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UMAPARÓDIAMUSICAL:THESOUNDOFHAMLET,deMYA
GOSLING
AMUSICALPARODY:THESOUNDOFHAMLET,BYMYAGOSLING
RebecaPinheiroQueluz1
RESUMO: Este artigo pretende analisar The Sound of Hamlet, uma paródia em quadrinhoselaboradaporMyaGoslingapartirdatragédiashakespearianaHamletedofilmeTheSoundofMusic, dirigido por RobertWise. Nessa perspectiva, usaremos como base a reflexão de LindaHutcheonsobreparódia.Observaremoscomo,deformahumoradaeirônica,acartunistainsereas canções de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II em pontos-chave da narrativa,acrescentandoasuainterpretaçãosobreasobraseatualizandoosdoistextos.Palavras-chave:paródiashakespeariana;quadrinhos;TheSoundofMusic.ABSTRACT:ThisarticleaimstoanalyzeTheSoundofHamlet,acomicstripparodywrittenbyMyaGoslingofShakespeare’stragedyHamletandRobertWise’sfilmTheSoundofMusic.FromthisperspectivewewilluseLindaHutcheon’sreflectiononparodyasatheoreticalground.Wewillobservehowthecartoonistinserts, inahumorousway,thesongsofRichardRodgersandOscar Hammerstein II into key points of the narrative, adding her interpretation about theworksandupdatingthetwotexts.Keywords:Shakespeareanparody;comics;TheSoundofMusic.
INTRODUÇÃO
Este texto tem por objetivo apresentar e discutir uma história em
quadrinhos criada porMyaGosling, uma jovem cartunista que até pouco tempo
trabalhavacomobibliotecárianaUniversityofMichiganGraduateLibrary.Hoje,ela
___________________________1DoutorandaemLetras,UFPR.
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sededicaintegralmenteaosseus“stickfigureShakespearecomics”2,graçasaum
sistemadepatronagem—emqueGoslingseapresentaparaopúblicoesolicitao
patrocíniomensalparaoseutrabalho—edavendadeprodutos(comopôsteres,
camisetas,quadrinhoseadesivos)relacionadosaosseuscomics.
Inicialmente,GoslingpublicouseutrabalhonoFacebookpara,depois,criar
um blog específico para seus webcomics, denominado Good Tickle Brain. Esse
título,comonosinformaaprópriaautora,éuminsultoshakespearianopresente
nafaladeFalstaff(HenriqueV,ato2,cena4):“—Peace,goodpint-pot.Peace,good
tickle-brain!”.Noblog,predominamquadrinhosquetematizamaspeçasdobardo
inglês, mas também há espaço para miscelânea. As atualizações, nessas e em
outrasredessociais(comoInstagrameTwitter),ocorrempelomenosduasvezes
nasemana,àsterças-feiraseàsquintas-feiras.
AseçãointituladaThree-panelplayséamaisdifundidapelainternetefoio
trabalho que gerou o reconhecimento de Mya Gosling. Brincando com o
pressupostodequeaspessoasnãotêmtempo3paraleraspeçasdeShakespeare,a
cartunistaresolveuresumi-lasemtirasdetrêsquadros,comosepodeobservarna
figura1.
Figura1:Hamletem3quadros.Fonte: <http://goodticklebrain.com/shakespeare-index/#/three-panel-plays/>. Acesso
em:03/03/2017.___________________________2Disponívelem:<http://goodticklebrain.com/about/>.Acessoem:02/03/2017.3NaspalavrasdeMyaGosling,“notimetoreadallofShakespeare’splays,butstillwanttoknowwhathappensinthem?I’vegotyoucovered”.
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Ao condensarHamlet, a autora destaca o tema da vingança proposto pelo
fantasmadopaideHamlete,também,aindecisãoeainaçãodoprotagonistaque
revela primeiro, pormeio de seus solilóquios, a sua intensa inclinação reflexiva
(alternandoentrea introspecçãoeofuror)e, finalmente,realizaatarefadaqual
foiincumbido.
