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Samora: uma biografia http://www.aluka.org/action/showMetadata?doi=10.5555/AL.SFF.DOCUMENT.crp2b20042 Use of the Aluka digital library is subject to Aluka’s Terms and Conditions, available at http://www.aluka.org/page/about/termsConditions.jsp. By using Aluka, you agree that you have read and will abide by the Terms and Conditions. Among other things, the Terms and Conditions provide that the content in the Aluka digital library is only for personal, non-commercial use by authorized users of Aluka in connection with research, scholarship, and education. The content in the Aluka digital library is subject to copyright, with the exception of certain governmental works and very old materials that may be in the public domain under applicable law. Permission must be sought from Aluka and/or the applicable copyright holder in connection with any duplication or distribution of these materials where required by applicable law. Aluka is a not-for-profit initiative dedicated to creating and preserving a digital archive of materials about and from the developing world. For more information about Aluka, please see http://www.aluka.org

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Samora: uma biografia

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Samora: uma biografia

Author/Creator Christie, Iain

Publisher Ndjira

Date 1996

Resource type Books

Subject

Coverage Mozambique

Coverage (spatial) Mozambique

Rights By kind permission of Frances Christie.

Description This book is a biography of Mozambican president and theleader of FRELIMO, Samora Machel.

Format extent(length/size)

284 page(s)

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IAIN CHRISTIE

IAIN CHRISTIESAMORAUMA BIOGRAFIA Ndjira

SAMORAUMA BIOC;RAFIA

Sobre o Autorlain Christie nasceu em 1943 em Edimburgo, Esc6cia.Trabalhou para jornais britanicos de 1958 at6 1970, altura em que foiviver para aTanzania onde trabalhou como, jornalista W 1975, especializando-se em quest6esrelacionadas com movimentos africanos de libertaqdo. Desde 1975 que vive etrabalha em Moqambique, primeiro na ag8ncia de informaqdo nacional e depolsna Rddio Moqambique corno chefe do serviqo externo, em Ifngua inglesa. Desde1980 que 6 correspondente da ag8ncia Reuter e publicou muitos artigos sobrequest6es moqambicanas em jornais africanos e publicag6es espFcializadas cornoa A' caContemporary , fir iRecord, a Afrique-Asie, a Africa Report e a Africa. E casado e tem dois filhos.Tornou-se cidaddo mogambicano em 1996.

lAIN CHRISTIESAMORAUMA BIOGRAFIANdjira

Esta ediqdo foi patrocinadapelo Instituto Camaes - LisboaSAMORA - UMA BIOGRAFIAAutor: lain ChristieTraduqdo: Machado da GraqaCapa: Daude Sacuro0 Editora Ndjira. Maputo - 1996Tiragem: 3000 exemplaresImpressdo e acabaniento: Tipografia Lousanense, L.,"Data de impressdio: Outubro de 1996N." de registo: 01384/FBMI96

Indice

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PREFACIO A 1." EDICAO EM PORTUGUES ............................... 9A GRADECIM ENTOS ................................................................ I IINTRODUqAO ....................................................................... 13PRIMEIRA PARTEO rebelde e a sua causa ............................................ 231. Assustando o crocodilo (1933-1963) ............... 252. 0 nascimento da FRELIMO ............................ 453. A boleia para a guerra (1963-1964) ................ 51SEGUNDA PARTEO inim igo cam aledo ................................................... 594. Na batalha (1964-1967) .................................... 615. Os anos da crise (1968-1970) ..........................856. Mais crocodilos (1970-1974) ............................ 1037. A luta continua (1974-1986) ............................. 1318. 0 caminho para Mbuzini .................................. 157

8 lAIN CHRISTIETERCEIRA PARTERetrato de um revolucio rio .................................... 1859. M arxismo caseiro ............................................. 18710. A arma sofisticada ........................................... 21311. 0 inimigo interno ............................................ 22912. 0 toque sartoriano ........................................... 245EPITAFIO .............................................................................. 259iNDJCE DE NOMES E ASSUNTOS ..............................................261

Prefdcioa I a ediqdo em portugue^sEncontrei-me, pela primeira vez, com Samora. Machel em Dar-es-Salam em 1971e, pouco depois, decidi que gostaria de escrever a hist6ria da sua vida. Ndoparecia haver pressa porque os acontecimentos estavam a tornar essa hist6ria dia adia mais fascinante.Em 1975 eu e a minha farnflia muddmo-nos da Tanzania para Mogambique ondepude continuar a acompanhar a vida de Samora. Por vezes encontrdvamo-nos efaldvamos. Mas os anos foram correndo e o livro n5o surgia.Em 1986 pedi a Fernando Honwana, assistente especial do Presidente Samora,para informar o Presidente de que eu gostaria de escrever a sua biografia oficial.Iria ter necessidade de muitas horas de discussdo corn o Presidente, de acesso adocumentos ndo publicados, etc. Fernando, um querido amigo que me ensinoumuitas colsas sobre o sujeito deste livro, morreu com Samora no desastre com oavido, em 19 de Outubro de 1986, antes de me poder dar a resposta.Quem sabe o que seria essa resposta? Teria Samora dito que n5o queria livrossobre ele publicados em vida? Teria dito que preferia que a sua biografia fosseescrita por urn mogambicano?

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10 IAIN CHRISTIENdo fa o ideia. Decidi avan ar com o livro sobre ele simplesmente porque sentique estava na posiqdo dnica de produzir um comentdrio em Ifnguainglesa sobre avida de um grande revoluciondrio africano.0 que escrevi 6 o meu ponto de vista, ndo 6 uma biografia oficial corn o selo deaprovagdo do governo.Sainora - Uina Biografia 6 uma visdo pessoal e nem a familia Machel nem asautoridades mogambicanas t8m qualquer responsabilidade pelo seu conteddo. Adnica excepqdo 6 que a vidva de Samora, Graga, me autorizou gentilmente areproduzir a sua carta a Winnie e Nelson Mandela. Estd contida na introduqdo.Este livro 6 um esforgo preliminar para colocar a vida de Samora Machel no seucontexto polftico e hist6rico mais alargado. Como tal dd 8nfase ao seu pr6priodesenvolvimento e ao papel crftico que jogou na revolugdo mogambicana. N5o sepropoe ser urn estudo sobre Mogambique - quer no perfodo colonial quer no p6s-colonial.Os temas enfatizados neste estudo ou ajudararn a dar contorno A vida de Samoraou demonstram como ele contribuiu para marcar a hist6ria da Africa Austral.Portanto hd um certo detalhe sobre a sua infdncia e juventude e urn debatesubstancial sobre o seu papel como dirigente militar. Mas outrosassuntos, queteriam que ser analisados numa hist6ria de Mogambique mais geral, malsdotocados nesta biografia. Entre eles estdo as relag6es entre a Igreja e oEstado, aeducagdo como instituiqdo para a mudanga social, os debates p6s-independ8nciasobre a emancipagdo das mulheres, as tentativas de reverter o fluxo do campopara a cidade e a definigdo mogambicana de uma polftica externa ndo-alinhada.Sainora - Ona Biografia ndo 6 urn livro neutral. Os jornalistas polfticos fazernsempre jufzos sobre as pessoas acerca de quem escrevern, mesmo que essesjufzos nern sempre estejarn explicitos nos artigos que escrevernno dia-a-dia. Estelivro reflecte o meu julgamento e foi pensado como um ponto de partida para umdebate sobre uma pletora de quest6es 'a volta de Samora Machel, umhomern queajudou a mudar a face da Africa Austral.A presente edi9do em Ifngua portuguesa ndo 6 a traduqdo exacta da versdo erningl8s. Aproveitando esta nova edlqdo foram feitas a1gumas pequenas correcg6esque, no entanto, ern nenhum aspecto alteram significativamente o texto original.

AgradecimentosGostaria de agradecer As pessoas que me ajudaram e aconseiharam de vdriasformas ao escrever este livro. Alpheus Manghezi, Jos6 Mota Lopese DavidHedges, da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, e o jornalista CarlosCardoso fizeram-me comentdrios tteis e deram-me um enquadramento hist6rico ecultural. Lemos Macuacua e os outros enfermeiros que foram colegas de Samoranos seus anos de enfermeiro, concederam-me o seu valioso tempo e falaramfrancamente sobre o seu falecido amigo. Aur6lio Manave e Jodo Ferreiraescavaram nas suas mem6rias A procura de recordagfes do mesmoperiodo.Vdrios autores de livros sobre a Africa Austral me ajudaram, ao longo dos anos,com informaq6es e ideias que entraram neste volume. Entre eles Allen eBarbaraIsaacman, Barry Munslow, David Martin, Phyllis Johnson e Joseph Hanlon. Ali

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Mafudh que, esperemos, escreveri um dia as suas pr6prias mem6rias, forneceuperspectivas fascinantes sobre Samora como soldado.Mas o meu agradecimento maior tem que ir para o pr6prio Samora Machel e paratodos os meus amigos na direcdo e nas bases da Frelimo que falaramcomigo,formal ou informalmente, desde que vim viver para Africa em 1970.Elestornaram possfvel este livro.

12 lAIN CHRISTIEFinalmente tenho que agradecer a Frances Christie, minha esposa, que fezpesquisas de valor incalculivel em algumas reas da hist6ria de Samora e tornoueste livro mais rigoroso do que ele teria sido de outra forma.Dito isto, tudo em Samora - Uma Biografia e da minha pr6pria responsabilidade.lain ChristieMaputo, Abril de 1987

Na manhd de 20 de Outubro de 1986 os mogambicanos foram trabalhar, como decostume, nos seus campos e fAbricas, nas suas escolas, hospitais, portos, estaq6esde caminho-de-ferro e escrit6rios. Nas ruas de Maputo as pessoas davam umavista de olhos pelo jornal Noticias sem encontrarem nada de grande importancia.Era uma segunda-feira quente, calma, e tudo corria normalmente.Poucas pessoas tinham ouvido uma noti'cia numa estagdo de rddio sul-africana,nessa manhd, dizendo que um avido mogambicano se tinha despenhado na Africado Sul. Ndo se sabia se era um avido civil ou militar, dizia a rddio. Ndo haviapormenores sobre quern. ia a bordo.0 Presidente Samora Machel tinha ido Zambia no domingo para uma cimeiracom os presidentes da Zambia, de Angola e do Zaire. Mas deveria tersido umencontro de um s6 dia e o Presidente deveria ter regressado, de certeza, nodomingo A noite. Como jornalista, no entanto, eu tinha que verificar.Telefonemas para algumas redacq6es mostraram que dois rep6rteres locais quedeveriam ter acompanhado Samora Zambia estavam nos seus locais de trabalhoem Maputo. Era claro que o voo presidencial tinha regressado em seguranga.Introduqdo

14 IAIN CHRISTIEOu assim parecia at6 que mais uma verificagdo indicou que, por diferentes raz6es,os dois rep6rteres ndo tinham viajado para a ZAmbia. As campainhas de alarmecomegaram a tocar. E tocaram ainda mais alto quando cheguei ao meutrabalho naRddio Mogambique. Parqueado no exterior estava o carro oficial deMarcelinodos Santos, o mais antigo estadista mogambicano e membro do Bureau Polfticodo Partido Frelimo. Isto era muito pouco vulgar. Corri para o telefone e ligueipara o Gabinete da Presid8ncia pedindo para falar com o secretdrio particular deSamora Muradali Marnadhussen, que tinha ido na viagem a ZAmbia. Arespostafoi: ((Ele ainda ndo voltou da ZAmbia.>>Nesse momento a Rddio Mogambique jd estava a tocar m6sica solene. Poucodepois das nove Marcelino dos Santos falou ao microfone. 0 avido presidencial,disse ele, deveria ter chegado ao aeroporto de Maputo cerca das novee meia da

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noite de domingo. Como ndo chegou foram desencadeadas opera 6es de buscaque continuaram ao longo de toda a noite e primeiras horas da manhd. Cerca dasdez para as sete foi recebida uma informaqdo das autoridades sul-africanasdizendo que um avido moqambicano, proveniente de Lusaka, se tinha despenhadona provfncia do Natal, em territ6rio sul-africano.Ainda ndo havia pormenores: nada sobre quem tinha morrido, quemtinhasobrevivido. 0 rufdo de fundo normal da nossa redac9do tinha-setransformadonum sil8ncio sepulcral no espago de tr8s minutos. Seria que Samora estavarealmente morto? Marcelino dos Santos ndo tinha, de facto, dito isso.Corremos para a porta principal da Rddio Mogambique para o ver sair,acompanhado pelo ministro da Informagdo, Teodato Flunguana. A angdstia nosseus rostos era desencorajadora para aqueles que pensavam que ainda havia umahipoltese de que o presidente tivesse sobrevivido.Nesse mesmo dia o ministro da Seguranga, coronel S6rgio Vieira, diriglu umadelegagao que f6i ao local do despenhamento, que ndo era na provfncia do Natal,como os sul-africanos tinham inicialmente indicado, mas a centenas dequil6metros, em Mbuzini, no Transvaal. Voltaram com uma lista dos mortos: umdeles era o marechal Samora Mois6s Machel, Presidente da Repdblica Popular deMogambique.Nessa noite, depois de as famflias terem sido informadas, Marcelino dos Santosvoltou aos estddios da Rddio Mogambi-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 15que para dar as ma's notfcias nagdo. 0 Presidente tinha morrido.Os sul-africanos tinharn dado a notfcia a1gumas horas antes masa suainformaqdo ou era deliberadamente incorrecta ou eles n5o tinham informag6escorrectas sobre a identidade dos mortos e sobreviventes. Um jornalista que elesdisseram que tinha sobrevivido estava, na realidade, morto. Um guarda-costas,erroneamente descrito como o titular do Minist6rio da Defesa, fol apresentadocomo morto quando, na realidade, tinha sobrevivido com ferimentosmenores.Como qualquer rep6rter sabe, o efeito desse tipo de an6ncios podecausar umdesgosto terrfvel aos familiares. A pressa 6 um mau substituto do rigor. 0Gabinete de Informagdo do governo sul-africano certamente sabia disso masestava a demonstrar que a verdade, neste caso, era menos importante do que osinteresses de Estado de Pret6ria.Na avalanche de asserq6es que emergiram da Africa do Sul nos dias que seseguiram ao despenhamento havia uma tentativa claramente discernfvel deabsolver as autoridades de Pretoria de toda a culpa.0 avido tinha cafdo durante uma trovoada. 0 piloto sovi6tico tinha estado a beber.0 Tupolev 134 A, de construgdo sovi6tica, tinha equipamento de navegagaoobsoleto. 0 piloto estava num hospital na Africa do Sul e estava a ser cuidadosono que dizia aos jornalistas, por causa das repercuss6es para as autoridadessoVi6ticas.Estas asserq6es tinham todas uma coisa em comum. Provou-se maistarde queeram falsas.

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Embora esta falsidade ndo seja, de forma alguma, prova de que a Africa do Suldeliberadamente provocou o despenhamento, um ju'ri independente pode bernperguntar: para qu8 mentir se ndo houver nada a esconder?Algu6m na Africa Austral tem, de facto, alguma coisa a esconder.Poucas horas depois de serem anunciadas as primeiras noticias dodespenhamento, Paul Fauvet, da Ag8ncia de Informagdo de Mogambique,atendeu um telefonema de um correspondente da ag6ncia United PressInternational em Joanesburgo. Durante a conversa o homern da UPI disse que asua ag6ncia tinha recebido uma chamada de um homem que disse ser um oficial.da forqa a6rea sul-africana. A pessoa afirmou que um rddio-farol armadilha tinhasido

16 IAIN CHRISTIEcolocado para desviar o avido de Samora do seu curso. Num mundo dainformagdo que transborda de telefonemas an6nimos assumindoaresponsabilidade por tudo quanto 6 desvio de avido ou atentado bombista, osilencio que rodeou este caso concreto foi, positivamente, ensurdecedor.0 avido estava, de facto, a seguir um radio-farol - um sinal de rddioornnidireccional de muito alta frequ8ncla (VOR) - que a tripulagdo pensava ser odo aeroporto de Maputo. Ndo era. Se fosse, o avido teria chegadoao seu destinoem seguranqa. Em vez disso, hs 9 horas, 21 minutos e 39 segundos, na noite de 19de Outubro de 1986, o voo Charlie Nine Charlie Alfa Alfa mergulhou numacolina em Mbuzini, na provfncia sul-africana do Transvaal, junto A fronteiramoqambicana. Samora Machel e 34 outras pessoas a bordo estavam mortas.Foi aberto um inque'rito, envolvendo os mogambicanos, na qualidade deproprietdrios do avido, os sovi6ticos, na qualidade de construtores e os sul-africanos, porque o despenhamento teve lugar no seu territ6rio. 0relat6rio,publicado depois do estudo da caixa negra do avido e dos registos da torre decontrolo de Maputo, tornaram claro que o avido se dirigia para um rddio-farolerrado, mas um rddio-farol transmitindo exactamente na mesma frequ8ncia que ode Maputo.Doze dias antes do despenhamento o ministro sul-africano da Defesa, MagnusMalan, tinha acusado Mogambique da explosdo de uma mina em que seissoldados sul-africanos foram feridos, no bantustdo de Kangwane.<<Se opresidente Machel escolhe as minas a Africa do Sul 6 obrigada a reagir de acordocom isso>>, disse ele.A 29 de Outubro o Presidente, Kenneth Kaunda da Zdmbia citou esta ameagacomo uma das vairias provas circunstanciais indicando o envolvimento sul-africano no despenhamento. Falando num encontro, emMaputo, dosdirigentesdos seis Estados da Linha da Frente da Africa Austral, o Presidente Kaundaafirmou que estas provas eram suficientes <<para n6s considerarmos a Africa doSul directamente responsdvel>>.Face a acusag6es como estas de dirigentes afficanos, o governo sul-africano fezaquilo que qualquer homem acusado de assassimo teria gostado de fazer:organizou o seu pr6prio julgamento e nomeou o seu pr6prio juiz, Cecil Margo.

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0 governo mogambicano objectou, repetidamente, ao facto de a Africa do Sulprosseguir com o seu propno inquerito, exigindo que,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 17ern vez disso, continuasse a investigaqdo tripartida realizada porperitos ernaviaqdo mogambicanos, sovie'ticos e sul-africanos, para descobrir, com certeza,que rddio-sinal o avido estava a seguir.Os sul-africanos rejeitaram esta exigEncia e a Comissdo Margo continuou o seutrabalho W 9 de Julho de 1987, quando publicou um relat6rio. Ndo f6i surpresaque esse relat6rio ilibasse os sul-africanos e acusasse de erros e negligencia atripulagdo do avido.Mas ent5o o rddio-farol armadilha? Por que 6 que os instrumentos electr6nicosdirigiram o avido para uma colina ern Mbuzini ern vez de para a pista de Maputo?0 <<inqu6rito>> da Africa do Sul tinha uma resposta para isso: a tripulaqdo deveter ligado para o VOR do aeroporto de Matsapa, na Swazildndia, por engano. turn facto que o pessoal do aeroporto de Matsapa diz que o seu VOR estava ligadonaquele momento, mesmo se o aeroporto estava fechado.Mas os mapas mostrando o exacto trajecto do Charlie Nine Charlie AlfaAlfa berncomo os radiais do VOR de Matsapa demonstram que, em momento algum, atripulaqdo fez qualquer manobra para colocar o avido numa traject6riacorrespondente a qualquer desses radiais. Por outras palavras, o avido n5o estevea voar ern direcqdo a Matsapa em nenhum momento do voo.Os mapas mostrarn claramente que o avido estava nurn trajecto que o teria levados montanhas da Swazildndia, muito para leste de Matsapa, se n5o tivesseencontrado montanhas na Africa do Sul.Estes sdo os factos. Um outro facto 6 que o governo da Africa do Sul levou maisde nove horas para informar Maputo do desastre. Os pr6prios sul-africanosadmitern que estiverarn a recolher documentos no avido durante esse tempo.Fizeram igualmente incis6es no pescoqo de a1gumas das pessoas a bordo.Porqu8? Atd ao momento ern que escrevo continua-se espera das respostas.Uma declaraqdo do Presidente da Africa do Sul, R W. Botha, no dia seguinte aodespenhamento, expressando ogrande pesar e profundo choque>>, ndo fol bernrecebida em Africa. 0 Partido Comunista Sul-Africano resumiu a atitude de urnlargo sector das opini6es africanas: <<As Idgrimas de crocodilo dePret6ria na-opodem minimizar o facto de que o governo racista sul-africano via no carnaradaSamora um importante adversdrio e obstdculo aos seus objectivos.>>Na verdade, a profundidade do pesar e choque do Sr. Botha ndo impediu a suapolfcia de disparar gds lacrimog6neo contra os

18 IAIN CHRISTIEestudantes da Universidade de Witwatersrand que realizaram uma cerim6nia emmem6ria de Samora na quinta-feira seguinte ao despenhamento.0 verdadeiro pesar do povo da Africa do Sul f6i expresso em cerim6nias como ada Wits. Ali ndo eram Idgrimas de crocodilo. Houve muitas outras demonstrag6esde amor e respeito por Samora na Africa do Sul. Urna se destaca dasoutras todas.

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Era proveniente de duas pessoas que se tornaram simbolos da luta pela liberdadeda Africa do Sul: Nelson e Winnie Mandela.0 casal Mandela, Nelson da sua cela na prisdo de Pollsmoor e Winnieda suaresid6ncia no Soweto, pediram permissdo para sair temporariamenteda Africa doSul para comparecerem ao-funeral de Samora. As autoridades sul-africanasrecusaram mas o casal enviou um telex para Maputo para ser entregue A viOva deSamora, Graqa. A mensagem dizia:Nunca antes pedimos para deixar a Africa do Sul. Hojeacreditamos que o nosso lugar era estar consigo fisicamente.Cada um de n6s estd preso em diferentes prisdes. Fomos impedidosde estarpresentes consigo hoje para parti1har a sua dor, para chorar consigo, para aliviar oseupesar, para lhe dar um abraCo apertado.0 nosso pesar pelo Camarada Samora J tdo jundo queas lcigrimas nos saem do cora do. Ao longo da noite mantivemo-nos em vig(liaconsigo. Ao longo do dia de hoje choraremos consigo um soldado valoroso, umfilho corajoso eum nobre homem de Estado.Temos que acreditar que a sua morte vai fortalecer avossa e nossa decisdo de ser, finalmente, livres. No vosso caso com a vit6riasobre os imorais bandidos substitutos.No nosso com a vit6ria sobre a opressdo. A nossa luta sempre esteveunida evenceremos juntos.Um mundo preocupado estd consigo. Ndo pode falharem rela do a si e ndo falhard. Com o seu apoio e com a lendciria decisdodo povode MoCambique voces ndo podemsendo sair vencedores.AMANDLA!

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 19Graqa Simbine, uma licenciada que aderiu luta armada da Frelimo pelaindepend8ncia, casou-se com Samora Machel poucos meses ap6saindepend6ncia, ern 1975. Foi a primeira ministra da Educaqdo e continuava a se-lo no momento da morte do marido. Destroqada pelo golpe, ela, no entanto,conseguiu forqas para escrever uma resposta profundamente comovente ao casalMandela, uma resposta que e-, ao mesmo tempo, urn epitdfiopor Samora, umamanifestaqdo de solidariedade corn o povo da Africa do Sul e uma declaragdo deconvicqdo de que a causa de Samora triunfaria.Minha querida irmd Winnie Mandela, Meu querido irindo Nelson Mandela,Num jardim hd sempre uma flor mais bela que as outras. A vossa carta e' essa florno grande jardim de mensagens de conforto que eu recebi.Em nome dos ineus filhos e de toda a minha jamiliagostaria de vos agradecer pela vossa carta que foi, para inim, um abraCo decamaradas para aliviar o meu coraCdo dolorido.Como posso exprimir a minha admiraVdo por voc& os

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dois? 0 vosso pr6prio sofrimento tem sido longo e dificil mas, apesar disso,deram-se ao trabalho de me consolar no meu tempo de dor De dentro davossavasta prisdo ocestrouxeram um raio de luz no meu momento de escuriddo.A si, em particular, Winnie, expresso a minha sinceraadmirafdo. 0 meu marido Jbi assassinado em apenas um dia, s6 nummomentofatfdico. 0 seu marido estd a ser assassinado todos os dias, a todas as horas. Minhairmd,muito obrigado por ter a forCa de me consolarUm dia nos encontraremos, ou ao longo da trilha daluta ou na magnifica estrada para a liberdade e entdo, olhando-vosbem nos olhos,serei capaz de exprimir todaa minha gratiddo.Querida Winnie Querido NelsonSamora, vosso irmdo, caiu no campo de batalha.0 mundo nunca verd Mandela e Samora num abraCo triun-

20 IAIN CHRISTIEJante nesse glorioso dia em que a bandeira da liberdade for iVada naAfrica doSul.0 vosso irindo deixou-nos, na sua tiltima grande viagem, uma viagemquecomeCou em Mbuzini. Quem poderia ter acreditado nisso? Quem poderia teradivinhado que aquela pequena aldeia se tomaria o foco da unidade entre ospovos dos nossos dois paises?Todos os dias tantos homens e mulheres morrem pela liberdade na Africa do Sul.Agora o sangue de Samora estd misturado com o sangue desses her6is. Ele deu oseu pensamento e a sua acVdo pela liberdade da Africa do Sul. Quem iriaimaginar que ele daria tamb9m a sua vida?Ele ndo completou a sua missdo, mas n6s o Jaremos.Com o seu suor, coragem, inteligencia e solidariedade ele deu uma contribuiCdodecisiva para a unidade dos povos da Africa Austral. N6s somos milh5es. S6 naAfrica do Sul somos 23 milh5es de homens e mulheres em luta. t inevitdvel que aestrela da liberdade brilhe sobre no's para que o sangue de Samorando tenha sidovertido em vdo.Esse sangue j a argamassa que cimenta a indestrut(vel unidade dos nossos povos.A bandeira livre da paz voarci no local onde Samora tombou. 0 seu sangue serdvingado pelos combatentes do Umkhonto we Sizwe, ,Uios her6icos sacrificiostrardo a liberdade ao povo da Africa do Sul.Samora jd ndo pertencia apenas ao povo de MoCambique. Samora e Mandela t ma mesyna estatura, o mesmo destino; sdo nobres filhos da Africa ede toda ahumanidade. t por isso que mdes sul-africanas choraram junto com mdesmoCambicanas pelo desaparecimento fisico de Samora. Elas sentiram que tinhamperdido um dos seus pr6prios filhos. No's, maes, sabemos que d6i perder um filhoamado. t como se o ventre que gera a vida tivesse sido esvaziado.Mas quando perdemos um filho na luta temos, ao menos, a consolaCdo de saberque ele morreu por uma causa justa.

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N6s, indes moCambicanas, oferecemos Samora ao povo sul-africano para que oguerrilheiro que ele era, o comandante vitorioso que ele era, continue a viver emcada com-

SAMORA - UMA BIOGRAFIAbatente do Umkhonto we Sizwe e apresse a chegada do dia da alegria.0 fim do apartheid sera' o maior tributo ii mem6ria de Samora.Querida Winnie,A morte do meu marido deixou-me com uma grande sensaCdo de vazio.Asoliddo que sinto g imensa. S6 continuando a luta, contribuindo para ocompletardo seu trabalho a minha vida tem sentido.Eu era ainda uma crianCa, Winnie, quando pela primeira vez levantou oseupunho contra o apartheid Desde entdo nunca hesitou. Gostava de tera sua forCa ecorageyn. Neste momento de dor procuro inspira do no seu exemplo.Aqueles que prenderam o seu marido sdo os mesmos que mataram o ineu. Elespensam que ao abaterem as drvores mais altas podem destruir a floresta. Mas ahist6ria nunca esquecerd os nomes de Samora Machel e Nelson Mandela. A causajusta desses dois homens triunfard para maior gl6ria de Africa e dignidade dahumanidade.Os caminhos da liberdade sdo longos e tortuosos. Mas a vit6ria chegard um dia. Epor essa vit6ria que Nelson Mandela estd a fazer o seu sacrif(cio. Por essa vit6riaSamora Machel deu a sua vida.Vou terminar por aqui. Os combatentes nunca dizem adeus.AMANDLA!A LUTA CONTINUA!

0 REBELDE E A SUA CAUSAN6s quedamos compreender os fen6menos do comircio, da compra eda venda e omeu pai costumava explicar-nos essas coisas coin hist6rias sobre a donzina do...Todos os africanos na nossa regido estavam enquadrados pela administra!Vdocolonial.Samora MachelPrimeira Parte

1. Assustando o crocodilo (1933-1963)0 jovem que apascentava o gado, do pai no vale do Limpopo deve ter sidodistraido por qualquer coisa, porque fez aquilo que um jovern campon6s africanonunca deve fazer. Deixou um vitelo afastar-se e s6 se deu conta quando um amigoIhe gritou: <<Anda depressa! Urn dos teus vitelos estd a ser atacado por urncrocodilo!>>Muito provavelmente a primeira ideia que passou pela cabeqa do rapaz foi a sovaque ia apanhar do pai por perder um vitelo. Correu o mais que po^de para o rio ela, sem a menor du'vida, estava o crocodilo corn os dentes enterrados na pata dovitelo. Sern mais demora o rapaz saltou para o rio, gritando e batendocorn urn

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pau na agua. Por sorte o crocodilo acreditou no seu bluff, soltou ovitelo eafastou-se pelo rio abaixo. 0 rapaz arrastou o vitelo para fora da Agua pelo rabo,tratou-1he as feridas com ervas medicinais e acabou. por receber,em vez de umasova, elogios pela sua coragem.Esta hist6ria sobre o jovem Samora 6 contada pelo primo Paulo e faz agora parteda lenda que cerca a personalidade do falecido dirigente. Aquelesque nuncaapascentaram gado numa

26 IAIN CHRISTIEzona de crocodilos podem menosprezar a historia como propaganda do tipo <<S.Jorge e o Dragdo>> destinada a fazer crescer um culto da personalidade. Maspara os africanos que cresceram em famflias criadoras de gado a historia e'perfeitamente plausfvel e a reacqdo de Samora ndo tdo corajosa -provavelmenteele manteve-se a uma distdncia segura - como astuta e correcta perante ascircunstdncias.A hist6ria s6 tem interesse porque Samora Machel gastou grande parte da suavida a lutar contra crocodilos de uma esp6cie diferente, umas vezes vencendo oanimal e outras sendo severamente espancado, como veremos mais adjante.A hist6ria de Samora Mois6s Machel comega a 29 de Setembro de 1933, emChilembene, no que e' hoje o distrito do Chokwe da provfncia de Gaza. Na alturanasceu no seio de uma famflia pr6spera segundo os crite'rios da 6poca. Essaprosperidade era resultado de um trabalho duro, poupanga e boas terras. 0 pai deSamora era Mandande Mois6s Machel. Em. 1912, como um sem-ndmero deoutros jovens Tsongas de Gaza faziam naquele tempo e fazem aindahoje, foltrabalhar para as minas na Africa do Sul. Era um trabalho esgotante e perigoso,mas o sistema de trabalho migrante dominava a economia do Sul de Mogambiquee os jovens fisicamente capazes ndo tinharn grande escolha sendo irpara asminas.0 jovem Mandande conseguiu poupar o stificiente para comprar a sua primeiracharrua no infcio da d6cada de 20. Comprou gado e, depois, mais charruas.Por volta de 1940 a fami'lia Machel tinha quatro charruas, centenas de cabegas degado e fazia agricultura ern 30 hectares de solo rico, margoso, nasmargens do rioLimpopo, que fazia de Chilembene uma das dreas mais prosperas e densamentepovoadas do Sul de Mogambique.Em Setembro de 1983, oito meses antes de morrer, Mandande recordou Samoraem crianga. As reminiscEncias eram muito as de um pai orgulhoso e eram, talvez,retrospectivamente coloridas, mas ddo-nos uma vista de olhos sobre os primeirosdias do homem que se viria a tornar um her6i popular africano.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 27Ele era o meu terceiro filho. N6s educa'mo-lo e ele foisempre obediente, como os, irmdos. Ouvia o que Ihe diziamos e respeitava-nos [... ] Quando era rapaz trabalhava duro e bern. Tratava do gado etrabalhava namachamba. Pegavana charrua comigo e com os irmdos [ ... 1.

