverge the radicalized loves and especially death. This research qualifying trait is appealing

the interstice of the narrative in a critical reading of the work in question but sometimes

exceeds these limitst to account for as polysemic object. It was taken as reference for

understanding of the work in contemporary literature as well as their characteristics of

production the writing of scholars such as Helena Bonito Pereira, Beatriz Rezende, Karl Eric

e Gerard Genette . With respect to hinterland it is recorred to Nelson Werneck Sodré,

Antônio Cândido e Durval de Albuquerque Junior. And thecontribute to the discussion about

of the tragic/tragedy use the contribution of Raymond Williams and Albin Leky and Junito de

Souza Brandão.

KEYWORDS: Ronaldo Correia de Brito, Sertão, tragic/tragedy, female, Faca.

SUMÁRIO

1 ITINERÁRIOS DE UM SERTÃO TRÁGICO: BREVE INTRODUÇÃO .................... 11

2 COM QUANTOS PRÊMIOS SE FAZ UM ESCRITOR? .............................................. 19

2.1 UM (RE)CORTE DA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA DE RONALDO CORREIA

DE BRITO ................................................................................................................................ 29

2.2 O PALIMPSESTO DE INHAMUNS ................................................................................ 43

3 UMA FACA SÓ LÂMINA ................................................................................................. 51

3.1 ESCRITOS DE VIDA E MORTE, RASTROS DE VINGANÇA ..................................... 53

3.2 VINGANÇA COMO LEI: UMA INSÓLITA REVANCHE EM “INÁCIA LEANDRA” 65

4 UM LÓCUS EMOLDURADO: O SERTÃO UNIVERSAL DE RONALDO CORREIA

DE BRITO ............................................................................................................................... 70

4.1 O TEMPO AFIADO PELA ESPERA: O PESO DAS HORAS EM “A ESPERA DA

VOLANTE” E “FACA” ........................................................................................................... 87

4.2 UMA VIDA EM VEREDAS: UMA PRISÃO DOMÉSTICA EM “MENTIRA DE

AMOR” .................................................................................................................................... 94

5 UMA FACA DE DOIS GUMES: O TRÁGICO E O FEMININO .................................. 99

5.1 UMA LUA SEM ESTRELAS: (RE)ESCRITURAS MITOLÓGICAS EM “LUA

CAMBARÁ” .......................................................................................................................... 106

5.2 O FEMININO COMO ELEMENTO CORTANTE: ABANDONADAS, SOLITÁRIAS,

LOUCAS E FORTES ............................................................................................................. 113

6 UM GUÉNOS SERTANEJO: DERRADEIRAS CONSIDERAÇÕES ........................ 124

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 128

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1- ITINERÁRIOS DE UM SERTÃO TRÁGICO: BREVE INTRODUÇÃO Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda que é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier,

que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...

(ROSA, 2001, p. 43)

A viagem como tema ou metáfora da ficção é um recurso utilizado desde os primeiros

registros literários, a exemplo de Homero, Virgílio e Dante, até a contemporaneidade com

Guimarães Rosa e Juan Rulfo. Na literatura encontramos cenas exemplares dessa temática

dentro duma perspectiva de diálogos intertextuais ou ressignificações de sua acepção.

Chevalier (1998) registra, no Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,

formas, figuras, cores, números, a representação que uma viagem pode assumir, entre os seus

significados; o termo pode se desdobrar numa busca da verdade, da paz, da imortalidade ou de

um centramento espiritual ou de conhecimento. Assume-se, também, uma intrínseca relação

semântica com travessia, pois “exprime-se muitas vezes como um deslocamento ao longo do

Eixo do mundo” (CHEVALIER, 1998, p. 951) em busca de algo ou de outrem.

A viagem para o sertão pela via da literatura é, antes de tudo, um convite para uma

travessia por um universo encoberto de mistérios numa terra considerada inóspita, árida, seca

contrastando, por vezes, com um cenário de veredas, no qual rios, riachos ou afluentes variam

seu fluxo na dinâmica da estiagem de um clima caracterizado por chuvas rarefeitas. Para

Benedito Nunes (2013), o sertão trabalhado em obras como a de Guimarães Rosa é “o espaço

que se abre em viagem, e que a viagem converte em mundo. Sem limites fixos, lugar que

abrange todos os lugares, o Sertão congrega o perto e o longe, o que a vista alcança e o que só

a imaginação pode ver” (NUNES, 2013, p. 79).

Dos sertões em nossa literatura, destacam-se os de escritores como Euclides da Cunha,

Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Ariano Suassuna os quais, a partir de experiências

distintas, trilharam caminhos épicos, metafísicos, cientificistas ou mágicos por meio de suas

artes. Em Os sertões (1902), a região sertaneja e seus habitantes são apresentados por

Euclides da Cunha a partir do interior do sertão baiano, em sua escrita descritiva dos cenários

e dos povos marcados pela aridez, ausências e isolamento. Graciliano Ramos, em Vidas Secas

(1938), apresenta um sertanejo degradado física e culturalmente pelas intempéries e Ariano

Suassuna, narra o sertão inscrito entre o erudito e o popular numa atmosfera de magia e

encantamento.

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O escritor contemporâneo Ronaldo Correia de Brito também constrói seu universo

ficcional na geografia do sertão. Esse lócus em sua escrita tem correspondência a um lugar

físico denominado de Inhamuns, região localizada na fronteira oeste do estado do Ceará, em

pleno semiárido, numa faixa que recobre um intervalo entre a Floresta Amazônica e a Mata

Atlântica; é reduto caracterizado pela vegetação de caatinga, arbórea e arbustiva. A região é

geologicamente denominada de depressão sertaneja. É formado por um conjunto de

municípios: Aiuaba, Tauá, Arneiroz, Parambu, Catarina e Saboeiro.

Ronaldo Correia de Brito (1951-) nasceu em Saboeiro-CE. Homem multifacetado,

combina as atividades de dramaturgo, contista, documentarista, médico e psicanalista. Aos

seis anos, muda-se com a família para Crato, Ceará. Em 1969, muda-se para o Recife,

ingressando, no ano seguinte, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de

Pernambuco-UFPE. Sua produção literária é marcada pelo universo sertanejo em seus

cenários, histórias, trânsitos e memórias.

É neste mundo sertanejo que se aporta o presente trabalho, propondo um convite a

uma viagem literária e metafórica na prosa ficcional do escritor cearense Ronaldo Correia de

Brito, a partir do volume de contos Faca, cuja primeira edição foi publicada em 2003. O

recorte utilizado está centrado no tripé de composição de sua obra: o sertão, o trágico e a força

da presença feminina. A partir desses elementos, os quais se apresentam amalgamados nas

narrativas, buscar-se-á uma leitura dessas representações e seus desdobramentos entre eles: as

peculiaridades da literatura atual, o debate entre o regional e o local, a tragédia/trágico na

contemporaneidade e o feminino na condução da trama das narrativas.

Ronaldo Correia de Brito apresenta em sua produção influências da literatura clássica,

das narrativas bíblicas e também da tradição oral da cultura popular nordestina que

reverberam, por meio de suas histórias, o viver humano em seus mais diversos dilemas: o

medo, o amor, a vingança, os remorsos, a loucura, as traições e, sobretudo, a morte.

Para análise e delimitação do corpus da pesquisa foram utilizados sete contos da obra,

em uma análise recortada, como já mencionado, na composição do trágico, do cenário árido e

da condução do feminino na trama, a saber: “A espera da volante”, “Faca”, “A escolha”,

“Mentira de Amor”, “Cícera Candoia”, “Inácia Leandra” e “Lua Cambará”. A seleção desses

sete contos é necessária em virtude do traço limitado, também pelo tempo e tema da pesquisa

em questão, que propõe um diálogo com a obra do escritor cearense Ronaldo Correia, com

base nas figurações de um sertão fortemente marcado pelo trágico.

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Essa obra de Ronaldo Correia destaca-se por apresentar em seu repertório temático um

conjunto de tramas com histórias que refletem, a partir do inóspito universo do sertão, dilemas

humanos e, consequentemente, universais. Dessa forma, foi uma tarefa árdua selecionar sete

narrativas das onze presentes na coletânea.

A geografia que atravessa a narrativa do escritor Ronaldo Correia de Brito é marcada

por cenários, paisagens e estéticas vinculadas a uma tradição regionalista de sua terra natal: o

sertão de Inhamuns-Ceará. Tal característica não limita, entretanto, sua escrita ficcional a um

mero “geografismo”, termo utilizado por Nelson Werneck Sodré (1995) para designar uma

produção marcada apenas de descrições de aspectos físicos do espaço retratado. O autor de

Faca apresenta em sua contística uma espécie de cartografia literária que, de acordo com a

pesquisadora Analice de Oliveira Martins, é “Um mundo desterrado”, isto é, um espaço que

supera uma geografia local e torna-se universal. Ronaldo Correia se destaca justamente nesse

aspecto, por conseguir demonstrar que da realidade sertaneja pode-se depreender uma espécie

de essencialidade trágica do ser humano.

O componente trágico como conceito, filiado à tragédia grega, “desligou-se da forma

artística com que vemos vinculada no classicismo helênico e converteu-se num adjetivo que

serve para designar destinos fáticos de caráter bem definido” (LESKY, 2010, p. 26, grifo

nosso). Assim o trágico se faz presente na narrativa de Ronaldo Correia de Brito,

principalmente no que se refere às personagens imersas em suas vidas dilaceradas pela

solidão, abandono, parricídios, matricídios, enfim homens e mulheres inseridos numa

existência movida, especialmente, por ódio, dor, sofrimento e vingança, elementos estes que

caracterizam boa parte das narrativas de Brito como trágicas.

Em Faca, as personagens são conduzidas em dramas que guardam um valor

simbólico, que transcende o universo narrado (o sertão). Outro aspecto imprescindível para

uma observação mais ampla dessa obra de Ronaldo Correia é o “peso” das personagens

femininas na condução do trágico, como por exemplo em “A escolha”, “Mentira de Amor”,

“Inácia Leandra”, ou “Lua Cambará”. Neles encontra-se um misto de mulheres sertanejas,

abandonadas, solitárias, guerreiras e fortes. As personagens, mesmo quando atuam como

coadjuvantes, influenciam de forma decisiva a condução da maioria das narrativas.

Em “A escolha” temos uma narrativa que aponta para o “peso” das decisões da

protagonista Aldenora Novais. Primeiro, a decisão entre um casamento por amor com Luís

Silibrino (um homem cafajeste e violento) ou um por convenção com Livino Gonçalves

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(honesto e benevolente). “Mentira de Amor” revela a história de privações de Delmira e suas

filhas num cárcere doméstico imposto pelo próprio marido. A protagonista nunca sai, e suas

filhas não vão sequer à escola. “Lua Cambará” é inspirado pelo imaginário popular sertanejo,

em virtude dos símbolos nele representados. Lua é uma mulher guerreira que impõe um misto

de medo e respeito a todos que a cercam, e por conta disso permanece “viva” na história.

Os contos de Ronaldo Correia de Brito são um convite à imersão num universo

sertanejo arcaico e fatalista, mas ao mesmo tempo tão próximo do contemporâneo, porque o

escritor consegue aportar em suas narrativas a complexidade das relações humanas. Ao longo

das suas tramas, são revelados personagens numa vida de amores interrompidos pela morte,

marcada por códigos de honra, por traições, por interditos, com diversos machões, bandidos e

mulheres virilizadas em um universo árido. Numa linguagem orquestrada pelo tom cruel e

mordaz das histórias apresentadas – seguindo as propostas de Ítalo Calvino (1997): rapidez e

exatidão –, Ronaldo Correia demonstra que nem tudo precisa ser dito, mas tudo (ou muito)

pode ser sugerido com perspicácia.

No conjunto da obra em estudo, destaca-se também o conflito familiar levado até as

últimas consequências. No conto “Faca”, homônimo ao livro, o marido mata a esposa para

casar com outra mulher mais jovem e, paradoxalmente, tem a proteção e admiração da filha;

em “Inácia Leandro”, a partilha patrimonial é motivo do embate entre irmãos; em “Cícera

Candóia”, tem-se filha contra a mãe e filho contra pai; em “Lua Cambará” tem-se uma órfã,

bastarda e pagã peleando por seus diretos na herança com o tio. Tais conflitos remontam a

questões da tragédia/trágico, traços que também são tratados no presente estudo.

Por conta disso, podemos sugerir que o autor utiliza como matéria para sua produção o

elemento trágico, apontando para a célula familiar como uma representação microcósmica da

sociedade, bem como da origem dos males da humanidade. Nessa perspectiva, o homem é um

ser imerso num palco repleto de contradições e conflitos inerentes à sua condição humana.

Compõe-se, portanto, uma série de elementos para análise de relações familiares conflituosas,

permeadas pelo interdito, pelo silêncio, violência, proibições e por assassinatos. Vale destacar

que nesses contos o assassinato entre pessoas com laços familiares é recorrente, o que aponta

para uma similitude com temáticas ou características recorrentes na tragédia grega.

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Complementarmente, encontra-se disposto na edição do livro Faca um primoroso

diálogo com as artes plásticas, por meio das ilustrações da artista Tita do Rêgo Silva1 (1959-).

Os desenhos na abertura de cada conto prenunciam o tom da trama a ser apresentada. Tal

recurso, por si só, já configura outro importante objeto de estudo, dada a riqueza das

representações estéticas as quais nos remetem à arte da xilogravura, ícone do universo

sertanejo.

O caminho metodológico foi percorrido por uma abordagem qualitativa da leitura

crítica das narrativas de Brito, apoiada em referências bibliográficas que contemplam os

estudos literários contemporâneos acerca do trágico e da representação do sertão na literatura,

com o intuito de proceder a uma construção dialógica das questões que norteiam a pesquisa, a

saber: Qual a dimensão das representações do sertão e do trágico presentes na narrativa de

Ronaldo Correia Brito? É possível estabelecer relações intertextuais do elemento

trágico/tragédia na sua composição ficcional? E quais os sentidos e desdobramentos do(s)

código(s) sertanejo(s) demarcado (s) em sua obra?

De acordo com Pierre Bourdieu (2004), a pesquisa acadêmica na área das

humanidades apresenta como obstáculo epistemológico as pré-noções, que consistem nas

opiniões primeiras sobre um dado problema. Tal questão está relacionada à proximidade e/ou

à imersão do pesquisador no seu objeto de investigação, proporcionando, dessa forma, uma

falsa ou superficial compreensão dos resultados observados.

Para superação desse entrave metodológico, o sociólogo francês sugere uma ruptura

que garanta resultados pautados em critérios mais objetivos e distantes do senso comum, isto

é, ter consciência de que “a apreensão do fato inesperado pressupõe uma atenção metódica,

além de pertinência e coerência nas indagações. O ato da invenção que conduz à solução de

um problema deve quebrar as relações aparentes para fazer surgir um novo sistema de

relações” (BOURDIEU, 2004, p. 25). No campo de estudos literários, a(s) subjetividade(s) do

leitor “admirador” é (são) constantemente evocada (s); tal percepção deve ser superada por

uma análise sistemática entre o sujeito (pesquisador em literatura) e o seu objeto (texto

literário).

1 Tita do Rêgo Silva nasceu no Maranhão – Brasil. É um artista visual que vive em Hamburgo – Alemanha.

Destaca-se em sua produção a arte de xilogravura em diversos suportes.

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Buscando avançar no entendimento das narrativas contemporâneas, tomam-se como

aporte teórico-metodológico desse trabalho os estudos de nomes como Helena Bonito Pereira

(2011), Beatriz Resende (2008), Karl Erick Schøllammer (2011), por apresentarem pesquisas

alinhadas com as produções ficcionais mais recentes, como a de Ronaldo Correia de Brito.

O estudo aqui proposto para a obra de Ronaldo Correia de Brito estrutura-se em mais

quatro seções. A seguinte é nomeada de “Com quantos prêmios se faz um escritor”, a qual faz

uma leitura do “peso” dos eventos e concursos literários na recepção de uma obra literária na

contemporaneidade, com ênfase na do escritor estudado, na perspectiva de uma incursão na

literatura contemporânea de Ronaldo Correia, em especial no livro Faca. Ainda nessa seção

propõe-se uma leitura da obra de Ronaldo Correia como uma escritura palimpséstica que se

recobre de outras narrativas. Ainda nessa parte do estudo, apresentam-se alguns exemplos das

relações intertextuais no conjunto da obra do escritor em questão. Na mesma seção, para

efeito de se destacar um traço bem marcante na produção de Ronaldo Correia, apresentam-se

de forma breve alguns exemplos das relações intertextuais no conjunto da obra deste,

notadamente em suas conexões textuais com outros escritores como Guimarães Rosa e

Graciliano Ramos.

Na terceira seção, “Uma Faca só Lâmina”, utiliza-se de empréstimo o título dos versos

de João Cabral de Melo Neto, por conta do caráter multifacetado da semântica dessa

palavra/objeto/instrumento que o poeta consagrou no seu poema Uma Faca só Lâmina,

produzido em 1955 e lançado no seu livro Duas águas, em 1956. Parte-se de uma leitura que

confere relações de forma e conteúdo da semântica do poeta pernambucano atravessadas na

obra do escritor Ronaldo Correia de Brito. Dedica-se, nessa parte da pesquisa, a uma

exploração do signo faca que assume no texto literário uma potência polissêmica. Na

sequência, o item “Caminhos de vida e morte, rastros de vingança” consiste numa

apresentação geral das narrativas em estudo, funcionado como uma espécie de índice das

personagens, tramas e temáticas que foram objetos da presente pesquisa.

Na quarta seção, “Faca: narrativas de um sertão universal”, discute-se o sertão como

palco para a ação trágica. Para tanto, há uma retomada do(s) conceito(s) de “regionalismo(s)”

literário(s), considerando-se os diferentes aportes teóricos de estudiosos como Antônio

Cândido (1998), Alfredo Bosi (1998) e Nelson Werneck Sodré (1995), entre outros, que

discutem as diferentes e contraditórias representações do regionalismo na literatura. A questão

central dessa seção é a análise da representação do universo sertanejo na literatura de Brito,

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que transcende qualquer limite de localização geográfica, configurando-se, portanto,

universal.

Na referida seção, apresentam-se as características desse lócus demarcado por Ronaldo

Correia de Brito em sua produção poética. Nessa perspectiva, são utilizadas entrevistas

publicadas na internet, em especial as do período posterior à publicação de Faca (2003) e sua

indicação na lista de premiações do Portugal Telecom, em 2004. Tal recorte justifica-se pela

recorrência da temática do sertão e do regionalismo em todas as entrevistas mapeadas, até o

presente momento.

Vale lembrar o lugar da entrevista na pesquisa, funcionando como um instrumento

qualitativo, ao privilegiar a fala dos sujeitos, além de potencializar a perspectiva analítica de

como as pessoas percebem o mundo ou se percebem nele. No caso do escritor, configura-se

uma arena de debate sobre o seu fazer literário, suas ideologias, suas influências, bem com um

espaço de divulgação e marketing do seu trabalho. Em outras palavras, uma entrevista

oferece, por intermédio dos discursos nela imbricados, o acesso, de forma direta e/ou indireta,

às opiniões, às crenças, aos valores e aos significados que as pessoas atribuem a si, aos outros,

ao seu trabalho e ao seu entorno social.

Falar do lócus cultural e literário de Ronaldo Correia de Brito sem considerar o

material disponível nas entrevistas concedidas pelo escritor cearense em diversas mídias é

ignorar um portentoso material que muito delineia acerca das características, das

idiossincrasias, da densidade e da profundidade da geografia desenhada pelo autor, a qual

emoldura as suas narrativas.

A escolha desse material para análise se dá principalmente em virtude da repetição

temática que os entrevistadores propõem em torno do regionalismo. Como o sertão

invariavelmente vira o cerne da discussão nas entrevistas, Ronaldo Correia de Brito

constantemente é perguntado se sua literatura se enquadraria nessa dimensão. Sem titubear, o

escritor retruca que não é filiado a correntes regionalistas e que tampouco seu sertão seja

apenas um limite geográfico.

Ainda nessa seção, apresenta-se uma leitura dos contos “A espera da volante”, “Faca”,

e “Mentiras de amor”, ilustrando a configuração do universo sertanejo cunhado por Ronaldo

Correia e seu trabalho em temáticas universais, destacando-se nessas narrativas a dimensão do

tempo, da vingança e da liberdade.

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A quinta seção, “O trágico e o feminino: uma Faca de dois gumes”, aborda as

personagens femininas do livro de contos composto por mulheres de origens sociais, idades,

comportamentos e personalidades distintas, mas comuns na força que exercem nas decisões

da trama. Inicialmente, foi construído um quadro das generalidades e idiossincrasias dessas

representações em destaque no livro. Vale observar que a ação trágica, em geral, é conduzida

pelas mulheres, de forma direta ou indiretamente. Desse modo, destaca-se nessa seção a

presença desses dois elementos entrelaçados – o trágico e a força mítica das mulheres – na

obra de Ronaldo Correia.

A proposta de leitura do feminino nesta pesquisa não pretende tematizar os estudos de

gênero, matéria teórica já fartamente pesquisada por estudiosos da crítica feminista, em

especial, pela pesquisadora Natália Clarck (2012)2, que se dedica a problematizar o feminino

em Faca. No entanto, seria quase impossível desconsiderar a figura das mulheres, cuja

recorrência na condução das narrativas de Ronaldo Correia, seja como protagonista, seja

como personagens secundárias, sobretudo em suas pelejas diárias num universo brutalizado,

sustenta e ilumina o seu projeto estético.

Propõe-se, ainda nessa seção, entender as relações temáticas dos contos de Ronaldo

Correia com a tragédia clássica e a tragédia na contemporaneidade, na perspectiva de

Raymond Williams (2002) em Tragédia Moderna: “Chegamos à tragédia por muitos

caminhos. Ela pode ser uma experiência, um conjunto de obras literárias, um conflito teórico,

um problemas acadêmico” (WILLIAMS, 2002, p. 29). Para o crítico literário inglês, o

conceito de tragédia manifesta-se não apenas com um gênero de caracteres específicos, mas

também se atualiza em diversas práticas da modernidade.

Nessa seção, ainda, apresenta-se uma leitura do conto “Lua Cambará”, perscrutando

sua perspectiva mítica conduzida pela personagem feminina Lua. Nesse conto, o escritor

remonta à linguagem do mito amalgamada com as lendas tradicionais do sertão de Inhamuns.

Retomam-se ainda algumas personagens femininas, atentando para seu protagonismo ou pela

sua força na condução das narrativas, sobremaneira na condução da ação trágica do enredo.

2 CLARK, Natália Perry. Faca-face de um sertão feminino – Impressões do regionalismo contemporâneo de

Ronaldo Correia de Brito. Dissertação (Mestrados em Letras) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília,

Brasília, 2011.

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2- COM QUANTOS PRÊMIOS SE FAZ UM ESCRITOR?

No cenário literário contemporâneo, as premiações e os festivais literários têm

influenciado a produção, a divulgação e a dinâmica econômica do mercado editorial e,

consequentemente, a promoção de diversos escritores para o público nacional. A Festa

Literária Internacional de Paraty (FLIP), evento que ocorre no Rio de Janeiro, desde sua

primeira edição, em 2003, tem estimulado diversos eventos semelhantes por todas as regiões

do Brasil. Também em 2003 ocorre a primeira edição do Prêmio Portugal Telecom, com o

objetivo de elencar os autores dos melhores livros publicados durante o ano na opinião de um

júri composto de especialista na área de leitura, literatura e mercado editorial. Com a mesma

intenção, foram criados os concursos de Minas Gerais de Literatura, em 2007, e o de São

Paulo de Literatura, em 2008, promovidos pelos respectivos governos na esfera estadual, entre

tantos outros exemplos.

Nesse contexto de impulso ao mercado editorial no país, é oportuno destacar as

políticas públicas promulgadas nesse âmbito. Uma delas é a “Lei Rouanet”3, de 1991, que

incentiva empresas privadas e pessoas físicas a destinar parte do Imposto de Renda devido ao

patrocínio de atividades culturais. Outra ação que merece destaque é protagonizada pelo

Serviço Social do Comércio (SESC), que promove ou patrocina eventos literários como a

presença dos escritores em bibliotecas públicas e concursos regionais de produções literárias

em vários lugares do país. Além dessas ações, o governo federal destina verbas exclusivas

para a compra de livros destinados às bibliotecas públicas por meio do Programa Nacional

Biblioteca da Escola (PNBE), desenvolvido desde 1997 e que resulta em um fomento

significativo no mercado livreiro.

Ronaldo Correia de Brito apresenta uma produção literária marcada por premiações

literárias e inserções em editais culturais desde suas primeiras publicações. Seu primeiro livro

de contos editado – Três Histórias na Noite – ganhou o Prêmio Governo do Estado de

3 A Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991é um instrumento do governo federal para fomentar os

investimentos na área cultural no país, através de dedução fiscal de empresas e pessoas físicas. Para empresas, o

desconto pode chegar a 4%, enquanto que para as pessoas físicas o limite é até 6% do imposto devido. A lei de

incentivos fiscais contempla todas as produções culturais, a distribuição e o acesso aos produtos culturais,

incluindo CDs e DVDs, espetáculos musicais, teatrais, de dança, filmes e obras de audiovisual, exposições e

livros nas áreas de ciências humanas, artes, imprensa, revistas, cursos e oficinas culturais.

20

Pernambuco, em 1989. O escritor foi selecionado com o texto teatral Arlequim de Carnaval

(1989) no Prêmio Hermilo Borba Filho de Teatro, em 1990, também em Pernambuco. Em

2004, foi indicado na lista no Portugal Telecom de Literatura4, pelo livro Faca. Em 2005, a

edição da novela infanto-juvenil: Pavão Misterioso foi selecionado para o catálogo

internacional de literatura infantil The White Ravens5.

Foi ganhador na categoria de melhor texto de teatro infantil, em 2007, no prêmio Zilka

Salaberry6, com a peça Pavão Misterioso (2004 [1985]). No ano de 2009, foi contemplado no

Prêmio Literatura do estado de São Paulo7, com o seu primeiro romance Galileia. Além

desses, obteve com Retratos Imorais8 (2011) o terceiro lugar no Prêmio Clarice Lispector, na

categoria contos, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional. E o seu segundo romance –

Estive lá fora (2012) – esteve na lista de indicação, mais uma vez, no Portugal Telecom de

Literatura 2013. É oportuno destacar também a inclusão do título Baile do menino Deus, pelo

Ministério da Educação no Programa Nacional Biblioteca Escolar (PNBE), com uma tiragem

de quatrocentos e cinquenta mil exemplares, em 2003, e também de Arlequim de Carnaval,

que distribuiu exemplares do escritor em bibliotecas públicas em todas as regiões brasileiras.

A repercussão midiática das premiações se dá tanto pelo montante ofertado quanto

pela visibilidade que um escritor pode obter no âmbito nacional e até mesmo

4 O Portugal Telecom foi criado em 2003 e sua característica principal é reunir no seu corpo de jurados, uma

seleção de críticos de renome na imprensa ou na universidade para debaterem a lista dos finalistas. De acordo

com o regulamento, há um percentual para escritores portugueses e de países africanos de língua portuguesa e

uma comissão de auditória independente para acompanhar todas as fases do concurso.

5 Todos os anos a IJB (A Internationale Jugendbibliothek) maior biblioteca de literatura infantil e juvenil do

mundo. Situada em Munique - Alemanha, publica o catálogo The White Ravens – uma seleção de livros da

produção mundial de literatura infantil e juvenil, representado no Brasil pela Fundação Nacional do Livro

Infantil e Juvenil (FNLIJ). Este catálogo serve de referência mundial na indicação das melhores obras publicadas

anualmente. Em cada edição, apenas cinco livros brasileiros entram na lista.

6 O prêmio Zilda Salaberry é o único prêmio destinado exclusivamente ao teatro infantil, já se encontra na sua

sétima edição com concorrentes de todo o país, promovido pelo CEPETIN – Centro de Pesquisas e Estudo do

Teatro Infantil, com sede na cidade do Rio de Janeiro.

7 O prêmio de literatura São Paulo é promovido pelo governo do estado de São Paulo através de um projeto da

secretária de Estado da Cultura com uma política de incentivo a leitura. O edital de concorrência para essa

premiação é livre para a participação de escritores de todos os lugares do país, inclusive há abertura para

estrangeiros, desde que tenham seus livros publicados em língua portuguesa e distribuição no mercado nacional.

As categorias avaliadas são as de melhor livro e melhor livro de autor estreante. Cada um recebendo a quantia de

duzentos mil reais.

8 Retratos Imorais (2010) fez parte da lista dos dez melhores livros do ano do jornal O Globo ─ Informação

destacada na orelha do livro: Crônicas para ler na escola, de 2011.

21

internacionalmente. Além disso, a lista dos concorrentes das melhores produções literárias se

torna para muitos uma importante pista do perfil do que se está publicando de “melhor”

durante o ano. Os concursos literários, em geral, ocupam na contemporaneidade o lugar de

destaque que outrora foi ocupado pela conhecida crítica de "rodapé", dominante nas décadas

de 1940 e 1950. Logo depois destacam-se os Suplementos Literários dos grandes jornais do

país, os quais, além de divulgar textos inéditos de grandes autores, influenciaram muitas

leituras e leitores e patrocinaram muitos “sucessos”, como destaca Tânia Pellegrini:

[A] questão da crítica [...] Dividida entre a crítica acadêmica, especializada,

que funciona como um mecanismo de seleção e hierarquização da literatura

mais ou menos de acordo com os critérios do já institucionalizado e, de uma

certa forma, às vezes refugiada em suplementos como o antigo Folhetim ou

o recente Jornal de Resenhas (da Folha de S. Paulo) ou Cultura (do O Estado

de São Paulo), só para dar alguns exemplos, e aquela outra feita pelas

revistas semanais, cujo objetivo mais e mais foi se reduzindo a fazer

propaganda dos novos produtos disponíveis nas livrarias, a crítica literária

regular e judicativa, que supõe valoração, mesmo que provisória, para

leitores não especializados, foi aos poucos se eclipsando. [...] Essa crítica

valorativa, [...] a conhecida crítica de "rodapé", dominante nos anos 40 e 50,

fundamentalmente marcada pela não especialização dos que a ela se

dedicavam [...]. Sua linguagem eloquente, de leitura fácil, visava também

fazer publicidade, num diálogo bastante próximo com o mercado de sua

época. Mas isso não impedia, como afiança Antônio Cândido, que se

produzisse "uma visão competente", ao mesmo tempo formativa e

informativa (PELLEGRINI, s/d, online).

É pertinente destacar a conquista de Ronaldo Correia de Brito no Prêmio de Literatura

do estado de São Paulo, em 2009, na categoria melhor romance do ano – em cuja disputa

havia concorrentes já consagrados na cena literária, como José Saramago, Moacyr Scliar e

Milton Hatoum –, pois naquele ano Ronaldo Correia era estreante no gênero romance.

Ademais, no mesmo ano dessa premiação, o escritor teve uma reedição do seu livro de contos,

Faca, que fora inicialmente publicado numa tiragem de três mil exemplares, pela Cosac &

Naify, em 2003. Desde então, publica com menores intervalos, a saber: Retratos Imorais

(2010), Crônicas para ler na escola (2011) e seu segundo romance, Estive lá fora (2012),

todos rendendo elogiosas resenhas, várias entrevistas e convites para palestras em eventos

literários, como a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), e críticas de pesquisadores

em diversas universidades do Brasil: Davi Arrigucci Júnior (USP), Helena Bonito Pereira

(Mackenzie- SP), Karl Eric Schøllhammer (PUC-Rio).

22

De acordo com Marcelo Ferroni, editor no selo Alfaguara, o prêmio paulistano deu

uma boa impulsionada na carreira do autor, fazendo o livro Galileia mudar de patamar, sendo

merecedor de traduções para o francês, espanhol alemão. Observa-se, pois, uma tendência de

crescimento, ainda mais com a participação de Ronaldo Correia na Feira de Frankfurt, em

2013. Vale acrescentar que Galileia já foi objeto de pesquisa de mestrado na Universidade

Federal de Sergipe (UFS): A paródia bíblica em Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, de

Elizabeth Francischetto Ribeiro, defendida, em 2011, e outra que está em andamento: Sertão

de Pedra e Argila: Tradição, Ruptura e Modernidade no romance Galileia, de Ronaldo

Correia de Brito, de Carlos Roberto Nogueira de Vasconcelos pela Universidade Federal do

Ceará (UFC), além dessa, há a pesquisa de mestrado em História também de Guilherme

Henrique Ferreira9 pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), defendida em 2013 que

trabalha as figurações míticas presentes no romance Galileia e na coletânea de conto Faca e

suas relações com as concepções de modernidade e pós-modernidade.

Ainda em relação a esse romance, localizamos dois artigos: um publicado em livro

editado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo): “Galileia Sertaneja”, de

Wagner Martins Madeira, no livro Novas Leituras da ficção brasileira no século XXI,

organizado por Helena Bonito Pereira, de 2011; e outro intitulado “Na viagem pelo sertão de

Galileia, outras modulações regionais”, de Márcia Rios, da Universidade do Estado da Bahia

(UNEB), publicado pela revista Navegações (PUC-RS), 2012. E também o texto/artigo

“Galileia” de Viviane C. M. Stringhini1, disponibilizado pela revista Travessias

(UNIOESTE) do Paraná, em versão online.

Além dessas produções acadêmicas em torno do romance premiado, encontra-se

disponível na rede mais uma dissertação sobre a produção de Ronaldo Correia, pela

Universidade de Brasília (UnB), com a coletânea de contos Faca, (2003) cuja obra, vale

frisar, foi reeditada no ensejo da premiação do estado paulista, em 2009, e indicado no

Telecom Portugal de Literatura, em 2004. A dissertação, defendida em 2011, aborda o

regionalismo sertanejo a partir da perspectiva do feminino, com o seguinte título: Faca-face

de um feminino sertanejo: impressões do regionalismo contemporâneo em Ronaldo Correia

de Brito, de Nathália Perry Clark.

9 FERREIRA, Gustavo Henrique. Memória, história e ficção – sertões, metáforas e periferias da

globalização: olhares e interpretações sobre as artes de Ronaldo Correia de Brito. Dissertação (Mestrado

em História) – Programa de Pós-graduação em História. Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Minas

Gerais. 2013.

23

A dissertação de Natália Perry Clark contribui para a fortuna crítica do autor cearense

com uma leitura analítica da representação das personagens femininas no universo sertanejo

presente em Faca. Ela aposta na classificação regionalista da obra de Ronaldo Correia, sob

uma ótica distinta do romance de 30, pois para a autora o conceito de regionalismo é

atravessado por questões sociais, culturais, geográficas e principalmente temporais. Dessa

forma, cada obra dita regionalista é distinta, porque representa um tempo-espaço igualmente

distinto.

Sua pesquisa parte do pressuposto da importância do cenário (sertão) na construção do

enredo e das personagens – particularmente das figuras femininas –; no entanto, não se

restringe a uma dimensão local/regional, pois “as personagens [de Ronaldo Correia de Brito]

são mulheres que expandem a localidade em que estão, que nadam contra a corrente, que

transpassam portas e fronteiras do regional/local, que opõem-se, que colocam-se frente aos

desafios e aos outros, que têm força de revolta e, as vezes, são mais poderosas que os próprios

homens [...] são todas elas reais, verossímeis, identificáveis e reconhecíveis. São mulheres,

enfim que dão universalidade à sua leitura” (CLARCK, 2011, p. 12).