SegundoBarbaraHeliodora,Hamleté
[...]definitivamente uma tragédia de vingança, gênero de característicasaltamente específicas, de modo senecano. O gênero tem, na dramaturgiaelisabetana, um grande número de exemplos, porém só em A TragédiaEspanhola,deThomasKyd,enopróprioHamletestarãopresentestodososseus aspectos, ou seja, o aparecimento de um fantasma pedindo vingança,umvingadorqueprotelacomhesitaçãoocumprimentodatarefaquelhefoiimposta,loucurafingidae/oureal,planejamentoprolongadoe,finalmente,aexecuçãodavingança.(HELIODORA,2004,p.137).
Apesar de não mencionar personagens como Laertes e Gertrudes, por
exemplo, no terceiro quadro, ao lado da cena em queHamlet assassina seu tio,
percebemosapresençadeseuscorposinerteseensanguentados.Serecordarmos
a segunda cena do quinto ato, emque ocorre umduelo entreHamlet e Laertes,
observaremos que o último, por sugestão de Cláudio, trapaceou ao utilizar uma
espadacompontaenvenenadadurantealuta.Hamletéferido,mastambémfereo
oponente, e ambosmorrem em decorrência do veneno. Gertrudes, por sua vez,
bebe, em honra a seu filho, de uma taça envenenada por Cláudio— que queria
garantiramortedeseusobrinho.
Pode-se deduzir, então, um comentário da cartunista sobre a violência
presente nessa tragédia sangrenta, na qual morreram, além dos personagens
acima citados,Hamlet pai (assassinado),Ofélia (suicídio), Polônio (assassinado),
Rosencrantz e Guildenstern (assassinados). Ainda, é importante notar como se
destacam as expressões faciais e corporais dos personagens, principalmente de
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Hamletque,alémdeapresentarexpressõessignificativas,utilizaumtrajenegro,
evidenciandoseulutoeasuamelancolia.Esseclimaemocionaldedepressãoem
queopríncipeseencontraénotadodesdeamortedoseupai,comoficaevidente
noprimeiromonólogoqueeleenuncia(ato1,cena2).
Asíntesedatragédiadinamarquesaétambémumcomentáriocríticoquea
cartunistafazsobreaobra.Afinal,considerandooconceitodeadaptaçãoproposto
porLindaHutcheon (2011),pode-seafirmarqueGosling realizaumato criativo
queoperaumprocessoespecíficodeleitura,interpretaçãoerecriaçãoapartirde
um trabalho anterior. É uma repetição com diferença, não uma réplica, um
compromisso intertextual como trabalhoadaptado.E,nessaobrapalimpséstica,
quantomaior a familiaridade do leitor com Shakespeare,maior será o proveito
dosquadrinhosdeGoodTickleBrain, presentes tantonessa seçãodas tiras com
trêsquadros,quantonasdemaisseções4.
Neste artigo, abordaremos sob a perspectiva da paródia uma história em
quadrinhosintituladaTheSoundofHamlet(algocomoOprínciperebeldeouOsom
___________________________4 EmGeneral Shakespeare, Gosling apresenta criações que têmalguma relação coma obra dobardo. Podemos citar as Selfies Shakespearianas(http://goodticklebrain.com/home/2013/11/11/shakespearean-selfies) e as AutocorreçõesShakespearianas (http://goodticklebrain.com/home/2014/9/21/shakespearean-autocorrects-part-1),ambasdivididasemseispartes.Naprimeiraseção,Goslingimaginaquetipodefotosospersonagensshakespearianospostariamnasredessociais,propondoatémesmohashtagsparaassituaçõeseapelidosparaospersonagens.Hamlet,porexemplo,vira“princeofden”eemsuaselfie aparece com a caveira de Yorick: “Pic of me and my old jester @DeadYorick#graveyardselfie #depressing #tagforlikes”. Já na segunda, a cartunista imagina as confusõesquetransparecemnasfalastrocadaspelospersonagensviaWhatsappapartirdoautocorretordo aplicativo. Usando o príncipe da Dinamarca mais uma vez como exemplo(http://goodticklebrain.com/home/2015/6/24/shakespearean-autocorrects-part-4), GoslingconcebeumacenaemqueHamletrecebeumamensagemdofantasmadopaiviaWhatsapp,naqual ele se identifica como “thy father’s sprout”. Em seguida, escreve: “SPIRIT. Thy father’sspirit”. Numa terceira mensagem, se justifica afirmando que “Sorry, it’s hard to type whileincorporeal”.Hamletperguntaoquesepassaeopairespondequequerqueofilhovingue“hisfoul and most unnatural burger”, ao que Hamlet indaga “burger?”. O pai, sem se dar conta,repete: “burgermost foul”e,depois, sinalizandoqueentendeuqueamensagemestavaerradaescreveemcaixaaltaapalavra“MURDER”eterminaxingandooautocorretor.
