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  • 8/18/2019 Suplemento DNA

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    Ciência e Tecnologia no Brasil

    ESPECIAL

    DUPLAHÉLICE

    50ANOS

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    4   PESQUISA FAPESP ESPECIAL

    Ciência e Tecnologia no Brasil

    ARTIGOS REPORTAGENS

    www.revistapesquisa.fapesp.br

       A .   B   A   R   R   I   N   G   T   O   N   B   R   O   W   N   /   S   P   L

    ESPECIAL

    OS GÊNIOSE O GENEROGÉRIO MENEGHINI

    Por que a descoberta do modelo

    do DNA há 50 anos, por

    Watson e Crick, ainda

    desperta tanto entusiasmo . . . .   6

    QUEBRA-CABEÇASDA COMPLEXIDADE

    EMMANUEL DIAS NETO

    Conhecimento da seqüênciade um genoma não

    basta para entender nossa

    carga genética . . . . . . . . . . . .  15

    GENOMA:UM BALANÇOPRELIMINAR

    JOSÉ FERNANDO PEREZ

    Cientistas brasileiros são

    atores importantes

    na ciência e na biotecnologia

    de Watson e Crick . . . . . . . . . .  20

    O GENOMA HUMANO 50 ANOS

    APÓS A DESCOBERTADA DUPLA HÉLICE DO DNAMAYANA ZATZ

    As celebrações dos 50 anos

    são um bom momento para

    refletir os limites éticos e

    as possibilidades reais . . . . . . .  26

    CIÊNCIA GENÉTICAE AÇÃO DIGITALJOÃO CARLOS SETUBAL

    Gerações futuras descobrirão

    que há pouca distância

    entre a invenção do computador

    e a descoberta do DNA . . . . . .  37

    A CULTURA AMEAÇADAPELA NATUREZA

    RENATO JANINE RIBEIRO

    Genoma Humano pode

    mostrar que problemas

    em nosso comportamento

    têm base genética . . . . . . . . . .  38

    OS CHAPELEIROS

    MALUCOS

    As descobertas de Watson

    e Crick desafiam

    os analistas a tentar adivinhar

    futuras conquistas . . . . . . . . . .  12

    INTERLÚDIO DA BIOLOGIAMOLECULAR

    Depois do seqüenciamento,

    será a vez de se criar

    a patologia e a farmacologiagenômicas . . . . . . . . . . . . . . . 24

    APOSTA CONTRA

    O CÂNCERAndrew Simpson diz

    que o Brasil deveria investir

    no desenvolvimento de

    fármacos contra tumores . . . . .  29

    COLABORAÇÃO DO BRASILAO MUNDO

    Ação integrada

    do setor público e empresas

    impulsiona pesquisa

    em biotecnologia . . . . . . . . . .  30

    A REVOLUÇÃODA BIOINFORMÁTICANos próximos anos,

    haverá mudanças em todas

    as ciências em torno

    da biologia molecular . . . . . . .  34

    DNA:A REVANCHE

    O escritor e médico

    Moacyr Scliar escreveu

    para Pesquisa FAPESP um conto sobre o DNA . . . . . . 41

    FICÇÃO

    Capa: Hélio de Almeida

    Fotos: Fabio Colombini, Miguel Boyayan,

    Sirio J. B. Cançado, Rudi Turner/ Universidade de Indiana, Eduardo Cesar,

    Delfim Martins/Pulsar, Sanger Centre,

    Vanderlei Rodrigues/USP, Walter Colli/ 

    IQ-USP, Eduardo Alves/Esalq/USP

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    PESQUISA FAPESP ESPECIAL   5

    ivros, jornais, revistas científicase de divulgação científica do mun-

    do inteiro vêm dedicando desdeo começo do ano páginas abundantes àcomemoração dos 50 anos da desco-berta da estrutura molecular do DNApelos pesquisadores Francis Crick, bri-tânico, e James Watson, norte-america-no. Nada mais justo. Materializada nomodelo da dupla hélice que eles mes-mos construíram e puderam admirarem 7 de março de 1953, e explicada à co-munidade científica internacional emapenas 939 palavras num artigo publi-cado pela Nature , em 25 de abril domesmo ano, a descoberta é consideradauma espécie de pedra fundamental dabiologia molecular. É, portanto, pontode partida de uma área científica queavança a passos largos e se desdobrahoje em excitantes zonas de fronteira doconhecimento, que alteram anteriorespercepções sobre a vida e traz para ohomem possibilidades até há pouco ini-magináveis de manipulação dos orga-nismos vivos.

    Pesquisa FAPESP , com esta edição

    especial, junta-se às dezenas, talvez cen-tenas de títulos que neste momento ex-ploram os significados da descoberta deCrick e Watson, e o faz, entretanto, res-peitando seu propósito editorial central,que é  o de mostrar resultados impor-tantes da pesquisa científica e tecnológicano Brasil. Assim, articula ao desvenda-mento original da estrutura moleculardo DNA, a sistemática e consistente pes-quisa genômica hoje em curso no país,dentro da qual há que se assinalar, obri-gatoriamente, o pioneirismo e o papel

    organizador da FAPESP.Observemos aqui que três décadas

    se passariam entre a construção do mo-delo da dupla hélice e o desenvolvimen-to da tecnologia que iria permitir o aces-so ao interior da estrutura molecular doDNA e às regiões até então insondáveisdos genes. Só  na segunda metade dosanos 80 começariam nos países mais de-senvolvidos a pesquisa de genes respon-sáveis por doenças humanas, os pri-meiros projetos de seqüenciamento

    genético de micro e macrorganismos, os

    primeiros desenvolvimentos de alimen-tos transgênicos. Considerado isso, o

    Brasil não se atrasou tanto para pôr oseu time organizadamente em campo.Porque foi em meados da década de 90que alguns pesquisadores e formulado-res da política científica e tecnológicaderam-se conta de que algo precisavaser feito para reverter uma situação quemostrava a pesquisa científica,como umtodo, avançando no país a taxas mais ele-vadas que as das médias mundiais, en-quanto a pesquisa em molecular cres-cia não só abaixo das taxas nacionais emgeral, como era inferior aos índicesinternacionais da área. Foi aí que a FA-PESP decidiu montar um projeto de se-qüenciamento genético de um micror-ganismo importante do ponto de vistacientífico, econômico e, ao mesmo tem-po,capaz de elevar rapidamente a com-petência local em biologia molecular.Oprimeiro capítulo dessa história cha-ma-se Xylella fastidiosa .

    E para falar simultaneamente da jálonga aventura internacional que a du-pla hélice inaugurou e de seus capítulos

    brasileiros,nesta edição alinham-se pes-quisadores como Rogério Meneghini,que escreve um belo review da genéticamolecular; Emmanuel Dias Neto, queaborda o estado da arte e as fronteiras aexplorar nesse vasto campo; Renato Ja-nine Ribeiro, que trata das questões quea mudança de paradigmas ora propos-ta pela biologia levanta para as ciênciashumanas; Mayana Zatz, com um peque-no resumo das conseqüências da pes-quisa em genômica para a saúde huma-na e João Setubal, que também resumeo que esperar da bioinformática, área depesquisa cujo nascimento resulta prati-camente de exigências da biologia mo-lecular. O diretor científico da FAPESP,José Fernando Perez, abre com um ba-lanço preliminar sobre a genômica noBrasil as páginas destinadas à pesquisano país. E, para fechar, com um brin-de aos leitores, um delicioso conto deMoacyr Scliar –  tudo isso entremeadopelo humor agudo de Claudius.

    Meio século de uma revolução

    CARTA DO EDITOR

    GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

    SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIAE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

    FAPESP

    CARLOS VOGTPRESIDENTE

    PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADOVICE-PRESIDENTE

    CONSELHO SUPERIOR

    ADILSON AVANSI DE ABREU, ALAIN FLORENT STEMPFER,

    CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT,

    FERNANDO VASCO LEÇ

    A DO NASCIMENTO,

    HERMANN WEVER, JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA,MARCOS MACARI,NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR,

    PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO,

    RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN AGOPYAN

    CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVOFRANCISCO ROMEU LANDI

    DIRETOR PRESIDENTE

    JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

    JOSÉ FERNANDO PEREZDIRETOR CIENTÍFICO

    PESQUISA FAPESP

    CONSELHO EDITORIAL

    ANTONIO CECHELLI DE MATOS PAIVA, EDGAR DUTRAZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO,FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J.DE CAMARGO

    ENGLER,JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUÍS NUNESDE OLIVEIRA, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS,

    PAULA MONTERO, ROGÉRIO MENEGHINI

    DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

    EDITOR CHEFE

    NELDSON MARCOLIN

    EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

    DIRETOR DE ARTE

    HÉLIO DE ALMEIDA

    EDITOR DO ESPECIAL

    CARLOS HAAG

    CHEFE DE ARTE

    TÂNIA MARIA DOS SANTOS

    DIAGRAMAÇÃOJOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI

    FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

    COLABORADORES

    CARLOS FIORAVANTI (EDITOR DE CIÊNCIA),CLAUDIUS, EDUARDO GERAQUE,

    EMMANUEL DIAS NETO,JOÃO CARLOS SETUBAL,

    JORGE COTRIN (REVISOR),MARCOS PIVETTA (REPÓRTER ESPECIAL),

    MAYANA ZATZ, MOACYR SCLIAR,REINALDO JOSÉ LOPES,

    RENATO JANINE RIBEIRORICARDO ZORZETTO (EDITOR-ASSISTENTE),

    ROGÉRIO MENEGHINI,SIRIO J. B.CANÇADO

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    Os artigos assinados n ã o refletemnecessariamente a opini ã o da FAPESP 

    É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIALDE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

    L

       I   S   S   N

        1   5   1   9  -   8   7   7   4

    MARILUCE MOURA - DIRETORA DE R EDAÇÃO

    ESPECIAL

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    Os gênios e o gene

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    Por que a descoberta do modelodo DNA há 50 anos, por Watson e Crick,ainda desperta tanto entusiasmo

    R OGÉRIO M ENEGHINI*

    DUPLA HÉLICE 50 ANOS

    James Watson (à esq.) e

    Francis Crick em 1953,

    diante do modelo do DNA

    * R OGÉRIO M ENEGHINI é professor titular aposentado do Departamento de Bioquímicado Instituto de Química da USP e coordenador da SMolBNet – Rede de Biologia Molecular Estrutural 

       A .   B   A   R   R   I   N   G   T   O   N   B   R   O   W   N   /   S   P   L

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    turas) deve recorrer aolivro The Eigh Day of Creation , de Judson.Tra-ta-se de uma soberba eextensa obra (650 pági-nas) de jornalismo cien-tífico. Judson levou seteanos entrevistando ospersonagens envolvidosno desenrolar dos acon-tecimentos, freqüente-mente contrastando de-poimentos e analisando documentos,trabalhos científicos e cadernos de la-boratório. Atingiu o clímax de sua ati-vidade profissional quando, além derelatar e interpretar as v árias facetasdas informações colhidas, chega oponto de explicar, com seus própriostermos e compreensão, a parte técnicaque cercava a descoberta.

