Suplemento Literario

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BELO HORIZONTE, DEZEMBRO DE 2006, SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS MURILO RUBIÃO 90 ANOS

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Murilo Rubiao

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.3Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

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Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS AÉCIO NEVES DA CUNHASECRETÁRIA DE ESTADO DE CULTURA ELEONORA SANTA ROSA SECRETÁRIOADJUNTO MARCELO BRAGA DE FREITAS SUPERINTENDENTE DO SUPLEMENTOLITERÁRIO DE MINAS GERAIS CAMILA DINIZ FERREIRA PROJETO GRÁFICO EDIREÇÃO DE ARTE MÁRCIA LARICA CONSELHO EDITORIAL ÂNGELA LAGO + CARLOSBRANDÃO + EDUARDO DE JESUS + MELÂNIA SILVA DE AGUIAR + RONALD POLITOEQUIPE DE APOIO ANA LÚCIA GAMA + ELIZABETH NEVES + ROSÂNGELA CALDEIRA+ WESLEY SILVA QUEIROS + ESTAGIÁRIOS CLARA MASSOTE + MIMA CARFER +NATÁLIA DUTRA JORNALISTA RESPONSÁVEL KÁTIA MARIA MÁSSIMO {REG. PROF.MTB 3196/MG}. TEXTOS ASSINADOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES.AGRADECIMENTOS: IMPRENSA OFICIAL/ FRANCISCO PEDALINO COSTA DIRETORGERAL, J. PERSICHINI CUNHA DIRETOR DE TECNOLOGIA GRÁFICA + FUNDAÇÃOCLÓVIS SALGADO + LIVRARIA E CAFÉ QUIXOTE. Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais.

Suplemento Literário de Minas GeraisAv. João Pinheiro, 342 - Anexo30130-180 Belo Horizonte MGTel/fax: 31 [email protected]

Murilo Rubião que completaria noventa anos, em junho de2006, não pôde ver seus contos reeditados e reavaliadospela critica, conforme merecia. Paciente e obsessivamente,construiu uma obra ao longo de sua vida, sem se preocuparcom o sucesso imediato, muitas vezes, efêmero.

O nome de Murilo Rubião relaciona-se com os cargospúblicos que obteve dentro do mesmo espírito de seriedadecom que se dedicava ao ato de escrever, exercendo, emmuito deles, o jornalismo. Foi diretor da Imprensa Oficialapós criar, em 1966, o Suplemento Literário de MinasGerais, jornal que, ao longo de seus quarenta anos, vemcumprindo um importante papel de celeiro cultural da produção mineira e do Brasil.

Sua consciência de homem público e de intelectual aliadaao seu temperamento generoso é gravado na memória dosamigos e jovens que, no convívio cotidiano, aprenderam alição de, em primeiro lugar, servir aos outros e, depois, a si próprios.

Olhar para o futuro foi um de seus maiores méritos. Jovens escritores, mais tarde reconhecidos pela críticacomo expoentes de nossa literatura, foram lançados por Murilo Rubião antenado, também, com o que de melhor se produzia no exterior.

Em reconhecimento ao escritor e ao legado deixado às gerações que se seguiram, enquanto homem público, aSecretaria de Estado de Cultura e o Suplemento Literáriode Minas Gerais prestam esta justa homenagem aohomem, escritor e jornalista Murilo Rubião.

Eleonora Santa RosaSecretária de Estado de Cultura de Minas Gerais

CAPA: MARCO TULIO RESENDE. Série de desenhoscriada para edição especial do SuplementoLiterário Murilo Rubião 90 Anos, 2006.

MARCO TULIO RESENDE é artista plástico e professorda Escola Guignard UEMG, MFA Art Institute ofChicago/Fulbright, com participação e prêmios emvários salões de arte nacionais.

Escritor e jornalista, Murilo Rubião completaria, neste ano,novena anos. Apesar de ter publicado apenas trinta e trêscontos, devido a sua obsessão por reescrevê-los quantasvezes achasse necessário, sua obra vem sendo reavaliada, ao longo dos anos, por estudiosos e pesquisadores quecompreenderam seu papel precursor, no Brasil, da literaturafantástica latino-americana.

Seu primeiro livro, publicado em 1947, O ex-mágico, pelaEditora Universal, do Rio de Janeiro, já contém o embriãotemático de sua obra posterior marcada pela “encenação deum mundo insólito e estranho capaz de colocar em xeque arealidade que o leitor supõe conhecer” (Audemaro Taranto).

Nesta edição comemorativa, o leitor encontrará a obra deMurilo Rubião analisada por professores que vêm se dedican-do com afinco às múltiplas leituras em torno do eixo estrutura-dor do fantástico, porém, através de diferentes vieses e coma consciência de que o fantástico é, para o escritor, uma dasformas de mascarar a realidade destituída de sentido. “O des-fecho implacável e desesperançado dos contos do escritorcomprova a ausência de luz no fim do túnel - ou se há, dizMárcia Marques de Morais, são apenas sombras dos fantas-mas de cada leitor.”

Como jornalista, Murilo Rubião foi o criador do SuplementoLiterário do Minas Gerais, aglutinando jovens escritores quecontinuaram a admirar o homem, o jornalista e o escritorpela seriedade, honestidade e generosidade que manteveigualmente em todas as atividades.

Exerceu diversos cargos públicos: foi chefe de gabinete deJuscelino Kubitschek, chefe do Escritório de Propaganda eExpansão Comercial em Madri e diretor da Imprensa Oficial,em 1983.

Homenagem merecida, sua obra começa a ser relançada pelaCompanhia das Letras, em 2006, com A casa do Girassol Ver-melho e outros contos e O pirotécnico Zacarias e outros contos.

Camila Diniz FerreiraEditora

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.5Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 20064. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

Carmo de Minas, 1916. NasciaMurilo Eugênio Rubião, que setornaria o nosso tão querido efabuloso escritor de literaturafantástica, na verdade, o precursor desse gênero de literatura no Brasil, de tradiçãotão acentuadamente realista.