Sua pesquisa de dissertação estrutura-se em quatro capítulos assim distribuídos: o

primeiro traz a questão do regionalismo na contemporaneidade; o segundo aborda a vida, a

obra e a fortuna crítica e; o terceiro e o quarto são dedicados à análise do perfil sertanejo das

mulheres presentes em seis dos onzes contos do livro10

. A autora parte de um levantamento

histórico das representações do sertão na literatura até a contemporaneidade, trazendo na

sequência informações políticas, históricas e culturais do sertão do autor espelhados na obra e,

por fim, uma análise das personagens femininas sob a ótica do sertão, do mito e das questões

de gênero.

Nesse processo investigativo, a autora realiza uma pesquisa que perscruta desde a

representação do sertanejo ou do regionalismo pela literatura até a geografia do sertão vivido

pelo autor, presente nas suas obras ficcionais. Nathália Clarck (2012) apresenta um estudo dos

cenários, dos nomes e do autor, como elementos que delineiam a coletânea de contos. Sua

pesquisa alinha-se com esta aqui proposta, quando defende o protagonismo das narrativas

para mulheres e quando elenca o sertão como categoria de análise. Entretanto, a inclusão do

elemento trágico associado ao feminino nesta pesquisa avança em relação à pesquisa de

Clarck (2012). Além disso, o sertão é aqui tratado como um lócus discursivo, que empresta

10 Os contos utilizados por Natalia Perry Clark foram: “A espera da volante”, “Faca”, “Redemunho”, “Cícera”

Candoia, “Mentiras de amor”, “Luas Cambará”.

24

aridez aos seus cenários, para reflexão do grande dilema humano tratado na literatura: vida e

morte.

Além desses trabalhos, localizamos outro em torno da produção literária de Ronaldo

Correia: “Um mundo desterrado”, que apresenta uma leitura do universo sertanejo por meio

de Livro dos Homens (2005), com autoria de Analice de Oliveira Martins, numa coletânea de

artigos chamada Alguma prosa - ensaio sobre literatura brasileira contemporânea,

organizada por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RIO), em parceria

com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e publicada em 2007.

Ainda em relação às produções acadêmicas em torno da sua obra, encontram-se

também as produções acadêmicas Ficção brasileira contemporânea, de Karl Erik

Schøllammer (2011) e Helena Bonito Pereira (2011). Os autores e/ou organizadores, ao

apresentarem as tendências e os nomes em destaques na literária atual, incluem Ronaldo

Correia de Brito numa peculiar vertente literária que aborda questões universais e atemporais

por meio do universo sertanejo, mas distante de regionalismo ou outros rótulos reducionistas,

e o situa como uma escrita de novos questionamentos em torno do universo mitológico do

sertão, voltado para as narrativas tradicionais.

Atualmente, resenhas dos livros de Ronaldo Correia de Brito são facilmente

encontradas numa simples consulta a sites de busca na rede, fato diferente dos anos anteriores

a 2009, quando o escritor não tinha sido premiado com o melhor romance do ano.

Uma interessante “chave” para repensar o sistema de recepção de uma obra é

“considerar quem lê e quem escreveu e em que circunstâncias históricas e sociais se deu o ato

de leitura, sem deixar de ter em conta que tipos de textos são escritos e lidos e, neste último

caso, por que leitores” (REIS, 1992, p. 74). Não se deve perder de vista a questão histórica,

pois tanto os autores quanto leitores estão situados em momentos históricos específicos e

numa posição cultural e social. As premiações literárias ocupam, há muito tempo, uma

posição social de destaque, sendo acompanhadas e respeitadas por vários integrantes da crítica

dita especializada. Diante de tal repercussão, pode uma premiação ser o único ou o mais

relevante critério para consagração acadêmica de uma obra?

Também não podemos afirmar que o critério utilizado por esses pesquisadores, para

utilizarem a obra de Ronaldo Correia de Brito como objeto de seus trabalhos acadêmicos, seja

única e exclusivamente por conta de sua premiação nos concursos promovidos pelo estado de

São Paulo e pelo Centro de Pesquisas e Estudo do Teatro Infantil (CEPETIN), do Rio de

Janeiro. Ou ainda por causa de sua indicação no prêmio Portugal Telecom ou em qualquer

outro do qual o escritor participou ou ganhou. No entanto, pode-se inferir que tal dado

25

influenciou ou foi considerado relevante na escolha do objeto de pesquisa, haja vista que

quase todos os pesquisadores citam a indicação de 2004 ou as premiações de 2007 e 2009 do

escritor cearense.

Nos sites das editoras que publicaram as obras de Ronaldo Correia de Brito, as

informações dos prêmios literários são sempre registradas ou enfatizadas na apresentação do

autor e da sua obra, sendo, muitas vezes, a primeira informação mencionada no resumo das

obras nas homepages de comercialização dos livros do autor cearense. Do mesmo modo, essas

informações são destacadas nas orelhas ou na contracapa dos livros, seguramente uma

estratégia mercadológica utilizada para dar crédito e legitimidade à obra e ao escritor e,

consequentemente, alavancar a vendagem. Tal atitude chama atenção, no sentido de entender

a importância de uma premiação na carreira de um escritor, pois confere um status de

qualidade ao trabalho de um profissional avaliado por um júri técnico, especializado da área.

Mapeando as origens de todas as informações listadas sobre a obra do escritor

pesquisado, percebe-se, de certa forma, o alcance de sua produção no âmbito acadêmico no

país, uma difusão relativamente grande para um escritor recente no mercado editorial e com

algumas de suas edições publicadas com três mil exemplares, como no caso da primeira

edição de Faca e também Livros dos Homens – situação de praxe em tantos outros casos de

escritores estreantes ou inéditos no mercado editorial.

Para Ronaldo Correia, o prêmio de Literatura de São Paulo funciona como uma

espécie de vitrine interessante, não apenas para exposição dos trabalhos de escritores, mas

também como uma oportunidade de debate sobre literatura, além da satisfação do

reconhecimento do público de um ofício laborioso:

Passei oito anos trabalhando Galileia, então é muito bom você ser

reconhecido. Há uma projeção extremamente bem feita e delicada antes da

entrega do prêmio. A solenidade toda é de uma classe impressionante. Todos

os autores têm um tempo de fala, são filmados, falam de seu trabalho, leem

um pedaço de seu livro. Isso é uma democratização muito grande. Tem que

ter dois ganhadores, mas todos os autores foram mostrados, estão presentes.

Deslumbrante foi levar todos os artistas para espaços diferentes de São Paulo

para conversar com plateias das mais heterogêneas. Antes de premiá-los,

durante meses, os artistas foram sendo apresentados. Isso é muito bom, é

para ser imitado no Brasil todo (BRITO, 2009, online).

Apesar do destaque aqui realizado em torno da recepção do escritor Ronaldo Correia

de Brito depois de suas premiações, não é intenção justificar suas ressonâncias no mercado ou

seu espaço de prestígio nas academias do país apenas por meio delas, até porque essas

26

premiações não são unanimidades. Sabe-se que há entre os especialistas muitas divergências

de opiniões quanto ao mérito das obras escolhidas, paira nos bastidores desses eventos muita

desconfiança das políticas utilizadas nos concursos literários, não faltam incongruências que

provoquem questionamento da legitimidade dos resultados apresentados pelo júri, enfim, uma

questão complexa do universo livresco e suas implicações sociais, econômicas e políticas.

A leitura como prática social é objeto da Sociologia da Leitura, a qual investiga os

possíveis fatores que conduzem o leitor a ler determinada obra. Esse campo de conhecimento

considera, para seus estudos, as diversas formas pelas quais um texto pode chegar até as mãos

de uma comunidade ou de um leitor, bem como o “peso” das avaliações da crítica

especializada.

A recepção positiva de um determinado autor/livro no mercado editorial é determinada

por diversas variantes: por exemplo, o nível socioeconômico, a família, a escola/universidade,

os amigos, a existência/ausência de bibliotecas, a igreja e, em especial, a presença de

mediadores no processo da leitura, isto é, professores, agentes de leituras, bibliotecários,

mercado editorial, livrarias e críticos literários. Vale lembrar que, na contemporaneidade, as

premiações literárias têm sido cada vez mais um divisor de águas na carreia de muitos

escritores.

Atualmente, as condições de publicações são muito melhores e mais fáceis do que no

século passado, em decorrência dos aparatos tecnológicos existentes e da multiplicidade de

suportes de publicação e das redes sociais. Entretanto, com as possibilidades ampliadas, as

escolhas ficam cada vez mais difíceis. Diante do que é oferecido no mercado editorial, como

estabelecer os melhores entre tantos autores estreantes? Para muitos, os concursos literários

funcionam como bons indicativos de produções de qualidade na contemporaneidade, embora

haja controvérsias dos critérios utilizados por tais concursos, como os critérios de seleção do

júri ou inclusão/exclusão de uma determinada obra na concorrência, por exemplo.

O que não se pode negar é que o aumento do número de premiações literárias

repercute no cenário artístico e editorial. Muitos escritores tiveram uma guinada em suas

carreiras a partir da vinculação a premiações importantes, a exemplo de Milton Hatoum,

depois do Prêmio Jabuti em 2000, com o livro Dois irmãos. Em alguns casos, a simples

exposição do autor ou da obra na grande mídia é suficiente para o sucesso de vendas e

público, como foi o caso de Letícia Wierzchowski, autora de A casa das sete mulheres (2002),

que teve sua obra adaptada para a TV aberta. Por conta da série, que chegou à média de 30

pontos no Ibope, de acordo com a revista Época (2009), três edições em oito meses se

27

esgotaram, chegando a um total de 20 mil livros vendidos para leitores brasileiros. Um

fenômeno para a realidade do nosso mercado livresco.

No entanto, ganhar tais premiações ou ser lido pelo grande público, para muitos,

também não é garantia de qualidade, e muitos premiados são questionados quanto ao seu

mérito, considerando-se principalmente a incongruência de alguns regulamentos. Embora não

haja polêmicas ligadas diretamente ao escritor Ronaldo Correia de Brito, o Jabuti, por

exemplo, já protagonizou algumas polêmicas no meio artístico. Sobre esse particular, a

jornalista do Observatório da Imprensa, Josélia Aguiar, explana:

Umas das queixas recorrentes: a cada ano, há sempre livros encaixados com

categorias diferentes daquelas em que são registradas na ficha catalográfica,

feita pela própria CBL [Câmara Brasileira do Livro]. Há ensaios que ganham

como se biografia fossem; há clássicos, já mortos, que competem com

autores iniciantes (AGUIAR, 2010, online).

As críticas não param por aí, os debates ficam muito mais acalorados quando o tema

recai sobre o valor estético e as questões políticas. Dentro da multiplicidade de perspectivas

estéticas, da multiplicidade temática e da diversidade de gêneros ficcionais oferecidas na

produção contemporânea, é um desafio para os concursos literários garantirem um júri que

contemple as diversas vozes do cenário da produção literária nacional.

Márcia Abreu (2006), em Cultura letrada: literatura e leitura, ao abordar os critérios

de seleção de uma determinada obra, os quais são pautados na excelência estética e na

literariedade, mostra a fragilidade dos julgamentos em torno de uma obra literária ao longo da

história da literatura. A professora da Unicamp exemplifica sua tese com diversas críticas

negativas de escritores que, na contemporaneidade, são grandes nomes da literatura mundial –

desde o dramaturgo grego Aristófanes, passando por Shakespeare, até o francês Gustave

Flaubert foram alvos de ferrenhas críticas. Márcia Abreu (2006) explica por que acontecem

tais dissonâncias:

[...] a avaliação que se faz de uma obra depende de um conjunto de critérios

e não unicamente da percepção da excelência do texto. Ler um livro não é

apenas decifrar letra após letra, palavra após palavra. Ler um livro é cotejá-

lo com nossas convicções sobre tendências literárias, sobre paradigmas

estéticos e sobre valores culturais. É sentir o peso da posição do autor no

campo literário (sua filiação intelectual, sua condição social e étnica, suas

relações políticas etc.). É contrastá-lo com nossas ideias sobre ética, política

e moral. É verificar o quanto ele se aproxima da linguagem que fazemos do

que seja literatura (ABREU, 2006, p. 98-99).

28

No universo literário, enfatiza a autora, tais questões estão relacionadas com aspectos

culturais e políticos que estão em constante devir. É oportuno destacar também as fragilidades

que a conjuntura das políticas de incentivo à leitura e à divulgação e de estímulo aos novos

escritores também apresentam. Na prática, muitas empresas e produtores culturais são

estimulados pelo poder do marketing cultural. Para muitos, a perspectiva mercadológica

influencia a promoção de eventos culturais realizados com o apoio de incentivos fiscais, de

modo que em tais eventos prevalece, muitas vezes, a divulgação da marca do patrocinador,

em detrimento de uma responsabilidade cultural e social.

A Lei Rouanet teve relevante mérito ao diminuir a burocracia estatal, em relação à

seleção de qual vertente cultural deveria ou poderia receber as verbas públicas. Sua dinâmica

de repasse para as manifestações artísticas aproxima-se da cifra de 1,8 bilhão de reais de

investimento em cultura por ano, o que dá uma dimensão do seu impulso econômico.

Contudo, lacunas na gestão desses recursos fazem com que grandes empresas sejam grandes

protagonistas no cenário de investimentos cultural, utilizando-se de verbas públicas para seus

interesses mercadológicos; enfim, não é de forma gratuita que grandes bancos e empresas

patrocinam eventos e manifestações culturais.

O que chama também atenção no contexto desses concursos, seleções ou prêmios

literários é a quantidade da produção editorial de literatura no país durante os últimos anos. Só

para citar como exemplos, o Prêmio de Literatura de São Paulo no ano passado (2012) obteve

o número de 209 trabalhos concorrendo, o Portugal Telecom registrou, inicialmente, uma lista

com 502 livros publicados no Brasil. Acrescentando esses números aos diversos concursos

locais, regionais e outros nacionais, ainda assim, teremos apenas uma fatia do que se é

produzido no país, o qual foi/é intitulado de “um país de não leitores”.

Com a proliferação de prêmios literários, ganha o escritor, o editor, as livrarias, a

literatura brasileira e, principalmente, o leitor, por meio do fomento editorial.

Consequentemente, há mais possibilidades de visibilidade, de escolhas e debates em torno das

produções de nossos dias. No contexto brasileiro, as premiações literárias funcionam, apesar

de tangenciar algumas questões polêmicas, como indicadores de qualidade ou intermediadores

entre o escritor e o público.

Vale lembrar que a qualidade de uma determinada obra não é garantida apenas por um

júri, mas sim pela sua consagração ao longo do tempo pelos leitores que (res)significam

constantemente o sentido do texto literário. Ronaldo Correia de Brito vem revelando um

projeto de literatura que mapeia uma cartografia literária, a qual delineia questões da condição

29

humana, por meio de um cuidado especial com a linguagem, marcada por uma sintaxe muito

particular exercitada com o uso das frases breves e incisivas:

Trabalho duas propostas de Ítalo Calvino na minha literatura: a exatidão e a

rapidez. Sou obsessivo em tentar dizer o essencial com poucas palavras. A

cada dia me preocupo menos com o efeito das frases. Já não tento alcançar a

beleza; prefiro alcançar a verdade. Quase não crio metáforas e censuro os

adjetivos. Acho que sou esquemático, o que não deixa de ser um perigo para

a literatura. Mas não suporto gorduras, sempre busco chegar ao osso.

(BRITO, 2008, online).

Brito apresenta uma escrita que aponta para sua formação de leitor, que passa pela

paixão às bibliotecas, pelas leituras bíblicas (as narrativas míticas), pela literatura clássica dos

gregos, dos russos, dos escritores nacionais, além de estabelecer, sempre, elos entre a

literatura e cinema, teatro e outras artes. Unindo seu repertório de tradição literária e de

tradição popular, o escritor revela uma escrita de representação de temas universais e

atemporais no cenário sertanejo. Todos esses elementos apontam para um escritor que deseja

imprimir na sua literatura uma narrativa que capta o leitor, mas que sobretudo eterniza um

instante e consagra uma imagem. Quando isso acontece, premiado é o leitor e legitimado está

o escritor.

2.1- UM (RE)CORTE DA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA DE RONALDO CORREIA

DE BRITO

O termo literatura contemporânea comporta diversos desdobramentos conceituais,

desde exposições reducionistas que o compreendem como uma ficção produzida nos últimos

anos até reflexões que (re)pensam o próprio conceito de literatura, que se modela em

diferentes contextos histórico-culturais. E o que é literatura na contemporaneidade? O que

caracteriza o momento histórico, a cultura ou a política neste contexto atual? Karl Erik

Schøllammer, em Ficção brasileira contemporânea (2011), aponta para as relações entre o

momento histórico e a literatura na modulação das tendências literárias atuais:

[...] o verdadeiro contemporâneo não é aquele que se identifica com seu

tempo, ou que com ele se sintoniza plenamente. O contemporâneo é aquele

que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de

captar seu tempo e enxergá-lo. Por não se identificar, por sentir-se em

deslocamento com o presente, cria um ângulo do qual é possível expressá-lo.

30

Assim, a literatura contemporânea não será necessariamente aquela que

representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza

histórica que faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente, que se

afastam de sua lógica. Ser contemporâneo, segundo esse raciocínio, é ser

capaz de se orientar no escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de

se comprometer com um presente com o qual não é possível coincidir

(SCHØLLAMMER, 2011, p. 09-10).

Nesse sentido, o conceito de contemporâneo é atravessado por um paradoxo, pois “o

escritor contemporâneo parece estar motivado por uma grande urgência em se relacionar com

a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua

especificidade atual, em seu presente” (SCHØLLAMMER, 2011, p. 10). Sendo assim, o

presente é representado, muitas vezes, como uma matéria descontínua, desconexa,

fragmentada, confusa, a qual o escritor tenta reconstituir literariamente.

Mesmo diante das várias dimensões conceituais, impõe-se, inicialmente, uma

delimitação (ao menos temporal, dada sua amplitude) do termo “contemporâneo”. Aqui se

utiliza o recorte do período que se inicia pós-1964 até os dias atuais, conforme entendem

diversos críticos da literatura brasileira, a exemplo de Flora Süssekind (2004). Vale notar que

tal delimitação funciona apenas como um recorte temporal, numa tentativa de sistematização

do que se nomeia de contemporaneidade.

Além de uma marcação cronológica, esse período, na verdade, cristaliza um ciclo de

mudanças que, de acordo com Antonio Hohlfeldt (1988), inicia-se no pós-1945, haja vista que

a década de 1930 dedicou-se basicamente ao romance. Logo em seguida, há um destaque para

a poesia, e a partir de 1950 o conto começa ser praticado e experimentando dentro dos moldes

que temos até hoje – como um construto textual centrado num drama, no qual é apresentado

um espaço restrito, de curto lapso temporal e de extrema objetividade, buscando uma unidade

de ação e de tom, focando uma perspectiva impressionista.

Costuma-se dizer que o século XX atravessa-se em pelo menos duas décadas

a surgir na Europa, vindo empurrado pelo fragor das batalhas. No Brasil, a

guerra era diversa, e espraiava-se desde o projeto literário-nacionalista

inaugurado por José de Alencar. Implicava uma autoafirmação, em especial

frente ao Velho Mundo. A concentração populacional nas cidades facilitara a

busca de uma “civilização”, evidentemente importada (e mal assimilada) que

implicava o que David Salles e outros estudiosos chamaram de “ornamento”,

artifício absolutamente externo que visava dar a afirmação necessária à obra:

31

as casas recebem ornamentos, também as vias públicas, os prédios

administrativos, e não menos a literatura (HOHLFELDT, 1988, p. 44).

Dentro dessas transformações ocorridas, o processo impulsionado pela globalização

influencia a produção literária contemporânea por meio das confluências culturais e

identitárias que se estabelecem entre diversas “tribos”, as quais geram, consequentemente,

uma produção determinada pela pluralidade. Dessa forma, o cenário da literatura

contemporânea é demarcado pela pluralidade de temas e tendências. Silviano Santiago (2002)

não classifica esse aspecto da multiplicidade de vertentes como algo negativo. Ainda que

pareça algo caótico, o autor aponta para a vivacidade do gênero e para a criatividade de

expressão.

Em relação aos temas utilizados pelos contistas contemporâneos, conserva-se a

preocupação na representação de situações emblemáticas de experiências vivenciadas pelo

homem contemporâneo; contudo, ao mesmo tempo em que o escritor possui a intenção de

transpor elementos dessa realidade em que vive, ele sabe também que literatura não tem a

finalidade ou obrigação em trazer verdades históricas ou proposições inquestionáveis, até

porque sua criação é uma construção artística de uma perspectiva engenhada pela

subjetividade, imaginação e criatividade.

Apesar da combinação engenho e arte do escritor na sua produção, seus textos

acabam funcionando como representação simbólica e metafórica de vários aspectos

socioculturais de um determinado período histórico, com suas ideologias e discursos

intrínsecos nas ações das personagens. Por conta disso, cada vez mais os estudos literários,

bem como a prática literária, estão atentos para as questões relacionadas à representação de

grupos sociais, em especial, nesse momento, aos que por muito tempo não tiveram

representatividade nos diversos âmbitos da sociedade.

Essa nova perspectiva que permeia a literatura contemporânea, realiza (re)leituras e

debates das imagens construídas desses grupos socialmente marginalizados dentro da

literatura. Esses grupos são entendidos, também, como aqueles que compartilham de uma

identidade, a qual foi valorada negativamente pela cultura dominante em decorrência de

categorizações ligadas ao sexo, à origem étnica, religiosa ou econômica, à orientação sexual,

ao gênero ou a outros critérios hierarquizantes.

32

Pensar na questão da representação na literatura implica levantar algumas inferências,

por vezes divergentes. Para alguns estudiosos, como Regina Dalcastagné (2002), a literatura

não tem (e nunca teve) preocupação primordial com a realidade, embora ela apareça de forma

intrínseca, seja quando negada, distorcida, idealizada ou pormenorizada, sempre sob uma

apresentação limitada por uma perspectiva. Para outros, no entanto, nem sempre foi ou é

assim porque o escritor pode inserir intencionalmente fragmentos da realidade no seu texto,

ou até mesmo imprimir em sua escritura uma intenção de registar toda realidade circundante.

Outra problemática também levantada sobre a questão da representação literária se

refere a quem é o enunciador do discurso e de que lugar é construída essa fala e a pluralidade

cultural. Quando se trata de literatura, nota-se, de maneira geral, mas especialmente nas

produções das últimas décadas, uma confluência de gêneros atrelados a (re)pensar os

processos histórico-culturais. Tudo isso por meio dos discursos nela imbricados e

representados. Assim, a literatura é vista como um espaço privilegiado que, por meio de sua

linguagem, pode destacar aspetos de alguns grupos e de outros não, já que todo juízo de valor

implica, ao mesmo tempo, inclusão e exclusão de algo.

A literatura contemporânea também registra essa inquietação com a imagem e a voz de

grupos deixados à margem, sendo, por isso mesmo, recorrente nas narrativas mais recentes

um esforço em contemplar uma multiplicidade de pontos de vista. Assim, a produção

ficcional brasileira contemporânea pode ser definida pelo paradoxo de ruptura e tradição, em

razão da enorme pluralidade, principalmente nas últimas três décadas do século XX, período

que mescla, alterna, altera ou confunde velhos conceitos. No entanto, essa diversidade não

exclui uma possibilidade de identificação das tendências que predominam em nossas

produções recentes. De acordo com Karl Eric Schøllammer:

Uma das soluções mais frequentes é eleger uma década como definidora de

cada geração, o que já criou definições bastante reconhecidas que fazem de

1970 a década de contistas urbanos, de 1980 a década da literatura pós-

moderna no Brasil e de 1990 a geração de „transgressores‟, num tempo

determinado pela escrita de computador e pela temporalidade imediata da

Internet. A „Geração 00‟, por sua vez, ainda não ganhou um perfil claro, e

nenhum grupo se identificou para escrever o manifesto e levantar sua

bandeira de geração (SCHØLLAMMER, p. 17, 2010).

33

Helena Bonito Pereira (2011), ampliando a discussão sobre os traços características da

ficção atual, sugere tendências da literatura no século XXI, entre elas, uma espécie de “pós-

regionalismo, na qual a migração do campo para a cidade é representada a partir da

perda/busca de identidade e no deslocamento com desindentificação; da avaliação das

relações familiares; dos diálogos intertextuais; do abandono da literatura jornalística e da

adesão tecnológica. A essas características pode-se acrescentar a linguagem rápida e

dinâmica, o esgarçamento da rigidez das fronteiras entre o real e ficcional, a busca por

construções metaficcionais, o retorno ao mito e a influência das narrativas orais, como outros

exemplos.

O escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, considerando as devidas proporções,

aproxima-se dos elementos elencados por Helena Bonito Pereira (2011). Sua produção

literária é costurada por temas de natureza mítico-simbólica, pois seus contos atualizam os

mitos e a sabedoria dos antigos, atrelados ao peso dos valores de honra e vingança. O foco de

sua narrativa reside numa mescla de temas nascidos da tradição oral (assim como o gênero

conto), com a forte influência de textos eruditos, como a utilização do clássico elemento

trágico presentes em Sófocles, Ésquilo, Eurípedes e Skakespeare na composição de suas

histórias, como também das narrativas bíblicas. Esses elementos compõem apenas algumas

das influências literárias e artísticas que atravessam suas obras, além das leituras de teóricos e

críticos da literatura, a exemplo de Walter Benjamin, Ítalo Calvino, Julio Cortázar e Ricardo

Piglia.

Ronaldo Correia de Brito inicia a publicação de suas narrativas com o título Três

Histórias na Noite (1989), depois lança uma coletânea com doze contos, As noites e os dias

(1997), voltando a publicar o gênero com o livro Faca (2003), uma seleção de narrativas, das

quais cinco já publicadas no livro anterior11

, outras cinco inéditas e a última escrita na década

de setenta (Lua Cambará) para uma versão cinematográfica, produzida na década de setenta12

.

11 Os contos publicados em As noites e os dias presentes também em Faca: “O dia em que Otacílio Medes viu o

sol”, “Inácia Leandro”, “A faca”, “Cícera Candoia” e “A espera da volante”.

12 “Lua Cambará”, entre os anos de 1975 e 1977, ganha contornos de roteiro cinematográfico com Ronaldo

Correia de Brito e Horácio Carelli na direção, em 1979 é realizada uma versão televisiva pela TV Cultura, sob a

direção de Marcelo Pinheiro. Em 2001, a narrativa ganha uma nova versão, intitulada Lua Cambará: Nas

escadarias do Palácio sob a direção Rosemberg Cariry.

34

Em 2005, lança mais uma seleta de contos, Livro dos Homens, com mais três republicações

ainda do primeiro13

e mais dez narrativas inéditas.

Dos textos para o teatro, destaca-se a Trilogia das Festas Brasileiras: Arlequim de

carnaval (1991), O Baile do Menino Deus (1995([1983]) e Bandeira de São João

(1996[1987])14

, todos estes em parceria com Francisco Assis Lima15

e a novela infanto-

juvenil: O Pavão Misterioso (2004[1985]).

Em 2009 estreia no gênero romance com Galileia (ganhador do Prêmio de Literatura

de São Paulo, na categoria melhor romance do ano). No ano seguinte volta a publicar contos,

lançando Retratos Imorais (2010) e inaugurando os cenários urbanos, entrecortados pelas

memórias do sertão. Em 2011 é o ano de publicação de Crônicas para ler na escola, com

apresentação de Regina Zilberman, que reúne textos sobre leitor, literatura, cultura e mercado

editorial publicados em sua coluna quinzenal na revista eletrônica Terra Magazine, do portal

Terra. E seu último lançamento foi Estive lá fora (2012), seu segundo romance, ambientado

por cenários urbanos, mas com personagens de identidades, memórias e trânsitos

sedimentados pelo universo sertanejo.

Qualquer escritor consagrado tem em sua produção alguns trabalhos mais preferidos

pelo público e crítica, e com Ronaldo Correia de Brito não é diferente, o livro Faca (2003) é

um deles. Nesse livro de contos verifica-se a máxima de Julio Cortázar, para quem “um bom

conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases” (CORTÁZAR, 1974, p.

152). O efeito mordaz está presente já no sugestivo título que prenuncia o cortante desfecho

trágico de suas narrativas. Esse elemento que conduz o destino das personagens nos onze

contos do livro aponta para uma tênue ligação com o tradicional elemento trágico na literatura

ocidental e suas transformações no universo da escrita literária.

Faca oferece um relevante exemplar para uma discussão teórica de uma produção

literária da nossa contemporaneidade, por apresentar um elo dialógico entre a tradição literária

13 Os contos publicados em As noites e os dias presentes em Livro dos Homens: “Eufrásia de Meneses”, “Rabo-

de-burro, “Maria Caboré”.

14 Todas as peças da Trilogia das Festas Brasileiras foram musicadas por Antonio Madureira.

15 Francisco Assis de Sousa Lima também formou-se em medicina. Nascido no Ceará, estudou no Recife e

especializou-se em psiquiatria em São Paulo, onde reside atualmente. Autor de Poemas arcanos, recebeu

prêmios literários como o Sílvio Romero, do Instituto Nacional do Folclore (Funarte), com o livro Conto popular

e comunidade narrativa, e o Prêmio de Poesia Cidade do Recife, com o poema “Saga”.

35

e a transgressão. Ronaldo Correia de Brito traz em seu repertório um conjunto de tramas que

dramatizam o tão explorado tema da literatura dita regionalista: o inóspito universo do sertão.

Ronaldo Correia se destaca justamente nesse aspecto, por demonstrar que a partir do universo

sertanejo pode-se depreender uma espécie de tragicidade na condição humana, como fica

explícito no trecho do conto: “A vida sempre à espreita da morte. A aceitação de um destino

compreendido, mas irrevogável” (BRITO, 2003, p. 135).

Nessa perspectiva, o homem é um ser imerso num palco repleto de contradições e

conflitos inerentes à sua condição. Dentro dessa configuração, os contos de Faca são

construídos como narrativas que, invariavelmente, se deparam com a morte como dissolução.

Além dessa estreita relação com a morte na composição das narrativas, nesse livro as

personagens de Ronaldo Correia de Brito são conduzidas em dramas que possuem um valor

simbólico muito amplo, de forma que transcendem o universo narrado numa extensão de

problemáticas humanas.

Nesse sentido, observa-se que o autor utiliza como matéria para sua produção

contística os tradicionais temas da literatura universal, apontando para a célula familiar como

uma representação microcósmica da sociedade, bem como nela a origem dos males da

humanidade. Ademais, é notório em sua narrativa o protagonismo das personagens femininas

que quase sempre conduzem, provocam, decidem, insinuam, enfim, estabelecem força frente

às outras personagens.

Também nessa atmosfera de um sertão existencial é produzida a coletânea de contos

intitulada Livro dos Homens. A geografia sertaneja atravessa mais uma vez a narrativa de

Ronaldo Correia de Brito, uma marcação que ultrapassa representações de paisagens ou tipos

sociais e delineia uma cartografia literária que intercruza memória, histórias e trânsitos entre o

sertão e a cidade ou vice-versa.

Nesse universo, a morte é representada como uma espécie de lente para leitura de

mundo. Encontra-se sempre um corpo imolado ou em estado de decrepitude, em dissolução,

como tudo no universo. Pode-se dizer que Livro dos Homens confere um olhar sobre o

comportamento humano em situações limite. Abandonos, assassinatos, traições, suicídios,

doenças terminais, loucura, vingança e solidão são as tônicas dessas narrativas e várias são as

perspectivas de leituras dessas histórias atreladas ao tom trágico do viver, como é revelado

nesse trecho do livro:

36

Uma revoada de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá

esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de

sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos,

chupando a última gota d‟água das pedras, lendo o sol todos os dias, nossa

sentença. (BRITO, 2005, p. 20).

Esse livro de contos também se alinha as tendências da ficção contemporânea

sugeridas por Helena Bonito Pereira, por apresentar uma espécie de “pós-regionalismo”, o

qual apresenta o sertão como um universo humano, bem como na retomada do trágico e de

uma narrativa (re)composta por uma memória entrecortada, fragmentada ou

inventada/reinventada pela técnica e talento de um exímio contador de histórias.

Outra produção que se alinha igualmente é Galileia, livro que lança o escritor cearense

como romancista e com louvor de crítica e público. Em síntese, relata a história de três primos

– Adonias, Davi e Ismael – os quais retornam para a fazenda “Galileia”, que dá título ao livro.

As personagens estão de volta ao sertão do Ceará, para uma visita ao avô, Raimundo Caetano,

um típico patriarca de uma família em decadência econômica, moral e nos laços afetivos. O

motivo da viagem não é espontâneo, acontece por conta da doença grave do ancião, o qual

deseja a presença de todos os familiares nos seus últimos instantes de vida. O sentimento

comum aos três primos é desenraizamento com a região natal, e por conta disso foram morar

em diferentes cidades do Brasil e até mesmo fora do país, numa tentativa de

desterritorialização – termo cunhado pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari

(1969) e aqui recortado no sentido de rompimento dos valores, de desconstrução de símbolos,

de marcos históricos, de diluição das identidades, de esgarçamento de laços ou de fronteiras

políticas, econômicas, sociais e culturais.

O reencontro com os familiares faz as personagens rememorarem histórias dolorosas e

traumáticas de adultério, vingança, incesto e morte. A tensão vai crescendo no romance,

quando são revelados paulatinamente segredos daquela fazenda. Apesar do distanciamento de

suas raízes, nessa viagem os primos vão descobrir ou reconhecer as marcas do sertão

entranhadas na construção de suas identidades, em suas histórias e nos seus modos de ver e de

ser no mundo.

Estive Lá fora, lançando em 2012, é uma narrativa localizada na cidade de Recife-

PE, nos anos mais ferrenhos da ditadura militar no Brasil (pós-1964). O protagonista da

37

história, Cirilo, é um estudante de medicina do sertão do Ceará (Inhamuns) com dificuldades

financeiras de manter seus estudos na capital pernambucana e imerso em conflitos familiares,

ideológicos e existenciais.

Ronaldo Correia de Brito vem compondo o cenário literário contemporâneo com uma

produção marcada, sobretudo, pelo trágico, mito e sertão. Em Estive Lá fora o autor mantém

essa coerência temática, pois o imaginário sertanejo também está presente por meio das

memórias que o sertanejo Cirilo retoma em diversos momentos da narrativa. Nela entrevê-se

uma história de medo diante das incertezas em relação ao novo em um contexto de

instabilidade e violência, representadas por meio do protagonista e de sua família. Cirilo

assume o papel de primogênito e recebe a benção e, ao mesmo tempo, a incumbência de

resgatar o irmão mais velho (Geraldo), este de paradeiro desconhecido por conta do seu

envolvimento político-partidário contra o regime militar. Situação que resulta em diversas

turbulências e sofrimento para todos os familiares e amigos.

O pai levaria Cirilo à Rodoviária, ao ônibus e à promessa ameaçadora do

Recife. Altivo, parecia alheio à contração dos dentes do filho, à força com

que segura o choro porque era interdito aos homens da família chorar.

Caminha à frente, como o deus Hermes conduzia as lamas para o inferno. Na

véspera Luís Eugênio narrara a história do rei que possuía três filhos homens

e cada um deles, ao atingir a vida adulta, pedia licença para deixara a casa

paterna. Geraldo, o mais velho, fora embora havia quatro anos, um pouco

antes do golpe militar. “Você quer minha benção com pouco dinheiro ou

minha maldição como muito dinheiro?”, perguntava o pai da história, e

apenas o filho mais novo escolhia a benção e um caminho espinhoso.

(BRITO, p. 09, 2012).