    Por que mais um artigo? Creio quePesquisa FAPESP não pode deixar delembrar esse acontecimento, assimcomo tantas outras revistas de ciência.Quanto a eu aceitar o convite para es-crever algo sobre este assunto, foi por-que tive um forte entusiasmo ao to-mar conhecimento dessa descobertaem 1963 e acompanhei muito o que seescreveu posteriormente sobre ela.Afinal, a partir de 1965, trabalhei emum dos poucos laboratórios que fa-ziam biologia molecular no Brasil na-quela época, o do professor FranciscoJ. S. Lara.

    Por que essa descoberta desper-tou tão efusivos entusiasmo e encan-tamento, ao longo dos anos que seseguiram?

    Watson diz em seu Dupla H é lice que foi a maior descoberta da biologiadesde a teoria da evolução, de Darwin.Por outro lado, Crick, no dia da con-cepção da estrutura, entrou num pub,

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    á 50 anos a revista Na-ture  publicava, no nú-mero de 25 de abril de1953, o artigo de JamesWatson e Francis Crick 

    no qual a estrutura tridimensional dosal do ácido desoxirribonucléico (DNA)era apresentada.Eram duas páginas emque a primeira sentença começava:“Nósgostaríamos de sugerir uma estruturapara o sal do ácido desoxirribonu-cléico. Esta estrutura tem característi-cas inéditas que são de considerávelinteresse biológico”. Terminava com:“Não nos escapou que o pareamentoespecífico (de bases) que nós postula-mos sugere imediatamente um possí-vel mecanismo de cópia para o mate-rial genético”. Esta última sentença temsido considerada como sendo uma dasmais falsamente modestas da literatu-

    ra científica.Muito já se escreveu sobre a histó-ria dessa descoberta em livros e arti-gos. Eles incluem desde o “best-seller”de 1968 de Watson, A Dupla H é lice,até livros mais recentes, entre eles doisde autores brasileiros, Hist ó ria da Bio-logia Molecular , de Rudolf Hausmann(agora na Universidade de Freiburg,Alemanha), e Watson e Crick , a Hist ó -ria da Descoberta do DNA, por Ricar-do Ferreira (Universidade Federal dePernambuco).

    Provavelmente os mais famosossão A Dupla H é lice e The Eight Day of 

    Creation , por Horace F. Judson (Si-mon and Schuster, New York, 1979). Oprimeiro é  uma versão do próprioWatson da história da descoberta,onde, talvez por desejar que se tornas-se um livro “best-seller”, ou pela suaprópria personalidade, imprimiu umroteiro que destacava os episódiosmais novelescos dos acontecimentos.Conta como conseguiu obter de ma-

    Hneira escusa informações de dadoscristalográficos de concorrentes (Ro-salind Franklin, química e cristalógra-fa do King’s College de Londres), es-carnece de outro concorrente (ErwinChargaff, bioquímico da Universidadede Colúmbia em Nova York), que cri-ticava mordazmente a ignorância deCrick e Watson a respeito da estruturaquímica das bases do DNA, Adenina(A) Timina (T), Guanina (G) e Citosina(C). Chargaff tinha descoberto, no fi-nal da década de 40, que em todas asamostras de DNA analisadas o con-teúdo de A igualava ao de T, enquantoo conteúdo de G igualava ao de C etentava desmoralizar Linus Pauling(químico ícone do século 20, na épocaprofessor do Calif órnia Institute of Technology, que publicou em 1952uma sugestão da estrutura do DNA,

    onde três hélices se entrelaçavam eonde o fosfato aparecia protonado esem carga; no pH fisiológico, cerca desete, o fosfato deveria ter uma carganegativa, como aprendem os alunosde curso básico de química).

    Watson tinha 23 anos quando serevelou a dupla hélice. Desde entãosua personalidade cáustica tendeu afazer com que lhe atribuíssem o papelde vilão da descoberta. Divertido, masnão confiável em termos históricos, olivro A Dupla H é lice foi escrito numaépoca em que Watson já  desistia dacarreira de cientista para tornar-se um

    administrador de ciências (certamen-te os atributos demonstrados em seulivro o qualificavam para isso). No fi-nal da década de 1980, Watson liderouo início do projeto de seqüenciamentodo genoma humano.

    Sem dúvida, quem quiser formar asua própria história da descoberta (emuitas podem ser criadas, como os lei-tores podem ter notado de outras lei-

    James

    Watson

    tinha só 23 anos

    em 1953

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    no campus da Universidade de Cam-bridge, gritando:“O descobrimos o se-gredo da vida!”.

    À parte desses testemunhos dos au-tores, o fato é que muitos outros cien-tistas vieram a compartilhar dessas afir-

    mações ao longo dos anos.O que levou à unicidade dessa des-coberta? Provavelmente foi um amál-gama de fatores, com uma probabili-dade muito pequena de novamenteocorrer e que misturou ciência com

    aventura e arte.Em primeiro lugar a

    estrutura tem uma bele-za intrínseca, perceptívelmesmo para os leigos.

    Em segundo lugar,há  uma lógica químicano arranjo estruturalque imediatamente per-

    mite uma interpretaçãobiológica para a molé-cula do DNA. Embora otermo biologia molecu-lar tenha sido cunhado

    em 1935 por Warren Weaver, da Fun-dação Rockefeller, para descrever co-mo os fenômenos biológicos podemser compreendidos fundamentalmen-te pelo conhecimento das estruturasdas moléculas e das interações e alte-rações destas, apenas em 1953 é que sepercebeu de forma dramática esta cor-relação estrutura-função, com a des-

    coberta da dupla hélice. Essa desco-berta é, portanto, um marco frente aopassado e ao futuro, no que diz respei-to a essa biologia molecular, hoje maisconhecida como biologia molecularestrutural.

    Em terceiro lugar foi uma luta dedois jovens Davis contra um Goliaspoderoso. De fato, Linus Pauling já ti-nha descoberto a estrutura helicoidalde proteínas (α-hélice) juntamentecom Robert Corey, e tinha informa-ções que a estrutura do DNA tambémpoderia ser helicoidal. Pauling erauma eminência da f ísico-química, já

    com mais de 50 anos, e iria ganhar oPrêmio Nobel em 1954 pelos seus tra-balhos com estrutura de proteínas.Wat-son e Crick sabiam das intenções dePauling e obviamente temiam ser su-perados na corrida.

    A figura da estrutura de DNA étão ubíqua que não cabe apresentá-laaqui. Sumariamente, a estrutura pos-

    sui duas hélices que se entrelaçam,for-mando uma dupla hélice. Imaginandoum eixo que corre no centro da duplahélice, o arcabouço de cada hélice éformado pela seqüência de um açúcar(desoxirribose) ligado a um fosfato,essa

    unidade se ligando a outra idênticainúmeras vezes, de forma paralela aoeixo da dupla hélice. O resultado seriaaçúcar-fosfato-açúcar-fosfato e assimpor diante.

    Uma hélice simples tem uma pola-ridade, isto é, percorrendo-a num sen-tido é diferente de percorrê-la no sen-tido oposto. Um dado fundamental éque as duas hélices do DNA se entrela-çam com polaridades opostas (chama-das de hélices antiparalelas).

    A dupla hélice se enrola no sentidohorário. Procure enrolar em espiraluma fita de papel ao redor de um lá-pis. Será possível fazê-lo de duas for-mas, no sentido horário ou anti-horá-rio. As duas hélices assim obtidas sãoassimétricas e distintas, uma sendo aimagem de espelho da outra. É o mes-mo que uma mão se refletindo numespelho. A mão direita é a imagem daesquerda e vice-versa.

    s bases A, T, C, G correspon-dem ao terceiro compo-nente do DNA. Elas têmestruturas planares e es-tão também ligadas ao

    açúcar. Porém os seus planos se dis-põem ortogonalmente ao eixo da héli-ce. Elas têm um pareamento específiconum mesmo plano: A numa hélice secontrapõe a T na outra ou G numa hé-lice a C na outra. As hélices são porisso ditas complementares. Nota-se que,por causa desse pareamento específi-co, num certo DNA a quantidade debases G é  igual a C e a quantidade deG é  igual a T, como tinha descobertoChargaff.

    A ligação química que une as basesé chamada de ponte de hidrogênio. Es-sas forças são importantes elementos

    de estabilização da dupla hélice. EntreA e T há duas pontes de hidrogênio,enquanto entre G e C há três. Se olhar-mos esses pares de bases de cima,vere-mos que eles têm dimensões e formaquase idênticas, de modo a permitirque o diâmetro da dupla hélice per-maneça constante ao longo do eixo. Seolharmos a dupla hélice de perfil, ve-remos que os pares de bases estão em-

    pilhados, de forma ortogonal ao eixo,e com um recobrimento parcial porcausa da volta da hélice. Seria como setomássemos pedras de dominó  (re-presentando os pares e base) e as em-pilhássemos, fazendo com que a de

    cima forme um ângulo de 36 graus degiro com a de baixo. Se empilhásse-mos dez pedras, completaríamos 360graus, isto é, uma volta da dupla héli-ce corresponde a dez pares de bases. Adistância entre os pares de bases é de3,4 angströns (um angström equivalea 10-10 metros), de maneira que o pas-so da dupla hélice (distância ao longodo eixo correspondente a uma voltacompleta) é de 34 angströns.

    Certamente os elementos funda-mentais dessa estrutura forneciam ex-plicação completa das duas proprie-dades mais importantes do gene: a

    codificação de proteínas, dada pelaseqüência de bases, e a duplicação dogene: as fitas complementares A e B seseparariam e seriam copiadas, A dan-do uma nova fita B e B, uma nova A .Duas novas dupla hélices AB  e BA ,idênticas a dupla hélice mãe AB, se-riam formadas.

    O encontro de Watson e Crick é oque se pode chamar de fortuita com-plementaridade moldada para a des-coberta que viriam a fazer. Ambos ti-nham lido o livro do famoso f ísico

    Erwin Schrodinger O que É   a Vida? publicado em 1944. Muitos biólogos,f ísicos e químicos ficaram magnetiza-dos pelas especulações de Schrodingera respeito da natureza química dogene, até  então desconhecida. Schro-dinger chamava o material genético desólido aperiódico. Aperiódico porquenão poderia ser repetitivo como umcristal de cloreto de sódio, senão, comopoderia codificar tantas característi-cas distintas de um organismo? Sólidoporque o gene não poderia ter as pro-priedades de substância orgânica co-mum, isto é, de sofrer mudanças quí-

    micas numa taxa relativamente alta àtemperatura ambiente, incompatívelcom a estabilidade do gene. Schrodin-ger argumentava essa estabilidade como exemplo dos membros da dinastiaHabsburg da Áustria, cujos retratos,que retroagiam dois séculos, mostra-vam freqüentemente uma má-forma-ção labial. Sem dúvida a estabilidadedo material genético é hoje explicada

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    Beleza

    intrí nsecaera visí vel

    até paraleigos

    A

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    dedução, com o emprego apenas demodelos de átomos introduzidos porPauling para definir estruturas de pro-teína. Olhando por outro ângulo, quemais poderiam fazer? Não sabiamcomo preparar amostras de DNA, ja-

    mais tinham trabalhado com um ge-rador de raios X para obter fotos dedifração de raios X, e tinham conheci-mentos parcos da química do materialgenético. Crick tinha uma vantagem,que era a de saber interpretar dados dedifração de raios X. Osconhecimentos de gené-tica de v írus e bactériasde Watson, trazidos dolaboratório de Luria, depouco adiantavam nessecenário. Como foi pos-sível que em um ano emeio estivessem publi-

    cando o trabalho na re-vista Nature com a defi-nição da estrutura duplahélice?