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Samora Machel vinha de uma tradiqdo de resistencia contra a dominagdo colonialportuguesa. 0 seu avo^ paterno foi um combatente na guerra de resiste^nciadirigida pelo imperador de Gaza, Gungunhana, que f6i capturado(ou se rendeu;as vers6es diferem) e mandado para o exi'lio em 1895. 0 chefe do Estado-Maiordo exercito de Gungunhana, um general chamado Maguiguane Khosa, manteve aluta durante mais dois anos antes de ser igualmente derrotado.0 Imp6rio de Gaza tinha sido estabelecido no princfpio do s6culo xIx pelosNgunis, dirigidos por Soshangane, que tinha vindo do que 6 hoje a Africa do Sul.Soshangane conseguiu estabelecer a sua autoridade sobre os Tsonga e outrospovos da drea e Gungunhana herdou um impe'rio de um tamanho considerdvelque desafiava directamente os esforgos dos portugueses para conseguir algo maisdo que o controlo nominal do Sul de Mogambique.Nas guerras da de'cada de 1890, Maguiguane Khosa foi capaz delevantar umex6rcito de cerca de 20 000 homens, incluindo oficiais tsongas, como o av6 deSamora Machel.As mem6rias da guerra de resiste^ncia ern Gaza vZio sendo transmitidasoralmente e meio seculo mais tarde Samora iria ouvir os velhos a recordar o avo'Machel e as cicatrizes no seu corpo feitas pelas balas dos portugueses. Mas, comoele lembraria muitos anos mais tarde, as historias ndo erarn s6 sobreherol'smo:<<O meu pai costurnava contar-nos a brutalidade da invasdo [portuguesal, adesumanidade da invasdo, a maneira como tratavam as pessoas que eram feitasprisioneiras.>>No tempo em que Samora Machel crescia havia - e ainda ha hoje - emChilembene um grande, proeminente sfmbolo da resist8ncia em Gaza. t umadrvore velha e esplendida, a cerca de uma hora de caminho da casa onde Samoraf6i criado. A sua generosa copa de folhas e ramos fazia dela uma escolha natu-

28 MIN CHRISTIEral para, Maguiguane receber visitantes e as pessoas da zona dizem que era la' queele presidia A sua corte. Era tamb6m um lugar ltil para os jovens pastores daChilembene deste s6culo apanharem alguma sombra enquanto guardavarn o gadoda familia e para meditar sobre o passado, o presente e o futuro. Diz-se que ojovem Samora era visto muitas vezes debaixo daquela Arvore; e se asgl6rias doImp6rio de Gaza estavam entre, os seus pensamentos, tamb6m o deviam estar aspeculiaridades do colonialismo portugu8s no seu proprio tempo.Como este assunto parece ter tido uma influe^ncia significativa no posteriordesenvolvimento das suas ideias politicas, vale a pena citar, com algum detalhe,as reminisce^ncias de Samora numa conversa, em 1974, com o acad6micocanadiano John Saul. Ele comeqou por descrever a regido onde nasceu como, ricae f6rtil, onde as pessoas eram camponesas mas ndo eram pobres, econtinuou:Alguns eram mesmo ricos. Algumas pessoas, consideradas muitoimportantes,possufam tractores e charruas, criavam gado e produziam vdrios cereaisN6s querfamos compreender os fen6menos do comercio,da compra e da venda, e o meu pai costurnava explicar-nos essas coisas comhist6rias sobre a dominaqdo. Ndo eram as pessoas que produziam ascoisas que

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fixavarn os pregos. Ndo eram eles que escolhiam a quem quenam vender osprodutos.Todos os africanos na nossa regido estavam enquadradospela administragdo colonial. Era a administragdo colonial que recrutava oscompradores. Todos os cereais produzidos por africanos eram comprados porcomerciantes recrutados pelos administradores. Os comerciantesqueriam comprarmas n5o queriam ir directamente aos produtores. Queriam fazeros contactos atrave's da administragdo.A administragdo fixava os pregos naquilo a que chamavaa feira - a Feira dos Cereais. Por outras, palavras, a Feira dos Cereais era umaforma de explorar o trabalho do campones africano A verdadeira esse^ncia dascoisas esta' nesta produqdo e troca de produtos agrfcolas, porquee'ramos

SAMORA - UMA BIOGRAFIAobrigados a vender os nossos produtos aos comerciantes a pregosfixados pelaadministraqa-o.Por exemplo, n6s produziamos e vendiamos um quilo de feijdo a tresescudos ecinquenta centavos enquanto os agricultores europeus produziame vendiam acinco escudos olo. E no dia a seguir a termos vendido as nossas colheitas tinhamos quecompraresses mesmos produtos a seis escudos - o dobro do preqo que n6stinhamosrecebido.Se, ocasionalmente, por um acordo especial, consegufamos vender directamente aurn fornecedor ou comerciante (por exemplo a quatro escudos o quilo) eramosobrigados a receber o pagamento metade em. dinheiro e a outra metade emprodutos [ ... ].Ainda por cima ndo podfamos ser comerciantes. Os <<indigenas>> n5o podiampraticar nenhuma forma de com6rcio. Apenas podiam produzir para oscomerciantes europeus.As vacas dos africanos ndo eram registadas e na-o podiam ter a marcados seusdonos. Isto permitia aos agricultores europeus roubar gado dos africanos. Porvezes gado pertencente aos <<indfgenas>> misturava-se com ogado pertencenteaos europeus e, quando isso acontecia, os europeus marcavarn-no imediatamente -o mesmo acontecia com carneiros e cabras - e assim aqueles animaispassavamautomaticamente a pertencer a esses europeus.Depois havia a imposiqdo de determinadas culturas por parte da administraqdo - osistema do algoddo. A cultura do algoddo e' de tal forma que impede qualqueroutra actividade. E um produto que requer muita atengdo e, consequentemente,resultou em fome na nossa regido. Muitas pessoas morrerarn de fome por causado algoddo.N6s vivemos isto tudo e os nossos pais falavam-nos disto para nos fazerementender que esta era a natureza da dominaqdo externa. E isto significava falarem-nos sobre a penetraqdo portuguesa e a resist8ncia 'a sua brutalidade e crueldade.Nesta regido os homens sdo igualmente forqados a ir para a Africa do Sul. Sdovendidos 'as minas sul-africanas. E, enquanto um homem estd na Africa do Sul, aesposa e'

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30 IAIN CHRISTIElevada para trabalhar durante seis meses na construgdo de estradas, nasconstruq6es dos comerciantes e nos campos dosagricultores europeus.SAUL - A venda de trabalhadores para a Africa do Suldeve ter afectado a sua pro'pria famflia.SAMORA - Perdi muitos parentes na Africa do Sul.Alguns voltavam com tuberculose, sern membros, mutilados, cegos,completamente inva'lidos e sem indemnizaqdo. Outros morreram naAfrica doSul. Por exemplo o meu irmdo mais velho. Quando ele morreu nas minas daAfrica do Sul o meu pai recebeu uma nota da administraqdo a dizer quedevia Idir para receber uma indemnizagdo de 40 libras. Mas disseram que ndopodiarnentregar a quantia toda de uma vez. So' podia levar 10 libras e o restoficaria nocofre da administraqdo onde ele deveria ir pedir pequenas quantiasquandoprecisasse.SAUL - Lembro-me de outra historia de exploraqdo,nesta zona, que aconteceu em 1950, a exploragdo da terra.SAMORA - Esse f6i o maior drama. As charruas etractores daqueles que eram agricultores hoje estdo sem utilidade. Todos aquelesque tinharn boas casas, de alvenaria, foram expulsos para dar lugar aos colonos eobrigados a viver numa unica divisdo. A nossa terra f6i expropriada e entregueaos colonos. Hoje ndo ha nenhurn agricultor africano na minha regido. Toda aterra foi entregue a colonos sem nenhuma compensaqdo [ ... I Os africanos foramcolocados em terras dridas que ndo produzem nada, enquanto as regi6esentregues aos colonos sao irrigadas pelo rio Limpopo (1).(') Uma transcrigdo da conversa de Samora com John Saul, em Dar-es-Salam, foidada ao autor pela Frelimo em 1974, como enquadramento para um perfil quemais tarde apareceu na revista americana Africa Report. At6 ao momento damorte de Samora esta conversa era a dnica hist6ria detalhada da sua infancia pelassuas pr6prias palavras e livremente disponfvel para publicagdo.Todas asrecordag6es de Samora sobre a inffincia citadas neste capftulo sdoprovenientesdessa conversa. Antes de o documento me ser entregue Samora teve aoportunidade de o rever e lhe fazer alterag6es. Um interessante tributo A suamod6stia 6 que as 6nicas altera 6es que fez foi substituir a palavra<<eu>> pelapalavra <<n6s>>.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 31Em 1942, quando Samora tinha nove anos, surgiu a possibilidade de ele ir para aescola. 0 pai decidiu que se devia aproveitar essa oportunidade de forma que dissea Samora para. pousar a enxada e preparar-se para os estudos.Foi um periodo diffcil para um jovem de uma so'lida familia protestante comeqara ir 'a escola porque isto passava-se logo a seguir a os portuguesesentregaremaquilo a que chamavam <<educaqdo indigena>> A Igreja Cato'lica. AfamiliaMachel era Metodista Livre, sem grande vontade de enviar o filho para umaescola cat'lica, mas era isso ou nada.

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Esta imposiqdo, em troca do apoio do Vaticano ao Estado fascista deAnt6nioSalazar, enraiveceu muitos jovens moqambicanos. No caso de Samora Machel araiva ndo derivava tanto de uma piedade protestante ferida - ndo hd nenhumaindica9do de que ele alguma vez tenha sido um grande crente - mas da percepqdode que o objectivo era, nas suas palavras, ondo educar mas ensinardoutrina [ ... ]0 objectivo principal da Missdo era endoutrinar-nos, fazer de n6s cat6licosromanos>>.Samora fbi para uma escola rural em Souguene, nas margens do Limpopo, para.estudar ate' ao mais alto nivel possivel nessa escola - que era conhecido emportugue^s como oterceira classe>>. 0 seu significado e' terceiroano de educaqa-o primdria. E e' o que a expressdo significa, de facto, no Mogambiquep6s-indepen&ncia. Mas na-o era o que significava, na prAtica, naquela altura. Commuito do tempo dos estudantes ocupado com a educagdo religiosa, o completardos tre^s anos de <<educaqdo rudimentar>> levava seis ou mais anos. <<Havia aprimeira A, a primeira B, a segunda atrasada, a segunda adiantada,a terceiraatrasada e a terceira elementar>>, recordou Samora tres decadas depois de teriniciado a escola. Portanto ele devia ter 14 ou 15 anos quando passou para aescola da Missdo de S. Paulo de Massano, para tirar a quarta classe, dnicahip6tese de um africano se preparar para um emprego que requeresse mais do quetrabalho manual. Esta experi8ncia parece apenas ter aprofundadoa suarepugnancia pelo sistema de educaqdo da 6poca. Ele pro'prio afirmou:Os nossos pais tinham que entregar dez sacos de milhoe cinco sacos de feijdo de cada tipo. Para alem disso ti'nha-

32 IAIN CHRISTIEmos que produzir arroz na missdo [ ... ] e tambem produz'amos batatas e bananas.Por outras palavras, n's produzfarnos e ainda pagavamos para produzir, porquetodos os anos os nossos pais tinham que pagar as nossas propinas namissdo.Dormiamos em esteiras e as mantas eram trazidas pelos nossos pais.Ndoreceblamos absolutamente nada da missdo a ndo ser o professor. Cornfamosfarinha de milho dura com um molho feito de amendoirn, dgua e sal. E se algunsalunos ndo sairam com os ffizados destrufdos ou com tuberculose fois6 pelaforqa da resist8ncia humana. E o milho era cuidadosamente medido corn urnobjecto especial de madeira que indicava o n6mero de gramas. Eu ndo sei quantoeramas eles sabiam com certeza.IE neste perfodo da vida de Samora Machel - o fim dos anos 40 - que encontramosos primeiros sinais registados do polftico nascente nele. Antigos colegas de escoladizern que ele era conbecido como <<O Rebelde>> e que, uma vez, fugiu daescola como protesto. Curiosamente, no entanto, ele sabia quandotinha que fazercompromissos. Poucos dias antes do exame da quarta classe os padres colocaram-no perante a escolha: ou se baptizava como cat6lico ou ndo fazia exame.Ele engollu a pilula e fez o exame. E passou.Entdo chegou outro teste. 0 regime colonial portugu8s queria os afficanoseducados no mercado de trabalho logo que tivessem a quarta classe.<<Ndo

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estamos aqui para formar doutores>>, como disse um ide6logo portugu8s daepoca.0 jovem Samora, contudo, queria continuar os seus estudos. Muito bern, diziam ospadres, podes ir para. um semindrio e estudar para ser padre. Ndohavia outraalternativa. Ou era o semindrio ou o mercado de trabalho, apesar das notas noexame e boas provas dadas a nfvel acad6mico que lhe deveriam permitir entrarpara o ensino secunddrio.0 baptismo por chantagern e a escolaridade do tipo osacerdo'cio-ou-nada>> ndoeram armas inventadas por um padre vingativo apenas para usar contra SamoraMachel. Era assim que um africano que conseguia acesso A escola noMoqambique colonial era tratado. Muitos dos contempora^neos de Samora que,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 33como ele, participaram na luta pela indepen&ncia, tiveram experi8nclas similares.Samora, mals tarde, recordou a sua reac9do A proposta de ir parao seminario:Eu disse que nao, que nao ia. Queria ter educagdo secunddna. Era normal. Eu ndoqueria essa coisa do semindrio.Entdo eles foram falar com o administrador e bloquearam tudo e, portanto, ndoconsegui entrar na escola secunddria.Fui para. Lourenqo Marques (a capital, agora Maputo) masisso tamb6m ndo funcionou. Os padres travaram-me.Conseguiu, no entanto, entrar para a profissdo de enfermeiro, uma das poslq6esmais elevadas a que um africano podia aspirar naqueles dias. Primeiroteve queregressar a Gaza, para conseguir a sua documentagdo toda na capital provincial,XaI-XaI. Enquanto Id esteve, em 1951, trabalhou como praticanteno hospitallocal.Em 1952 comegou um curso de enfermagem em Lourenqo Marques, onde folcolocado no Hospital Miguel Bombarda, o malor hospital da cidade.Os estudantes de enfermauern nearos estavam alojados em condig6es terrfveis,num dormit6rio tipo caserna com mds condig6es sanitdrias. Colegas de Samorarecordam que havia tr6s longas filas de camas estreitas numa unica sala. Mals de75 estudantes de enfermagern dormiam nessa sala, que era no mesmo ediffcio deuma ala do hospital para doentes psiquidtricos. Entre as duas salas havia apenasuma divisdo em madeira que ndo chegava ao tecto. David Muteto, que era oencarregado do dormit6rio quando Samora Id viveu, diz, com um sorrisoentredentes: <<Havia com frequ8ncia multo barulho durante a noite, quando osdoentes mentais ficavam agitados, e, muitas vezes, eles saltavarn por cima dadivisa-o para o lado do nosso dormit6rio. Ndo faziam isso todas as noites, claro. Eos estudantes eram multo compreensivos.>>Em 1987 perguntei a um grupo de cinco colegas de Samora, ainda vivos, como 6que eles passavam as noites naquele dormit6rio. <<Estuddvamos>>, responderamtodos em coro. Durante

34 lAIN CHRISTIEo dia eles ou estavam nas aulas ou a trabalhar no hospital. Era uma semana detrabalho de 60 horas.

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Os estudantes colavam fotos na parede por trais das suas camas. Ndofotografiasde politicos, claro, porque isso seria uma forma segura de ser expulso.As fotos que Samora colou eram de her6is do boxe da 6poca e dos anosantecedentes - homens como Joe Louis, Jack Dempsey, Jersey JoeWalcott eArchie Moore. Ele costumava manter os estudantes encantados corn entusid.sticasdescriq6es, golpe por golpe, dos maiores combates. Fazia gindstica todas asmanhas para se manter em forma e, embora nunca tenha tomado parte numcombate, o seu fascfnio pelo desporto fez corn que fosse alcunhadode (JackDempsey na camarata.Aur6lio Manave, urn estudante de enfermagern dessa 6poca, quese tornou umamigo para toda a vida do futuro Presidente, recorda que Samoraera urn dosestudantes que discutia as quest6es de polftica internacional pela noite fora. 0Gana de Nkrumah, o Presidente Mao e a revoluqdo chinesa, a guerrada Coreia eo Egipto de Nasser. Dias intensos, cheios de tentaq6es para jovens moqambicanoscom ideias nacionalistas. Dias de formaqdo para o jovem Samora.Embora se desse bern corn os colegas, Samora tinha problemas comalguns dosm6dicos portugueses. Basicamente o problema era o facto de ele responderquando criticado, o que nao era normal urn africano fazer naquela 6poca. «Elecosturnava discutir com eles quando se apercebia de uma injustiqa , disse urnvelho amigo dos tempos de estudante. Continuava a ser <O Rebelde . Nofim dosdois anos do curso este tipo de comportamento valeu-lhe uma reprovaqdo. Osantigos colegas insistem que esta reprovaqdo ndo tern nada a ver corno trabalhodele e os resultados do seu estudo, que erarn excelentes. Mas teveque repetir urnano. Teve o grande prazer de irritar os chefes e ser o segundo melhor do curso em1954.Samora tornou-se enfermeiro a tempo inteiro em Lourenqo Marquese, em 1956,foi colocado no pequeno hospital na ilha da Inhaca, do outro lado da bafa, emfrente Ai capital. La' passou a viver maritalmente corn Sorita Tchaiakomo, umarapariga do cla Nhaca, proeminente na ilha. Sorita deu-lhe dois filhos

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 35- Joscelina e Edelson - antes de ele se mudar para Lourengo Marques, ern 1958.Nos anos ate' 1963, que iria ser um ano determinante na vida de Samora, o casalteve mais dois filhos, Olivia e Ntewane.Politica no hospitalDe volta 'a capital Samora passou a residir em 1958 numa casa de madeira e zincono bairro suburbano da Mafalala. Trabalhava no Hospital Miguel Bombarda mas,por essa altura, tinha vontade de subir no mundo da enfermagem.Queria fazerurn, curso de enfermagem avangada naquilo a que os portugueseschamavamnivel <<europeu)). Para frequentar este curso um. africano tinha que ter algunsanos de experiencia de enfermagem, que Samora tinha, e o ensinosecundario Wao V ano, o que ele ndo tinha. Ndo tinha sequer o 5.* ano. Comegouentdo afrequentar aulas nocturnas, que Ihe custavam 350 escudos porm8s, tirados de umsalario de 1300 escudos.0 professor era o Dr. Adalberto Azevedo, que dava aulas a africanos na garagern.da casa do pai. Depois das aulas Samora e os colegas costurnavarn contar o

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dinheiro e, se fosse stificiente, paravarn. num bar a caminho de casa. A CervejariaAngola era a preferida para uma cerveja e um pouco de conversa.Mas ndo havia tempo para uma vida agitada. Era trabalho todo o dia e estudo todaa noite. Samora completou os dois anos do curso secunddrio em urn ano apenas.Iniciou entdo o curso de enfermagern, avangada, continuando a trabalhar noHospital Miguel Bombarda.Aquele trabalho f8-lo entrar em contacto com formas de discriminagdo crua.Pouco depois da independe^ncia explicava:No hospital havia vdrias categorias ou classes que correspondiam Aestruturasocio-racial do colonial-capitalismo, passando desde o colonialista branco ao<<assimilado>> ate' ao <<IndI'gena>> Existia um desinteresse total pelo doentepobre, que se manifestava na atitude como ele era observado pelo medico ou peloenfermeiro, na falta de higiene das pr6-

36 lAIN CHRISTIEprias instalag6es, no liberalismo e na total aus~ncia de disciplina entreostrabalhadores. No Hospital o nosso povo era usado como cobaia, para seexperimentarem novos medicamentos e certas operag6es que, casodessernresultado, eram posteriormente aplicados aos burgueses nas clinicas e consult6riosparticulares [...] Para al6m da assist~ncia precdria o doente era tratado de acordocom as suas possibilidades econ6micas (2).Samora ndo precisava de poderes de observaqdo especiais para ver a injustigainerente ao sistema m6dico colonial. Quase todos os negros - e os brancos pobresenviados de Portugal sentiam essa experiencia na sua vida do dia-a-dia. Haviamais medicos privados numa rua de Lourengo Marques do que doutores em todoo resto do pafs. Disse Samora: <<Eminentes medicos e professores universitdiriossdo chamados para tratar a gripe do capitalista, para curar a constipaq.o do juiz,enquanto ali perto hdi crianqas a morrer, hdi pessoas a morrer porque ndo t~mdinheiro para chamar um m6dico.> (3)0 que foi excepcional no enfermeiro Machel foi que ele saiu destaexperi~ncia nohospital com uma anilise s6ria dos efeitos do sistema colonial-capitalista nohospital.As estruturas do Hospital Miguel Bombarda tal comotodas as estruturas do aparelho colonial eram:Primeiramente: estruturas rfgidas, individualistas e burocrdticas.Dois: estruturas que inibiam a iniciativa e impediam aparticipaqdo dos trabalhadores na vida do hospital. 0 poderera absoluto e centralizado.Em terceiro lugar: estruturas que alienavam os trabalhadores, fazendo deles seresirresponsdveis. Onde hdi irresponsabilidade encontra-se tamb6ma infantilidade.E asconsequencias sdo desastrosas.(2) Discurso no Hospital Central de Maputo, numa reunido do Hospital MiguelBombarda e do Hospital da Universidade, a 6 de Outubro de 1976.(3) Citado em Mozambique Revolution, n.' 58 (Jan-Mar de 1974), p.13.

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SAMORA - UMA BIOGRAFIA 37Quarto: estruturas que favoreciam a actuaqdo de elementos desonestos e corruptosque faziam da doenqa dos outros uma mina para se enriquecerem. Eram estasestruturas que permitiam que os trabalhadores do hospital pudessem trabalhar, aomesmo tempo, em consult6rios e clfnicas particulares, onde adquiriam umespfrito mercenario 4Samora fez esta andlise crftica de um hospital decadente em 1976, 13 anos depoisde deixar de trabalhar Id. Ndo hd ddvida de que esta anallise beneficia de ser feitaa essa distancia, mas mantem a frescura da experi8ncia e da observaqdo pessoais.Esta recordaqdo precisa dd a entender que, no infcio dos anos 60,o pensamentode Samora Machel J*d tinha ido para alem do simples anticolonialismo. 0 sistemaque ele viu a funcionar no hospital era dirigido pelos portugueses, mas poderia tersido conduzido por uma elite moqambicana depois da independ6ncia. <<O modode distribulqdo de tarefas e de responsabilidades, os m6todos de trabalho aliaplicados, tudo isso conduzia o trabaIhador a alienar-se dos seus deveres paracom os doentes e a adquirir, progress i vamente, uma mentalidadeburguesa, umdesejo cada ve,,Z mais nitido de copiar o colonizador.>> (') (Itdlico acrescentado.)A inspiraqdo de Mondlane0 desenvolvimento do pensamento polftico de Samora Machel, nos anos 50 eprincfpio dos 60, ndo pode ser visto isoladamente do crescimento donacionalismo mogambicano daquele tempo. Este era um processo extremamentedesigual e complexo que estal para al6m do objectivo deste livro descrever empormenor (6). Um factor importante a reter e que o movimento pela(1) Discurso no Hospital Central de Maputo jd citado.(5) Ibidem.(6) Pormenores deste processo podem ser encontrados na obra de Barry MunslowMozambique: the Revolution and its Origins, Harlow, Longman,

38 IAIN CHRISTIEindependEncia nas col6nias portuguesas nunca foi legal como foi, por vezes, emcol6nias britanicas e francesas.0 movimento nacionalista mogambicano desenvolveu-se em, pelo menos, tr8sdreas diferentes. Foram formadas organizagdes de exilados nospafses vizinhos;estudantes e outros intelectuais na Europa tomaram parte na criagdo deummovimento anticolonial envolvendo todas as col6nias portuguesas; eo povo nointerior de Mogambique actuava atraves de associago-es sociais, culturals,religiosas, cooperativas e desportivas e grupos polfticos clandestinos.Isto sem menosprezar a importancia de outras formas de resist8ncia contra aopressdo colonial, como a ac9do trabalhista, mas que raramente eram expressdode nacionalismo.Samora esteve envolvido na complexidade e nas frustrag6es da cenapolfticanacionalista de Lourengo Marques.Durante muitos anos parecia que todos os caminhos para a independEnciaestavam bloqueados. 0 simples facto de dizer que Mogambique era umpafs e ndouma provincia portuguesa era considerado tral9do. A pesada repressdo do Estadoportugu8s tornava muito diffcil para os negros agruparem-se, fora da sala de aula,

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dormit6rio ou local de trabalho, para qualquer coisa de mais provocat6ria do queum jogo de futebol.0 regime fez igualmente tudo o que 1he foi possi'vel para evitara mistura entre asraqas e classes, na medida em que isso poderia encorajar a ideia de uma naqdomogambicana. Portanto, quando os filhos mulatos de pais brancos e ma-es negrastentaram vincar a sua africanidade trabalhando com negros na AssociagdoAfricana, uma organizagdo cultural, as autoridades manipularam a criagdo de umgrupo dissidente s6 para negros, o Centro Associativo dos Nearos da Provfncia deMogambique. E quando nacionalistas instrufdos entraram para esse novo grupo,comegando a dar aulas aos seus compatriotas menos privilegiados,a policiasecreta fechou-o.1983 e em Mozambique: from Colonialism to Revolution, de Allen e BarbaraIsaacman, Bouldar, Colorado, Westview Press, 1983, Zimbabwe PublishingHouse, Harare, Zimbabwe, 1995.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 39Quando antifascistas brancos assumiram o controlo da Associagdo dos Naturaisde Moqambique, um clube para brancos nascidos em Mogambique, abriram-na apessoas de todas as raqas e tentaram iniciar uma escola nocturna. Ndo foramautorizados e a pro'pria associagdo foi banida em 1961, ficando fechada durantealguns anos.0 apartheid nunca foi polftica oficial na Africa Oriental Portuguesa, comoMoqambique foi chamado durante algum tempo no perfodo colonial,mas eraapenas uma questdo de terminologia. Segregagdo racial, apartheid, chame-se-lheo que se quiser: era esse o sistema que imperava. Existia em todos osaspectoscla'ssicos da Africa do Sul. A maquina de propaganda do regime colonialportugu8s espalhou a hist6ria de que nao havia discriminagdo racialnas col6niasportuguesas africanas de Mogambique, Angola, Guine-Bissau, ilhas de CaboVerde e Sao Tom6 e Prfncipe. Mas a ostenta do colonial de uma sociedademultirracial lusitana era um mito. A cor da pele era um factor determinante para olocal onde se vivia, onde se trabalhava, para o tipo de educaqdo que uma criangarecebla e a discriminaga-o estendia-se ate' As actividades de lazer e ao desporto.Samora, como adepto do boxe, teria notado que, em Mogambique, ndo erapermitido que negros praticassern o boxe contra brancos.Contudo, na sua qualidade de negro no Mogambique colonial, a discriminagdonos ringues de boxe era a 61tima das preocupaq6es de Samora. Aquilo contra queele se revoltava era todo o sistema de trabalho forgado, a repress5o da consci8ncianacional e a humilhagdo institucionalizada dos africanos.Envolveu-se na actividade polftica clandestina da epoca: os encontros nocturnossecretos de homens e mulheres que pretendiam espalhar uma consci8ncianacionalista moqambicana, um pr6-requisito para a remoqdo do poder colonial dasua terra.No entanto, ndo tinham uma grande ideia de como atingir esse objectivo. Dentrode Moqambique era dificil ir al6m da <<subversdo>> da palavra falada. Nospafses vizinhos os grupos de exilados mogambicanos estavam divididos pordiferengas 6tnicas e regionais e pareciam atarantados com o pensamento de que

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Portugal acabaria por sucumbir 'a forqa dos argumentos anticolonlais, desistindosem lutar.

40 IAIN CHRISTIEEm 1961, no entanto, os jovens nacionalistas ganharam novas esperanqas com achegada a Lourenqo Marques de um homem que parecia ter as qualidadesnecessairias para unir o movimento e dar-lhe uma direcqdo.0 seu nome era Eduardo Chivambo Mondlane. Jovem brilhante, tinha ido estudarpara a Africa do Sul nos anos 40. Depois do seu regresso a Moqambique em 1949apoiou a formaqdo do NESAM, o Ndcleo de Estudantes Secunddrios Africanosde Moqambique, um grupo cultural e social protonacionalista.Fol preso e interrogado sobre as suas actividades e foi, mais tarde, enviado pelasautoridades para estudar em Portugal. Consideravarn que ele <<tlnha sidoinfectado com um vfrus comunista que poderia afectar outros em Moqambique>>(1). Incomodado pela polfcia secreta em Portugal, seguiu para os Estados Unidosonde completou os seus estudos universitdrios em sociologia e antropologia,tendo depols obtido um lugar como investigador no Departamento deCuradoriadas Nag6es Unidas(NU).Meteu f6rias das NU para fazer uma visita de tres meses a Moqambique em 1961e viajou por muitas zonas sob a protecqdo da sua posiqdo como funciondriointernaclonal.Em Lourenqo Marques fol ho'spede da Missdo Suf9a, que lhe concedeualojamento. 0 seu estatuto impossibilitou as autoridades coloniais de o impediremde realizar encontros em sua casa com jovens moqambicanos que, talcomo ele,sonhavam com a libertaqdo. Mondlane tinha a visdo de um movimentonacionalista unido que conduziria o seu pafs para fora da noite colonial emdirec9do A aurora da liberdade. Unidade, direc do, formas de luta -estes eram ostemas quentes discutidos na casa de Mondlane.A clareza de pensamento de Mondlane, o seu engajamento e determinaqdo, foramuma inspiragdo para os jovens que conversavam com ele pela noitefora,aceitando de boa vontade serem infectados pelo seu <<vfrus comunista>>.Um homem que manteve como um tesouro at6 ao fim dos(1) Mondlane, Eduardo, The Struggle for hidepenclence in Mozambique, mimeo,1963, p. 7.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 41seus dias a recordaqdo desses encontros foi o enfermeiro do Hospital MiguelBombarda, Samora Mois6s Machel. Ele reconheceu que o povo mogambicanotinha encontrado, por fim, um dirigente. Ningue'm teve maior satisfaqdo queSamora quando a Frente de Libertaqdo de Moqambique, FRELIMO ('), f6iformada em Dar-es-Salam, no ano seguinte, sob a direcq5o de Mondlane. A partirdesse momento a U'nica questdo para Samora Machel era como e quando sejuntaria ao novo movimento.A mesma questdo preocupava os homens que tinham estado na sombra, do outrolado da rua em frente 'a casa de Mondlane, a verificar quem entrava. Tinham o

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titulo grandioso de Polfcia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), o quesignificava, de facto, a polfcia polftica portuguesa.Lemos Macuacua, um dos colegas de enfermagem de Samora, diz quea PIDEandava constantemente atrds de Samora a partir dos encontros com Mondlane.Em 1962 Samora foi duas vezes chamado para interrogato'rios.0 socorro de Victor HugoNas redes clandestinas urn nacionalista conhecia alguns dos seuscamaradas, masapenas a1guns. Quando a PIDE comeqou a actuar em Moqambique, comeqou ainfiltrar as redes. Era diffcil saber quem era amigo e quem era inimigo.A PIDE comegou a prender nacionalistas em 1961. At6 a]guns brancos foramparar A cadeia por apoiarem a causa da liberdade. No principlo os brancos que seconsideravarn moqambicanos e eram favordveis 'a independ8ncia sob um governode maioria encontravarn-se numa posigdo particularmente vulnerdvel. Tinhamconfiado nos portugueses apoiantes do democrata Humberto Delgado e tinhamfalado livremente com eles no fi(K) Oficialmente a sigla do movimento defibertaqio deveria ser FRELIMO. A vers5o Frelimo s6 foi adoptada quando secriou o Partido Frelimo. Contudo, para facilidade de leitura, usei avers5o Frelimoao longo de todo o fivro.