No desenrolar da trama é possível flagrar nuances da história brasileira durante o

regime de exceção: a falta de infraestrutura das instituições de ensino superior; as expulsões

sumárias de professores, de alunos e de funcionários de universidades; as arbitrariedades dos

atos institucionais ou os métodos torpes de coação utilizados pelos militares, bem como a

aflição dos pais dos militantes “desaparecidos” sem nenhuma informação, impotentes e

descrentes nas autoridades, enfim, um recorte fotográfico de uma época. Além disso, o autor

aponta para as perversas consequências das ações tanto dos militares quanto dos militantes de

esquerda no Brasil e no mundo. Por intermédio do posicionamento “neutro” de Cirilo, é

questionado o que é pior: “o patrulhamento da direita ou o da esquerda?”. Para Cirilo,

somente a literatura é a grande revolução.

38

O livro é um convite para uma narrativa memorialista, autoficcional, sensível, crítica,

criativa e também histórica de um tempo marcado por rápidas transformações, insegurança no

presente e dúvidas para o futuro. Com esse livro, Ronaldo Correia de Brito apresenta

elementos que há muito tempo inquietam o humano: o medo, o novo, os conflitos familiares e

as (in)certezas das escolhas.

As narrativas de Ronaldo Correia são impactantes e surpreendentes em seus

desfechos, por serem trágicos e, por vezes, imprevisíveis. Conduz o leitor a experimentar um

universo marcado por desígnios metafísicos e imagens que refletem a dureza, o sofrimento e

até situações-limite da vida humana. Dentro dessa atmosfera engendrada pelo contista

cearense, (re)conhecemos a realidade dos sertões nordestinos em suas veredas, fantasmas,

mitos, mistérios, bem como seus códigos, valores e dinâmica social, em cuja linguagem arte é

que reside a competência e a singularidade do autor. Corroborando essa ideia, Dimas Macedo

(2005) assevera:

Ronaldo Correia de Brito universaliza com os recursos da sua escritura

literária, captando do regionalismo exclusivamente aquilo que interessa à

essência do humano, suporte nobre, portanto, da literatura universal como

um todo, seja qual for a sua latitude ou instância de comportamento.

(MACEDO, 2005, on-line).

As histórias recortadas para este estudo conseguem contemplar esse caráter de

universalização temática. A geografia escolhida por Ronaldo Correia para desenvolver suas

tramas são possíveis de cruzamento com os horizontes de expectativas de qualquer leitor, em

qualquer lugar e tempo. Há sempre uma atmosfera de suspense e tensão, que pretende prender

a atenção do leitor em cada linha, conduzindo para um final trágico, de certa forma

anunciado, esperado ou induzido logo nas primeiras frases da narrativa, como destaca o

escritor: “Estou sempre inventando modos de narrar, modos de desequilibrar o leitor. Acho

que, além de contar uma boa história, gosto de experimentar com a linguagem, gosto de puxar

o tapete do leitor, gosto que o leitor pense que vou por ali – e eu vou por acolá” (BRITO,

online).16

16 Entrevista concedida ao Paiol Literário. Disponível no site: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ronaldo-

correia-de-brito/. Acesso em: 15 out. 2013.

39

O sertão na obra de Ronaldo Correia aparece no proscênio para apresentar um dos

temas mais universais e presentes na literatura: a implacabilidade da morte e do tempo no

destino dos seres humanos, uma tônica que persegue cada passo de sua contística, recordando-

nos que tudo na vida é tragado por esse destino humano, seja no sertão, seja cidade, seja em

qualquer espaço geográfico que habite o ser humano. O diferencial em Ronaldo Correia está

nas formas inusitadas de como a morte “ganha” a vida das suas personagens. “A espera da

Volante” e “Faca” são alguns exemplares contos nos quais a morte aparece de forma insólita

no espaço sertanejo, utilizando-se do cenário para projetar um pouco do ser humano em sua

complexidade.

O escritor remexe em universos arcaicos e em dramas universais, apresentando-os ao

seu leitor. Os aspectos mais sórdidos do humano, como os ímpetos passionais, as inquietações

mais profundas, desejos irreveláveis, sentimentos escusos contados num tempo imemorial do

mito, numa narrativa erigida por fragmentos da memória são os principais tópicos de Ronaldo

Correia. Situações-limite, personagens à beira do abismo de emoções, seres dilacerados pelo

peso das suas decisões, vidas sem solução completam o cenário árido de sua ficção.

Ronaldo Correia escreve, pode-se dizer, com o encantamento e o ritmo utilizados

pelos grandes narradores da cultura popular nordestina e com a técnica do trágico, fundada

pelos gregos antigos. Em suas histórias, tudo parece que está em ruínas: o lugar, as pessoas,

os sentimentos, a vida e alma. Entretanto, é nesse tom desmedido que a escrita se avizinha de

uma compreensão da complexidade da alma humana.

Em geral, todo escritor deixa suas marcas ideológicas em sua escrita. Com Ronaldo

Correia não é diferente. Sua ficção (re)configura uma região castigada pela seca, ignorada

pelas políticas públicas e erguida pela violência, um palco de tragédias contadas por poucos

ou esquecidas por muitos, mas que o escritor faz questão de remontá-las em sua literatura,

configurando um mundo em dissolução por conta das carências, ausências e mortes, tal qual é

registrado no conto “Cícera Candoia”:

Nesse tempo, já não se tinha mais o que fazer no Parambu. A terra não servia

para plantar, não havia lavouras para colher, nem roçados para brocar. Os

redemoinhos corriam os descampados, as pessoas apressadas escondiam os

rostos e arrumavam os poucos pertences para a viagem. Os caminhões

40

seguiam carregados dessa gente magra como o gado que morria de fome e

sede nos pastos secos (BRITO, 2003, p. 115)17

.

Outro traço de Ronaldo Correia, em especial no livro Faca, é a composição dos

cenários em diálogo com a trama das narrativas. O ambiente, os animais e tempo se alinham

nos contos, aos acontecimentos e/ou aos sentimentos das personagens. Os elementos da

natureza ou do cenário em sua dinâmica de cores, sons, cheiros e luzes funcionam como uma

espécie de trilha sonora da narrativa, completando o tom da cena. É assim que acontece, por

exemplo, no conto “Faca”. Antes da morte trágica da protagonista os cavalos da fazenda

aparecem numa agitação incomum:

Os dois cunhados levantaram as cabeças a um só tempo, os olhos faiscantes.

Os cavalos riscavam o chão, umas léguas de terra que eram riqueza e o poder

da família. Os arreios de prata tiniam. [...] − Por estas e outras eu posso

afirmar que minha mulher Donana está me traindo. [...] Os cavalos

balançaram as cabeças. [...] Os cavalos sentiram as esporas dos seus donos

(BRITO, 2003, p.32).

E assim constitui-se a atmosfera do trágico nas narrativas, variando a manifestação da

natureza em cada narrativa num prenúncio da ação trágica. Em um conto, é um aguaceiro

noturno com raios e trovões, como acontece em “Inácia Leandra”; em outro, os ruídos

advindos da rua funcionando como um “roteiro” de sentimentos da protagonista Delmira,

prisioneira de um cárcere caseiro em “Mentiras de amor”. Há também a expressão da natureza

em sinais costumeiramente decodificados pelos sertanejos como mau agouro, a exemplo dos

redemoinhos que acontecem no conto “Cícera Candoia”, os quais são popularmente

conhecidos no sertão como “redemunhos”.

Inscritos num mundo desterrado e situado num tempo mítico, as personagens de

Ronaldo Correia não deixam de serem atuais, uma vez que reverberam o homem nos seus

instintos mais vitais: amor, desejo, vingança, por exemplo. Sentimentos atravessados, muitas

vezes, pela violência e em constante devir. Vivemos na contemporaneidade, transtornados

pela violência em suas mais variadas performances, muitas vezes embrutecidos diante do

17 Doravante será utilizada essa formatação para referenciar a obra em estudo.

41

trágico. Assim como o universo ficcional de Faca, o mundo atual é marcado pela

transitoriedade, pela cisão, pela fluidez. Estamos sempre de “partida”, em trânsitos, em

mudanças num ritmo cada vez mais acelerado e atravessado pela iminência do trágico.

Além disso, o retorno ao trágico na contemporaneidade é um forte traço da literatura

contemporânea, destaca Beatriz Rezende (2008), que se manifesta por meio da tríade cidade,

literatura e tragédia. Uma marca, que segundo a autora, domina nossa narrativa, poesia e

dramaturgia, pois são as grandes cidades “que servem como referência ou, de algum modo,

como metáfora da vida moderna, da vida pós-moderna, da vida no terceiro milênio”

(REZENDE, 2008, p. 43).

No entanto, Ronaldo Correia se inscreve na narrativa atual com uma escritura marcada

pelas trilhas do sertão, da literatura e da tragédia, evidenciando a multiplicidade das

expressões artísticas contemporâneas e demonstrando uma configuração de um sertão

multifacetado. Ao eleger o universo sertanejo como palco de sua literatura, Ronaldo Correia

constrói um percurso narrativo peculiar no cenário contemporâneo por apresentar seus

personagens no sertão em vez da cidade, como a maioria dos escritores atuais. Essas histórias

apresentadas no sertão revelam ao leitor a riqueza de um universo pouco conhecido, mas que

faz parte da identidade e literatura nacional. Ronaldo Correia faz questão de enfatizar o lócus

de origem de suas narrativas, pois acredita na força que emana delas e não abre mão de

destacar suas origens.

Sertão e cidade parecem funcionar como antítese, basta observar as representações

desses espaços na cena escrita erigida pela literatura. No entanto, o espaço sertanejo na obra

de Ronaldo Correia encena questões da cidade combinados com um mundo arcaico do sertão:

sujeitos descentrados, desterritorializados, imersos em caos pessoais e na solidão são

encontrados em sua literatura. Nas palavras do próprio escritor, o seu sertão contemporâneo é

uma espécie de periferia da cidade, nessa ótica o espaço sertanejo pode encenar problemáticas

urbanas num ambiente excêntrico.

Pode-se afirmar, guardada as devidas proporções, que as histórias dos sertanejos

encontradas na obra de Ronaldo Correia poderiam ser inscritas em qualquer geografia urbana,

mas ao serem encenadas no lócus sertanejo compõem uma narrativa visceral, pois o sertão

decodificado na linguagem artística se torna símbolo dos sentimentos intensos, representação

do inóspito, metáfora da dureza e da labuta do viver.

42

Outro traço importante da escrita em Faca consiste na utilização de cenas densas de

informação, mas curtas em extensão, econômicas nas palavras e profícuas em sentidos. Para

Ronaldo Correia, “o menos é mais”; assim como os flashes cinematográficos, a sua escritura

se monta no passado ou no presente, numa sequência de imagens carregadas semanticamente.

Esse recurso alinha-se às narrativas curtas e concisas da literatura atual, sem muitas

descrições de paisagens, adjetivações ou prolixidade, como destaca o próprio escritor

cearense, em especial no gênero conto.

O tempo narrativo é mais curto, ele exige um cuidado maior. Um apuro

muito grande. Se o indivíduo erra no conto, erra. O romance, ele pode cair

aqui e cair ali e você pode fazer um grande livro. No conto não. Você tem

que imprimir um ritmo conciso, uma frase pode botar o conto a perder. O

contista não pode errar (BRITO, online).18

A performance poética também é um traço em Faca, configurando um mundo

degradado e compondo uma relação paradoxal entre indivíduos reificados pela violência do

contexto, inscritos num tom de lirismo. Dessa forma, sua narrativa é composta de imagens

metafóricas que merecem destaque, como o assassinato de Irene, rival de Lua Cambará no

amor:

Os olhos de Irene se apagavam, teimando em ver uma nesga que fosse do

céu azul limpo, olhado todos os dias, na abertura maior dos olhos, encarando

o sol de frente, até transformá-lo em mil luzes dourados. O sangue, que aos

borbotões fugia do seu pescoço, era um fio invisível que puxava as pálpebras

para baixo, cerrando-as numa noite escura. Irene pensou que seria bom se ele

se juntasse às águas do Jaguaribe e corresse até o mar. Assim a morta,

poderia visitar as praias do mundo (BRITO, 2003, p. 159).

A composição das imagens em antíteses, no contraste entre luz e escuridão, delineia a

vida cedendo lugar à morte. O trecho em relevo possui também uma sonoridade de repetição

18 Disponível em: http://www.limacoelho.jor.br/index.php/Contista-n-o-pode-errar-diz-Ronaldo-Correia-de-

Brito/. Acesso em: 11 jan. 2014.

43

do fonema [s] que remete ao som produzido pelo fluxo sanguíneo derramado aos “borbotões”

da personagem. O exemplo confirma a abertura da narrativa para linguagem poética, outra

marca da literatura contemporânea, como defende Helena Bonito Pereira (2011).

Os diálogos intertextuais, na perspectiva de Pereira (2011) também são fortes

tendências na literatura contemporânea. Uma intertextualidade estabelecida em face de textos

alinhados com a tradição literária do ocidente, como a Bíblia ou a peças trágicas dos

dramaturgos gregos da Antiguidade Clássica. Em Ronaldo Correia, os exemplos que o

aproximam dos gregos antigos e da épica bíblica são diversos.

O panorama aqui apresentado da obra do autor é significativo para o estudo do

escritor, porque apresenta uma linha temática, uma unidade que se dá pelo signo da memória.

Ao observar o conjunto da obra do escritor cearense, percebe-se um elo dialógico entre todas

as suas histórias e uma coerência temática que delineia um projeto de literatura concatenado

com questões de conflitos familiares, históricas, do sertão e mitológicas remontados pelo fio

condutor da memória. Ao perscrutar as narrativas de Ronaldo Correia, encontra-se uma

escrita palimpséstica, que a cada texto vai (re)velando suas conexões, intertextualidades,

filiações na (des)montagem de seus personagens e na (re)escritura de mitos de outros textos e

culturas.

2.2 O PALIMPSESTO DE INHAMUNS19

A ideia que suscita o termo palimpsesto pode ser uma metáfora para apresentar a

produção literária de Ronaldo Correia de Brito, pois se observa, até o momento, nos seus

escritos uma insistência temática, uma retomada dos mitos clássicos e populares em novas

perspectivas. Percebe-se, também, no seu trabalho uma constante retomada de suas próprias

narrativas, de cenários e a utilização das mesmas personagens em diferentes obras. Além de

um conjunto de citações, referências ou alusão a outros escritores em sua obra.

19 No Brasil, Luiz Costa Lima (1990), filiado ao pensamento de Gerard Genette, publicou o ensaio “O

palimpsesto de Itaguaí”, no qual faz uma leitura de Machado de Assis como um criador de palimpsesto. De

acordo com Costa Lima, Machado de Assis apresenta uma política textual que consiste numa composição em

camadas que possibilitam desvendar diversas leituras, a depender do público leitor. De acordo com essa

perspectiva, a produção machadiana é engendrada na combinação de um texto visível relacionado com outro

velado. O título desta subseção foi inspirado por esse ensaio.

44

O conceito de palimpsesto tem origem do grego e combina as palavras pálin,

novamente e psesto, raspado, borrado. Consistia, primeiramente, de um pergaminho cuja

escrita havia sido apagada (ou raspada) a fim de receber outra escrita ou outras escritas, no

entanto, as marcas anteriores sempre deixavam rastros e muitas delas poderiam ser

recuperadas e consequentemente ressignificadas.

Gérard Genette, crítico literário e teórico francês, em sua obra Palimpsestos: a

literatura de segunda mão (2006) foi quem delimitou com mais precisão o uso figurado do

termo palimpsesto à literatura. Para ele,

Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se

traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por

transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado,

entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as

obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou por imitação.

[...] Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos

textos. [...] Quem ler por último lerá melhor (GENETTE, 2006, p. 5).

Para Genette, essa concepção de texto se desdobra em tipos de transtextualidade, que

no dizer do teórico francês pode ser compreendido como “tudo que o coloca em relação,

manifesta ou secreta com outros textos” (GENETTE, 2006, p.07). Existem cinco tipos de

relações transtextuais, elencadas por Genette, são elas: intertextualidade, paratexto,

metatextualidade, hipertextualidade e arquitextualidade.

Na definição estabelecida pelo autor, a intertextualidade é definida como uma relação

entre textos, ou seja, a presença de um texto em outro que se faz presente numa citação, num

plágio ou numa alusão, por exemplo; a paratextualidade é entendida por meio do conjunto da

obra literária: título, subtítulo, prefácio, notas, ilustrações, a exemplo; a metatextualidade é a

relação textual estabelecida pelo denominado comentário; a hipertextualidade designa toda

relação que une um texto (hipertexto) a um texto anterior (hipotexto) do qual é inspirado; e,

por último, a arquitextualidade, que é compreendia pelas relações gerais entre textos, como os

tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros literários, entre outros.

A noção geral de texto de segunda mão genettiano engloba todo texto produzido na

literatura, o qual é uma operação de “transformação”:

45

A imitação é, certamente, também uma transformação, mas de um

procedimento mais complexo, pois – para dizê-lo aqui de maneira ainda

muito resumida – exige a constituição prévia de um modelo de competência

genérico (que chamaremos épico) [...], e capaz de gerar um número

indefinido de performances miméticas (GENETTE, 2006, p.14).

Genette apropria-se da imagem polissêmica do palimpsesto no engendramento de

uma teoria para a análise do texto literário como portador de variados textos nele embutidos.

Esse processo é designado pelo teórico como transtextualidade e consiste na relação implícita

ou explícita entre textos. Genette atribui a Julia Kristeva (1974) suas reflexões teóricas, pois é

a partir do conceito cunhado pela teórica francesa de intertextualidade que ele constrói suas

considerações. A definição de Julia Kristeva, no que tange à ligação entre texto, diz que todo

texto se constrói a partir da absorção e transformação de outro. Nessa perspectiva, qualquer

texto “empresta” de outro algum elemento na sua construção. Ele introduz a prática

intertextual como palimpsesto; assim, para o autor, todo texto é hipertextual, isto é, todo texto

mantém relação com outro(s) texto(s). Genette destaca as práticas hipertextuais, por

considerá-las um instrumento de potencialização ou melhoramento da linguagem. O processo

de transtextualidade da escrita, mais do que uma mera imitação, compõe um processo

complexo de transformação e recriação artística.

Diante das diversas possibilidades de relações textuais que o palimpsesto possibilita,

verifica-se nos estudos literários sua utilização como instrumento de análise de uma obra

hipertextual, ou intertextual, na definição de Julia Kristeva, ao defender que “todo texto se

constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um texto”

(KRISTEVA, 1974, p. 68). O palimpsesto revela-se polissêmico por conta de suas ranhuras,

já que a escrita primeira se mantém na superfície de novos textos, reverberando diversas

escritas.

Assim também parece ser a escritura de Ronaldo Correia Brito, “palimpsesta”, por

sinalizar a dinâmica de uma produção composta por “camadas” de histórias que apontam para

as origens que, no caso de Ronaldo Correia, é o sertão, as narrativas mitológicas e a cultura

popular. Nesse sentido, o palimpsesto é entendido aqui como um instrumento de

ressignificação de histórias pelo viés da escrita e se alinha ao conceito de hipertexto

genettiano. Desse modo, as personagens de Ronaldo Correia transitam em diferentes livros,

recompondo suas histórias ou rememorando outras, ou ainda acrescentando novidades ao

leitor.

46

Um dos exemplos emblemáticos está no personagem Domísio Justino, que aparece no

livro Faca (2003), no conto homônimo ao livro. Esse personagem assassina a mulher e

justifica tal ato no adultério da esposa Donana, o que se revela uma falácia de Domísio para se

livrar da esposa e viver definitivamente com sua amante mais nova. Ele (Domísio) retorna em

Livro dos Homens (2005), no conto “O que veio de longe”, só que dessa vez morto e

arrastado pela enchente às margens do rio Jaguaribe. Por conta de suas vestes bem trajadas,

dos seus adornos religiosos, da sua aparência física e do desconhecimento de sua origem, a

inventividade do imaginário popular das pessoas do local atribui-lhe uma feição mítica e

heroica.

Todos acreditam que ele era uma espécie de santo e poderia trazer bênçãos para o

povo da região. No entanto, um visitante que sabia da repercussão do corpo encontrado revela

sua versão dos fatos, apresentando os feitos do morto em vida:

O morto não era quem pensavam, nem herói, nem homem piedoso. Um

assassino covarde, isso sim. Matara-lhe a irmã, esfaqueada pelas costas.

Fugira em seguida, assustado com o crime. Ele mesmo vingara a inocente,

com três tiros certeiros. O irmão que estava ao seu lado quando emboscaram

o falso santo, confirmaria o acontecido. Infelizmente morrera. – Nunca me

arrependi. Atiraria no cadáver, se pudesse (BRITO, 2005, p. 13).

A trama de várias narrativas ilustram outras relações intertextuais, entre as

personagens de livros distintos. Há aqueles que saem do sertão em um determinado conto e

depois retornam em outro; há personagens que morrem em determinado conto e depois

retornam do mundo dos mortos em outra narrativa para desempenhar alguma ação inconclusa.

As personagens do conto “Faca” aparecem também no primeiro romance de Ronaldo

Correia, Galileia. João Domísio tem um capítulo na narrativa com seu nome, ele aparece na

trama como um fantasma aprisionado num quarto que outrora foi seu e que agora pertence aos

seus descendentes os quais o conservam isolado, em virtude das memórias da tragédia que

reverberam daquele cômodo sombrio, e por isso é ignorado por todos.

A personagem João Domísio, que surge como espectro, tece um diálogo com o

narrador-personagem do romance − Adonias, sobrinho de João Domísio e Donana. Nesse

insólito encontro, o leitor de Galileia (2009) conhece a história trágica que persiste na

memória dos habitantes daquele sertão ficcional, um homem tomado pela passionalidade de

47

um amor abismal, a ponto de cometer um crime. Ao rememorar o tormento vivido pelo seu tio

João Domísio, o protagonista do romance (Adonias) sente-se herdeiro do mesmo destino

trágico do tio que o conduz a um itinerário guiado pelo ímpeto passional. Para os leitores de

“Faca” (2003), o trecho do romance remonta à trama do casal com acréscimos de informações

que (trans)formam a narrativa do conto publicado em 2003.

No conto “Faca”, verifica-se João Domísio como um marido ausente, que trai sua

esposa e premedita o assassinato de sua mulher (Donana), como uma tentativa de fuga para

uma “nova vida”, em outro lugar. Em Galileia, a personagem é descrita como uma alma

decrépita, a qual amarga ou amargou a solidão e o esquecimento como um dos piores castigos

conferidos a um assassino.

É no romance que a personagem, ou melhor, seu fantasma tem voz e tenta explicar o

seu desespero por liberdade e sua vontade de experienciar outra vida. Esse desejo sucumbiu à

razão de João Domísio e o fez pensar a morte da mulher como solução, como explica o

próprio personagem Domísio no seguinte trecho no romance: “Eu também queria ir embora,

para a mesma cidade em que você escolheu morar [...]. Mas não me deixaram partir, e eu

matei” (BRITO, 2009, p. 151).

Em Galileia, encontra-se também outra personagem do conto “Faca”, Donana, a

mulher que teve a vida injustamente ceifada pelo esposo João Domísio. Ela também ressurge

no romance sob a atmosfera do insólito. Assim como um vulto, Donana aparece para o

protagonista-narrador Adonias, portando os mesmos trajes com que tomava banho no rio onde

foi assassinada. No romance é revelada mais uma “camada” dessa trágica narrativa. Donana

se tornou um espectro que vaga pela fazenda Galileia desde o dia em que morreu. No seu

diálogo com Adonias no romance, Donana se apresenta altiva, imponente e vingativa, como é

revelado no seguinte trecho:

− Quando seu tio me matou, resolvi não subir ao céu nem descer ao inferno,

como todos os mortos fazem. Da parede do açude eu avistei Domísio se

esconder na casa do irmão e quando os meus parentes chegaram, loucos por

vingança. No fundo do meu coração, que é um coração de mulher, eu ainda

me sentia presa a Domísio. Não podia partir sozinha e deixá-lo entre os

vivos. Olhei para o céu, querendo descobrir uma maneira de dominar a

morte. [...] Vi gerações nascendo e morrendo. Somente eu e Domísio

continuamos o mesmo; ele vivo e eu morta. Ou será o contrário? (BRITO,

2008, p. 168-169).

48

A fala da personagem deslinda a linha tênue entre vida e morte constantemente

apresentada nas narrativas orais, na ficção ou na própria realidade. O recurso de retomar

personagens e suas histórias, recompondo as narrativas e acrescentando “camadas”, confere o

traço palimpséstico à obra de Ronaldo Correia. Ao ler os contos e os romances do escritor

cearense, o leitor vai (re)compondo personagens, cenários e histórias num tecido literário de

dilemas humanos arcaicos delineados numa cartografia árida habitada por seres dilacerados

pelo trágico e imersos num violento devir.

Uma atmosfera pesada pelos fantasmas da memória e/ou de mortos é uma marca que

une as narrativas em Faca, assim como nas outras obras do escritor. O infeliz João Domísio, a

injustiçada Donana, a solitária Eufrásia Meneses e o desterrado sertão do Inhamus são

matrizes que se entrelaçam com outras na tessitura da obra de Ronaldo Correia, produzindo

uma moldura de veredas do trágico humano.

A utilização do sertão como palco para suas personagens atuarem possibilita também

diálogos intertextuais com outros escritores da literatura nacional que utilizam o cenário árido

para suas composições. Na leitura de suas narrativas é possível traçar relações com textos de

autores que trazem o sertão no cerne de sua literatura, a exemplo de Guimarães Rosa,

Graciliano Ramos e Ariano Suassuna.

Isso ocorre quando lemos, por exemplo, no livro Faca de Ronaldo Correia, o seguinte

trecho: “As histórias não têm apenas princípio e fim, elas são sobretudo o meio, que é o tempo

de maior duração, o de se comer juntos uma arroba de sal” (BRITO, 2003, p. 91). É possível

de se estabelecer uma relação intertextual com Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas,

neste excerto: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio

da travessia” (ROSA, 2001 [1956], p. 97).

Ao comparar as duas escritas, é possível estabelecer semelhanças, embora cada um

autor apresente sua peculiaridade, marcando um sentido singular para o tempo/ travessia. Para

ambos, numa travessia/ história, o “meio” (ou percurso) é o tempo mais significativo, é nele

que se encontra o “real”, o principal ou o mais importante e mais esperado ou indesejado. O

que se diferencia entre os autores é a percepção que cada um possui dessa relação.

Guimarães Rosa apresenta a travessia destituída de estabilidade ou de um

ordenamento, já que a vida não se encaixa em nenhuma definição fixa, é um rio que se

encontra em constante devir. Já para Ronaldo Correia, esse processo, além de desmontar uma

49

ordem, também é um fardo acompanhado de muitos dissabores e, por vezes, intragável como

o sal ou avassalador como o trágico.

A máxima de Guimarães Rosa “Viver é perigoso”, reiterada diversas vezes em Grande

sertão: veredas, ecoa também em Faca de Ronaldo Correia, como é registrado no excerto

seguinte:

A vida do homem é perigosa, porque a morte se planta em lugares incertos.

Andando, ele esbarra com ela, emboscado no meio do caminho. Parado, ela

vem ao seu encontro, trajada em muitos disfarces. Há sinais que guardam a

revelação do perigo. Viver é a ciência de decifrar estes sinais (BRITO, 2003,

p. 02).

Guardadas as devidas proporções, pode-se depreender que em Faca, de Ronaldo

Correia, os riscos do viver são retomados em relevo, mas na abordagem hipertextual do

escritor cearense insinuam-se com numa emboscada na vida dos seres. Em Grande sertão:

veredas de Guimarães, a ventura do viver registrado por meio das reflexões do protagonista

Riobaldo é fruto da peleja entre forças antagônicas que pairam sobre a vida dos humanos:

Deus e o diabo, o bem e o mal.

Na escrita de Ronaldo Correia é possível recorrer a “camadas” que também se filiam à

literatura do escritor Graciliano Ramos, em especial, em Vidas secas, publicado em sua

primeira edição, em 1938. O sertão como cenário sugerido na escritura de Graciliano é um

ambiente inóspito, que faz daqueles que lá vivem pessoas amarguradas, dilaceradas e

transformadas negativamente pela seca. Assim parecem as personagens do conto “Cícera

Candoia”, de Ronaldo Correia, no seguinte excerto: “Entre mãe e filha agravava-se o silêncio

que sempre fora intenso. Parecia que o vento seco da estiagem ressecava as suas gargantas

pobres de fala. [...] Um vento quente e contínuo marcava os minutos para ela” (BRITO, 2003,

p. 114).

Tal questão ligada aos temas, aos cenários, às personagens faz pensar o projeto de

literatura de Ronaldo Correia de Brito como uma representação de uma cartografia literária

que deslinda o humano, por meio de personagens que transitam em fugas e retornos de suas

raízes, seres que estão sempre de partida, seja de um lugar, seja de um sentimento ou até

mesmo da vida, unidos numa teia de diversas conexões geográficas, literárias, históricas e

míticas.

50

O nome que enfeixa o volume de contos consiste num palimpsesto, pois se

metamorfoseia ao longo das narrativas, tornando-se matéria que entalha as narrativas de

diversas formas, seja como um elemento mítico, seja como instrumento de trabalho, seja

como alusão fálica, seja como corte que rasga a carne, deixando sua marca, num registro

profundo e indelével.

O signo faca como elemento intertextual, multifacetado, em nossas letras, remonta

também a uma obra-prima da literatura nacional, o poema “Uma faca só lâmina”, do poeta

João Cabral de Melo Neto, que delineou uma poesia no estilo das facas. Um trabalho literário

de precisão com as palavras, numa secura de adornos, mas encharcado de signos.

51

3 UMA FACA SÓ LÂMINA

Situado cronologicamente na geração modernista de 45, o pernambucano João de

Cabral de Melo Neto distingue-se dos seus pares por uma produção atravessada pela questão

do “fazer poético”, este caracterizado pela razão e distanciamento de qualquer estado pautado

pela emoção ou tom confessional.

No poema “Uma Faca só Lâmina: ou serventia das idéias fixas” (1956), no volume

intitulado Duas águas, do poeta pernambucano, o signo faca é trabalhado no seu sentido de

transformação e sua agressividade para apresentação de imagens enigmáticas que remetem ao

poder inventivo da poesia e força da palavra bem talhada. O poema se compõe de onze

seções, sendo uma introdução, nove intermediárias e uma considerada a conclusão.

Destaca-se no poema o recurso da comparação que se torna uma construção

enigmática, por não registrar o primeiro termo do símile, sempre ausente, elíptico. “Assim

como uma bala/ enterrada no corpo/ fazendo mais espesso/ um dos lados do morto” (MELO

NETO, 1995 [1956], p.205). Três elementos metafóricos são constantemente utilizados na

construção do símile: bala, relógio e faca. No entanto, para a faca é estabelecido um destaque,

uma superioridade.

Por isso é que o melhor

dos símbolos usados

é a lâmina [...]

porque nenhum indica

essa ausência tão ávida

como a imagem da faca

que só tivesse lâmina (MELO NETO, 1995 [1956], p. 206).

Dentro dessa construção permeada de ausências, incompletudes e indefinições, é que

se pode sugerir que os símbolos se metamorfoseiam a cada verso, contrariando, de certa

forma, o título do poema, quando se refere às ideias fixas. No poema as palavras são voláteis,

as ideias são variáveis, instáveis.

As narrativas de Ronaldo Correia no volume Faca (2003) sugerem esse atributo

polissêmico, mordaz e transformador que o signo faca propõe no poema de João Cabral de

Melo Neto. Além disso, encontram-se curiosamente divididas, assim como no poema, em

52

onze seções, na qual entendemos que a primeira e a última funcionam como molduras de um

itinerário com histórias de carências, situações-limite, incompletudes e violências, construídas

pelos contos “A espera da volante” e “Lua Cambará”, respectivamente os contos de abertura e

fechamento da coletânea.

Esse poema consiste numa produção que permite várias leituras e convoca o leitor a

ter uma postura ativa na construção semântica, porque o termo “faca” torna-se um signo que

representa a própria linguagem poética. A alusão às ideias fixas somente encontram sentido

numa constante busca, seja poética, seja política ou existencial, mas sobretudo por uma

definição que se encontra ausente, cuja dinâmica é a mola propulsora da construção literária

do poeta. Para Marta Peixoto (1983):

Trata-se de uma definição que utiliza uma predicação com o verbo “ser”

para descrever, em termos paradoxais ou inesperados, a atividade de um

objeto ou conceito escondido, lembrando a adivinhação (que geralmente

começa com: “o que é, o que é?”). Assim o enigma é uma definição para

melhor definir, por meio de uma formulação que capta um aspecto

imprevisto de um objeto ou conceito. A surpresa do ouvinte estimula a

receptividade (PEIXOTO, 1983, p.123).

Tem-se, portanto, um tecido textual de lacunas a serem preenchidas pelo leitor. De

forma semelhante, encontramos a construção das narrativas de Ronaldo Correia de Brito, que

exige do leitor uma postura ativa na construção dos significados, dos desfechos e dos sentidos

das histórias. Na obra do escritor cearense, o leitor também está com a “faca nas mãos”, para

efetuar o “corte” ao seu gosto. Assim acontece no conto introdutório “A espera da volante”, o

qual sugere a existência de um segredo do protagonista, mas não o revela, assim como não

descreve como e nem quando se deu a chegada da volante. De maneira similar, acontece no

conto “Lua cambará”, o qual apresenta uma personagem que tem o corpo rejeitado pela morte

e vive pairando no sertão, sem um fim, sem uma conclusão.

O caráter mordaz da plástica semântica do signo faca utilizada por Cabral de Melo

Neto se encontra presente também no estilo de Ronaldo Correia desde o sugestivo título, que

prenuncia o cortante acontecimento ou desfecho de suas narrativas. Esse elemento que conduz

o destino das personagens nos onze contos do livro aponta para uma tênue ligação com o

tradicional elemento trágico na literatura.

53

A palavra “Faca”, que nomeia a coletânea, assume nas narrativas em questão diversas

nuances e perspectivas de interpretação, procurando explorar o simbolismo e a magia em

torno do termo. O instrumento faca não emerge nos contos apenas como um objeto repetido

na prosa, mas assume um valor mítico, diverso e poderoso. Funciona com matéria-prima para

construção de cortes profundos e precisos na trama narrada.

O dicionário de símbolos e mitos de Chevalier e Gheerbrant (1999) registra relações

que contemplam plenamente o simbolismo dos instrumentos cortantes presentes no livro. O

objeto, na escritura de Ronaldo Correia, é metamorfoseado, aparece nos contos desde um

simples instrumento de trabalho do homem, em “Deus agiota”, por exemplo, como também

relacionado às divindades terríveis, ou seres amaldiçoados, como no conto homônimo ao livro

“Faca”. Nesse volume de contos de Ronaldo Correia, o símbolo faca é, também, relacionado à

ideia de execução, de morte ou vingança, visto nos contos “Cícera Candoia” e “Lua

Cambará”. Até o simbolismo fálico desse instrumento de metal é remontado, vez que ele

surge sutilmente no conto “A escolha”, na figura do sedutor decadente Luís Silibrino, que

ostenta um punhal na cintura.

Trata-se, portanto, de relações simbólicas em torno desse objeto metálico,

principalmente “o princípio ativo modificando a matéria passiva” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1999, p. 414), que possui ressonâncias de modo especial na estrutura da

prosa ficcional, a qual apresenta um texto sempre incisivo, direto e cortante em seus

desfechos, ora anunciados, ora inesperados, mas que provoca no leitor as mais variadas

sensações: raiva, indignação, repulsão, tristeza, tensão, angústia, reflexão ou até mesmo o

riso.