    Há  v ários episódiosrelevantes: em novembro de 1951, Wat-son compareceu a um seminário deRosalind Franklin no King’s College,que comentava sobre suas fotos dedifração de raios X em fibras de DNA.Vários dados importantes foram apre-sentados: a unidade cristalina (a uni-dade que se repete e que fornece o pa-drão de difração) indicava uma grande

    hélice contendo duas, três ou quatrocadeias, v árias moléculas de água(cerca de oito) e nas quais os fosfatosestavam na interface da hélice e dosolvente aquoso (isto é, ao lado ex-terno da hélice, ao contrário do que aestrutura proposta por Pauling mos-trava).Vários relatos indicam que Wat-son conseguiu captar muito pouco doque Rosalind discutiu e, pior, não to-mou nota de nada. Quando questio-nado por Crick, forneceu, de memó-ria, dados errados; principalmentefalhou quanto aos números do altoconteúdo de água por unidade crista-

    lina. Um primeiro modelo foi cons-truído, baseado nessas premissas errô-neas, e logo desqualificado por v árioscolegas do Cavendish e do King’s Col-lege. Crick argumentou mais tardeque esse fracasso não teria sido só cul-pa de Watson, por ter fornecido dadoserrados, mas também dele própriopor não saber química suficiente paraperceber que as cargas dos fosfatos

    pelo processo de reparo do DNA e cer-tamente Schrodinger usava o termosólido como metáfora. Ademais o ma-terial genético deveria ter proprieda-des que permitissem a sua reprodu-ção.

    m 1946,Oswald Avery e seuscolaboradores demonstra-ram que DNA constituía omaterial genético. Não ésurpreendente, portanto,

    que v ários cientistas estivessem inte-ressados em DNA no início da décadade 50: virologistas, f ísicos, químicos ebiologistas estruturais. Não é  surpre-endente, tampouco, que Watson, en-contrando-se num congresso em Ná-poles com Maurice Wilkins, tenhaficado excitado ao saber do interessede cientistas do King’s College, ao qualWilkins pertencia, e do Cavendish La-boratory em Cambridge por estudosestruturais de DNA. Conseguiu sair deCopenhague, onde realizava um pós-doutoramento, e com a ajuda de Sal-vador Luria, renomado geneticista en-tão na Universidade de Illinois eorientador do doutorado de Watson,

    mudar-se eventualmente para Cam-bridge, no Laboratório Cavendish. Láconheceu Crick em outubro de 1951,que com 35 anos trabalhava com a es-trutura de hemoglobina como mate-rial de tese de doutoramento (na sua

     juventude trabalhou durante a guerracomo f ísico de radares, daí esse atraso).

    Começou assim, a grande aventura.Ambos tinham os mesmos interesses.Eram jovens e desconhecidos. Sabiamquase nada sobre a estrutura química doDNA. Alguns resultados de difraçãode raios X do King’s college, obtidospor Maurice Wilkins e separadamentepor Rosalind Franklin, sugeriam umaestrutura helicoidal. Falavam comgrande entusiasmo, e eram brilhantes.Contagiaram Max Perutz –  que iriaposteriormente elucidar a estruturatridimensional da hemoglobina –, que,por sua vez, convenceu Sir LawrenceBragg (diretor do Cavendish) a deix á-los trabalhar com DNA.

    Crick insistia que eles não tinhamque se preocupar muito com os fatos esim com a estrutura em si, baseando-se em dados de difração de raios X eutilizando uma mistura de intuição e

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    Crick

    não queriaperder

    tempo em

    fatos

       C   L   A   U   D   I   U   S

    E

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    implicariam alto conteúdo de água,não levado em conta no modelo. Porinterferência de John Randall (King’sCollege) com Bragg, Watson e Crick ti-veram de desistir de trabalhar com DNA,deixando isso para o pessoal do King’s

    College. Crick voltou para sua tesecom a hemoglobina e Watson induziuo crescimento de cristais de proteínapara Randall. Que mais poderiam fa-zer, sem emprego e numa situaçãotransitória, de passagem por onde es-tavam?

    No entanto, 15 meses depois, Wat-son e Crick publicavam a estruturacorreta do DNA.

    O ponto de virada deu-se com apublicação de uma possível estruturado DNA por Pauling, também quimi-

    camente sem consistên-cia. A simples publica-

    ção, no entanto, acirrouos ânimos do Caven-dish. Não se conforma-vam por terem perdidoa corrida para Paulingna descoberta das estru-turas α-hélice e folhaβ-pregueada de proteí-nas e não poderiamperder novamente como DNA. Bragg reativouWatson e sCrick.

    Nesse intervalo, tanto Watsoncomo Crick tinham se preocupado em

    estabelecer bases teóricas mais sólidaspara suas pretensões. Crick, juntamen-te com William Cochran e VladimirVand, publicou um artigo teórico so-bre interpretação de difração de raiosX em estruturas helicoidais.Por sua vez,Watson tentou entender melhor as es-truturas das bases do DNA.

    O grande pulo do gato deu-se quan-do o relatório da equipe do King’sCollege para o Medical Research Coun-cil (que dava suporte financeiro parao grupo de cristalografia) passou pe-las mãos de Perutz, que o entregou a

    Crick. Os dados recentes de RosalindFranklin sobre medidas de difração deraios X de DNA estavam ali meticulo-samente descritos. Dados reveladoresaos olhos de observadores argutoscomo Crick tinham passado desperce-bidos por Rosalind Franklin. Anos de-pois, André Lwoff (Institut Pasteur) e,separadamente, Erwin Chargaff publi-caram artigos questionando se Perutz

    tinha sido ético em disponibilizar o re-latório do King’s College a Crick.

    Horace Judson, no livro The Eight Day of Creation , conta que examinouminuciosamente os cadernos de labo-ratório de R. Franklin. Segundo ele,

    Franklin não tinha se dado conta daimportância de seus dados. Tinha des-coberto que em condições mais úmi-das o DNA passava de uma forma Apara B, a qual claramente mostrava-sehelicoidal. No entanto, voltou suascostas para a estrutura B e se preocu-pou mais com a estrutura A, questio-nando se esta correspondia a uma es-trutura helicoidal. A estrutura B, alémde mais reveladora em termos de defi-nição por difração de raios X, deveriaser mais próxima da estrutura fisioló-gica, num meio aquoso.

    rick percebeu claramen-te os parâmetros geomé-tricos da unidade crista-lina a partir dos dadosde Franklin (afinal ele es-

    tava desenvolvendo uma tese de dou-torado na qual a estrutura de proteí-nas prescindia inequivocamente dessesparâmetros) que permitiram concluirque havia duas hélices, correndo emsentido antiparalelo, e que as bases es-tavam inquestionavelmente no interi-or da dupla hélice.

    No entanto, faltava entender como

    as bases de uma e outra cadeia intera-giam mantendo uma estrutura maisrígida. Crick não aceitava as pontes dehidrogênio, tão popular naquele mo-mento devido às descobertas de Pau-ling da importância delas na estruturade proteínas. A partir de dados de li-vros, textos,Crick admitia que as basestinham uma estrutura enólica e nãoceto (uma cadeia carbônica, com umgrupo OH ligado a um carbono, oqual se une a outro carbono por umadupla ligação, pode estar em equilí-brio tautomérico com uma estruturaem que este mesmo carbono está liga-

    do por dupla ao oxigênio).Aqui entra outro personagem, Jerry Donohue, vindo do grupo de Pauling,e que entendia de química mais doque qualquer investigador do Caven-dish, e que naquela época estava nes-sa instituição. Ele percebeu imediata-mente que Crick estava sendo dirigidopor argumentações errôneas, pois asestruturas estáveis das bases deviam

    estar na forma ceto, que permitia aformação de pontes de hidrogênio. Aestrutura do DNA tornou-se entãopraticamente montada nas cabeças deCrick e Watson.

    O último lance parecia, no entan-

    to, estar cabendo a Watson. Não con-seguindo esperar pela fabricação demodelos atômicos pela oficina do Ca-vendish, que seriam utilizados paraconstruir a estrutura do DNA compa-tível com todas essas informações,pôs-se a trabalhar com modelos de pa-pelão que ele mesmo construiu.   Équase inacreditável que a Watson te-nha cabido a última palavra. Não ten-do contribuído nem antes nem depoispara maiores revelações científicas epor ter se apegado a conjecturas pou-co esclarecedoras no episódio da des-coberta (como, por exemplo, que pon-

    tes entre íons de magnésio e de fosfatoestabilizariam a estrutura do DNA),teve uma revelação que o conduziu aoponto final da descoberta.

    Com seus modelos toscos,pôde per-ceber que o pareamento de guanina ecitosina e o de timina e adenina ti-nham contornos geométricos compa-ráveis e que duas pontes de hidrogênionesses pares seriam, conforme os ensi-namentos de Donohue, responsáveispela estabilidade da dupla hélice. Des-sa forma o diâmetro da dupla hélicepermaneceria constante ao longo do

    eixo. Nenhum outro tipo de par per-mitia isso. Ademais, e igualmente im-portante, esses dois pareamentos fa-riam justiça aos dados de Chargaff,que, a bem da verdade, eram levadosmais a sério por Watson do que poroutros personagens envolvidos.

    É curioso que tanto Watson comoCrick sabiam da regra de Chargaff etinham inferido que ela era impor-tante na replicação complementar. Po-rém, como notou Crick: “O paradoxoda coisa toda foi que, quando nós tí-nhamos todos os elos da estruturaprontos, não tínhamos usado a regra

    de Chargaff. Nós fomos empurradospara ela”. A estrutura do DNA com osmodelos da oficina de Cavendish foifinalizada poucos dias depois. Porém,no dia seguinte ao vislumbre de Wat-son, 28 de fevereiro de 1953, este eCrick sabiam, embora só  na cabeça,toda a estrutura: ela tinha emergidoda sombra de bilhões de anos, absolu-ta e simples, e foi vista e entendida

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    De iní cio osmodelos

    eram

    muito

    toscos

    C

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    pela primeira vez,de acordo com o re-lato de Judson.

    fascinação da descoberta épercebida por mais alguns

    fatos: Watson e Crick, em-bora jovens e sem posi-

    ção acadêmica, conse-guiram pelo próprio brilho ser ocentro da atenção de uma comunida-de de cientistas de primeira grandeza.Vários deles receberam Prêmio Nobel,posteriormente à descoberta da duplahélice. Diretamente envolvidos com aepopéia da dupla hélice estiveram La-werence Bragg (Nobel de Física em1915), Linus Pauling (Nobel de Quí-

    mica em 1954), Alexander Todd (No-bel de Química, 1957), Maurice Wil-kins (Nobel de Medicina ou Fisiologiaem 1962), Max Perutz e John Kendrew (Nobel de Química em 1962). Como“mensageiros” estiveram André Lwoff e Jacques Monod (Nobel de Medicinaou Fisiologia em 1965) e Max Del-bruck, Alfred Hershey e Salvador Lu-ria (Nobel de Medicina ou Fisiologia

    em 1969). Crick e Watson receberam oPrêmio Nobel de Medicina ou Fisiolo-

    gia de 1962, nove anos após o anúncioda estrutura da dupla hélice.Quão complexa é  a estrutura do

    DNA? Eis aqui a observação de Perutz,que acompanhou todos os episódiosda descoberta:  “Uma proteína é  milvezes mais dif ícil do que DNA. DNAfoi comparativamente simples e pôdeser elucidado pelo método de tentati-va. Há pouca informação a partir deuma fotografia de difração de raios X;o que Crick e Watson tinham era real-mente três medidas limitadas: a lar-gura, a altura entre bases paralelas em-pilhadas e a altura de uma volta

    completa da hélice. Desses dados elessabiam que o mesmo padrão recorriaperiodicamente ao longo do eixo da fi-bra. Obedecendo esses três parâme-tros, eles conseguiram resolver a estru-tura com modelos de construção. Nãoé possível resolver a estrutura de pro-teína por esse método, pois não há pa-drões de repetição. Para determinartais estruturas é  preciso determinar

    v ários milhares de parâmetros a partirdas fotografias de raios X ”.