42 IAIN CHRISTIEnal da d6cada de 50. Isso f6i um erro. Muitos desses <<democratas>>portugueses queriam uma soluqdo para, o problema dentro do sistema colonial etrafram os brancos <<africanizados>> junto das autoridades.Urn dos Jovens brancos que foi apanhado pela. PIDE em 1961 eraum delegadode propaganda m6dica de uma empresa farmac8utica, Jodo Ferreira. Passou naprisdo o perfodo entre Maio e Outubro. Ferreira tinha tornado uma decisdoconsciente, de se ligar ao movimento de liberta do moqambicano em vezdos<<democratas>> portugueses.Ferreira recorda que, no infcio dos anos 60, f6i em serviqo ao Hospital MiguelBombarda e, entre as enfermarias que visitou, esteve na 1P, onde trabalhavaSamora. Era uma enfermaria para pobres, onde eram experimentadas novasdrogas, uma situaqdo desagradavel para os dois homens mas que permitiacontactos importantes.E o contacto nunca foi mais importante, do que naquele dia de 1963 em queFerreira passou por uma enfermaria onde descobriu um pacienteque ele e Samoraconheciam, um homem chamado Victor Hugo. 0 hom6nimo do escritor franc8schamou a atenqdo de Ferreira e disse-lhe que precisava. de falar com ele. Aconversa. fol breve. 0 paciente tinha sido visitado pela PIDE pouco depois de,entrar no hospital. No decurso do interrogatorio transpirou que os agentes daPIDE tinham a impressa-o de estar a interrogar uma pessoa completamentediferente - Samora Machel.Victor Hugo chegou A conclusdo de que Samora. tinha sido trafdo por uminfiltrado que se apresentava como urna, pessoa que estava a planear juntar-se AFrelimo. Hugo sugeriu que Ferreira procurasse o amigo comum e o avisasse.Ferreira encontrou Samora na enfermaria 13, chamou-o A porta detrds e, noresguardo das escadas traseiras, deu-lhe as mds notfcias.

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Samora n5o ficou A espera da inevitAvel prisdo. Pediu umas f6rias de 11 dias, aque tinha direito, e foram-lhe concedidas. Falou com um m6dico portugu s amigo,Lomba Viana, para olhar pela sua. famflia e, a 4 de Marqo, deixou LourengoMarques. Apanhou o ferry-boat para a Catembe e seguiu para. o distrito deMatutuine, de onde passou para a Swazila^ndia. Depois

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 43foi uma coff ida atrav6s da Africa do Sul ate' ao Botswana, de onde procurariaarranjar transporte ate' 'a Tanzania para se juntar ao novo movimento delibertagdo unido, a Frelimo.Poucos dias depois da saida de Samora, a PIDE foi ao hospital e levou LemosMacuacua para interrogatorios na sede da policia secreta, a famosa Vila Algarve.Queriam saber onde estava Samora. De f6rias, disse Macuacua, tentando ndopiscar os olhos, embora soubesse perfeitamente para onde tinha ido o amigo. Fezfig-ura de inocente e foi libertado.Ferreira ndo ficou muito atrds de Samora. Poucas semanas mais tarde ele e umoficial da Forga Adrea Portuguesa, Jacinto Veloso, pegaram num avido e voarampara a Tanzania onde tamb6m se juntaram 'a Frelimo. Ambos se tornaramministros no Mogambique independente. Aur6lio Manave tamb6m aderiu 'aFrelimo e fol governador provincial apos a independ8ncia.Ferreira, que era ministro da Agricultura ao tempo da morte de Samora, recordauma conversa que tiveram, anos depois da independ8ncia, em que falaram da suaconversa nas escadas de tra's no hospital. Samora tinha estado no degrau superiore Ferreira no de baixo. De acordo com as regras da etiqueta daquelesdias deviater sido o contrdrio e, na conversa depois da independencia, Samorabrincou:<<Estds a ver, Ferreira, jd nessa altura eu era teu chefe.>>Ferreira lembra tambem um ponto interessante sobre a reacqdo de Samora aoaviso de que a PIDE andava atrds dele como resultado da traiqdo de uminfiltrado.<<Em todas as revoluq6es hd traidores>>, disse Samora.<<Revoluqdo>>, cismou Ferreira. <<Ja' em 1963 ele falava de revoluqdo.>>

2. 0 nascimento da FRELIMOA 25 de Junho de 1962 urn grupo de moqambicanos reuniu-se em Dar-es-Salam,capital do que era entdo chamado Tanganica e que, mais tarde, ap6s asua unidocom Zanzibar, se tornou a Tanzania. Era urn tempo de mudanqas dramiticas emAfrica. Muitas col6nias estavarn a tornar-se independentes na grande onda dadescolonizagdo que tinha comeqado no fim da d6cada de 50.O significado do que se estava a passar era claro para pessoas de visdo quer deesquerda quer de direita, na poliftica mundial. Em 1959 o primeiro ndmero deuma nova revista sul-africana, a African Communist, tinha declarado: <A Africaestd em revolta. De leste a oeste, de norte a sul, o povo deste grande continentelevanta-se para reivindicar os seus direitos que foram roubados. Os africanosestdo a unir-se em poderosos movimentos de libertagdo nacional. A Africa estdiem marcha para a liberdade.>>

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0 estadista britanico conservador Harold Macmillan (mais tarde LordStockton),falava dos <<ventos de mudanqa>> soprando sobre a Africa.

46 IAIN CHRISTIEMas as coisas ndo eram assim em Moqambique e nas outras colo'niasportuguesas. Por um lado, os portugueses ndo se comoviam com os ventos demudanqa e mantinham-se firmes em Africa, recusando-se a descolonizar. Poroutro lado, o povo de Mogambique ndo se tinha unido num poderoso movimentode libertaqdo nacional. Mas a situaqdo mudou dramaticamente em 25 deJunho de1962, no encontro de moqambicanos em Dar-es-Salam. Nesse encontro foi criadoo movimento nacional, a Frente de Libertaqdo de Moqambique (FRELIMO).Os mogambicanos que tomaram parte na confer8ncia de fundagdo tinham vindode diferentes partes de Moqambique e de muitos tipos de vida. Quasetodostinham estado envolvidos de alguma forma na resist8ncia contra o poder coloniale tinham sentido as represdilas do costume.Tinha havido o massacre de Mueda, na provifficia de Cabo Delgado, em 1960, emque 600 mogambicanos foram assassinados pelas forqas de seguranqa coloniaisquando realizavarn. um protesto pacffico. Houve greves espora'dicas nos anos 30,40 e 50, que muitas vezes terminaram com prisoes em, massa e deportaq6es.C16rigos e laicos da igreja protestante, que se tinha oposto As restri 6es doregime colonial A educaqdo para negros, tinharn. frequentemente problemas comas autoridades.Mogambicanos envolvidos nestas e em muitas outras express6es de resistenciasentiram que tinha chegado o momento para iniciar uma acqdo de forqaatrave'sde um movimento nacional de libertagdo unido. Foi isto que f6i criado noencontro em Dar-es-Salam.Entre as pessoas que la' se reunlram havia representantes de grupos demogambicanos exilados em paises vizinhos. Havia tres principais partidos deexilados na 6poca. Um era a Unido Demorat ica Nacional de Mogambique(UDENAMO), que tinha sido fundada na Rodesia do Sul em 1960. Outroera aMozambique African National Union (MANU), formada em 1961 por grupos detrabalhadores mogambicanos vivendo no Tanganica e no Qu6nia. 0 terceiro, emenos importante, era a Unido Nacional de Mogambique para a Independencia(UNAMI), que f6i formada no Malawi.Mas a figura-chave do encontro n5o pertencia a nenhuma

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 47dessas organizaq6es. Era Eduardo Chivambo Mondlane, um intelectual que tinhaemergido de urn ramo separado da polftica nacionalista mogambicana. A suaestatura moral e polftica teria mais tarde uma profunda influencia nodesenvolvimento polftico e intelectual de Samora Machel.Mondlane tinha estabelecido contactos com todos os partidos de libertaqdo noexilio. Mas, como escreveu mais tarde no seu livro Lutar por MoCambique,recusou-se a adefir a qualquer urn deles, preferindo fazer umaforte campanhapela unidade. Neste aspecto teve o apoio do Presidente, Julius Nyerere e de outrosdirigentes africanos e f6i esta perspectiva que prevaleceu ern 1962. Os grupos que

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se reunirarn no encontro de Junho concordaram ern abandonar as suas identidadesseparadas e fundirarn-se para formar a nova Frente de Libertaqdo deMoqambique, Frelimo.Outra figura importante dos primeiros dias da Frelimo foi Marcelino dos Santos,engenheiro, socio'logo e poeta que estudou ern Portugal e Franqajuntamente comoutros proeminentes nacionalistas das col6nias portuguesas. Quando a Frelimoreallzou o seu primeiro congresso ele era secretairio-geral da Confer8ncia dasOrganizaq6es Nacionalistas das Colo'nias Portuguesas (CONCP) (1).Marcelino dos Santos tinha desempenhado um papel-chave num debate comopositores no exi'lio do ditador portugu6s Salazar. Esses portugueses tinharn aopinido de que a questdo colonial so' podia ser resolvida apo's a queda dofascismo em Portugal e de que todos se deviam unir para esse objectivo, enquantoMarcelino dos Santos e os outros africanos argumentavarn a favor da autonomiapara os movimentos anticoloniais. Santos e os amigos ganharam, embora umaquestdo semelhante se tenha voltado a levantar ap6s o golpe de 1974 ern Portugal,quando alguns dos antifascistas portugueses que regressarameram poucoentusiastas sobre uma independencia imediata para as colonias.(1) Documentos Base eta Frelimo, Maputo, 1977, p. 3.

48 IAIN CHRISTIEA Mondlane, Santos e aos grupos de exilados juntaram-se no encontro de Dar-es-Salam representantes de uma outra ala do nacionalismo mogambicano. Erampessoas que tinham deixado o pais mais recentemente e tinham uma compreensdomais actualizada da situagdo interna.Entre eles estavarn estudantes militantes como Joaquim Chissano, que tinha sidoactivista da NESAM em Lourenqo Marques e era, na altura, presidente da UnidoNacional de Estudantes de Mogambique (UNEMO), organizagdo formada porantigos membros do NESAM que tinham ido estudar no estrangeiro - nocaso deChissano em Paris.Ao primeiro congresso da Frelimo, em Setembro de 1962, compareceram 80delegados e 500 observadores. Mondlane fol eleito primeiro Presidente domovimento. Mas isto era apenas o comego, e uma longa e tempestuosa iestrada seestendia A sua frente W se atingir o objectivo da verdadeira. unidadenacional.Samora Machel, que so' deveria chegar a Dar-es-Salam no ano seguinte, havia dedesempenhar um importante papel nesse aspecto.As atitudes que dividiam os diferentes partidos, e as facq6es no seuinterior, ndodesapareceram de um dia para o outro depois da criagdo da Frelimo.Haviaaqueles que viam a luta de um ponto de vista tribalista e regionalista e ndo eramcapazes de apreender as implicag6es de uma Frente que abrangiatodos osmogambicanos. Havia diferengas de opinido sobre a definigdo do inimigo.Alguns tinham uma resposta simples: o branco. Outros, como Mondlane,Chissano e Marcelino dos Santos, tinham estado em contacto com brancos demuitas terras que estavarn a ajudar a luta anticolonial e, portanto, tinham umaperspectiva diferente. A sua posigdo anti-racial levou-os logicamente A conclusdode que podia haver algo como um mogambicano branco. Alguns ndoconcordaram.

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Todos esses problemas, para al6m de diferenqas sobre a estrat6gia a seguir na lutacontra o colonialism portugues, eram de esperar no primeiro movimentonacionalista real do pafs. A dnica questdo era saber quern la prevalecer. Seriam ostribalistas, regionalistas e racistas ou aqueles cuja visdo de um Mogambiqueindependente e unido transcendiam essas noq6es?

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 49I0 primeiro congresso da Frelimo, realizado tres meses apos a fundaqdo domovimento, fol a primeira vit6ria das forqas unificadoras. Essasforqas, dirigidaspor Mondlane, inclufam os jovens que tinham safdo de Moqambiquerecentemente, depois de tomarem parte na luta clandestina contrao colonialismo.E eles ndo so' se opunharn 'as posigoes tribais, regionais e racials. As suas idelassobre como lutar eram multo diferentes das dos mais velhos que viviam noexfliona Africa Oriental e no Malawi. Esses exilados ndo estavam preparados sendopara o tipo de luta pacffica que tinha trazido a independ8ncia aos pafses em queviviam. 0 primeiro congresso, no entanto, adoptou como parte do seuprograma adeclaraqdo de que seriam usadas todas as formas de luta; e isso queria dizer muitoclaramente que vinha af a guerra se o regime colonial portugues ndo mudasse detom.Ap6s o primeiro congresso, a1guns dos membros fundadores da Frelimoabandonaram o movimento, incapazes de aceitar a linha. Mas eramuma minoria.Em breve parecia que cada vez que dois deles se encontravam em alguma parte domundo anunciavam a crtaqdo de um novo partido moqambicano.Mas a viabilidade da Frelimo no interior de Moqambique tornou-se evidente aofim de pouco tempo e poucas pessoas deram alguma atenqdo aos dissidentesexilados. 0 problema real era que alguns dos dissidentes tinham permanecido naFrelimo - e isso iria conduzir a uma crise seis anos mais tarde. De um lado iriamestar os dissidentes. Dirigindo as tropas do outro lado estariam EduardoMondlane, Marcelino dos Santos, Chissano e o seu improvdvel allado, um fogosojovem de Chilembene chamado Samora Machel.

3. A boleia para a guerra (1963-1964)0 veterano combatente da liberdade sul-africano Joe Slovo teve umrelacionamento com Samora Machel especial e dnico.0 lugar de Slovo nos livros de hist6ria estd jd garant1do por aquilo quefez pelaluta contra o apartheid no seu proprio pafs. Ele tornou-se chefe doEstado-Maiordo braqo armado do Congresso Nacional Africano (ANC), Presidente do PartidoComunista Sul-Africano e ministro no governo, ap6s a libertagdodo seu pafs. Osdirigentes do regime do apartheid nunca conseguiram aceitar que fosse poss'velpara um normal branco sul-africano identificar-se tdo completamente com amaioria negra, de forma que Joe Slovo foi especialmente salientadopelainformagdo subserviente em termos de inj6ria. 0 resultado f6i que o nome deSlovo comeqou a aparecer nos cartazes como urn dos herois da luta anti-apartheid, uma caracterizaga-o justa.

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Para ale'm dos seus servigos A causa do povo sul-africano, contudo, Slovo esteveenvolvido num acontecimento, aparentemente sem importdncia, mas que maistarde se veri-

52 lAIN CHRISTIEficaria muito significativo na luta de libertagdo de Mogambique.Slovo falou sobre este assunto num semindrio na Tanzania,em 1983, sobre a vida e a obra de J. B. Marks, o falecido dirigente comunista sul-africano. Slovo estava a falar do periodo em que, em 1963, ele e «JB>> deixarama Africa do Sul para ir para o exflio. Chegaram a Francistown, no Botswana, ondeum avido Dakota, fretado pelo ANC, esperava por eles e mais 26 militantes doANC para os levar a Dar-es-Salam na Tanzania, na altura a mais importante basede retaguarda para os movimentos de libertaqdo da Africa Austral.Slovo recorda:Pouco antes de partirmos, um jovem magro e en6rgicoperguntou se era possfvel obter um lugar no nosso aviao porque queria ir juntar-se'is forgas da Frelimo. JB tomou imediatamente a decisdo de que um dos nossosquadros deveria sair do avido para dar lugar ao recruta da Frelimo.0 recruta que viajou connosco (e ele lembra-se disso muito bern e costuma contaresta hist6ria) 6 o Camarada PresidenteSamora Machel.Joe Slovo manteve um relacionamento caloroso corn Samora at6 ?A sua morte,tendo estado presente no funeral.Ao levar Samora Machel para a Tanzania, Joe Slovo e J. B. Marksdesempenharam, sem o saber, um papel importantfssimo na luta contra ocolonialismo na Africa Austral. Aquele jovem magro e en6rgico ia mostrar queera dinamite polftica. «Naquela altura ndo nos apercebemos do valor da carga quelevdivamos , comentou Slovo no funeral de Samora.A valiosa carga chegou a Dar-es-Salam num dia de Abril de 1963, segundoRaimundo Pachinuapa, outro recruta da Frelimo que seguiu pela viadoTanganica. Pachinuapa, de Cabo Delgado, no Norte, acabaria por se tornar umdos principais comandantes da guerrilha e grande amigo de Samora. Numaentrevista em 1983, Pachinuapa - na altura major-general disse que Samora sejuntou a ele e a muitos outros exilados mogambicanos em Ilala, um subiirbio deoperarios na capital do

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 53Tanganica. <<Em poucos dias aperceberno-nos de que, com Samora, estdvamos alidar com um dirigente>>, disse ele (I).Pachinuapa recorda que Eduardo Mondlane costurnava encontrar-se com cadanovo grupo de recrutas para discutir com eles que papel iriam desempenhar naluta. Samora n5o tinha ddvidas sobre o que queria fazer - treino militar. 0 pr6prioSamora falou, dez anos mais tarde, desse momento, dizendo que as escolhaspossfveis para os voluntdrios inclufam treino milltar, educacional ou m6dico.

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<<Escolhi o programa militar. Tinha a certeza de que os portugueses ndo nosdariam a indepen&ncia e que sem a luta armada os portugueses nuncaconcordariam em estabelecer um didlogo connosco>>, disse.Isto harmonizava-se com o ponto de vista de Mondlane, que vinha usando as suasconsiderdveis capacidades diplomdticas para tentar convencer os portugueses aconversar. Por altura do primeiro congresso da Frelimo, em Setembro de 1962,ele tinha virtualmente desistido. <<Embora determinados a fazer tudoo queestivesse em nosso poder para tentar obter a independencia por melos pacfficos,jd estdvamos convencidos nessa fase de que seria necessdria uma guerra>>,escreveu MondlanePessoas como Mondlane e Samora tinham chegado A conclusdo de quea situagdocolonial portuguesa ndo era id8ntica s suas contrapartes inglesa e francesa.Segundo Mondlane:0 pr6prio cardcter do governo em Portugal torna umasoluqdo pacffica inerentemente improvdvel. Em Portugal o governo ndopromoveu nem um firme crescimento econ6mico nem bem-estar social e poucorespeito internaclonal ganhou. A posse de col6nias ajudou a esconder estas falhas;as col6nias contribuern para a economia; elas ajudam o peso de Portugal nomundo, particularmente, no mundo da finan9a; elas forneceram urnmito nacionalde imp6rio que ajuda a(') Pachinuapa, Raimundo, Noticias, Maputo, 26 e 27 de Setembro de1983.(2) Mondlane, Eduardo, The Struggle for Mozambique, Harmondsworth, 1969, p.123.

54 IAIN CHRISTIEdesencorajar murmdrios de uma populaqdo fundamentalmente insatisfeita. 0governo sabe como ficard mal se perder ascolonias (1).Mondlane aceitou que Samora recebesse treino como combatente, decisdo quendo deve ter sido tomada ligeiramente. Sarnora era um enfermeiro experimentadoe a escolha mais Obvia teria sido envia-Io para o estrangeiro para frequentar oensino me'dico mals adiantado corn uma bolsa de estudos da Frelimo.Mas a decisdo foi pelo ex6rcito e, antes do fim de 1963, Samora estava naArge'lia como dirigente do segundo grupo que para la' foi para receber treinomilitar. 0 primeiro grupo tinha ido ern Janeiro.Segundo Pachinuapa, o segundo grupo ainda s6 ld estava ha poucos dias quandoteve lugar urn debate sobre quest6es ba'sicas numa reunido convocada porSamora. Enquanto Samora argumentava que a luta era contra o sisterna colonialportugu8s e ndo contra os ndo-negros, alguns outros, dirigidos por urn homernchamado Timo Armando, diziarn que os guerrilheiros ern treinamento deviarnpreparar-se para combater contra os brancos e mulatos em Moqambique. <<Foimuito duro>>, diz Pachinuapa.Duro, na verdade. Urn militante da Frelimo disse-me uma vez que Samorarevelou, numa conversa ern 1970, que a discussdo na caserna sobre como definiro inimigo chegou, ern certo momento, ao ponto da pancada. Samora tinha ficado

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tdo exasperado corn um defensor da linha do oconflito racial>> queo desafioupara um desafio de boxe - e deu-lhe uma boa sova.A questdo racial haveria de voltar muitas vezes ao longo da carreira de Samoracomo soldado e polftico e f6i urn ponto ern relagdo ao qual ele nunca estevepreparado para aceitar compromissos.Quando os recrutas terminararn o seu treino bdslco na Arg6lia regressararn 'aTanzania, onde tinha s1do instalado urn campo de guerrilha ern Bagamoyo, pertode Dar-es-Salam. Pachinuapa(1) Idem, ibidem.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 55diz, no entanto: <<Os contactos com a cidade ndo criavam uma situaqdofavoralvel para pessoas que estavam a receber treino. E nessa altura a PIDE estavaa enviar uma porqdo de agentes para Dar-es-Salam. Portanto ndo era bom estarmuito perto da cidade.>>A direcqdo da Frelimo e o governo tanzaniano trataram de transferir osguerrilheiros para outro local, em Kongwa, na regido de Dodoma nocentro dopafs. Samora, que dirigia muitos dos guerrilheiros, apoiou esta decisdo e dirigiu-se a Kongwa em Abril de 1964. 0 adversdrio de Samora na questdo racial, TimoArmando, tamb6m se opo^s a ele nesta questdo e recusou-se a seguirpara ointerior da Tanzania, longe das luzes brilhantes e dos bares de Dar-es-Salam. At6onde Pachinuapa recorda, Timo organizou um grupo de exilados efoi mals tardemorto numa disputa com os seus pr6prios seguidores.Os homens de Samora devem ter posto em causa a sabedoria do seu dirigentequando chegaram a Kongwa. <<Havia la' tres casas. 0 resto era terravazia. Ndohavia absolutamente nada>>, diz Pachinuapa.Samora. foi designado chefe do campo de treino de Kongwa, cargoque o colocouna senda de se tomar um novo tipo de dirlgente africano: o comandantegueffilheiro cuias forps e fraquezas na direcqdo foram forjadas na complexidadeda guerra no mato.Ele deixou imediatamente a sua marca em Kongwa no processo de resolver umaquestdo muito simples que, A letra, alimentou o pensamento. Pachinuapa recorda:Quando chegdmos a Kongwa, logo no primeiro dia querfamos comer. Portantosurgiu a questdo: quem e' que val cozinhar? Isto era um problema porque 6ramostodos graduados. Considerdvamo-nos graduados porque tinhamos feito o nossotreino militar. Mas algu6m tinha que indicar o caminho. Samora. Machel f6i aprimeira pessoa a cozinhar. Eledecidiu ser o primeiro para dar o exemplo.A partir desse dia cada um dos homens mais graduados do campo fez um turno nacozinha.

56 MIN CHRISTIEAs condlq6es no campo, uma propriedade agrfcola abandonada, ndo levavam aobreve langamento da luta armada. Os homens tiveram que fazer tijolos de barropara construir as suas pr6prias casas e tiveram que produzir uma grande parte dasua pr6pria comida. Talvez mais grave para os futuros guerrilheiros fosse a falta

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de material de guerra nos primeiros dias de Kongwa. Para treinar os seus homensnas artes militares, Samora deu-lhes paus e pediu aos espantados combatentes daliberdade para imaginarem que estavarn a pegar ern espingardas.Ap6s essetnunfo da mente sobre a mat6ria, como recorda Pachinuapa, foi ensinado aoshomens como funcionavarn os explosivos - corn o solo arenoso de Dodoma comoum improvdvel substituto da p6lvora.Ter atingido este voo da imaginagao, no entanto, pode ndo ter sido amaiorpreocupagdo de Samora nessa epoca, na medida em que muitos dos homens docampo ja tinham sido treinados na Arg6lia ou em outros locais. Pachinuapaidentifica dois dos problemas mals profundos que o campo de Kongwa tinha afungdo de resolver. Em primeiro lugar o facto de que <<havia os que treinaram naArg6lia e os que tinham vindo de vdrios pafses socialistas [ ... ] N6s ndopodfamos ter ideias diferentes com base na formagdo e educagdo que tfnhamosrecebido em diferentes pafses amigos [ ... ] Em Kongwa descobrimos aimportAncia de ter uma s6 linha de pensamento>>.Em segundo lugar estava o problema de construir um verdadeiro ex6rcitonacional de guerrilha. Num pal's tdo dividido pelo tribalismo e reoionalismoComo Mogambique era nessa altura, dcvc ter sido animador para o sulistaantitribalista Samora encontrar-se ombro-a-ombro com pessoas do Norte, comoPachinuapa, e homens do Centro do pal's. <<N6s tfnhamos que ter um lugar ondenos pud6ssemos organizar em termos de unidade nacional>>, diz Pachinuapa.<<Esse lugar era o exe'rcito, a comeqar nos centros de treino. Era no exe'rcito quese foriava a unidade nacional, onde a tribo, a raga e a regido erarn mortas. Masndo 6 o ex6rcito em si que atinge estes objectivos. Isso depende daforma como oex6rcito e' estruturado e dirigido. E, de facto, havia um homem quetrabalhouarduamente para que o nosso ex6rcito servisse esses objectivos [ ... I o chefe dosnossos campos durante a luta armada [ ... ] Samora Machel.>>

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 57Finalmente as armas chegaram a Kongwa e, em breve, seguiarn para sul acaminho de Moqambique, mas o arsenal da Frelimo n5o era propriamenteassustador. 0 fornecimento para o primeiro ataque, no Chai, na provfncia de CaboDelgado, consistia em seis metralhadoras ligeiras, seis espingardas e quatropistolas automiticas (4).Inicialmente havia quatro provfncias alvo: Cabo Delgado e Niassa, do outro ladoda fronteira da Tanzania; Zamb6zia, corn fronteira corn o Malawi; eTete, quetem fronteiras corn o Malawi, a Zdmbia e o Zimbabwe.A infiltraqdo de homens e abastecimentos em Cabo Delgado e no Niassa erafacilitada pelo facto de o governo de Julius Nyerere estar a dar um apoio total iFrelimo. Mas havia problemas com as provfncias da Zamb6zia e de Tete. AZambia ainda estava a consolidar a sua independencia da Grd-Bretanha, oZimbabwe era governado pelos colonos rodesianos e o governo doDr. Banda, noMalawi, colaborava corn os portugueses.Durante uma visita a Kongwa, imediatamente antes da independ~ncia deMoqambique em 1975, Samora disse a jornalistas como 6 que ele e os seushomens contrabandearam muniq.6es para Tete e Zambdzia em 1964. Para fazer

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passar as armas atrav6s do Malawi, disse ele, esconderam-nas em colch6es. Eacrescentou: «N6s misturdimos as muniq6es com miiho, que produzfamos aquipara podermos passar e abastecer a Zamb6zia e Tete. Costumdivamos comprarpeixe em Moudoro para misturar com muniq6es e granadas para podermos passaratrav6s do Malawi.>> (5)Assim comeqou uma longa e amarga relaqdo com o governo de HastingsBanda.A Frelimo foi obrigada a fechar as suas frentes de Tete e Zambdzia dentro dealguns meses, em grande parte devido A hostilidade do governo malawiano. Umdos primeiros guerrilheiros da Frelimo a operar na provfncia daZamb6zia,Alfredo Wassira, recorda que quando eles erarn forqados a retirar para(4) Ibid., p. 14.(5) Kongwa: Bergo da RevoIuqao>>, Tempo, Maputo, 15 de Junho de 1975.

58 lAIN CHRISTIEo Malawi a PIDE, em colaboraqio com o govemo do Malawi, prendia e matavamuitos deles (6).0 pr6prio Samora fez uma breve refer~ncia a esta questdo numa reunido emMaputo corn quadros da informagdo mogambicana, oito dias antes deser morto.Disse que fez duas viagens ao Malawi, em 1965 e 1968, a primeira comoobjectivo de tentar conseguir a libertaqao de nacionalistas moqambicanos detidosantes de eles serem entregues 'a PIDE (7). Embora ndo tenha entrado em detalhessobre a segunda visita, fontes bern informadas dizem que ela esteverelacionadacom as actividades de um grupo de moqambicanos que, ao contririo doqueacontecia com a Frelimo, tinham recebido santuatrio no Malawi. Esse grupo, aUnido Nacional Africana da Rombezia, queria incorporar uma grande fatia doNordeste de Mogambique no Malawi atrav~s de negociag6es com os portugueses.Apesar dos problemas com o Malawi, no entanto, a guerra pela independ~ncianacional de Mogambique foi-se desenvolvendo depois dos primeiros tirosdisparados a 25 de Setembro de 1964. Durante quatro anos a luta esteveconfinadas provincias de Cabo Delgado e Niassa, que nao eram as partes mais importantesdo pafs nem em termos econ6rmicos nem geo-estrat6gicos, mas queforneceram aforja para a criagdo de uma forqa polftica e militar que se manteria unida durantemuitos anos de duro combate.((') Munslow, Barry, Mozambique: The Revolution and its Origins, London,Penguin, 1983, p. 100.C) 0 autor esteve presente neste encontro que teve lugar na Casa Lichinga emMaputo a 11 de Outubro de 1986.