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de Hamlet— tradução da autora). Para tanto, dialogaremos com a perspectiva
teóricadapesquisadoracanadenseLindaHutcheonsobreparódia,apresentando
brevementeesseconceito.
1. PARÓDIA:UMAPERSPECTIVATEÓRICA
EmumaobrachamadaUmateoriadaparódia:ensinamentosdas formasde
arte do século XX, LindaHutcheon teoriza sobre esse gênero que foi descrito ao
mesmotempocomosintomaecomoferramentacríticadoepistemamodernista.
Ela defende que a paródia não é simplesmente parasitária e derivativa, uma
imitação ridicularizadora,mas umprocessode transferência e de reorganização
do passado que tende a desmistificar o “nome sacrossanto do autor” e a
dessacralizar a origem do texto (HUTCHEON, 1985, p. 16). É, a seu ver, um ato
críticodereavaliaçãoeacomodaçãoquecombinaelogioecensuraequeapresenta
umcaráterautorreflexivoeintertextual.
SegundoHutcheon(1985,p.17), “oqueénotávelnaparódiamodernaéo
seu âmbito intencional do irônico e jocoso ao desdenhoso ridicularizador. A
paródia é, pois, uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica,
nem sempre às custas do texto parodiado”. Ela é uma repetição com
distanciamento e consciência crítica, que sinaliza a diferença ao invés da
semelhança. É uma abordagem criativa e concomitantemente um produto da
tradição. Sendo assim, “não se trata de uma questão de imitação nostálgica de
modelospassados:éumaconfrontaçãoestilística,umarecodificaçãomodernaque
estabeleceadiferençanocoraçãodasemelhança” (p.19).Aparódiaseapropria
dasconvençõesdeumperíodoanteriorelhesconferenovossentidos.
Ainda,ateóricacanadenseseservedeumacitaçãodeThomasGreene(1982
apudHUTCHEON,1985,p.20)paradestacarque“todaaimitaçãocriativamistura
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a rejeição filial com o respeito, tal como toda a paródia presta a sua própria
homenagem oblíqua”. Entre os inúmeros exemplos que ela cita em seu texto,
encontram-sealgumasmençõesaparódiasshakespearianas.Aprimeiradelaséa
tragicomédia deTomStoppard,Rosencrantz e Guildenstern estãomortos (1966),
que explora o destino de duas personagens secundárias deHamlet a partir de
fragmentosdecenasdooriginal.Nassuaspalavras,nessapeçaexisteumatensão
entreotexto“queconhecemos(Hamlet)eoqueStoppardlhefaz.Semprequeum
acontecimentoédirectamentetiradodomodeloshakespeareano,Stoppardserve-
sedaspalavrasoriginais.Mas“transcontextualiza-as”atravésdaadiçãodecenas
queoBardonuncaconcebeu”(p.25).Paracontraporesseexemplo,fazmençãoa
Macbett de Eugène Ionesco em que, conforme Hutcheon, ocorre uma inversão
totaldadicçãoedovalormoraldaspersonagens.
SegundoMarinaBentoVeshagem,
Macbett é de 1972 e propõe o que parece, a princípio, uma paródia deMacbeth, peça deWilliam Shakespeare, de 1606. O dramaturgo adapta osnomesdospersonagenseconservaaestruturanarrativabásicadeMacbeth,masapresentaapeçaemumtomporvezessatírico.Achavedeleituraqueescolho, capaz de ver a diferença, de enxergar outras possibilidades alémdaquela do consenso, é a interpretação ‘Patafísica do texto’. (VESHAGEM,2016,p.664).