    Uma assertiva de Jacques Monod,um outro teórico da biologia molecu-lar,parece colocar Crick no seu devidocontexto:  “Francis (Crick) de fato es-tudava mais do que nós. Ninguémdescobriu ou criou a biologia molecu-lar. No entanto, um homem dominouintelectualmente essa área, porque elesabia mais do que nós e entendia maisdo que nós: Francis Crick!”.

    O que aconteceria se os nomes deWatson e Crick fossem apagados dahistória da ciência, num exercício in-telectual? Gunther Stent, famoso bio-logista molecular, argumentou:   “Se

    Watson e Crick não tivessem desco-berto a estrutura do DNA, ao inv és deela ser revelada com todo o seu gla-mour, seria apresentada com um go-tejamento lento, de forma que seuimpacto teria sido muito menor”.Com esse argumento, Stent sentenciaque uma descoberta científica é maisum trabalho de arte do que em geralse admite.

    PESQUISA FAPESP ESPECIAL   11

    A

       C   L   A   U   D   I   U   S

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    Os chapeleiros malucos

    les já foram descritos comodois “chapeleiros malucosconversando durante ochá” e, efetivamente, essadupla, tão célebre como o

    modelo de hélice que revelaram, levoua biologia ao país das maravilhas. “Se

    percebemos, na época, o significado denossa descoberta? Bem, Jim Watsonlembra que anunciei no The Eagle, opub local, que havíamos descoberto osegredo da vida”, afirma Francis Crick em um texto cedido com exclusividadepara a revista Pesquisa FAPESP . “Namanhã  de sábado, 28 de fevereiro de1953, Jim estava preguiçosamente ma-nuseando os modelos de metal que fi-zeramos do DNA e notou que um parAT tinha formato parecido com o de umpar CG. Na hora, vimos que os pares debases obedeciam a essas regras”, diz.

    “Os modelos tinham a simetriacorreta, ligdas por um eixo duplo per-pendicular ao eixo da hélice”, lembra.Curiosamente, Watson não gostou daidéia.“Ele tentou, sem sucesso, construiruma espinha dorsal como se as duascadeias fossem paralelas. Mas isso exi-gia uma rotação de 18 graus entre umnucleotídeo e outro, estreita demais,ao passo que as cadeias antiparalelaspediam 36 graus e a rotação era maisf ácil”, fala. Estava revelada a pedra deroseta da configuração genética.

    “A dupla hélice iniciou uma cadeiaexplosiva de descobertas sobre como a

    vida funciona e as novas revelaçõesvieram muito rapidamente”, observaVictor McElheny, ex-diretor do ColdSpring Harbor Laboratory, professorvisitante do programa de Ciência eTecnologia do MIT e autor do recém-lançado Watson and DNA: Making a Scientific Revolution . Com inusitada mo-déstia, Crick faz uma ressalva da im-portância de seu trabalho.

    12   PESQUISA FAPESP ESPECIAL

    As descobertas de Watson e Crickdesafiam os analistas a tentaradivinhar futuras conquistas

    CARLOS HAA G

    E“Sem dúvida, ele foi fundamental.

    Mas nós não previmos o seqüencia-mento do genoma humano. Enxer-gamos, no máximo, o código genético,embora tenhamos pensado erronea-mente que o RNA ribossômico fosse oRNA mensageiro”, diz Crick. “Pensa-vamos que seqüenciar o DNA seriaalgo muito dif ícil e que tomaria muitotempo. Tampouco pudemos prever oDNA recombinante”, fala. “Mas isso éparte da ciência. Raras vezes pode-seantever algo corretamente mais doque dez ou 15 anos adiante. Descober-tas inesperadas podem, com freqüên-cia, alterar o quadro completamente”,avalia o pesquisador.

    McElheny reconhece que o futuro,atual, deve em muito ao empenho deWatson. “Ele forçou tudo para a frente.Jim sabia que era preciso fazer as pes-

    soas entenderem que aquilo era e é umarevolução baseada em grandes proble-mas. E fez com que muitos jovens detalento fossem a campo para trabalharsobre a descoberta da dupla. Watsonensinou gerações de cientistas comopensar a biologia”, observa o pesquisa-dor. “Ele queria que toda seqüência deAs, Ts, Gs e Cs do DNA humano, maisde 3 bilhões, viessem à  luz no cin-qüentenário da descoberta do modelo,quando ele completa 75 anos”, revela oautor da biografia do cientista.

    “Pena que boa parte das celebraçõesdeste ano se concentrem na descober-

    ta em si, no estado presente da ciênciado DNA e nas esperanças e nos temo-res do uso do conhecimento biológico”,avisa. “Dá-se pouca atenção à cascatade descobertas, muitas surpresas, aolongo desses 50 anos e que levaram aosaber atual genético. Mas não duvidoque o desejo de Jim Watson seja cum-prido e ele ganhe esse belo presente deaniversário.”

    “O futuro? Notem que, ao menosem termos de procariotes, a determina-ção da seqüência, do DNA para o RNAe para a proteína (o que Jim chama,incorretamente, de o Dogma Central),é, em termos de informação, um pro-cesso que apenas se auto-alimenta”,nota Crick. “Em verdade, para o futu-ro, somos confrontados não com umtal processo, mas com sistemas dinâ-micos não-lineares, cuja teoria é frag-mentária, complexa e confusa. Isso eas interações de grupos de proteínas emgrandes compostos são os problemasque nos esperam à frente”, avalia o ci-entista. “Parece não haver limites paraas questões que nos aguardam, masnão viverei para ver suas soluções.Masmuitos de vocês v ão conseguir assistirao nascimento de técnicas radicalmen-te novas e chegar a novas descober-

    tas. Boa sorte”, diz Crick.Brincadeira - O jornalista Kevin Davi-es, editor da revista Bio-IT World e au-tor de Decifrando o Genoma , faz eco àsdeclarações de Francis Crick. “Se pen-sarmos a genética como um campo defutebol, com certeza estamos no pri-meiro tempo. A genética do século 20iniciou-se com a redescoberta das leisde Mendel e terminou com a seqüênciado genoma. Mas nós temos outroscem anos para realmente entender co-mo essa informação pode ser codifi-cada em saúde e doença”, analisa. Se há

    muitas promessas para o futuro, o querealmente podemos esperar nas novasfronteiras da pesquisa? “O enfoque ain-da está  nos genes, em especial comoeles se modificam,por exemplo,nos cân-ceres. Mas muitos já  se voltam para oestudo da proteômica. Os cientistas, noentanto, avisam que os genes são brin-cadeira perto das proteínas”, acreditaKevin Davies.

    DUPLA HÉLICE 50 ANOS

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    estudo Our Posthuman Future: Conse-quences of Biotechnology Revolution (que deve chegar ao Brasil, traduzido,pela Rocco, neste ano). “Somos presasf áceis dos cientistas desde os tempos deFrancis Bacon, acreditando, como eles

    acreditam, que todo o progresso daciência é para o nosso bem. Até agora,o que mantém em pé o fundamento daigualdade entre raças, sexos e pessoasé a nossa crença de que não há dife-renças entre eles. No momento emque os mapas dissecarem essas di-versidades, estaremos diante de umdilema moral que pode ‘dar razão’ apreconceitos já  vencidos”, avalia opesquisador.

    James Watson é  conhecido pelosseus detratores comoum cientista inflex ívelque denuncia qualquer

    tentativa de se fecharuma questão de pesqui-sa biológica por causa deriscos e dilemas éticos.“Como os biólogos dostempos de Mendel eDarwin, ele rejeita total-mente a idéia de que avida é e sempre será, dealguma maneira, algo ase deixar desconhecido.Além disso ele detesta a hipótese de quedesmembrar problemas em pequenaspeças que podem ser solucionadas e

    resolver o todo viole algum princípioholístico”, defende McElheny. “Tentarregulamentar procedimentos futuros éum risco absurdo. As pessoas achamque têm uma escolha quando o assun-to é a manipulação genética e isso nemestá mais posto. A pesquisa genética éinevitável”, concorda Gregory Stock,diretor do programa de Medicina,Tecnologia da Universidade da Cali-f órnia (UCLA). “Estou absolutamentecerto de que, em menos de uma déca-da, teremos feitos amplos estudos po-pulacionais associando certos padrõesgenéticos com atributos relacionados à

    saúde e longevidade”, diz o pesquisadoramericano. O próprio James Watsonnão teria dito melhor.