Segunda Parte0 INIMIGO CAMALEAONO acusados de ser imperialistas quando apenas permanecemosem territ6rios que sempre foram conhecidos como sendo portugueses?Colonialistas, quando tdo generosamente vertemos o nosso sanguee os nossosrecursos para servir os interesses das provIncias ultramarinas?Marcelo Caetano, Primeiro-Ministro de Portugal, Maio de 1971 Quando aNiassaldndia estiver livre ett ndo terei descanso atj que a maior

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parte de Mogambique se 1he junte. Somos todos o mesino povo.Hastings Banda, Presidente do Partido do Congresso do Malawi, Maio de 1960Eu hei-de-lhes tirar o seu pais [Mogambique]. Cecil Rhodes, Primeiro-Ministro dacol6nia do Cabo e fundador da Rod6sia do Sul,Outubro de 1891

4. Na batalha (1964-1967)Samora Machel esteve em guerra. durante os 61timos 22 anos da vida. Naverdade ele partilha com o general Glap, do Vietname, e com Chu Teh, da China,a distinqdo de ser um dos poucos homens deste seculo que comandouurn ex6rcitoao longo de duas d6cadas de guerra. ininterrupta. Ndo 6 uma distinqdo queSamora tenha desejado. Era um soldado cujo objectivo era a paz para o seu povo.Entdo por que 6 que ele estava sempre em gueff a e quem erarn os inimigos?A luta armada pela independ8ncia nacional de Moqambique fol umacontecimento que durou 10 anos e teve comeqo e fim, mas teria sido enganadorpensar apresenta-Ia como ndo tendo nenhuma relaqdo com o conflito pos-independ8ncia. Urn certo tipo de jornalismo simplista, principalmente, mas ndoexclusivamente, no Ocidente tern tend8ncia a apresentar a perspectiva de que aFrelimo enfrentou quatro diferentes conflitos: primeiro contra o regime colonialportugues; depois, a seguir independ6ncia, contra o regime rodesiano, contra asautoridades, sul-africanas e contra um movimento rebelde mogambicanoanticomunista. Neste con-

62 IAIN CHRISTIEtexto, Samora estaria a agir bern, ao lutar pela independencia de Moqambiquemas meteu-se em sarilhos mais tarde ao interferir na vida dos vizinhos elevou auma guerra civil devido a um mau governo. Esse mesmo contexto mostra o factormalawiano a entrar no quadro, no fim da vida de Samora, como mais umexemplode um problema criado por ele pr6prio.Na verdade, os fascistas portugueses, a Africa do Sul, a Rod6sia,o Malawi e osfantoches moqambicanos trabalharam sisternaticamente contra a lutada Frelimopela independencia de Moqambique a partir dos anos 60. Ap6s a independ8ncia,em 1975, essas forqas mantiveram a sua allanqa. Olhando para trds, para os anosda guerra, podemos ver o ex6rcito moqambicano de Samora como uma constante,enquanto as vdrias forgas anti-Frelimo aparecem e desaparecemdo quadro comoos substitutos num desafio de futebol americano. Continuando a mesma analogia,no entanto, 6 importante lembrar que estas forqas anti-Frelimo sdotodas membrosda mesma equipa.Os 22 anos de guerra de Samora podem ser vistos como um combate militarprolongado contra um inimigo camaledo, em vez de uma s6ria de guerrasseparadas.As forqas do colon ial-fasc ismo portugu8s, os militares sul-africanos, o exe'rcitoe a seguranqa rodesianos, os mercendrios moqambicanos e o governo malawianode Hastings Banda aparecem todos como adversdrios mais ou menos permanentes

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de Samora na sua luta contra o domfnio colonial e racista na Africa Austral. E,escondidas na retaguarda, estiveram sempre ricas e poderosas forps no Ocidente.Quando soaram os primeiros tiros da luta nacional pela independEncia, em 25 deSetembro de 1964, Samora ndo parecia estar particularmente bern preparado parao caminho tempestuoso que tinha pela frente. A sua experiencia militar limitava-se a poucos meses em campos de treino na Arge'lia e Tanzania, a sua instrugao' Aformal era ligeira, ndo tinha experiencia nenhuma da luta polltica sem treguasdentro de um determinado partido e, ao contrario de alguns dos primeirosdirigentes da Frelimo, ndo estava habituado 'a intriga e As manobras dos exiladospoliticos.Mas, como jd vimos, ele tinha jd marcado os jovens recrutas da Frelimo naArge'lia, em Bagamoyo e Kongwa. Tinha tam-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 63bem estabelecido relag6es de amizade firme com alguns dos homens que estariamao seu lado nos anos de direcgao, no futuro - homens como o secretdrio deEduardo Mondlane, Joaquim Chissano, e o corajoso jovem comandante AlbertoChipande. E tinha ganho o respeito de Eduardo Mondlane.A campanha comeqou com ataques de guerrilha na provincia de Cabo Delgado. Aac9do mais celebrada foi dirigida contra urn posto administrativo portugue^s navila do Chai. Vairios ataques foram realizados nessa mesma altura,mas o dnicocaso devidamente relatado foi a operagdo contra o Chai. Todas as provasdisponfveis indicam que os primeiros tiros da guerra foram disparados no Chai.Alberto Chipande, que conduzlu uma ddzia de homens nesse ataque,escreveu noseu relat6rio:0 policia veio e estacionou 'a porta da casa do chefe deposto, sentado numa cadeira. Era branco. Eu aproximei-me do polfcia para oatacar. 0 meu tiro era o sinal para os outros camaradas atacarem.0 ataque tevelugar 'as 21 horas. Quando ouviu os tiros, o chefe de posto abriu a porta e saiu -f6i morto por um tiro. Para alem dele seis outros portugueses foram mortos noprimeiro ataque. A explicaqdo dada pelas autoridades portuguesas foi omorte poracidente>>. Retirdmos. No dia seguinte fornos perseguidos por algumas tropas -mas nesse momento, ja estavamos longe endo nos encontraram (1).Ndo foi exactamente Pearl Harbour. Alguns observadores estrangeiros eramvisivelmente cinicos em relagdo As hipoteses de a Frelimo conseguir fosse o quefosse. Urn influente jornal brit5nico dizia, ern Novembro desseano:A grande ofensiva esta' ainda, claramente, por vir.0 medo entre as pote^ncias ocidentais e que, quando ela for lanqada, colapse tdotristemente que as pot8ncias comunis-(1) Mondiane, Eduardo, The Struggle for Mozambique, p. 15.

64 lAIN CHRISTIEtas j i envolvidas na sua preparaqdo com armas e conselheiros se sentiraoobrigadas a entrar e a salvar a situagdo e a

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face do anticolonialismo africano militante (2).Contudo Eduardo Mondlane escreveu tempos mais tarde que o 25 de Setembro de1964 <<pode vir a tornar-se uma das datas mais importantes ndo s6 da hist6ria deMogambique mas da hist6ria do continente africano>> (3). E Samoracomentariaap6s a queda do colonialismo portugu~s: <<O que parecia impossivel de alcangarpara aqueles que eram dominados por preconceitos reaccionirios eimperialistastornou-se um facto: a vit6ria dos camponeses e operdirios sobre um ex6rcitoburgu~s, tecnicamente bem preparado, com experi~ncia em guerras de agressdo epoderosamente armado.>> (4)Os portugueses jdi se estavam a preparar para a guerra mais de um ano antes de seiniciarem as operag6es da Frelimo e tinham calculado, correctamente, que aprimeira direa de conflito seria em Cabo Delgado e Niassa, as duas provifnciasseparadas da Tanzania pelo rio Rovuma. Mas hai algumas indicaq6es de que elesfizerarn pelo menos um erro de cilculo. Um artigo de um jornal, em Margo de1963, dizia <<[...] o terreno ao longo do rio Rovuma, que constitui a fronteiraentre os dois paises, e escarpado e diffcil de atravessar. Tentativas de infiltraqa.oem larga escala dependem, por conseguinte, de barcos na costa. Poragora issondo constitui problema para os potenciais infiltradores, na medidaem quecentenas de barcos A vela passam diariamente para cima e para baixo ao longo dacosta, atracando em aldeias costeiras dos dois lados da fronteira>>.Para controlaras actividades desses barcos os portugueses construiram uma basenaval em PortoAm61ia (agora Pemba). Em Margo de 1963 tinham completado outra base navalpara fuzileiros navais em Porto Arroio, na margem oriental do lago Niassa, ndomuito afastada da capital da provfncia de Niassa,(2) <<"A guerra imaginiria" do Dr. Mondlane)), Sunday Times, Londres, 15 deNovembro de 1964.(3) Mondlane, obra citada.(4) Citado em Mozambique Revolution, n.' 61.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 65Vila Cabral (hoje Lichinga). Colocaram la' uma uniclade de tropas de elite.0 terreno ao longo do Rovuma e, na verdade, bastante diffcil, com encostasffigremes dos dois lados e crocodilos no pr6prio rio, mas a Frelimo atravessava-o'a vontacle. Na verdade, nos anos seguintes Samora escoltou frequentementejorrialistas (incluindo o autor) e convidados pelas ribanceiras do ladotanzanianoabaixo, passando a vau, com as calqas debaixo do brago, de canoanas partes malsfunclas, e depois pelas encostas do outro lado acima, para o interiorclas zonaslibertadas do planalto de Mueda.Foi pelo rio que vieram os primeiros guerrilheiros. Uma infiltraqdo emlargaescala por esse caminho poderia, na verdade, ter sido dificil, masisso ndo era umgrande problema porque a Frelimo nessa altura so' tinha 250 guerrilheiros e asprimeiras operaq6es foram realizaclas por uniclades de entre 10 e 15 homens.Por essa altura f6i aberta outra frente no Niassa Ocidental. A 28 deSetembroguerrilheiros da Frelimo atravessaram a fronteira a partir do Malawi para langar oprimeiro ataque na provincia da Zambe'zia e o dia de Natal viu o primeiro ataque

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na provincia de Tete, igualmente realizado por homens vindos do Malawi. 0 Dr.Banda assegurou-se de que estas rotas ndo ficassem abertas muitotempo.0 secretdrio da Frelimo para a Defesa e Seguranga nessa altura eraFilipe SamuelMagala, um antigo soldado do ex6rclto portugue^s. Nem ele nem Samora, Chefedo Treinamento, estavam entre os comandantes que entraram ern Moqambique noprinci'pio. Mas, na base recuada na Tanzania, recebiam relat6rios, uns bons eoutros negativos, sobre o desencadear da luta armada.Um dos relat6rios mais inquietantes, enviado por Alberto Chipande, referia-se aobandidos armados)> ' em Cabo Delgado. Esses obandidos armados>> eramaparentemente dissidentes da Manu, um dos grupos que tinham formado aFrelimo. A Frellmo tinha-se decidido por uma estrat6gia de guerra popularprolongada do tipo das guerras dos chineses e vietnamitas, mas esses dissidentesda Manu tinham outras ideias.

66 IAIN CHRISTIEEntraram em Cabo Delgado na altura ern que os militantes da Frelimomobilizavarn os camponeses em preparagdo para a guerra popular, lanqando a suapr6pria <duta armada)> um, m8s antes da Frelimo. Assassinaram um missiondrioholand8s, o padre Daniel Boormans, que era uma figura popularnaquela area.Chipande relatou, mais tarde, os problemas que eles estavam a causar:[ ... ] simplesmente degeneraram em bandidos. Mataramum missiondrio holand8s. No's estdvamos num. local a cerca de cincoquilometros. As tropas portuguesas, apoiadas por avi6es, estavam muito activasnessa zona por causa do missiondrio. Corremos um risco. Fizemos umcontactocom a missdo principal do missiondrio holandes e explica'mos-lhes o que tinhaacontecido e que a Frelimo era uma organizaqdo honesta contrdria acoisas comoessa de matar missiondhos. Isto ajudou porque os missionarios persuadiram osportugueses disso e de que eles ndo deveriam matar o povo como vinganqa.Avanqdmos para. Macomia. De Id ndo conseguimos chegar a Porto Am6liaporque os portugueses tinham instalado um bloqueio e tinharn mobilizado o povocontra os bandidos Os bandidos costurnavarn pilhar cantinas de indianos e osportugueses diziam que nos eramos assim. Isto obrigou-nos a recuar. Os indianosinformararn, osportugueses dos nossos rastos (5).Esta 6 a primeira refer8ncia da Frelimo a bandidos armados, expressao que, noperl'Odo p6s-independencia, havia de se tornar a designagdo normal de Samorapara os rebeldes apoiados pelos rodesianos, sul-africanos e malawianos. Comoaparece claro no relat6rio de Chipande, este epfteto ndo era apenas uma formapejorativa de designar os inimigos da Frelimo. Ela era entendida como umadescriqdo correcta de pessoas que tinham <<degenerado>> W aoniovel doterrorismo e do saque como formas de acqdo armada.(5) Mondlane, obra citada.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 67Tantos anos depois de os bandidos armados assassinarem o padre Boormans emCabo Delgado, ainda ndo esta claro se eles estavam conscientemente a tentar

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destruir o esforqo de guerra da Frellmo. Eles devern ter sabido que grupos deavanqo de militantes da Frellmo ja' estavam na provincia hd meses Para mobilizara populaqdo Para uma guerra popular prolongada e podem simplesmente tertentado provar que o terrorismo era uma via mais rapida Para a independencia.Mas temos que ficar abertos Para a possibilidade de eles terem sido agentsprovocateurs.Ha com certeza um fio que perpassa por toda a hist6ria da luta pela independenciade Moqambique sugerindo uma constante interferencia pela PIDE e outrosserviqos secretos estrangeiros desde o pr6prio dia da fundaq5o daFrelimo.Adelino Gwambe era o dirigente da Udenamo, um dos grupos que se uniram Paraformar a Frellmo. Tinha sido um agente da PIDE operando entre os exiladosmoqambicanos na Rodesia do Sul. 0 pro'prio Gwambe admitia isso masafirmavaque se tinha apercebido do erro da sua atitude. Isto dd matdria Parapensar.Gwambe apresentou um amigo A Frellmo, um jovem negro chamado LeoMilasque disse ter nascido em Moqambique mas ter sido levado pelos Pais Para osEstados Unidos quando ainda crianqa.Mondlane aceitou esta hist6ria e deu a Milas um lugar de funciondrio superior daFrelimo. Mas quando Mondiane regressou aos Estados Unidos, apos a fundaqdoda Frelimo, Para terminar o seu contrato com a Universidade de Siracusa, as lutasinternas e as intrigas em Dar-es-Salam quase levaram A desintegragdodomovimento de libertagdo. No centro da agitaqdo estavam Gwambe e Milas, entreoutros. Gwambe saiu Para fundar uma nova Udenamo mas Milas continuou naFrelimo. Segundo documentos da Frelimo ele estava a causar estragos.Mondlane terminou o seu contrato e precipitou-se de regresso a Dar-es-Salam.Milas gozou do beneffcio da du'vida e ndo foi expulso, mas disseram-1he Paramudar de atitude. Os documentos da Frelimo da epoca dizem que <<ele ndo quiscorrigir-se>>. Ainda relutante em expulsar pessoas da organizagdo, Mondlanedeu a Milas um lugar no estrangeiro, Para, pelo me-

68 lAIN CHRISTIEnos, diminuir os prejufzos. Os meses foram passando com Milas a recusar o seunovo posto. Finalmente foi forqado a deixar Dar-es-Salam, mas ainda sem serexpulso da Frelimo. A expulsdo acabou por chegar a 25 de Agosto de1964quando o Comit6 Central disse ter descoberto que Milas, na realidade, ndo eranada moqambicano. Uma declaraqdo da Frelimo descrevia-o comoum cidadioamericano chamado Leo Clinton Aldridge Jr., nascido em Pitsburgo, Texas. Adeclaragdo afirmava que os pais de Aldridge tamb6m jd tinham nascido naAm6rica e viviam na Calif6rnia.Aldridge foi formalmente expulso da Frelimo na mesma data desta declaraqdo,altura em que estava j~i no exterior. Agosto de 1964 foi a data do assassinato dopadre Boormans e do saque das cantinas de indianos em Cabo Delgado pelosterroristas dissidentes da Manu.Numa carta publicada pelo jornal London Daily Telegraph a 21 de Setembro de1966, Aldridge denunciava Eduardo Mondiane e a Frelimo e afirmava que osdissidentes da Manu ainda operavam no Norte de Moqambique. Aldridge, naaltura a viver em Cartum, no Suddo, assinava «Seif Al-Aziz S. L. Milas >, uma

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adaptaqdo muqulmana do seu antigo nome. E intitulava-se «Presidente daMozambique African National Union >.Ndo hd provas de que Aldridge tenha estado envolvido no terrorismo de 1964,mas um aspecto curioso da hist6ria 6 que uma das raz6es dadas no antincio doComit6 Central da sua expulsdo da Frelimo era «a sua cooperaqdo com pessoasconhecidas pelo seu envolvimento corn o colonialismo portugu~s e oimperialismo . Isto nunca foi publicamente clarificado pela Frelimo mas, gragas aum raro descuido da revista de propaganda sul-africana To the Point a 13 de Julhode 1979, ficdimos a saber que uma dessas pessoas era Orlando Cristina que,quando oficial da espionagem militar portuguesa, baseado em Nampula, visitouDar-es-Salam em 1963 para encontros com Aldridge.Hi informag6es de que esta amizade continuou. Segundo uma delas,Aldridge, omisterioso americano negro, e Cristina, o espido portugu~s branco, tornaram-semembros dos bandidos armados do regime rodesiano que operaramnoMogambique p6s independ~ncia sob o nome de Resistencia Nacional Mogambi-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 69cana (mais tarde conhecida como RNM ou Renamo) (6). Ao principio, segundoparece, o objectivo deste grupo era simplesmente recolher informag6es edesestabilizar Mogambique para tentar fazer com que parasse oapoio aoscombatentes da liberdade do Zimbabwe. Mais tarde o objectivo declarado eraderrubar o governo de Samora Machel em Mogambique. Nao o conseguiram fazermas conseguiram matar milhares de mogambicanos.A hist6ria de Aldridge sobre a continuaqdo do envolvimento de dissidentes daManu em Cabo Delgado, em 1966, era um mito, mas os incidentes terroristasnaquela provfncia em 1964 foram um transtorno real para a Frelimo. 0 bloqueiopelo governo malawiano das frentes da Zamb~zia e Tete foi tamb6m umdurogolpe. Mas os jovens treinados por Samora continuavam a ser capazes de avangarrapidamente em Cabo Delgado e no Niassa Ocidental.A estrategia consistia num trabalho muito pr6ximo da populaqdo local eemconseguir o apoio politico das massas, ao mesmo tempo que se montavamoperaqoes de guerrilha em pequena escala contra alvos militares. No princfpiohavia ataques reldmpago de tres minutos corn morteiros e bazucas contraposiq6es das tropas inimigas relativamente fracas, evitando o riscode osguerrilheiros sofrerem baixas pesadas. Isto permitiu 'a Frelimoestabelecer aquiloa que chamou «zonas semilibertadas no decorrer de 1965.Havia diferengas na forma como a luta avanqava em Cabo Delgado, por um lado,e no Niassa, por outro.A frente de Cabo Delgado era uma «guerra popular clissica. Antes de a lutacomegar, 15 000 morambicanos atravessaram o rio Rovuma para o lado daTanzania para escapar a uma onda maciqa da repressdo portuguesa. Mas a fugaacabou pouco(6) As viagens de Cristina a Dar-es-Salam e o seu posterior contactocornMilas/Aldridge no encontro do MNR em Maio de 1977 em Salisbtiria siopormenorizados por Phyllis Johnson e David Martin em DestructiveEngagement,

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Harare, ZPH, 1986, p. 8. 0 papel de Cristina na espionagem militar portuguesa 6referido no niimero de 13 de Julho de 1979 da revista sul-africana To the Point.

70 IAIN CHRISTIEIdepois, A medida que as pessoas se deslocavarn para areas controladas pelosguerrilheiros, que tinham feito um bom trabalho de mobilizagdo nosmeses antesde a guerra comegar. Libertos da obrigaqdo de cultivarem produtos paracomercializaqa-o, os camponeses puderarn produzir mais comida,o que fol bornpara, eles e para os guerrilheiros. Muito rapidamente foram criadas aut6nticaszonas libertadas com excedentes agrfcolas que podiam ser exportados para aTanzania ern troca de produtos de consumo como sabdo e roupa, quendo erapossfvel encontrar localmente.No Niassa, contudo, a Frelimo enfrentou problemas s6rios na mobilizaqdo dasmassas, devidos em grande parte it baixa densidade populacional.A provfnciatem mais ou menos o tamanho da Inglaterra e tinha, nos anos 60, uma populaqdode pouco mais de 250 000 habitantes. A16m disso, a populaqdo estavadistribufdade forma multo desigual, corn um ndmero desproporcionado de pessoas a viver nazona ocidental, perto do lago Niassa, e no Sul. Estes factos, so' por si, tornavamdiffcil a organizaqao, mas a1gumas autoridades argumentarn que urn outro factorfoi a insuficiente mobilizaqdo do povo antes do inicio da luta, com o resultado deque milhares de pessoas fugirarn do pafs quando as balas comeqaram. a voar nazona ocidental.Podemos ter uma ideia de qual era a situaqdo no Niassa Ocidental atrav6s de umas6rie de artigos escritos em Setembro de 1965 por Lord Kilbracken,que visitou adrea corn os portugueses, para o Evening Standard de Londres.Em 3000 aterrorizadas milhas quadradas, os portugueses,civis e militares, estdo agora confinados a cinco pequenas guarniq6es isoladas:Metangula, Maniamba, Cobue, Olivenqa e Nova Coimbra. Nem um so' colonobranco se atreve a ficar na zona. As suas propriedades, antes tdoelegantes, estdohoje silenciosas e abandonadas. E grande parte dos africanos - que pertencern Atribo nyanja - fugiram para as montanhas e 11has ou para a Tanzania ou Malawi [... J. Por toda a zona de guerra todas as estradas principais foram minadas pelaFrelimo e estdo sujeitas ao risco de embosca-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 71das [ ... 1. Vi uma d6zia de jipes e cami6es rebentados em Vila Cabral, o Quartel-General avangado no perimetro operacional, e outros tantos em Metangula eCobue, que visitei viajando numa lancha militar.0 tefforismo a que Lord Kilbracken se refere reflecte, provavelmente, a suaatitude em relaqdo As emboscadas e minas da Frelimo - acq6es militares quepodem tirar a vida a civis que possam estar no lugar errado no momento errado. 0terrorismo dos portugueses era muito mais preciso, como Kilbracken ouviu de umjovem soldado colonial. 0 soldado contou-1he que as tropas tinham ohdbito demandar <<os pretos>> A frente nas estradas que supunham estar minadas..., oe

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ele imitou o estilo de marcha com os joelhos bem para cima que eles eramobrigados a adoptar [ ... ] >>.Os artlaos de Kilbracken mostravarn muito claramente a brutalidade racista porparte dos portugueses, mas mostravarn tamb6m uma fraqueza muito se'ria porparte da Frelimo. As pessoas estavam a fugir para a Tanzania e o Malawi.Munslow escreve, a partir de testemunhos de pessoas que estavam JAI nessaaltura: <<Milhares fugiram atraves da fronteira e, mesmo entre os que ficaram,devido a deficl8nclas no trabalho polftico, persistia a ilusdo de quea vit6ria viriarapidamente e ndo foi feito nenhurn esforqo para cultivar os campos.>> (1)A Frelimo estava a atolar um grande nlmero de tropas portuguesas no Niassa, oque era um avanqo positivo, mas estava tamb6m a caminhar numa direcq5o muitonegativa: criar um cemite'rio para os camponeses e uma zona libertada para oselefantes e a mosca tse-ts6.0 desastre potencial f6i rapidamente reconhecido pela Frelimo.t diffcil provarcategoricamente que foi o pro'prio Samora Machel quem primeiroviu o perigo,mas ele foi, de certeza, o dirigente da Frelimo que p6s a sua v1da emrisco paramostrar que havia outra forma de operar no Niassa.(7) Munslow, Barry, Mozambique: The Revolution and its Origins, pp. 92-95.

72 MIN CHRISTIEA primeira entrada de Samora nas, zonas de guerra. de Mogambique fol emNovembro de 1965, quando assumiu a missdo de abrir uma nova frente no NiassaOriental.Esta missdo da' uma ideia multo interessante de Sarnora. e das suas ta'cticasmilitares. 0 facto de ele ter aberto a frente oriental do Niassa 6 bern conhecido emMogambique, porque foi muitas vezes mencionado nos tributos oficiais. Maspoucas vezes foram dados pormenores e por isso muitas, pessoasficaram com aideia que ele entrou por ali com as armas a rugir e desbaratou os portugueses.Nada podia estar mais longe da verdade nem podia fazer menos justiga ao estiloeminentemente politico de Samora fazer uma guerra.0 Niassa Oriental era uma zona particularmente, diffcil para os guerrilheirosoperarem. Samora e a sua unidade iniciaram a sua jornada atrav6s de uma areasem lugares habitados nem fontes de dgua.Marcharam quatro dias nessas condig6es. No quinto dia atingiram os arredores deuma aldeia chamada Mecula, com a promessa de socoffo da populagdo local.Infelizmente o exercito portugue^s tinha sido avisado e tinha cercado a aldeia,impossibilitando a entrada do grupo de guerrilheiros.A dnica boa notfcia foi que um chefe tradicional, da drea junto do postoportugue^s de Valadim estava pronto a receber Samora e os seushomens. A manoticia era que isso ficava a uma distdncia de mais seis dias de marcha.Contudo valia a pena tentar porque o chefe, charnado Mataca, tinhaa reputaqdode ser um homem que sempre tinha resistido 'a ocupaqdo colonial. Portanto osguerrilheiros dirigiram-se para Id, sem comida e com imprevisiveisabastecimentos de agua.

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Foram seis dias de mis6ria. Alguns dos guerrilheiros entraram em colapso deexaustdo e os sobreviventes, incluindo o comandante Samora, tinham que levarbagagem extra - a carga dos que tombaram.Finalmente atingiram os arredores de Valadim. E aqui podemos ver oque faziaavanqar Samora, independentemente, da sede e da forne.Ele disfarqou-se de xeque mu ulmano, para evitar ser reconhecido pelo inimigo, efoi com outro, guerrilheiro, um ho-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 73mern chamado Moyo, falar com o chefe Mataca. 0 principal objectivode Samorando era iniciar imediatamente os tiros de uma guerra na zona, mas simconquistarMataca para a Frelimo. Samora jd tinha estudado as rela 6es de poder na zona esabia que Mataca dominava toda a populaqdo ali 'a volta. Era um exemplocldssico de poder feudal, mas a sua palavra era lei e opunha-se penetragdo docapitalismo colonial portugues.Samora convenceu Mataca a participar com todo o seu povo na luta pelaindepend8ncia da Frelimo e a ficar no Niassa, deslocando-se para uma nova areamas cultivando a terra. Era Samora, o planificador militar, com o pensamentosempre avanqado. Para ele ndo fazia sentido dar uns tiros nas tropas portuguesasso para. mostrar que a luta armada tinha comegado no Niassa Oriental. 0 que tinhaque fazer era criar condig6es para a guerra de guerrilha, e isso queria dizermobilizar a populaqdo local para dar o essencial apoio popular.Tal como ele fez, os futuros guerrilheiros iriam ter que marchar 11 dias compouca comida e agua. Mas quando chegassem junto do povo de Mataca tinham acerteza. de ser apoiados (1).Os portugueses, no entanto, ndo estavam a dormir. Conheciam muito bem aimporta^ncia de Mataca e resolveram captura'-lo. A tarefa foi entregue a umjovem capit2io do exercito. 0 seu nome era Ramalho Eanes.Eanes foi, mais tarde, membro do Movimento das Forqas Armadas, que derruboua ditadura de Marcelo Caetano em Portugal em 1974, e fol eleito Presidente danova repdblica democrdtica portuguesa em 1976. Em Novembro de1981 fez umavisita de Estado a Moqambique, a convite de Samora Machel. Os dois homenssimpatizaram imediatamente um com o outro, trocando recordaq6es dos dias emque estiveram em lados opostos das linhas de batalha.(-I) Muitos dos pormenores da hist6ria do papel de Samora na abertura da frentede guerra no Niassa Oriental foram dados por Jos6 Negr5o da UniversidadeEduardo Mondlane ern Maputo. Josd Negr5o permitiu, muito simpaticamente, oacesso do autor A sua pesquisa.

74 IAIN CHRISTIENum jantar de Estado em Maputo o Presidente Eanes levantou-se para fazer umdiscurso de improviso. 0 assunto era o chefe Mataca: como o capitdoEanes ocapturou e como ele fugiu. A hist6ria foi contada com muito humor e Samoraestava sentado, ao lado de Eanes rindo-se entredentes e acrescentando, por vezes,alguns aspectos.

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Eanes recordou que, na noite em que f6i capturar Mataca, uma figura. lenddria nazona, chovia a potes. As coisas comeqaram a correr mal para Eanes pouco depoisde encontrar o acampamento de Mataca, muito bern escondido no mato. Estava ocapitdo ocupado a organizar os seus homens para cercar o local quando foramdescobertos por uma mulber que comeqou aos gritos.Seguiu-se urn pandem6nio com tiros por todo o, lado. <<Enquanto hdtiros e'muito dificil dar ordens, porque ningu6m ouve>>, notou Eanes. Semhesitagdo,contudo, ele avangou para aquilo que reconheceu como a casa de Mataca. <<Eutinha recebido a tarefa de prender o r6gulo Mataca e nao queria perder aoportunidade Mas quando cheguei perto dele a nossa guia, uma mulhermoqambicana, olhou para ele e disse que ndo era o r6gulo Mataca. Noentanto eutinha preparado, bem a operaqdo e tinha visto fotografias do r6gulo Mataca nurnlivro portugu8s, de forma que verifiquei que era ele de facto.>>Eanes admitlu que ainda subsistia na sua mente uma pequena d6vidaquandoprendeu Mataca, mas verificou-se que ndo tinha havido engano. Tinha capturadoo chefe.Contudo Eanes teve alguns problemas disciplinares com os seus soldados. <<Elestinham-se aproveitado da escuriddo para fazer um pequeno saquede bicicletas eoutras coisas e quando vi isso senti-me muito mal porque isso ndose coadunavacom a nossa dignidade militar.>> (Neste ponto da hist6ria de Eanes, Samoracomentou: <<Parece um oficial treinado pela Frellmo!>>)No regresso ao quartel o capitdo Eanes teve tamb6m que lidar corn alguns dosseus homens que pensavam que o melhor que tinharn a fazer corn Mataca eramata-lo. 0 problema tamb6m fol ultrapassado e os soldados foram mesmo,persuadidos a dar parte das suas rag6es a Mataca, sua mulher e filhos.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 75Jd no quartel, Eanes teve que enfrentar o malor problema. Nem. as autoridades nacapital provincial nem o quartel-general avangado ern Nampula queriam tomarcdnta de Mataca. Tinham medo que a Frelimo montasse uma operagdo para olibertar. <<Era um preso incomodo>>, recordou Eanes.Mas o ex6rcito nao estava satisfeito por manter Mataca no quartel, que ndo eraconsiderado o lugar correcto para um prisioneiro, de forma que Eanes o transferiupara a administraqdo local. Contudo, nessa altura um militante da Frelimo,disfargado de devoto, do IsIdo, com cofio' e tu'nica de mugulmano, chegou aadministragdo e conseguiu tirar de la' Mataca. <<Apo's todos osnossosesforgos>>, disse Eanes, sorrindo e apontando para Samora Machel, <<esteislamizado fez Mataca fugir para a Tanzania.>>Afinal os esforgos de Samora para manter o chefe Mataca no interior do Niassan5o tiverarn sucesso. Mas isso sdo os altos e baixos da guerra, e oprincfpio deSamora de langar as raizes do esforqo de guerra no apolo das massas popularesmanteve-se intacto.Para Samora, oguerra do povo>> n2io era um conceito abstracto ou uma merapalavra de ordem. Mais que uma estrat6gia e menos que um artigo de f6, era umaf6rmula para o sucesso numa luta que se iniciou corn 250 guerrilheiros da Frelimo

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a enfrentarem cerca de 35 000 soldados portugueses. Nem todos os dirigentes daFrelimo concordavarn com esta f6rmula.Para os ambiciosos e os impacientes, principalmente entre a geragdo mais velha,uma guerra do povo continha muitas incertezas. Seria uma guerraprolongada emuita coisa podia mudar ao longo dos anos. 0 exe'rcito guerrilheiro podia crescerW atingir vdrios milhares de homens e quem podia prever corn que poder iriamemergir os seus comandantes? Isto era uma preocupagdo s6ria para a1guns dosprimelros dirigentes da Frelimo, que se concebiam a si pro'prios como polfticosenquanto os gu errilheiros eram urn outro tipo de gente cuja fungdo eracumprirem as ordens dos polfticos. Ndo 6 de admirar que esses polfticosestivessem constantemente a exigir ataques de grande envergaduraeespectaculares. 0 seu objectivo era uma vit6ria ap ida antes de muitos quadrosatingirern proemin8ncia e terern que receber reconhecimento porisso no dia daindepend8ncia.