Hutcheon também cita a obra de Peter Blake, On the Balcony5 (1955), e
assinalaque:
[...] as quatro crianças sentadas seguram um postal ou reprodução de LeBalcon,deManet,umagravuradeRomeueJulieta,sugerindoafamosacenada varanda (também há uma flâmula de Verona noutra parte) e duasfotografiasdafamíliareal.Oclichédosamantesnavarandareecoanasduaspombas fora do pombal. Este tipo de complexidade faz da paródia umavariaçãosobreaquiloqueGarySaulMorson(1981,48-9)designaporuma“obralimite”outextoduplamentedecodificável,emboraestasobraspossam
___________________________5 Essa obra está no museu de arte moderna do Reino Unido, Tate: <http://www.tate.org.uk/art/artworks/blake-on-the-balcony-t00566>.Acessoem:17/03/2017.
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sermelhordescritascomosendopossuidorasdeumacodificaçãomúltipla,especialmente por que as convenções, bem como textos particulares, seencontramenvolvidoscomfrequência(HUTCHEON,1985,p.25).
Nessesentido,aparódiaservepararessacralizaroudessacralizarumaobra
ou um autor, ou seja, ressalta uma mudança, mas não uma submissão. Há,
portanto,nesseprocesso,umarelaçãoestruturale funcionalderevisãocrítica.A
paródia,navisãodeHutcheon, “podeserumacríticaséria,nãonecessariamente
aotextoparodiado;podeserumaalegreegenialzombariadeformascodificáveis.
O seu âmbito intencional vai da admiração respeitosa ao ridículo mordaz”
(HUTCHEON, 1985, p. 28). Seria, então, uma mescla de imitação, admiração e
escárnio. Ainda, a autora acentua o poder transformador da paródia por criar
novassínteseseapontaquesetratadeumaformadedialogiatextualnostermos
deBakhtin.NostermosdeGenette,Hutcheonpercebeaparódiacomoumarelação
estruturalou formalentre textosquese inter-relacionam,masmaisdoque isso,
buscam “parodiar outra obra (ou conjunto de convenções) e tanto um
reconhecimento dessa intenção como capacidade de encontrar e interpretar o
textodefundonasuarelaçãocomaparódia”(p.34).
Por fim, a teórica reitera a importância do leitor no processo de
reconhecimento do texto com o qual a paródia dialoga. Dito de outromodo: “o
processodecomunicaçãoécentralparaacompreensãodaparódia”,sendoassim,
“os textos só podem ser entendidos quando situados contra os cenários das
convenções de onde emergem e (...) os mesmos textos contribuem,
paradoxalmente,paraoscenáriosquedeterminamosseussentidos”(HUTCHEON,
1985,p.36).Nesteartigo,veremosaindacomootextodeMyaGoslingparodiaa
tragédia dinamarquesaHamlet e omusical Sound of Music criando uma síntese
dessasobrasapartirdoseupontodedistanciamentocrítico.
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2. LITERATURA,CINEMAEQUADRINHOS:THESOUNDOFHAMLET
TheSoundofHamletfoiumtrabalhodesenvolvidoporGosling,entre31de
março de 2015 e 14 demaio domesmo ano, para celebrar o aniversário de 50
anos da produção cinematográfica de The Sound of Music (A noviça rebelde, no
Brasil)dirigidaporRobertWise.OmusicalcontoucomJulieAndrewsnopapelda
noviça Maria e com o ator shakespeariano, Christopher Plummer, no papel do
capitãovonTrapp.
É válido lembrar que o consagradomusical norte-americanoThe Sound of
Music baseou-se no livro de memórias The Story of the Trapp Family Singers6
escritoporMariavonTrappeéumaadaptaçãodomusicalhomônimoqueestreou
na Broadway em 1959. Com o roteiro adaptado a partir do libreto do musical
escrito por Howard Lindsay e Russel Crouse, o filme vale-se das canções de
Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II. Nele, é apresentada a história da
aspiranteafreiraquesetornagovernantanacasadeumex-capitãodamarinha,
viúvo e com7 filhos. Sua chegada na casa dos von Trappmuda completamente
aquele lugar sem vida, sem carinho, sem amor, sem atenção e semmúsica. De
início, desafiado por Maria, o capitão se rende aos seus encantos e os dois se
apaixonamesecasamapósmuitasconfusões.