E os contos de Ronaldo Correia, feito faca, cortam os leitores em sua dimensão

trágica, mítica e poética, atingem por meio das palavras sentimentos humanos. O título

apresenta uma metáfora da tragicidade da vida, uma metonímia da violência do sertão

ficcional do escritor, e ao conferir o recurso narrativo abrupto, seco e direto, Ronaldo Correia

prefigura uma iconografia do sertanejo.

3.1 ESCRITOS DE VIDA E MORTE, RASTROS DE VINGANÇA

Nesta secção apresentam-se as tramas utilizadas como objeto de análise dessa

pesquisa. As sete narrativas selecionadas, destacam-se pela violência no enredo e são

54

reveladas por uma linguagem igualmente visceral e pontuada pelo trágico. São eles: “A espera

da volante”, “Faca”, “A escolha”, “Mentira de amor”, “Cícera Candoia”, “Inácia Leandro” e

“Lua Cambará”.

O tom funesto é o caminho percorrido por todas as narrativas de Ronaldo Correia de

Brito, num território de fronteiras esgaçadas entre vida e morte, no qual o “peso” da vingança

garante a honra e estabelece o equilíbrio da “justiça”, na perspectiva do código de homens

sertanejos. A vida dos homens do sertão ficcional de Inhamuns é marcada por símbolos que

norteiam a dinâmica do viver. Hospitalidade, honra, amor, ódio, coragem, fé, vingança,

superstições e segredos são preceitos levados à risca ou na faca pelas personagens do escritor

cearense, as quais constroem enredos dilacerados pelo trágico e guiados pela vingança.

Em um mundo desterrado, de ausências e inúmeras carências, o arrebatamento por

paixões viscerais numa terra sem leis encharca a literatura de Ronaldo Correia das marcas que

a violência imprime nos seres: dor, sofrimento, ressentimentos e mortes.

Na literatura e nas artes, de um modo geral, a vingança é a mola propulsora que

conduz muitas narrativas, sendo muitas vezes o elemento chave no desenvolvimento da trama.

A vindita já é registrada como matéria primordial e recorrente em narrativas desde os gregos

antigos. Histórias como a de Antígona, de Medeia, de Édipo Rei e até da lendária Guerra de

Troia são movidas pelo desejo humano de vingança. Um sentimento que na época era selado

com o sagrado e quem não cumprisse com essa obrigação moral poderia ser amaldiçoado pelo

seu círculo social ou pelos deuses em sucessivas gerações.

Antonio Cândido (1971), na abertura da sua coletânea de ensaio Tese e Antítese,

dedica uma seção sobre a vingança. Nesse texto, o crítico literário toma como referência O

conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e apresenta uma espécie de tratado da vingança

na literatura:

[A vingança] se tornou então um recurso de composição literária, de

investigação psicológica, de análise sociológica e de visão de mundo. [...] A

perfeita visão da vindita não se realiza num só momento; ela requer um

encadear sucessivos de acontecimentos, que levam do motivo inicial à

desforra final (CANDIDO, 1971, p. 15).

55

A vingança sempre vem revestida sob o signo da Justiça, ou na tentativa de se

estabelecer uma reparação ou uma redenção. Tal noção atravessa a história da literatura e se

apresenta como uma espécie de direito atávico que legitima os homens em situações extremas

a buscarem um equilíbrio nas perdas violentas. No volume de contos em análise, destacam-se

expressões de violência que apontam a vingança como principal mote, sempre motivada por

alguma ação que atenta contra a honra de algum indivíduo ou família, como denotam os

excertos extraídos da narrativa de Ronaldo Correia:

Toda dor era carpida em nome de algum pecado cometido por eles mesmo,

ou pelos pais de seus pais. As costas curvavam-se no braço forte dos

soldados. Um crime tinha sido cometido e todos deveriam pagar (BRITO,

2003, p. 20).

[...] Não faça nada sem apurar a história direito – disse Pedro Miranda, o

mais velho, quase sem conseguir falar. – Se for verdade, pode punir os

culpados, do jeito que é devido. Mas, se tudo isto não passar de testemunho

falso, prepare-se para a vingança (BRITO, 2003, p. 32).

− Francisco Cambará enterrou o corpo do pai e agora volta, armado em

guerra. Quer desforra do sofrido (BRITO, 2003, p. 150).

Os trechos utilizados, respectivamente dos contos “A espera da volante”, “Faca” e

“Lua Cambará” são centralizados em acontecimentos trágicos e na busca pela desforra dos

culpados pela desgraça acontecida. O desejo aqui apresentado – de “quitar” uma dívida moral

por meio da vingança – consiste numa prática de um código não escrito, no entanto

compreendido e legitimado pelos sujeitos, os quais se embasam em respeito aos costumes, à

tradição, e na construção de uma moral delineada pelo povo sertanejo presentes em Faca, pois

“no povo daqueles sertões, desvalidos de qualquer lei, só existia a consciência de cada um”

(BRITO, 2003, p. 17).

As narrativas do volume de contos estudado, nas quais a vingança aparece, trazem, em

maioria, sujeitos relacionados com algum grau de parentesco, de modo que assim a justiça é

um objeto de desejo centrado no sangue derramado de um marido, ou um irmão, ou uma

sobrinha ou um pai, enfim, pessoas unidas por laços familiares rompidos pelo ódio e rancor.

No conto de abertura, “A espera da volante”, o crime que se evidencia é de um trio

que desrespeita a tradição da hospitalidade sertaneja, três homens que aproveitam o

tradicional acolhimento conferido aos transeuntes do sertão (comboieiros, tropeiros,

56

retirantes) por uma família local para cometer um latrocínio. A narrativa é tensionada na

perseguição dos criminosos e na aplicação da “justiça” para todos os envolvidos no crime ou

aos facilitadores da fuga.

Embora o grupo imbuído de aplicar a punição aos infratores seja considerado pela

sociedade o responsável por essa função, seus métodos são bastante peculiares de uma região

sem lei. Os policiais produzem uma caçada aos bandidos, deixando sinais de muita violência

por onde passam:

Os soldados buscavam apenas três homens mas, no caminho, alimentavam

sua fúria de perseguidores maltratando qualquer um que houvesse dado

guarida, por inocência ou interesse, aos perseguidos. Os sertões se abalavam

nas passadas descalças dos assassinos, medrosos de deixarem sinais, e nas

botas reiunas dos homens da justiça (BRITO, 2003, p. 12).

Nesse cenário de perseguição policial, o narrador conduz a trama numa reflexão sobre

o peso das sentenças para o cumprimento de uma “justiça”. Destaca-se no enredo o foragido

Chagas, que encontra guarida na casa de um senhor, mesmo este sabendo da maculada

história do rapaz. A atitude do velho protagonista que provoca estranheza ao leitor é

compreendida depois das sugestões do narrador, com indícios de que o protagonista esconde

um capítulo de sua vida o qual se assemelha ao do foragido. O velho parece compartilhar o

fardo da culpa de um crime, tão grave quanto o do seu hóspede e emerge o desejo de

demonstrar uma expiação de erros passados, de um pecado ou talvez de um delito.

Vestia uma opa negra, saía cantando benditos e esmolando nas portas. O

rosto coberto com um pano, por pudor de ser reconhecido. Em cada porta se

cortava nas costas com um cacho de lâminas, até que o sangue molhasse o

chão. As rezas cantadas no escuro da noite assombravam as pessoas,

tementes de castigos que não compreendiam. Achavam demasiado aquele

sofrimento, O Velho falava de uma promessa feita pela mãe, quando

menino, para escapar de moléstia grave. Era pouco o que dizia de si

(BRITO, 2003, p. 16).

Assim, o senhor que protagoniza o enredo sentencia uma autopunição, uma espécie de

vingança que ele mesmo aplica a si. O conto apresenta a busca ou desejo pelas ações

vingativas/ punitivas como uma memória atávica, intrínseca ou necessária ao existir humano.

57

Esse personagem velho, solitário, mendigo e que se autoflagela remonta ao destino de Édipo,

expatriado em Colono (território de Atenas - Grécia antiga) que, igualmente ao personagem

de Ronaldo Correia, encontra-se velho, mendicante e imerso pelo sentimento de culpa e, por

isso, flagela-se. O comportamento de autoflagelação levanta a suspeita e aquiescência de

muitos na aplicação da punição, como destacado no trecho sobre o protagonista:

O mistério de sua vida despertava boatos, contavam lendas sobre a sua vinda

para aquele fim de mundo. Falava-se de um crime cometido na juventude,

um impulso de ódio, em terra muito distante. Do desejo de purgá-lo teria

nascido a bondade, a compreensão para os desvalidos. Era que diziam, mas

ninguém tinha prova de nada (BRITO, 2003, p.15).

Os códigos desses sertanejos são tratados como lei e a sua não observância culmina

em práticas de violência. A justiça é mantida no derrame de muito sangue para manutenção de

uma ética e de uma honra contextualmente construída, conforme pontuam Helder Santos

Rocha e Márcio Roberto Soares Dias (2012):

Trata-se de uma prática social regulamentada em seu contexto,

diferentemente, das práticas de conduta e de violência originadas no

ambiente citadino que é bem mais vigiado e controlado pela polícia e pela

legislação escrita, características fundantes e peculiares da ordem das

instituições estatais modernas. Afinal de contas, há configurações culturais

distintas que possuem, cada uma, um modo peculiar de aprender, agir e

difundir suas noções sobre suas próprias condutas e costumes (ROCHA;

DIAS, p. 292, 2012).

Banhado pelo sangue de um crime, da mesma forma, se dá a trama do conto “Faca”, a

partir do achado de uns ciganos em uma casa abandonada: um punhal forjado em ouro, prata e

cravejados de pedras preciosas. No conto que dá nome ao livro (Faca), a história de um crime

acontecido há mais de cem anos naquele mesmo local é rememorada pelos curiosos.

Esse punhal que outrora fora utilizado no crime possui em torno de si uma lenda,

segundo a qual o instrumento transmite uma maldição para aqueles que o portam. Até mesmo

a casa é considerada como mal assombrada, devido ao crime que lá acontecera: o assassinato

de Donana pelo marido Domísio Justino, por motivos questionáveis, e por isso provocador do

desejo de vingança dos seus irmãos e paradoxalmente, da proteção da filha mais velha do

58

casal (Francisca Justino). Numa atitude intempestiva, ela se porta como a personagem trágica

Electra domada pelos instintos passionais, defendendo o pai a qualquer custo.

Nesse conto, Donana leva uma vida de carências, por conta do desprezo, abandono e

uma longa traição do marido que, para se livrar do casamento, cria um amante para esposa e,

com essa mentira, uma “justificativa” para assassinar sua esposa, utilizando o maldito punhal

na beira do rio, tingindo assim toda a margem de vermelho.

A indignação dos irmãos (Luiz e Pedro) da vítima perante a injustiça realizada acende

o desejo da vindita. Esse sentimento no calor das horas atordoa os sentidos e ações dos irmãos

de Donana: “Luiz e Pedro choravam. Pela primeira vez, desde que aprenderam que choro

envergonha. – Ela estava inocente – disseram” (BRITO, 2003, p.33). E assim uma mentira

plantada pelo marido para lograr liberdade do seu casamento desencadeia o estopim da

tragédia.

O conto “Faca” é um dos capitais da coletânea, por intitular a obra e carregar o valor

mítico, denso, polissêmico e utilitário em que o termo “faca” se metamorfoseia nas narrativas

de Ronaldo Correia e do próprio universo do sertão. O signo “faca”, com sua matéria fria,

brutal, dura e cortante é metáfora para iluminar os sentidos, tanto da estrutura das narrativas

quanto dos enredos e das personagens presentes no livro. O instrumento parece se impor

como um símbolo que atravessa não só o sertão de Ronaldo Correia, mas tantos outros sertões

literários, por se metamorfosear, ora como arma ou ferramenta nas mãos do sertanejo, ora

como “um estilo”, ora como “uma estética”, parafraseando João Cabral de Melo Neto, que

registrou em sua poesia essa força signo da lâmina.

A faca como símbolo é também associada às ideias de vingança e morte, e está

presente em diversas cenas de sacrifício na literatura, segundo registros de Juan Eduardo

Cirlot (1984), em seu dicionário de símbolos:

Símbolo que constitui a inversão da espada, associado às ideias de vingança

e morte, mas também às de sacrifício. A curta extensão da faca representa

analogicamente a primariedade do instinto que a maneja, como o

comprimento da espada – inversamente – expõe a altura espiritual de seu

possuidor (CIRLOT, 1984, p. 248).

59

Pode-se, então, entender o instrumento como representação do instinto brutal do

humano e o seu desejo de vingança. No conto-título do livro, a faca é também tomada como

um instrumento sagrado, ela se torna uma portadora do mito. Para Mircea Eliade (2011), um

objeto pode ganhar valor sagrado por sua substância ou mesmo pela simbologia de sua forma.

A estrutura da narrativa é dividida em dois momentos históricos distintos em torno do objeto

mítico, numa sequência de idas e vindas ao passado e presente, compondo a ideia de “eterno

retorno” do mito, como registra Mircea Eliade (2011). A faca perdida há mais de cem anos,

quando encontrada por ciganos, ao acaso, suscita o mesmo medo do passado e sugere a

iminência da repetição da cena trágica, como se fosse uma sentença cíclica.

Ainda segundo Eliade (2011), “os mistos na realidade incitam o homem a criar, e

abrem continuamente novas perspectivas para o seu espírito inventivo” (ELIADE, 2011, p.

125). E dessa forma são construídas as narrativas de Ronaldo Correia, portanto, abertas em

significados.

“A escolha” apresenta Aldenora Novais, uma mulher assinalada pelo impacto de suas

escolhas, estas pautadas sempre pelo instinto de suas emoções, carentes de qualquer

racionalidade ou preocupação em respeitar códigos morais de seu contexto. A escolha

emblemática de Aldenora se desdobra em dois momentos da narrativa. Na primeira escolha,

Aldenora fica desorientada numa louca paixão por Luís Silibrino, que a deixa dividida entre

um bom casamento encaminhado com um jovem de boa índole ou uma aventura estimulada

por ardente atração com um jovem de más referências:

Tornando insuportável a vida de Aldenora nas horas em que não se

contemplava nos olhos de Luís, ou corria nos dedos de seus cabelos

escuros, sem uma única volta. Perdia-se e, abraços que nada sustinha,

queda abismal num precipício de mentiras inventadas para o noivo e os

pais. Não conseguia sair da casa da modista, onde a costura do vestido não

tinha fim, rede mágica de Penélope tecia com o sol e desmanchava à noite,

adiando o casamento para nunca. Livino não merecia ser traído. A

loucura da paixão cegava o discernimento de Aldenora (BRITO, 2003,

p.91, grifos nossos).

60

Mesmo ciente dos desdobramentos de tal situação, ela se comporta como uma

Penélope20

, para ganhar tempo e protelar sua (de)cisão, até revelar sua escolha. Ela desiste de

um noivado de cinco anos, ignora o casamento marcado e foge com o violento amante (Luís

Silibrino), para se casarem sem aviso e consentimento dos seus pais, que ficam transtornados

com a transgressão da filha. Entretanto, ele a abandona após poucos dias, partindo para longe

daquela cidade, deixando como herança apenas as lembranças de um relacionamento conjugal

marcado pela violência:

Nos dezoito anos que transcorreram [...] não se passou um único dia sem que

ela procurasse no rosto as marcas do seu punho fechado. O espelho não

mentia, mostrando os mesmos sinais roxos que nenhuma medicina caseira

fora capaz de dissipar (BRITO, 2003, p.85).

A segunda escolha da personagem se dará 18 anos depois. Luís Silibrino retorna para

a mesma cidade de Aldenora, agora velho e doente, tentando seduzi-la novamente, só que ela

já está vivendo com Livino Gonçalves (o mesmo homem que ela abandonara para se casar

com Luís), que, mesmo depois de traído e abandonado, tornou-se o único a erguer os braços

para acolhê-la, depois que foi desprezada por Luís, criticada pela família e hostilizada pela

cidade.

Diante dessa nova configuração, Aldenora parece até querer evitar seus sentimentos,

mas a presença da antiga paixão ainda confere a mesma tentação de outrora. Para a

protagonista, constitui-se, inclusive, em uma ameaça à vida do seu atual companheiro, pois

Luís não tem escrúpulos algum para conseguir o que deseja. Assim como Ulisses, Luís

Silibrino volta com ares de vingança para eliminar qualquer pretendente ou quem o impedisse

de (re)possuir sua amada.

Aldenora surpreende mais uma vez com sua postura. E dessa vez sua escolha é

contundentemente, selada com a morte de um. Até esse momento da narrativa, parece que a

20 Penélope era mulher de Ulisses, e ficou famosa pela fidelidade ao marido, posto à prova numa espera de vinte

anos, enquanto ele estava ausenta na guerra de Tróia e na longa viagem de volta à pátria. [...], os jovens das

famílias mais importantes das regiões vizinhas a Ítaca passaram a cortejar Penélope, pretextando que Ulisses não

voltaria mais [...]. Querendo fugir à decisão, Penélope imaginou um ardil, dizendo aos pretendentes que quando

acabasse de tecer a mortalha de Laerte, pai de Ulisses, faria a escolha. Nesse ínterim, ela desfazia à noite o que

tecia de dia, e assim o trabalho não avançava (KURY, 1997, p. 313).

61

nossa Penélope sertaneja vai vingar-se do ex-marido cafajeste, no entanto “Ouviu-se um

estampido na noite de breu. Antes de cair morto, de bruços, sangrando em jorro de uma

nascente nas costas, Livino Gonçalves compreendeu que o tiro não partira do rifle que

sustentava a mão direita. Aldenora Novais escolhera outra vez” (BRITO, 2003, p.95). Dessa

forma, ela executa uma vingança inusitada, em nome de um amor visceral, fiel e forte a

intempéries do tempo e transgredindo mais uma vez os códigos morais daquele contexto.

Ronaldo Correia compõe suas histórias pela condução de narradores os quais revelam

caracteres das personagens cruciais no desfecho da trama que, por muitas vezes, são revelados

num sentido dúbio, tornando o leitor uma peça importante no processo de composição e

significação de seu texto literário, como no conto “Mentira de Amor”, no qual os desejos de

vingança e de libertação se constroem na ambiguidade.

A narrativa é protagonizada por Delmira, uma mulher enclausurada pelo marido em

sua própria casa. A prisão domiciliar inclui também suas filhas, que não conhecem nada que é

externo ao espaço da casa, e nem ela mesma pode receber visitas dos parentes, muito menos

dos amigos. O esposo, Juvêncio Avelar, justifica a necessidade do cativeiro, devido aos

supostos perigos nas ruas, mas na verdade, o que se confirma é sua insegurança em relação ao

amor da mulher (ou das mulheres). A razão pela qual Delmira aceitava tal situação está na

perda de uma das suas filhas, que lhe provocara um desprezo pelo mundo e uma acomodação

de sua condição. Surge, com isso, uma ótima oportunidade para o marido aprisioná-la num

luto profundo e interminável, juntamente com suas filhas.

Tudo na vida de Delmira consiste numa repetição de afazeres, até que a presença do

circo na cidade lhe desperta o desejo de sair de casa. Embalde ela tenta pedir permissão ao

marido, mas não consegue sequer efetuar o pedido. A (in)dissolução do drama é apresentado

ao leitor nas últimas frases do conto, nas quais não é possível confirmar se Delmira libertou-

se daquele cativeiro, vingando-se do seu algoz. Mas fica claro na narrativa que a liberdade de

Delmira naquele momento depende da sua ação violenta, da sua vingança por anos de cárcere.

Já no conto “Cícera Candoia”, embora a vingança não seja o cerne do enredo, a sua

ausência deixa rastros. O drama de “Cícera Candoia” (Ciça) consiste no viver/morrer numa

região castigada pelos longos períodos de estiagem e que, em razão dessa característica,

afastou gradativamente todos os habitantes do local. Ciça, apesar de nutrir a mesma vontade

dos que já abandonaram ou que estão na iminência de abandonar aquela cidade – onde tudo

62

está findando, nos restos, nos limites do viver –, não pode fazer isso por causa da sua velha

mãe que não resistiria aos percalços de uma viagem extensa e sem segurança.

Ciça e Mãe são as derradeiras integrantes de uma família tragada por infortúnios. Nos

tempos áureos do seu esteio familiar, ela contava com a alegria do pai mais sete irmãos e com

a serenidade da mãe. Tudo interrompido por um trágico enredo de partilha de bens:

O pai morto a golpe de foice pelo filho mais velho, numa briga pela partilha

de umas cabras. A fuga do irmão, de quem nunca mais teve notícias. A dor

da mãe, que perdeu o juízo nesse dia. A partida dos irmãos, um por um, por

não suportarem a vergonha do parricídio. E a vida de depois, a dela solitária

e com um crime por compreender. O desprezo das pessoas do lugar, para ela

e a mãe suportarem. E a grande sentença do silêncio entre as duas, que nunca

mais se olharam (BRITO, 2003, p. 116).

O sangue derramado nesse sertão cobra justiça e quando esta não é realizada, resta o

desterro da vergonha entre os familiares. Assim dilui-se a família de Ciça, que ainda pena por

esse desequilíbrio doméstico. “Sem que escolhesse, assumiu a custódia da mãe e sua eterna

companhia” (BRITO, 2003, p.116), ficando, dessa forma, impedida de abandonar aquela

região em ruínas, para não deixar sua idosa mãe desamparada e inundada pelo ressentimento.

De acordo com Maria Rita Kehl (2011), em seu estudo sobre o ressentimento como

uma configuração social, “ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que

nos faz sofrer” (KEHL, 2011, p. 13). É desse modo que vivem as personagens (Ciça e sua

mãe), as quais sofrem um agravo moral por não agirem perante a injustiça realizada.

Ciça e a Mãe possuem uma relação inundada pelo silêncio, mas em olhares secos e

contundentes. Dentro dessa realidade em que vivem as duas, surge uma lógica perversa: a

morte da anciã implicaria a liberdade da filha e ambas pensavam dessa forma. Por conta dessa

relação, o ressentimento de Ciça é mais profundo, porque além de conviver com a vergonha

pela sua inércia diante do parricídio na sua família, ela acumula o rancor e a raiva de estar

“presa” a um mundo decadente, em decorrência da debilidade física de sua mãe. Nessa

configuração, a definição de Maria Rita Kehl (2011) se aplica à condição de Ciça de um

desejo sucumbido, um impulso impedido de se efetivar. O ressentido é aquele incapaz de

vingar, impotente de reagir imediatamente às injustiças e ofensas sofridas. Ainda de acordo

com Kehl:

63

Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma

relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a

quem caberia protegê-lo, premiar seu esforços, reconhecer seu valor. O

ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência:

ele prefere ser “protegido” – ainda que prejudicado − a ser livre, mas

desamparado (KEHL, 2011, p.18).

Impotente por sua “obrigação” com sua mãe, Ciça sente-se incapaz de mudar aquela

situação agravante, até que a própria mãe, para resolver tal impasse, sugere indiretamente seu

próprio envenenamento. Contrariando, com efeito, a postura de inércia do ressentimento, a

ideia de envenenamento é executada pela filha que, assim, consegue abandonar aquela região

no último caminhão que levava os derradeiros moradores, alguns poucos ainda resistentes

daquela região agreste e em ruínas.

Foi até cozinha, onde se demorou. Voltou trazendo um copo de leite.

Chamou a mãe e lhe entregou. [...]

− Eu estava esperando – disse a velha.

− Não estranhe o gosto, as cabras mudaram de pasto.

A velha bebeu o leite sem pressa e depois deitou-se, cobrindo-se com o

lençol encardido. Ciça reparou que a madrugada se aproximava. Precisava

satisfazer os desejos da mãe. Havia uma árvore de caule branco, atrás da

casa, que guardava, nas raízes, uma fresca umidade. A mãe sempre desejara

o seu aconchego, uma paz de terra molhada, que nunca tivera em vida

(BRITO, 2003, p. 124).

“Lua Cambará” combina aspectos históricos com o fantástico, pois, de acordo com

Davi Arrigucci Júnior (1999), a narrativa apresenta uma história que remonta ao quadro

realista da paisagem do sertão, no que diz respeito à violência, à brutalidade, ao desejo e à

vingança, como também remete a caracteres romanescos, em especial da década de 1930

(com destaque para os aspectos físicos e sociais), mesclado com um tom de fábula, de

primitivo, de fruto do fértil imaginário popular.

Lua é uma personagem marcada por destino ambíguo, que registra seu nome com a

insígnia da coragem heroica na história e no imaginário do povo do sertão, mas à custa de

uma alma sem sossego. Lua é fruto de uma violação sexual da Negra Maria por Pedro

64

Francelino Cambará, que até então nunca tivera herdeiros. Sua primeira aparição na trama já

configura seu perfil e sua sina:

─ É filha da Negra Maria, moradeira dos extremos de vossa terra. Vinham

na direção de vossa casa. A mãe morreu de fome. A filha mamou sangue nos

peitos da morta. Tem gênio ruim e raça de branco.

− Eu [Pedro Cambará] reconheço a encomenda. Fico com ela mas não

mando batizar (BRITO, 2003, p.146- 147).

Quando adulta, demonstra “uma força de homem, um mando no braço igual ao do pai.

Do seu sangue branco herdou a vontade de poder, a desobediência às leis de Deus” (BRITO,

2009, p.147) e se torna a única herdeira do latifúndio e do poder do pai, mas para tomar posse

tem que enfrentar o tio e o primo, que não reconhecem a legitimidade da filiação de Lua. Ela

imprime assim sua marca de crueldade e tirania. Ela encerra com a ideia de passividade

feminina.

A manifestação da vingança nesse conto se desdobra num “comboio” de violência.

Primeiramente, Lua Cambará mata o tio (Pedro Francelino) com a lâmina de um punhal

atravessado em sua garganta, porque ele não a aceitara como herdeira do pai. Depois, o desejo

de desforra de seu primo Francisco Cambará, que prepara um exército para vingar a morte de

seu pai e se apossar da herança do falecido pai de Lua. Iguais no desejo do poder e divididos

pelo ódio, os inimigos Lua e Francisco Cambará transformam a disputa numa guerra.

De um lado, a casa do Monte do Carmo, onde reina Lua Cabará, esquecida

de sua cor; Idelfonso Roldão, o capataz; e João Índio, o mais valente. Quase

cento e vinte homens arrebanhados no grito. Exército louco e mestiço, sem

defender a tradição de gênese. Zumbis sem medo, arrastados por um poder

de mulher. [...] Do outro, a casa do monte Alverne [...], Francisco do

Cambará, este que irá morrer com um tiro no coração. O capataz Elvídio

Prisco, [...]. Cento e vinte parentes arregimentados no ódio à bastarda

usurpadora, falando em honra, tradições e direitos (BRITO, 2003, p. 151).

Essa guerra com vitória de Lua Cambará não é suficiente para saciar o desejo de

mortes da protagonista da história. Lua estabelece a posse e o domínio das terras herdadas do

pai, despertando assim o ódio e o temor de todos na região, devido às suas sucessivas atitudes

inescrupulosas com seus agregados da fazenda e com a vizinhança da região.

65

Lua se envolve em mais uma disputa emblemática na trama, mas agora no campo

amoroso. Ela nutre uma forte atração por João Índio, um dos seus melhores capatazes. No

entanto, o rapaz é comprometido com Irene e mantém-se fiel à sua esposa. A rejeição do Índio

embrutece ainda mais o coração da mulher que escava mais uma vingança, só que dessa vez

Lua pagará um preço muito alto.

Percebem-se nos relatos presentes no livro em estudo relações com as origens arcaicas

do sertão. Contudo, estas reverberam na contemporaneidade por meio de questões que

contemplam todas as sociedades: desde traições, ambições, medos, amores, ressentimento,

vingança, sofrimentos diversos até a morte. As narrativas também nos conduzem a um trajeto

memorial em elementos que ecoam o mundo arcaico do sertão, sob a perspectiva da

linguagem mítica que se reinscreve na contemporaneidade.

Pode-se dizer que na escritura literária de Ronaldo Correia o fio condutor de suas

histórias está centrado no núcleo familiar e suas relações e construções conflituosas. Em todas

as suas histórias o trágico, a vingança e a violência, por exemplo, reverberam no seio familiar.

Uma dinâmica que aponta para a família como um microcosmo social.

3.2 VINGANÇA COMO LEI: UMA INSÓLITA REVANCHE EM “INÁCIA LEANDRA”

A narrativa “Inácia Leandra” deslinda uma vida espreitada pela morte, pelo ódio

culminado numa surpreendente vingança. A protagonista mora sozinha em uma casa que

herdara depois da morte do pai, enquanto que Pedro Leandro (seu irmão) construíra uma casa

para viver com sua mulher e o cunhado.

O amargor da vingança é uma experiência de longas datas na família de Inácia

Leandra. O casarão habitado por ela era uma construção do tempo do seu bisavô – Leandro da

Barra, um dos desbravadores dos sertões dos Inhamuns −, o qual teve sua vida ceifada por

uma vingança. A história tem um início aparentemente risível, mas um final macabro. De

acordo com o narrador, tudo começou por causa de um cachorro:

Dizem que numa tarde o coronel Leandro da Barra voltava da vila de

Saboeiro quando, ao cruzar a porta dos Feitosa, o cachorro da casa avançou

em direção a seu cavalo, ladrando como fazem os cães de beira-de-estrada.

O coronel sentiu-se ofendido e no direito de ir às armas. Matou o cachorro

com um único tiro na testa. [...] Um mês depois, encontraram-no caído no

meio de um pasto, onde costumava olhar os rebanhos. Tinha quinze

66

chumbos no corpo. [...] A família Feitosa partira três dias antes para o Piauí

(BRITO, 2003, p. 129).

E assim se cumpre mais uma sentença em nome de uma dívida moral, mudam-se

destinos e ajustam-se vidas e mortes. Foi por essa data que o vaqueiro Lourenço Estevão

chegou pelas bandas da Barra, fugitivo de uma sentença de vingança. Contava-se que ele

praticou morte pelas bandas em que morara. Lourenço desperta suspiros e atenção das jovens

da região por causa de sua beleza. A desavença com Pedro Leandro surge na disputa por uma

jovem, que preferiu o vaqueiro e despertou o ódio de Pedro, que fez juras de morte para o

rival.

O enlace amoroso entre Inácia Leandra e Lourenço Estevão é selado nas águas do

açude da Fazenda da Barra. Os dois amantes começaram a se encontrar às escondidas e

engendravam planos de fuga com brevidade. Projeto interrompido pela trágica morte de

Lourenço.

Os irmãos Pedro e Inácia desde então mantêm uma relação nada fraternal: “[...] o ódio

não permitia que se avistassem todos os dias e que partilhassem os mesmo bens, umas

palavras secas, geralmente sobre negócios, eram seu diálogo. Pedro nunca escondeu o

despeito por terem a casa e parte das terras ficado com a irmã” (BRITO, 2003, p.128).

A raiz desse sentimento entre os irmãos está apoiada por motivo outro. O seu próprio

irmão (Pedro Leandro) fora responsável pela morte de Lourenço Estevão (um rapaz com

quem ela [Inácia Leandro] nutria uma relação amorosa), de uma forma bem atroz: “[...] cinco

balas enfiadas no corpo, duas entre os olhos” (BRITO, 2003, p.132). O desfecho dessa

narrativa culmina com mortes, mas dentro de uma atmosfera metafísica, do insólito.

A ideia de insólito ficcional compreende, em sentido geral, as manifestações da

literatura do Maravilhoso, sob o rótulo de sobrenatural. Dentro das possibilidades do insólito,

enquadram-se as representações dos mitos e lendas, incluindo-se as histórias míticas herdadas

de tempos imemoriais até as revisitações contemporâneas das narrativas do maravilhoso

popular. Dessa forma, as possibilidades de entendimento do insólito ficcional são amplas,

compreendendo uma diversidade de manifestações estéticas nas quais o trabalho ficcional

coloca o leitor em contato com o desconhecido, o inexplicável, o sobrenatural.

É nessa atmosfera em que a protagonista se insere, ao acolher um desconhecido que

pedia pouso durante aquela noite de seu itinerário. Inácia Leandro percebe, em torno da sua

casa, durante a noite, a presença de um estranho (mas que ao mesmo tempo lhe tem um rosto

67

familiar) que a assusta inicialmente, e mesmo assim ela indaga o motivo de sua passada por

aquelas regiões; um homem que aparentava ser apenas mais “um andarilho do sertão” pediu

descanso no alpendre da casa, apenas por aquela noite, pois vinha de uma longa jornada.

Embora assustada, Inácia Leandra aceita o pedido.

Na narrativa, tudo parece entender a chegada de um destino a ser cumprido: os

animais da fazenda, a casa, os móveis e a protagonista.

Um boi mugiu no curral e Inácia sentiu um alívio, pois se costumava dizer

que onde havia gado não havia desgraça. Voltou ao quarto e,

instintivamente, olhou a imagem da santa com o peito sangrante e com a

espada na mão, como se preparada para alguma vingança. Outro pedaço de

oração lhe veio: „do peito jorrava um sangue, que apagava os pegados e

tornava doce a vida‟. Recostada na cama, pensou que não dormiria e

preparou-se para a vigília (BRITO, 2003, p. 134, grifos nossos).

Entretanto, no alto da madrugada percebe um barulho no telhado, pensa no primeiro

momento que é o estranho ou algum comparsa seu, mas verifica que o visitante forasteiro está

dormindo na sua rede na frente da casa. Dessa forma, só lhe resta uma alternativa: pedir ajuda

ao estranho, e então entram e enxergam dois homens invadindo sua casa:

O desconhecido carregou a arma com cuidado e entraram no quarto. Um

vulto descia por uma corda amarrada a uma linha do telhado e outro se

preparava para fazer o mesmo. Soaram dois tiros e Inácia gritou que eles

tinham os rotos encarvoados. Caídos no chão, Inácia reconheceu, no

primeiro, Pedro Leandro, seu irmão, e no segundo, o seu cunhado. [...]

Falou-se que Lourenço Estevão, depois de vinte anos de morto voltara para

se vingar (BRITO, 2003, p.136).

Ao se aproximar do estranho, notou traços de familiaridades naquele rosto, duas

cicatrizes conhecidas revelavam a identidade do vaqueiro num rosto mais envelhecido. Inácia

entendeu que tinha chegado a hora. Inácia o conduziu até quarto que originara o barulho no

teto.

Pediu-lhe um rifle. Inácia deu-o e acreditou que seria aquele o momento e

também pensou que sempre estivera preparada para ele e que até o esperava.

O desconhecido carregou a rama com cuidado entraram no quarto. Um vulto

68

descia por uma corda amarrada a uma linha do telhado e outro se preparava

para fazer o mesmo. Soaram dois tiros e Inácia gritou que eles tinham os

rostos encarvoados. Caídos no chão, Inácia reconheceu, no primeiro, Pedro

Leandro, seu irmão, seu irmão, e no segundo, o seu cunhado (BRITO, 2003,

p. 135-136).

Os seus vieram para matá-la e assim se apossariam de todos seus bens, mas Lourenço

Estevão ressurge do mundo dos mortos para salvar a sua amada de uma emboscada feita pelo

seu próprio irmão e, ao mesmo tempo “cobrar” uma dívida daquele que interrompeu

abruptamente sua história de amor com Inácia.

Assim, o contista compõe uma revanche num plano diferenciado, o do sobrenatural,

como acontece também em narrativas populares difundidas pelas tradições orais do sertão.

Um acerto de contas que venceu a “ferrugem” do tempo e transcendeu a barreira de vida e

morte para “quitar” uma dívida de honra cravada em um código erigido no seu contexto social

e garantido apenas pela força da violência.