76 IAIN CHRISTIEEstas tens6es ja' existiarn no selo da Frelimo desde antes do mfcio da guerra,quando se debatia a estrategia na Arg61ia, em Dar-es-Salam, nos campos detreino em Bagamoyo e Kongwa. Talvez fosse inevltdvel que as tens6esecontradig6es aumentassern com o desenvolver da guerra, quandoa Frelimoarrancou o controlo polftico aos portugueses em a1gumas areas rurais de CaboDelgado e Niassa. Com o estabelecimento de zonas semilibertadas, emais tardede zonas libertadas, tinha que ser feito um leque mais alargado de escolhas.Populagdo, territ6rio, redes comerclais, escolas e postos de sa6de tinham que serdefendidos dos duros ataques dos portugueses, num teste 'a vontade e capacidadedos gueffilheiros e dos camponeses para manterem uma guerra prolongada.0 novo comandanteNa segunda metade de 1966 a Frelimo tinha consolidado as suas poslq6es ernCabo Delgado e no Niassa: os guerrilheiros, enquanto continuavarn a sua guerrade emboscadas e colocaqdo de minas, estavam ja a realizar ataques contra asbases militares portuguesas. A situagdo da Frelimo no terreno pareciaprometedora. Mas havia sinais de mudangas no plano de batalha do inimigo,mudanqas c Jos efeltos chegariam aos anos 80. Os primeiros sinaisapareceramem 1965.0 ditador portugu8s, Salazar, tinha aberto as portas do seu imp6rioao, capitalestrangeiro, permitindo As multinacionais repatriar 100 % dos lucros. Um dosefeitos f6i aumentar o empenho do Ocidente no colonialismo portugues, e nao, s6em termos econ6micos: aumentou a cooperaqdo militar entre Portugal e os pafsesda Organizagdo do Tratado do Atldntico Norte (OTAN).Ao mesmo tempo a Africa do Sul juntou-se guerra. contra os mogambicanoscomo parte do seu esforgo para. travar o avango do nacionalismo africano. Antesmesmo de comegar a luta pela independ6ncia, Mondlane tinha previsto que issoiria acontecer e, em Margo de 1965, chegou o primeiro relat6rio sobre oenvolvimento militar directo sul-africano nas zonas de guerra do Norte deMogambique.

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SAMORA - UMA BIOGRAFIA 77Depois de uma emboscada em que uma patrulhacolonialista foi completamente derrotada, os nossos combatentes descobriram quemuitos dos soldados colonialistasmortos tinham bilhetes de identidade sul-africanos.Mais tarde, depois de um estudo cuidadoso dos movimentos das tropasportuguesas, os militantes da Frelimo notaram que nes8as manobras os soldadosboers costurnavarn ir frente, formando o grupo de reconhecimento. Durante aluta, esses soldados mostram muito mais energia que os portugueses, revelandoque estdo habituados As condiq6es doterreno em Africa.Por outro lado, nas acq6es repressivas eles sdo aindamais ferozes que os portugueses, manifestando uma especie de prazer sadicoquando torturam os africanos, queimam plantaq6es e aldeias ou perseguern edisparam contra civisafricanos desarmados que se escondem no mato.Esta nova manifestagdo da alianga Salazar-Verwoerd ndosurpreende ninguem. Mas ensina-nos a necessidade de tornar a solidariedade entreo povo de Mogambique e da Africa do Sul mais activa (9).Na altura em que Samora Machel se tornou comandante militar da Frelimo, emNovembro de 1966, a organizaqAo jd estava em conflito com muitos doscomponentes do grupo anti-Mogambique: os regimes de Portugal, Africa do Sul eMalawi. 0 Ocidente estava a aumentar o seu apoio militar e econ6mico aPortugal.Jd tinham tido lugar os primeiros conflitos com bandidos armados e osrodesianosestavam s6 A espera.Samora assumiu o comando das forps de guerrilha em trdgicas circunstincias. 0seu antecessor, Filipe Samuel Magaia, f6i morto por um dos seusproprios homensa 10 de Outubro de 1966, durante uma marcha na provfncia do Niassa. 0 assassinoafirmou que a arma se disparou acidentalmente. Esta morte aconteceutres mesesdepois da morte na Zdmbia de outro dirigente da Frelimo, Jaime Sigauke. Eletinha sido chefe do De-(9) Mozambique Revolution, n.' 16, Marqo de 1965.

78 IAIN CHRISTIEpartamento de Organizagdo Interna, que tinha como, uma das suas tarefas orecrutamento.Inevitavelmente foram feitas tentativas para. ligar essas mortes arixas no interiorda Frelimo. Num caso cldssico de desinformagdo, uma ag8ncia deinformagaoocidental afirmou: <<Ap6s o seu secretdrio para a Defesa, PhillippeMagaya [sic],ter sido, morto no interior de Mogambique ern Novembro de 1966 [sic]houverumores de que Mondlane tinha organizado a sua morte porque parecia provavelque ele soubesse de uma conspiragao de Magaya para o derrubar com o apoio deoficiais da guerriIha.>> A mesma ag ncia afirmou que Mondlane era acusado deestar implicado na morte de Sigauke (111).Temos uma sensagdo de dejci vu ao ler o, editorial do jornal sul-africano BusinessDay tr8s dias depois da morte de Samora. Machel:

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Boatos de descontentamento entre os apoiantes do Presidente Samora Machelcomeqaram a circular hd alguns meses, quando jd ndo podia ser escondida adesintegragdo da sua administraqdo, e a sua morte siJbita num acidente deaviagdo atrairla grandes suspeitas.Numa das vers6es dos boatos punha-se em d6vida alealdade da sua <<guarda palaciana>> de macondes do extremo norte -os maisleais revoluciondrios da Frelimo; noutra versdo dizia-se que os marxistas no seugoverno punham objecq6es A influencia crescente dos nacionalistas negros e aum concomitante declfnio na simpatia pelo blocosovietico.0 descontentamento aprofundou-se...E por ai adiante. Em reportagens de mortes separadas por 18 anos vemos<<rumores>> e <<murmdrios>> a servirem para. desviar a atengdo dos suspeitosmais 6bvios.Sigauke e Magaia foram, de facto, assassinados por agentes da PIDE. 0 caso deSigauke nunca f6i seriamente posto em,( ... ) Forum World Features, Londres, 8 de Fevereiro de 1969.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 79causa. As autoridades zambianas sabern que os agentes eram brancos e entraram apartir de Moqambique. 0 caso de Magaia 6 mais complicado porque ndo hadu'vidas de que ele foi morto por um membro da Frelimo. Contudo, estetipo deincidentes era investigado muito cuidadosamente pelas autoridades tanzanianas eelas concluiram, <<apos uma investigaqdo completa, que o assassino era umagente da PIDE plantado para matar Magaia para causar confusdoe divisdo>>(11).Nos anos 60 a infiltragdo pela PIDE foi urn sinal para Mondlane e Sarnora. deque a guerra estava a ser tomada muito a s6rio pelo inimigo. Na segunda metadede 1966 o assassfnio polftico fazia parte do plano de caqa do inimigo.Os dirigentes comegaram a olhar mais de perto que antes para a formacomo oaparelho de defesa e seguranqa da Frellmo estava montado e descobriram umimportante defeito estrutural. Ndo havia urn comando central fora doDepartamento de Defesa e Seguranqa, que tinha sido tratado da mesma forma queos outros departarnentos da Frelimo, tais como os neg6cios estrangeiros, finanqasou administraqdo. 0 secretdrio do Departamento lidava com todos os pormenoresrelativos As quest6es militares e de seguranga e, se bern que isso fosse realizavelenquanto s6 tinha 250 guerrilheiros sob o seu comando, tornou-se urn problemas6rio quando o ndmero subiu para os milhares.Numa reunido do Comit6 Central ern Outubro de 1966 fol decidido que oexe'rcito deveria ser reorganizado, corn um alto comando operando a partir de urnquartel-general estabelecido, e a responsabilidade pelos vdrios aspectos daactividade militar foi distribufda de uma forma racional. Magaia foi morto antesde isso ser implementado e foi Samora, que sucedeu a Magaia ern Novembro, queo po^s ern prdtica.

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0 departamento foi dividido ern dois - Defesa, dirigido por Samora, e Seguranga,chefiado por Joaquim Chissano. 0 Departamento de Defesa criou umConselhoNacional de Comando,(11) Entrevista do autor corn o coronel Ali Mafudh, que era o cornandante doCornando Sul da Tanzania e principal oficial de ligagdo corn a Frelirno nasegunda metade dos anos 60.

80 IAIN CHRISTIEdirigido pelo secretdrio para, a Defesa e incorporando os chefesde 12subdepartamentos.Samora, portanto, afastou-se, imediatamente de uma estrutura militare deseguranqa que colocava sobre um so' homern um peso impossfvelde suportar.Chissano passava a ter um departamento para lidar com os problemasdeseguranqa de uma forma geral, enquanto Samora podia admitir jovensprometedores para passarem a dirigir dreas-chave da construgdo do exercito.Tinha 'a sua disposiqdo um Comissdrio Polftico Nacional e chefes nacionais deoperag6es, recrutamento e treino, logistica, reconhecimento, comunicag6es,publicag6es militares, administraqdo, finanqas, sau'de, pessoal e mil'ciaspopulares.Estruturas similares foram criadas a ni'vel provincial. A Frelimopassava a ter umex6rcito organizado e estruturado, levando Eduardo Mondlane a escrever:Segundo este novo metodo de organizaqdo, cada dirigente tem umadrea deresponsabilidade claramente, definida na qual deve usar a sua iniciativa, mas temtamb6m um canal de contacto com o alto comando bern estabelecido. Foi postoem pratica nos principios de 1967 e quase, imediatamente as coisas comegaram afuncionar mais eficientemente: as comunicaq6es das provfncias comeqararn achegar aos quart6is-generais com maior regularldade; as armase o equipamentocomeqaram a fluir mais rapidamente para. as zonas de combate; aumentou orecrutamento; e os planos para novas e maiores campanhas contrao inimigotornaram-se operacionais (11).Comeqou assim um desenvolvimento significativo da concepqdo de, direcqdo eresponsabilidade de Samora. Estava, a ver-se livre do problema que estrangulavaMagaia - lidar com os pormenores da tomada de decis6es - de forma apoder olharpara o conjunto do quadro de desenvolvimento da cena militar e, desenvolver aestrat6gia. Ele estava multo consciente da(12) Mondlane, obra citada, p. 153.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 81necessidade de tomar e manter a iniciativa estrategica, o que significava que eraele e ndo o inimigo quem devia definir a forma como a guerra ia ser travada. Istos6 podia ser feito atrave's de uma consciencia profunda do que se estava a passarndo s6 num canto do campo de batalha mas em todo o pais. S6 desta formaocomandante pode compreender as forqas e fraquezas das duas forqas em guerra, eso' desta forma ele pode prever o que o comandante do outro lado vai fazer aseguir.

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Samora. montou o quartel-general do Conselho Nacional de Comando no novocampo-base da Frelimo na Tanzania, a Propriedade Agrfcola Dezassete, nodistrito de Nachingwea, a menos de 100 quil6metros da fronteira moqambicana.A transferencia de Kongwa foi feita na segunda metade de 1965.0 Conselho tinhaencontros quinzenais e a proximidade de Nachingwea da fronteira tornava multomals fdcil para os dirlgentes militares da Frelimo responder rapidamente aosdesenvolvimentos nas zonas de guerra. Nem sempre Samora estavapresente nasreuni6es porque passava muito do seu tempo no interior de Moqambique, mastinham sido criadas uma estrutura. e uma base para. a supervisdo permanente doconjunto do esforqo de guerra.Samora teve sempre duas grandes desvantagens desde o dia em que se tornousecretdrio para. a Defesa da Frelimo at6 ao dia da sua morte: nuncaconseguiucomparar-se ao inimigo em poder de fogo nem em poder econ6mico.Esteproblema atingiu o seu auge nos anos 80, quando os sul-africanos foram capazesde ostentar uma gama impressionante de equipamento sofisticado, incluindosubmarinos, radar moderno, avl6es sem piloto e a ameaqa de um ataque nuclear,enquanto, ao mesmo tempo, forneciam armas e rag6es a um ex6rcito substituto.Em 1967 Samora. n5o enfrentava um envolvimento total da Africa do Sul mas asforqas armadas portuguesas estavarn bern fornecidas de armas,fardamento eraq6es de combate, enquanto a Frelimo era constantemente assolada com faltas detudo aquilo de que precisava para prosseguir a guerra. Em 1967 Samora. tinhaigualmente o problema de um grande desequilibrio nos numeros. As forgas daFrelimo eram estimadas, na altura,

82 IAIN CHRISTIEem 8000 guerrilheiros armados e treinados, contra uma forga decerca de 60 000soldados (11).Samora teve, por outro lado, muita sorte por ter o apoio do Presidente Nyerere daTanzania. Nyerere enviou comandantes militares simpatizantes paraestabelecerem a ligagdo com a Frelimo nas bases recuadas no Sulda Tanzania ea1guns eram suficientemente importantes para conseguir retirararmamento doarsenal da Forga de Defesa do Povo da Tanzania (FDPT) para a Frelimo quando omaterial de guerra proveniente dos pafses socialistas demorava achegar. As faltastanzanianas seriam repostas quando os fornecimentos acabassempor chegar.0 militar tanzaniano mals importante a trabalhar com Samora foi o coronel AliMafudh, chefe das Operaq6es e Formaqdo, chefe do DepartamentodeInformaq6es Militares e chefe do Comando Sul. Tinha sido decidido no quartel-general da Defesa, em Dar-es-Salam, que a responsabilidade pelaligagdo com omovimento de libertagdo deveria ficar com o Departamento de Operaq6es eFormaqdo da FDPT.0 coronel Mafudh recorda que Samora era um comandante excepcional. <<Ocomando militar da Frelimo, sob a direcqdo de Samora, estava sempre A frente doinimigo. As tdcticas da Frelimo, os seus ataques, faziam as forqas portuguesasandar de um lado para o outro. A Frelimo tinha a iniciativa total. Samoracosturnava analisar muito claramente os problemas polfticos em relaqdo com osproblemas militares. Tinha uma polftica multo clara em quest6es como a

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estrat6gia e as taicticas. E tinha carisma, comando, personalidade. QuandoSamora aparecia e falava contigo, em poucas horas tu estavas do lado dele. Eleexplicava as coisas muito, muito claramente. E era tamb6m um muito bomdisciplinador.>>(") Estes n6meros foram retirados do estudo de fundo de William Minter,Portuguese Africa and the West, Harmondsworth, 1972, p. 68. Eduardo Mondianedeu o mesmo n6mero que Minter para os guerrilheiros da Frelimo ern 1967, masestimou a forga da tropa portuguesa em 65 000 em comparaqao corno ndmero de60 000 de Minter. Os portugueses punharn o ndmero abaixo de 50 000 mas issoera numa altura em que eles minimizavam a magnitude da guerra.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 83Mafudh s6 se recorda de uma diferenga de opinido que teve com Samora sobreuma questdo militar. Fol quando Samora quis levar mulheres para o campo daFrelimo na Tanzania para receberem treino militar. Na mente de Mafudh e dosmilitares tanzanianos estava ainda fresca a tentativa da FDPT de fazer o mesmo,tentativa que sossobrou contra as rochas da natureza humana. <<Muitas delasficaram grdvidas>>, disse Mafudh. <<Ndo queriamos que os mesmos errosacontecessem num campo da Frelimo. Tfnhamos medo que isso pudesse causarconfusdo, com os guerrilheiros a lutarem entre si. Portanto opusemo-noscompletamente, completamente. Mas Samora tentou convencer-nos de que ascolsas eram diferentes na Frelimo e lhes deviamos dar uma oportunidade. Demose eles trouxeram o primeiro destacamento de mulheres para receberem treino. 0resultado foi um grande sucesso.>>0 Destacamento Feminino da Frelimo foi formado em 1967 e rapidamente setornou uma parte vital do exe'rcito de guerrilha. As mulheres receberam treinomilitar e aulas polfticas, tal como os homens, mas ndo foram colocadas comotropas na linha da frente. Elas tinham a tarefa-chave - e muito perigosa - deavangar para novas dreas e recolher informaq6es para facilitaro avango da lutaarmada. Elas deviam tamb6m preparar as pessoas nessas zonas para a luta que seaproximava, explicando a polftica e os objectivos da Frelimo. Os portuguesesestavam prevenidos contra este tipo de coisas mas os seus informadores estavammais inclinados para suspeltarem de caras desconhecidas de homens.Esta tdctica da Frelimo tornou-se ainda mais crucial no prinpI ' cio da decada de70, quando os portugueses iniciaram a construgdo dos aldeamentos, aldeiasfortificadas destinadas a separar os camponeses dos gueffilheiros. As mulheresguerrilheiras conseguiam penetrar nos aldeamentos e mobilizar a populagdoforgada a viver la pelas autoridades coloniais.A preocupaqdo de Mafudh com problemas disciplinares que pudessem serintroduzidos nas fileiras da gueffilha com a chegada das mulheres-soldados ndoera completamente injustificada. Quando marchei com Samora e os seusguerrilheiros em Cabo Delgado, em 1973, t'nhamos connosco uma unidade demulhe-

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res. A melo da jornada elas foram enviadas para outra area devidoquilo que mefoi descrito por um oficial da guerrilha como uma quebra na disciplina. Ndo deupormenores mas ndo6 diffcil imaginar de que 6 que ele estava a falar.Samora tentou manter os guerrilheiros conscientes de que a sua decisdo de adefirh luta transportava em si urn compromisso de concentrarem o seu pensamento naguerra, mas ndo Insistia em que vivessern como monges e freiras.Muitosestabeleceram relag6es permanentes. Em 1969 o proprio Samora secasou, pelaprimeira vez oficialmente, com uma guerrilheira chamada Josina Muthemba, quetinha sido uma das jovens do NESAM, a organizaqdo de estudantes criada porEduardo Mondlane em Lourenqo Marques. Tiveram um filho, Samito,antes deela morrer de uma prolongada doenqa ern Dar-es-Salarn em 1971.

5. Os anos da crise (1968-1970)0 perfodo de 1968 a 1970 fornece a chave para a compreensdo do que fez deSamora o tipo de presidente que ele foi. Nesses tr8s anos a Frelimo enfrentouassaltos externos tdo ferozes e uma perturbaqdo interna tdo vulcdnica que, deacordo com toda a 16gica, deveria ter-se desfeito e morrido. 0 factode omovimento ter sobrevivido e, de facto, se ter tornado mais forte, foi em muitogrande parte devido A capacidade politica e militar de Samora e A enorme forqade vontade que ele e os seus colegas conseguiram demonstrar.Ironicamente, a extraordindria elasticidade e capacidade de sobrevlv8ncia que osdirigentes da Frelimo demonstraram nesses anos forneceram as sementes paraaquilo que alguns crfticos acreditaram ser uma das fraquezas deSamora nos'Itimos anos. Ele parece ter desenvolvido uma firme convicqdo de que, se adirecqdo da Frelimo quisesse, com suficiente forqa, conseguir alguma coisa elaseria conseguida, independentemente da grandeza dos obstaculos.0 ano de 1968 teve um comego desagraddvel para a Frelimo, com duas rebeli6esinternas, aparentemente distintas, e o agravamento das relag6es com o Malawi.

86 IAIN CHRISTIEUma das rebeli6es internas foi dirigida por Ldzaro Nkavandame, que era osecreta'rio provincial de Cabo Delgado, e a outra pelo padre cato'lico MateusGwengere, que era professor na escola secunddria da Frellmo em, Dar-es-Salam.Nkavandame era urn chefe maconde, urn homern de a1gurn prestfgio na sua drea,que se tinha juntado 'a luta numa fase inicial. No entanto, era urn dos que sesentiam. ameagados pela crescente popularidade e poder dos comandantes daguerrilha ern Cabo Delgado. Tinha ido para o exilio no Sul da Tanzania e,portanto, tinha pouco conhecimento directo do estado da luta.Mzee Ldzaro, como era conhecido, determinou o regulamento dospreqos para ocom6rcio entre as zonas libertadas e a Tanzania e ficou com uma percentagemsubstancial para si pr6prio e os seus amigos, os chairmen locais da Frefirno nassubdivis6es de Cabo Delgado. Dado que isso era contrdrio A polftica domovimento, houve urn confronto com a direcqdo. Nkavandame opunha-setamb6m a a1gumas das polfticas fundamentais que tinharn sido adoptadas nasessdo de Outubro de 1966 do Comit6 Central. Especificamente, ele ndo gostava

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da ideia de se abolir a distinqdo entre polfticos e soldados. Isto tinha feito doscomandantes da guerrilha uma ameaqa para o seu poder paroquiano. Outraquestdo sobre a qual ele discordava de Mondlane, Samora e os outros dirigentesrevoluciondrios era a do papel da mulher: tinha urn desagrado tradicionalista pelaidela da mulher fora da cozinha e no campo de batalha.Mondlane fol a Cabo Delgado ern Fevereiro de 1968 para observar asituaqdo e,ern segulda, saiu para urna visita ja programada aos Estados Umdos e Grd-Bretanha. Enquanto ele estava fora, Nkavandame e o seu grupo convocararn umareunido do Comit6 Central e exigiram que se realizasse rapidamente urncongresso da Frelimo, a reunir-se na Tanzania. A maioria das pessoas quepoderiarn chegar rapidamente a um tal congresso seriarn os amigosdeNkavandame, por raz6es meramente geogrdficas. Ou estavam jd naTanzania oudo outro lado da fronteira, no Norte de Cabo Delgado.Urn congresso verdadeiramente representativo envolveria a vinda de dezenas depessoas de vdrias partes de Mogambique,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 87bem como das varias representaq6es da Frelimo espalhadas pelomundo, e levariaalgum tempo a organizar.Enquanto Nkavandame jogava as suas cartas no Sul da Tanzania,o padreGwengere estava ocupado a criar confusdo na escola, em Dar-es-Salam.Gwengere tinha sido professor na escola de uma missdo cat6lica nasmargens dorio Zambeze e tinha chegado a Dar-es-Salam, para se juntar 'a Frelimo, em 1967.Tinha as melhores credenciais, pois tinha recrutado centenas de jovens da suazona para o movimento.0 segredo do seu sucesso no recrutamento so' comeqou a ser compreendido peladirecqdo depois de ele ser colocado na escola com muitos dos seus recrutas comoestudantes. Ele tinha usado o simples expediente de prometer que aFrelimo Ihesconseguiria bolsas de estudo no estrangeiro.Se era verdade que Mondlane estava a usar o seu considerdvel prestfgiointernacional para conseguir oportunidades de estudo no estrangeiro paramembros da Frelimo, e que isso era essencial devido aos sombrios resultados doscolonialistas portugueses na educagdo, era um m6todo de recrutamentodesonesto. Era a direcqdo do movimento e ndo Gwengere quem decidia o que osnovos recrutas fariam. E, dado que se tratava de um movimento de guerrilha, ogrosso dos recrutas erarn enviados para a frente de guerra. Essa era a realidade,que Gwengere devia ter tido em conta quando fazia as suas promessas.Na escola em Dar-es-Salam Gwengere continuou a argumentar dentro da mesmalinha. Lutou contra a polftica de mandar estudantes passar algumtempo a ensinarnas zonas libertadas e promoveu a ideia de que todos eles deveriam ser mandadoscom bolsas de estudo para o estrangeiro para se poderem tomar uma classedirigente de um Mogambique independente.Isto queria dizer, basicamente, que seria criada uma elite educada a partirdaqueles que tivessem suficiente sorte para conseguirem ir para a escola, e essaelite ndo teria nenhuma relagdo com a luta armada. Samora encarouisto como umproblema serio. Estava confrontado com a ameaqa de uma situagdo emque os

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seus guerrilheiros iriam passar forne e perigos para conseguir bons empregos parauma elite depois da independ6ncia. Elite que, entretanto, passariaos anos daguerra nas

88 IAIN CHRISTIEconfortdveis cidades universitdrias do mundo desenvolvido. Nenhum comandanteda guerrilha poderia aceitar uma proposta tdo des moral izadora.Para plorar as coisas, Gwengere e Nkavandame movimentaram-seconscientemente para tentar virar o governo da Tanzania contra Mondlane,Samora e os restantes revoluciondrios na direcqdo da Frelimo. Ndoadiantavamuito usar argumentos anti-socialistas porque a Tanzania de Nyerere estava nessaepoca a virar paulatinamente A esquerda. Foram portanto levantadasas quest6es6tnicas.Gwengere usou a compreensivel precauqdo da Tanzania contra uma possfvelinfiltraqa-o para langar a ideia de que os mogambicanos brancos na escola daFrelimo eram provavelmente espi6es portugueses. Nkavandame,por outro lado,tentou explorar o facto de Nyerere ter apoiado o movimento secessionista doBiafra na guerra civil nigeriana, argumentando que o objectivo da Frelimo deveriaser um Estado independente em Cabo Delgado, dado que era nessaprovifficia quea luta estava mais avanqada.Ndo demorou muito a que a crise na Frelimo fosse do domfnio p'blico. Em Marqoa escola secunda'ria do movimento, no pacato subdrbio de Kurasini, ern Dar-es-Salam, foi palco de importantes distfirbios provocados por Gwengere. Mais deuma centena de estudantes, imbufdos das suas ideias elitistas, abandonaram aescola e ela teve que fechar. Ern Maio uma multiddo de exilados macondes -havia muitos milhares na Tanzania - atacou o escrito'rio da Frellmo na RuaNkrumah, no centro de Dar-es-Salam, e assassinou um. membro doComit6Central, Mateus Sansdo Muthemba. Foi chamada a polfcia, houve um julgamentoe os atacantes, no banco dos r6us, insultaram Eduardo Mondlane.Durante este caos na base recuada da Tanzania, problemas de outro tipo estavam afermentar no Malawi. Ern Janeiro tinha sido formada uma nova organizaqdo,adoptando o nome de Unido Nacional Africana da <<Romb6zia>> (UNAR). Elaafirmava representar um outro Biafra moqambicano, maior que o deNkavandame. <<Rombezia>> era a totalidade do Nordeste de Moqambique,tirando o nome do rio Rovuma, a norte, W ao

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 89Zambeze, que divide Mogambique em dots imediatamente a sul do Malawi.Era uma tentativa mal disfargada de agir no sentido da incorporagdo do Nordestede Mogambique num futuro Grande Malawi.Samora tinha estado no Malawi em 1965, com Filipe Magaia, para tentarconseguir que o governo de Hastings Banda fosse mais flexfvel emrelagdo AFrellmo. A missdo fracassou. Em Fevereiro de 1968, logo apo's a criaqdo daUNAR, Samora foi de novo ao Malawi e manteve conversag6es com oministroda Informagdo.

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Nunca foram publicados pormenores do encontro de 1968. Dadas as atitudesanteriores do governo malawiano e o que estava para acontecer nos meses e anosseguintes, gostariamos de ter sido uma mosca na parede do gabinete do ministro.Vamos ter que recuar um pouco para compreender a filosofia do Dr.Banda.Em 1960, antes de a colo'nia britAnica da NiassalAndia se tornar oEstadoindependente do Malawi, ele tomou uma posi95o multo hostil para cornasautoridades portuguesas, mas n5o pensava num Mogambique independente cornas fronteiras actuais. Ele sonhava, na altura, com a reconstituiqdo doantigoimp6rio do Marave, o que inclufa pedaqos de patses vizinhos incluindo a<<Romb6zia>> em Mogambique.Foi por isso que ele afirmou, ern 1960: <<Quando a NiassaIandia estiver livre eundo terei descanso W a maior parte de Mogambique se juntar a ela. Somos todosdo mesmo povo.>> Mas as fronteiras de muitos dos paises africanos tambemerarn artificiais por causa do colonialismo. Se fosse legitimado este tipo dedisputa, a independ8ncia dos Estados africanos conduziria a um caosinimagindvel e a Organizagdo da Unidade Africana decidiu, mais tarde, que asfronteiras coloniais, ndo importando at6 que ponto eram artificlais, tinham quepermanecer intactas.Em 1961, quando a NiassalAndia estava debaixo do domIL nio colonial britAnicoe era parte da Federaqdo da Africa Central, Banda tornou-se dirigente dosassuntos governamentais da Niassaldndia, com base num acordo coma Grd-Bretanha. Nes-

90 lAIN CHRISTIEse mesmo ano a hostilidade de Banda para com os portugueses levou-o aconcordar em desviar o com6rcio externo do Malawi do porto da Beira, emMogambique, para o Tanganica. Isto envolvia a construqdo de uma linha decaminho-de-ferro para ligar o Malawi ao porto de Mtwara, no Sul do Tanganica.Mas no final desse ano ele recebeu a visita de um enviado especial deSalazar. 0enviado chamava-se Jorge Jardim, uma abastada figura portuguesa no campo dosneg6cios e da polftica em Mogambique.0 bi6grafo de Banda, Philip Short, escreve que o encontro foi secreto e nem aoscolegas de Banda no governo foi dito o que foi discutido. «Mas o resultado foique ele comegou a reexaminar a posigo que tinha tornado em relagoAsautoridades portuguesas.> (')Em Margo de 1962 ele disse A Associaqdo Portuguesa em Blantyre queestavainteressado em utilizar ndo s6 a Beira mas tamb6m Nacala, porto natural deaiguas profundas na provincia mogambicana de Nampula (2). Parase fazer isso alinha de caminho-de-ferro de Nacala teria que ser ampliada de Cuamba, emMogambique, ate um ponto no interior do Malawi.Em Junho Banda fez uma visita a Portugal, onde as autoridades ]he disseram queos portos e caminhos-de-ferro de Moqambique estavam ' disposigdo do Malawi.Em breve Banda tinha perante si uma escolha clara. Ou comegava a afastar-se dadepend~ncia em relagdo a Mogambique, dominado pelos portugueses, aceitandoa proposta de Julius Nyerere de p6r o porto de Mtwara sob um controlo conjuntomalawiano-zambiano, ou podia reforgar os lagos com os portugueses. Em Maio

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de 1964, menos de dois meses antes da independencia do Malawi, Banda visitou oNorte de Mogambique e regressou anunciando que o Malawi seria ligado porcaminho-de-ferro a Nacala, aumentando assim a depend~ncia doMalawi emrelagdo ao Sul dominado pelos brancos. Philip Short nota que, se as justificag6esp6blicas da decisdo a favor de Nacala foram factores econ6() Short, Philip,Banda, London. Routledge and Kegan Paul, p. 181.(2) Malawi News, 5 de Abril de 1962, citado em Banda, ibid., p. 183.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 91micos, Banda pode ter sido influenciado por outras considera96es.Em 1963 ele fol levado a acreditar, por fontes que considerava como inteiramentefidedignas, que dentro de poucos anos poderia surgir uma situagdo em que o nortede Mogambique poderia ser cedido ao futuro Malawi [ ... ]. A intengdo seria criaruma zona tampdo entre o Tanganica e a parte sul de Mogambique dominada pelosbrancos, garantindo-lheassim seguranga em relagdo aos ataques da guerrilha (3).As fontes de Banda, presurnivelmente Jardim ou os seus associados, ndo eram, naverdade, tdo fidedignas. Os portugueses nunca entregaram o Norte deMogambique ao Malawi. Mas Banda manteve a sua amizade com Jardim,acabando por nomear c6nsul do Malawi na Beira, e continuando a opor-se aonacionalismo mogambicano.Quando Samora foi ao Malawi em Fevereiro de 1968 o govemo de Banda ndomostrava sinais de se afastar da sua alian9a com a supremacia branca na regido.INo mesmo me^s o Malawi trocou diplomatas com a Africa do Sul. Na legagdosul-africana estava incluido um adido militar, o coronel J. W. VanNiekerk.A UNAR, o grupo separatista da <<Romb6zia>> formado no m8s anterior, tinhacomo vice-presidente Calisto Trindade, um funciondno do govemo malawiano.Ele foi transferido em Marqo para uma empresa propriedade do c6nsul portugu6sno Malawi, Pombeiro de Sousa, um associado de Jorge Jardim. 0 quartel-generalda UNAR fol instalado no ediffcio do Partido do Congresso do Malawi, deBanda.Ndo esta claro o que 6 que, exactamente, Samora esperava conseguir com oencontro de Fevereiro. Quando falou disso a jornalistas, em Maputo, uma semanaantes da sua morte, ndo entrou em pormenores e eu simplesmente partidoprincipio de de que(3) Bancla, ibid., p. 191. (0 simpdtico retrato de Short sobre o Dr. Banda tamb6mesclarece bastante as raz6es hist6ricas por detrds dos objectivos expansionistas dodirigente do Malawi.)