EssahistóriasedesenvolvenaÁustrianoiníciodaSegundaGuerraMundial
eculminanafugadafamíliavonTrappparaaSuíça,depoisdaanexaçãodopaís
pela Alemanha nazista (chamada de Anchluss, ocorrida em 1938), devido à
___________________________6 Segundo Roger Lerina, “A Noviça Rebelde é baseado no livroThe Story of the Trapp FamilySingers,emqueMariavonTrapp(1905—1987)contaahistóriadesuafamília,obrigadaafugirdaÁustriadepoisdaanexaçãodopaíspelaAlemanha,em1938,devidoàposturaantinazistadopatriarcaGeorgLudwigvonTrapp(1880—1947).Porcontadasdificuldadesfinanceirascomadepressãomundialde1930,osVonTrappcomeçaramacantarempúblicoparaganhardinheiro—oque lhes trouxe tambémfama,aindaqueoorgulhosooficialdamarinhaaustríaca ficasseconstrangidocomasituação”.Disponívelem:<https://goo.gl/JsBDKj>.Acessoem:03/03/2017.
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convocaçãodocapitãopelamarinhaalemã.Ao longodanarrativa,amúsica tem
um poder humanizador que confronta esse ambiente sombrio e militarista do
filme e é tida como o agente transformador do mundo em que vivem os
personagens. Canções como Do-Re-Mi, My Favorite Things, So Long, Farewell,
Maria,ClimbEveryMountaineSixteenGoingonSeventeensãolembradasatéhoje
porseudestaquenessapelícula.
Postoisso,naquadrinizaçãodeMyaGosling,atragédiadeHamletédividida
em 23 partes em que se distribuem as músicas do filme e os episódios que
ocorrem nos cinco atos da peça shakespeariana. Os temas abordados são os
mesmos da tragédia: assassinato, usurpação, vingança, loucura, inação, morte,
desejo. A linguagem utilizada pela cartunista é coloquial7, ainda que recupere
algumasdas falasmaisconhecidasdos leitores(como“Tobeornot tobe” [parte
10],“Gettheetoanunnery”[parte11],“Arat!Dead,foraducat”[parte13])eque
acrescentepronomesutilizadosnaspeçasdobardo(como thee, thou e thy). Isso
fazcomquehajaumaaproximaçãoentreopúblicoeaobraapresentada.
Alémdisso,Goslingrevisitaasduasobrascomumolharcontemporâneoe
insere o seu olhar crítico, por exemplo, em relação ao papel dasmulheres8 nas
sociedadespatriarcaiseconservadorasemqueviviam,aomesmotempoemque
___________________________7Na1ªparte,porexemplo,Hamlet,enojadocomoqueestáacontecendoaoseuredorexclama:“Yuck!”.Na2ªparte,Gertrudessedirigeaofilho:“Comeon,Hamlet,cheerup!”.Ofélia,naparte4,ironiza: “Thanks, dad. Thanks, Laertes. That was super helpful”. Disponível em: <http://goodticklebrain.com/home/2015/3/30/the-sound-of-hamlet-part-1>. Acesso em:06/03/2017.8Existeminúmerostrabalhosquepontuamopapeldasmulheres,sobretudodeOfélia,naspeçasdeShakespeare,taiscomo:“AmulherOfélia—umcontrasteentreonaturaleosocial”,deMeireLisboa Santos Gonçalves (http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/vertentes/v.%2019%20n.%202/Meire_Lisboa.pdf), “A imagem damulher emHamlet”, de Ana Maria da Silva Nunes e Algemira de Macedo Lima(http://www.sbpcnet.org.br/livro/62ra/resumos/resumos/2808.htm), “A condição da mulhernastragédiasshakesperianas:HamleteRomeueJulieta”(http://www.humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/files/2015/02/cASSIANA-CANASHIRO.pdf).