    Ou teria: “Entender a natureza hu-mana é, acredito eu, um dos grandesobjetivos para este século: em que me-dida somos realmente controlados porgenes. Essa é a grande pergunta”, avaliaWatson. “Você tem apenas que conver-sar com a mãe de Francis Crick para

    PESQUISA FAPESP ESPECIAL   13

    cer ou outra coisa”, reforça Davies. “Aciência do DNA, no campo da medici-na, vai,certamente, ajudar a estender a

    vida humana e fazê-la menos doloro-sa. Esa ciência foi crucial para identifi-car o v írus que causa Aids e para obteralgumas drogas que ajudam a comba-ter essa doença. O trabalho do DNAencobre os aspectos genéticos das do-enças humanas: os genes que intera-gem com nosso ambiente para causarcâncer ou outras moléstias”, continuaMcElheny.

    ambiente é outra pala-vra-chave na visão fu-tura do DNA. “Já temosum dilema moral por

    causa do mapeamentodos genes. Ao decifrarmos esse mapa eestabelecermos a ligação entre genese comportamento, podemos depararcom verdades indesejáveis”, acreditao sociólogo Francis Fukuyama, que,preocupado com que o chama de “des-caso de alguns cientistas com questõeséticas sobre o futuro da manipulaçãogenética”, lançou, no ano passado, o

    Destinoestaria nos

    genes e

    não emestrela

    “Hoje, a vasta ciência do DNA en-frenta muitas novas questões. Agora quea seqüência humana do DNA está qua-

    se completa, há a necessidade de fazerum dicionário completo de todas as pro-teínas que são “especificadas” pelo DNAe também precisaremos criar uma gra-mática da forma em que essas proteínasinteragem umas com as outras. Os bió-logos lutam para dar algum sentido dadescoberta recente de um enxame depequenas moléculas de RNA que têmmuitas funções no controle dos proces-sos da vida”, avisa McElheny. Não semrazão, as palavras poéticas de Watson:“Nós crescemos pensando que o nossodestino estava nas estrelas.Agora, sabe-mos que, em boa parte, nosso destino

    está nos genes”.“Preste bem a atenção no “em boaparte”: mesmo Watson concorda que osgenes não determinam completamen-te nosso comportamento e personali-dade. Mas, ao determinar as variações-chave em nossa seqüência única deDNA, poderemos dizer para você, emum estágio muito inicial, se você estádestinado a sofrer de Alzheimer, cân-

    O

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    saber que ele não é um produto de suacriação. Ela era ótima, mas eles não ti-nham nada em comum. A singula-ridade de Francis vem de qualidadesque eu achei muito amáveis. Quantodisso vem dos genes? Não sei, mas

    meu palpite é de que não poderia sermuito”, brinca.Tudo ainda se com-

    plica quando somos in-formados, como fomos,de que há  semelhançasgenéticas notáveis entrenós e nossos parentesprimatas mais próxi-mos, sem falar da nossaproximidade genéticacom outras espécies.“Oque nos faz únicos? Éuma grande questão eexplica a razão de os ci-

    entistas estarem loucos para seqüen-ciar o genoma dos chimpanzés, poisnós dividimos 98,5% de nosso DNA.Mas as diferenças de 1,5% é  que po-dem revelar as pistas para a chave dasdiferenças genéticas que nos separamdos primos primatas”, avalia KevinDavies.“Procurar por lugares no DNA

    em que há diferenças pequenas e espe-cíficas de uma pessoa para a outra aju-da os objetivos de uma medicina que émais ‘individualizada’ que a de hoje”,diz McElheny. “Somos pouco diferen-tes. E daí? Basta olhar para perceber

    como, em verdade, somos diferentes”,acredita Watson.Os dilemas éticos, porém, também

    incluem a exploração da manipulaçãodo DNA para fins materiais. “Os pro-blemas éticos decorrentes das novas ha-bilidades de alterar sementes ou de di-agnosticar doenças genéticas não sãomuito diversos dos antigos dilemaséticos da medicina. Todos se referem acomo se define ‘boa vida’ e se conseguefazer com que todas as pessoas tenhamacesso à comida farta e a cuidados mé-dicos modernos. É  ético impedir fa-zendeiros de usar sementes genetica-

    mente modificadas que são resistentesa pragas? É ético deixar nascer um fetoque traz genes capazes de gerar um de-feito f ísico catastrófico?”, perguntaMcElheny.

    “A ciência sempre pode ser usadapara fazer o mal. A questão é: nós me-lhoramos a nossa vida nos últimos cem

    anos? Nem preciso pensar muito paradizer que sim e acredito com certezaque nos próximos cem anos vamosconseguir com que ela seja ainda me-lhor. Creio piamente que um desastrecrucial é imaginar o retorno ao nosso

    meio de alguma doença infecciosa. Ima-gine se algo assim matasse metade dapopulação mundial: estariamos numarecessão por décadas. Creio que o co-nhecimento é uma coisa boa e que aspessoas, ao menos boa parte delas e porboa parte do tempo, tentam usar esseconhecimento de forma construtiva.Mas, ainda assim, com certeza, o futu-ro nos reserva mais Hitlers, Stalins eIdi Amins”, explica Watson.

    Devemos, então, esperar um futuroglorioso e genético, como nos bons li-vros de ficção, ou temer a “sociedadepós-humana” de Francis Fukuyama? “Abiologia é sempre incomodada por fan-tasias ficcionais sobre seres humanoscriados para ser escravos. Nós já temosescravidão em larga escala, sem nenhu-ma manipulação dos nossos genes. Osreais problemas humanos são maioresdo que as fantasias e estão conosco des-de o início”, fala McElheny.

    “O DNA é um ícone celebrado, masé importante termos em mente que elenão controla tudo no comportamentohumano ou temer qualquer manipula-ção de sua estrutura. O ambiente é cru-cial e, apesar de todas as promessas da

    genética, não há  dúvida de que umafração de todo o dinheiro gasto no pro- jeto genoma poderia salvar muitas vi-das se fosse gasto com doenças queafetam o Terceiro Mundo, como malá-ria”, diz Kevin Davies. A dupla, héliceou os cientistas, então, não nos devemcausar medo. Afinal, como resistir àcandura com que Watson definiu adescoberta do segredo da vida, anun-ciada no pub The Eagle, há  50 anos:“Francis e eu somos famosos apenasporque o DNA é tão bonito!”. Ninguémduvida disso, com certeza.

           C       L       A       U       D       I       U       S

    Ciênciapode ser

    usada

    para fazer

    algo mau

    Leia mais

    50 Years of DNA , de Julie Clayton e Carina

    Davis. Nature Palgrave, R$ 116,14

    DNA: The Secret of Life ,

    de James Watson. Knopf, R$ 167,55

    Os dois livros sairão ainda neste semestre nosEUA e Inglaterra. Encomendas antecipadas

    na Livraria Cultura, fone (11) 3170-4033

    14   PESQUISA FAPESP ESPECIAL

  • 8/18/2019 Suplemento DNA

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    Quebra-cabeças da complexidade

    estudo da biologia talvezseja tão antigo quanto osurgimento das estrutu-ras cerebrais que permi-tiram o estabelecimento

    da linguagem e o desenvolvimento dopensamento consciente. Esse processo

    elaborativo fez com que a humanida-de se ocupasse, há milhares de anos,com a compreensão de suas origens etambém com os processos relaciona-dos à vida, doença e morte. Nos últi-mos 50 anos, foi possível acompanhardescobertas fantásticas em diversasáreas do conhecimento. Na biologia,tivemos um salto tremendo, que cul-minou com o seqüenciamento com-pleto do genoma humano alcançadorecentemente.A habilidade de acumu-lar uma vasta quantidade de informa-ção genética nos permitiu conhecer a

    base estrutural de diversos genomas,desde as bactérias mais primitivas (cha-madas de arqueobactérias) até o ho-mem, passando por fungos, parasitas,vermes, plantas e modelos como a mos-ca-das-frutas e o camundongo.

    Esse conhecimento acumulado,permite reconstruir a relação evolutivade uma boa parcela dos seres vivos, re-contando a história da vida em nossoplaneta. A capacidade de ler genomasalterou de maneira fundamental o es-tudo da biologia, da medicina e de di-versos campos associados, influenciandoum variado grupo de indústrias, que

    incluem a química fina,a farmacologia,a agroindústria e outras.A grande quan-tidade de informação produzida repre-senta uma rica fonte de informaçãoque deve ser cuidadosamente estudada,de modo a permitir o avanço mais pro-

    Conhecimento da seqüênciade um genoma não basta paraentender nossa carga genética

    EMMANUEL DIA S NET O*

    * E MMANUEL D IAS N ETO é pesquisador do Instituto de Psiquiatria da Faculdade

    de Medicina da Universidade de São Paulo e um dos criadores do método ORESTES.

    Oveitoso de nosso conhecimento. O mai-or impacto desses achados ainda estápor vir, e certamente virá, quando real-mente tivermos conseguido decifrar,compreender e associar as informaçõescontidas em nosso genoma.

    Para isso devemos, antes de tudo,ter

    consciência de que o conhecimento daseqüência completa de um genoma,apesar de ser uma peça importante,está longe de permitir, apenas por si, amontagem do intrincado quebra-cabe-ça de nossa complexidade. Para enten-der o que nos permite ter essa maravi-lhosa complexidade –  nosso enormerepertório comportamental, a habili-dade de ter ações conscientes, nossacapacidade criativa, musical e científica,a capacidade de aprender, a nossa me-mória, entre outras – não poderemoscontar apenas com nossa carga genéti-

    ca de 3,2 bilhões de nucleotídeos eum número de genes não muito supe-rior ao de uma mosca.

    Devemos ter a consciência de queo domínio de um genoma significa aposse de um mapa. No caso do geno-ma humano, um mapa complexo, ain-da não totalmente conhecido, que au-xiliará  enormemente na busca pelasorigens das doenças, com base nas va-riações genéticas, na diversidade, com-plexidade e no comportamento das pro-teínas no interior das células. Estudosde neuropsiquiatria mostram que, emgêmeos monozigóticos separados ao

    nascimento e criados em ambientes dis-tintos, a concordância para o desen-volvimento de doenças neuropsiquiá-tricas é de cerca de 50%.

    Isso mostra que em certas circuns-tâncias existe um balanço entre a im-

    portância dos genes e do ambiente nadeterminação de determinadas condi-ções. Se por um lado a genética temgrande peso no desenvolvimento dedoenças, os fatores ambientais tambémtêm importância considerável.A genéti-ca não é absoluta. Ainda temos muito oque aprender no estudo das interaçõesdo genoma com o ambiente, além deconhecer e desvendar as sutilezas denosso genoma.

    Já sabemos muito, mas é pouco

    É  curioso observar que, mesmoapós o entusiasmo gerado pela finali-zação dos rascunhos do seqüencia-mento do genoma humano, um tre-mendo esforço ainda precisa ser feitopara que possamos conhecer o signifi-cado da imensa maioria das seqüências

    obtidas. Uma das primeiras questõesque surgem é: como identificar as re-giões importantes do genoma? Comodeterminar sua função no organismo?As regiões do genoma com função maisóbvia são os genes, que se acham com-prometidos com a produção de proteí-nas. No entanto, essas regiões estãorestritas a cerca de 3% do nosso geno-ma. O número de genes preditos nosbadalados trabalhos que descreveramo genoma humano ficou, segundo asestimativas mais baixas, na faixa de 30mil – alguns estudos indicam haver até120 mil genes. Mesmo com esse peque-

    no número, apenas para a metade delesencontramos algum tipo de domínioque permita a predição de atividade fi-siológica.

    Enquanto se acredita que as esti-mativas do número de genes devam

    DUPLA HÉLICE 50 ANOS

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    crescer, com o desenvolvimento de me-lhores programas computacionais depredição gênica e com o acúmulo demais dados experimentais, está muitoclaro que o número de genes é apenasum dos mecanismos que criam a di-

    versidade bioquímica necessária parafazer as proteínas. Em nosso genoma,os genes são formados por blocos deinformação intercambiáveis, chama-dos exons, que são separados por blo-cos sem informação protéica, conheci-dos por introns. Os exons podem serrecombinados como se combinam sí-labas para formar uma palavra, for-mando mensagens distintas. Dessemodo, a seqüência de um único genepode começar e terminar em regiões

    diferentes e sua porçãointerna pode ser monta-da alternando diferentes

    blocos, gerando proteí-nas com característicasfuncionais distintas. Es-sas combinações (co-nhecidas como splicing alternativo) representamum eficiente mecanis-mo de geração de diver-sidade sem a necessidadede manter um imensonúmero de diferentes

    genes funcionais. Além dos eventos desplicing alternativo, diversos mecanis-mos conhecidos como epigenéticos,

    tais como metilação do DNA ou mo-dificação de histonas, podem modulara expressão de um gene. Esses eventosde regulação epigenética regulam aatividade de genes silenciando sua ati-vidade ou remodelando a estruturados cromossomos, expondo ou escon-dendo determinados genes de acordocom a necessidade de sua expressão.Dessa maneira, um complexo sistemade regulação intracelular é  disparado,ligando ou desligando genes em deter-minados tecidos ou em fases específi-cas do desenvolvimento.