92 [AIN CHRISTIEele, mais uma vez, tinha tentado persuadir os malawianos a permitirem que aFrellmo abrisse vias de acesso atrav6s do Malawi para Tete e para a Zamb6zia. Seera esse o objectivo, entdo a missdo ndo teve sucesso. Mas ele pode ter tidoobjectivos mais limitados relacionados com os seus pr6prios planos militares.

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Fosse qual fosse o caso, estd claro que a Frelimo id tinha bastante com que sepreocupar em 1968, sem a dor de cabeqa extra de um grupo separatista apoiadopor um Estado africano que jd tinha laqos estreitos com os portugueses.No entanto, apesar de todos estes problemas com Gwengere, Nkavandame e osmalawianos, os guerrilheiros de Samora avangavam onde era importante - dentrode Moqambique. Tinharn tomado o controlo de grandes dreas das provfnclas deCabo Delgado e Niassa, estabelecendo uma administraqdo da Frelimo, escolas daFrelimo, machambas e hospitais, urn sistema comercial controlado pela Frelimo euma rede de abrigos antia6reos para proteger a populaqdo contra osbombardeamentos dos portugueses. A Frellmo jd atacava alguns dos maioresquart6is e consegula, de vez em quando, abater avi6es militares.A Portugal chegavam notfcias de que o exe'rcito estava a ter pesadas baixas Asmdos dos guerrilheiros e, em 1967, 14 000 dos 70 000 jovens que deviam ter sidorecrutados ndo se apresentaram. 0 serviqo militar obrigat6rio folaumentado de 18meses para um mdx1mo de quatro anos.Em Marqo de 1968 os guerrilheiros reabriram a frente de Tete. Foi umacontecimento da maior importdncia estrat6gica, ndo so' por fazerdispersar muitomais as forgas armadas portuguesas mas porque a provfncia estava a serdesenvolvida como uma cavilha para o dominio racista e colonialista na AfricaAustral. Havia planos para construir a maior barragern ern Africa,Cabora Bassa,no rio Zambeze, e, em Julho, o contrato de construqdo fol atribufdo h Zamco,cons6rcio organizado pela empresa Anglo-American da Africa do Sul, com oenvolvimento de empresas alemds, francesas e suecas.Os obje ctivos do projecto eram fornecer energia hidroel6ctrica A Africa do Sul,atrair capital ocidental para Mogambique e trazer um milhdo de colonos brancospara. o vale do Zambeze.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 93A frente de Tete da Frelimo foi aberta menos de tr6s semanas apos avisita deSamora ao Malawi, mas nao foi atrav6s do Malawi que os guerrilheiros entrararnem Tete. Nessa altura o Presidente Kaunda da ZAmbia id se sentiasuficientemente seguro para permitir A Frelimo o uso do seu territ6rio. E ndo s6fez isso como deu Frelimo um pequeno contingente de soldados zambianos paraentrarem em Tete com os guerrilheiros e ajudarem a estabelecer as primeirasbases (1).0 avanqo para Tete ndo era apenas um exemplo de como os guerrilheiros estavamcada vez mais fortes. 0 uso da fronteira zambiana era crucial e ndo deve ter sidouma decisdo fdcil para Kaunda permitir que a Frelimo a usasse. Umaumento doenvolvimento militar sul-africano na guerra contra a Frelimo e a entrada em acqdodas forgas rodesianas de Ian Smith estavarn. entre as previsfveis consequenciasdesta jogada. Os sinais de alarme estavarn. a tocar para os sul-africanos e osrodesianos. A Frelimo estava a aproximar-se de Cabora Bassa eda frontelrarodesiana. Havia o risco de a guerra em Moqambique se transformar num conflitointernacional, o que Kaunda ndo tinha nenhum desejo de ver.Kaunda tem, por vezes, sido acusado de uma certa ambiva18ncia em relaqdo aosmovimentos de libertaqdo da Africa Austral, principalmente a Frelimo,em

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Moqambique, o Movimento Popular de Libertaqdo de Angola (MPLA) eaZimbabwe African National Union (ZANU). Em 1968, contudo, a decisdo quetomou a respeito de Tete fol corajosa e decisiva.Reabrir esta frente melhorou muito a moral da Frelimo abalada pela crise interna.Samora, em particular, precisava de uma oportunidade para mostrar que o seuex6rcito de guerrilha era capaz de avanqar numa regido que era realmenteimportante, em termos econ6micos, para os portugueses. Ele precisava tamb6mde contrariar o mito de que a guerra da Frelimo pouco mais era do queumarevolta dos otradicionalmente aguerridos macondes de Cabo Delgado>>.(1) Este aspecto f6i confirmado ao autor por um ex-combatente zambiano quenelc tomou parte.

94 IAIN CHRISTIE0 tema da <<sublevaqdo maconde>> era propaganda colonial portuguesa e folaproveitado por certos sectores da imprensa ocidental. Mas Ldzaro Nkavandameviu rapidamente que tambem podia ter vantagens. Dal as suas ambiq6esseparatistas acima mencionadas.Nkavandame, sob pressdo da direcqdo devido 'as suas prdticas exploradoras naszonas libertadas, andava 'a procura de formas de desacreditarMondlane, Samora,Marcelino dos Santos, Chissano, Chipande e os outros revoluciondrios que lheestavam a fazer a vida diffcll e a ganhar o apoio da base. Nkavandame viuclaramente que precisava do apoio das autoridades tanzanianas. Portantoaproximou-se delas com a alegagdo de que a direcqdo da Frellmo n5o era s6ria noseu combate ao Inimigo.0 coronel Ali Mafudh recorda que Nkavandame conseguiu iniclar <<um debatemuito s6rio>> sobre essa questdo.Nkavandame disse-nos: olhem, se formos ao longo dafronteira voces podem olhar para o outro, lado e ver muitas posiq6es do inimigo,guamig6es portuguesas. E era verdade. Mas Nkavandame estavaa tentarconvencer certos dirigentes tanzanianos de que, se os guerrilheiros estivessern defacto a lutar, teriam acabado com essas posig6es. Ele dizia que essas guarniq6eseram os principals obstaiculos. Dissenos que os guerrilheiros ndo estavam a lutarmas sim aenganar o povo.Nkavandame disse-nos que era o seu grupo e UriaSimango, na altura vice-presidente da Frelimo, quem agiaseriamente em relaqdo 'a luta armada.Recordo-me muito bern de que Samora nos fez uma palestra. muitointeressantesobre a razdo por que ndo atacava esses postos. Ern primeiro lugar, disse-nos ele,se atacarmos esses postos atrairemos a guerra para perto da fronteira entre aTanzania e Moqambique, e isso e' o que os portugueses gostariam de ver.E tamb6m, disse ele, a Frelimo deixaria de estar em posiqdo de penetrarprofundamente no interior do pafs. Seria uma questdo de atacar e fugir a correr deregresso 'a Tanzania. Um outro ponto que ele enfatizou, e eu apoiei-o forte-

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mente, era que quanto mais guarnigoes dessas os portugueses estabelecessem aolongo da fronteira melhor para a Frelimo, na medida em que estavam a retirarhomens do interior do pals. Os portugueses ndo conseguiam fazer nada e estavamali estacionados como pequenas 11has.Samora argumentou que era melhor criar rotas para ultrapassar ospostos econtinuar a lutar no interior profundo do que junto 'a fronteira. Erauma visdoestrat6gica muitobrilhante (1).Nkavandame falhou nos seus esforgos para desacreditar os guerrilheiros daFrelimo. Mas continuava a tentar. Mesmo tendo sido rejeitados os sellsargumentos pseudomilitares, Nkavandame tentou manipular polfticostanzanianos, vindos do Sul do seu pafs, explorando as suas relag6es de parentescocom as pessoas do Norte de Mogambique.Ndo dell em nada. As suas tentativas de realizar um congresso da Frelimo naTanzania nos principios de 1968 falharam. 0 congresso realizou-sede facto emJulho desse ano, em Matchedge, nas zonas libertadas da provifficia do Niassa.Nkavandame e alguns dos seus chairmen recusaram-se a participar, oscombatentes, homens e mulheres, tiveram grande influencia e Eduardo Mondlanefoi reeleito Presidente da Frelimo.No relat6rio oficial do Comite' Central, lido por Mondlane no inicio do congresso,apenas urn. membro da Frelimo vivo era destacado para um aplauso especial:Samora Machel. 0 relat6rio referia-se ao sell papel no estabelecimento doscampos de treino de Kongwa e Nachingwea, na Tanzania, e notava:A linha polftica e a disciplina militar que o camarada Samora foi capazdeinculcar no esplrito dos militantes nestes dois campos agora mesmo servemcomo elementos basilares da luta de liberta do nacional, sem os quais anossa lutatalvez ndo tivesse progredido tanto durante os U'Itimostres anos e meio (1).(1) Entrevista jS citada do autor com o coronel Mafudh.(6 ) Documentos Base da Frelimo, Maputo, 1977, p. 72.

96 IAIN CHRISTIESamora era um dos vdrios revoluciondrios que tinham sido cooptados para oComite Central em vdrios momentos apos a sua eleiqdo pelo primeirocongresso,em 1962. Entre os outros membros cooptados estavam o secretdrio para. aSeguranga Joaquim Chissano, o secretario para. a Educagdo Armando Guebuza eo secretdrio para a Informagdo Jorge Rebelo, homens que partilhavam aperspectiva marxista de Samora. No segundo congresso todos elesforam eleitospara um novo Comit6 Central, alargado de 20 para 40 membros e incluindocomandantes da frente de combate.Antes do segundo congresso, o Comite Central tinha fung6es legislativas eexecutivas. 0 congresso mudou isso e criou um comit6 executivo, de algumaforma o ogoverno>> da Frelimo. Era composto pelo Presidente Mondlane, peloVice-Presidente Uria Simango e pelos secretdrios dos vdrios departamentos. Entreestes estavam Samora e os tr8s outros secretdrios acima mencionados, bern como

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membros fundadores como Marcelino, dos Santos, secretdrio do Departamento deAssuntos Polfticos, e Mariano Matsinhe, secretdrio do Departamento do Interior.0 nu'cleo da direcqdo do pos-independ8ncia jd estava estabelecido (Samora,Chissano, Guebuza, Rebelo, Marcelino dos Santos e Matsinhe tornaram-se todosmembros do primeiro Bureau Polftico do Partido Frellmo. 0 principal0'rgdo dedirecq5o, de dez membros, foi eleito no terceiro congresso, em 1977, dois anosapo's a independ8ncia).0 segundo congresso da Frelimo f6i um triunfo para Mondlane. A sua poslqdocontra o tribalismo e o racismo e aquilo que era definido como <<regionalismo>>- exemplificado pelos planos separatistas de Nkavandame e da UNAR- foiaprovada. A resolugdo final mostrava ainda um especial apreqo peloDestacamento Feminino no exe'rcito guerrilheiro e condenava os que se opunham'a sua exist8ncia.Um dos aspectos mais significativos do congresso f6i o facto de ele terdecorridono interior de Mogambique, com Mondiane a presidir pessoalmente.A Frelimotinha anunciado previamente que o encontro se realizaria nas zonas libertadas, deforma que a forga a6rea portuguesa andava 'a procura do local e, na realidade,descobriu-o - a1gumas horas tarde de mais.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 97Era a terceira visita de Mondlane 'as zonas libertaclas nesse ano. EmFevereirotinha estado em Cabo Delgado e em Maio no Niassa Ocidental. 0 antigo professoruniversitairio e funcioio clas NU ndo era urn revolucion' io de cadeirade bragos.Tinha o respeito e o apoio dos guerrilheiros e, apo's a sua reeleiqdo no congresso,eles carregaram-no aos ombros pelo mato, cantando e dando vivas enquanto eleria e levantava o punho no ar na saudagdo revolucionairia.A festa ndo durou muito.Na Tanzania Nkavandame e o seu grupo opuseram-se abertamentes decis6estomadas no congresso. Ern Agosto os tanzanianos convocararn uma reunido paraa cidade portudria de Mtwara, perto da fronteira mogambicana, numa tentativa deconseguir a reconciliagdo. A tentativa falhou, corn Nkavandame ainsistir em queele iria criar um movimento separatista em Cabo Delgado e os tanzanianos arecusarem-se a apoia-10.Nkavandame entrou rapiclamente em acqao, enviando alguns dos seus apoiantespara a fronteira, armados e com instruq6es para tentar impedir quaisquerguerrilheiros da Frelimo de atravessar para Cabo Delgado. Em Dezembroconseguiram um golpe espectacular ao assassinarem o vice-chefedo Estado-Maior de Samora, Paulo Samuel Kankomba, quando estava para atravessar oRovuma. 0 Comite' Executivo reuniu-se a 3 de Janeiro e retirou a Nkavandametodos os seus postos. Ele f6i informado desta decisdo atrav6s de uma carta deMondlane, que dizia que <<por uma ou outra raz5o Mzee Lalzaro tornou-se urninimigo da Frelimo>>.Menos de urn m8s mais tarde Mondlane era morto numa explosdo ern Dar-es-Salam. A catdstrofe de 3 de Fevereiro de 1969 f6i descrita na revista MozambiqueRevolution:Nacluele dia, de manhd cedo, o nosso Presidente f6i para.

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o escrit6rio e trabalhou com vdrios camaraclas. Cerca das 10 horas pegou nocorreio recebido e f6i para casa de uma amiga, um lugar sossegado, para podertrabalhar sem ser perturbado. Entre o correio clue levou com eleestava urn livro,embrulhado e enderegado a ele. Logo que chegou 'a casa

98 IAIN CHRISTIEcomegou a abrir o correio. Pegou no livro e rasgou o papel em queestavaembrulhado. Quando abriu o livro houve uma grande explosdo quematou o nossoPresidente. No decurso das investigag6es a poll'cia (CID) da Tanzania descobriuque, dentro do livro, estava uma bomba, colocada de tal formaque explodisse quando o livro fosse aberto.Nesse momento Nkavandame precipitou-se a atravessar o rio Rovuma, mas ndopara iniciar um movimento guerrilheiro separatista. Foi juntar-se aos portugueses.Enquanto caminhava penosamente atrave's do mato ele devia, muitoprovavelmente, sentir-se satisfeito por ter perdido a discussdo corn Samora sobreas posig6es militares portuguesas junto A fronteira. Foi num clesses postos,Nangade, que ele estabeleceu contacto com os militares portugueses (7).Nos primeiros dias de Abril de 1969, Nkavandame anunclou que a suadeserqdosignificava que a guerra tinha acabado e que os maconcles deviam depor asarmas. Milhares de panfletos, assinaclos por ele, foram lanqados sobre CaboDelgado por avi6es portugueses. Um funciondrio governamental, em. Lisboa,declarou: <<Isto pode significar o fim da Frente de Libertagdo deMogambique.>>A deser do de Nkavandame causou muita controve'rsia no estrangeiro mas f6iuma bagatela para a Frelimo. As suas prdticas exploradoras e hostiliclade aosguerrilheiros tinham-lhe feito perder a sua base de apoio em CaboDelgado. 0 querealmente abalou o movimento foi o assassinato de Mondlane. Ele tinha sido oarquitecto da unidade nacional e o si'mbolo, em carne e osso, de um pal's ernconstrugdo.0 chefe do CID da Tanzania, Geoffrey Sawaya, trabalhou no caso corn acooperagdo da Interpol e ficou estabelecido que o assassinato foiplaneado pelapoli'cia secreta portuguesa, a PIDE. A pista clas pilhas usadas no engenhoexplosivo levou ate' uma loja de Lourengo Marques, a Casa Pfaff.C) <<Chefe Guerrilheiro da Frefirno deserta>>, International Herald Tribune,Paris, 4 de Abril de 1969.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 99Ao longo dos anos foram emergindo os nomes de pessoas suspeitas deenvolvimento.Uma reportagem investigativa sobre outro assassinato, que apareceu no jornalbritdnico Sunday Times em 1975, mencionava de passagem que havia oprovasindirectas>> de que um operacional da PIDE chamado Casimiro Monteiro foiquem enviou a bomba a Mondlane. Entre as realizaq6es profissionaisde Monteiroesteve o assassinato do dirigente antifascista portugues Humberto Delgado, emEspanha, em 1965. Depois do golpe de Estado portugues de 1974 desapareceumas foi julgado 'a revelia e condenado a 28 anos de prisdo. Em 1981 o jornal

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Sunday Times de Joanesburgo reportou que Monteiro estava a viver na Africa doSul e estava com a autodenominada Resist8ncia Nacional de Mogambique,lutando contra o governo de Samora Machel. Monteiro, que nasceu em Goa, lutoudo Wo de Franco, em Espanha, procurado pela poll'Cia britanica como suspeitode assassinato, n5o tinha outras relaq6es com Moqambique para al6m do facto de16 ter trabalhado para a PIDE.Ha indicag6es de que a PIDE teve cu'mplices dentro da Frelimo paralevar opacote para os escritArlos da Frelimo e garantir que seria o pro'PrioMondlane aabri-lo. No entanto, ninguem fol levado a julgamento e o mais pr6ximoa quepodemos chegar da identificaqdo desses cu'mplices e' um artigo do jornalbritdnico The Observer. Dizia que a polfcia tanzaniana tinha dois suspeitosprincipais - Ldzaro Nkavandame e Silv6rio Nungu, o secretdrio administrativonos escritArios da Frelimo em Dar-es-Salam. 0 artigo afirma que Nungu foiapanhado quando tentava desertar para os portugueses e morreunuma greve deforne (1).(1) Outras teorias sobre o assassinato de Mondlane foram sendo, apresenWas aoIongo dos anos, mas as citaq6es escolhidas sdo de escritores que estavam maisbern colocados que muitos outros para chegar verdade. A refer8ncia aNkavandame e/ou Nungu como os provdveis cOmplices da PIDE no assassinatoapareceu no The Observer de 7 de Fevereiro de 1972. 0 artigo foi escrito por umjornalista britAnico baseado em Dar-es-Salam, David Martin, que conheceuMondlane e passou tr8s anos a tentar chegar ao fundo do caso. The Sunday Timesde Londres mencionou o possfvel envolvimento de Casimiro Monteironoassassinato num artigo de Stephen Fay e Ant6nio de Figueiredo de 20 de Janeirode 1975. Os autores indicavarn que as suas revelag6es se

100 IAIN CHRISTIEMondlane teve um funeral de Estado corn honras militares no cemit6rio deKinondoni em Dar-es-Salam. Julius Nyerere, abalado com a perda de um amigo ecamarada na luta pela liberdade de Africa, esteve presente juntamente. commuitos membros do seu governo. Dezassete anos mais tarde Nyerere voltaria aestar de p6, com a cabega inclinada, junto do caix5o de urn. Presidente daFrelimo, o sucessor de Mondlane.No momento do funeral de 1969 em Kinondoni, no entanto, n5o era claroquemseria o pr6ximo presidente. Seria Samora, o comandante das forqas da Frelimo,um homem que ndo f6i membro fundador mas tinha o apoio dos guerrilheiros?Seria Marcelino dos Santos, a figura paternal e o principal te6rico? Ou seria oreverendo Uria Simango, um homem com pouco contacto com as forqascombatentes e uma teoria confusa mas que estava na posiqdo-chave de vice-presidente?Seria a pr6xima sessdo do Comite' Central a decidir, mas Simango imediatamenteassumiu o poder nos dias que se seguiram ao assassinato de Mondlane. Isso ndodurou muito. Quando o Comit6 Central se reuniu, em Abril, foram levantadasquest6es sobre as suas liga 6es com as actividades de homens comoNkavandamee Gwengere e ele ndo conseguiu vencer a eleiqdo. Em vez disso foi formado umtriunvirato com Samora, Marcelino dos Santos e Simango.

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Simango ficou furioso. Em Novembro publicou um documento mimeografadointitulado <<Triste Situaqdo na Frelimo>>, expressando simpatia por Gwengere,Nkavandame e Nungu e acusando os seus colegas na direcqdo de conspirarempara o matar. Era particularmente hostil com Samora, Chissano, Marcelino dosSantos, Guebuza e o antigo colega de enfermagem de Samora, Aur6lio Manave,bern como com a viu'va de Mondlane, de origem americana.0 documento inclufa ainda ataques indirectos ao propriobaseavam nos arquivos da PIDE capturados ap6s o golpe de Estado de 1974 emPortugal. Figueiredo tinha sido muito pr6ximo de uma das vitimas d6 Monteiro,Humberto Delgado. 0 Sunday Times de Joanesburgo revelou a presenqa deMonteiro na Africa do Sul e as suas ligag6es ao MNR em Dezembro de 198 1.

SAMORA-UMABIOGRAFIA 101Mondlane, incluindo uma alegagdo torpe e sem substancia de que a mulher emcuja casa o Presidente tinha morrido era sua <<namorada>>.Simanao, A semelhanga de Nkavandame e Gwengere, estava aparentemente Aespera de apoio da direcqdo tanzaniana. Na verdade, a Frelimo afirmou mais tardeque Simango tinha sido o dirigente de um grupo conscientemente contra-revoluciondrio que inclufa Nkavandame e Gwengere. Mas ndo conseguiu o seuobjectivo porque o apoio da Tanzania ndo chegou.Em Maio de 1970, numa sessdo do Comite' Central, Simango foi expulso. SamoraMachel foi eleito Presidente e Marcelino dos Santos Vice-Presidente. Umpequeno grupo de apoiantes de Simango seguiu-o para o deserto polftico.As autoridades coloniais portuguesas tinham vindo a observar de muito perto osacontecimentos traumalticos na Frelimo, metendo-se neles directamente, de vezem quando, para piorar a crise - em primeiro lugar com o assassinato deMondlane. Decidiram bater enquanto o ferro estava quente e lanqaram a suamalor ofensiva de sempre contra as forgas da guerrilha.Para dirigir superiormente esta ofensiva nomearam um novo comandante militarpara Mogambique, o general Kau'lza de Arriaga, que tomou posse a31 de Marqode 1970, no quartel-general portugu8s em Nampula. <<Kadlza>>,como Samorapassou a chamd-lo a partir daf, comegou a sua grande operaqdoem Maio, poraltura do momento em que o novo Presidente da Frelimo tomava conta do lugar.A operaqdo foi chamada <<N6 Go'rdio>>, uma referencia A lenda dos6culo IVsegundo a qual Alexandre, o Grande, cortou com um golpe poderoso da suaespada um n6 que ningu6m tinha sido capaz de desatar, construindo assim umgrande imp6rio asidtico.A <<espada>> de Kadlza para dar o golpe mortal Frelimo era forjadapor 35 000combatentes bern equipados e treinados, 15 000 toneladas de bombas e ddzias deavi6es e helic6pteros. 0 ndmero de soldados portugueses em Moqambique eramuito mais alto que 35 000; os 35 000 eram so para a N6 G6rdio.Foi, de muito longe, a maior forga jamais langada por uma potencia colonialcontra um ex6rcito de guerrilha africano. A forma como o novo <<CamaradaPresidente>> da Frelimo, 'a

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frente de uma organizagdo traumatizada, derrotou a No' G6rdio e prosseguiu nadirecqdo da luta de ibertagdo ate' 'a vit6ria 6 uma das grandes hist6rias da lutapela liberdade de Africa.

6. Mais crocodilos (1970-1974)Conseguimos muita coisa mas ndo devemos descansar no combate,devemos continuar a luta e, em particular, em dreas como esta,de onde o inimigo, foi expulso, ndo devemos descontrair mas,pelo contrdrio, inantermo-nos constantemente vigilantes.Sabem que, quando um crocodilo morde a1guim e essa pessoa escapa,o animal 9 capaz de caminhar muitos quil6metros seguindoo cheiro do sangue. Acontece o mesmo com o inimigo portugu&. Agoraele estd - isolado - na cidade, mas estd sempre a jazer planos para voltar econtinuar aquilo que iniciou.Samora MachelEsta historia pedagogica do crocodilo que come homens era uma daspreferidas deSamora nas reuni6es de aldeia nas zonas libertadas. Em Maio de 1970, asautoridades civis e militares portuguesas tinham, na verdade, sido expulsas deuma drea considerdvel. Nas zonas rurais de Cabo Delgado, especialmente, aFrelimo era <<um inimigo forte e bem organizado, controlando significativasmassas da populaq5o>>, nas palavras de

104 lAIN CHRISTIEKadlza de Arriaga (1). Mas os portugueses ndo tinham, de forma nenhuma,perdido a esperanga de regressarem das cidades.0 impacto principal da operaqdo N6 G6rdio foi dirigido contra as zonas libertadasde Cabo Delgado e comeqou precisamente na zona onde a Frelimo estava maisfirmemente implantada, 'a volta de Mueda, no Norte. <Ele [Kadlza] deve terimaginado que, como aquela zona estava completamente libertada, deveria haverum relaxe na vigildncia, disciplina e espfrito de luta , disse o comandante militarprovincial CAndido Mondlane (2).Candido, sobrinho de Eduardo, pode ter tido, ou ndo, razao sobre as raz6es paraKa6lza ter escolhido aquela zona como primeiro alvo. Mas a estrategia do generalportugu~s era muito mais sofisticada do que uma vaga esperanqa deque essescrocodilos pudessem apanhar a Frelimo a dormir. Ele tinha feito o seu trabalho decasa e tinha preparado um piano militar para reocupar as zonas controladas pelaFrelimo.Kadlza era um inimigo formiddivel para Samora. Perito reconhecidoem contra-insurreigao, ele tinha reorganizado a forqa a6rea e os pdra-quedistas da pot~nciacolonial. Era um engenheiro qualificado, um homem de neg6cios, uma autoridadenos usos estrategicos do poder nuclear e uma figura-chave nos bastidores dapolftica portuguesa.Em 1969 foi nomeado comandante das forqas terrestres em Mogambique. Nomesmo ano fez uma visita de duas semanas aos Estados Unidos, a convite doDepartamento de Estado. Manteve conversag5es corn o general Westmoreland,veterano do Vietname, e com o general da Forqa A6rea Ryan, antes de dar uma

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volta por instalaq6es militares em todo o pals. A Frelimo descreveu oconjunto daviagem como um <curso de formado> para a ofensiva do N6 G6rdio (3).(1) Kadlza de Arriaga falando na Radiotelevisio Portuguesa em 19 deMarqo de1971, citado pela Tempo (Lourengo Marques), n.0 269, de 30 de Novembro de1975.(2) Mozambique Revolution, n.' 46, de Janeiro-Abril de 1971.(3) Minter, William, Portuguese Africa and the West, Harmondsworth, p. 113, eMozambique Revolution, n.' 50, de Janeiro-Marqo de 1972.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 105Em 1970, quando se tornou comandante-em-chefe das forgas armadas ernMoqambique, Ka6lza tinha 55 anos e era general de tr6s estrelas, com a reputagdode ser um dos melhores militares portugueses. Mais tarde descreveu a suacampanha com todos os meios ao seu dispor contra os guerrilheiros de Samoracomo uma operagdo em cinco fases, que comegou em Maio de 1970 corn umacontra-ofensiva contra o avanqo para sul da Frelimo em Cabo Delgado. Asegunda fase comegou em Junho e tinha como objectivo cortar as viasdeabastecimento a partir da Tanzania, e a terceira fase, em Julho, envolveu ataquesem grande escala com o objectivo de destruir e ocupar as bases daFrelimo. Aquarta fase, em Agosto, envolveu uma reduqdo na actividade militarenquantoeram trazidas tropas frescas de Portugal, mas houve uma operagdointensiva delangamento de panfletos por avido. A quinta e U'Itima fase comegou emSetembro e tinha como objectivo fundamental impedir a Frelimo dese reagrupar(').Esta era a teoria. E comeqaram a aparecer na imprensa mundial grandes tftulosproclamando a derrota da Frelimo. Na opinido de a1guns observadores, a No'Go'rdio funcionou como uma mdquina bern oleada. 0 jornalista sul-africano WilfNussey, que seguiu de perto a guerra em Moqambique, escreveu em Outubrodesse ano:Quando recentemente [sic] Samora Machel se tomou oqirigente militar da Frellmo foi charnado de Che Guevara de Africa.Ele tomouposse no meio de uma onda de solidariedade e optimismo depois de meses deterri'vel luta interna pela direcqdo da Frelimo, deixada vaga pela morte A bombado Dr. Eduardo Mondlane. Desde essa altura as bases da Frelimo noNordeste deMoqambique, logo depois de atravessar o rio Rovuma a partir da Tanzania, foramdestrufdas, muitas das suas rotas de infiltraqdo estdo bloqueadas e a sua novaonda de assalto a partir da Zambia f6i obrigada a recuar. Centenas de guerrilheirosda Frelimo estdo mortos ou(4 ) Radiotelevis5o Portuguesa, entrevista citada.