Outro não poderia ter sido o seu destino: menino criado embiblioteca e “nos claros-escuros da fantasia”, muito cedobrincou com palavras, seguindo um pendor familiar. Seu avôescrevia, seu pai escrevia, assim como quatro primos, queescreviam e que passaram pela Academia Mineira de Letras,entre eles, o Godofredo Rangel, o de maior talento. E, comoMurilo lia! Aos onze anos, leu pela primeira vez o DomQuixote, que iria reler inúmeras vezes ao longo de sua vida.Leitor voraz desde muito cedo, o fantástico já estava incorpo-rado em Murilo desde criança, nas intermináveis leituras doscontos de fadas, da Bíblia – que se tornaria para ele o livro doslivros, referência obrigatória a cada vez que escrevia seus contos; Pirandello é outro autor sempre lembrado por Muriloque tinha uma visão crítica, pirandelliana da vida. Indagadocerta vez sobre sua formação como escritor e sobre as influênciasque recebera, Murilo respondeu que Cervantes, Gogel,Hoffmann, Von Chamisso, Pirandello, Poe, Henry James eMachado de Assis foram autores que o influenciaram. Tinhatambém “os contos de fadas, lidos na infância, e a HistóriaSagrada, além das Mil e Uma Noites". Murilo atribuía a essaformação a sua tão “ressaltada" proximidade com Kafka, que

Desenhos MARCO TULIO RESENDE

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foi notada pela primeira vez por Alvaro Lins, em 1947, quandopublicou o seu primeiro livro de contos, O Ex-mágico. Rubiãodiria depois que só conhecera a obra do escritor tcheco em1943, quando já tinha escrito seus 3 primeiros livros (os doisprimeiros não chegou a publicar). Escritor incansável de umaobra que escrevia e reescrevia sempre, Murilo escreveu na ver-dade apenas 32 contos (pelo menos os que chegou a publicar.Seu acervo contém ainda inúmeros outros, inacabados). De fato, o estilo depurado do escritor, na busca da forma perfeita e concisa, vai ser a marca registrada do autor e que oacompanhará por toda a vida. Com tão fabulosa bagagem,Murilo só poderia ter-nos legado uma obra extraordinariamentefantástica, povoada de seres mágicos como Teleco, os dragões,as Petúnias e Aglaias, além do pirotécnico Zacarias e Bárbara,para citar apenas alguns. Homem público igualmente notável,Murilo ocupou vários cargos importantes durante sua vida.

Intelectual respeitado, vivia cercado de amigos e admiradores,tendo sido o criador do “Suplemento Literário do MinasGerais”, responsável pela publicação, entre nós, do primeiroconto de Cortazar e pelo lançamento de um grupo de jovensescritores mineiros, de quem foi o “guru” – a chamada“Geração Suplemento”, que tinha no Edifício Maleta, localizadono centro da cidade, o seu “quartel-general” – e que depois setornaram grandes nomes de nossa literatura, como Luís Vilela,Humberto Werneck, Adão Ventura, Jaime do Prado Gouveia, eoutros.

Hoje, quando já se passaram 90 anos de seu nascimento,Murilo, mais do que nunca, permanece vivo em nossa memóriae em nossa literatura mineira, de quem é um dos mais legítimosrepresentantes. Que viva Murilo!

.7Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 20066. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

VERA LÚCIA ANDRADE é professora da UFMG.Organizadora do livro Contos reunidos, de Murilo Rubião, Editora Ática.

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.9Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 20068. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

HERMENEGILDO BASTOS

MURILORUBIÃO:UMCONTABILISTAE SUASMEMÓRIAS

A dialética localismo/cosmopolitismo, analisadapor Antonio Candido como aspecto da lógica deevolução da literatura brasileira, assume formabastante peculiar na obra de Murilo Rubião.Tendo se firmado num momento em que osmodelos realistas (no estrito senso) se exauriam,os contos de Murilo Rubião se qualificaram comoliteratura de vanguarda, não-realista ou anti-realista. Nada mais acertado. Entretanto, em umcerto sentido isso escondia o sentido local,brasileiro, até mesmo mineiro e regional que elesinegavelmente possuem e que os caracteriza.Técnicas de vanguarda, cosmopolitas, e culturalocal funcionando como matéria a que o escritordeve dar forma.

Hoje, passado aquele momento de afirmação davanguarda, o que se mostrava como excêntrico evidencia, sem perder a sua peculiaridade, seucaráter local e nacional-brasileiro. Cabe ao leitorentender os termos da dialética. Davi ArrigucciJr., em ensaios clássicos sobre o autor de“Marina, a intangível", já assinalara na literaturafantástica e universal de Murilo o caráterbrasileiro.

Em dialética, trata-se de ver como um pólo se encaminha na direção do seu oposto. A matériaa que o escritor deve dar forma é já por simesma forma também, forma cultural. A suamaneira, a cultura local proveu a literatura muriliana de elementos fantasmáticos própriospresentes na literatura popular de assombração efatos extraordinários dos “causos mineiros". Oinsólito e fantasmático aponta para um mundo dereificação onde o humor e o horror se conjugam.

Os anos 40, se são os da exaustão do realismoestrito senso, são também os de uma nova etapada modernização brasileira.

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.11Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 200610. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

A entrada doBrasil no capita-lismo moderno,com a urbani-

zação crescente,expulsão docampo, está presente na ficçãomuriliana.

Os “causos" popu-lares, da oralidade, vêmde um mundo arcaizadoou em vias de searcaizarem. É este ochoque que dá origem atodos os choques doscontos. O insólito estáportanto no tempo e noespaço, e dá forma àobra. O choque está na

composição, antes que notema ou “conteúdo". A estrutura do

conto “A fila" transfere-se para a situação vividapelo personagem Pererico. Além de um choque,há também uma ameaça, um perigo que rondaos personagens, instala-se na composição eatinge também o leitor. A literatura, que nuncafoi uma casa cômoda, agora revela ainda maissua natureza demoníaca. O texto se desagrega,consome-se. A escrita é insólita e determina ocaráter do personagem e seu destino.

A ambiência própria dos “causos" extraordinários indica a sobrevivência do arcaico, e isto parece serno mínimo curioso se se pensa em modernidade e,mais ainda, em vanguarda. Este repertório constituia “matéria local" que transforma o modelo literá-rio cosmopolita. A sobrevivência do arcaico ganha,assim, um sentido perverso, além de ameaçador.

É esse arcaico que não pode ser sepultado; que,morto, entretanto, sempre retorna.

Pode-se pensar na psicanálise e no retorno dorecalcado; pode-se pensar na sociedade admi-nistrada de cujo horizonte desaparece a religiosi-dade. Todos esses caminhos parecem ser ver-dadeiros para se pensar o fantástico muriliano.Em qualquer dos casos se tratará de formasdo fetichismo: os fetiches que povoama vida de Bárbara, as coleções donarrador de “Teleco, o coelhinho",a poesia do narrador de “Marina,a intangível", a magia decaídado ex-mágico.

Os personagens não têmsaída, suas histórias obe-decem a um determinis-mo ainda maior do queo que caracterizou a lite-ratura dos anos 30. Emalguns casos, cita-seclaramente o naturalis-mo com sua literaturasobre os instintos e odeterminismo do meiosocial e biológico, comoem “A casa do girassolvermelho”. É claro queé uma citação ou umatransposição, ou ainda,a sobrevivência de mo-delos de interpretaçãosocial e literário passa-distas. Não quer dizerque o conto se constróisegundo o ideário natu-ralista, mas é “comose..."

