Tire o barbante e aspire fundo o perfume

4
Tire o barbante e aspire fundo o perfume Marília Pacheco Fiorillo Vocês lembram de uma certa KM de quem a poeta Ana Cristina Cesar dizia, em Luvas de Pelica, que... “na última noite estava transfigurada de amor”? E de Miss Brill, algumas estrofes antes, que “didn’t know whether to admire that or not”? Ou de um “Blissfull Sunday afternoon enroscada na cama”, muitos versos depois? Não era à toa que Ana C. gostava tanto de KM: a prosa de Katherine Mansfield, como a sua poesia, só finge de frágil. Estão pousadas, ambas, em miudezas: o ataque de riso no Paris Pullman, com Ana, ou “ficar parada e rir... de nada” como faz a Mary de Mansfield. Ou a “fileira de patos opacos” com que a poeta faz um truque gentil parecido ao das irmãs Lil e Else, para quem Katherine arranja um jeito, no final, de verem o lampiãozinho. Ana pedia ajuda a Walt Whitman e declarava “amor, isso não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu que te seguro...” – Isso foi antes do 29 de outubro de 1983 em que ela se atirou da janela de um apartamento carioca. Katherine, pouco antes de morrer de uma tuberculose que ela no início chamava de pleurisia, sonhava com um pequeno jardim e em escrever para cocheiros: “pouco me importa”, disse. Escreveu uma obra ficcional miúda e pouco conhecida no Brasil – a pesar da fama de Tchecov de saias, de ser a única

description

Tire o barbante e aspire fundo o perfume

Transcript of Tire o barbante e aspire fundo o perfume

Tire o barbante e aspire fundo o perfumeMarlia Pacheco Fiorillo

Vocs lembram de uma certa KM de quem a poeta Ana Cristina Cesar dizia, em Luvas de Pelica, que... na ltima noite estava transfigurada de amor? E de Miss Brill, algumas estrofes antes, que didnt know whether to admire that or not? Ou de um Blissfull Sunday afternoon enroscada na cama, muitos versos depois?No era toa que Ana C. gostava tanto de KM: a prosa de Katherine Mansfield, como a sua poesia, s finge de frgil. Esto pousadas, ambas, em miudezas: o ataque de riso no Paris Pullman, com Ana, ou ficar parada e rir... de nada como faz a Mary de Mansfield.Ou a fileira de patos opacos com que a poeta faz um truque gentil parecido ao das irms Lil e Else, para quem Katherine arranja um jeito, no final, de verem o lampiozinho.Ana pedia ajuda a Walt Whitman e declarava amor, isso no um livro, sou eu, sou eu que voc segura e sou eu que te seguro... Isso foi antes do 29 de outubro de 1983 em que ela se atirou da janela de um apartamento carioca.Katherine, pouco antes de morrer de uma tuberculose que ela no incio chamava de pleurisia, sonhava com um pequeno jardim e em escrever para cocheiros: pouco me importa, disse. Escreveu uma obra ficcional mida e pouco conhecida no Brasil a pesar da fama de Tchecov de saias, de ser a nica escritora de lngua inglesa capaz da maestria tpica dos contistas russos.O lanamento dos onze contos de Aula de Canto permite ao leitor brasileiro a chance de checar se esta neozelandesa ou no a mais russa das escritoras inglesas de short-stories.Uma coisa, porm, certa: pode-se abrir a primeira pgina do livro como se desembaraa o barbante de um buqu de flores. Aula de Canto no um exerccio de leitura: como um presente recebido de surpresa, bem de manhzinha.O mais conhecido de todos os contos provavelmente Bliss (Infinita Felicidade, ou Felicidade, como j foi traduzido com maior economia em lngua espanhola), onde uma mulher assaltada sem nenhuma razo aparente por um surto de bem-aventurana descobre que a amiga que mais ama e o marido to querido esto trocando um rendez-vous na antessala.A felicidade, porm, coisa sria demais para ser alterada por esses pequenos acidentes de cenrio ela gratuita, ou no , nos diz irnica e inocentemente Katherine Mansfield. Bem prprio de uma escritora que fez questo de viver mais complicado do que escreveu nada na singeleza de sua prosa denuncia sua vida exasperante.Seus personagens orbitam em torno de emoes simples, pudores, lembranas, telegramas ou estolas antigas tiradas da caixa. Katherine viveu pelo menos duas paixes, mais para pginas de Fitzgerald que para as suas: por um violoncelista que conheceu na adolescncia, e por quem quase se tornou uma virtuose, e pelo segundo marido, John Middleton Murry, um oxfordiano sem um tosto com quem ela foi despejada de mais um endereo por falta de pagamento de aluguel.Foi figurante, bailarina de teatro de variedades, teve e perdeu um filho que no era do primeiro marido, e acabou juntando-se trupe esquisita do ocultista Gurdjieff morreu aos 35 anos precisamente no castelo Prieur, em Fontainebleau, onde Gurdjieff reunia seus discpulos para algumas atividades indefinveis entre a elevao do esprito e a dana dos Derviches.As Marys, Kezias e misses Brill, porm, so o avesso da biografia de Mansfield em nada sfregas, nunca desregradas. Um pouco assustadas, porm, podiam todas ter o mesmo ar de espanto tmido que Katherine exibe nas fotos. Meio infantil, mas muito natural como diz um dos ttulos dos contos.As mulheres, alis, so o forte de Mansfield os personagens masculinos nunca convencem com a mesma espontaneidade. De Ian French, o pintor de Feuille dAlbum, tem-se uma imagem das personagens femininas, se retm um carter.A anfitri de Garden Party, por exemplo aquele singular momento em que a nica forma de definir a vida gaguejar um pouco e s conseguir no mesmo? Ou a incomparvel Miss Brill, to fora de uso, to contente e to aplicada em ouvir conversas que fariam qualquer outra menos sbia chorar depressa.As mulheres de Mansfield, porm, no so piegas. So apenas reincidentes naquela velha mania de felicidade, na cartilha da cura de que falava Ana Cristina quando descobriu que elas, e as crianas, so as primeiras que desistem de afundar navios.