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propõeumasubversãodessesvaloresatravésdafaladepersonagenscomoOfélia
(figura2).
Figura2:TheSoundofHamlet,parte5.Fonte: <http://goodticklebrain.com/home/2015/4/1/the-sound-of-hamlet-part-2>.
Acessoem:18/03/2017.
Nesse episódio, que remete à terceira cena do primeiro ato deHamlet, a
Ofélia de Gosling se revolta porque já tem idade suficiente para tomar suas
própriasdecisões,semprecisardaopiniãodeseupaiedeseuirmão.Elasequeixa
de que está presa numa sociedade patriarcal emasculina e se pergunta se para
Hamlet ela é apenas uma mercadoria (commodity), ou se ele, de fato, a ama.
Tambémobjetaofatodeterquepermanecervirgem,ou,casonãopermaneça,ser
considerada apenas uma mercadoria danificada (damaged goods), e antecipa a
loucuraquetomarácontadelaantesdoseusuicídio(“Thismightdrivememad”).
Sua canção subvertea letraoriginal, “SixteenGoingonSeventeen”9, cantadapor
___________________________9 A letra dessa música está disponível em:<https://www.stlyrics.com/lyrics/thesoundofmusic/sixteengoingonseventeen.htm >. Acessoem28/03/2017.
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Rolf e Liesl, que afirmava que a filha mais velha do Capitão von Trapp,
despreparada,estavacomeçandoasetornarumamulherequepoderiaconfiarem
Rolfparaguiá-la,porserelehomemeumanomaisvelho.Jánomusical,sedetecta
certaironiaemrelaçãoàmúsica,dadoqueamaturidadedaspersonagensseopõe
àssuasfalas10.OsquadrinhosdeGoslingintensificamessaironiaereveemtantoo
papel deOfélia comoo de Liesl (comomulheres submissas, obedientes, doces e
ingênuas)apartirdaperspectivafeminista.
Outromomentomarcantedahistóriaemquadrinhosocorrequandoaparece
océlebremonólogoproferidoporHamlet:“Serounãoser”(ato3,cena1).Gosling
combinouosmomentosmaisesperadostantodomusicalcomodapeçaatravésda
canção“Do,Re,Mi”.Nomusical,MariaensinaàscriançasvonTrappasnotasda
escala maior e, por consequência, ensina-as a cantar. Nos quadrinhos, Hamlet
encontra crianças dinamarquesas que não foram previstas por Shakespeare e
“despeja”nelassuasangústiaseseusanseios(figura3).
___________________________10Apesarde afirmar ser ingênua, tímidae assustadadianteda atitudedoshomens, Liesl estámuitomaispreparadaparalidarcomasituaçãodecortejodoqueRolf.
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Figura3:TheSoundofHamlet,parte10.Fonte: <http://goodticklebrain.com/home/2015/4/13/the-sound-of-hamlet-part-6>.
Acessoem:18/03/2017.
Esseéuminstantefulcralnanarrativa,poisHamletestárefletindosobrea
legitimidademoraldosuicídioemummundoinsuportavelmentedoloroso.“Serou
não ser” é interpretado como “viver ou não viver”. Em seguida, pensa sobre as
consequênciasdasduasaçõesechegaacompararosonoàmorteeaosonho.O
problemaadvémdoqueocorredepoisdamorte,queé incerto.Taldiscursoune
muitosdos temasquepercorremapeça, comoa ideiado suicídio edamorte, a
dificuldade de conhecer a verdade num universo espiritualmente ambíguo e a
ligação entre pensamento e ação. Ao selecionar palavras para substituírem as
notas musicais Gosling resume os pontos-chave do monólogo: ser, vida, dor,
morte, dormir, sonhar, temer. Aomesmo tempo emque ela ameniza o discurso
(poisHamletseencontradiantedecrianças),abordaumtemasérioepesado.As
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expressõesfaciaisecorporaisdapersonagemreforçamatribulaçãoporquepassa
oprotagonista.