Como entender o determinismo que não dáchance aos personagens e ameaça o leitor coma hipótese de um destino igual? De social ebiológico, ele parece se tornar em uma conde-nação, e esta já não é uma condenação reli-giosa, porque na religião há sempre a possibili-

dade da interferência divina a favor dos quepenam. Agora o mundo é apenas humano.

Os demônios são o homem. Não há maisnada que o homem. A natureza é

humana. Agora é o homem peranteo homem, como sublinha Sartreem seu ensaio sobre Blanchot. A vida e a morte, tudo é fun-damentalmente doente porque

é o homem na sua prisãohumana. A morte em “Opirotécnico Zacarias" éapenas mais uma forma devida condenada; o amorem “A noiva da casa azul"é a ruína. Os animais sãometamorfoses do humano,que, metamorfoseado,entretanto permanecehumano, igual a si mesmo,sem chance de sair dacondenação. A vanguardade Murilo Rubião narra a passagem para o mundode total e absoluta reifi-cação.

Acentuar o localismo nãoresulta em negar a univer-salidade, mesmo porque sóconseguirá representar oBrasil (e Murilo o fez comqualidade) o escritor quepuder revelar o modo

peculiar de inserção do Brasil no mundo. Não éesse modo o do fantástico?

Qualquer um dos contos de Murilo Rubiãopoderá servir como referência ao conjunto daobra. Cada conto é a obra condensada. E écomo se se reproduzisse em outro conto, comoos filhos de Aglaia – a desagregação da vida étambém da literatura.

“Memórias do contabilista Pedro Inácio", porexemplo, contém os principais temas e motivosrecorrentes: a degradação do amor e da vida, amercantilização das relações humanas, aimpossibilidade de um outro destino, a ironia eo sarcasmo frente ao grandioso e edificante; otom de galhofa e burla com que o narradortrata o leitor e a própria escrita. O leitor acom-panha a história, aceita e compartilha a litera-tura como uma forma de blague, de embuste.Este conto, entretanto, tem uma coisa rara: trazuma epígrafe de Machado de Assis.

Certa vez, ao ser questionado sobre as possíveisinfluências que sofrera (e isto a propósito deele ter lido ou não Kafka), Murilo indicaraMachado de Assis como uma de suas fontes,apontando, já então, para a resolução brasileirada universalidade literária.

HERMENEGILDO BASTOS é professor da Universidade de Brasília. Autor de Rotas de navegaçãoe comércio no fantástico de Murilo Rubião, Plano Editora/EdUnB.

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12. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

FANTÁSTICOE REALIDADESOCIAL EMMURILO RUBIÃOAUDEMARO TARANTO GOULART

.13Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

Ao adotar o fantástico como princípio estruturador de suasnarrativas, Murilo Rubião conferiu a sua obra uma feiçãoúnica na literatura brasileira, uma vez que todos os seuscontos encenam um mundo que põe em xeque a realidadeque o leitor supõe conhecer. Essa dimensão da obra murilianaé, a um tempo, sedutora e enigmática, espelhando bem oclássico desafio do “decifra-me ou devoro-te" que a tradi-ção mítica coloca ao longo dos tempos.

Desse modo, o leitor, confrontado com o mundo insólito queos contos introduzem na sua experiência do cotidiano, lança-se ao trabalho de buscar a decifração do estranho e do absur-do, sempre tocado pela ânsia de encontrar explicações queneutralizem a angústia de se ver frente ao desconhecido,devido aos lapsos e às lesões que desvitalizam o conheci-mento, aquele saber que ele quer ininterrupto e completo.É nesse ponto que nasce uma intensa busca de articulações ede correspondências de símbolos e alegorias, tarefa que, nãoraro, mais frustra que satisfaz o leitor, porque é da naturezado gênero não se possibilitar como coisa oferta, prenhe designificações disponíveis. Tudo se passa como se o fantásticoprocurasse mostrar aos pretensiosos que a veleidade do des-vendamento completo de mistérios e obscuridades é tãoimpossível quanto a apreensão do conhecimento absoluto.

Para além de tais aspectos, é preciso considerar que o fantás-tico presta um inestimável serviço ao leitor, na medida emque aponta a natureza do próprio cotidiano, essa instânciaque é pródiga em exibir uma sucessão de acontecimentosincompreensíveis e chocantes sobre os quais as pessoas nãorefletem, por conta mesmo do contato com a alienadorarealidade do dia-a-dia. Não é raro, pois, que, depois de lernarrativas como as de Kafka e de Murilo Rubião – para darapenas dois exemplos emblemáticos – o leitor abra os olhose o coração para compreender melhor o mundo que o cerca.

Por tudo isso é que, no universo do fantástico, não se devenunca aspirar a um registro de leitura que elucide inteira-mente o estranho e o insólito. É suficiente que o leitor sesatisfaça com o reconhecimento de alguns pontos que sefazem mais compreensíveis e que perceba o absurdo na suadimensão peculiar, como algo que tem a sua natureza e assuas regras. Assim, na leitura de textos como os de MuriloRubião, é importante saber que não existem sentidos exclu-sivos. Quando muito, podem-se entrever algumas indicaçõesque servem como porta de entrada para encaminhar uma das

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14. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO14. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

leituras possíveis, como é o caso, porexemplo, da dimensão metaliteráriapresente nos contos “O edifício" e“Marina, a Intangível", a irreversibili-dade da dominação, em narrativas como “Obloqueio" e “A armadilha" ou a angústiaexistencial que se pode ver em “O pirotécnicoZacarias" e “O lodo".

A título de ilustração do que venho dizendo, tomo umadas mais instigantes narrativas de Murilo Rubião. Trata-sede “A casa do girassol vermelho", conto que foi publicadono primeiro livro do autor, O ex-mágico, em 1947. Nãopoucas vezes ouvi que esse conto é um desafio que estásempre a exigir revisitações na sua leitura. A observação,sem dúvida, guarda muito daquela ânsia de quererexplicar tudo, de jogar luz em todos os buracos negros quea narrativa insidiosamente coloca. De certa maneira,espanta-me o fato de não se ver no conto – poderia atédizer, já na primeira leitura – uma das portas de entradapossíveis que é o diálogo que a narrativa mantém com oTotem e tabu, de Freud. Advirto logo que o texto freudi-ano não é um componente estrutural do conto de Murilomas é apenas uma espécie de dramatização histórica a queo leitor pode recorrer para a compreensão de princípiosimportantes que se expressam na obra tais como acondição humana e a trajetória do homem para se fazerum ser social.