O insólito é o incomum, o extraordinário. Transcende os conceitos de realidade, pois

sua presença na narrativa apresenta uma lógica distinta da razão, preferindo a explicação

centrada no mito, cuja linguagem polissêmica provoca efeitos distintos, a depender das

circunstancias históricas. Na contemporaneidade, em que as acepções de verdade foram

contestadas e as fronteiras entre o real e o ficcional apresentam-se esgaçadas nas narrativas, o

insólito ganha, assim, destaque nos textos ficcionais de Ronaldo de Brito. No mundo arcaico

do sertão de Ronaldo Correia, não é raro encontrar nas narrativas a sua presença, a qual é

tratada com naturalidade e aceita como legítima.

A vingança nessa narrativa alinha-se ao sentido desse sentimento atribuído por Maria

Rita Kehl (2012). Ao abordar o tema, ela destaca a necessidade psíquica de efetivar a vindita,

em especial nos casos em que a vítima não teve possibilidade ou capacidade de reação, como

no caso de Inácia Leandra. Nas palavras da autora:

A vingança decorre da falta de resposta imediata ao agravo. É “um prato que

se come frio”, diz o vulgo; a vingança deve ocorrer depois de um espaço de

tempo durante o qual o contra-ataque da vítima fica como que suspenso,

adiado, mas nunca renunciado, alimentado pela raiva, ou pela

impossibilidade do esquecimento de uma raiva passada (KEHL, 2011, p.

17).

69

O passar dos anos não apaga a raiva sentida por Inácia, atestando a impossibilidade do

esquecimento do agravo ou o perdão pela falta cometida. Nessa narrativa, o desejo de

revanche rompe os limites entre vida e morte. No universo de Faca, a vingança é uma conta

sempre cobrada.

70

4 UM LÓCUS EMOLDURADO: O SERTÃO UNIVERSAL DE

RONALDO CORREIA DE BRITO

Todos os personagens que criamos estão impregnados da nossa memória, desejos, medos.

(BRITO, 2012, online) 21

O espaço que predomina nas narrativas de Ronaldo Correia é, seguramente, o sertão.

Este que foi e é o cenário constitutivo de experiências confessado pelo escritor em várias

entrevistas, declarações ou textos publicados e registrado, principalmente, em sua arte. Nas

entrevistas de Ronaldo Correia, o sertão é um eixo temático que invariavelmente se torna o

cerne da discussão, seja por meio dos questionamentos acerca do regionalismo em sua

literatura, seja pela construção de seus personagens que refletem o homem rural, seja pela

presença de elementos culturais nordestinos, seja ainda pela ambientação que remonta ao

cenário agreste do sertão.

Embora o escritor retruque qualquer filiação a correntes regionalistas e tampouco

apresente em sua literatura um sertão que represente apenas um limite geográfico, as suas

entrevistas, em maioria, são atravessadas pelo tema do regionalismo. Em relação a tal questão,

o próprio escritor assinala sua inquietação no seguinte trecho:

O meu sertão é a paisagem através da qual eu interpreto o mundo, o de hoje,

o globalizado, o que rompeu com as tradições. Interessa-me a decadência, a

dissolução. Meus personagens migram, sofrem o embate com as outras

culturas. Sei que tenho sido vítima de preconceitos pela escolha dessa

paisagem. Depois do romance de 30, criou-se uma cartilha única para a

leitura do que escrevemos, mesmo passados tantos anos. Uma verdadeira

condenação para os artistas posteriores a esse ciclo regionalista, que não

abriram mão da sua geografia como cenário. Se você elabora uma

personagem complexamente neurótica, feminista, com todos os anseios

urbanos, e se você senta esta mulher numa cadeira de couro, olhando uma

paisagem desolada do sertão, há quem enxergue apenas o cenário, e três ou

quatro substantivos locais (BRITO, 2005, online).22

21Entrevista concedia ao Jornal do Commercio. Disponível em:

<http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2012/10/21/ronaldo-correia-de-brito-meu-

batismo-de-escritor-aconteceu-no-recife-60709.php>. Acesso em: 10 nov. 2013.

22

Entrevista concedida ao Jornal O Povo em 9 de maio de 2005, disponível também no sítio eletrônico:

http://www.jornaldepoesia.jor.br/ecarvalho2.html >. Acesso em: 10 nov. 2013. O mesmo trecho é encontrado no

site da editora Objetiva. Disponível em: <http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=297

71

Há uma preocupação de Ronaldo Correia em destacar sua formação sociocultural e

registar que a matéria-prima para a composição de suas narrativas e seu diálogo com o

mundo se dão por meio do sertão. Esse traço, no entanto, não limita sua obra a uma mera

representação de um acidente geográfico. Registrar elementos socioculturais da realidade

circundante na literatura não é novidade e tampouco é exclusividade do escritor cearense.

Tal questão é possível de se perceber em qualquer obra literária, pois seu autor trará em seu

texto alguma demarcação geográfica, cultural ou histórica do lugar que fala ou do lugar que

escolhe para dramatizar sua fala, como reitera o escritor: “Boa parte do que escrevo refere-se

[ao] mundo sertanejo. É verdade que tudo é memória inventada. Nunca consegui livrar-me

dessa paisagem e da memória dos cinco anos em que morei na fazenda Lajedos, no

Saboeiro” (BRITO, 2009, online)23

.

Para o autor, tornou-se clichê na literatura, em especial depois do romance modernista

de 30 (denominado regionalista), classificar qualquer obra que seja ambientada no espaço

sertanejo como regionalista, numa adjetivação limitante na análise, nas críticas e leituras

efetuadas de tais manifestações artísticas.

A ficção do Nordeste brasileiro despontou no início do século XX, exaltado pela

crítica literária da época; mas na contemporaneidade não faltam registros de quem

estigmatize os escritores nordestinos que se dedicam a cantar ou contar sua terra. Ronaldo

Correia de Brito, sempre questionado em relação ao lócus selecionado para encenar sua

literatura, amplia e problematiza o tema:

Se eu tivesse nascido em Nova York, escreveria sobre gangues, blues e sobre

a ponte de Manhattan. Mas eu nasci no sertão do Ceará e moro no Recife.

Quando escrevo, tenho que definir uma paisagem e uma ambiência. E esse é

o mundo que conheço. Sou geograficamente regionalista porque escrevo na

perspectiva da região em que vivo. Não poderia ser diferente. Mas estou

longe das idéias e da estética do movimento regionalista proposto por

Gilberto Freyre. Meus personagens sofrem as perplexidades e angústias de

homens e mulheres modernos, vivendo no Nordeste do Brasil. O romance de

30 ainda é naturalista, o que não é o meu caso. O preconceito que existe com

a arte que produzimos é consequência de sermos pobres e colonizados. No

dia em que a nossa cultura tiver prestígio, ninguém nos chamará mais de

folclóricos (BRITO, 2003, online) 24

.

23 Entrevista concedida ao repórter J. Guedes, Jornal A Praça, edição 440, 29 de agosto de 2009. Disponível em:

http://www.joseroberto.jornalapraca.com.br/entrevistas/1288-entrevista-ronaldo-correia-de-brito-escritor.

24Entrevista cedida ao Diário de Pernambuco, em 2003, Disponível em:

<http://www.old.pernambuco.com/diario/2003/02/22/viver12_1.html>. Acesso em: 22 jun. 2013.

72

Nesse trecho da entrevista o escritor ratifica a paisagem escolhida nas suas narrativas e

se distancia de qualquer semelhança com a estética regionalista modernista. Ainda por meio

dessa fala de Ronaldo Correia, podemos afirmar que a representação do sertão em sua obra é

marcada pela sua biografia de sertanejo, embora não tenha comprometimento com a precisão

de registros historiográficos já que o escritor ficcional trabalha com a memória, que por sua

vez é fragmentária. Esse debate nos faz (re)pensar os limites entre os gêneros ficcionais e os

biográficos nas produções contemporâneas, os quais têm apresentado fronteiras cada vez mais

diluídas.

No caso da obra de Ronaldo Correia, a composição de cenários, na construção das

personagens e nos enredos apresentados e nas suas entrevistas desenham os rastros de sua

biografia, os quais são registrados sem compromisso com “verdades” históricas, mas

construídos pela memória do autor. Para Evelina Hoisel (2006), a grandeza dos textos

literários reside justamente nesse ponto: a ambivalência de sentidos, a reconstrução dos fatos

e a condução estabelecida pelo escritor, por meio do seu trabalho artístico com a linguagem

que cruza uma historicidade sem as amarras de verdades absolutas e das marcas da trajetória

com as grafias de vida do seu autor:

O escritor é [...] aquele que deixa seus rastros – o seu estilo – na cena

significante-texto. A escritura literária é, então, por excelência, bio-grafia,

isto é, vida grafada expressa dramaticamente na linguagem [...]. A escritura

representa, assim, um pacto biográfico, ou autobiográfico, independente de

explicar os vínculos que afirmam a identidade entre autor-narrador-

personagem (HOISEL, 2006, p. 12, grifos da autora).

Nessa amálgama entre biografia e literatura se constroem as narrativas de Ronaldo

Correia. Uma obra que reverbera os trânsitos trilhados pelo seu autor por meio de um trabalho

com a linguagem artística que reconstrói suas memórias, as de seu povo ou até mesmo as

(re)inventam, pois “todo escritor lida com memórias. É impossível que toda história não tenha

pedaços do escritor, de sua biografia, de sua vida” (BRITO, online)25

.

O escritor José Saramago (1998), no ensaio “O autor como narrador”, problematiza a

consagrada distinção entre autor e narrador configurada pela crítica literária. Ao aceitar tal

25 Entrevista concedia ao Portal Terra, disponível no site: http://www.limacoelho.jor.br/index.php/Contista-n-o-

pode-errar-diz-Ronaldo-Correia-de-Brito/

73

desvinculação, Saramago defende que o escritor “abdica da responsabilidade que escreve”.

Para ele, a figura do narrador não dever sobrepor o escritor, chegando até mesmo a afirmar o

seguinte:

A figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa

real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. E

quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos, problemática

correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a pessoa que o

contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e

portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura

de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos cegos, o que se me

responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser

as regras que as traduzem e as leis que as governam (SARAMAGO, 1998, p.

26).

O posicionamento de Saramago vai de encontro a teóricos que desconsideram

qualquer informação ou influência da vida pessoal do escritor no estudo ou análise de uma

determinada obra. Considerar o escritor em seus aspectos biográficos constitui uma tarefa

bastante complexa, pois se trata de um delicado trabalho que cruza várias áreas do

conhecimento, a exemplo da história, filosofia, psicanálise, antropologia e crítica literária. No

entanto, em algumas obras, pistas retiradas das escritas de vida do escritor podem se tornar

uma fundamental “chave” de leitura.

Nessa perspectiva, na leitura de uma obra, são levados em consideração os elementos

da experiência pessoal, por considerá-los parte constitutiva do texto. Saramago (1998) inclui

como possibilidade de (re)produção ficcional quaisquer experiências, desejos, inquietações,

ilusões, decepções, sonhos ou pensamentos do artista.

Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história.

As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela

manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as

que ao sonho tentaram descrever, constituem uma história com uma

coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal, em

qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita

(SARAMAGO, 1998, p. 26).

Na percepção de Jose Saramago, o narrador é usurpador dos méritos e créditos do seu

criador, e o livro é construto de matéria ambígua que vela ou revela traços do seu autor,

sugerindo ao leitor uma imersão ao texto com ares de detetive ou antropólogo procurando as

74

pistas ou removendo as camadas que, ao final, revelará por meio de vestígios, o seu autor;

afinal, “o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga

ser todo o autor” (SARAMAGO, 1998, p. 27).

A afirmação do escritor português consiste numa provocação que coloca em “curto-

circuito” correntes teóricas que se filiam à ideia de uma “voz neutra” no texto literário, que

deixa escapar, no máximo, pistas, dados ou rastros biográficos do autor, conforme registra

Evelina Hoisel (2006). A fala de Saramago (1998) sustenta-se de uma perspectiva empírica,

pois ele é um apenas escritor e não é teórico e nem crítico literário; o escritor problematiza a

relação literatura e biografia, afirmando uma totalidade da presença do escritor no texto,

quando se compreende na contemporaneidade a autoria como representação, performance em

que o biográfico aparece como imagem opaca.

Os limites entre o ficcional e o biográfico é um complexo jogo com a linguagem que,

muitas vezes, confunde o leitor. José Saramago publicou tais afirmações na revista Cult, na

seção de ensaios, mas quem garante que o exímio ficcionista não usou da sua arte jogando

com o leitor? Dessa forma, cabe apenas contemplar suas palavras, guardando suas devidas

proporções, pois é complexo, na contemporaneidade, trabalhar com ideias ou conceitos

totalizantes, sem considerar as lacunas, imprecisões e relativizações necessárias para análise

de um objeto. Ainda assim, vale registrar a defesa do escritor Saramago (1998), não como

construto teórico para análise, mas como indício de como um escritor pode se ver no seu

texto, ou como quer que o vejam.

Ronaldo Correia sempre destaca a importância do seu lugar e de suas grafias de vida

como molas propulsoras de sua arte. Diferentemente do escritor português, ele não reivindica

uma presença totalitária em seus escritos. Em suas entrevistas, o escritor destaca o caráter

fragmentário e lacunar de suas memórias e de sua formação entrevistas em sua ficção:

Meu primo tinha uma biblioteca na fazenda. Era uma biblioteca imensa,

imensa, da mais alta qualidade. E era um lugar onde eu passava de três a

quatro meses todo ano. Só que nessa biblioteca, todos os livros eram

parcialmente comidos pelas traças e pelos cupins. E de fato, a minha

formação se faz lendo esses livros em que eu nunca soube do começo, nem

do meio, nem do fim. Eu lia pedaços de livros. Então, minha formação é

75

completamente despedaçada. Se eu já sou um indivíduo dado aos fragmentos

(BRITO, 2011, p. 4)26

O escritor cearense coloca como elementos decisivos na sua constituição de leitor e

escritor seus primeiros anos no sertão do Inhamuns, o contato com as narrativas orais de

tradição popular, seu trânsito entre o interior cearense e a capital pernambucana.

Quando fui embora do Crato para estudar medicina em Recife, já levava na

bagagem o meu projeto de vida. Ao longo dos anos não fiz mais do que dar

polimento nele. Nasci numa fazenda por nome de Lajedos, em Saboeiro.

Meu pai era de Várzea Alegre e minha mãe, uma professora, do Crato. Eles

se casaram e foram habitar esse mundo desterrado. [...]. Vivi ali apenas cinco

anos, mas este tempo marcou de forma irremediável toda a minha vida. Fui

iniciado na literatura oral, através dos contadores de história que corriam as

fazendas, pernoitando nas casas e retribuindo a hospitalidade com o saber de

que eram depositários. Além das histórias tradicionais, eles narravam os

mitos locais, a vasta epopéia do sertão dos Inhamuns. Eu era uma criança

sensível e deslumbrada. Aprendi a ler com meu pai, numa História Sagrada,

uma seleta de textos da Bíblia. Não tinha a menor vocação para vaqueiro,

nem administrador de terras. [...] Sobre os Inhamuns, penso como Capistrano

de Abreu - que nunca se escreveu a história do desbravamento dos sertões.

Os historiadores ficaram pelo litoral. [...] Tivemos um ciclo épico e de

tragédias nesse vasto sertão cearense. Nada disso foi representado até o

esgotamento, como o ciclo do faroeste americano, a conquista do Oeste. [...]

Glauber e os diretores do ciclo do cangaço fizeram uma leitura sobretudo do

social. Os acontecimentos foram bem mais transcendentes. O romance

regionalista de 30 foi apenas um ensaio deste período. A nova geração de

escritores prefere escrever sobre os dramas urbanos (BRITO, 2005, online)27

.

O extenso trecho retirado de uma entrevista concedida ao jornal O Povo, em 2005,

justifica-se pelo esboço de algumas inquietações do escritor Ronaldo Correia de Brito, em

relação ao seu universo pessoal, e de sua produção literária, os quais aparecem atravessados

em suas narrativas. Assim, sua terra, sua introdução aos mitos locais, sua preocupação com o

registro histórico de sua terra natal são tópicas fundamentais em sua obra. A grandeza de suas

experiências de sertão transcende a meros localismos geográficos e converge numa

26 Entrevista concedida ao jornal Rascunho, também disponível no sítio eletrônico:

http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ronaldo-correia-de-brito/

27 Entrevista concedida ao Jornal O Povo em 9 de maio de 2005, disponível também no sítio eletrônico:

http://www.jornaldepoesia.jor.br/ecarvalho2.html

76

representação telúrica, mas que traduz o homem em sua complexidade, independentemente de

sua latitude.

Ao elencar o sertão como elemento de composição, o escritor confirma uma

intencional dissonância estética em relação aos seus pares contemporâneos, os quais buscam

ambientar suas literaturas no espaço urbano e seus desdobramentos do viver (n)a cidade na

pós-modernidade28

. O conceito de pós-modernidade não apresenta uma concordância em sua

definição, mas os sentidos de fragmentação, efemeridade e mudança caótica atravessam os

diversos e controversos conceitos de pós-moderno.

Há quem diga, como Nizia Villaça (1996), que esse termo encena na

contemporaneidade como uma forma de questionamento ou problematizações em torno da

modernidade, não inaugurando efetivamente um novo paradigma. Tal afirmação encontra eco

nas palavras de Linda Hutcheon (1991), a qual defende uma ideia de pós-modernismo como

questionador de todas as certezas e de qualquer padrão. Na perspectiva da teórica canadense,

a noção de centro consiste num construto cultural, sendo assim, não se constitui numa

categoria imutável e fixa.

O pós-moderno configura-se na obra de Ronaldo Correia como elemento

problematizador do seu contexto sócio-histórico e de questionamentos dos centramentos

estabelecidos em nossa sociedade. Ao eleger o sertão como palco de sua literatura, o escritor

se distancia dos seus pares e privilegia um lócus ex-cêntrico: o sertão nordestino do escritor

cearense depreende a complexidade contemporânea, o sertão é visto como um mundo

suburbano, uma periferia das regiões centro do país (sul e sudeste), à margem, ainda como

exótico.

No entanto, o sertão talhado por Ronaldo Correia constitui um lugar mítico que

universaliza um tempo e um espaço geográfico. E que sertão é esse? Nas mãos do escritor, o

sertão é matéria abstrata, bruta e real que, no universo das letras, é uma “faca” que corta,

perfura e rasga uma linguagem singular e, por isso, persiste e continuará sendo tema para a

literatura. Esse universo sertanejo cearense é arcaico, impresso no tempo primevo do mito,

empresta sua aridez, suas cômicas e trágicas epopeias, sua escassez de tudo e seu silêncio aos

28 O termo pós-modernidade abarca diversas acepções. Difundido por Jean François Lyotard em A consciência

pós-moderna (1986), o conceito pode ser entendido como um estado de incredulidade em relação as grande

narrativas, que se encenam como totalizadoras do saber humano e propagadoras de verdades absolutas. Esse

termo não será explorado em suas diversas nuances por conta do recorte e limitação do trabalho, sendo aqui

tomado como metáfora do sujeito em conflito identitário, por causa da perda de referências culturais e que não

encontra um lugar próprio (fixo) no mundo contemporâneo globalizado.

77

seus personagens, para atuarem num complexo palco de paradoxos, contradições que

acompanham os seres humanos em qualquer tempo e latitude, como defende o autor de Faca:

“O meu sertão é a paisagem através da qual eu interpreto o mundo, o de hoje, o globalizado, o

que rompeu com as tradições. Interessa-me a decadência, a dissolução. Meus personagens

migram, sofrem o embate com as outras culturas” (BRITO, online)29

.

O registro de suas influências literárias também não fica de fora das entrevistas

selecionadas. O escritor revela que é marcado pela escrita de Juan Rulfo, José Luís Borges e

de vários escritores russos, de Willian Shakespeare, de Júlio Cortázar, de Graciliano Ramos e

a História Sagrada, com a qual teve seus primeiros contatos por meio de uma seleta de textos

bíblicos, que Ronaldo Correia diz sempre ter lido como um compêndio de histórias e não

exclusivamente como uma escritura religiosa. Para o escritor, a Bíblia constitui um excelente

livro de narrativas, como os clássicos gregos, os indianos ou qualquer Literatura. Embora não

professe uma religião específica, ele diz que costuma rezar como os antigos hebreus, assim

como Jó (do Antigo Testamento do livro cristão), numa espécie de peleia discursiva com

Deus. Na ótica do escritor cearense, o seu mundo sertanejo assemelha-se ao da Bíblia, por

conta do processo de formação histórica da região, da geografia de solos áridos e das

influências culturais trazidas pelos colonos portugueses, sob a égide da cultura de base

judaico-cristã.

Uma ilustração mais aprofundada desse contexto está no romance Galileia. A

narrativa foi objeto de análise de pesquisa de mestrado de Elizabeth Francischetto Ribeiro

(2011). A pesquisadora apresenta um embasamento teórico centrado na teórica canadense

Linda Hutcheon, Ribeiro (2011), para demonstrar como o texto bíblico é (re)escrito no

romance de Ronaldo Correia, na perspectiva paródica, compondo um paralelo entre as

narrativas do sertão com as históricas bíblicas, por meio das personagens e do enredo marcado

pela ironia, característica predominante da paródia. Personagens bíblicos como Abraão, Davi,

Ismael e Adonias são reescritos no sertão de Ronaldo Correia e atualizados aos dilemas do

homem pós-moderno numa perspectiva crítica.

Pode-se dizer que não somente em Galileia, mas em todas as obras de Ronaldo

Correia de Brito apresentam-se relações entre a história dos homens que povoaram os sertões

e a do povo hebreu, registrada nas sagradas escrituras cristãs. Ele destaca a presença dos

pastores com seus rebanhos, que se apossavam de terras que não lhes pertenciam,

29 Disponível em: http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=297. Acesso em: 25 jul. 2013.

78

massacravam os nativos, provocavam destruição e se apossavam de tudo que era considerado

de valor.

Tal situação foi protagonizada pelos colonizadores, os quais massacraram e dizimaram

os índios, com a aquiescência do reino de Portugal e da Igreja Católica. No caso dos hebreus,

o movimento imigratório justifica-se na promessa de uma “terra prometida”, feita pelo seu

deus Iavé. No caso dos colonos portugueses, a motivação era centrada na promessa de fartura

de riquezas e prosperidade na exploração do chamado “Novo Mundo”. Mais ainda, havia

muitos judeus cristãos novos entre os colonizadores que adentraram os sertões. O próprio

Ronaldo Correia revela um exemplo presente em sua família, seu oitavo avô, Bernardo Duarte

Pinheiro, era um dos judeus batizados, sendo um dos que chegaram “para se apossar da

Galileia sertaneja dos Inhamuns, no Ceará”.

A própria etimologia da palavra sertão e seus desdobramentos históricos contribuem

para essa aproximação, conforme registra Albertina Vicentini (1998) no ensaio “O sertão e a

Literatura”. O termo remonta à ideia de deserto, longínquo, lugar incerto, expressão

reformulada para estabelecer uma oposição geográfica ao litoral. O sertão é visto como lugar

outro, ou lugar do outro na perspectiva dos litorâneos. Essas características, tanto geográficas

quanto sociais, aproximam as narrativas em torno do sertão das epopeias bíblicas, que

também mostram um povo em trânsito em terras insólitas, sendo esse enfoque dado na

pesquisa de mestrado de Elizabeth Francischetto Ribeiro, evidenciando como o sertão

experienciado pelo escritor Ronaldo Correia é (re)escrito em sua literatura.

As intersecções entre a vida e a obra de qualquer escritor acontecem numa teia de

relações muito complexas, principalmente quando não se trabalha com uma escritura

intencionalmente autoficcional, como o caso de Ronaldo Correia. A autoficção se caracteriza

por uma apropriação:

[...] da experiência de vida, uma escrita que utiliza a ficção para penetrar no

que aconteceu numa história que se constrói enquanto relato motivado pelo

desafio de vida que essa experiência expõe. Nesse sentido, há uma dimensão

ética na proposta escrita, uma encenação do “eu” diante dessa realidade

(SCHØLLAMMER, 2011, p. 106).

A proposta literária de Ronaldo Correia não assume esse compromisso sistemático

com a experiência de vida como matéria para o seu fazer literário, acontecendo, por vezes, a

necessidade de o escritor explicar em suas entrevistas que ele não se projeta em seus

79

personagens, tampouco constrói por intermédio deles um alter ego, como fica explícito em

sua fala no trecho da entrevista:

Tenho repetido que não sou Adonias. Acho que o fato de ter escrito na

primeira pessoa e emprestar um pouco de minha memória à memória do

personagem sugerem esse „alter ego‟. Tento ser o menos subjetivo quando

escrevo, mas é impossível não repassar o meu sertão interior (BRITO, 2009,

online)30

.

O sertão ora é substantivo universal que traduz a complexidade do ser humano, uma

paisagem que metaforicamente se encontra em Tóquio, Paris ou São Paulo, ora é adjetivo que

caracteriza a existência do ser humano, de qualquer ser. As nuances que esse termo adquire

apresentam uma performance instigante em toda a obra de Ronaldo Correia. Em Faca (2003),

objeto aqui estudado, apresenta narrativas desse sertão criado pelo engenho e letras do escritor

cearense.

Quando se fala de sertão, imagina-se o sertanejo como elemento icnográfico do

Nordeste brasileiro; entretanto, a ficção em torno dessa região se faz presente na literatura

relativamente há pouco tempo, haja vista que as primeiras manifestações literárias que

abordam o sertão datam do século XX.

As produções dos românticos buscaram reproduzir um panorama cultural brasileiro

entre final do século XVIII e início do século XIX. Escritores desse período, como José de

Alencar e Bernardo Guimarães, tentaram construir representações que dessem conta da

diversidade sócio-espacial existente no país, incluindo o sertão nordestino e o cerrado mato-

grossense no cenário literário de algumas obras, a exemplo de O Sertanejo (1875) e de O

Ermitão de Muquém (1869), respectivamente.

Contudo, tais obras careceram muito em caracteres que fossem considerados

genuinamente nacionais e/ou que representassem sem afetações as peculiaridades do povo

brasileiro. De acordo com Afrânio Coutinho (1995), a discussão regionalista realizada pela

geração romântica era uma espécie de fuga romântica do presente para o passado idealizado

por um sentimento artificializado pela transposição de um desejo de compensação e

representação da idealização dos traços que delineavam a identidade nacional. Na

contemporaneidade, questionam-se quais são esses caracteres “genuinamente nacionais”, ou

30 Entrevista concedida ao poeta José Inácio Vieira de Melo, publicada na revista eletrônica Verbo 21, disponível

no sítio eletrônico: <http://www.verbo21.com.br/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=364:r>

80

até a existência de tais elementos representativos de uma unidade em torno da identidade

nacional ou regional.

A definição de regionalismo literário é uma tarefa complexa, porque se recobre de

múltiplos sentidos relacionados aos diversos conceitos de sertão e literatura regionalista.

Esses conceitos, por sua vez, apresentam-se numa elaboração opaca de definições fluidas e,

por vezes, contraditórias. Afrânio Coutinho (1989) defende, grosso modo, que “toda obra de

arte é regional quando tem por pano de fundo alguma região particular ou parece germinar

intimamente desse fundo. Nesse sentido, um romance pode ser localizado numa cidade e

tratar de problema universal, de sorte que a localização é incidental” (COUTINHO, 1995, p.

202).

O regional na literatura ganha notoriedade com o Romantismo, com a valorização do

genius loci31

. As manifestações em torno do sertão ou do Nordeste se proliferam em meados

do século XIX e início do século XX, como resultado dos desdobramentos literários e das

ideias correspondentes às transformações no país nos fins do século XIX, como a

independência política do país, que proporciona um desejo de configuração do caráter

nacional. Para construção dessa identidade nacional, os escritores românticos laçam mão do

localismo, do folclore, das paisagens, da tradição com busca de um passado histórico que se

caracterizou com o escapismo romântico.

Da geração romântica, alguns nomes se destacam na composição classificada como

regionalista. São eles: José de Alencar, Franklin Távora, Visconde de Taunay e Bernardo

Guimarães. Esses escritores despontam como pioneiros na tentativa de caracterização das

regiões do país. A seca, a fome, o drama da imigração, a fala sertaneja ou a paisagem são

temas constantes em suas escritas de intenção regional. Antonio Cândido destaca como traço

principal dessa produção a busca pela construção de um nacionalismo, mais notório em José

Alencar e no Naturalismo, que ganha novos contornos, pois lança as bases de um regional

mais autônomo em relação aos modelos europeus, buscando proximidade da realidade tratada

pelo romancista.

Em razão da diferença da abordagem do regionalismo entre românticos e naturalistas,

Nelson Werneck Sodré (1995) estabelece uma classificação entre os dois movimentos. O

crítico literário classifica a abordagem dos românticos como “sertanismo” e a dos naturalistas

como “regionalismo”. Assim, a produção romântica classificada como “sertanista” possui

31 Termo latino que se refere ao "espírito do lugar" e que no romantismo é incorporada como expressão de

destaque para contexto/cenário físico, rural ou urbano e histórico.

81

implicações de sentido diferenciado: “a diferença não está apenas na forma, mas no conteúdo,

daí sua importância [...]. Regionalismo, a rigor, começa existir quando se aprofundam e se

generalizam, a ponto de surgirem em zonas as mais diversas, manifestações” (SODRÉ, 1995,

p. 203), e isso implica uma produção livre de deficiências relacionadas ao “geografismo”

(descrição apenas dos aspectos físicos do espaço retratado) ou à linguagem artificializada do

povo representado. Sob essa ótica, uma boa produção regional possui um sentido universal,

como toda literatura de qualidade.

Tal sentido limitante ao caráter regional atribuído aos românticos por Sodré (1995)

persiste, de certa forma, quando se trata uma obra regionalista. O termo, nessa perspectiva,

ganha uma conotação depreciativa ou uma inferiorização, sendo por isso rejeitado na

contemporaneidade pelos escritores, como Ronaldo Correia e, em especial, os da região

Nordeste que ficou associada aos estereótipos da fome, miséria, seca, do êxodo rural e do

homem sofrido.

Durval Muniz de Albuquerque Junior (2001) problematiza a representação do

Nordeste feita pelas diversas mídias e, sobremaneira, na literatura e nas artes em geral, por

entender que tal nomenclatura foi forjada por diversos mecanismos discursivos muito bem

articulados e reproduzidos sistematicamente ao longo dos anos. Em sua tese, o autor

demonstra como, até meados da década de 1910, o Nordeste ainda não existia como

representação identitária, cultural, social. Não se pensava, nem se falava e nem se escrevia

sobre o “Nordeste” como região, cultura ou identidade distinta. Apenas o que se encontrava

corriqueiramente era o termo “nortista”, o qual designava genericamente qualquer indivíduo

distinto das regiões Sul e Sudeste.

O Nordeste é fundado paulatinamente por meio dos discursos imbricados de artistas,

jornalistas, literatos, cientistas e pulverizados em diversas mídias. Dentro desse contexto, a

obra do escritor e jornalista Euclides da Cunha, Os Sertões (1906), e de autores regionalistas,

como Gilberto Freyre, foram divisores de água nessa construção. O que se soma em torno da

concepção de Nordeste ao longo da história é uma série de estereótipos ligados à fome, à

miséria, à violência, à ignorância, à carência, que funcionavam, ou ainda funcionam, como

uma antípoda da região Sul e Sudeste.

O que podemos encontrar de comum entre todos os discursos, vozes e

imagens [...] [do Nordeste, é a estratégia da estereotipização]. O discurso da

estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma

linguagem que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e auto-

82

suficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas

palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e

indiscriminada do grupo estranho, em que multiplicidades e as diferenças

individuais são apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p.20).

A partir da visão de Albuquerque Júnior, a grande problemática regionalista consiste

na estereotipização que se formou em torno de tal nomenclatura, impondo-se assim uma

revisão dessa perspectiva. Diversos intelectuais, escritores e artistas nordestinos, alguns

marxistas, outros militantes de partidos de esquerdas desenvolveram um trabalho reacionário

em relação aos estereótipos que foram impelidos ao Nordeste brasileiro, um trabalho que

contribuiu para o início de uma releitura da região Nordeste.

Na história da literatura no Brasil, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, é

considerado um marco na literatura sobre o sertão e os sertanejos. A narrativa concebida no

seio da Guerra de Canudos (1897-1898), no interior baiano, constitui matéria importante na

construção da identidade nacional. A obra, ao tratar da guerra, reproduz uma caracterização

física daquele espaço, bem como dos habitantes daquela região castigada pelo clima e

produtora de seres “exóticos”. Desde então, diversos conceitos de sertão, de sertanejo e de

nordeste foram sendo construídos. Destacam-se, desse modo, as acepções que consideram o

lugar um espaço inóspito e áspero, assim como aqueles que nele habitam. A partir daí, tais

elementos ganharam visibilidade e definições diversas apoiadas na obra do jornalista Euclides

da Cunha.

Escritores como José Américo, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge Amado e

José Lins do Rego apresentaram ao país imagens do Nordeste que, estrategicamente,

denunciavam a miséria que atingia as camadas mais populares, os desdobramentos das

revoltas populares ocorridas na região e, sobretudo, as injustiças acometidas nesse espaço;

enfim, imagens de aspectos sociais que não deveriam ser ignorados, mas principalmente

repensados sob uma nova ótica de inclusão e sem interpretações limitadas.

Albuquerque Júnior (2001) sugere uma (re)leitura da região Nordeste como

instrumento de alerta de uma região deixada à margem, a qual deve ser incluída dentro de

uma leitura valorativa da geografia nordestina, como parte integrante da identidade deste país.

Como destaca o autor:

83

O nordeste é pesquisado, como feixe imagético e discursivo que o sustenta,

realimentando o poder das forças que o introduziu na cultura brasileira, na

“consciência nacional” e na própria estrutura intelectual do país. A “História

Regional” é o produto de certas forças e atividades políticas, às vezes,

antagônicas, mas que se encontram na reprodução dessa ideia de região. O

Nordeste passou a ser, assim, objeto de uma tradição acadêmica que o ajuda

a se atualizar (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p.29).

Buscando esse viés crítico em torno do Nordeste, a prosa regionalista de 1930 – marco

histórico de grandes escritores que, em diferentes regiões, estavam comprometidos com a

denúncia e o protesto de condições precárias de vida – apresenta em suas narrativas uma

reflexão sobre a sociedade rural brasileira. Em tais obras, os indivíduos não são representados

pelos seus “exotismos” culturais ou seu linguajar; mas, sobretudo, como seres humanos

passíveis de dramas, dores e limitações. Nesse momento, aborda-se uma concepção

regionalista madura, que busca uma reflexão da realidade, o que se observa na obra de

Guimarães Rosa.

As personagens que ganham destaque nas produções literárias de Guimarães Rosa são

loucos, mulheres, negros, coronéis, os quais contribuem para traçar, de certa forma, o perfil

das sociedades rurais da época. Desse modo, temos a combinação do estético com o

ideológico, o que contribui, por conseguinte, para formar um panorama do cotidiano marcado

pelas lutas de poder, pela sobrevivência e contra as injustiças sociais vigentes no interior do

país.

A partir da produção regionalista de 1930, encontramos uma profícua literatura e,

mais tarde, filmes nacionais voltados, a rigor, ao tema do sertão, aos ambientes rurais e ao

homem simples do campo com suas vivências e seus dilemas. O sertão se torna matéria

plástica na produção de exímios artistas como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e, mais

tarde, Guimarães Rosa. Enfim, nomes que a partir do phatos regional expressaram o

universal.

A leitura de Ronaldo Correia do Nordeste, a partir do sertão apresentado em sua obra,

delineia as marcas de suas raízes locais, sendo, portanto, visíveis, viscerais em suas imagens.