Além das características já citadas, podemos perceber outras
particularidades.Emdeterminadospontosdahistória,porexemplo,Goslingexpõe
Hamletcomoumadolescentemimadoereclamão(comonaparte3,queserefere
aoato1,cena2dooriginal).Emoutros,maisreflexivoesensato(comonaparte9,
em que fala sobre sua inação). Há, ainda, situações engraçadas nos quadrinhos,
como na primeira parte, em que os guardas estão com medo da aparição do
fantasmadeHamletpai,ounasegunda,emqueClaudiuscantaapartirdamelodia
de “Ordinary Couple” (num tom ameaçador) e revela seus planos políticos
enquantoHamlet faz caretas ao lado. Há tambémpersonagens cômicas, como o
caricatoPolônioeoscolegasdafaculdadedeHamlet,RosencrantzeGuildenstern.
Gosling também parece se referir a filmes como Todo mundo em pânico
(2000),deKeenenIvoryWayans,quedebochamdefilmesdeterror.Issoaparece
nosquadrinhos,porexemplo,quandoHorácio fala: “There’snosuch thingas...[a
ghost]” e “...I probably shouldn’t turn around, should I?” e o fantasma está logo
atrásdele.E,emseguida,elescantam“TheSoundofMusic”,queiniciaomusicale
quenãotemnadadotomdetensãodoiníciodeHamlet.
Além disso, é interessante a solução criada por Gosling ao desenhar o
fantasma com pontilhados, dando a impressão de que ele é transparente. A
quadrinistatambémfoi felizaosinalizaro inícioeofinaldascançõesatravésde
notasmusicais.Ainda,chamaaatençãoo fatodequeGoslingpressupõequeseu
leitor está familiarizado coma tragédiahamletiana, por exemplo,naparte9 em
que Hamlet assiste a um ator que entoa uma fala sobre Hécuba e o texto que
aparece no balão de fala é: “blah, blah, blah,Mobled Queen, blah, blah, Hecuba,
blah, blah”. Finalmente, destaca-se a última parte que através da música “My
favorite things” apresenta um resumo da peça. Uma a uma, cada personagem
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lembradasuaprópriamorteatéquenofimtodassejuntamnumcoroecantam:
“whenthedogbites,whenyour friends fuss,whenyou’re feelingsad,remember
thatyoucouldbedead,justlikeus,andthenyouwon’tfeelsobad”.Essaéatônica
geraldanarrativaconstruídaporGosling:ohumor,aironia,asubversãoeoriso
estãosemprepresentesenosfazemrepensarasobras.
3. CONSIDERAÇÕESFINAIS
Aobuscarumcontextonovoparaomusical,Goslingaproveitaasmelodias
que são asmesmas, todavia, altera as letras, introduzindo o enredo hamletiano.
Ela faz uma abordagem criativa/produtiva da tradição. Podemos recuperar as
palavrasdeStockhausenmencionadasporHutcheonparaexplicaraconcepçãode
Gosling, que parece querer “ouvirmaterialmusical familiar, antigo, performado
comnovosouvidos,penetrá-loetransformá-locomumaconsciênciamusicaldos
nossosdias”(STOCKHAUSEN,1980apudHUTCHEON,1985,p.19).
Nesse trabalho,elautilizacomo ferramentasohumorea ironiaparacriar
sua narrativa. Nota-se nesses quadrinhos um confronto entre o texto
shakespearianoeomusical,aomesmotempoemquesepercebenitidamenteum
distanciamento crítico entre os textos parodiados e a nova obra. Não há uma
intençãodedepreciarnenhumdostextoscomosquaisGoslingdialoga,esim,de
fazer uma crítica construtiva, uma interpretação, de apresentar um olhar da
artista sobre esses dois trabalhos. E o prazer obtido na leitura dessa paródia
advémdograudeempenhamentodoleitorno“vaievem”(bouncing)intertextual
entrecumplicidadeedistanciação”(HUTCHEON,1985,p.48).
Curitiba,Vol.5,nº8,jan.-jun.2017ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE
QUELUZ,R.P.UmaParódiaMusical... 251
REFERÊNCIAS
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