Como se sabe, Freud propõe, no Totem e tabu, o que seriamas origens da sociedade humana. Um pai despótico, queimpunha sua vontade a tudo e a todos, que recolhera parasi todas as mulheres, acaba morto por um bando de filhosciumentos que, logo em seguida, repartem as mulheresentre si. Não quero aqui fazer uma descrição detalhadadesse ato inaugural da cultura. Direi apenas que, na for-mulação freudiana, para se prevenirem de um outro paidespótico, os irmãos resolvem criar a mística do totem, umsubstituto simbólico do pai que estaria, permanentemente,lembrando que ninguém poderá mais matar nem o painem aqueles que são agora seus herdeiros (cada um dosirmãos). Como reforço a essa posição, criou-se também otabu do incesto, indicando que nem todas as mulheresestão disponíveis para todos os homens. Constituíam-se,assim, as regras da exogamia, forma de garantir um rela-cionamento controlado entre os indivíduos.

Essa formulação da obra de Freud ecoa por todaa narrativa de “A casa do girassol vermelho".Basta dizer que, logo no início do conto, oleitor precisa tomar lápis e papel para anotar

quem é quem, na indistinção entre namorados eirmãos que constituem as personagens da história.

Veja-se o próprio texto muriliano:

Xixiu mal olhou para fora, ficou alucinado com apaisagem. Parecia um monstro. Da janela mesmogritou para o universo, que se compunha de qua-tro pessoas, além dele e de minha irmã Belsie:– Nanico, sujeito safado! Tá namorando, não é,seu animal de rabo?!Nanico tirou rapidamente a mão dos seios deBelinha e respondeu desajeitado:– Tou.Apenas Belinha, que estava gostando do jardim edas mãos do companheiro, não se conformou coma intervenção de Xixiu, irmão dela. No entanto,disfarçou a irritação. Ninguém se irritava naqueledia. Com naturalidade, virou-se para mim, quebeijava a um canto a suave Marialice, e propôs:– Vamos trocar, Surubi, você fica comigo e o bestado seu irmão se ajunta com a hipócrita da minhairmã.

Como se vê, na narrativa, o universo que se compunha deseis pessoas encena o espaço em que se estabelecem as dis-tinções e as trocas entre parceiros, caracterizando, assim, oinício de uma relação exogâmica que fora possibilitada pelamorte do velho Simeão, o pai adotivo que separara os filhosde qualquer convívio, uma evocação perfeita do pai despóticoque reservava para si todas as mulheres.

Essa mudança é registrada de modo enfático, pouco antes,logo no início do conto:

O entusiasmo era contagiante. Febril. Uma alegriafísica inundava as faces que até a véspera permane-ciam ressentidas. O que veio antes e depois, ficarápara mais tarde. Mas o que importa, se naquelamanhã a alegria era desbragada!

Tem-se, aí, a celebração de uma vida nova, livre da opressãoe do domínio, revelando aquele momento de entusiasmo

Desenhos MARCO TULIO RESENDE .15Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

contagiante e febril. A exuberância de uma vida livre e osimpulsos desmedidos estão bem representados numa evo-cação de condição animal que as personagens ostentam.Veja-se, nesse aspecto, que a narrativa caracteriza Xixiucomo “um monstro", Nanico como “animal sem rabo" eSurubi como “besta".

Depois de recuperar em flashback os anos e os lances dramá-ticos que antecederam a libertação, a narrativa retoma o seucurso, mostrando que Xixiu, o líder do grupo, portanto, osubstituto do pai, também vai sair de cena, desaparecendo,misteriosamente, depois de mergulhar no açude. Esse é umlance decisivo, pois retoma a emblemática morte do pai,reforçando o símbolo da sua força enquanto totem e represen-tante da ordem que se impunha ao grupo, reprimindo a “ale-gria desvairada" que respirava a Casa do Girassol Vermelho.Começa, pois, o percurso dos seres humanos no espaço dasrelações sociais, das trocas e do respeito às leis, a partirmesmo daquela lei inicial marcada na figura do pai morto,o totem erigido como significante da ordem social.

O desânimo que toma conta do grupo é marcante:

A Casa do Girassol Vermelho se dobraria sobre aspróprias ruínas. (...)Sabíamos que nada mais seria importante, digno daviolência, da paixão. Um futuro mesquinho nosaguardava: Belsie se amarraria a um agressivomutismo. Marialice e Nanico – dois idiotas – olhari-am um para o outro indefinidamente, alheios aqualquer determinação de romper com o mundo.Belinha, sem os apelos do irmão, não sentiriaexplodir a carne e guardaria para si o fruto da fecun-dação. Eu, gigante bronco, viveria de braços caídos.

O futuro mesquinho a que se refere o narrador-personagemé bem uma amostra do que se reserva aos seres que transi-tam na obra de Murilo Rubião. Eles, na verdade, são indiví-duos em que se estampa a marca de uma cultura que osatinge de forma avassaladora, operando uma força quetolda os impulsos e reprime as paixões.Assim, projeta-se ummundo simbólico em que se forjam mecanismos que regulamo desejo, criando vontades que se impõem como necessá-rias e indesviáveis, escamoteando a verdadeira razão que éexplorar a alienação de um rebanho que segue docilmenteas sugestões oferecidas. Essa massa de indivíduos dominados,

submetidos a forças que fazem deles um joguete no fluxoda vida, pode ser vista em todos os contos murilianos.

No fundo, as personagens representam as vítimas do artifi-cialismo do mundo da cultura, esquecidas de sua interiori-dade, desaprendidas de que elas deveriam ser os condutoresde seus destinos, ao invés de se submeterem a um mundoque lhes cria os desejos, sob disfarces que lhes dão a entenderque estão sendo os sujeitos de suas escolhas. Afastadas domundo da natureza e alienadas da sua própria naturezainterior, as personagens de Murilo representam os seresenfeitiçados que, vítimas de uma consciência anestesiada,perderam a capacidade de se admirar com as coisas. Por issoé que se costuma dizer que não se enxerga luz no fim dotúnel nos contos murilianos.

Assim, depois da queda do reino da liberdade, da naturalidadee da explosão da carne, gozadas na Casa do GirassolVermelho, o grupo se dobra ao peso da lei do mundo social-mente organizado. É a antinaturalidade da imposição racio-nalista, posta a serviço da cultura, anunciando o despontarde uma nova vida, uma vida que se inicia sob o signo deuma repetição insossa. Daí que, no encerramento da narra-tiva, a personagem Belinha, grávida e pronta para, dessemodo, dar prosseguimento a um novo tempo, simplesmente,baixa os olhos para o ventre e, ali, percebe que “começavama surgir as primeiras pétalas de um minúsculo girassol ver-melho". É de se notar que já não há mais a Casa, mas apenaso girassol vermelho. Ainda assim, minúsculo. Também é omomento em que o leitor abre os olhos e o coração paracompreender melhor o mundo que o cerca.