    DNA lixo?

    Os genes são distribuídos de mododesigual nos nossos cromossomos. Da-dos de seqüenciamento mostram quealguns cromossomos, como o 17, o 19e o 22, são ricos em genes, quandocomparados com os cromossomos 4,8, 13, 18 e o cromossomo Y. O empa-cotamento do material genético no

    núcleo de nossas células é um proces-so complexo, pois o DNA de uma úni-ca célula humana tem cerca de 2 me-tros de comprimento. Há alguns anos,descobriu-se que a distribuição doscromossomos dentro das células, no

    processo de empacotamento, é  extre-mamente organizada. Na periferia donúcleo celular ficam os cromossomoscom menor densidade gênica, enquan-to os cromossomos mais ricos se situ-am na porção mais interna do núcleo.

    Foi demonstrado que essa distri-buição cromossomal é  regulada hápelo menos 30 milhões de anos, pois éconservada nos primatas. Essa conser-vação indica um papel funcional im-portante. Alguns pesquisadores suge-rem que os cromossomos que possuemmais genes se encontrem na porçãomais central dos núcleos, e os demais,ao seu redor, protegendo-os de agentesmutagênicos externos. Além disso, di-versos trabalhos demonstram queocorre um freqüente movimento doscromossomos nos núcleos celulares.Essa dança dos cromossomos mostraque a estrutura do DNA e do seu em-pacotamento nas células não é  nadarígida. Os cromossomos parecem semovimentar, possibilitando a troca dematerial genético entre si e a exposi-ção de genes que devem ser ativadosem determinadas circunstâncias. O es-tudo da distribuição cromossomal tem

    inclusive sido sugerido como um pos-sível critério de diagnóstico para o cân-cer. Se apenas 3% do genoma codificaproteínas, será que o restante de nossoDNA é um resquício evolutivo que ser-ve somente para proteção?

    Uma das maneiras de analisar nos-so genoma é compará-lo com o de ou-tros organismos. É a chamada genômi-ca comparativa. Esses estudos partemda premissa de que um bloco de DNAconservado por milhões de anos deveter alguma função importante, que po-deria ser comprometida se a seqüênciafosse muito alterada. É a chamada con-

    servação fisiológica. Estudos de genô-mica comparativa demonstraram queaproximadamente 95% de nosso geno-ma é  muito parecido (possuindo, defato, cerca de 99% de identidade) como de um chimpanzé. No entanto, nossotempo de divergência (o período detempo que nos separamos de um an-cestral comum) com os chimpanzés é deapenas 5 milhões de anos. Talvez esse

    período não tenha sido longo o sufici-ente para que regiões não funcionais ti-vessem se diferenciado, e teríamos umaconservação passiva. Quando aprofun-damos as comparações e investigamosas semelhanças que possuímos com o

    genoma do camundongo, cujo últimoancestral comum com o homem exis-tiu há 145 milhões de anos, vemos queuma significativa parcela desse DNAlixo ainda é conservada.

    e os chimpanzés são genetica-mente muito próximos e nãoé  possível distinguir conser-vação passiva de conservaçãofuncional, o camundongo é

    muito distante, o que impede detectarmudanças no DNA adquiridas mais re-centemente. Enquanto a comparaçãocom o genoma de um organismo dis-

    tante,como o do camundongo,ofereceum painel importante de regiões ge-nômicas com potencial funcional, alonga divergência entre as duas espéciesnão permite identificar algumas suti-lezas.As regiões do genoma que se mo-dificaram entre essas espécies e nos per-mitiram evoluir como primatas –  eposteriormente como Homo sapiens –não estão no genoma de camundongoe deveriam ser encontradas de outramaneira.

    Em um artigo publicado na revistaScience no final de fevereiro (Boffelli et 

    al., 2003), um grupo de pesquisadorescomparou regiões não-codificadorasdo genoma humano com áreas seme-lhantes do genoma de outros primatasnão-humanos. Os cientistas encontra-ram diversas regiões conservadas, mes-mo quando foram usadas as espéciesde primatas tropicais, muito distantesde nossa espécie. Conseguiram identi-ficar elementos conservados e provarque têm atividade funcional: atuam naregulação da expressão gênica entre asdiferentes espécies. Para isso, foramutilizadas diversas espécies de prima-tas, incluindo-se aí  o DNA de v ários

    primatas brasileiros. Fica clara a im-portância da biodiversidade para deci-frar nosso genoma.

    No entanto, cada genoma possuicaracterísticas únicas, que por seus re-flexos funcionais permitem diferenciaras espécies. Como investigar as re-giões funcionais (com atividade fisio-lógica) únicas do genoma humano? Sa-bemos que elas não estão restritas aos

    Blocosque são

    como

    sí labas depalavras

    S

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    PESQUISA FAPESP ESPECIAL   17

    genes ou às regiões conservadas emoutros primatas. São característicasúnicas da nossa espécie. Um trabalho

    muito interessante nesse sentido foifeito por pesquisadores de uma em-presa norte-americana, em conjuntocom um pesquisador do Instituto Na-cional do Câncer, nos Estados Unidos(Kapranov et al., 2002).

    Usando a seqüência dos cromosso-mos 21 e 22 humanos, os cientistas de-senharam pequenos fragmentos deDNA artificial, cobrindo toda a se-qüência desses cromossomos em cur-tos intervalos de 35 nucleotídeos, osblocos constituintes do DNA. Os mi-lhões de fragmentos produzidos fo-ram usados para investigar se linhagens

    celulares humanas estariam produzin-do RNA complementar a esses frag-mentos. A estratégia comprovou a ati-vidade funcional de novas regiões epermitiu uma análise transcricionalem larga escala desses dois cromosso-mos humanos. Para surpresa de todos,um altíssimo percentual desses frag-mentos mostrou estar associado a RNAsmaduros das linhagens celulares. Os

    autores demonstraram que as regiõesativamente transcritas de nosso geno-ma são, pelo menos, dez vezes mais ex-

    tensas do que poderíamos imaginar.Talvez essas regiões contenham genesmuito raros, ainda não demonstradospor nenhuma técnica, ou moléculasregulatórias ainda não conhecidas,mas de importância central para o co-nhecimento da fisiologia de nosso ge-noma. Dessa maneira, se antes imagi-návamos que 3% do genoma continhagenes, esse trabalho sugere que talvezesse percentual seja muito maior.

    Genes e novas drogas

    Dentre a fração de genes conheci-

    dos atualmente, algumas centenas co-dificam proteínas potencialmente po-derosas para o tratamento de doenças.Diversas dessas proteínas, assim comodrogas baseadas em anticorpos mono-clonais, estão em fase final de experi-mentação e algumas já são testadas emhumanos. Sendo assim, buscam-sehoje mecanismos mais eficientes e demenor custo de produção de medica-

    mentos. Uma das promessas é a mani-pulação genética de alimentos. Produ-zir um feijão mais nutritivo, milho comhormônio do crescimento humano oucenouras com vacinas são sonhos querondam as cabeças dos pesquisadores

    há anos.Esses sonhos estão cada dia maispróximos, e um passo importante nes-se sentido foi anunciado há  algumtempo por uma empresa norte-ameri-cana após associação com o renoma-do Instituto Escocês Roslin (o mesmoque assombrou o mundo com a clona-gem da ovelha Dolly), para dessa vezproduzir drogas dentro de ovos de ga-linhas. Enquanto animais, como ca-bras, vacas, ovelhas e coelhos v êm sen-do usados para produzirmedicamentos em seuleite, a tecnologia de tra-

    balho com aves surgecom a promessa de sermais rápida, barata epraticamente ilimitadagraças à  capacidade deprodução de ovos. Oprimeiro produto deve-rá  ser um anticorpomonoclonal dirigido aocombate do melanoma,um dos mais agressivose comuns tumores que ocorrem noBrasil. O domínio dessa tecnologia,aliado à  descoberta da totalidade dos

    genes humanos e à  determinação desua função biológica, permite imaginarum futuro promissor para essa novaforma de produção de medicamentos.

    Polimorfismos de DNA

    Cada um dos bilhões de seres hu-manos de nosso planeta –  com exce-ção dos gêmeos monozigóticos – possuiseu próprio e único genoma. Apesarde serem únicos, os genomas de doisseres humanos não aparentados têmuma identidade média de 99,9%. Di-ante de um genoma de cerca de 3,2 bi-

    lhões de bases,a sutil diferença de 0,1%representa uma coleção de alguns mi-lhões de nucleotídeos, responsáveis pelanossa fabulosa diversidade. A maioriadessas diferenças tem a forma de subs-tituições ou polimorfismos de nu-cleotídeos únicos (conhecidos em in-glês como SNPs, ou Single Nucleotide Polymorphisms ). Os SNPs constituemum elemento-chave para compreen-

    Sonhosestão cadavez mais

    próximosdo real

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    dermos a variabilidade genética huma-na e sua associação com diversas do-enças. Recentemente houve um au-mento explosivo no número de SNPsdepositados nos bancos de dados pú-blicos. Há cerca de um ano, apenas o

    banco dbSNP, ligado ao Instituto Na-cional de Saúde dos Estados Unidos,tinha cerca de 4 milhões de SNPs de-positados. Hoje esse número cresceuem cerca de 50%, ultrapassando os 6milhões de SNPs. No entanto, apenas0,3% dos polimorfismos já foi estuda-do de maneira mais aprofundada enumerosos polimorfismos ainda res-tam por serem descobertos.