Trata-se de uma representação com uma linguagem apurada, madura e bem articulada, que

nos remete a uma ambientação rural, mas que não se limita ao espaço físico, como define o

próprio escritor em entrevista:

84

O sertão tanto pode significar um espaço mítico, como um acidente

geográfico, pode ser abstrato ou real como o tempo, um espaço de memória

confundido com o urbano, o melhor lugar do mundo para acessar a internet,

porque o aluguel nas “lan houses” é barato (BRITO, 2009, on-line)32

.

As mulheres e os homens e sertanejos registrados em sua narrativa são livres de

estereótipos reducionistas. Seus personagens são sertanejos, do campo, rurais imersos em

dramas comuns ao universo de qualquer ser humano. Essa preocupação de transcender um

“rótulo” de regionalismo limitador, que reduz sua produção a uma espécie de localismo

literário, é expressa pelo próprio autor em várias entrevista e já destacado neste trabalho.

O autor de Faca não perde a oportunidade de suscitar um debate em relação à

classificação de uma literatura como regionalista, pois conforme fica explícito em diversas de

suas falas, essa nomenclatura na contemporaneidade provoca incômodos aos escritores,

porque parece conotar certo demérito à obra. Assim, Ronaldo Correia faz uma maior

explanação acerca das implicações e sentidos dessa nomenclatura na recepção e compreensão

de uma obra:

Quando eu leio a história indiana de Savitri e Satyavan, narrativa clássica do

Mahabharata, reconheço-me nela como se pertencesse àquela cultura,

mesmo sabendo que se passaram tantos anos e que a Índia é tão longe. Isto é

possível porque existe uma verdade nos contos tradicionais, que são

patrimônio de toda a humanidade. A extraordinária cultura popular

brasileira, sobretudo nordestina, pertence ao grande rio da tradição popular,

sobretudo oral. Gilberto Freyre, João Cabral e Ariano Suassuna beberam

nele e fizeram muito bem em beber. Se acessarmos bibliotecas e a internet,

por que não podemos acessar essa memória coletiva, tão rica e ao nosso

alcance? O que há de vergonhoso em fazê-lo? A nova geração de intelectuais

urbanos nos olha como se fôssemos jurássicos ou estivéssemos cometendo

algum crime por recorrermos ao saber da tradição popular. Eu bebo nesse

pote sempre que tenho sede. E busco criar histórias e personagens com a

mesma dimensão universal dos contos tradicionais, dando-lhes atualidade e

modernidade (BRITO, 2003, online)33

.

Em O conto contemporâneo brasileiro, Antonio Hohlfeldt (1988) aponta para a

questão semântica em torno da classificação de uma produção artística em regionalista ou

não, quando ele prefere “conto rural” a “conto regionalista”, pois, no dizer desse crítico, esse

32Entrevista concedida ao Jornal A Praça, disponível em:

http://www.joseroberto.jornalapraca.com.br/entrevistas/1288-entrevista-ronaldo-correia-de-brito-escritor. Acesso

em 04 de fev de 2013. 33

Fonte: http://www.old.pernambuco.com/diario/2003/02/22/viver12_1.html

85

termo é mais abrangente, “bem claro, reunimos aí autores significativos cuja ação dramática

está cingida ao espaço rural ou sobre ele se volta, reflexivamente” (HOHLFELDT, 1988,

p.108, grifo nosso).

Para estabelecer as possíveis nuances desse conceito, Antônio Cândido (1989) utiliza a

nomenclatura de “super-regionalismo”, para diferenciar uma literatura que trabalha a temática

do sertão como a de Guimarães Rosa, apontando para uma superação dos limites impostos ao

conceito em questão. Ampliando a discussão sobre a terminologia que Cândido utiliza, o

enquadramento de uma obra como “super-regionalista” envolve uma genialidade de lidar com

temas transcendentes, que permeiam os dilemas universais do homem em diversos tempos,

como os sentidos do amor, da morte, da guerra e as dificuldades de encontrar a paz em seus

mais diferentes sentidos, os dilemas do viver humano, enfim.

Alguns críticos preferem enquadrar esse tipo de literatura como uma vertente do

realismo mágico ou realismo fantástico, pois é fato que até década de 1970 o debate teórico

foi intenso para chegar a um entendimento de possível enquadramento para esse tipo de

narrativa, e até hoje se constitui um “campo minado”. Diante dessas questões, como situar o

lugar dessas produções literárias?

Tal impasse poderá ser repensado quando a questão da representatividade do sertão for

analisada com uma “chave de leitura” entre os conflitos do arcaico versus o moderno, no

universo contemporâneo caracterizado como globalizado, tecnológico e multicultural. Essa é

uma questão que está presente, de forma emblemática, numa obra do próprio Ronaldo Correia

de Brito: o romance Galiléia, cuja proposta central de reflexão é a tensão entre os mundos

rural e urbano: “O sertão é um espaço de memória confundido com o urbano. É o melhor

lugar do mundo para acessar a Internet, porque as lan houses cobram apenas cinquenta

centavos por hora. Galiléia trata dessas idas e vindas, mergulhos e retornos nesse mundo

suburbano chamado sertão” (BRITO apud FERRER, 2009, on-line).

Dessa forma, é estabelecida uma linha tênue entre esses dois universos na

contemporaneidade, que, afinal de contas, apresenta o homem nos seus dramas e tramas. A

produção literária de Ronaldo Correia compõe um construto ficcional permeado de elementos

que estão relacionados ao universo rural, mas que, por sua vez, refletem o universal. Por conta

dos embates teóricos em torno da nomenclatura regionalista, não vamos situar (ou limitar) a

sua narrativa nesse campo. Optaremos, então, por destacar sua representação do sertão, que

possui um poder de ser emoldurado em qualquer lugar e que também funciona como uma

espécie de “sertão existencialista” tal qual o nomeia Jorge Pieiro (2010):

86

O sertão é a chave para outros movimentos, também de mistérios, de

seduções, de perigos... [...] É desse solo antagônico ao fluido, ao marítimo, à

geografia infinita, que se inventa e se recria toda a mítica e a complexa

existência dos espaços e personagens criados ou revistos pelo cearense

Ronaldo Correia de Brito (PIEIRO, 2010, on-line).

Ainda de acordo com Jorge Pieiro (2010), a sua escrita pode ser considerada dentro

dos parâmetros de classificação pós-modernista, em virtude da utilização entrelaçada de uma

gama de recursos, a saber:

Não linearidade da narrativa; corte cinematográfico; estruturas

fragmentárias; realidade precária e indefinida no espaço existencial das

personagens. Alia-se a isso, o estilo do autor ao explorar abismos textuais,

provocando uma espécie de vertigem durante sua recepção; a presença do

cenário mítico na geografia da memória; o tempo oculto; a dureza da

linguagem (PIEIRO, 2010, on-line).

Dentro desses elementos apresentados pelo crítico e escritor Jorge Pieiro, o conjunto

da obra de Brito compõe prerrogativas para validar sua produção literária como uma narrativa

existencial, mítica, dotada de uma linguagem sem excesso de adjetivos, mas sobretudo com a

preocupação de representar o universal.

Helena Bonito Pereira (2011) busca diferenciar a literatura de escritores da

envergadura de Ronaldo Correia e Antônio Torres das produções regionalistas, preferindo

classificar a produção desses autores como pós-regionalista, por apresentar uma nova

problematização do lócus sertanejo:

Se o regionalismo constituía ainda uma “linha de força” em nossa ficção,

observa-se hoje uma espécie de “pós-regionalismo” em que a migração do

campo para a cidade resultou em novos questionamentos, na perda/busca de

identidade e no deslocamento com desidentificação, como se pode observar

na prosa de Antônio Torres ou Ronaldo Correia de Brito. Mais acentuado

ainda é o papel da linguagem em um tipo de texto que, sem ser regionalista,

pode ser incluído nesse „pós-regionalismo‟ que valoriza a elaboração textual

(PEREIRA, 2011, p.44).

Verifica-se nas obras de Ronaldo Correia uma problematização acerca da perda ou da

busca de identidade no trânsito das personagens no sertão/cidade, numa elaboração textual

que busca não repetir clichês ou apresentar descrições demasiadas de uma geografia muito

explorada na literatura. Pode-se, porém, acrescentar como característica nessa “nova estética”,

a busca por uma representação poética do sertão, sem as idealizações dos românticos, sem o

87

cientificismo dos naturalistas, sem as demasiadas preocupações políticas dos modernistas.

Mas um sertão mítico e arcaico e, por isso, profícuo na maneira de traduzir o humano.

As obras classificadas pelo termo cunhado por Helena Bonito Pereira de “pós-

regionalistas” podem ter uma definição mais abrangente, pois são caracterizadas também pela

maestria dos narradores populares em encenar sua cultura oral, pelo registro das histórias de

cavaleiros medievais, jagunços, reis e princesas, donas de casa e fazendeiros. Conformam-se

num diálogo intertextual da cultura e de mitos locais com diversos povos que adentraram os

sertões durante o processo de colonização e povoamento (portugueses, franceses, holandeses).

Nessa literatura, destaca-se o arcaico universo sertanejo em ruínas, dilacerado depois

das grandes migrações do campo para a cidade. Um processo que fez uma terra entrar em

decadência com suas ricas histórias, seu inventivo povo, sua cultura tão particular, tornando-

se uma espécie de periferia.

O livro Faca, como um todo, se organiza no interior dessa moldura, que lhe permite

uma fotografia de um tempo memorável, no qual existia um: “[...] sertão longe, referido

vagamente em romances e livros de geografia, ainda era um mundo habitado. O povo não

tinha partido para encher as cidades. Inventava o seu existir ali mesmo, com o que a terra

oferecia” (BRITO, 2008, p. 166). Essa é a configuração do lócus ficcional de Ronaldo

Correia.

4.1 O TEMPO AFIADO PELA ESPERA: O PESO DAS HORAS EM “A ESPERA DA

VOLANTE” E “FACA”

O conto “A espera da volante” é iniciado com uma epígrafe retirada do antigo

testamento, do livro do profeta Isaías34

, capítulo 39, versículo 4. Nesse fragmento, o rei de

Judá (715 a.C.) é advertido pelo profeta Isaías da perigosa confiança conferida aos

mensageiros enviados pelo rei da Babilônia, os quais, por ocasião do estado de enfermidade

do rei Ezequias, foram visitá-lo como sinal de “convalescença” de sua situação. O profeta

alerta ao rei de Judá o quão desastrosa foi a hospitalidade oferecida aos estrangeiros,

vaticinando que tal equívoco no acolhimento de pessoas de má índole iria lhe custar muito

caro.

34 E Isaías disse: Que viram eles em tua casa? E Ezequias respondeu: Viram tudo o que há e minha casa; não

houve nos meus tesouros coisa que eu deixasse de lhes mostrar. (PROFECIA DE ISAÍAS – 39,4).

88

Essa citação bíblica funciona como prenúncio do que será apresentada, ou seja, uma

narrativa que também consiste numa tensão em torno da hospitalidade de um inquilino

perigoso. O conto de Ronaldo Correia de Brito em estudo deslinda um dos códigos sertanejos

muito valiosos, que, na voz do narrador, é apresentada como “a lei mais sagrada do sertão, a

hospitalidade” (p.15), sempre disponível aos transeuntes do sertão: comboieiros, boiadeiros,

tropeiros, boias-frias, retirantes os quais, nos seus longos percursos de idas e vindas,

invariavelmente necessitam de pouso nos determinados momentos em que o esgotamento

físico vence o corpo.

Em “A espera do volante”, quem está de partida são três homens procurados

ferozmente pela polícia, em decorrência de crime de grande espanto e comoção da região.

Apesar de ferir as regras de hospitalidade dos sertanejos, o episódio fez com que todos

fechassem as portas e o coração para os fugitivos. Chagas Valadão, um dos foragidos,

consegue pouso e cuidados na casa de um senhor de idade avançada. O Velho protagonista é

conhecido por todos da região, mas é portador de vários mistérios, os quais talvez expliquem

o seu contrassenso em acolher um forasteiro temido e perseguido pela polícia.

O curioso é que até o nome e sobrenome do bandido (Chagas Valadão) é sabido pelo

leitor. No entanto, o nome do protagonista não é registrado, apenas o conhecemos pela

alcunha de “Velho”, o que intensifica a atmosfera de mistério, como se o protagonista tivesse

um passado sórdido que deveria ser escondido ou esquecido. A presença do criminoso

perseguido desperta um indefinido sentimento de compaixão e do avivamento de uma

memória antiga, já esquecida e abandonada pelo velho, mas que não é revelada pelo narrador,

pois o que se sabe, pelas palavras do narrador, é que o Velho compartilha do sentimento de

culpa com o criminoso:

Soprava um de fim de tarde, com gravetos e folhas secas. O Velho calara e

olhava em frente. Desde a passagem de Chagas Valadão, tornara-se mais

inquieto, como se uma onda trouxesse o entulho de um tempo apagado da

memória. Abriam-se arcas pesadas, de pertences esquecido. Fora um instante

perdido que Chagas trouxera, como a história de seu crime, seu rogo de

absolvição. E o Velho abriu-lhe as portas e tratou-o com compaixão

(BRITO, 2003, p.13-14).

A partir do momento em que o Velho acolhe Chagas no seu lar, ele se inseriu num

tempo sem medida, um eterno e profundo tempo de espera da chegada da volante, que viria

89

com uma fúria sem tamanho, disposta a massacrar ou mesmo matar qualquer um que desse

asilo ou proteção aos perseguidos. O tempo que o Velho experimenta é um tempo sem horas,

contado com o martelar da angústia, em que cada minuto contribui para proximidade de uma

desgraça anunciada.

Em algum ponto da estrada, a volante avançava em marcha. Os soldados

suavam as camisas verdes e esfregavam os rastros queimados de sol. A fome

e as pedras do caminho aumentavam o seu furor. Entre a casa do Velho e

eles, restavam poucas léguas. Ao final da mancha, teriam a casa pela frente,

o alpendre e os olhos do Velho, marcados pela longa espera (FACA, 2003, p.

19).

Apesar da disponibilidade do Velho em acolher Chagas Valadão até curar suas feridas,

o seu hóspede vai embora da casa sem aviso, mas deixa rastros de sua presença, passíveis de

confirmação de sua passagem pela volante. O visitante deixou-o sozinho no aguardo dos

policiais que acertadamente iam à sua direção. O Velho, no entanto, aguarda a chegada dos

soldados, numa tranquilidade incomum para tal contexto, pois ele entendia que “a vida toda

fora, espreitar de armadilhas, prontas a apanhá-lo nos seus entrançados. Habituara-se ao

perigo” (BRITO, 2003, p. 20).

Não há um desfecho tradicional para a história. O conto recebe um corte, uma

suspensão abrupta na narrativa, visto que, quando o protagonista avista “o verde da camisa

suada dos soldados”, a história fica aberta: a esperada da chegada da volante ou uma possível

punição ao Velho não é expressa pela narrativa; logo, o que resta ao leitor é todo o percurso

da espera, do tempo incontável da espera. O conto confere uma leitura sobre o tempo

cronológico versus o tempo natural que ignoras convenções ou limitações temporais e

dissolve-se em infinito conta-gotas ou mesmo estancando na dor de uma existência cíclica de

sofrimento. Ronaldo Correia de Brito traz à baila uma temática universal, com elementos

locais em cenas que ilustram pertinentemente os sentidos da trama e corporificam o diálogo

entre leitor e narrador.

Com efeito, todos os trechos que remontam o regional transcendem em significados

diversos. Por exemplo, o alpendre de chão limpo e cheirosas vigas de umburana conotam os

braços sempre estendidos do seu dono para acolher e cuidar dos seus visitantes de corpos

90

moído pelo cansaço da diária labuta; a imagem do velho comendo uma coalhada gorda com

farinha e rapadura, numa mistura de cores e sabores, nos sugere uma leitura sobre o doce e o

amargo do viver e que o ser humano constantemente busca equilibrar; o chão batido de terra

seca que deixou os pés do fugitivo em chagas aponta para os percalços daqueles que vivem

às margens sociais; o símile entre o juazeiro e o Velho é outra exemplar construção com

elementos locais. O juazeiro, árvore típica da caatinga nordestina, é tomado pelas suas

profundas raízes e frondosas folhas que fornecem valiosa sombra em sol causticante, uma

profícua alegoria de hospitalidade e de laços umbilicais.

O conto homônimo ao título da coletânea é outro exemplo de sagração do sertão,

como lócus universal. Toda a trama é entrecortada por uma atmosfera soturna, cheia de

mistério e suspense, como as narrativas orais e, ao mesmo tempo, marcada pela tradição da

literatura universal. A narrativa é dividida em dois tempos ungidos por um objeto mítico que

impõe uma maldição a todos que o tocam, assim como nos guénos35

da antiga Grécia ou

como na voz dos narradores da cultura popular.

A trama se inicia com um lendário e místico objeto encontrado por ciganos numa casa

abandonada marcada pelo estigma de uma maldição: um punhal de lâmina de prata, cabo em

ouro com o formato de duas serpentes. Logo em seguida, a narrativa se abre para um flash-

back no tempo em que aquela casa era habitada por uma família de numerosos filhos (doze

homens e uma mulher).

Numa atmosfera mórbida e sombria, um grupo de ciganos adentra uma casa mal

assombrada. A tragédia presenciada por aquelas paredes em ruínas emergem como cenas

cinematográficas, em que a profusão das imagens descritas compõe um quadro geral dos

acontecimentos em ricos detalhes da tragédia familiar ocorrida há anos naquele recinto. O

peso do lugar é sentido pelos ciganos, ao percorrerem pelo que restou dos cômodos da casa,

gerando uma sensação de incômodo, desconfiança, medo das memórias que reverberam

daquele ambiente. A narrativa não obedece a uma ordem gradativa dos acontecimentos, sendo

apresentado pelo narrador ora o passado com a trágica família daquela habitação, ora o

presente com os ciganos assustados:

35 Guénos é retomado aqui no sentido utilizado nas tragédias gregas como o termo correspondente às maldições

familiares.

91

─ Selem os jumentos e vamos embora.

─ E o pernoite? ─ quis saber um dos ciganos.

─ Aqui eu não passo nem meia hora.

─ Eu nem na calçada. E acho bom jogar esta faca por aí mesmo, onde

sempre esteve. Muitas águas já correram (BRITO, 2003, p. 27).

Já no introito, o narrador apresenta o clímax da narrativa: os irmãos Pedro e Luiz

Miranda embrutecidos de ódio pelo desejo de vingança pelo assassinato da irmã Donana,

realizado pelo próprio marido. Os motivos pelos quais se dá a tensão dramática são

conhecidos pelo leitor paulatinamente, por meio de um narrador onisciente, o qual apresenta a

história em fragmentos aparentemente desordenados.

Sabe-se que o lócus narrado é um ambiente rural, por causa da presença demarcada de

elementos que compõem este cenário: o curral, o riacho, os animais (jumentos, bois, cavalos),

a flora (umbuzeiro) que contribuem para a configuração do sertão que, no texto do escritor,

ganha plasticidade semântica. Entre esses elementos é pertinente destacar o fruto do

umbuzeiro (típica árvore do sertão Nordestino), que combina os sabores doce e azedo. O

umbu aparece na narrativa como instrumento compensatório para Donana nas constantes e

demoradas ausências do seu marido (Domísio Justino); o riacho com águas frescas

percorrendo o corpo de Donana também conotam momentos de prazer compensatório da sua

solidão: “Ela chupava toda a safra de umbu”. O fruto azedo era sua vingança. O riacho que

corria atrás da casa, o único deleite. Tomava banho nua, os cabelos boiando na correnteza. Só

nessas horas conseguia esquecer o marido que tardava (BRITO, 2003, p. 27).

Esse sertão em “Faca” é também um universo permeado de símbolos e códigos. Um

deles, presentes nesse conto, é o silêncio dos indivíduos expressos nos seguintes trechos:

Já havia passado o inverno e o gado estava no tempo de vender. Restava

tocá-lo pelas estradas, no rumo da capital. Enfrentar viagem comprida, sem

data certa de retorno.

─ Não sei dizer quando volto ─ Domísio Justino falou, de costas para

mulher, não se dando ao trabalho de virar a cabeça.

Donana ficou calada. O verão ia ser de muita fartura, os paiós cheios de

legumes.

─ E vai demorar muito? ─ arriscou perguntar.

A fala de Domísio nada respondeu. (BRITO, 2003, p. 27).

Tanto o silenciar de Donana quanto a rispidez de Domísio estabelecem entre si o elo

dialógico muito bem compreendido por ambos. Na secura das palavras, Domísio deixa claro

92

nesse diálogo que demorará muito na viagem, assim como Donana calada expressa ao mesmo

tempo sua tristeza e impotência diante da situação. Além disso, a cena em questão deslinda os

papeis sociais, visto que temos de um lado um homem autoritário, arrogante e opressor, e do

outro uma mulher oprimida, enganada e desprezada. Vale observar outro trecho do conto em

que o silêncio é o código da mensagem:

─ Voltou? ─ perguntavam os irmãos de Donana todas as tardes, quando

passavam a cavalo.

─ Não ─ respondia ela, tristonha.

Pedro e Luiz Miranda se calavam. Os trezes filhos de Domísio esqueciam o

pai. Francisca, a mais velha, não conseguia esquecer. Da janela, onde quase

morava, buscava uma poeira distante, que era o sinal de sua vinda próxima

(BRITO, 2003, p. 28).

O silenciar dos Miranda diante das negativas de Donana nesse contexto dizem muito

da insatisfação dos irmãos em relação à situação de abandono em que a irmã (Donana) se

encontra. O silêncio denota um recurso que constitui sentido e, mesmo pela ausência, surge da

imprecisão ou omissão de alguma expressão, de um sentimento, de uma ideia enfim, mas que

paradoxalmente diz tanto, dentro da perspectiva mítica. Nessa ótica o silêncio surge, muitas

vezes, com o peso de um grito, a força de uma violência. Uma manifestação extralinguística

que não passa despercebida sem provocar um mal-estar, um constrangimento ou sem deixar

uma chaga aberta.

Na cultura popular, a economia das palavras é valorada, como na disseminada máxima

que diz: “para bom entender meia palavra basta”. Numa terra de carência, as palavras também

não são desperdiçadas. Domísio e Donana compartilham desse código, ambos se entendem

nos seus silêncios, omissões ou interditos. O marido já nem olha para a esposa, não responde

a todas as suas perguntas, e para a mulher resta o esperar no vazio do silêncio.

Como ocorre na maioria das narrativas de Ronaldo Correia, o desfecho não é revelado,

as histórias geralmente dão margem para uma possível continuação, não há um fim para a

tensão dramática e muito menos é apresentando um simplório “happy end”. Em “Faca”, a

narrativa em seu final retoma o clímax do conto, no qual Donana é assassinada pelo marido e

os irmãos das vítimas anseiam por justiça com as próprias mãos, para atenuar o desconsolo

dos irmãos pela injustiça acontecida:

93

─ Eu compreendo o ódio de vocês ─ tentou falar calmo Anacleto Justino. ─

Mas respeitem a casa e as leis da hospitalidade. Sobretudo, quando esta

hospitalidade é um irmão.

Luiz e Pedro choravam. Pela primeira vez desde que aprenderam que choro

envergonha.

─ Ela estava inocente ─ disseram. [...]

─ Por isso peço ─ falou Anacleto ─, aqui dentro desta casa, não. Em

qualquer lugar, nas estradas, nomeio do mato, onde vocês o encontrarem,

quando ele for embora.

E nunca mais e nem se tiver notícia. Visto pela última vez numa manhã

nublada, o corpo branco, do tempo que sem tomar sol. Morto, certamente.

Ou esquecido, como o punhal que os ciganos largaram no terreiro (FACA,

2003, p. 33).

Flagra-se nessa cena Anacleto (irmão de Domísio) tentando guardar a vida do irmão,

recorrendo ao código sertanejo da hospitalidade. Dessa forma, ele ao menos protela a

vingança dos irmãos Miranda, a qual não é revelada se foi consumada. Essa dúvida em

relação ao desfecho da narrativa é percebida por meio do advérbio “certamente”, que no

contexto dá uma imprecisão da sua morte ou mesmo imprime um caráter conotativo, pois não

se sabe se essa morte é física, moral, social, espiritual. Soma-se a esse final aberto a

conjunção alternativa “ou”, que ratifica uma ambiguidade quanto às ações realizadas pelos

personagens.

Pode-se concluir essa análise da narrativa, inferindo que sua temática contempla,

principalmente, a noção do valor do tempo para o homem, em especial do tempo de espera.

Tanto Donana quanto o marido (Domísio Justino), a filha Francisca Justino ou mesmo os

irmãos Pedro e Luiz Miranda amargam/amargaram ao seu turno a dimensão da espera.

Donana vivia sempre angustiada pela hora da chegada do marido, que sempre tardava; do

mesmo modo, sua filha Francisca que, “da janela, onde quase morava”, espera algum sinal da

vinda do pai; para Domísio, a ansiedade consistia em encontrar o momento exato para se

livrar da esposa e viver um novo tempo, em outro lugar, com uma mulher mais jovem; já os

irmãos Miranda compartilham com Donana os longos instantes de tristeza pelo abandono,

assim como são devorados de ansiedade pela vontade de uma vingança imediata à morte da

irmã.

O universo arcaico do sertão construído na narrativa de Ronaldo Correia funciona

como uma moldura estética para perscrutar questões que interessam o ser humano numa

perspectiva que transcende tempo e lugar. O itinerário proposto pelo autor em uma ignota

terra ficcional é um lócus que apresenta o humano no que ele tem de mais universal: seus

94

medos, suas fragilidades, suas limitações. O projeto poético de Ronaldo Correia de Brito

desdobra-se num tecido textual que busca deslindar a humanidade no que ela tem de mais

primitiva, mítica e universal.

4.2 UMA VIDA EM VEREDAS: UMA PRISÃO DOMÉSTICA EM “MENTIRA DE

AMOR”

No conto “Mentira de amor”, a protagonista Delmira vivencia um cárcere imposto por

Juvêncio Avelar (marido), em sua própria casa, por longos anos, tempo suficiente para apagar

da memória os prazeres mais simples como ir à feira ou ao cinema. Sua vida reclusa só lhe

acumulou fobias, coragem de sair sozinha não tinha mais e até mesmo sua imagem refletida

apenas em um espelho abandonado pelo marido na parede lhe provoca estranhamento.

Delmira amarga uma vida de carências, imersa no desprezo e aprisionada pelo amor do

marido, uma existência atravessada pelo medo, como é registrado pelo narrador:

A perda de uma das filhas foi razão daquele desprezo pelo mundo e seus

desejos. Inseguro no amor da mulher, Juvêncio aproveitou-se da sua

indiferença para empurrá-la em abismo mais profundos. A cada dia jogava

uma pá de areia sobre a cova em que Delmira se enterrava, não reparando

que precipitava as três filhas na mesma masmorra escura (BRITO, 2003,

p.100).

Delmira encontra-se aprisionada tanto na dimensão física da casa quanto na dimensão

sentimental do seu luto profundo pela perda de uma filha. Esse sentimento faz dela também

uma “defunta”, pois não vive mais para si, apenas cumpre os afazeres da casa no ritmo

entediante e marcado pelo tempo notado, somente, através da luz que se espreita pela frechas

do telhado, pois não tinha mais contatos com relógios, folhinhas ou jornal. Até o jardim da

casa lhe é furtado, sendo interditado por uma porta sempre trancada, restando-lhe de contato

com o firmamento apenas um apertado quintal.

Os ruídos oriundos da rua servem para Delmira como instrumentos de recomposição

pelo menos das datas comemorativas e/ou fatos importantes, como se observa no trecho: “No

carnaval ouviam-se os apitos de escapes dos carros e na Semana Santa a batida

amedrontadora das matracas, negação de qualquer alegria” (BRITO, 2003, p.101). Como

95

destaca o narrador mais adiante, Delmira está “Viva apenas através dos ouvidos, pelos ecos

que escutava do mundo” (BRITO, 2003, p.101). Além do luto, o medo é outro sentimento

imperioso em Delmira e suas filhas, medo de sair de casa, medo de Juvêncio (marido), medo

de que ele descobrisse que as frestas da janela eram para elas um “precário observatório” do

mundo externo.

O mundo minguado de Delmira e sua prole, limitado pelos interstícios de luz e ruídos,

consiste numa enfadonha repetição de atividades domésticas sem sentido e marcado pela

ausência do marido:

E ela, o que se podia fazer? Recontar os passos entre a cozinha e o tanque de

roupas, onde lavava manchas das camisas do marido, adquiridas não sabia

onde, nas suas andanças de homem que pouco parava em casa, só chegando

para comer e dormir um sono abandonado de macho. O revólver, que nunca

saía da cintura, esquecido em cima do penteador, e a chave da porta, objeto

de cobiça e medo, guardada no bolso da calça, que tinha o cuidado de não

despir (BRITO, 2003, p. 102).

A figura do marido de Delmira contempla o modelo patriarcalista presente no

comportamento de Juvêncio e é enfatizado pelo narrador por meio da expressão “de macho”.

A lógica patriarcal entende o espaço da mulher limitado ao espaço da casa, e ao homem, toda

a liberdade da rua. Juvêncio somente aparece em casa para as refeições e descanso, a sujeira

da roupa aponta para seus momentos de lazer longe da família. Ele carrega unidos ao seu

corpo dois instrumentos que impõem poder: o revolver rente à cintura e a chave da casa,

guardada no bolso, longe do alcance e do olhar para evitar a cobiça de suas prisioneiras.

No entanto, Delmira não se rende por completo às interdições do marido, vez que

ainda lhe resta a imaginação, esta que o marido não lhe pode furtar. Ao som da melodia

fragmentada da orquestra do clube, Delmira se entrega às reminiscências de sua juventude e

experimentava nesgas de felicidade.

De longe chegavam os acordes de um bolero, despertando inquietações

esquecidas. Recompunham-se pedaços de melodia. O corpo entorpecido

agitava-se em estremecimentos da dança. As mãos procuravam outras mãos

e a cabeça pendia para um ombro imaginado. As madrugadas tornavam-se

96

um hábito de insônia. Delmira sonhava com salões de baile, indiferente ao

homem que dormia ao seu lado (BRITO, 2003, p. 102).

O sofrimento das cativas é atenuado com a chegada do circo na cidade, e tal fato

promove um avivamento em suas vidas mórbidas, compondo uma atmosfera distinta da

solidão e tristeza registradas pela emoção da protagonista e suas filhas:

− Um circo! – gritou Delmira, os olhos marejados de lágrimas. Correram

para as janelas tentando ocupar o melhor observatório. A mãe, adivinhando o

desfile pelo que vira em outros tempos, descrevia para as filhas. Na frente do

cortejo, o homem de pernas de pau falava alto no seu megafone, convidando

as pessoas para o espetáculo (BRITO, 2003, p. 104).

A partir desse momento tudo se torna expectativa e Delmira e suas pequenas

mergulham num tempo de espera para contemplar o espetáculo através dos sons que penetram

o ar. A presença da arte circense desperta o sonho de mãe e filha com a liberdade, aprisionado

no bolso de um homem ausente em todos os sentidos. Os pedaços das imagens dos artistas do

circo vistos pelas nesgas das venezianas alimentavam a imaginação de todas até a chegada da

noite, quando o marido sempre saía e sempre voltava bêbedo, bem tarde para o descanso

noturno.

O quintal da casa se torna uma arquibancada da imaginação para Delmira e suas

pequenas que, isoladas por um muro alto, aproveitam os sons originados do circo. Elas se

deleitam com a voz do apresentador, com o rufar dos tambores, com as músicas, com as

piadas dos palhaços, com os gritos e aplausos do público igualmente repetidos pelas

espectadoras no cárcere doméstico. Delmira já não é a mesma com a presença do circo, já não

vê a chegada da noite como expressão máxima de tristeza e juntamente com suas filhas

escolhem o que pensam ser as melhores de suas roupas, penteiam os cabelos e fazem todo um

ritual celebrativo para acompanhar do quintal mais uma noite de circo.

No mundo de Delmira, construído apenas pelo som, a esperança começa a ganhar

espaço, ela começa a esconder dinheiro furtado do marido para comprar bilhetes de entradas,

mas desconhece o valor das notas e o preço dos ingressos, por conta de tanto tempo em

isolamento, logo, seu consolo é o quintal da casa, palco de imaginação e felicidade da casa-

prisão. O clima retorna à tensão, quando ela descobre que o circo fará sua última apresentação

97

e, consequentemente, será o fim de suas noites de contentamento. O passar do tempo ganha

um peso angustiante. Delmira é instigada a tomar uma decisão, ou melhor, uma ação para

vivenciar plenamente a alegria do circo. A protagonista ensaia o pedido para o marido levá-la

junto com suas filhas para o circo, mas tudo em vão. Não consegue efetivar o pedido, porque

o marido sempre a silenciava, como quem já soubesse da intenção da mulher e, por isso, não

concedia espaço para o pedido, como fica implícito no trecho seguinte:

Tinha o impulso de fazer o pedido a Juvêncio mas, ao encará-lo, a sua

coragem se desmontava como a lona do circo de partida.

Os cafés da manhã eram de angústia. Juvêncio comia apressado e

recomendava que almoçasse sem ele. No jantar, mal olhava para elas, preso

ao relógio de pulso, marcando o horário do cinema.

− Eu quero pedir uma coisa.

− Amanhã.

Amanhã repetia ontem, e as noites de circo já não eram as mesmas (BRITO,

2003, p. 107).

Assim chegado o último dia de espetáculo, Delmira ficou transformada pelo desejo de

ir ao circo, contrapondo as vontades do marido e aparentemente disposta a enfrentá-lo e até

mesmo chegar ao extremo para lograr seu objetivo de ver a última apresentação dos artistas

circenses em sua cidade. A narrativa, como outras da coletânea de Ronaldo Correia, não

apresenta o desfecho, isto é, não sabemos se a mãe e suas filhas vão ao circo. O narrador

apenas sugere uma possibilidade, o assassinado de Juvêncio na sesta de domingo, cuja

narração do delito é realizada com os verbos no futuro do pretérito, mas ao destacar a certeza

que a protagonista tem, sua ação, caso realizada, passará despercebida pelo barulho dos fogos

e das músicas que o cortejo circense realizava na sua rua:

Voltou-se para junto do marido adormecido, na hora precisa em que o

cortejo dobrou a esquina da rua, avançando sobre sua calçada. Os fogos

abafavam a música, e ela teve a certeza de que um estampido de revólver

seria um pipocar a mais entre tantos. E depois dele, o sol de julho, numa

tarde de domingo, teria a infinitude do mundo. Ela e as filhas, chorando de

felicidade, seriam confundidas com personagens das comédias de circo.

Gritariam e bateriam palmas atrás do homem de pernas de pau, que não

parava de perguntar:

− E o palhaço, o que é?

− É ladrão de mulher (BRITO, 2003, p.109).

98

De maneira ambígua, num tom lírico talvez, a liberdade das cativas é sugerida numa

entrega intensa, todas como meninas nos braços pelo esperado sentimento. Vale destacar a

sutil ironia presente nos últimos versos “− E o palhaço, o que é?/− É ladrão de mulher”, que

atesta o ultimato de Delmira e confirma que Juvêncio perdeu a “sua” mulher para arte, para a

rua, ou melhor, para o inexplicável sabor da liberdade.

Novamente, Ronaldo Correia prefere a suspensão da narrativa e apresenta ao leitor

uma ambiguidade em seu final. Essa narrativa, ao deslindar os atos corriqueiros de uma

família sertaneja, tematiza o passar do tempo, a liberdade e, sobretudo, a insinuação do

trágico na vida humana.