Desenhos MARCO TULIO RESENDE

AUDEMARO TARANTO GOULART é Professor da PUC Minas.Autor de O conto fantástico de Murilo Rubião, Editora Lê.

Page 9: Suplemento Literario

16. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO Desenhos MARCO TULIO RESENDE .17Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

MÁRCIA MARQUES DE MORAIS

HÁ SOMBRAS NOFIM DO TÚNEL: UMA SAUDÁVELCONVIVÊNCIA COMFANTASMAS

Page 10: Suplemento Literario

18. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

Se a obsessiva reescrita de seus contos é marca incontestede Murilo Rubião, vale apostar também em leituras emprocesso do texto muriliano, cujas perspectivas têm osciladoentre uma visagem supra-real do mundo e uma visão darealidade sob o filtro do fantástico ou, metamorfoseando,uma visada da magia, a partir do que seria uma realidade -muito chã, reles mesmo. A oscilação da perspectiva carreiaconsigo, inevitavelmente, a modalização do tom da leituraque, embora produza sempre o espanto, ora é ouvido como o

soar de trombetas apocalípticas, ora seescuta como eco

que vaticina, ora é, ainda, tom de uma constatação anuncia-da ou de desolação e desânimo. Estudiosos já nos mostraramque as epígrafes bíblicas se incumbiriam de orquestrarleituras. De todo modo, ainda que as afinações sejam múlti-plas e, de certo modo, garantidas pelo texto, são elas tambémmuito próximas, deixando desconcertado o leitor de MuriloRubião, diante do sentimento de perplexidade quanto à cons-tatação da inexistência de luz no fim do texto/túnel...

Embora esse sentimento do sem-saída possa ser ignorado,pois a arte-literatura não tem compromisso com “soluções",devendo empenhar-se mais em fazer perguntas que apresen-tar respostas, a “desesperança" pronta-e-acabada assustariao leitor de Murilo?

“Há luz no fim do túnel?", perguntam-se os leitoresque se iniciam no texto muriliano àqueles já maisafeitos ao tom do escritor.

Diante dessa indagação, de cunho eminentementeretórico, pois que luz, com certeza, não se vislum-brará, ao término da leitura de cada dos contos,

restar-nos-ia tão só a escuridão, a ausência de luz?

Também essa não rimaria com o tom de Murilo, e nemseria uma solução do seu texto, diante da experiência deleitura que nos captura, fazendo que algum alumbramentocontinue a atrair leitores e leituras...

Daí, perceber, na metáfora, que o que há, naquele fim dotúnel, são sombras - sombras, concretamente presentes, namaterialidade do signo assombração; sombras como ausênciade luz, mas só permitidas pela própria luz; sombras que sãoprojeções, projeções também fantasmagóricas.

Seriam, pois, fantasmas a nos assombrarem no túnel – inquie-tantes, estranhos, mas tão familiares –, intencionalmentefamiliarizados, frisemos, pelo uso do código lingüístico,pela forma do texto – tão previsto, tão ortodoxo, tradicionale clássico, sim.

Desenhos MARCO TULIO RESENDE .19Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

Assim, a partir de conceitos correntes, tais como, aparênciadestituída de realidade, puramente ilusória; visão que apa-vora; obsessão mental ou fixação insistente, a psicanáliseverá, no fantasma, uma “situação imaginária em que osujeito está presente e na qual se realiza um de seus dese-jos, mais ou menos disfarçado". Regressando, pois, ao étimoda palavra grega que nos aponta “aparição, sonho, imagemoferecida ao espírito por um objeto" -, Freud buscaria paraaquela “inquietante estranheza", significante e significadoque a conformem e nos conformem.

Vale, pois, a pena perscrutar alguns textos do mágico doscontos, para, mais miudamente, examinarmos como osconceitos de fantasma são acionados por sua escrita.Examinemos, um a um, mas brevemente, os conceitos defantasma, “retrabalhados" pelo autor.

É flagrante, nos contos, o deslocamento da idéia de irreali-dade à idéia de naturalização do fantasma – irreal ou supra-real, através da tensão provocada entre o alógico ou ilógicodos significados que intenta e as operações inteiramentelógicas, processadas pelo código lingüístico.

Examinemos excertos de “O edifício": “Afinal, dissiparam-seas preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octin-gentésimo andar. O acontecimento foi comemorado comuma festa maior que as precedentes" e de “O bloqueio" que,não por acaso, vira “o edifício" de ponta-cabeça:

Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajandoGérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dosestragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavi-mentos haviam desaparecido, como se cortadosmeticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões,serradas as vigas, trituradas as lajes. Tudo reduzidoa pó amontoado nos cantos.

O acionamento da magia para metamorfosear uma visãoapavorante em algo com poderes encantatórios é recorrente,também, nos textos do autor. A maior representante disso é

a linguagem mesma, com seu poder de encantação e que,murilianamente, justapõe à dureza dos acontecimentos, àcompletude “épica", o toque da fragmentação “lírica". Talestratégia pode ser vista na insistência da figura do “arco-íris", desde a produção do “O ex-mágico da TabernaMinhota" até “O bloqueio"; nas “belezas das imagens doorador" em “O edifício"; nas desculpas pedidas à interlocu-tora-cachorra, em “Ofélia, meu cachimbo e o mar"; naminúscula estrela a ser buscada pelo marido de “Bárbara" -enfim, nos arranjos semânticos e sintáticos, que, sobretudonos finais de conto, tiram da manga ou da cartola, algo quedesmancha um mal-estar instituído – ainda que por umbrevíssimo tempo..

A passagem da fixidez do obsessivo ao movimento dametamorfose, da transformação é também uma constantedo texto de Rubião. Nele se lê, com freqüência, a passagemde uma repetição maquinal a uma repetição diferencial,que, magicamente, impulsiona para frente. Assim, na per-petuação do mesmo, brota a diferença – uma diferençaintuída, quem sabe, pela sutil mudança de tom. É que, detanto se repetir o mesmo, via linguagem, vai-se instituindoo estranho. Reafirmando: da familiaridade com que se colo-cam as transformações, implanta-se o estranho e vice-versaem, por exemplo, “Teleco, o coelhinho"; “Bárbara"; “O edifí-cio"; “O bloqueio"; “O ex-mágico da Taberna Minhota";“Ofélia, meu cachimbo e o mar" etc..