106 IAIN CHRISTIEdesaparecidos. Foram perdidas toneladas de armas. Machel ainda tem algunsmilhares de homens no mato no Norte de Mogambique mas eles perderam ainiciativa. Uma s6rie de marretadas levou-os A desorganizagdo [ ... ]Usando arapidez e a surpresa, ele [Ka6lza de Arriagal desbaratou as concentraq6es daFrelimo. Ao patrulhar intensivamente as fronteiras da Tanzania e da Zdmbia,

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entre as bases colocadas ao longo delas, ele estd a estrangular o movimento dosguerrilheiros e os abastecimentos. Contra isto Samora Machel apenas ternsoldados a pe, embora na verdade bern armados e bern treinados, que, a longoprazo, ndo s5o adversanos para a mobilidade e o excelente servigo de espionagerncontrolados porum soldado tdo experiente como 6 Kadlza de Arriaga (1).Tr8s anos depois, dia por dia, de aquele artigo ser publicado, estava eu no cimo deuma colina em Cabo Delgado com Samora e o seu principal comandante, AlbertoJoaquim Chipande. Samora apontou para baixo, para o vale, com o braqo aindicar uma vasta area de floresta, e disse: <<Durante a N6 G6rdio as forqas deKa'lza fizerarn bombardeamentos de saturaga-o disto tudo para tentarem ver-selivres de n6s. Mas n6s continuamos aqui, e mais fortes do que nunca.>>A N6 G6rdio foi, como escreveu Nussey, ourna se'rie de marretadas>>, mas tinhatamb6m alguma coisa de um jogo. Kadlza tinha optado por uma campanhacom omaximo de publicidade, e, portanto, tinha que ter a1gurna coisa para. mostrar nofim. Isso e sempre dificil numa guerra. no mato e Ka'lza provavelmente lamentoumais tarde todo o barulho que fez 'a volta das suas marretadas. Samora manobroumelhor que ele e a N6 G6rdio fol urn fiasco com um prego elevado no moralmilitar portugu8s.No entanto as zonas libertadas apanhararn de facto muita pancada durante a N6G'rdio. Pessoas que estiverarn na zona dos bombardeamentos ainda hoje sofrerndo trauma psicol6gico provocado por esse pesadelo.(') The Star, Joanesburgo, 17 de Outubro de 1970.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 107Mas os homens e mulheres que enfrentaram a ofensiva No' Go'rdio mudaram ocurso da historia da Africa Austral.Os portugueses comeqaram, em Maio, por estabelecer um pequeno posto decomando molvel para facilitar a infiltraqdo para a drea da Base Beira, uma base-chave da Frelimo em Cabo Delgado. Esquadrilhas de 16 a 20 avi6es faziamdiariamente bombardeamentos ern zonas mais avanqadas, enquanto erarn trazidosbuldozeres para abrir uma picada que conduzisse 'a base.Depois disso Kadlza ja tinha capacidade para enviar por terra abastecimentos paracentenas de soldados que eram levados em helic6pteros escoltadospor caqas FiatG-91. Era a primeira vez que eram usados caqas em Cabo Delgado.C5ndidoMondlane recorda que havia oito helic6pteros a fazer viagens de ida e volta dabase recuada W A frente de combate e que, ao fim de tr6s dias, as tropas que elescarregavarn lanqaram um forte ataque contra a Base Beira. Fol a 12de Junho.Kau'lza haveria, mais tarde, de dizer que os resultados desse ataque foram<<magnfficos>>. No entanto Ca^ndido diz que <<ndo apanharam nada. Foi umcompleto fracasso para eles: os nossos combatentes jd tinham abandonado a basee nunca guarddmos la o nosso equipamento. Os portugueses limitaram-se aqueimar as palhotas>>.Nas descriq6es de Candido e de outros guerrilheiros que estavam em CaboDelgado na altura da ofensiva, as hist6rias de forqas portuguesasa capturarembases ja abandonadas surgiarn frequentemente. Os guerrilheiros pura e

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simplesmente deslocavam-se para outro local e construfam novas bases com omesmo nome de co'digo. Portanto, quando eu fui com Samora, em 1973, a umagrande base da Frelimo chamada Base Beira e perguntei como e' que ela tinhasido recapturada, ele explicou-me que ndo era a mesma base.Contudo, durante a No' Go'rdio, nem sempre foi possfvel uma retirada estrate'gicaordeira antes da chegada das forps portuguesas. Quando eram apanhados desurpresa, os guerrilheiros por vezes viam-se embrulhados em duras batalhascontra tropas muito bern equipadas. Duas bases importantes, a Central e aNgungunhana, foram tomadas apos seis batalhas ao longo de uma manhd.<<Tenta'mos repelir os soldados inimigos mas eles esta-

108 IAIN CHRISTIEvam pesadamente armados>>, disse o guerrilheiro Joaquim Gouveia, que tomouparte na defesa sem sucesso dessas bases (6).Mas nem as retiradas estrat6gicas nem as acq6es ffiteis de defensiva firme iriam,a longo prazo, ser muito lteis 'a Frelimo, e Samora estava muito consciente disso.Para ele o problema mais s6rio era que os portugueses estavam a tentar quebrar oelo vital entre os guerrilheiros e o povo. A sobrevivEncia do seu ex6rcito ernCabo Delgado dependia do apoio dado pelos camponeses, especialmente no quedizia respeito 'a comida. Os constantes bombardeamentos dos portugueses tinhamo objectivo de conduzir os camponeses para. as aldeias estrate'gicas criadas pelogoverno ou para o exflio na Tanzania, deixando os guerrilheiros asobreviverem Acusta de rafzes e frutos selvagens ou. a abandonarem a luta.Joaquim Gouveia recorda que, quando as forgas de Kallza entravarn em areasonde a Frelimo estava fortemente implantada, <<matavam toda a gente,criangas,velhos, mulheres - so' matavam, matavam. E levavam tudo - enxadas,catanas,jarros, ate' mesmo pil6es para moer o milho>>. Em zonas onde a Frellmoestivesse menos consolidada, as tropas cercavam os camponeses e colocavam-nosem aldeamentos, aldelas estrat6gicas. Gouvela recorda ainda queos avi6eslanqavam obombas incendidrias que queimavam tudo em que tocavam>> e armasquimicas que tinham um efeito ainda pior. <<Eles lanqavam essas bombas nasmachambas para as destruir e garantir que ndo ia haver colheitas no ano seguintee, portanto, o povo ficarta faminto [ ... ] Vinham da Africa do Sul, de avido. > (7)Ndo eram s6 os camponeses que ficavam A forne. Secava tamb6m a fonte dealimentos do guerrilheiro. Para evitar os massacres e a deslocagdoforgada para osaldeamentos, a Frelimo teve que transferir o maximo possfvel de populagdo civilpara zonas mais seguras, mas isso perturbava o ciclo de crescimentoi dosalimentos prejudicando o esforqo de guerra no ano seguinte. Samora tinha queenvolver os seus homens rapidamente(') Tempo, n.' 269.0 Tempo, idem,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 109num qualquer tipo de ofensiva. Discutiu a situagdo com alguns dos principaiscomandantes e com o seu elemento de ligaqa-o com o ex6rcito da Tanzania, ocoronel Ali Mafudh, que, anos mais tarde, recordou esses debates.

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Quando os portugueses envolveram forqas maciqas,Samora discutlu a estrategia da Frelimo multo cuidadosamente com Chipande,Pachinuapa, Mabote e outros comandantes da Frelimo. Decidiram dividir as suasforgas em pequenas unidades, chegando mesmo a grupos com a forqa de urnpelotdo, para o inimigo ndo ter um alvo concentrado. Eles marcharam para aretaguarda das linhas de abastecimento dos portugueses, atacando-os pelaretaguarda. Desta forma os portugueses foram forgados a parara ofensiva e air defender as suas bases recuadas.0 inimigo estava A espera de que a Frellmo reagrupassetodas as suas forgas, as concentrasse em zonas especfficas e travasse uma esp6ciede batalhas campais, de guerra convencional. Era isso o que os portuguesesqueriam, um alvo especifico de forma a poderem infligir o maximo deprejufzosem material e pessoal. Mas ndo Ihes foi t5o fdcil encontrar esse alvo porqueSamora e os outros comandantes tinhamestudado o conceito estrat6gico global desta operagdo (1).No seu livro sobre a revoluqdo mogambicana, o acad6mico britAnico BarryMunslow corrobora o ponto de vista de Mafudh atrav6s de entrevistas comguerrilheiros.Os guerrilheiros que estavam nos campos de treino naTanzania regressaram ao pal's e todos participaram na contra-ofensiva. 0 ex6rcitocolonial fol atacado por camponeses com armas a fingir ao lado de guerrilheiroscom kalashnikoves. Os bombardeamentos constantes, no princfpio, perturbaram aproduqdo de dia, mas os camponeses depressa passararn a cultivar os seus camposa noite. Quando os ata(,I) Entrevista do autor corn o coronel Mafudh ern Janeirode 1987.

110 MIN CHRISTIEques atingiam uma certa zona, as pessoas dispersavarn em pequenos grupos,abandonando as casas que tinham sido construfdas sob o escudodas drvores efugiam para perto das bases dos guerrilheiros, onde podiam ser maisberndefendidas. A Frelimo entdo removia as pessoas da area afectada para outra. Umgrupo de guerrilheiros bombardeava o inimigo da frente com morteiros, enquantooutro grupo passava para a retaguarda dos invasores para minaras estradas quetinham sido limpas pelos tractores de lagartas. Camponeses e milicianostrabalhavam em conjunto com as FPLM cortando drvores e cavando valas parabloquear as estradas.Entrar nas zonas libertadas era relativamente f6cil, mas voltar a sair la ser maisdiffcilNessa e'poca o pr'prio Samora evitava falar muito em publico sobrea derrota daN6 G6rdio, percebendo que a guerra estava longe de ter acabado. Mesmo depoisde a operagdo ter sido triturada ate' parar, contudo, Ka'lza vociferava dizendo quetinha sido uma vit6ria. Foi muito pressionado para apresentar provas maisconvincentes do que viagens de jornalistas sul-africanos A margern sul doRovuma, de onde podiam olhar para a Tanzania. Eles podiam ter feito omesmoantes da N6 G6rd1o' das posiq6es militares que Samora tinha decidido ndo atacar.

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Ainda hoje e' diffcll saber ao certo quais foram as perdas, humanase materlais, deambos os lados. As declaraq6es da Frelimo e dos portugueses parecern estar afalar de guerras diferentes. A Frelimo diz que abateu ddzias de avi6es. Osportugueses dizem que nem um s6 avido ou helic6ptero f6i abatido.Hd umabismo semelhante nas refer8nclas a baixas.0 que sabemos, no entanto, 6 que a ofensiva portuguesa em Cabo Delgadocomegou a ser forqada a parar no principio do 61timo trimestre de1970. Ascausas e o efeito desse acontecimento sdo igualmente interessantes.Houve duas causas principais. Uma era a flexibilidade e mobilidade dosguerrilheiros e civis de Samora, que lhes permitiram(1) Munslow, Mozambique: The Revolution and its Origins, p. 116.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA I 11evitar perdas macigas e ir mordendo as linhas de abastecimento doinimigo com.urn efeito muito desmoralizador.A outra causa foi que, no momento-chave, em Outubro de 1970, os homens deSamora lutaram para atravessar o rio Zambeze na provincia de Tete, abrindoefectivamente uma nova frente de guerra. Ka'lza foi apanhado na sua propriaarmadilha. Tinha escolhido o terreno de batalha decisivo - CaboDelgado -,apostando ern que Samora iria colocar todos os homens e armas quetivesse nadefesa das posigoes da Frelimo nessa frente. Mas Samora fez-lhe uma fintaclaissica ern Tete, com o seu avango para sul do Zambeze numa zonade muitomaior importancia economica para os portugueses do que Cabo Delgado. Kau'lzando teve outra escolha sendo transferir tropas para Tete para defender, para al6mde tudo o mais, o gigantesco empreendimento hidroel6ctrico de CaboraBassa.No que diz respeito aos efeitos do colapso da N6 Go'rdio a problemiticacontinuou por muitos anos. Nos anos 80 os racistas brancos da Africa Australainda ndo tinham desistido de tentar fazer reverter a vito'ria de Samora.Nisto estd envolvido urn problema psicolo'gico. Meteram. na cabega dos brancos,desde a infdncia, a sua pretensa supremacia racial, e parte dessa supremacia emilitar. 0 sofrimento de Mogambique apos a independencia deve-se, numa grandeparte, ao desejo de parte dos sul-afficanos brancos racistas de mostrarern queSamora foi ingenuo ao pensar que podia enfrentar e derrotar o poder militarbranco.Mas, para al6m. deste problema a longo prazo, a vito'ria de Samora sobre Kadlzateve tr8s efeitos positivos imediatos.Urn foi que os guerrilheiros e o povo das zonas libertadas puderarn ver muitoclaramente que a morte de Mondlane n5o tinha acabado corn o seu movimento.Continuavarn a ter uma direc9do forte e capaz.Ern segundo lugar, os camponeses de Cabo Delgado puderam ver que Samora erasensivel ao aspecto, mais importante -as suas vidas: o ciclo agrfcola. A suaestrategia levou os militares portugueses a retirar-se imediatamente antes da epocadas chuvas de Verdo de 1970-1971. Houve tempo para semear os produtosalimentares.

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Em terceiro lugar, talvez o mais importante, o descalabro forqou os militaresportugueses a pensar no futuro. A N6 G6rdio foi decisiva. As forgas coloniaisnunca mais voltariam a tentar uma ofensiva naquela escala. Urn artigo muitoperceptivo na Mozambique Revolution notava que:As grandes perdas sofridas em homens e material criaram novas contradig6esentre as autoridades colonialistas: um forte movimento encabegadopelos oficiaisque estiverarn envolvidos na guerra desde o principio, baseado nasuaexperi~ncia, op6s-se ao que chamavam «aventuras militares , quesdoextremamente caras e nao atingem nenhuns resultados (").Era em Dezembro de 1970, mais de tres anos antes de o Movimento das ForqasArmadas de Portugal derrubar o govemo fascista de Lisboa e aceitar os termospara a paz da Frelimo.Desde o momento em que se tornou Presidente da Frelimo, a 22 de Maiode 1970,at6 ao fim daquele ano, Samora esteve muito absorvido corn o problema militarde responder A N6 G6rdio, mas logo que assumiu o lugar comeqou a lidar comoutras quest6es que teriam importantes repercuss6es no futuro. Uma das quest6eseram as relag6es internacionais da Frelimo, a outra era a luta de libertaqdo doZimbabwe.Mais amigos, menos inimigosUma das primeiras acq6es diplomaticas depois da eleigdo de Samora paraPresidente foi a criaqdo de uma abertura em rela9o ao Vaticano. Nos princfpiosde Junho comeqaram os preparativos para uma audiencia corn o Papa. Era umaacqdo conjunta envolvendo os tr~s movimentos de libertaqdo das col6niasportuguesas em Africa: a Frelimo, o Movimento Popular de Libertaqdo de Angola(MPLA) e o Partido Africano para a Independencia da(")) Mozambique Revolution, n.' 44, de Julho-Setembro de 1970.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 113Guine e Cabo Verde (PAIGC). A I de Julho o Papa recebeu o Presidente doMPLA, Agostinho Neto, o secretario-geral do PAIGC, Amflcar Cabral, e orecem-eleito vice-presidente da Frelimo, Marcelino dos Santos.Samora n5o tinha boa opinido sobre a Igreja Cat6lica, em parte, aoque se sup6e,devido 'as suas experie^ncias de inflincia e em parte devido ao contfnuo apoio doVaticano ao colonialismo portugues. A Frelimo denunciou a visita do Papa aPortugal em 1967, notando que ele <<condecorou o chefe da Gestapo portuguesa[PIDE], o major Silva Pais>>. No entanto a audiencia a Marcelino dosSantos eradesejada e teve lugar.Alguns anos mais tarde Samora explicou-me, numa conversa, a sua atitude emrelaqdo 'a Igreja Cato'lica e A religido em geral. Ele encarava a religido comouma forma de superstiqdo deliberadamente inventada e sofisticada. <<A Igreja 6uma organizaqdo - uma organizaqdo polftica. Quando a sua polftica n5o podia serjustificada de qualquer outra forma, inventaram um deus para assustar aspessoas.>>Mas ndo queria uma confrontagdo directa com a Igreia Cat6lica,que tinha umaconsiderdvel influencia em Moqambique. <<Ja temos o que chegue em mdos semmetermos tambe'm o Vaticano>>, disse nessa conversa antes da independencia.

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Esta posiqdo foi, sem dlvida, o que o levou a apoiar a ideia de Marcelino dosSantos se encontrar com o Papa. Para al6m disso, Samora sabia que, apesar doque ele pensava pessoalmente do Vaticano, milh6es de portugueses - incluindosoldados - consideravarn o Papa infalivel. Qual seria o impacto nelesde umencontro entre o seu dirigente espiritual e homens descritos pelo seu governocomo oterroristasOA audi8ncia f6i um triunfo para al6m de todas as expectativas. 0 Papadisse aostres dirigentes guerrilheiros que a Igreja Cat6lica apoiava a luta pela justiqa, pelaliberdade e pela independencia nacional (11). 0 governo portuguesretirou o seuembaixador no Vaticano e, embora mais tarde ele tenha regressado, as relaq6esentre Lisboa e a Santa S6 nunca mais foram o mesmo.(I ') Ibidem.

114 lAIN CHRISTIEA audincia foi tamb6m um encorajamento a missionirios cat6licos perturbadospela brutalidade do regime colonial. Em Maio do ano seguinte os Padres Brancosretiraram-se de Mogambique e dissociaram-se do Estado colonial. 0padre CesareBertulli, o Superior Regional dos Padres Brancos em Mogambique, descreveu empormenor as horrfveis torturas praticadas contra os mogambicanos suspeitos de seoporem ao regime colonial. Criticou tamb6m os bispos por fazeremvista grossaem relagdo 'a injustiga baisica do colonialismo:E se os pastores sentissern na pr6pria carne aquilo quetdo generosamente esti reservado as suas ovelhas? Talvez a sua perspectiva fossemais clara e eles mudassem o seu pensamento e denunciassem o estadodeinjustiga que 6 a causa primiria de todas as outras injustigas. Porque qual 6 autilidade de denunciar em privado uma ou outra das inumerdveis injustigas se acausa de onde elas derivam nao 6 denunciada? (12)Samora comoveu-se com a moral da posiqao de Bertulli. Em 1981 fezuma visitaa Itilia a convite do Presidente Sandro Pertini. Era uma visita oficial, que inclufaconversag6es sobre as relaq6es bilaterais e a situagio internacional. Mas eleinsistiu em realizar tamb6m encontros privados e um deles foi paracolocar umacoroa de flores na campa do padre Bertulli.Mas, voltando a 1970, nao houve nada de sentimental no encontrode Marcelinodos Santos com o Papa. Era parte de uma polftica bern pensada que tem feito panedo arsenal diplomdtico da Frelimo desde o tempo de Mondlane at6 hoje. Samorachamava-lhe a polftica de <fazer mais amigos e menos inimigos>>. Na pniticaisso significa procurar aliados em locais improvdveis, ao mesmo tempo que seprocura reduzir o apoio internacional ao inimigo.Era claro que ndo seria possfvel levar o Papa a gritar o<Viva a Frelimo>>, mas 6possfvel imaginar o efeito de choque na po(12) Declaraqdo do padre Bertulli,citada em Mozambique Revolution, n.' 48, de Julho-Setembro de 1971.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 115pulaqdo portuguesa, maloritariamente cat6lica, ao saber que o Vaticano comegavaa pensar a s6rio sobre os aspectos positivos e negativos das guerras coloniais.

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A mesma polftica da Frelimo estal por detrds do esforqo permanente para acabarcom o apoio dos governos ocidentais ao colonialismo portugues. Os governosescandinavos responderarn com apoio ndo-militar 'a Frelimo e a1gumas medidasecono'micas contra o colonialismo portugues. A Holanda tornou-se, mais tarde, oprimeiro governo ocidental a dar apoio A Frelimo sem condig6es - o dinheiropodia ser usado para fins militares -, embora o governo holande^s dissesse queesperava que a ajuda fosse encaminhada para fins menos controversos.Mas as potEncias da OTAN, especialmente os Estados Unidos, a Grd-Bretanha, aFranga e a Alemanha Ocidental, apoiaram permanentemente o regime portuguescorn uma colaboraqdo militar e assist8ncia economica. Tudo o que aFrelimopodia fazer nesses pal'ses era encorajar o estabelecimento de associaq6es desolidariedade com Mogambique e grupos de pressdo e fazer campanhas paramudangas atraves das Naq6es Unidas e outras organizag6es internacionais.Mondlane tinha descoberto que as lnicas fontes de armamento e treino militarpara a Frelimo eram os pafses socialistas e africanos. Ele conseguiu fazer umaponte sobre o conflito sino-sovi6tico e obter esse tipo de apoio querde Moscovoquer de Pequim. Samora manteve esta polftica.De 1971 W A independe^ncia, Samora usou a sua extraordindria energia para.andar para tras e para diante entre as frentes de guerra em Mogambique e ospa'ses socialistas e africanos, consolidando a posiqdo da Frelimo nessas tre^sareas vitais.Apesar de ter sido muito abalado pela morte, em Dar-es-Salarn, da sua jovernesposa Josina a 7 de Abril de 1971, voltou rapidamente para. as frentes de guerra.Andou vArias semanas com as suas tropas nas provfncias de Niassa e Tete,visitando as zonas libertadas e ouvindo os problemas dos alde6es.Depois disso, em Junho, fez a sua primeira viagem A Europa comoPresidente daFrelimo. Ern So'fia estabeleceu relaq6es polfticas pessoais comTodor Jivkov, odirigente bllgaro, e em Bucareste com o Presidente Nicolae Ceausescu daRomenia.

116 1AIN CHRISTIEA viagem levou-o tamb6m A Unido Sovietica e A Alemanha de Leste paraconversaq6es com as respectivas autoridades e A Italia, oncle se encontrou comdirigentes do Particlo Comunista.Esta missdo levou a um reforgo clas relaq6es corn os paises socialistas e foidescrita pela Frelimo como <<um sucesso completo>>. A MozambiqueRevolution comentava, mais tarde, que <<esses pafses estiveram ao nosso ladodesde os primeiros momentos da luta, fornecendo armas, meiosde transporte,roupa e outros materiais necessa'rios>>. 0 mesmo artigo descrevia os EstaclosUniclos, a Franga e a Grd-Bretanha como oaliaclos de Portugal>> e acrescentava:<<Se n5o fosse pelas armas, dinheiro e tecnicos que os pafses imperialistasfornecern a Portugal, ndo teria havido guerra nos nossos pafses. Por essa raz5odevemos considerd-los como nossos inimigos.>> (13)Samora tinha informado os aliados socialistas sobre a situaqdo ernMogambiquedepois da N6 Go'rdio. Mas esses aliaclos tinham ouvido, tal como todos os outrosobservaclores da cena moqambicana, os clamores de vit6ria, ou devit6ria

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pr6xima, dos portugueses sobre a Frelimo. A morte de Mondlane, a deserqdo deNkavandame, a expulsdo de Simango e a ofensiva N6 G6rdio eram realicladesclue teriam levado o mais firme dos apoiantes a fazer uma pausa parapensar antesde investir mais recursos no que poderia ser um movimento em desagregagdo.Ndo havia melhor forma de provar clue a Frelimo tinha vencido a ofensivaportuguesa do clue levar jornalistas sovi6ticos ao interior de Moqambique paraeles verern por si. Portanto, quando voltou a Africa, Samora foi muitorapiclamente A Zdmbia e depois 'as zonas libertaclas da provifficiade Tete,levando consigo um grupo de cinco jornalistas e operaclores de camara. Chissano,entretanto, tinha escoltado um reporter do Pravda numa volta por Cabo Delgado.(") De notar que este ndmero da Mozambique Revolution (n.1 48) traz asprimeiras fotografias de Sarnora sem fardamento de combate. Usavagravata e umfato de corte pouco ortodoxo. Mais tarde desenvolveu um gosto mais conservadornos fatos e tornou-se conhecido como um dos estadistas afficanos que se vestiamcom mais bom gosto.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 117As viagens de jornalistas estrangeiros s zonas libertadas ou as oexcurs6es 'aselva>>, como um quadro Ihes chamou numa conversa comigo - eram sempre umpouco arriscadas. Os portugueses sabiam que quase sempre esses Jornalistas eramacompanhados de dirigentes superiores da Frelimo e, portanto, faziam grandesesforqos para tentar saber quando e onde essas visitas teriam lugar. ComfrequEncia jornallstas tinham a tend8ncia de se gabar junto dos amigos e colegasde que estavarn prestes a realizar uma dessas miss6es, e, portanto, havia umproblema de seguranga. A informaqdo podia chegar aos portugueses e elesestariam preparados. E isto poderia significar morte sdbita parao jornalista e parao dirigente da Frelimo que o acompanhava.Portanto, muito estava pendente das deslocaq6es de sovi6ticos a Tete e CaboDelgado. Todas as afirmag6es sobre terrIt6r1o controlado pela Frelimo quetinham sido feitas por Samora Machel ern Moscovo, Bucareste, S6fia e Berlimestavam a ser testadas. Se ele n5o tivesse sido completamente franco com os seushospedeiros rapidamente seria descoberto.Ambas as viagens tiveram sucesso. <<Estou convencido de que o povomoqambicano dirigido pela Frelimo vencera a sua luta pela libertaqdo>>, afirmouOleg Ignatiev, do Pravda, que acompanhou Chissano. Anatole Nicanorov, doIzvestia, que andou corn Samora, escreveu: <<A Frelimo e' o dnico governo naszonas fibertadas. E o governo da Frelimo e o governo do Moqambique dofuturo.>>0 estilo de direc9do de Samora teve um grande impacto. Pavel Mikhailev, doKomsomolskaya Pravda, escreveu: <<O Presidente da Frelimo soube sempreencontrar uma finguagem comum - uma linguagern baseada nos sentimentos emaneira de estar do povo. Ele pr6prio saiu do povo e, portanto, conhece apsicologia dos camponeses, as suas necessidades e problemas. Quando fala emencontros populares sabe encontrar os exemplos apropriados, as comparag6escorrectas, relacionadas com a vida do dia-a-dia, e dessa forma entra

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profundamente nos coragoes e mentes do povo A Frelimo tem um dirigentecorn estatura.>>Foi esta a mensagem que seguiu para a Unido Sovie'tica e para os seus aliados e,dado que vdrios dos reporteres eram

118 IAIN CHRISTIEcorrespondentes temperados em outras guerras de liberta do na Asia e na Africa,ndo ha' dfivida de que as suas reportagens foram tomadas a s6rio.Tendo garantido dessa forma a continuidade do apoio do bloco sovi6tico, Samorafez o que poucos dirigentes de movimentos de libertagdo poderiamter feitonaquela 'poca. Fez uma viagem oficial A China, que, na altura, tinha comeqado adescrever a Unido Sovi6tica como um perigo maior do que o imperialismo dosEstados Unidos.0 relacionamento da China com os movimentos de liberta9do da Africa tinha sidomuito diferente do da Unido Sovietica. Moscovo tinha tend8ncia para decidirsobre quais dos movimentos eram as aut8nticas organizaq6es de libertaqdo emcada um dos pafses africanos em causa, passando a partir dai a apoiar essemovimento, excluindo todos os outros. Os <<aut6nticos>> eram setemovimentosid bem consolidados: 0 Congresso Nacional. Africano (ANC) da Africa do Sul, aOrganizagdo dos Povos do Sudoeste Africano (SWAPO) da Narnibia,a Frelimode Mogambique, o MPLA em Angola, o PAIGC na Guine-Bissau e Cabo Verde,a UniAo dos Povos Africanos do Zimbabwe (ZAPU) e o Movimento Nacional deLibertagdo das Comores (MOLINACO).A China, por outro lado, era menos previsfvel, ap6s o seu rompimento com aUnido Sovietica no inicio dos anos 60. Pequim tinha fornecido treino militar earmas a muitos dos <<aut8nticos>>, mas a tensdo com Moscovo tendia a levar oschineses para gestos pu'blicos de amizade com outros grupos, aparentemente pela1nica razdo de eles ndo serem apoiados pela Unido Sovietica.E claro que esse ndo era o melhor crit6rio para. determinar quer alegitimidadequer a eficalcia de urn. movimento nacionalista. Na tentativa de obter o selo deaprovaqdo dos revoluciondrios chineses, agentes da CIA dos Estados Unidos, daespionagem portuguesa e do regime do apartheid na Africa do Sul transformaram-se miraculosamente em maofstas.Um dos grandes problemas para figuras como Jonas Savimbi, em Angola, era queele nunca foi capaz de explicar coerentemente como e que conseguia as armas e 0dinheiro. Algumas

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 119noti'cias favoraveis ao seu grupo UNITA, na Age^ncia de Notfcias Nova China,resolveram esse problema. Quer ele tenha recebido apoio materialda China quernao, as pessoas acreditavarn que sim e isso era ltil para urn homem que seapresentava como urn revoluciondrio.Contudo, a politica chinesa em relagdo aos movimentos de libertagdo jd era malsclara na segunda metade dos anos 60. Os dirigentes chineses mantiverarn as suaslinhas abertas para os membros dos <<Autenticos Sete>> e, ao fazer amizade comorganizag6es fora do grupo eles, nurn dos casos, escolheram um verdadeiro

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movimento de libertaqdo que encarava com seriedade a luta armada etinha apoiode massas. Era a Unido Nacional Africana do Zimbabwe (ZANU). Osguerrilheiros da Zanu receberam armas chinesas e treino de guerrilha que foramvitais na luta para derrubar o regime rodesiano.A Frelimo era um <<autentico>> mas tinha conseguido manter-se em boasrelaq6es com os chineses. Contudo, no momento em que Samora foi aPequim,em Agosto de 1971, a atitude da direcqdo chinesa para com Moqambique era,para dizer oimo, impenetrdvel. Dizia-se que, no m^s anterior, diplomatas chineses em Lusakatinham dado mais de 8000 d6lares Coremo, um grupo de exilados moqambicanoscorn ligaq6es 'a Unita, de Angola, e a outro dos <<ndo-aut8nticos>>, o CongressoPan-Africano (PAC) da Africa do Sul. Esta entrega era apenas partede urndonativo que tinha sido prometido a uma delegaqdo da Coremo que tinha visitadoPequim ern Maio. Dizia-se que tamb6m faziam parte do pacote armas e treinomilitar para a Coremo (14).Apoiantes da Coremo tinham desencadeado uma operaqao militar emTete em1965 mas aparentemente n5o tinha sido feito nenhum trabalho no terreno e foramimediatamente esmagados. Cerca de 6000 mogambicanos fugiram para aZaAmbia devido 'a onda de repressdo que se seguiu e o governo daZAmbiaassumiu, inicialmente, que eles eram apoiantes da Coremo, ideia que( '4) Xhina and OAU: a Curious Sidelight>>, Lion Features, Munique,Seternbrode 1971.

120 IAIN CHRISTIEse verificou ser falsa quando foram interrogados. Eduardo Mondlane escreveu,mals tarde, que os refugiados nunca tinham ouvido falar da Coremoe <<os queestavam ligados a a1gurn partido eram membros da Frellmo>> (11).Talvez as palavras de Mondlane fossern verdadeiras mas, nos princfpios dos anos70, a Coremo ainda tinha uma presenga em Tete e chegou a haver combates entrea Frelimo e a Coremo. Isto fol confirmado ao autor, naquela 6poca, por Marcelinodos Santos.No entanto, em 1971 a Coremo ndo tinha nenhurn significado especial ern termosmilitares ou polfticos e ndo era reconhecida pela Organizagdo, de UnidadeAfricana como um movimento de libertagdo. Mas tinha havido umdesenvolvimento que levou os dirigentes da Frelimo a prestar maior atenqdo.Quando Samora estava em Tete, em Julho, emergiu em Lusaka urn novosecretdrio para as Rela 6es Externas, da Coremo: o reverendo Uria Simango.Samora sabia que Simango era muito capaz de jogar a ocarta chinesa>> paratentar perturbar a luta de libertagdo em Mogambique. No seu documento <<TrIsteSituagdo>>, de 1969, Simango denunciou os marxistas por trazerern quest6esideol6gicas para o que era, para ele, meramente uma luta nacionalista. Mas, emFevereiro de 1970, ele tinha mudado, afirmando num memorando queSamora eos seus colegas eram, agentes do imperialismo que planeavarn <<eliminarfisicamente os que eram vistos como comunistas, que para n6s sdo verdadeirospatriotas e revolucionarios>>. 0 mesmo memorando continha insinuag6es de queSimango poderia estar disponfvel para uma aproximagdo por parte da China (16).