99

5 UMA FACA DE DOIS GUMES: O TRÁGICO E O FEMININO

Ao se abordar o trágico, a tragédia grega sempre é rememorada, isso porque, de

acordo com Albin Lesky (2003), “toda problemática do trágico, por mais vastos que sejam os

espaços por ele abrangidos, parte sempre do fenômeno da tragédia ática e a ele volta”

(LESKY, 2003, p.23).

A tragédia possui um resultado impactante, por ser uma imitação de realidades

dolorosas, porquanto sua matéria prima é o mito, está relacionada também a catarse que

remonta à purificação da alma, no sentido aristotélico. Diz Aristóteles, em Poética, que a

tragédia pela compaixão e terror provoca uma catarse própria das emoções. Essa relação com

as dores humanas provoca no leitor uma densa reflexão sobre sua própria situação. A

composição do elemento trágico é voltada, principalmente, para a recepção, pois existe uma

busca do autor em provocar um efeito impactante no leitor. Desse modo, o foco principal é

cruzar o horizonte de expectativa do escritor com o leitor – no caso da constituição do trágico

é provocar a reflexão humana, a partir do sofrimento apresentado, como enfatiza Salvatore

D´Onofrio (1995):

Suscitar uma ação criminosa, vergonhosa ou imoral e o medo de que a

mesma coisa possa acontecer a nós na vida real; mas, ao mesmo tempo,

suscita a piedade para com o herói, pois ele é culpado-inocente, visto que

não teve consciência da maldade cometida, sendo vítima do todo-poderoso

destino; daí a „catarse‟, a purificação dos sentimentos por parte dos

espectadores, é colocada com o fim último (D´ONOFRIO, 1995, p. 152).

Para Aristóteles, esse é um conceito aplicado a um gênero textual que contempla

caracteres específicos, confundido ou generalizado como trágico que, na verdade, compõe um

dos elementos do gênero dramático. Tragédia, segundo Aristóteles,

É a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num

estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas,

segundo as partes; ação apresentada, não com ajuda de uma narrativa, mais

por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror tem por efeito obter a

purgação dessas emoções. Entendo por “separação agradável” o que reúne

ritmo, harmonia e canto. Entendo por “separação das formas” o fato de estas

partes serem, umas manifestadas só pelo metro, e outras, ao contrário, pelo

canto (ARISTÓTELES, p.35, [3?? a.C.] 2004).

100

Isso implica dizer que, para um texto ser nomeado como uma tragédia, na perspectiva

aristotélica, ele deve possuir um formato padronizado, cumprindo uma determinada

especificidade: provocar no espectador a catarse por meio das ações dos personagens, sendo o

elemento trágico um dos componentes que corroboram para produzir esse resultado.

No entanto, com os avanços nas discussões sobre gêneros literários, é possível propor

um estudo sobre a obra de Ronaldo Correia, a partir da influência da tragédia, principalmente

a partir dos estudos de Anatol Rosenfeld (1985) e Emil Staiger (1977), segundo explanação de

um dos teóricos no seguinte excerto:

[...] não vamos de antemão concluir que possa existir em parte alguma uma

obra que seja puramente lírica, épica ou dramática. Nossos estudos, ao

contrário, levam-nos à conclusão de que qualquer obra autêntica participa

em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e de que essa

diferença de participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já

realizados historicamente (STAIGER, 1997, p. 5).

Nessa perspectiva, fica claro que a pureza dos gêneros é uma assertiva contestável.

Assim, o trágico pode ser tomado como um elemento de composição ficcional em qualquer

gênero, desde que tal gênero provoque “piedade e terror” nos espectadores, no sentido

aristotélico. Sendo um recurso identificável em várias produções modernas, Nicola

Abbagnano (2007) regista em seu Dicionário de filosofia três interpretações do termo trágico:

“1: trágico é o conflito continuamente resolvido e superado na ordem perfeita do todo; 2:

trágico é conflito não solucionado e insolúvel; 3: trágico é conflito que pode ser solucionado,

mas cuja solução não é definitiva nem perfeitamente justa ou satisfatória” (ABBAGNANO,

2007, p. 1155).

Entre essas definições, pode-se atribuir à obra de Ronaldo Correia de Brito a

aplicação, com predominância, dos segundo e terceiro sentidos do trágico, exemplificados nos

vários contos com desfechos insolúveis ou não exatamente “justos”, embora aconteça em

menor proporção o primeiro, com narrativas que apresentarão uma superação de conflito.

Ronaldo Correia de Brito situa-se em nossas letras como um autor de uma obra

marcada pela influência clássica, em especial do mito e da tragédia. Tal influência não

corresponde aos aspectos formais da literatura ática, mas à composição temática e à

configuração de seus personagens dilacerados pela violência. A aproximação da obra de

101

Ronaldo Correia aos escritos dos gregos clássicos não se dá apenas no que diz respeito à

tragicidade de suas personagens, mas principalmente na acepção do trágico como uma

experiência humana comum em mundo hostil, inóspito e decadente.

O tom lírico, como já foi registrado neste estudo, é um traço na narrativa. O escritor

cearense depreende da matéria inóspita do sertão uma série de imagens memoráveis. Percebe-

se na linguagem utilizada uma preocupação com a palavra em seu ritmo e signo.

Partindo-se da premissa de que o texto contemporâneo é híbrido, encontra-se na obra

de Ronaldo Correia uma mescla dos gêneros épicos, dramático ou lírico. Há exemplos dessa

mistura de gêneros, ao longo das narrativas. Por exemplo, na lenda “Lua Cambará”, percebe-

se um tom épico e dramático na saga da heroína, destacando-se nessa história a influência do

trágico.

O trágico em Ronaldo Correia se faz presente na narrativa, principalmente no que se

refere aos personagens imersos numa vida absurda e solitária, e as responsabilidades, em

geral, estão centradas nos indivíduos com suas escolhas ou na ação do destino. Diante de

situações-limite, as quais atestam a incapacidade humana de solucionar tudo, resta aos seus

personagens a violência. É constante a fatalidade que agrava a vida dos seres ficcionais de

Ronaldo Correia: parricídios, fratricídios, violência, seres movidos pelo ódio e amores

abismais são alguns dos elementos que permitem configurar as narrativas do escritor cearense

em questão como trágica.

Diante disso, é possível estabelecer leituras na obra de Ronaldo Coreia, identificando

elementos trágicos que, de certa maneira, se aproximam da tragédia, e ao mesmo tempo

realizando a transgressão desses modelos utilizados, transformando-os de forma singular em

suas narrativas, quando os remontam dentro do universo sertanejo.

Vê-se contemplada, em Ronaldo Correia de Brito, uma literatura marcada por uma

representação do universo humano, a partir de caracteres singulares e bastante significativos

do sertão. Um espaço que se torna o palco de recepção das trajetórias de suas personagens, em

que o leitor é seduzido e conduzido para um universo de dores, trânsitos e surpresas. Para

tanto, o autor dialoga entre elementos tradicionais e modernos, combina realidades arcaicas

com atuais, construindo uma arte que vai além de tempos e localismos, sendo, por sua vez,

atemporal e universal.

102

O componente trágico na obra de Ronaldo Correia ganha seus próprios contornos,

assim como outras manifestações literárias influenciadas pela tragédia ática. Sílvia Helena

Simões Borelli (1995) afirma que os gêneros ficcionais só podem ser entendidos a partir da

análise de sua vinculação histórica, da produção, da recepção e da dimensão cultural de

determinada sociedade. Assim, a narrativa do escritor de Faca é uma reflexão de questões

contemporâneas, por meio de histórias que imprimem nos leitores uma tensão diferente dos

moldes do tradicional trágico utilizado pelos gregos, como afirmam Lígia Militiz da Costa e

Maria Luiza Ritzel Remédios:

A tragédia moderna do caráter distingue-se em geral da tragédia antiga do

destino; o destino moderno não é mais transcendente e dependente dos

deuses ou poderes acima dos deuses, mas está implícito no caráter do herói

[...]. O conflito trágico constrói-se no indivíduo; ele não possui a sensação

dos antigos de que vítima do destino. A tragédia moderna pressupõe um

mundo abandonado por Deus, ao passo que a tragédia grega era ainda em

parte, um culto. O herói agora está só (COSTA; REMÉDIOS, 1988, p.38).

A solidão, o isolamento, o abandono e a ausência de uma intervenção divina são

componentes presentes na composição do viver dos seres ficcionais de Ronaldo Correia. Os

elementos de uma religiosidade cristã até aparecem muito bem demarcados em alguns contos

como “Mentiras de amor” e “Inácia Leandro”. No entanto, o agravo sofrido pelas personagens

aponta para um universo desterrado ou abandonado por Deus.

Ampliando a discussão sobre o conceito de tragédia/ trágico, o crítico literário inglês

Raymond Williams (2002), em sua obra Tragédia Moderna, atualiza o termo tragédia,

ampliando a possiblidade de aplicação desse termo para várias obras modernas e não apenas

ao gênero da literatura clássica ática. Assim, a tragédia conota vários sentidos, ela pode ser

uma experiência, um conjunto de obras, um conflito ou um problema acadêmico, por

exemplo. Uma experiência que consiste na distância entre o desejo do homem e sua

resistência ao sofrimento.

Em nossa cultura, o termo tragédia se tornou corriqueiro. Dessa forma, acontecimentos

como “um desastre numa mina, uma família destruída pelo fogo, uma carreira arruinada, uma

violenta colisão na estrada” (WILLIAMS, 2002, p.30) são intituladas de tragédias. Essas

experiências, por vezes, vivenciadas na dimensão individual, concorrem com o conceito de

tragédia construído pelos gregos na Antiguidade, numa dimensão cultural coletiva.

103

Ainda de acordo com o teórico inglês, a tragédia conserva em sua composição a

dimensão de um conflito insolúvel, resultado do choque entre um mundo externo com suas

regras e um universo pessoal em constante devir. Os desdobramentos de uma personagem

trágica estão sempre relacionados à loucura, ao suicídio, ao assassinato. A trama de uma

tragédia sempre é tensa e culmina no sucesso ou insucesso da personagem central. Essa

atmosfera de tensão provocada pelo trágico produz a catarse, como efeito da purificação ou

alívio das emoções atrelado a uma reflexão de algum aspecto da condição humana imersa no

horror, na morte ou na destruição.

Esse entendimento de tragédia corrobora o alinhamento da produção contemporânea de

Ronaldo Correia à concepção de tragédia moderna, porque suas narrativas são exemplares na

demonstração de seres sucumbidos pelo horror, pela destruição moral e pela morte. Loucos,

amantes incondicionais, parricidas, fratricidas povoam o cenário ficcional do escritor com

seus conflitos insolúveis.

A reflexão de Raymond Williams (2002) em torno da tragédia busca um ponto de

interseção entre a tradição e a experiência. O autor problematiza o significado da “tradição”,

por não carregar um sentido claro e tampouco unívoco, servindo, a rigor, à manutenção de

uma ideologia que limita o sentido do trágico. Williams afirma que a única razão de

acontecimentos trágicos do cotidiano contemporâneo não serem considerados tragédias é a

ideologia de uma longa tradição europeia que tenta forjar uma continuidade. O teórico inglês

apresenta, no seu estudo, como a tradição é permeada pela mudança:

A palavra tragédia chega a nós a partir de uma longa tradição da civilização

europeia, é fácil ver essa tradição com uma importante continuidade. [...] E

no entanto as palavras “tradição” e “continuidade” pode nos levar a uma

abordagem completamente equivocada da tragédia. Quando começamos a

estudar a tradição, tornamo-nos imediatamente conscientes da mudança.

Tudo o que se pode considerar certo é a continuidade da „tragédia‟ como

palavra (WILLIAMS, 2002, p. 33).

Nessa perspectiva, a busca da construção de um conceito fixo de tragédia consiste em

“uma pressão para comprimir e unificar as variadas reflexões do passado em uma única

tradição, „a‟ tradição. No caso da tragédia, [...] a existência de uma tradição comum grego-

cristã” (WILLIAMS, 2002, p. 33). Em outras palavras, a compreensão do trágico recobre duas

interpretações, uma substantiva e outra adjetiva: a primeira está relacionada ao sentido do

trágico nos contornos do gênero textual específico (a tragédia clássica); a segunda se refere ao

sentido que o termo “trágico” assumiu na contemporaneidade, uma referência às desgraças e

104

às fatalidades do cotidiano. Assim, quando se fala em trágico, na atualidade, não se remete

exclusivamente ao gênero textual específico que se desenvolve no palco, mas se pensa como

um adjetivo que reflete uma realidade de desespero.

Alinhado às ideias de Raymond Williams, Albin Lesky (2003) afirma que não houve

uma sistematização do trágico pelos gregos, tampouco a construção de um conceito de

tragédia unívoco:

Os gregos criaram a grande arte trágica e, com isso, realizaram uma das

maiores façanhas no campo do espírito, mas não desenvolveram nenhuma

teoria do trágico que tentasse ir além da plasmação deste no drama e

chegasse a envolver a concepção do mundo como um todo [...]: a elevada

concepção do acontecer trágico, que se revela na tragédia clássica em

multivariadas refrações, mas sempre com majestosa grandeza, perdeu-se em

boa parte no helenismo posterior (LESKY, 2003, p. 27).

Segundo Williams (2002), durante o tempo de transição do período clássico ao

medieval, por exemplo, a função do coro na ação dramática perde sua importância como

manifestação de uma consciência coletiva nas tragédias, até ser descartada completamente em

detrimento da figura do herói e seu sofrimento. Já na renascença, a decadência do mundo

feudal proporcionou uma alternância de uma ideia de tragédia metafísica para crítica. Dessa

forma, nas peças, a figura do tirano (rei) era destacada com o objetivo de sensibilizá-lo por

meio da catarse. No período neoclássico, a secularização dos temas da tragédia se torna mais

forte e crescente, até chegar à “tragédia secular”.

Raymond Williams faz objeções acerca das definições clássicas de tragédia limitada a

“um gênero específico de arte dramática”. A primeira delas está relacionada com as fontes

que nos restou do trágico helênico, isto é, trinta e duas peças de um conjunto de cerca de

trezentas escritas apenas por Ésquilo, Sófocles e Eurípides e nenhuma escrita por outros

poetas trágicos. Questões tidas como basilares das produções trágicas, então, como “Destino,

Necessidade e a natureza dos Deuses” são produtos de uma interpretação estética ou técnica,

deixando de lado o caráter político, social, religioso e cultural que os poetas, atores e

espectadores consideravam na realização do espetáculo dramático.

A segunda objeção realizada pelo crítico inglês reside na importância do coro na arte

dramática para os gregos. Sem a presença do coro não se concebia a tragédia, pois nele se

concentrava a dimensão metafísica e social da tragédia, uma representação da coletividade no

palco. No entanto, o coro foi paulatinamente abandonado na arte trágica, como resultado de

uma realidade histórica que desmembrava a experiência individual da coletiva.

105

Dentro da dimensão estrutural, o coro, como a voz de uma moral coletiva, perdeu sua

funcionalidade, quando a concepção de sujeito foi construída como uma referência centrada

no individualismo (o que veio a ocorrer com a modernidade). Dessa forma, a narrativa de

Ronaldo Correia não se estrutura com a presença de um coro. Contudo, no sentido metafórico,

percebem-se inferências que delineiam os códigos morais que são construídos nesse universo

sertanejo de Faca, sendo por vezes alguns personagens secundários, ou o próprio narrador,

que inserem excertos os quais avisam, denunciam ou refletem sobre a transgressão desses

códigos.

São exemplos dessa espécie de transmutação do coro na narrativa de Ronaldo Correia

as personagens Irineia e a mãe de Ciça, respectivamente dos contos “A espera da volante” e

“Cícera Candoia”. A primeira era uma mulher considerada louca e a segunda, uma anciã,

personagens secundárias, mas que apresentam significativas inserções na trama. Irineia é a

porta-voz da proximidade do perigo para o protagonista, e é da boca da mãe de Ciça que o

trágico é sugerido.

Raymond Williams demonstra, por meio de suas objeções, como o conceito original

de tragédia foi se transformando, mesmo com a continuada tentativa de se manter um conceito

de tragédia. O distanciamento da concepção trágica do grego tem explicação nas mudanças

históricas. O mundo grego compartilhava de uma experiência social num sentido coletivo, na

transição do mundo clássico ao medieval; no entanto, a sociedade atual é atravessada pelo

caráter individual, o herói na contemporaneidade não representa mais um sentido coletivo:

“[...] a estrutura que agora conhecemos estava sendo ativamente formada: um homem

individualizado, com suas próprias aspirações, com sua natureza própria, inserido numa

situação que acaba por leva-lo à tragédia” (WILLIAMS, 2002, p.120).

Dessa forma, são conduzidas as personagens de Ronaldo Correria para a tragédia. São

suas escolhas, seus impulsos passionais, seus sentimentos exacerbados que os movem para a

cena trágica. Não há deuses regendo seus destinos, mas indivíduos centrados em suas próprias

referências, fazendo valer seus códigos.

Com a denominada tragédia secular foram colocadas em cena novas ideias morais e

metafísicas distintas do caráter religioso, como os helênicos do período clássico: “única

tragédia inteiramente religiosa”, surgindo assim a “justiça poética”, nas explicações de

Raymond Williams:

Significa dizer que aquele que é o mau sofrerá e o bom será feliz; ou antes

muito à maneira da ênfase medieval, que o mau terá uma má fortuna, neste

106

mundo, e o bom prosperará. [...] Assim, a catástrofe trágica ou conduz os

seus espectadores na direção do reconhecimento e da resolução moral, ou

pode ser inteiramente evitada, por meio de uma mudança de ideia ou

sentimento (WILLIAMNS, 2002, p.53).

O mundo repartido entre o bem e o mal torna-se limitado para explicar a dimensão

humana. Williams (2002) recorre a Hegel, para destacar que o importante da tragédia não é o

sofrimento, mas sim as suas causas. A partir dessa posição, “a moralidade comum”

relacionada com os princípios humanista e cristão foi rejeitada, centrando-se numa substância

ética que, por sua vez, é determinada pela cultura. Assim, pode-se compreender a tragédia

moderna como uma experiência possível na contemporaneidade.

Em Faca, de Ronaldo Correia (2003), o trágico é demarcado por contexto de violência

como instrumento para garantia de uma honra legitimada e lavrada pela violência. Dentro

dessa perspectiva, um universo bipartido não se encaixa, sendo as noções de bem e mal

diluídas. Diferente das narrativas da tragédia grega clássica, em que a hýbris (desmedida,

erro) conduzia o personagem ao infortúnio, a narrativa contemporânea de Ronaldo Correia

desmonta, por vezes, essa lógica. Nem sempre o trágico recai sobre aquele que comete uma

hamartía (falha trágica).

Nesse sentido, são exemplares os contos “Faca” e “Cícera Candoia”: no primeiro, o

trágico recai sobre Donana, uma dona de casa comum cuja única falta cometida era “existir”;

no outro, o final funesto é destinado à mãe da protagonista, que é punida pela sua condição de

anciã.

Ademais, vale ressaltar a peculiaridade da representatividade das mulheres em sua

contística. As personagens femininas também ora parecem contemplar arquétipos tradicionais

da literatura, ora transgridem por meio de suas ações, de maneira decisiva, nas representações

do feminino. Dentro dessa perspectiva, várias são as personagens as quais podem ser

elencadas em Faca, que contemplam essa afirmação, remontando a personagens míticas e/ ou

trágicas como Medeia, Electra ou Penélope.

5.1 UMA LUA SEM ESTRELAS: (RE)ESCRITURAS MITOLÓGICAS EM “LUA

CAMBARÁ”

A narrativa que encerra o volume possui o tom e o ritmo das narrativas orais. Iniciada

com o seguinte trecho “Meu pai jurou que viu”, retoma um tradicional recurso para garantir a

“autenticidade” das histórias populares, uma das principais características das narrações

107

míticas, conforme assegura Mircea Eliade (2011): “O mito fala apenas do que realmente

ocorreu, do que se manifestou plenamente” (ELIADE, 2001, p. 11_grifo da autora). O

contador de narrativas populares sempre apresenta seu causo como se fosse um depoimento,

seja seu, seja de alguém de prestígio, garantindo, assim, uma prova de “verdade” ao

acontecido. O conto traz amalgamado no seu enredo um misto de mitos locais e tradicionais

da literatura, e assim como a linguagem mítica cheia de símbolos, sinais que reescrevem

mitos locais e universais.

A história da cruel Lua Cambará é uma trama de fantasma, com uma protagonista fruto

de uma violência – sua mãe foi atacada pelo senhor das terras, Pedro Francelino Cambará, e

dessa relação nasce Lua. A narrativa é contada por meio de uma fragmentação da narrativa e

da polifonia de narradores – ora um menino conduz o enredo, ora é o pai, ora é um empregado

(Lobo Guará). Nesse conto, Ronaldo Correia delineia uma narrativa entrecortada pela força da

oralidade, da vida popular, do erudito e do clássico, por meio de camadas intertextuais que se

superpõem, dando os contornos da história da bastarda que herdou as terras paternas, contra o

desejo dos familiares do pai.

Antes de ser publicada, em 2003, na coletânea Faca, a história de Lua, escrita na

década de 1970, ganha diversas performances artísticas, tendo seu enredo adaptado para as

linguagens teatrais, cinematográficas, corporal e musical36

. Entre as questões tratadas na

trama da narrativa, destaca-se um universo patriarcal em tensão com o universo feminino,

uma sociedade de base escravocrata e de leis arregimentadas pela truculência. Essa tensão

entre os universos feminino e masculino remonta à teoria da Ginecocracia do mundo pré-

clássico. Próximo ao pensamento de Johann Jakob Bachofen, Junito de Souza Brandão (1985)

registra uma das leituras possíveis da trilogia Oréstia37

de Ésquilo, cujas peças delineiam uma

representação da luta entre o matriarcado e o patriarcado.

36 O conto “Lua Cambará” foi produzido em 1970 e entre os anos de 1975 e 1977 ganha contornos de roteiro

cinematográfico, com Brito e Horácio Carelli na direção e Avelina Brandão no papel-título, já em 1979 é

realizada uma versão televisiva pela TV Cultura, sob a direção de Marcelo Pinheiro e a trilha musical de Lua

Cambará foi gravada em disco por Antonio Madureira, Assis Lima e Ronaldo Correia em 1990.Ainda em 1990 a

produtora Sopro-de-Zéfiro encenou a ópera balé Lua Cambará depois disso a narrativa ganhou uma nova versão

em 2001, intitulada Lua Cambará: Nas escadarias do Palácio sob a direção Rosemberg Cariry com Dira Paes e

Chico Dias nos papeis protagonizando a película. Em 2010, uma nova encenação da ópera balé foi montada por

professores e alunos do projeto Aria Social, comemorando os 20 anos da primeira versão do espetáculo de dança.

37 A Oréstia de Ésquilo, encenada em 458 a.C., consta de três tragédias de assunto correlato: Agamêmnon,

Coéforas e Eumênides.

108

Brandão (1985), a partir das pesquisas de Bachofen, registra que, em épocas muito

remotas, as relações sexuais eram bastante promíscuas, sendo por isso o parentesco

matrilinear o único vínculo inquestionável. Dessa forma, a mulher era a base central da

consanguinidade e, por conta disso, tornou-se uma autoridade no espaço familiar, social e,

sobretudo, no religioso. Acreditava-se que a religião olímpica dos deuses de cima Apolo,

Zeus, Atená fora precedida por deusas que figuravam a imagem materna: Deméter, Perséfone

e Erínias, até que a ginecocracia foi derrota pela androcracia: o patriarcado substitui o

matriarcado propondo uma nova ordem social:

Com a vitória do patriarcado rompe-se a era do amor, do éros e instala-se o

logos, [...] já que uma das características mais acentuadas do matriarcado,

alicerçado religiosamente nas deusas-mães, é o amor. [...], a cultura

patriarcal se caracteriza pela importância dada aos laços de sangue, vínculos

estreitos com o solo, a Terra-mãe universal, e por uma aceitação passiva de

todos os fenômenos naturais. O patriarcado ao revés, se distingue pelo

respeito à lei e à ordem; pelo predomínio do racional e pelo esforço para

modificar os fenômenos naturais. Dentro de tais princípios, na sociedade

matriarcal todos os homens são iguais, por isso que todos são irmãos; na

patriarcal o que se postula é obediência à autoridade e uma ordem

hierárquica na sociedade. O matriarcado é universalismo, o patriarcado é a

limitação (BRANDÂO, 1985, p. 28-29).

É na dinâmica do universo patriarcal de limitações, imposto a uma mulher, que Lua

Cambará experiencia e subverte o sistema. A protagonista viriliza-se para estabelecer seus

direitos de herdeira, ela incorpora a lógica do opressor e assume o papel de algoz.

O valor do mito assume o proscênio no enredo e é demarcado desde o nome da

protagonista. O termo “lua” funciona como arquétipo feminino, por conta da sua influência

nas mulheres. O simbolismo da lua é muito amplo, complexo e considerado como importante

em diversas culturas e com influências cientificamente comprovadas na dinâmica do planeta;

o satélite natural contribui para o amadurecimento das plantas e o crescimento dos animais.

Isso também contribui para explicar o importante papel das deusas lunares: Ishtar, Hathor,

Anaitis, Artemis.38

38. As Deusas Lunares caracterizam-se por meio dos aspectos da natureza feminina e representam os estágios e

as transformações na vida da mulher. Em diversas culturas as deusas relacionadas com a lua são conhecidas por

traços ligados às fases da Lua.

109

De acordo com Juan Eduardo Cirlot (1984), a percepção humana da força da lua sobre

a Terra é encontrada nas mais remotas civilizações, por meio das observações das relações

existentes entre a lua e os mares; pelo seu influxo no desenvolvimento de algumas plantas e

animais e do ciclo fisiológico da mulher. Assim, a lua tornou-se “Senhor das mulheres”. A

sua aparição, em periódicas fases aos olhares humanos, motivou diversas narrativas míticas

como nos mitos e lendas de “fiandeiras”. Desde quando o sentido patriarcal sobrepôs-se ao

matriarcal, associou-se o caráter feminino à lua e o masculino ao sol. Ainda para Cirlot

(1984):

Hoje admite-se de modo geral que ritmos lunares foram utilizados antes que

os solares para dar a medida do tempo. É possível ainda a coincidência no

mistério da ressurreição (primavera, após o inverno, florescimento depois do

gelo, renascer do sol depois das trevas da noite, mas também “lua nova” e

crescente). [...]. O papel regulador da lua aparece também na distribuição da

água e das chuvas, e por isso ela se destaca bem cedo como mediadora entre

a terra e o céu. A lua não só mede e determina os períodos mas também

unifica-os através de sua ação (lua, águas, chuvas, fecundidade da mulher,

dos animais e da vegetação). Porém, acima de tudo, é o ser que não

permanece sempre idêntico a si mesmo mas experimenta modificações

“dolorosas” em forma de círculo clara e continuamente observável

(CIRLOT, 1984, p.352).

Assim se modela a personalidade da protagonista que se apresenta em fases, fazendo

jus ao seu nome: “tinha um ciclo lunar e variava a cada lua” (p. 147). Diversas também são as

suas aparições na narrativa, desde quando criança faminta regando o sangue nas testas mortas

de sua mãe, passando com uma jovem viçosa de beleza singular, chegando à maturidade com

uma mulher bela e cruel e culminando com uma aparição na versão de uma velha de aspecto

fantasmagórico e paradoxalmente encantadora.

A lua em sua manifestação em fases, por analogia, reverbera em diversas relações

como as estações anuais, as idades do homem, ao crescimento (juventude, maturidade), bem

como à decrepitude (maturidade, velhice). A partir dessa crença mítica, acreditava-se que a

etapa de invisibilidade da lua correspondia à da morte no homem, como é aludido no conto de

Ronaldo Correia, como uma espécie de presságio, de mau agouro: “Eram três dias em que a

lua morre. O vento da noite tarde já soprava com força” (BRITO, 2003, p. 142).

Não é difícil encontrar narrativas tradicionais que remontam ao valor mítico da lua.

Entre os registros encontra-se a lua como país dos mortos, como receptáculo regenerador das

110

almas, “círculo supremo”. Em outras palavras, sua função consiste em reabsorver as formas e

voltar a criá-las. “Só que está além da lua ou acima dela transcende o devir”. Cirlot (1984),

seguindo o pensamento de Plutarco, afirma que “as almas dos justos purificam-se na lua,

enquanto seu corpo volta à terra e seu espírito ao sol. Assim a condição lunar equivale à

condição humana” (CIRLOT, 1984, p.352).

A personagem que dá título ao conto é uma personificação do próprio mito na sua

manifestação do “eterno retorno”. Suas ações e sentimentos remontam míticas personagens

como Medeia, Medusa ou Lilith39

, que parecem ser cíclicas na história da humanidade. No

início da narrativa, Lua surge como um espectro assustador para um narrador ainda menino

que escutava a história de seu pai antes de adormecer. A saga sertaneja Lua é apresentada

numa terra demarcada pelo patriarcalismo e pela truculência dos coronéis. Ela nasce da

violência sexual de um coronel a uma escrava, numa simbólica noite de lua cheia. Bastarda e

filha única de um senhor latifundiário, é reconhecida apenas nos últimos instantes de vida do

pai, sendo obrigada a renegar suas raízes negras e a assumir a posição tirânica de seu pai. Para

Gustavo Henrique Ferreira (2012):

A lenda de Lua Cambará revela também os aspectos de um Brasil mestiço

que, de muitos modos, sente vergonha de si (e nega a si) mesmo; e cujo

desfecho se encontra na procissão de almas penadas que vagam, sem

descanso, no cortejo fúnebre dessa imperatriz sertaneja, Déspota de um

latifúndio, no final do período escravagista, cujos feitos em vida se somam

às narrativas de uma nunca morte; numa região dominada por conflitos e por

mitos, em que senhores das terras são também a lei e os sujeitos que definem

os caminhos das vidas e das mortes alheias, mesmo que sem possuir

qualquer domínio sobre as suas próprias mortes (FERREIRA, 2012, p. 83).

O sertão de Lua em Lua Cambará se inscreve nos tempos heroicos, fundando no mito

de “Uma terra estranha [...]. Seca e cortada por ventos. Sujeita a mistérios e acontecimentos

funestos. Filhos perdidos dos pais, gerados por obra de deuses, voltavam para cobrar seus

direitos” (BRITO, 2003, p. 146).

39 Lilith seria uma mulher criada ao mesmo tempo que Adão, antes de Eva. Ela teria sido criada durante o

período noturno, a partir do barro, da mesma forma de Adão. Por isso, costumava-se dizer que ela e Adão eram

iguais, já que ambos vieram da terra. Lilith queria liberdade de escolha. Queria os mesmos direitos do homem.

Deus cria Eva a partir da costela de Adão como modelo feminino: uma mulher submissa e direcionada para o lar.

Enquanto Lilith é a força destrutiva, Eva é construtiva. Representa o ódio contra a família, ódio aos casais e aos

filhos, é comparada a Lua negra, à sombra do inconsciente, ao obscuro.

111

E é nessa atmosfera mítica marcada pelos acertos de conta e de muita violência que

Lua reivindica sua herança. Com o sangue derramado do seu tio e com uma guerra com os

demais parentes, ela garante suas posses, cumprindo um destino trágico e sobrenatural. Para

Mircea Eliade (2011), o mito é uma configuração cultural extremamente complexa, que se

desdobra em múltiplas perspectivas de interpretação e conexões, ele é considerado como um

relato sagrado registrado no “tempo primordial”:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido em

um tempo primordial [...] O mito narra como, graças às façanhas dos entes

Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o

Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um

comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de

uma „criação‟; ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

[...] Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são

conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestimoso dos

“primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e

desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas

obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas e algumas vezes

dramáticas, irrupções do sagrado (ou sobrenatural) no Mundo. É essa

irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo [...] é em razão das

intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser

mortal, sexuado e cultural (ELIADE, 2001, p.11).

Essa é a história de Lua Cambará, a fundação de um ente Sobrenatural que vaga pelo

universo do sertão de Inhamuns. A causa para tal destino da protagonista reside nos frutos de

maldade de sua vida e, principalmente, de uma maldição proferida pela sua rival no amor. A

protagonista, por não ter a correspondência do seu amado (João Índio), parece experimentar o

mesmo sentimento de Medeia, quando rejeitada pelo seu amado (Jasão). No conto, a

personagem enlouque e embrutece no seu amor e ceifa a vida da esposa de João Índio (Irene),

como num ritual de sacrifício presidido por Lua:

− Ele [João Índio] não será meu. Que não seja dela [Irene], também. Vai

com dois homens, dos melhores. Faz com ela o que fazem com os cabritos

nos sábados. Quando passares a faca pelo seu pescoço, diz: “Com a mesma

compaixão que sangro uma cabra, eu te sangro” (BRITO, 2003, p. 155).

Diante de tamanha violência e força, resta a Irene apelar para as forças do

sobrenatural, de modo que ela utiliza a maldição como forma de revide, de defesa contra a

crueldade de Lua:

112

Irene só poderia valer-se da maldição, essa força profética que na boca das

mulheres selou a ruína de muitos.

− Eu rogo às forças do mundo que essa mulher tenha o mais terrível dos fins.

Que morra com as entranhas queimando e que a morte seja apenas o começo

do seu penar. Que nem o céu, nem a terra e nem o inferno a queiram. Que

ela vague para sempre (BRITO, 2003, p. 158).

E dessa forma Lua cumpre sua punição, torna-se uma alma a vagar pelo mundo,

sempre acompanhada por um cortejo de amortalhadas assustando os povos do sertão e

protagonizando relatos assustadores daqueles que a encontravam em noites de amplo lunar. A

ideia de “viagem” à lua depois da morte está presente em diversas culturas como a da Grécia,

da Índia, do Irã, funcionando como uma etapa de purificação da alma/espírito, de acordo com

Cirlot (1984). Essa crença é retomada na narrativa de Ronaldo Correia, mas para demonstrar

que o corpo/alma numa teve (re)pouso, como é registrado no conto: “Todos os seres viventes,

quando morrem, antes de irem se purificar no sol, passam três dias na lua. Tu [Lua],

desgraçada, não irás a lugar nenhum (BRITO, 2003, p. 164).

E assim, a protagonista é acorrentada em um não-lugar num tempo sem fim. Não

pertencente ao mundo dos vivos e não pertencente ao universo dos mortos, ela é um vulto

suspenso na vaguidão das terras sertanejas. Lua Cambará é uma personagem de carências,

num universo de ausências e negativas. Ela perde sua mãe ainda bebê, é obrigada a negar suas

origens, é impelida a se virilizar para viver, sem parentes, sem amigos e amor. Uma mulher,

enfim, sem o direito de ter uma vida e uma morte plenas.

Em nossa leitura, a figura de Lua rememora a personagem mítica Medusa. Sua

aparição fantasmagórica provoca nos seres uma fixação em sua imagem, uma espécie de

encantamento, como é registrado por um dos personagens da narrativa, o Doido Guará:

− Quem vai lá? – gritamos, Argemiro, Bispo e eu (Doido Guará), querendo

que o cortejo não se fosse. Deseja ver de perto aquela mulher diabólica. –

Seu avô me falou dela. Ele também viu ao assombro. Nunca mais foi o

mesmo homem. Ficou esquecido de viver. Voltava sempre ao mesmo ponto,

nas noites que não tinha Lua. E a morta nunca mais veio. Apareceu a mim.

Pode aparecer a você. Um dia quem sabe... (BRITO, 2003, p. 150, grifos

nossos).