Desenhos MARCO TULIO RESENDE18. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO .19Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006Desenhos MARCO TULIO RESENDE

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20. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

Vale ainda observar, na escrita de Rubião, a passagem daidéia de realização disfarçada de um desejo à idéia do dis-farce dessa realização, pelo seu sempre adiamento a um sinedie. É essa mesma a relação do escritor com sua escrita – abusca obsessiva da precisão, perseguida, à exaustão, nasmúltiplas reescritas de seus contos, encontraria seu termo,paradoxalmente, na suspensão do sentido, na instauração,insisto, de um tom de leitura – o da perplexidade, própriode uma mágica que se frustrou e de um mágico que é “ex".

E, enfim, como uma última “estetização" do conceito defantasma, o texto muriliano apresenta o trânsito da idéia deimagem oferecida ao espírito por um objeto à idéia de quemais que os “objetos" dos textos de Murilo Rubião a nosafetarem, são as próprias imagens que nos afetam como lin-guagem. Um dos efeitos de sentido da leitura de MuriloRubião é, pois, o sentimento da ultrapassagem do objetopela linguagem.

Ouçamos seu texto a nos dizer isso, literal e literariamente:

“Não raro, entusiasmados com as belezas das ima-gens do orador, pediam-lhe que as repetisse. JoãoGaspar se enfurecia, desmandava-se em violentosinsultos. Mas estes vinham vazados em tão bom esti-lo, que ninguém se irritava.", no fim de “O edifício",

ou“Olho distraído para seu lado e vou reiniciar amesma história do mar, interrompida instantes atrás,porém me detenho diante do seu olhar desaprova-dor. Sei que ela espera por uma das minhas habituaisfantasias...", no fim de “Ofélia",

ou“Pelas frinchas continuavam a entrar luzes coloridas,formando e desfazendo no ar um contínuo arco-íris:teria tempo de contemplá-la na plenitude de suascores?", em “O bloqueio",

quando, ao final, o narrador, supostamente referindo-se àmaquina das construções ou destruições, usa o pronome

oblíquo, sem endereço certo, possibilitando ler também alíngua e seus recursos: fônicos (a máquina e “os sons seavolumando", “matraqueia"), sintáticos (a máquina quecorta, serra, junta, que faz “obras").

Diante desse agenciamento das muitas direções de "fantas-ma", na obra de Murilo Rubião, é inegável a possibilidadede leitura de seus contos pela vertente da psicanálise, já quetravessias complexas da subjetividade, conflitos do sujeitosão matéria sempre da memória dos contos. No entanto,vale frisar, sempre e em todo lugar, que essa direção deleitura implicará, necessariamente, o processo histórico, aprópria sociedade, pois, para além de se só poder pensar oindivíduo como sujeito histórico, a psicanálise não deixaqualquer dúvida quanto ao fato de ser, ela mesma, leiturada cultura.

Apontando, à exaustão, o embate pulsão e sua “regulação",natureza e cultura; sujeito e sociedade, a ciência psica-nalítica pensa as instituições e organizações sociais comolocus do mal-estar, frisando-as, no entanto, como únicapossibilidade identitária.

Aliás, é recorrente, nos contos de Murilo, a tensão entre oindivíduo e seu entorno, representada, sobretudo, na alusãoaos laços familiares, à família, ao clã, como instânciaprimeira do mal-estar.

Em “O bloqueio", esse viés de leitura parece ter um forteapelo, ouvido, por exemplo, no soar incômodo do telefone-ma regulador de Margarerbe: “Era a mulher a lhe aumentaro desânimo: - Como me descobriu? – Ouviu uma risadinhado outro lado da linha" e o eco da voz da mãe nas palavrasda filha Seatéia, ambos controladores de Gérion, cujo tom,diante da situação de cobrança, é irritadiço e agressivo.Ouçamos o narrativa sobre a reação da personagem diantedo último telefonema:

“A ligação foi interrompida bruscamente. De iníciosuspeitara e logo se convenceu de que a filha fora

.21Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

obrigada a lhe telefonar, numa tentativa de explorá-lo emocionalmente. Àquela hora estaria apanhandopor não ter obedecido à risca as ordens da mãe. (...)Talvez a estimasse pela obrigação natural que têmos pais de amar os filhos."

Os termos destacados são reiterados por outros de igualteor, mitigados ao longo do conto, como em: “Gostara dealguém? – Desviou o curso do pensamento, fórmula cômodade escapar à vigilância da consciência"

As elucubrações de Gérion, quase inconfessáveis no con-texto de uma sociedade civilizada, no que diz respeito àpaternidade, ao mesmo tempo, se “naturalizam", diante deuma construção que rui e evidenciam-se como “realistas",expondo-se como um fantasma, assombração que o leitornão pode deixar de considerar... Escutemos, ainda, a ironiado narrador quanto ao motivo que levou Gérion a deixarcasa e família: “Preferiu correr o risco a voltar para suacasa, que abandonara, às pressas, por motivos de ordemfamiliar" (ordem?)

“Bárbara" trata também, basicamente, de uma questãofamiliar: uma mulher insaciável, bárbara, maiúscula e minús-cula, regula o narrador com seus pedidos, que acaba regu-lando a mulher. Regular ou ser regulado, enfim, são umasó coisa, em termos de complementaridade, como o sado-masoquismo implicitado no texto.

Assim se representa o mal-estar no contexto familiar, tomadoda mais estranha forma, mas apontando o sempre movi-mento do desejo à mercê do desejo do outro, seja em termosde sujeito ou de sujeito histórico...

Em “Ofélia, meu cachimbo e o mar", vale a pena relembrara espera da estapafúrdia morte do pai – engasgado por umaespinha de peixe -, alegação estranha do narrador, para sepermitir ir morar no litoral, perto do mar, das águas e adesilusão que o aguardava no porto: “fraturei um dos pés efiquei inutilizado para os trabalhos marítimos."

Difícil não encontrar aí a sombra de um mito, do mitofamiliar de cada um de nós, de um Édipo que solicita serparturejado de águas maternas, do próprio “mar"...

Lidar, assim, com sombras no fim do túnel, talvez sejasaída para falta de saída, já que a luz, em fins de túneis,costuma toldar a visão. É que fantasmas não são, demodo algum, aterradores: são uma projeção de cada umde nós – encará-los é nos fortalecermos como sujeitos esujeitos históricos.

Também por essa óptica, a literatura fantástica de MuriloRubião nos propiciaria um dos direitos inalienáveis do serhumano, conforme Antonio Candido, para quem “(...)talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.". Para ocrítico, ao “dar forma aos sentimentos e à visão do mundo,a literatura nos organiza, liberta-nos do caos e, portanto,nos humaniza".