    A literatura científica demonstrapreocupação de que ha-veria um número imen-so de polimorfismos ain-da não revelados, masde grande relev ância,que não seriam encon-trados apenas pelo usode estratégias computa-cionais. Essa preocupa-ção se deve ao fato deque a porção central dosgenes estaria pouco re-presentada (nos dadosdas chamadas ESTs ou

    etiquetas de seqüências expressas), en-quanto os dados do Projeto GenomaHumano são baseados em um núme-ro muito limitado de indiv íduos, le-

    vando a uma redução da população depolimorfismos. Nesse sentido, a inici-ativa brasileira de geração de ESTs dotipo ORESTES foi extremamente po-sitiva. No contexto do Human CancerGenome Project (HCGP, financiadopelo Instituto Ludwig de Pesquisa doCâncer e pela FAPESP), o grupo brasi-leiro produziu 1,2 milhão de ESTs, de-rivadas da porção interna dos genes,um dos maiores conjuntos de dadosmundiais. Além de serem derivadas dediversos tipos de tumores humanos,essas amostras são de grande valor,por derivarem de uma população com

    alto índice de mistura étnica, contri-buindo com variações dificilmente en-contradas em populações mais homo-gêneas. Os dados nacionais serãoessenciais para atingirmos uma abran-gente análise de polimorfismos clini-camente relevantes, buscando associa-ções entre polimorfismos de DNA edoenças e avaliando os níveis de poli-morfismos de nosso genoma.

    sses polimorfismos devemser a chave para a predis-posição ou proteção ao de-senvolvimento de nume-rosas doenças, além de

    estar diretamente associados à maneira

    como diferentes pessoas respondem adrogas. Já  sabemos, por exemplo, quea diferença de uma única base na se-qüência do gene APOE confere maiorsuscetibilidade ao desenvolvimento domal de Alzheimer e a doenças cardio-vasculares. O conhecimento do efeitodessas alterações na nossa resposta adrogas abre um tremendo espaço paraa farmacogenética. Sabemos que o cus-to para o desenvolvimento de umanova droga está na faixa de US$ 600milhões. Por vezes, drogas extrema-mente eficazes para a imensa maioriada população devem ser retiradas domercado, pois provocam efeitos gravesem algumas pessoas. Esses estudossobre polimorfismos alteram a evolu-ção da medicina.

    Nas terapias medicamentosas po-demos imaginar o fim da abordagemde tentativa e erro. Na área clínica, po-demos prever que a prevenção seráprivilegiada em relação ao tratamento,podendo vir reduzir o custo do trata-mento das doenças. Para isso, a inte-ração entre a pesquisa científica e ainiciativa privada é  fundamental, de-vendo permitir a tradução e incorpo-

    ração dos achados científicos no dia-a-dia das pessoas comuns. Apesar de ogenoma ainda oferecer uma série dedescobertas pela frente, o caminho jápercorrido pela pesquisa científicapermite uma série de possibilidadespráticas atuais, prontas para seremimplementadas na rotina de nossasociedade.

    Os estudos de polimorfismos tam-bém nos permitiram calcular a diversi-dade de DNA existente entre indiv ídu-os das diferentes etnias humanas. Aocompararmos o DNA de dois indiv ídu-os de uma mesma etnia, vemos que o

    número de diferenças encontradas étão freqüente quanto as diferenças ob-servadas entre indiv íduos de etniasdiferentes. Desse modo a ciência de-monstrou que o conceito de raça, vistoa partir das diferenças de DNA, não fazo menor sentido. Diversidade e indivi-dualidade são características das maisfundamentais de cada ser humano. Osdados do genoma humano permitem

    que essas características sejam visuali-zadas de maneira muito clara e nosmostram que, por mais que sejamos se-res únicos no Universo, temos muitoem comum com o resto da humanida-de. Nosso genoma pode ser visto como

    um patrimônio da nossa espécie. Dei-xando de lado uma postura antropo-cêntrica, o DNA mostra que todas asformas de vida conhecidas são codifi-cadas pela mesma matéria-prima bási-ca, os nucleotídeos que formam os ge-nomas. Isso nos permite uma visãoconceitual de que o evento do surgi-mento da vida no planeta deve ter sidoúnico. A visão filosófica e até  mesmopoética nos diz que somos todos mem-bros de uma grande família, compostapelas mais diversas formas de vida doplaneta. Todos tivemos um ancestralcomum, e isso nos deve levar a refletir

    sobre a nossa postura diante de aspec-tos como poluição, degradação doambiente e preservação da vida noplaneta.

    O futuro

    Apesar de sempre podermos sersurpreendidos em nossas previsões, oestágio atual das pesquisas permitevislumbrar como será  o cenário emum intervalo de 15-20 anos. Dentreamplas possibilidades, algumas pou-cas coisas parecem certas:

    Teremos uma lista abrangente deprodutos gênicos humanos provendoum enorme potencial de drogas de re-posição (de modo semelhante à insuli-na ou ao hormônio do crescimentorecombinante hoje disponíveis), comum dramático efeito preventivo e cu-rativo em diversas doenças.

    O prontuário médico em breve iráconter uma lista com o status de diversospolimorfismos ligados à farmacogené-tica, assim como a propensão ao desen-volvimento de uma série de doenças.

    A obtenção da seqüência genômicacompleta de um indiv íduo deverá serpossível em poucos anos e devemosestar prontos para lidar com a manu-tenção dessa confidencialidade de ma-neira responsável.

    A terapia gênica deve tornar-se reali-dade para doenças causadas por alte-rações em um único gene. Genes de-

    18   PESQUISA FAPESP ESPECIAL

    E

    No futuro,

    se poderáprevenir

    em vez de

    só curar

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    17/40

    feituosos poderão ser repostos porversões funcionais.

    A compreensão da base genética dasdoenças complexas permitirá o design

    de drogas racionais, dirigidas a viasmetabólicas de funcionamento inade-quado, eventualmente possibilitando amodelagem de estratégias preventivas.

    O conhecimento de alterações ge-néticas específicas de certos tumorespermitirá  o diagnóstico precoce damaioria dos tumores humanos.

    A indústria da farmacogenômica seestabelecerá  de modo crescente, ge-rando uma medicina personalizada naqual drogas serão elaboradas de acor-do com as feições genéticas de diferen-tes grupos de indiv íduos.

    Acredita-se que, por volta de 2010,marcadores genéticos efetivos estejamdisponíveis para uma grande série dedoenças e condições humanas. Esti-ma-se que o custo para um teste diag-nóstico, incluindo uma grande lista demarcadores, custe por volta de US$ 100.À  medida que testes que permitamavaliar a predisposição genética a cer-

    tas doenças se tornem possíveis, a so-ciedade enfrentará  questões que en-volvem a disponibilidade dessas infor-mações a empregadores ou a seguros-saúde. As leis devem proteger os cida-

    dãos do uso inadequado dessas in-formações, e devemos questionar a va-lidade de uso dessas informações nomomento de decisões de contrataçãode pessoal.

    Nos próximos anos, o público terámais e mais oportunidades de fazer testesgenéticos e especular sobre seu desti-no genético. É urgente que a legislaçãoacompanhe os avanços científicos, incor-porando e usufruindo as descobertas eimpondo limites nas áreas mais deli-cadas. Sem debate público e controlesapropriados, as pessoas poderiam ser

    discriminadas por causa de suas carac-terísticas genéticas. É preciso discutir oque a genética pode e não pode realizar,e que tipo de sociedade queremos.

    A dupla hélice, com sua beleza esimplicidade, uniu de modo definitivoa bioquímica, a fisiologia e a genética.Sua estrutura oferece uma explicaçãoimediata para os processos de cópia doDNA, mecanismos de herança genéti-

    ca, mutação e diversidade. No entanto,a dupla hélice não esclareceu ainda osdetalhes da interação entre a genéticae o meio ambiente. A individualidadehumana revelada pelo DNA faz comque diversos conceitos venham a ser

    revistos e a medicina passe novamentea focar o indiv íduo.Predições em nívelpopulacional não têm o mesmo poderpreditivo em nível individual. Depoisde termos caminhado tanto no conhe-cimento do “livro da vida”, talvez esteseja o momento de re-avaliarmosnossasexpectativas e o próprio conceito denossa existência. Se por um lado te-mos nossa individualidade genética,nós também somos todos muito seme-lhantes e semelhantes às outras formasde vida do planeta.

    Termino este texto com um re-

    pente com o qual tive contato duranteuma viagem à  cidade do Recife. A sa-bedoria popular nos surpreende, eacredito que o número de genes pro-posto nos versos deva estar muitomais próximo da realidade do que os30 mil sugeridos nos trabalhos da Na-ture e da Science .

    “ O mundo se encontra bastanteavan ç ado,A ci ê ncia alcan ç a progresso sem soma,Na grande pesquisa feita no genoma,Todo o corpo humano j á  foi mapeado,

    E l á  neste mapa j á  foi tudo contado,Oitenta mil genes se pode contar,

    A ci ê ncia faz chover e molhar,Faz clone de ovelha,Faz c ó  pia completa,Mas duvido a ci ê ncia fazer um poeta,Cantando galope na beira do mar...” 

    R EPENTISTA GERALDO AMÂNCIO,

    PERNAMBUCO, BRASIL.

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           C       L       A       U       D       I       U       S

    Referências

    Boffelli, D, McAuliffe, J, Ovcharenko, D, Lewis,

    KD,Ovcharenko,I, Pachter, L, & Rubin, EM.2003.

    Phylogenetic Shadowing of Primate Sequences to 

    Find Functional Regions of the Human Genome.

    Science 299: 1391-1394.

    Kapranov P, Cawley SE, Drenkow J, Bekiranov S,

    Strausberg RL, Fodor SPA, Gingeras TR. 2002.

    Large-scale Transcriptional Activity in Chromoso-

    mes 21 and 22. Science 296: 916-919.

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    18/40

    Genoma:um balanço preliminar

    o anunciar, em 1997,o iníciodo Projeto Genoma da Xy-

    lella fastidiosa , a FAPESPexplicitou os objetivos dainiciativa. Pretendia-se,

    ao mesmo tempo em que se financia-va a realização de projeto de pesquisana fronteira do conhecimento, com oestudo de problemas de relev ânciasocioeconômica, propiciar a formaçãode recursos humanos altamente quali-ficados na área de genética molecular.A competência gerada deveria contri-buir tanto para o avanço da pesquisabásica em biologia e em medicina co-mo para atrair investimentos para acriação de uma indústria de biotecno-logia molecular no país. Decorridos cin-co anos do início do programa, con-sideramos necessário, mais uma vez,cotejar metas estabelecidas, resulta-

    dos obtidos e investimentos realizados.Nesse contexto torna-se relevante res-ponder à pergunta: como esses inves-timentos teriam afetado a capacidadeda FAPESP de financiar projetos emoutras áreas de conhecimento tambémrelevantes para o desenvolvimento ci-entífico e tecnológico do país?

    Quanto à  relev ância e qualidadecientífica, é  importante registrar quetodos os projetos financiados pela FA-PESP são sempre previamente avalia-dos por reconhecidos especialistas.No caso, foi utilizada uma assessoriacientífica internacional que, enf ática e

    unanimemente, recomendou o apoioà iniciativa. Ainda mais relevante foi,porém, a avaliação que se seguiu pe-las diversas publicações nas mais pres-tigiosas revistas científicas, tais comoNature e os Anais da Academia de Ciên-cias dos Estados Unidos  (PNAS)1. Os

    20   PESQUISA FAPESP ESPECIAL

    Cientistas brasileiros são atoresimportantes na ciênciae na biotecnologia de Watson e Crick

    JOS É FERNANDO PEREZ*

    * J OS É F ERNANDO P EREZ é  Diretor Cient í  fico da FAPESP e professor do Instituto de F í sica da USP

    A

    DUPLA HÉLICE 50 ANOS

    artigos foram publicados e, mais doque isso, mereceram destaques edito-riais nessas revistas. Esse é o critério deexcelência científica universalmenteaceito e ao qual todas as agências de fo-mento conceituadas aderem.