A narrativa em destaque enfeixa uma série de influências de ordem erudita e popular,

na qual encontramos registros que se assemelham às narrativas de cavalaria medievas, à

113

história de Carlos Magno e os Doze Pares. São citadas também as histórias de heróis – como

Alexandre, o Grande e seu amigo Hefestião – e de poetas gregos como Tíndaros, de Tebas.

Nessa escrita palimpséstica, recobertas de mitos, de tragédias e de códigos sertanejos, o

escritor cearense tece uma cartografia ficcional do mito e, com isso, uma escritura de um

lócus com suas marcas, particularidades, significados e interpretações de um mundo

desterrado, isolado e profícuo em personagens e história.

O mito revela ou funda uma sociedade e fornece mecanismo de interpretação de uma

cultura. Assim é a utilização do mito nas narrativas de Ronaldo Correia, que se alinha à

função registrada por Mircea Eliade:

Sua função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma

significação ao Mundo e a existência humana. Daí seu papel na constituição

do homem. Graças ao mito, [...] desponta lentamente as ideias de realidade,

de valor, de transcendência. Graças ao mito, o Mundo pode ser discernido

como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo. Ao narrar

como as coisas foram feitas, os mitos revelam por quem e por que o foram, e

em quais circunstâncias (ELIADE, 2011, p. 128).

E a partir dessa estrutura é revelado o sertão de Ronaldo Correia com suas tragédias,

sua violência, seus códigos, suas fantasmas, suas mulheres virilizadas, loucas, solitárias e

poderosas.

5.2 O FEMININO COMO ELEMENTO CORTANTE: ABANDONADAS, SOLITÁRIAS,

LOUCAS E FORTES

O termo feminino é “extremamente comprometido com uma carga semântica

mistificadora. Uma longa tradição o tem como sinônimo de delicado, superficial e

sentimentalóide” (XAVIER, 1991, p.11). Elóide Xavier, no entanto, discute o caráter de

protagonismo, no qual a voz feminina tece representações de níveis discursivos mais

complexos, que merecem um melhor tratamento no estudo da literatura, porque fornecem

representações relevantes para uma leitura mais apurada do (con)texto.

Níncia Cecília Teixeira (2009), estudiosa das representações do feminino na literatura,

alinha-se às ideias de Xavier (1991). Para Teixeira (2009), a linguagem literária é entrelaçada

de paradigmas, signos e discursos que denunciam ou anunciam ideologias de uma sociedade:

114

Por meio da representação, fundam-se os paradigmas do espaço, do tempo,

da compreensão da matéria, do signo, da representação, das linguagens, do

discurso e do conhecimento. A representação é uma forma de se fazer

apresentar o objeto da materialidade crua do mundo, para inseri-lo na trama

do signo, da palavra, e, assim, outra vez apresentá-lo. A representação é da

ordem do signo ou simbólico, do real possível e do imaginário (TEIXEIRA,

2009, p.84).

A ficção encena assim um papel de representação simbólica do social, embora nem

sempre o faça em sua totalidade, mas pode-se afirmar que o discurso literário aponta

preocupações com a verossimilhança. Dessa forma, a ficção não contrapõe a realidade, mas

consiste numa outra dimensão de apresentá-la, sendo o universo construído na literatura

resultado da plasticidade do artista. A linguagem eleita pelo escritor ficcional sempre é uma

construção metafórica e sinuosa e, por vezes, labiríntica em seu conteúdo e sua forma. No

entanto, sua escritura não deixa de estabelecer, de certo modo, relações com a realidade de um

momento histórico e cultural.

Dentro da nossa realidade histórica, o registro da presença da mulher como sujeito

apresenta lacunas, e sua presença na literatura é marcada por uma imagem díade e

contraditória (mas ambas formatadas pelo crivo masculino e legitimada na sociedade), ora

como a mulher idealizada, a inocente, a mãe perfeita, dedicada ou a divinizada; ora como a

sedutora, a bruxa ou a femme fatale. Na literatura brasileira, inúmeras representações que

contemplam tais tipos sociais não espelham, evidentemente, a realidade e funcionam apenas

como clichês formatados pela sociedade. Dentro dessa realidade, Ívia Alves (2012) assinala

três modelos de representação do feminino na nossa literatura.

De acordo com a pesquisadora baiana, configuram-se nesse contexto a “mulher-anjo”,

“a mulher-sedução” (ambas aceitas pela sociedade) e a terceira, a “mulher-demônio”, a

excluída, porque representa a mulher tentação. As representações femininas indesejadas, por

transgredirem a ordem estabelecida, eram inicialmente designadas pelas prostitutas. No final

do século XIX, tal classificação se amplia também para as mulheres intelectuais e todas que

resistiam a comportar-se conforme o paradigma idealizado e imposto socialmente.

Muitas dessas construções eram atreladas também a caracteres físicos os quais eram

sempre os mesmos para cada representação acima. As mulheres intelectuais, por exemplo,

sempre eram descritas como as feias, destituída de sensualidade; as prostitutas eram figuras

descritas por suas formas corporais exageradamente voluptuosas. A representação do

115

feminino compõe um cenário, no qual novas concepções estão em voga, colocando a mulher

num corpus narrativo de maneira diferenciada, como assinala Cíntia Schwantes (2006):

A representação do feminino é regida por convenções que enfrentam

mudanças significativas ao longo do tempo. Isso se deu conforme as

possibilidades socialmente abertas à mulher se foram ampliando em

consequência do acesso ao mercado de trabalho e ao ensino superior, e a

inserção em uma ordem social mais ampla, como o configurado pela

conquista do voto feminino (SCHWANTES, 2006, p.8).

De fato, na literatura encontramos costurados ao enredo muitos estereótipos, símbolos,

preconceitos que são possíveis e úteis para relacionar com o real. Dessa forma, o texto

literário pode ser mais um instrumento de pesquisa de um sistema, uma concepção, religião

ou uma sociedade e até suas relações de gênero.

Nas obras literárias, é possível perceber, a partir do ficcional, atitudes e

comportamentos socialmente construídos, justamente em virtude de a literatura não se limitar

numa reconstrução da realidade calcada em “verdades absolutas”. Livre das amarras do

estatuto da verdade, a literatura apresenta uma escritura sígnica repleta de símbolos,

arquétipos e papéis que escamoteiam a realidade. Situações encenadas pelas personagens da

ficção dão voz às mulheres, dinamizando um cenário de muitas indagações, e não somente

para a perspectiva feminina, mas igualmente para várias questões sociais e culturais.

Ronaldo Correia apresenta mulheres que ultrapassam tais limitações de representações

polarizadas: anjo ou demônio; por meio de personagens poderosas, imprevisíveis, fortes,

enfim reais, tais como Cícera Candoia e Inácia Leandro, que dão nome aos contos; além de

Francisca Justina, de “Faca”; Aldenora Morais, em “A escolha”; ou Delmira de “Mentira de

amor”, fomentando por meio dessas personagens um portentoso corpus textual de figuras que

condizem com representações do feminino na secura de suas vidas, como de fato é a condição

humana: limitada, instintiva, imprevisível e diversa.

As representações do feminino, nesta seção, não implicarão um estudo das relações e

performances de gênero ou feminismo, mas um recorte que analisa o lugar de destaque das

mulheres em narrativas que são atravessadas pelo ranço do patriarcalismo. O que desperta a

atenção especial nas narrativas de Ronaldo Correia é a força feminina na condução da trama,

116

mulheres que transgridem, por veze, sutil ou ferozmente os ditames de uma sociedade

patriarcalista.

As mulheres do sertão ficcional de Ronaldo Correia povoam um contexto que se

assemelha ou se aproxima do paradoxal ambiente da Grécia antiga, misógino e ao mesmo

tempo marcado pela força e mistérios do feminino. Susana de Castro (2011), em sua pesquisa

sobre a presença das mulheres nas tragédias gregas, problematiza como a sociedade ateniense

– androcêntrica em sua essência – registrou um significativo número de heroínas trágicas.

Assim ela sintetiza a questão:

A sociedade ateniense era androcêntrica, o que significa, em termos

concretos, que entre outras coisas, as mulheres não possuíam direitos

políticos garantidos e não tinha direitos políticos garantidos e não tinham

direito a herança; elas podiam se divorciar, mas a guarda dos filhos ficava

com o marido; [...] A vida toda, deviam obedecer a dois homens, ao pai e ao

marido, a quem eram entregues virgens, junto com um dote, pelo pai. [...]

Quando estavam em público, não tinha o direito a defender suas posições.

Silêncio e invisibilidade caracterizam as virtudes apropriadas às mulheres

(CASTRO, 2011, p.23, grifos da autora).

Mesmo dentro dessa realidade há um número relevante de mulheres no protagonismo

da arte trágica dos gregos, o que constitui uma contradição. Uma hipótese levantada por

Susana de Castro (2011), para entender essa relação, está na história dos precursores das

civilizações gregas que mantinham há 4 mil anos uma cultura moldada fortemente pelo

feminino. A pesquisadora destaca que, ao observar as descrições das divindades femininas,

percebe-se uma associação com características totalizadoras da natureza. Afrodite é a deusa

da união amorosa; Hera ministra a fecundidade, o nascimento e o casamento; Deméter rege a

fertilidade e Hécate é a divindade da morte, enfim, elemento de domínio sobre a dinâmica da

natureza.

Esse poder associado às divindades femininas está relacionado a um culto dedicado à

Grande Deusa que teria imperado durante milênios, no período pré-helênico. A Deusa

representaria a união de todos os elementos e domínios da natureza, estes partilhados

posteriormente às deusas gregas. Ainda de acordo com a pesquisa de Susana de Castro:

117

A natureza e a terra foram associadas à imagem de uma mãe doadora de

bênçãos e alimentos e, por isso, a figura feminina, única capaz de gerar a

vida em seu corpo, recebeu a primazia na ordem religiosa e social da

comunidade. Não havia a figura masculina no universo religioso das culturas

agrícolas primárias. Ao longo desse período, de pelo menos 4 mil anos,

foram criadas lendas e relatos sobre a Grande Deusa e sobre forma de

intervir no mundo dos humanos, regulando os processos vitais da natureza e

dos seres humanos, de nascimento, morte, fertilidade e renovação

(CASTRO, 2011, p. 27).

Essa relação desdobrou-se nas tragédias áticas por meio de personagens femininos que

contrapõem seu contexto androcêntrico, ganhando visibilidade e importância na ação trágica.

No universo ficcional de Faca, as mulheres experimentam um contexto semelhante.

Atravessadas pelos códigos do patriarcado sertanejo, elas rompem, por vezes, tais amarras

sociais.

O destaque efetuado no feminino, nesta seção, não implicará uma segmentação ou

polarização extremada entre os seres ficcionais masculinos e femininos na obra em questão.

Tal recurso consiste apenas numa ordenação de cunho metodológico, para uma melhor

explanação, sistematização e clareza nas exposições realizadas ao longo das análises

efetivadas. Ao pôr em relevo algum personagem feminino, não se negligenciarão suas devidas

contextualizações e suas relações dialógicas intrínsecas na trama.

No conto inicial, “A espera da volante”, há tipos sociais desprestigiados pela

sociedade fomentada na lógica do discurso capitalista: um velho e uma “louca”, pois os

consideram inaptos para “produzirem”. No entanto, o velho assume o protagonismo do

enredo, e a personagem Irineia, considerada “uma doida varrida” por todos da região, tem um

papel de destaque permeado por uma atmosfera carregada de misticismo no conto de Ronaldo

Correia de Brito.

Irineia é influenciada por poderes sobrenaturais, o seu temperamento oscila

constantemente por uma dinâmica mística baseada nas sucessões da lua que, por sua vez, tem

um emblemático significado que ainda perdura nas narrativas e no imaginário popular. Jean

Chevalier e Alain Gheerbrant atribuem à lua capacidades intuitivas e visionárias, que

reverberam de acordo com as suas fases. Alinham-se, também, às atribuições místicas

conferidas aos loucos durante a Idade Média os estudos de filósofo francês Michel Foucault

(2011[1971]).

118

Foucault amplia a discussão apresentando os diversos mecanismos de repressão do

discurso. O autor apresenta o princípio de exclusão e interdição, pois em nossa sociedade é

sabido por todos que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em

qualquer circunstância, que qualquer um, enfim não pode falar qualquer coisa” (FOUCAULT,

2011[1971], p.09). Tais questões são sintetizadas como “tabu do objeto”, “ritual de

circunstância” e “direito privilegiado ou exclusivo”. A política e a sexualidade consistem em

dois exemplos pertinentes de tabus (ou interdições) que apontam para o estreitamento entre o

discurso, o desejo e o poder, ou seja, os discursos são pautados numa busca por esses dois

últimos elementos. Outro procedimento de exclusão apresentado pelo autor é a separação e a

rejeição.

A segregação funciona, assim, como um elemento seletivo. Foucault aponta a

oposição entre razão e loucura, na qual o discurso do louco deve ser rejeitado, por não

apresentar um alinhamento com os discursos validados na sociedade. Dessa forma, segrega-se

o louco por falta de possibilidade de “autenticação” do seu discurso, como acontece com a

personagem Irineia, no conto de Ronaldo Correia. Para a produção de discursos de valia na

sociedade, Foucault destaca que são necessárias condições para que os indivíduos os

formulem. Trata-se, portanto, de determinar pressupostos de seu funcionamento, que impõem

aos sujeitos regras e, consequentemente, uma seleção dos mesmos, isto é, nas palavras do

autor, “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não

for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2011[1971], p.37).

Com sua atenção no trato da casa, Irineia se torna uma espécie de “braço direito” do

Velho nas atividades domésticas. “Irineia doida varrida para todos, mas sempre tão sã para o

velho” (FACA, 2003, p. 11). Essa mulher, apesar de atuar na narrativa como coadjuvante,

configura-se como peça importante na trama, pois ela porta uma informação crucial para a

trama, ela sabe que a volante policial está caminho da casa do Velho, por ter certeza de que lá

é o esconderijo do fugitivo.

Mesmo sendo considerada uma moça de juízo desaprumado, Irineia escolhe o

momento certo de revelar a notícia e reflete introspectivamente sobre os fatos passados e

presentes e projeções para o futuro daquela casa, do seu morador e da sua visita perigosa e,

principalmente, a volante policial que procura com voracidade o bandido que o Velho

escondia em sua casa, correndo os riscos das consequências de tal atitude.

119

Irineia pensava na notícia. A lua era minguante e sua cabeça estava com todo

o juízo, os pensamentos em correta ordem. Os dias de alvoroço haviam

passado com a lua cheia. Cumprira o tormento de mulher atada à sina de

uma loucura. Agora pensava no Velho, na maldade que o espreitava. Que

poderiam contra aquele homem que olhava sereno para frente, como quem

tudo vê? Os soldados da volante entrariam pela casa, quebrariam o seus

exíguos pertences, teriam a sensação de tê-la devassado (BRITO, 2003,

p.13).

A personagem parece fazer, assim, uma espécie de previsão, diante da iminência do

trágico naquela casa, antes de revelar a notícia ao Velho, num diálogo seco e cortante:

− Ele [Chagas Valadão] morte feia, ajudado por outros dois. Pediram

arrancho numa fazenda e, na calada da noite, mataram os seus donos e um

filho rapaz. Tinham intenção de roubo, mas não encontraram nada.

Derramaram sangue em vão – falou Irineia e mexeu-se no canto onde estava.

−Eu não vi os olhos dele. Vi a vontade de escapar, de curar as feridas e

matar a sede e a fome. Só depois que ele me contou tudo, eu enxerguei o

crime (BRITO, 2003, p. 14).

Irineia parece assumir a função do coro nas tragédias clássicas, que nas entrelinhas

apresentava a consciência coletiva e, dessa forma, apontava o erro do protagonista e as suas

desastrosas consequências. Efetuado esse papel, o coro desaparecia de cena, assim como

Irineia depois do revelar ao Velho o perigo que lhe espreitava, por conta do foragido que ele

abrigava em casa.

Além da loucura que periodicamente lhe domina em noite de lua cheia, o narrador nos

fornece informações que apontam para atenuantes dos percalços no viver de Irineia, quando

aborda, por exemplo, a sua necessidade de descanso, só encontrado na casa do seu patrão, o

Velho: “Irineia podia descansar o corpo dos espinhos, aprumar a cabeça no rumo de

pensamento certo. Eram tantas as estradas corridas, tão raros os pousos como a casa do

Velho” (FACA, 2003, p.14); mais adiante:

Irineia aparecia sempre, escapada dos cães, das estradas, da perseguição dos

homens que queriam deitar com ela, do ciúme das mulheres abandonadas

pelos maridos. Na casa do Velho, descansava o corpo maltratado, sentindo-

se salva de todos os perigos [...], a casa do Velho, repouso dos medos

(BRITO, 2003, p.16).

120

Percebemos, a partir dessas passagens, que Irineia constitui-se uma guerreira na luta

da vida diária, no qual o destino, os homens e as mulheres, todos são seus inimigos. E assim,

enquanto a lua cheia não chega para cumprir seu ciclo, Irineia segue suas veredas sempre

entoando uma cantiga alegre que de longe se escuta, como quem tenta afastar ou contrapor as

agruras do seu viver, por isso “cantarolava sempre. Galhinhos de manjericão nos cabelos, fitas

de cores nos braços, caminhava livre pelas estradas”. E enquanto a lua cheia tardava, Irineia

aproveitava o seu tempo para “[...] para afazeres certos, ganhar um comer no trabalho

alugado. Uma cesta que nunca largava enchia-se do que ia encontrando pelos caminhos:

molambos, pedaços de papel, xícaras sem aro, trapos de seda, caixinhas vazias de pó e ruge.

Era tempo de se pôr bonita e andar” (BRITO, 2003, p. 16).

Irineia é uma personagem que remonta à figura dos andarilhos do sertão, tidos como

doidos, desajuizados, conhecidos pelos habitantes da região em suas mendicâncias de

alimento e trabalho diário. São figuras ícones em qualquer cidadezinha, portando suas sacolas,

bolsas, sacos, caixas ou carrinhos de carga para guardar/acumular suas tralhas recolhidas

aparentemente a esmo.

Do conto homônimo ao livro, destacam-se duas marcantes personagens femininas:

Donana e Francisca (filha de Donana). A primeira é marcada pelo abandono, desprezo e

traição do marido, mas que buscava no prazer palatal um elemento compensatório para

superar, por meio do fruto acre-doce do umbuzeiro, a ausência carnal e afetiva do marido:

Ela chupava toda a safra de um umbu. O fruto azedo era sua vingança. O

riacho que corria atrás da casa, o único deleite. Tomava banho nua, os

cabelos boiando na correnteza. Só essas horas conseguia esquecer o marido

que tardava (BRITO, 2009, p.27).

Donana é uma sertaneja simples e sem vaidades, religiosa e dedicada ao trato do lar.

Essa personagem é marcada por uma sofrível espera pelo marido. No conto, embora ela seja

tratada como uma personagem secundária, com falas escassas e pouca ação, configura uma

representação exemplar de submissão ao patriarcal.

A segunda, Francisca Justino, é uma mulher cauterizada por uma atitude paradoxal,

pois ao mesmo tempo em que chora o assassinato da mãe, assume vorazmente a postura de

defesa do assassino (que tragicamente é o seu pai). Ela impede com sua força que os tios

121

maternos vinguem a irmã punida com a morte injustamente, pelo marido adúltero: “─ Não

matem meu pai ─ gritou Francisca desesperada. [...] A filha partiu para cima dos tios e

conseguiu arrancar das mãos deles o punhal que matara sua mãe” (BRITO, 2003, p.26).

Francisca porta-se diferente da sua mãe, é uma mulher altiva, corajosa, de fibra. Ela

figura uma representação de transgressão do sistema patriarcal. Ela não hesita em enfrentar os

tios, dois homens de músculos tonificados pela labuta do campo, e nem recua diante da velada

relação hierárquica entre sobrinha/mulher e tio/homem. Atitude que soa com admiração e

destaque do narrador, ao revelar que todos duvidavam de que Francisca tivesse força para

tomar a faca das mãos dos tios e arremessá-la tão longe.

O que surpreende no seu perfil, além da postura de defesa ao pai, é seu poder ante aos

homens da casa. Ela não somente consegue tomar à força o punhal do crime das mãos dos

tios, mas também é capaz de contorná-los, mesmo no fervor do ódio gerado naquele

momento, impedindo-os que matem o seu pai naquele momento. O objetivo de Francisca é

defender a vida de seu pai. O narrador demonstra isso de forma reflexiva nas últimas linhas do

texto; o pai, com essa atitude, consegue sair dessa situação vivo, mas não ileso: “[...] visto

pela última vez numa manhã nublada, o corpo branco, do tempo que ficou sem tomar sol.

Morto, certamente. Ou esquecido, como o punhal que os ciganos largaram no terreiro”

(BRITO, 2003, p.33).

A atitude dessa personagem remonta à personagem mítica Electra, tema de uma peça

do dramaturgo trágico Sófocles. Electra sofre com a morte de seu pai, Agamêmnon,

tragicamente assassinado pela sua esposa (mãe de Electra) e pelo amante. Embrutecida pelo

sofrimento, ela recorre à vingança. Na narrativa do escritor cearense, Francisca não comete

nenhum assassinato, mas defende ferozmente seu pai, para que a vingança de seus tios não

ocorra, uma atitude que provoca estranhamento, porque sua mãe foi vitimada injustamente

nessa tragédia, no sentido atribuído por Raymond Williams.

No conto “A escolha”, temos outra figuração feminina que se alinha à postura da

personagem Francisca Justino, no que refere à transgressão de uma conduta esperada do seu

contexto social. A protagonista, Aldenora Novais, compõe um triângulo amoroso com Luís e

Livino, figuras que apresentam comportamentos polares. A distinção do caráter desses

personagens remonta às antípodas figuras míticas de Dioniso e Apolo. Enquanto Luís

Silibrino representa a figuração da embriaguez, da desmedida, da agressividade, da

passionalidade, Livino Gonçalves configura uma imagem de sobriedade, moderação e razão.

Friedrich Nietzsche ([1872] 2013), em O nascimento da tragédia, retoma os

personagens Dioniso e Apolo como a expressão do desenvolvimento da arte. Para o filósofo,

122

Dioniso e Apolo compõem um antagonismo que se manifesta constantemente em sucessivas

disputas e reconciliações. Nas próprias palavras do autor:

Esses dois instintos tão diferentes caminham lado a lado, na maioria das

vezes, em guerra aberta, e incitando-se mutuamente para novas criações,

sempre mais robustas, para perpetuar nelas o conflito desse antagonismo que

eu designativo “arte”, comum a ambos, somente encobre; até que,

finalmente, por um milagre metafísico da “vontade” helênica, aparecem

acoplados e, nesse acoplamento, geram então a obra ao mesmo tempo

dionisíaca e apolínea da tragédia (NIETZSCHE, [1872] 2013, p. 45).

Nessa duplicidade, ambas as manifestações foram importantes para a concepção da

arte helênica. O filósofo amplia a discussão para toda criação artística, porque manifesta a

polaridade do espírito apolíneo e dionisíaco. O primeiro, pautado em critérios de harmonia; o

outro, o negador de qualquer limite. O artista tomado pelo instinto apolíneo interpreta a vida

como se fosse um sonho; o domado pelo dionisíaco vive como num estado de embriaguez.

Apolo busca a medida correta de todas as coisas, figura-se livremente, mas sempre de acordo

com as regras da natureza. Assim, ambos os aspectos são necessários à arte, porque o espírito

dionisíaco deve ser balanceado pelo seu oposto. Ainda de Acordo com Nietzsche, o único

momento histórico em que tal sentido foi experimentado plenamente foi na Grécia pré-

socrática, instante em que se deu o nascimento da tragédia.

Ricardo Piglia (1994) sugere a tese de que “um conto sempre conta duas histórias”

(PIGLIA, 1994, p. 37). A partir dessa compreensão, pode-se ler uma narrativa sempre com

um caráter duplo, e a afirmação do teórico argentino recai no conto “A escolha”, já que nele é

possível relacionar, por meio dos interstícios da história sobre a fatídica escolha do Aldenora

Novais, uma alusão ao traço apolíneo e dionisíaco da arte, defendido por Nietzsche.

Diferentemente da experiência helênica, no caso da protagonista de “A escolha”, a

duplicidade é inconciliável.

Aldenora, dividida entre Luís e Livino, que numa perspectiva alegórica remonta às

antípodas Dioniso e Apolo, precisa escolher em definitivo e, por isso, sua decisão culmina

com o trágico.

A personagem protagonista Lua firma um perfil forte, mítico e marcante de heroína

trágica, no sentido de Raymond Williams (2002), isto é, um indivíduo sozinho, em seus

dilemas individuais. Lua Cambará encerra o livro de narrativas como uma mulher virilizada,

uma sertaneja que só consegue imprimir sua vontade na força num universo marcado pela

truculência patriarcal. Compõe-se, dessa forma, um elenco de mulheres que respondem ao seu

123

mundo inóspito do sertão também pelo código da violência, pois somente assim escolhem,

decidem ou burlam seus destinos.

Essas personagens não limitam seu existir em condutas convencionalizadas pela

sociedade, ou em apresentar somente postura delimitada pela submissão aos valores

patriarcais; tampouco resignação diante dos fatos. Na contística de Ronaldo Correia são

evidenciadas mulheres que, em sua maioria, são marcadas pela ruptura ou transgressão de

modelos ou expectativas nelas imputadas. Visualiza-se, dessa forma, um elenco feminino que

sabe, em sua maioria, escolher, e não se contenta em ser sombra ou ficar com as sobras.

Sejam quais forem suas sinas, ou papéis desempenhados na sociedade, essas mulheres

conseguem quase sempre confirmar o seu caráter de guerreiras, valentes e fortes. Tanto no

labor doméstico quanto na administração dos negócios ou nas posses da família, assim como

conselheiras (ou acompanhantes) ou na condução de suas vidas solitárias, o que prevalece é a

definição dada, sugerida ou imposta por elas na maioria das narrativas. Essas mulheres fortes

e solitárias, mesmo com o isolamento conseguem converter sua solidão em ações sempre

carregadas do sentimento de vingança, conduzidas sempre no limiar de um acontecimento de

fundo trágico.

Em alguns dos melhores relatos, em que se destacam mulheres fortes e

solitárias, abandonadas a si mesma em seu encerramento, como em “Cícera

Candoia” e “Inácia Leandro”, a espera, ao assimilar o movimento cíclico,

somente acumula a substância negativa das noites e dos dias nos gestos

ritualísticos da existência comum, até o desfecho fatal, quando o crime ou

o motivo romanesco da vingança retornam com a sua periodicidade sinistra

para cortar os nós cegos da vida familiar. Algo parecido se poderia dizer de

“Lua Cambará” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 2003, p.177).

Nesses contos destacados por Davi Arrigucci Júnior no posfácio, o tempo funciona

para essas fortes mulheres abandonadas como uma espécie de catalisador para uma vingança

efetivada com mais afinco e precisão contra aqueles que as rejeitaram ou provocaram seu

infortúnio. Cumprem dessa forma um papel crucial nos desfechos de suas histórias, sendo,

muitas vezes, aquelas que protagonizam a ação trágica e reverberam no último ato do palco da

vida/ficção.

124

6 UM GUÉNOS SERTANEJO: DERRADEIRAS CONSIDERAÇÕES O sertão é o Brasil profundo, misterioso, como o oceano que os argonautas

temiam navegar. Chega-se a ele acompanhando os cursos dos rios,

perdendo a memória do litoral

(BRITO, 2008, p.225).

Guénos é um termo que remonta a um conjunto familiar na antiga Grécia e suas

relações. No universo sertanejo de Ronaldo Correia, suas personagens compõem, de certa

forma, um núcleo familiar e suas heranças, pois a relação de seus personagens, quando não se

constitui familiar, é regional ou é construída pela memória. Dessa forma, conflitos, maldições,

amores e ódios são constantemente retomados, assim como a natureza do mito que apresenta

uma dinâmica cíclica, num “eterno retorno”, como destaca Mircea Eliade (2011).

No recorte utilizado para o presente estudo, foi possível perscrutar um itinerário em

uma obra de portentosas imagens de um universo sertanejo ficcional que deslinda dilemas do

universo humano (paixões radicais, vingança, violência). Com elenco composto por

sertanejos, velhos, loucas, tropeiros, mulheres míticas, virilizadas ou cativas, Ronaldo Correia

compõem projeto estético que supera a dimensão regionalista, no que se refere a uma

representação do sertanejo com um ser rude, impenetrável ou iletrado.

Com essa reinserção do sertão na literatura contemporânea, o autor em questão

apresenta um sertão profícuo, assim como o sertão de Guimarães Rosa, que, no dizer de

Benedito Nunes (2013), é definido como um “Sertão-mundo”, um “Sertão-palavra” ou, ainda

na definição de Biagio D´Angelo (2011), como um “Sertãotal”:

O sertão apresentado por Guimarães Rosa, que é um território que foge dos

estreitos e revisitáveis conceitos de regionalismo, localismo, nacionalismo,

é, antes – poderíamos dizer – um território “informe” (irregular, inóspito,

sem forma alguma) que “informa” da inevitável busca o sentido da

existência, por meio de uma geografia linguística (D´ANGELO, 2011, p.

160).

As características da produção de Rosa, elencadas acima, se aproximam da escritura

de Ronaldo Correia. O autor cearense apresenta também uma narrativa demarcada por um

território que transcende os lugares comuns da literatura dita regionalista e demonstra que da

125

realidade sertaneja é possível percorrer uma reflexão universal da existência humana, por

meio de uma geografia de contornos míticos.

Com efeito, o escritor cearense apresenta uma narrativa erigida pelo mito e pela

estrutura das narrativas orais do universo sertanejo. Ao recorrer aos mitos locais e universais,

Ronaldo de Correia traça uma literatura que contempla o narrar como “veículo” de

experiência e sabedoria, assim como salienta Walter Benjamin (1994) em “O narrador”: “A

experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E,

entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais

contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1994, p. 198).

Para o crítico alemão, o ato de narrar consiste numa arte, e aquele que a conduz é um

artífice da palavra, o qual busca no popular a matéria-prima para sua produção. Nas palavras

de Benjamin, “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas

camadas artesanais” (BENJAMIN, 1994, p. 214). Assim são compostas as camadas da

literatura de Ronaldo, uma combinação do clássico e do popular que explora as diferentes

dimensões humanas.

A linguagem mítica remonta à poesia, traço igualmente presente nas composições em

estudo. O mito traz uma linguagem simbólica, construída por meio da fantasia, apresentando

o indizível, o impossível de se representar nos limites impostos pela lógica discursiva da

racionalidade (lógus). Dessa forma, a narrativa de Ronaldo aproxima-se da poesia, ao unir a

palavra e a imagem, iluminando e eternizando um instante, no sentido de Octávio Paz (1982).

Assim também são compostas as narrativas de Ronaldo, que explora o mito com suas

manifestações de profícuas imagens e símbolos.

Além da emblemática presença da linguagem mítica, nota-se na ficção desse escritor

uma forte presença feminina com grande relevância na condução das narrativas construídas

ou resgatadas pela memória do autor cearense. Tais personagens femininas mesclam posturas

de submissão e transgressão da imposição dos sistemas patriarcais; no entanto, destacam-se as

transgressoras, aquelas que num mundo de carências e ausências precisam também da

violência para estabelecer seus domínios e o seus espaços, a exemplo de Lua Cambará e

Cícera Candoia.

Outro traço da narrativa de Faca, que merece destaque, é o tempo que o narrador

imprime na narrativa, o qual conduz o leitor para uma atmosfera semelhante à das narrativas

126

orais. Por meio de elementos prosódicos, de termos expressivos e de uma ordenação de

acontecimentos, o narrador/contador arrebata o leitor/ouvinte da história até o último

acontecimento. Passado e presente se articulam por meio na linguagem do mito, para

reverberar memórias atávicas do homem.

Em Faca, cada frase é carregada de signos, configurando o “leitor detetive”, no

sentido atribuído por Ricardo Piglia (2006). O crítico argentino compara o leitor a um detetive

do gênero policial, porque, de certa forma, em seu ato de leitura, busca constantemente nas

palavras impressas no papel decifrar os signos nelas inscritos. Nessa perspectiva, todo leitor

assume um papel atuante no processo de composição e significação no processo literário.

Assim é o volume de contos estudado, no qual o peso do signo se faz presente desde o

pequeno título que enfeixa o volume até as nuances dos cenários precisamente engendrados.

No percurso pela obra de Ronaldo Correia de Brito, buscou-se uma leitura que

contemplasse sua inserção na literatura contemporânea, destacando seus principais traços

estéticos, dos quais a figuração do sertão, a condução do trágico e a força feminina nas

narrativas tiveram um destaque nesta pesquisa.

O trágico confirma-se como um componente que conduz as narrativas. O tom funesto

nas mãos do narrador constitui um recurso primordial. A morte ou a reflexão que ela produz

promove um impacto ao leitor/ espectador da narrativa. De acordo com Benjamim (1994), o

tema centrado na morte estabelece uma autoridade ao narrador: “A morte é a sanção de tudo o

que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras:

suas histórias remetem à história natural” (BENJAMIN, 1994, p. 208).

Ronaldo Correia demonstra na sua escrita os rastros de suas leitura e fontes para a sua

produção ficcional, assim como no palimpsesto genettiano as camadas textuais (re)montam a

outros textos, sua origem geográfica e sua formação artísticas. O sertão talhado pelo escritor

pesquisado é um lócus de incertezas, ausências e carências, povoado por homens e mulheres

marcados pela violência.

No caminho enveredado neste trabalho investigativo, foi necessário no primeiro

momento situar Ronaldo Correia de Brito na literatura contemporânea, escritor ainda pouco

conhecido do público geral. Nesse cenário da literatura atual, o único consenso é o

reconhecimento da multiplicidade de formas e tendências, como acentua Beatriz Rezende

(2008). Ronaldo Correia inscreve uma produção idiossincrática demarcada pelo universo

127

sertanejo e assim demarca seu espaço na literatura atual, de forma distinta. Enquanto muitos

elegem os cenários urbanos e contemporâneos, Ronaldo prefere o retorno ao sertão arcaico.

Seguindo a trilha da obra e da escrita de vida do autor cearense, chamou-nos atenção

as premiações literárias acumuladas pelo escritor desde suas primeiras produções, apesar do

número relativamente pequeno de livros publicados. Fato que, na contemporaneidade, pode

ser considerado positivo diante da multiplicidade de escritores e publicações que buscam ser

reconhecidos no mercado editorial. Seguramente, essas premiações deram visibilidade ao

projeto estético de Ronaldo Correia de Brito.

Como derradeiras considerações deste trabalho, pode-se afirmar que Faca é exemplar

para uma discussão teórica da produção literária contemporânea. Nas mãos do escritor

cearense, o sertão é retomado ao cenário atual da literatura de forma peculiar, distinta dos

moldes regionalista. Ronaldo constrói um lócus existencial, trágico, um palco para os dilemas

humanos.

Ao considerar o conjunto da obra analisada, é também possível afirmar que Brito está

em pleno vigor de sua produção literária e já aponta, ao olhar da recepção crítica, para uma

profícua produção na prosa ficcional da literatura brasileira contemporânea. Diante da

qualidade estética do autor em questão, resta-nos como leitores a expectativa de novas

produções.

Percorrer o sertão trágico, mítico e feminino de Ronaldo Correia é uma experiência

literária que remonta à sabedoria dos grandes narradores orais e destaca sua importância para

a sociedade, alinhando-se à defesa das narrativas realizada por Benjamim (1994). A leitura da

obra estudada é uma imersão nas memórias do universo do autor, mas que aporta nas nossas,

de seres igualmente atravessados pelas incertezas, pelas cisões, pelo trágico e pela

implacabilidade da morte que ainda (ou sempre) nos assusta.

128

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