MÁRCIA MARQUES DE MORAIS é Professora da PUC Minas. Autora de A travessia dos fan-tasmas – Literatura e psicanálise em Grande sertão: veredas, Ed. PUC Minas / Ed.Autêntica.

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.23Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 200622. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

MÁRCIO SERELLE

VISOESDAMAQUINA

No conhecido ensaio sobre a posição do narrador noromance, de 1954, Adorno descreve a vida exteriornovecentista – a ser decifrada pelo ficcionista – comoum estranhamento entre os sujeitos e a coletividade,na sociedade marcada pela “reificação de todas asrelações entre os indivíduos, que transforma suasqualidades humanas em lubrificante para andamentomacio da maquinaria, a alienação e a autoalienaçãouniversais (...)1". Esse enigma da petrificação dasrelações humanas, difuso na cotidianidade, é iluminadoem sua absurdez na ficção de Murilo Rubião, cujoobjeto é, recorrentemente, o próprio homem incorpo-rado ao maquínico, que se faz sentir, para além daconcretude do dispositivo que substitui o trabalhohumano, no automatismo de olhares e procedimentosde alguns personagens (Damião, em “A fila"; os companheiros de refeitório, em “Os comensais"), quenaturalizam, muitas vezes por meio da burocracia, aindiferença da vida serial dos centros urbanos.

Convém lembrar que o tema do autômato no contofantástico passa, já no século XIX, do elogio daengenhosidade mecânica à lógica do pesadelo, organi-zada a partir do pensamento luddista, que apontou,no campo das relações de trabalho, o desenvolvimentotecnológico como responsável pela miséria humana na sociedade industrial. No conto de Hoffmann, “O homem de areia" (1817), o horror é extraído emparte da constatação de que a filha do professorSpallanzani, Olympia, era na verdade uma boneca que“poderia ser considerada linda se ao seu olhar não fal-tasse o brilho da vida"2 , desvelando o mistério e pro-pagando a ameaça da máquina que fingia ser criaturaviva, mas que era rígida, desagradavelmente correta einsensível. Em “Aglaia", de Murilo Rubião, o movimentoinverso também aproxima a mulher do mecanismofabril, ao narrar os partos em série da personagem-título, que passa a gerar seres com “os mesmos cabeloslouros, as sardas, os olhos esverdeados, a pela clara(...)"3. O processo de gestação cada vez mais acelerado(filhos nasciam com “até vinte dias após a fecun-dação")4 leva à produção das “primeiras filhas deolhos de vidro"5, imagem que, como notou DaviArrigucci6, remete novamente ao conto de Hoffmann,mais especificamente ao aspecto que insiste emdenunciar a condição maquinal de Olympia (“Somenteseus olhos lhe pareceram estranhamente parados emortos")7. Nota-se, contudo, que o imaginário emrelação à máquina no conto muriliano desprende-se, aprincípio, do dispositivo e se torna menos uma tecno-logia circunscrita aos meios de produção que um modomaquínico de interação entre os sujeitos, de tal maneirajá entranhado que se torna invisível ao olhar acostu-mado à meia luz dessa sociedade, cabendo, portanto, aoficcionista colocar esse comportamento em relevo.

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Quando a máquina se materializa na ficção muriliana,como em “O bloqueio", ela é, ainda assim, difusa, poisnunca se deixa ver: “(...) a máquina persistia em seesconder, não sabendo ele [Gérion] se por simplespudor ou se porque ainda era cedo para mostrar-se,desnudando seu mistério"8. Nesse conto, Gérion,personagem recém-separada da mulher Margarerbe,vê-se emparedado num andar flutuante de um edifícioconsumido pela “máquina", em passo diário que,ironicamente, refere-se (na abertura, nas sete partes doconto) à semana do Gênesis. Como conclui a própriapersonagem, a máquina é “única e múltipla na suaação"9, atuando de forma tentacular e enredando,como veremos, diversos sentidos e dimensões da vida.

Sem a fixidez de uma face, a “máquina" opressora,em sua anonimidade, é percebida pela sua movimen-tação calculada, pela constância da destruição (criaçãoque se assemelha, nesses aspectos, ao aparelho deprecisão cirúrgica em “A colônia penal", de Kafka) e,principalmente, pelos ruídos, recebidos tambémcomo melodia por Gérion, nos momentos em que elaretornava: “(...) ruidosa, mansamente, surda, suave,

estridente, monocórdia, dissonante, polifônica, ritmadamente, melodiosa, quase música"10. A musi-calidade da maquinaria insere-se na prosa comocorpo estranho, já que o conto, em alguns momentos,empresta da poesia aliterações e assonâncias queparecem enfatizar a sonoridade ritmada de umaserra dentada ou de uma britadeira que perfuramaterial “de grande resistência" nos andares superi-ores do edifício.

É também por meio do som – a voz em uma ligaçãotelefônica – que Margarerbe manifesta-se, exigindo avolta de Gérion ao lar. Nessa passagem, a esposa, naperseguição ruidosa ao protagonista, pode – como no

caso de Aglaia – dar rosto feminino à máquina (“emitiaa máquina vozes humanas?"11, pergunta-se Gérion),perfilhando importante genealogia do fantástico e daficção científica: a da encarnação da tecnologia – adespeito de esta ser comumente relacionada ao uni-verso masculino –, numa máquina-mulher, representadatanto pela já citada Olympia como pelo robô deMetrópolis, de Fritz Lang.

Nesse sentido, a angústia tecnológica, como nopesadelo de Gérion, narrado com a sonoridade daserra maquinal (“Pegara novamente no sono e

sonhou que estava sendo serrado na altura dotórax"12), torna-se ameaça de castração, projetada e realizada ficcionalmente na amputação dosandares do prédio. Para Huyssen13, no fantásticooitocentista, o temor que emana do poderio e daautonomia das máquinas – quando estas são percebidas socialmente de modo demoníaco – é reelaborado em termos do medo masculino pelasexualidade feminina. Em algumas das breves narrativas de Murilo Rubião, notadamente em “Obloqueio", essa parece ser uma das possíveis faces

dessa máquina obscura e lacunar, cujos sentidososcilam entre a engrenagem social acachapante e a ameaça à frágil condição das personagens masculinas, o que subterraneamente, pelo menos no que tange à representação minaz da mulher nessas ficções, comunica-se com as matrizes doconto fantástico no século XIX.