    Quanto à importância socioeconô-mica dos projetos, ela se evidencia pelapauta de problemas a que remetem:doenças de citricultura (amarelinho ecancro),doenças humanas (esquistosso-mose e leptospirose) e culturas de gran-de importância (cana e eucalipto). Foino último mês, aliás, que registramos aimportante conclusão do Genoma Lep-tospira . As parcerias com empresascomo Copersucar, Ripasa, Votorantim,Duratex, Suzano, além do Fundecitrus,atestam o interesse de v ários setores daeconomia na iniciativa.Destaque-se tam-bém a parceria com o Instituto Ludwig

    de Pesquisas sobre o Câncer, que inves-tiu US$ 10 milhões na competência dospesquisadores da rede Onsa em tumo-res de maior incidência no Brasil.

    Como conseqüência do programa,mais de 65 laboratórios no Estado deSão Paulo utilizam,atualmente, de for-ma rotineira em seus projetos de pes-quisa, as técnicas de seqüenciamentogenético. Mais de 450 pesquisadoresforam treinados nessa metodologia,essencial para a pesquisa biológicamoderna. Talvez o mais expressivo in-dicador de sucesso tenha sido a recen-te criação de três empresas, Alellyx,

    Scylla e Canaviallis, cujos sócios são li-deranças que emergiram no progra-ma, e que deverão empregar dezenasde pesquisadores da área de genéticamolecular e bioinformática. Trata-sede fato sem precedentes na históriaeconômica do país. Na palavra dos

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    PESQUISA FAPESP ESPECIAL   21

    últimos anos ter criado uma série deprogramas buscando articular compe-tências e suprir deficiências do sistema de

    ciência e tecnologia. Assim, os progra-mas de Inovação Tecnológica (apoiandomais de 240 pequenas empresas em pro- jetos voltados para a inovação tecnoló-gica); Políticas Públicas; Ensino Público;Biota (envolvendo mais de 500 pesqui-sadores que inventariam e estudam todaa biodiversidade do Estado, iniciati-va que recebeu o Prêmio Henry Fordcomo Iniciativa Ambiental de 1999) eJovens Pesquisadores (financiando maisde 450 projetos e visando dar oportuni-dade aos excelentes cientistas formadospelo sistema de pós-graduação de nos-sas universidades) receberam expressi-

    vos investimentos nesse período, tendosido possível atender a toda  demandaqualificada.

    Nada mais auspicioso para come-morar os 50 anos da identificação daestrutura da molécula do DNA do quever os cientistas brasileiros como atoresimportantes na ciência e na biotecno-logia que nasceu com James Watson eFrancis Crick.

    Pesquisasreceberam

    destaque

    no

    mundo

    próprios investidores, esses desdobra-mentos são conseqüência direta do Pro-grama Genoma da FAPESP.

    Esses fatos receberam grande desta-que na imprensa internacional –  New York Times , Washington Post , Le Figaro ,The Economist , para citar apenas alguns–, que valorizou a estratégia inovadorada rede criada. Não menos importantefoi o reconhecimento de competênciapela parceria proposta pelo Ministé-rio da Agricultura dos Estados Unidospara estudar a variante da Xylella  queataca os vinhedos da Calif órnia2.

    Finalmente, chegamos ao item in-vestimentos. Inicialmente deve ser re-gistrado que nos quatro anos de pro-grama nunca mais do que 5% do seu

    orçamento de fomento foi dirigido àgenômica. Essa informação deve sur-preender a muitos, face ao reconheci-mento e ao espaço que a imprensa de-dicou ao sucesso. Ainda mais relevanteé o fato de que nenhum projeto de pes-quisa, cujos méritos tenham sido reco-nhecidos pela assessoria especializada,deixou de ser financiado nesse mesmoperíodo. E isso apesar de a FAPESP nos

    1 Xylella fastidiosa , Nature , 13 de julho de

    2000; Xanthomonas campestris , Nature , 23 de

    maio de 2002; Onsa, the São Paulo Virtual

    Genomics Institute, Nature Biotechnology ,setembro de 1998; Genoma do Câncer – tec-nologia ORESTES, PNAS , Proceeding of The 

    National Academy of Sciences of The United 

    States of America , março de 2000; Cromosso-mo 22, PNAS , novembro de 2000; Genoma

    do Câncer, PNAS , outubro de 2001.

    2 Xylella da Uva, Journal of Bacteriology , feve-

    reiro de 2003.

  • 8/18/2019 Suplemento DNA

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    O Brasil por dentro dos genes

    Iniciada em 1997,com o projetoda Xylella fastidiosa, a pesquisa genômicano país avança rapidamente

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    21/40

       S   I   R   I   O    J .   B .   C   A   N   Ç   A   D   O

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    22/40

  • 8/18/2019 Suplemento DNA

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    como se eu chegasse a um bairro sobreo qual eu não tinha nenhuma infor-mação e tentasse achar uma casa espe-cífica”, compara Mayana Zatz, do Cen-tro de Estudos do Genoma Humanoda Universidade de São Paulo (USP).

    “Com a seqüência, posso investigar aregião que me interessa e encontrar oscandidatos mais prov áveis – e não sóachar a casa, mas o tijolo que faltanela”, explica Mayana, que estuda do-enças neuromusculares de origem ge-nética. “A identificação de genes liga-dos a v árias doenças genéticas seráabreviada, pois os genes já estão fisica-mente mapeados”, diz Fabrício Santos,da UFMG.“Só falta descobrirmos suasfunções.”

    “Já  se comparou aanálise genômica com atentativa de abrir uma

    porta testando milharesde chaves, uma poruma”, diz Sérgio Ver- jovski-Almeida, do Ins-tituto de Química daUSP. “Antes do seqüen-ciamento do genomahumano, nem tínhamosidéia de onde estava afechadura.”

    Por outro lado, o es-tudo do genoma está  revelando com-plexidades insuspeitas no funciona-mento do material genético, algumas

    delas com impacto direto sobre a saú-de humana. “Estamos elucidando me-canismos misteriosos”, diz Mayana.Um desses processos é observado comos chamados genes dinâmicos, queaumentam de tamanho de uma gera-ção para outra. Esse mecanismo estáassociado a mais de 12 doenças, comoa distrofia miotônica – uma moléstianeuromuscular que, em geral, leva àperda de força nas mãos.

    “Essa doença parecia piorar a cadageração dentro da mesma família,com formas que iam do aparecimentoprecoce de catarata e calv ície a uma

    fraqueza muscular generalizada, quechega a ser incapacitante”, explicaMayana. “O que se descobriu é queo aumento do número de uma trincade nucleotídeos (as unidades for-madoras do DNA) estava envolvido”,diz a geneticista. Enquanto as pessoassaudáveis têm de 5 a 37 dessas trincasno gene, as portadoras da enfermi-dade apresentam de 50 a milhares de

    PESQUISA FAPESP ESPECIAL   25

    tado: para a revista, o Brasil agora erafamoso por três motivos: samba, fute-bol... e genômica.

    Não era para menos: com essesprogramas, agora engrossados por ini-ciativas como o Projeto GenomaBrasileiro, financiado pelo ConselhoNacional de Desenvolvimento Cientí-fico e Tecnológico (CNPq), o país setornou o segundo maior depositadorde seqüências de DNA no GeneBank,o banco de dados público usado porpesquisadores de projetos de seqüen-ciamento do mundo todo. Mesmosem ser convidado, como costumavabrincar Andrew Simpson, o Brasil ha-via entrado para a festa do genomahumano. Começava o desafio de des-

    cobrir como aplicar esses dados.

    Potencial - Uma das vantagens ime-diatas de se ter um mapa completo domaterial genético humano é multipli-car as chances de encontrar um geneenvolvido em uma moléstia. “Diga-mos que eu esteja tentando identificarum gene numa determinada região deum cromossomo. Sem a seqüência,era

    É comoabrir uma

    porta com

    milhares

    de chaves

    talmente avaliado: foram gerados maisde um 1 milhão de seqüências de ge-nes ativos em tumores humanos, al-

    guns dos quais já estão sendo identifi-cados como importantes indicadoresda gravidade ou do aparecimento pre-coce do câncer.

    consagração desses esforçosocorreu com a conclusãodo seqüenciamento dogenoma da Xylella  qua-tro meses antes do pre-

    visto, em janeiro de 2000. Homena-gens do governo do Estado de SãoPaulo e do então presidente FernandoHenrique Cardoso marcaram a con-clusão do projeto. Mas o maior reco-

    nhecimento veio da própria comuni-dade científica internacional. Pelaprimeira vez em 131 anos, uma pes-quisa brasileira foi capa da prestigiosarevista científica britânica Nature , quepublicou o artigo sobre o genoma dabactéria na edição de 13 de julho de2000. Outro semanário britânico, arevista The Economist, não teve dúvi-das quanto ao significado desse resul-

    A

  • 8/18/2019 Suplemento DNA

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    repetições dessa pequena seqüência. Oproblema é que, quando há mais de 50trincas, o gene se torna instável e a re-petição tende a aumentar, de geraçãopara geração, agravando a doença.

    Por outro lado, alterações em ge-

    nes diferentes podem causar um mes-mo problema clínico. “Isso acontece,por exemplo, na distrofia musculardas cinturas, à qual já  foram associa-dos 15 genes que codificam proteínasdiferentes”, conta Mayana. “Algumasdessas proteínas atuam juntas, for-mando um complexo. Se houver um

    defeito em uma delas, ofuncionamento do com-plexo todo fica preju-dicado”, explica a pes-quisadora.

    Apesar de o fun-cionamento dos genes

    apresentar complexida-de cada vez mais evi-dente, a abundância dedados sobre o genomapode denunciar de ma-neira precoce e precisaas doenças mais com-

    plicadas do ponto de vista genético,provocadas por diversos fatores, comoas inúmeras formas de câncer. “Comessas informações, é  possível estudarmilhares de genes que atuam simul-taneamente”, diz Verjovski-Almeida,que investiga os fatores que deter-

    minam a gravidade do câncer depróstata. “Hoje conhecemos 170 ge-nes relacionados à  malignidade docâncer de próstata”, afirma o pesqui-sador da USP. “Sessenta por cento de-les são genes novos, identificados peloseqüenciamento em larga escala dematerial genético extraído de tecidoafetado pelo câncer.”

    A análise simultânea de centenasdessas seqüências, feita por meio demicrochips de DNA (pequenas lâmi-nas de vidro que mostram a atividadedos genes), já permite criar um perfilmolecular de um indiv íduo e indicar a

    probabilidade de ele apresentar for-mas mais severas ou brandas da doen-ça. “Um microchip para o câncer demama, criado por Laura van’t Veer, doInstituto do Câncer da Holanda, já foitransformado pela empresa RosettaInpharmatics em um método de diag-nóstico nos Estados Unidos”, conta opesquisador. O próprio padrão genéti-co de um tumor pemite antever sua

    gravidade e a chance de que se espalhepara outros órgãos.

    O diagnóstico molecular de doen-ças genéticas mais simples, causadaspor um só gene, tem vantagens óbvias.“Em termos práticos”, diz Mayana

    Zatz, “a identificação dessas enfermi-dades por meio de um teste de DNAevita procedimento