.25Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 200624. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Theodor W. Adorno, “Posição do narrador no romancecontemporâneo”, in Notas de literatura, Tradução deJorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003. p. 57.2. E. T. A. Hoffmann. O homem de Areia. In: Italo Calvino(Org.), Contos fantásticos do século XIX, vários tradu-tores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 74.3. Murilo Rubião, Contos reunidos, São Paulo, Ática,1998. p. 192.4. Idem, ibidem, p. 1935. Idem, ibidem, p. 194.6. Davi Arrigucci Jr., Minas, assombros e anedotas (oscontos fantásticos de Murilo Rubião), in Enigma ecomentário, São Paulo: Companhia das Letras, 1987,p.141-165.7. E. T. A. Hoffmann. O homem de Areia. In: Italo Calvino(Org.), Contos fantásticos do século XIX, vários tradu-tores. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.698. Murilo Rubião, Contos reunidos, São Paulo: Ática,1998. p. 251.9. Idem, ibidem, p. 250.10. Idem, ibidem, p. 249.11. Idem, ibidem, p. 250.12. Idem, ibidem, p. 245.13. Andreas Huyssen, Después de la gran división,tradução de Pablo Gianera, Buenos Aires: AdrianaHidalgo editora, 2002.

MÁRCIO SERELLE é professor dos programas de pós-graduação em Letras e em Comunicação Social daPUC Minas.

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Ou, Márcio Sampaio.

26. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO .27Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

MÁRCIO SAMPAIO é poeta, artista plástico e crítico de arte. Participou da redação do SLMG desde a sua criação até 1972. Autor,dentre vários livros títulos, de Amilcar de Castro: uma poética em construção, 2002 e Submissão de Narciso, 1999. Em 2005, houve,no Palácio das Artes, uma retrospectiva de sua obra: Declaração de bens, 50 anos de arte e poesia.MÁRCIO SAMPAIO

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28. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

ISAÍAS GOLGHER

Não há dúvida, o retrato de MuriloRubião feito por Petrônio Bax, emexposição no Palácio das Artes,dentro do programa MemóriaViva, acabou sendo, infelizmenteem in memorian, em uma traduçãopictórica da personalidade psico-lógica, cultural e humanista deMurilo. Trata-se, na realidade, deuma simbiose: Murilo, o mago dorealismo-fantástico literário, e Bax,o mago do realismo-fantásticopictórico, a se fundirem pelo traçoe colorido da generosa paleta deBax. A interação psicológica ereclamos íntimos fizeram-nos mar-char em paralelo no campo da Arte.

Um pela palavra; outro pela cor.

Bax, através da imagética intensade sua pintura, e no virtuosismo deseu pincel conseguiu interpretarplasticamente a complexidade dapersonalidade artística de Murilo.Ao fazer o retrato do escritor, Baxnão procura atender o mero requi-sito fisionômico mas traduzir natela as vibrações íntimas de suaalma, sem prejudicar os traços deseu semblante. A começar pelo rosto.

O rosto humano é o painel dosmecanismos psíquicos do homem.Seu jogo mímico possui um podermisterioso de comunicação. Essepoder é transposto para a telaquando o artista o pinta, não pelovisível, mas pela visão, como é ocaso de Bax.

O rosto de Murilo concebido porBax tem um jogo mímico que sediferencia do comumente retratado.Aí não vimos um rosto melancólico,solitário, com olhar plácido e vago,que a aparência nos transmita. Pelo contrário, contemplamos umafisionomia de vigorosa espirituali-dade, um sorriso irônico penetrante,

um olhar vivo e desafiante. ÉMurilo em sua essência.

Essa essência humanista é respon-sável pelo conteúdo do mundo turbulento muriliano, onde “coisasespantosas e estranhas ocorrem".Ele adverte, numa epígrafe, recor-rendo ao profeta Jeremias:

“Coisas espantosas e estranhas setêm feito na Terra". Esse mundoespantoso adquire uma configu-ração genésica nas páginas de seuscontos, porém passa a ter, na telade Bax, um caráter de serenidade epaz. As epígrafes que antecedem oscontos de Murilo, assinala JorgeSchwartz, prefazem uma profundainterdependência no mundo semân-tico das duas entidades epígrafe/conto.

O universo muriliano é aventura dohomem do “estar no mundo", daangústia existencial, do eterno valorhumano da liberdade, das aspiraçõespara o belo e dos sonhos desfeitos.

“Ao sobrevir-lhes de repente aangústia, eles buscarão a paz e nãohaverá". Ez. VII, 25. (O Convidado)

MURILORUBIÃO,SEGUNDOPETRÔNIOBAX

.29Especial MURILO RUBIÃO Dezembro 2006

“Como tinha sido ilusória a minhafuga da planície pensando encontrar a felicidade do outrolado da montanha". (Alfredo)

O homem luta para tirar o mundodesse tédio e dessa angústia.

Fazê-lo mais belo, mais humano.O Ex-mágico da Taberna Minhotase queixa: “Como seria maravi-lhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos,verdes". Mas é frustrado. “Estemundo é tremendamente tedioso,afastei-me da zona urbana ebusquei a serra".

O mundo da superfície está cheiode empecilhos; vem Bax e ofereceum lugar ideal para os heróis deMurilo. Com efeito a figura deMurilo na tela é cercada pelaságuas tranqüilas baxianas. É uma composição cromática deprofunda inspiração mística e degrande beleza plástica, pois Bax éum exímio colorista. Aí no mundosubmerso, flutuam suavemente ouniverso muriliano, representadopelos livros que Murilo escreveu.No primeiro plano do quadro

encontra-se o aristocrático tin-teiro, simbolizando a atividadeliterária. Os dois mundos: literárioe o plástico plenamente integrados.Aí a cartola solta peixes, cavalosmarinhos, mariscos fazendo lindasevoluções em torno da figura deMurilo. O ex-mágico continua, na concepção de Bax, a fazer suasmágicas, e não tem mais razão de se queixar: “Não me conforta a ilusão. Serve somente paraaumentar o arrependimento denão ter criado todo um mundo

mágico", pois continua sua obra,como Murilo sonhava.

Os dois mundos: O fantásticoliterário e o fantástico pictóricoentrelaçados pelo genial pincel deBax, em louvor à Cultura e à ArteMineira, que projetam um feixe deraios luminosos em sua trajetóriano âmbito do universo.

Retrato de Murilo Rubião, óleo sobre tela, 1982. Acervo de Escritores Mineiros da UFMG. Foto: Foca - CEDECOM/UFMG

Publicado no Estado de Minas, 30/10/91 e no jornalParticipação, Divinópolis, 30/11/91.

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30. Dezembro 2006 Especial MURILO RUBIÃO

Todas as fotos de Murilo Rubião: acervo Sylvia Rubião,exceto a 2ª foto na 4ª linha [Governador Rondon Pacheco, Murilo Rubião e Bax em Ouro Preto]: acervo particular de Bax.

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