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Dado o clima polftico na China naquela 6poca e o facto de que Pequim jd estava anamoriscar com a Coremo, havia muito espaqo para Simango criar confusdo. Seos chineses se afastassern completamente da Frelimo, as consequencias, erarnimprevisfveis. Uma movimentagdo desse tipo poderia levar a fricq6esMondlane, The Struggle for Mozambique, p. 132 (La edi ao).U. T Simango, anexo a um memorando aos I I membros do Comjt6 de Libertaq5oda OUA em 17 de Fevereiro de 1970.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 121entre os militantes da Frelimo treinados na Unido Sovietica e na China.E quaisseriam os efeitos na Tanzania e na Zambia, onde a China cavalgavaa crista daonda da popularidade, principalmente porque estava a financiar e a apoiar aconstruqdo da linha de caminho-de-ferro estrategica desde a Cintura do Cobre daZa^mbia at6 ao porto de Dar-es-Salam?Quando saiu de Tete, em Julho de 1971, Samora foi a Lusaka e pedlu aoszambianos para expulsarem Simango, e eles expulsaram-no (17).Samora partiu, entdo, para a sua visita 'a China, como parte de uma digressdo peloExtremo Oriente que tambe'm o levou A Coreia do Norte e ao Vietname do Norte.A sua delegagdo era constituida por quatro dos seus principais comandantesmilitares - Sebastido Mabote, Pedro Juma, Tome' Eduardo e AlbertoSande - e umajudante, S6rgio Vieira, que tamb6m tinha estado na viagem Moscovo-Bucareste-So'fia-Berlim.0 objectivo ba'sico da viagem ao Vietname era um gesto de solidariedade, maspermitiu tambem uma oportunidade para os moqambicanos e vietnamitasaprenderem das respectivas experiencias na guerra de guerrilha. Samoraencontrou-se com o ministro da Defesa, o general Vo Nguyen Giap, o lenddriovencedor de Dien Bien Phu e autor de trabalhos cldssicos sobre a guerraprolongada como Guerra do Povo, Exe'rcito do Povo. Samora considerava a longae penosa luta armada dos vietnamitas contra a dominagdo extema como umainspiraqdo para o povo moqambicano. Na f6tografia do seu encontrode 1971 comGiap pode sentir-se a electricidade no abraqo dos dois comandantes. <<Giapcosturnava mandar-me os seus livros>>, disse Samora, com alguma emoqdo,nove anos mais tarde quando o general vietnamita, no fim da sua brilhantecarreira, fez uma visita a Maputo.A visita a Pyongyang em 1971 f6i tambem muito importante no estabelecimentode lagos de solidariedade durAveis entre a Frelimo e a direcqdo da Coreia doNorte. Os coreanos deram(17) Samora disse-me a 17 de Outubro de 1973 que tinha pedido a expulsdo deSimango da ZAmbia, em 1971, porque a sua presenqa perto da fronteira daZAmbia podia <<causar confusdo>>.

122 IAIN CHRISTIEassist8ncia militar nessa altura e continuaram a dar ap6s a independencia.Mas Pequim, onde Sarnora se encontrou com o primeiro-ministro ChuEn-lai eoutros dirigentes chineses, foi a principal escala da viagem. 0 encontro com ChuEn-lai durou cinco horas, uma porqdo de tempo do primeiro-ministro emPequim,

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e uma indicagdo de que ele estava interessado em ouvir uma descrigdocompletada Frelimo sobre a luta em Moqambique.Samora deve ter tido muito a dizer sobre os mais recentes avanqos,particularmente nas provfncias de Tete e Cabo Delgado. A Frellmo ndo estavaapenas a manter o que ja tinha, estava a avanqar para sul e a forgar oex6rcitoportugues a evacuar posig6es onde se tinha instalado.As conversag6es em Pequim correrarn bem - a descriqdo da Frelimofol <<ummulto grande sucesso de todos os pontos de vista>> - e os chineses, tal como ossovieticos, foram convidados a dar uma olhada por si pr6prios. Quando Samoraregressou a Mogambique no final da viagern ao Extremo Oriente, rapidamentedeu consigo a receber um grupo de cinco jornalistas e operadores de camarachineses. Chegararn a sua base, em Cabo Delgado, desarmados mas usando fardasde guerrilheiros: poder imaginar-se o barulho que poderia ter acontecido se osportugueses tivessem conseguido capturar um deles. Os visitantes passaram oAno Novo em Cabo Delgado na companhia de Samora e dos seus dois principaiscomandantes, Alberto Chipande e Sebastido Mabote. Puderam. visitarum forteportugu8s tomado alguns meses antes. Depois da viagem. de tres semanas, oschineses estavam extasiados. <<Uma excelente situagdo revolucionaria>>,disseram na sua reportagem para a Mozambique Revolution. A AgenciaNoticiosaNova China, cujo correspondente em Dar-es-Salam fez parte da digressdo,publicou mais de tr8s mil palavras sobre a guerra. de libertagdo, descrevendoentusiasticamente as batalhas e a politica ern pormenor.No inicio de 1972, portanto, Samora tinha consolidado as relaq6es daFrelimocom os dois lados do mundo socialista, apesar do conflito sino-sovietico. Armas,muniqoes e outras formas de apoio chegavam da China e dos pa'sesdo Pacto deVarso'via e a Frelimo manteve-se afastada das rivalidades das

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 123superpotencias socialistas. 0 cr6dito por ter iniciado esta polftica deve ir paraEduardo Mondlane, que conseguiu o apoio de Moscovo e Pequim pouco ap6s acriagdo da Frelimo, mas a continuagdo da neutralidade num mundo socialistacada vez mais polarizado foi, certamente, devida A perspectiva orgulhosamenteindependente de Samora em relaqdo 's quest6es ideol6gicas e prdticasdaspolfticas marxistas.A sua diplomacia, em 1971, foi tamb6m muito oportuna. Com Richard Nixon naCasa Branca, os Estados Unidos estavam a aumentar o seu apoio financeiro aocolonialismo portugu~s. No momento em que Samora se preparava para receberos jornalistas chineses em Cabo Delgado, o Departamento de Estado dos EUanunciava a assinatura de um acordo de 435 milh6es de d6lares do Banco deCr6dito de Exportag6es e Importag6es para Portugal. Era mais doque o conjuntodo que o banco tinha concedido a toda a Africa desde 1946 at6 1970 ('s). Osgovernos brita^nico, da Alemanha Ocidental e da Franga na altura,ao mesmotempo que declaravam a sua oposigo ao colonialismo e ao racismo, continuavama dar um grande apoio a Portugal. Como membro da OTAN, Portugal tamb6mbeneficiou do apoio militar do Ocidente que, em teoria, nao deveria utilizar emAfrica mas que utilizou, na prdtica, de forma sistemditica.

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As tentativas dos movimentos de libertagdo das col6nias africanas de Portugalpara persuadir as pot~ncias ocidentais a apoiar a luta pela liberdadendo tinhamtido nenhum resultado. Em Janeiro de 1971 os Estados Unidos e a Grd-Bretanhasafram do Comit6 de Descolonizagdo das Nag6es Unidas. «Sentimosque oComit6 ndo estava a cumprir o seu mandato e estava a ser irresponsaivel aoadvogar a violncia , declarou urn membro da missdo de Washington junto dasNag6es Unidas.Samora ndo desistiu de tentar convencer o Ocidente. Na primeira metade dos anos70, p6s o seu energico secretairio para a Informaqdo, Jorge Rebelo, a trabalharduramente no sentido de mobilizar apoio para a Frelimo e virar a opinido ptiblicacon(",) Isaacman, Mozambique: From Colonialism to Revolution, Boulder, 1983,p. 105.

124 IAIN CHRISTIEtra as polfticas dos governos a favor do colonialismo portugues. A revista daFrellmo em Ifngua inglesa, Mozambique Revolution, teve uma melhoria grdficaem 1971 e aumentou a sua expansdo no Ocidente. A Frelimo aumentou asuacooperaqdo com grupos de solidartedade no Ocidente e foi intensificada a pressdosobre os governos nas Naq6es Unidas e outras instituiq6es internacionals. Houvetamb6m uma campanha no terreno: mal passava um m8s sem uma visitaAs zonaslibertadas por um jornalista ocidental ou um activista de um grupo desolidariedade.Embora esta campanha ndo tenha tido grande impacto nas principais pot8ncias daOTAN, teve alguns resultados multo positivos. Uma empresa sueca f6i forgada aretirar-se do proJecto de Cabora Bassa e o apoio escandinavo e a ajuda <<semcondig6es>> da Holanda foram, em parte, devidos ao sucesso da campanha. Paraal6m disso a Frelimo passou a ter grupos permanentes de apoiantes leais emmuitas cidades ocidentais, uma importante vantagem nos anos seguintes.Samora viu tamb6m a importdncia de cultivar o apoio dentro da Organizagdo daUnidade Africana (OUA). A consolidaqdo dos lagos entre a Frelimo e algunsgovernos, especialmente o da Tanzania e o da Zdmbia, era parte dessapolftica,mas ela significava, tamb6m, a utilizaqdo dos canais e mecanismosda propriaorganizagdo.A Frelimo e os outros movimentos de libertagdo viram uma significativa melhoriano seu estatuto junto da OUA em 1972, quando a cimeira anual foi realizada nacapital marroquina, Rabat. Os dirigentes dos movimentos, anteriormenterelegados para os corredores, junto com a imprensa, puderam entrar na sala daconfer8ncia, respirando o mesmo ar que os mais eminentes estadistas africanos.Estava a desaparecer rapidamente a caracterizagdo dos movimentos de libertaqdocomo grupos ineptos de exilados arruaceiros, ponto de vista muito comum emAfrica nos anos 60. Homens como Samora, Agostinho Neto em Angolae AmilcarCabral da Guin6-Bissau e Cabo Verde tinham ganho prestfgio e respeito para.eles pr6prios e para os movimentos que dirigiam.Samora foi a Rabat para a cimeira e teve uma audiencia com o hospedeiro, o reiHassan Il. Era um dirigente conservador, n5o

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SAMORA - UMA BIOGRAFIA 125muito aberto para revoluciondrios marxistas. 0 encontro foi um sinal dasmudangas de atitude que estavam a ocorrer. A vit6ria nas col6nias portuguesascomeqava a parecer uma perspectiva muito real e podia ndo estar longe o dia emque Samora e os seus colegas ocupassern os gabinetes presidenciais dos seusrespectivos pafses. A magnanimidade em relagdo aos movimentosde libertaqdotinha-se tornado prestigiante por si pr6pria. Na cimeira de Rabat, por exemplo, orei Hassan espantou muita gente ao anunciar subitamente que oferecia um milhdode d6lares para o Fundo de Liberta do de Africa da OUA.Ap6s a cimeira, Samora comeqou a construir as fundaq6es que tinharn sidoestabelecidas, especialmente atrav6s do Comite' de Libertaqdo daOUA, que tinhaurn papel-chave na canalizaqdo de ajuda aos movimentos de libertaqdo. ErnOutubro de 1972 Samora conduziu uma delegaqdo do Cormt6, dirigida pelosecretdrio executivo Hashim Mbita, numa deslocaqdo pelas zonas 11bertadas deCabo Delgado. Mbita, major do ex6rcito tanzaniano, declarou maistarde que adelegaqdo n5o tinha ido <<inspeccionar>> o que a Frelimo andava a fazer. Mas,logo a seguir, afirmou: <<Fomos aperceber-nos do que a Frelimo estd a fazer,para que sejam eliminadas as dificuldades entre o movimento de liberta do e osecretariado [do Comite' de Libertagdo da OUA].>> (19) 0 major Mbita ndoexplicou que dificuldades erarn essas, mas, claramente, o Comit6 de Libertaqdoestava, ap6s a Viagem, ern posiqdo de assegurar aos governos africanos que naoestavam a deitar dinheiro e armas para um poqo sern fundo.Era urn momento oportuno para melhorar as relaqo-es com a OUA, dado que oComit6 de Libertaqdo se ia reunir em Accra para rever a sua estrat6gia. Isto tinhacomo base o maior empenhamento em relaqdo A luta pela liberdade que tinhasurgido na cimeira da organizaqdo ern Rabat.Samora pensava que os Estados da OUA podiarn fazer muito mais paraajudar e,quando foi 'a reunido do Comit6 ern Accra, ern Janeiro de 1973, fez um apeloexaltante 'a consci8ncia africana:(19) Mozambique Revolution, n.* 53.

126 IAIN CHRISTIEPrecisamos do vosso apoio material. 0 inimigo gasta cerca de dois milh6es ded6lares por dia para alimentar a sua guerra contra n6s. Os seus aliados da OTAN,nomeadamente os Estados Unidos, a Grd-Bretanha, a Franqa e a AlemanhaOcidental, ndo poupam no seu apoio financeiro, economico e militar aocolonialismo portugUs. Temos que enfrentar exe'rcitos modernos,bem equipados,combativos, com. se'culos de experi8ncia em guerras de agressdo [ ... ] Mobilizarapoio moral, polftico, diplomdtico e material para a nossa causa e envolver nele opovo 6 uma tarefa importante do Comit6 e da OUA. Isso deve acontecerprimeiroern Africa, porque diz respeito A nossa pr6pria libertagdo e ndopodemos pedir aoutros a solidariedade que no's pr6prios ndo praticamos.Na altura em que fez este discurso o proprio Samora estava jd a dar umexemplode solidariedade interafricana. Ndo tinha nem dinheiro nem armas para oferecermas tinha uma coisa melhor que essas duas no que dizia respeito a uma dasquest6es candentes do continente: a Rode'sia.

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As forqas da Frelimo tinham atravessado o Zambeze em 1970 e estavam ja aolongo da fronteira rodesiana. 0 avanqo dos guerrilheiros para sul era mate'ria degrande preocupaqdo para as autoridades rodesianas, em grande parte porque tinhalevado a Frelimo para mais perto da estrada e da linha de carninho-de-ferro queligavarn a Rod6sia, no interior, ao porto mogambicano da Beira.Temendoataques no Corredor da Beira os rodesianos tinham enviado tropas paraMogambique para ajudar os portugueses mais ou menos na altura em que aFrelimo comegou a operar a sul do Zambeze.Mas ndo era so' a administraqdo de Ian Smith que observava atentamente osdesenvolvimentos no Sul de Tete. A Unido Nacional Africana do Zimbabwe(ZANU) verificou que tamb6m tinha um interesse estrategico na area.A Zanu tinha tido imensas dificuldades para estabelecer linhas de infiltragdo eabastecimento a partir de bases recuadas na Zdmbia. Entrar na Rode'sia, a partirda Za^mbia, significava atravessar o Zambeze. Essa fronteiranatural pode serdividida em tr8s partes mais ou menos iguais: o extremo ocidental, en-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 127tre a faixa de Caprivi e o fundo do lago Kariba; o pro'prio lago; e o extremo lesteW 'a fronteira mogambicana.0 extremo ocidental liga 'a Matabelelandia, uma das poucas dreas onde a Unidodo Povo Africano do Zimbabwe (ZAPU) de Joshua Nkomo tinha maiorpesopolftico que a Zanu. 0 lago Kariba era uma barreira geografficaassustadora paraentradas clandestinas. E a faixa oriental de cerca de 200 quilometros erafacilmente policiada pelos rodesianos.A Zanu tinha um ex6rcito de guerrilha que estava mais ou menos confinado aquarte'is no exflio devido a esses problemas logisticos impossfveis de resolver.Mas os dirigentes da Zanu sabiam que a sua organizaqdo tinha apoio maciqo damaioria falante do Shona, grande parte da qual vivia em zonas do Zimbabweacessiveis a partir de Moqambique. As actividades da Frelimo em Tete criavam apossibilidade de uma nova, e vital, base recuada para os guerrilheiros da Zanu.0 Presidente da Zanu, Herbert Chitepo, estava baseado em Dar-es-Salam e o seuprimeiro contacto registado com Mondlane e Samora f6i na capitaltanzaniana ern1968, o ano em que a Frelimo abriu a sua frente de gueffa no Norte de Tete. AFrelimo ainda ndo tinha atravessado o Zambeze e, portanto, ndo se punha aquestdo de discutir facilidades de trAnsito para os guerrilheiros zimbabweanosatrav6s de Tete para a Rod6sia. Mas o encontro, que teve lugar no Hotel Twiga, apequena distancia dos escrit6rios da Frelimo, foi importante porque quebrou ogelo entre os dois movimentos. 0 aliado da Frelimo no Zimbabwe era a Zapu endo a Zanu. No final dos anos 60, para os <<autenticos>>, lidar com a Zanu eracomo lidar com o diabo. Samora ndo estava assim tdo certo.Apo's a morte de Mondlane ele continuou os contactos com a Zanu. Tornou-seObvio para Samora que a Zanu era um movimento de libertagdo muitodeterminado e s6rio e tinha apoio popular. Em Maio de 1970 f6i a Lusaka para seencontrar com uma delegagdo da Zanu dirigida por Chitepo e que inclufa oprincipal comandante militar da Zanu, Josiah Tongogara. As duasorganizaq6esconcordaram em trabalhar juntas e, em Julho de 1970, guerrilheirosda Zanu

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entraram no Norte de Tete para trabalhar junto com a Frelimo e ganharexperiEncia.

128 lAIN CHRISTIEMas Samora foi brutalmente franco com a Zanu. Alguns anos mais tardeTongogara recordou que Samora tinha dito: «N6s ndo apoiamos a Zanu.Apoiamos a Zapu. Mas tambem apoiamos o povo do Zimbabwe e apoiamos quemquer que seja que nos mostre que pode comegar uma revoluqdo no Zimbabwe elibertar o povo do Zimbabwe [ ...] Alguns de n6s, quando olhamos para a situaqdoem Moqambique, verificamos que, se libertarmos Mogambique amanhd isso ndoserdi o fim. A libertagdo de Moqambique sem a libertagdo do Zimbabwe nao temsignificado. (20)Samora deu ' Zapu todas as facilidades para usar a via de Tete para a Rod6sia.Nos finais de 1970, quando a Frelimo teve a possibilidade de escoltarguerrilheiros zimbabweanos atrav6s do Sul de Tete at6 A fronteira da Rodesia,enviou Marcelino dos Santos para oferecer a primeira oportunidade ' Zapu. AZapu nao aceitou, em parte devido aos seus problemas internos nessa altura e emparte porque tinha pouco apoio na irea do Zimbabwe junto a Tete. A Zanu, poroutro lado, estava desejosa de aproveitar a oportunidade.Em Fevereiro de 1972 o dilema de Samora sobre a Zanu e a Zapu pareceuresolver-se por si s6. Os dois movimentos criaram aquilo a que chamaram oComando Militar Conjunto, para coordenarem operag6es contra o regime deSmith. Mas nunca funcionou. A Zanu e a Zapu ndo conseguiam trabalhar juntasem quest6es militares.Em Agosto desse ano Samora saiu da provfncia de Tete e foi falar com oPresidente Kaunda em Lusaka para lhe dizer o que a Frelimo tinha descobertoatrav6s da sua experi~ncia directa: que a Zanu era um movimento s6rio comapoio no interior do Zimbabwe e que nao devia ser marginalizado como um grupodivisionista "ndo-autentico . A seguir Samora foi ter com Nyerere e fez-lhe omesmo relat6rio. Nyerere e Kaunda albergavam quer a Zanu quer a Zapu e osseus parses erarn as zonas-chave da linha da frente contra o Sul do continentedominado(20) David Martin e Phyllis Johnson, The Struggle for Zimbabwe, Harare, ZPH,1981, p. 170. Este livro cont6m uma descriqao detalhada das relaq6es entre aFrelimo e a Zanu no infcio dos anos 70.

Samora enfermeiro no hospital da ilha de Inhaca, cerca de 1957ili0 estratego. Samora com Joaquim Chissano e Alberto Chipande numa zonalibertada em Cabo Delgado, em 1968I

Equipa defitebol do Comitj Central da Freilino, no campo de Nachingwea,Tanzania, em 1968. Da esquerda para a direita: Alberto Chipande,JoaquimChissano, Olfinpio Vaz, urn ndo-membro do CC, cujo nome foi esquecido, quefoi charnado porque a equipa precisava de urn guarda-redes, Eduardo Mondlane,

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Samora Machel (ni0 jogador), Uria Simango, Alberto Sithole, Eduardo Coloma,Francisco Manyanga. Foto do arquivo da FrelimoCorn jornalistas chineses, em 1971, ci frente de um posto militar portuguescapturado em Cabo Delgado. Foto de Artur Torohate

ICom o autor nas zonas libertadas de Cabo Delgado, 1973io ".. i ,' '& I -

Casamento com Grap Simbine, a 7 de Setembro de 1975. Com os noivos oPresidente Julius Nyerere, da TanIzania0 mestre do comIcio

lipSamora mostra como sefaz. Foto tirada num campo de treino para comandos nosanos 80. Ai era Presidente da Reptiblica mas continuava militar e instrutornoCOraVjO. Foto de S&gio Santimano

Samora dci as boas-vindas a Robert Mugabe, novo primeiro-ministro doZimbabwe, quando este visitou a Beira em 1980. Foo de Louise GubbSamora com o seu companheiro de luta contra o apartheid Oliver Tambo,Presidente do Congresso Nacional Africano da Africa do Sul

Paz ou aldrabice? Samora Machel corn P W Botha, da Africa do Sil, naassinaturado Acordo de Nkornati, a 16 de Maro de 1984A cena do desastre de Mbuzini, na Africa do Sul. Foto de Kok Nanm

Funeral de Samora em Maputo, a 28 de Outubro de 1986. Os seus antigoscamaradas Marcelino dos Santos (bl esquerda) e Joaquim Chissano(agoraPresidente) dirigem o cortejo ffinebre. Foto de Sergio SantimanoSoldados chorando no funeral de Samora. Foto de Ant6nio Muchave

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 129pelos racistas. Era, portanto, importante que eles tivessem uma imagem clara dasituaqdo no terreno.Em Dezembro de 1972 a Zanu iniciou operag6es militares na area de MonteDarwin, no Nordeste do Zimbabwe, com as zonas libertadas da Frelimo em Tete aservirem de vias de entrada e de safda para homens e abastecimentos.Olhando Adistancia podemos dizer que foi o comego do fim para o regime de Smith. Ele ndofoi capaz de suportar a ofensiva de sete anos que se seguiu a partirde bases emMogambique.0 Comite de Libertagdo da OUA, reunido em Accra poucos dias depoisdasprimeiras operaq6es da Zanu na area de Monte Darwin, ouviu as palavras deSamora com respeito. Quando ele disse <<ndo podemos pedir a outros asolidariedade que n6s pr6prios ndo praticamos>>, falava com a autoridade de um

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homem que tinha feito o que nenhum dirigente africano tinha algumavez feito ouseja provalvel que venha a fazer de novo. Sem poder de Estado, sem bandeiranem hino nacional, sem um lugar nas Naq6es Unidas, sem um exercitonacional esem uma secretdria presidencial onde se sentar, ele abriu o seu pals, ainda umacol6nia, como base para a libertagdo de outra col6nia.As forqas de Samora continuaram a quebrar a espinha da resistencia colonialportuguesa, abrindo uma nova frente de guerra nas provincias de Manica e Sofalaem 1972, atacando no Corredor da Beira no final de 1973, levandoa que odesmoralizado ex6rcito colonial derrubasse a ditadura de Marcelo Caetano a 25de Abril de 1974. Alguns meses mais tarde a nova administragdo portuguesa eraobrigada a transferir o poder em Mogambique para a Frelimo, que continuou aapoiar as forgas de libertaqdo do Zimbabwe W 'a sua vit6ria final em 1980.Samora Machel foi parte da libertagdo de tres palses - Moqambique, Portugal eRodesia - da tirania da extrema-direita. Era um homem marcado.

7. A luta continua (1974-1986)0 golpe de Estado em Lisboa, a 25 de Abril de 1974, fol, em grande medida,resultado da incapacidade da administragdo de Marcelo Caetano para acabar comas guerras coloniais e, entre os movimentos de libertagdo nas colo'nias, a Frelimoera o maior espinho na carne de Caetano.Em Angola, econornicamente importante, o MPLA estava numa posigdo militarmenos favoraivel que a que tinha tido no princfpio da decada, principalmentedevido a conflitos internos e a uma campanha de guerra qufmica bern sucedidapor parte dos portugueses. Na Guin6-Bissau o PAIGC estava numaposiqdomilitar forte e tinha mesmo declarado a independencia, mas o pais 6 muitopequeno e tinha pouca importa^ncia estrat6gica ou economica paraPortugal.Em Mogambique, contudo, a Frelimo estava, em termos militares, numa posiqdomais forte do que em qualquer outro momento. Na sequEncia da derrota daofensiva N6 G6rdio, de Kaulza de Arriaga, em 1970, as forgas da Frelimo tinhamfeito pressao para sul, cada vez mais profundamente no coragao economico dopafs, drenando homens e dinheiro de um Portugal ja' enfraquecido.

132 IAIN CHRISTIEAlguns anos antes Samora e os seus, colegas tinham identificado correctamente acontradiqdo nas fileiras portuguesas que, mals tarde ou mais cedo, derrubaria todoo ediffclo colonial: os portugueses estavam a investir cada vez mais numa guerraque, na realidade, n5o tinham que travar e a aproveitar cada vez menos da suaposiqdo colonial. Como um jogador azarado, em arede perdas, jogando contra umadversdrio cauteloso que comete poucos erros, eles teriam que atirar com as cartaspara diminuir as perdas.A dnica questdo era saber quanto tempo levaria o processo de atrito. Issodependia, entre outros factores, dos sucessos militares da Frelimo no terreno, dossucessos polfticos na arena internacional, e das tens6es nas forgas armadasportuguesas. Temos que recordar que o exercito portugu8s era largamenteformado por recrutas com pouco entusiasmo por lutarem nas col6nias.

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0 golpe de Abril levou a uma mudanqa radical no governo de Lisboamas ndoterminou a dominagdo colonial dos portugueses em Africa. Os jovens oficiais doMovimento das Forqas Armadas, que derrubaram Marcelo Caetano,queriam sairde Africa mas o homem que colocaram no poder, o general Ant6nio de Spfnola,tinha outras 1delas. Prop6s um cessar-fogo nas guerras das col6nias portuguesas eum referendo, declaradamente para decidir se o povo queria a independ8ncia oun5o.Nas conversaq6es em Lusaka a 5 e 6 de Junho o novo ministro dos Neg6ciosEstrangeiros de Portugal, Mdrio Soares, apresentou a Samora a proposta docessar-fogo, que foi totalmente recusada, quando afirmou: <<Apaz 6 insepard'velda independe^ncia nacional. S6 com a independ8ncia nacional poderemos p6r fim'a guerra.>> Samora colocou tr8s condig6es para a paz: o reconhecimento daFrelimo como legitimo representante do povo moqambicano; o reconhecimentodo direlto do povo moqambicano a uma independ8ncia completa; e atransfer8ncia do poder para a Frelimo. As conversaq6es foram interrompidas maschegou-se a acordo que deveriam ser retomadas em Julho.Entretanto Samora foi A capital somali, Mogadishu, onde se dirigiu'a I I aCimetra da OUA. Denunciou duramente o plano de referendo, dizendo que eledemonstrava <<a falta de sinceri-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 133dade e a md46 do governo colonial portugu6s>>. Um referendo poderia ter feitosentido antes de comegar a luta armada, argumentou, mas agora ndofazia sentido.<<Na-o se pergunta a um escravo se quer ser livre, especialmente depois de ele seter revoltado, e ainda menos se se 6 dono de escravos.>>Alguns dirigentes africanos poderiam muito, bern ter respondido: Por que n5o? 0que e' que a Frelimo tem a perder se aceitar? Havia uma disposiqdo em algunspaises africanos nessa altura de que se deveria conceder a Spinolao beneffcio dadu'vida, que a Frelimo deveria concordar com o referendo para evitar maisderrarnamento de sangue. Portanto, Samora teve que defender duramente a suaposiqdo em Mogadishu. Ele na-o podia aceitar um referendo porque issoimplicava que o povo moqambicano poderia ndo apoiar a exig8nciada Frelimo deindependencia total, que havia algum tipo de d'vida sobre o valor moral dos 10anos de luta armada da Frelimo, de que a independ8ncia nacional afinal ndo eraum direito inaliendvel.Para al6m do aspecto moral ndo havia nenhuma raza-o para supor que umreferendo organizado por Spfnola fosse livre e justo. No dia seguinte ao golpe emLisboa ele tinha declarado na televisdo que o seu regime <<garantiriaasobreviv8ncia da nagdo [portuguesa] como um pafs soberano na sua integridademulticontinental>>. E a sua carreira anterior ndo dava nenhuma indicaqdo deinclinag6es democrdticas. Lutou ao lado de Franco na Espanha e deHitler nafrente russa, para al6m dos seus feitos como comandante portugu8s contra oPAIGC na Guin6-Bissau, no princ'pio da d6cada de 70.Era o comandante na Guine-Bissau no momento da morte do dirigente do PAIGC,Amilcar Cabral, em Janeiro de 1971, e, quando regressou a Portugal em 1973, foicondecorado por Caetano e promovido a vice-chefe do Estado-Maior das Forgas

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Armadas portuguesas. Ka6lza de Arriaga, que regressou a Lisboa, ido deMogambique, na mesma epoca, recebeu um lugar muito menos importante:presidente do Conselho de Energia Nuclear. Quando, a1gumas semanas maistarde, perguntei a Samora qual era a sua interpretagdo desta diferenga notratamento dos dois generais, ele respondeu com uma frase curta: <<Spinolaconseguiu matar Amflcar. Kau'lza ndo conseguiu matar Samora.>>

134 IAIN CHRISTIEContudo, no seu discurso em Mogadishu, Samora deixou Spfnola de fora. Em vezdisso indicou que estava pronto a falar com os portugueses na base dos tr8sprinci'pios que tinha apresentado em Lusaka poucos dias antes e chamou aatengdo para que a Frelimo estava a negociar numa posiqdo de forga.Notou que ochefe do Estado-Maior portugu8s, general Costa Gomes, tinha dito, em Maio:<<As forps armadas atingiram os limites da exaustdo neuropsiquica.>>A Frelimo intensificou a guerra. tirando vantagem da exaustdo portuguesa. A I deJulho os guerrilheiros voltaram a abrir a frente da provfncia da Zambe'zia,fechada desde os princi'pios de 1965. Os abastecimentos continuavam a n5opoder chegar 16 atrav6s da fronteira com o Malawi, portanto toda a operaqdo erarealizada por guerrilheiros vindos para sul a partir da Zdmbia atrav6s de Tete,passando abaixo da ponta sul do Malawi e depois subindo para o interior daZamb6zia. Era uma linha de abastecimentos longa e sinuosa e tinha levado anos apreparar. Mas a Zamb6zia, com a sua rica terra para agricultura.e dois milh6es dehabitantes, valia a pena.0 ex6rcito portugu8s ern. Mogambique, com cerca de 35 000 recrutasmoqambicanos, estava, entretanto, a desconjuntar-se rapidamente. Deserg6es emmassa desses recrutas expunham a fraqueza inerente da posiqdo de Spinola: muitopoucos dos seus homens pensavam que ainda houvesse uma possibilidade deaguentar Mogambique. Mil soldados desertaram na Zamb6zia enquanto outros,nessa provfncia, se recusaram pura e simplesmente a combater. Dois mil homens,no quartel de Boane, perto de Lourenqo Marques, recusaram-sea ser enviadospara as areas operacionais e oficiais de alta patente, no quartel-general deNampula, declararam-se a favor de parar as operaq6es contra aFrelimo.Na vida civil a situagdo tambem se estava a alterar de dia para dia. Algunsportugueses estavarn aterrorizados. Muitos colonos racistas, que ndo podiamaceitar a ideia de um. governo africano, comeqavam a fugir. Mas outros, os dalinha dura colonial, ficararn e conspiraram. Juntou-se a eles Uria Simango, quemostrou subitamente que, apesar de tudo, havia brancos de quem gostava. Folpara a Beira, sua zona de origem, e esteve sob ameagas de levar uma sova dapopulaqdo negra.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 135Alguns brancos, no entanto, inclinavam-se para aceitar o inevitdvel. 0 govemadordo distrito de Vila Pery, no Corredor da Beira, dirigiu uma delegagdo deagricultores brancos a um encontro com a Frelimo e pediram a paz. A Frelimoestava a receber mensagens de residentes portugueses, simpatizantes que sequeriam tornar moqambicanos num Estado independente.

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Samora radiodifundiu, a partir de Dar-es-Salam, a 24 de Julho, umamensagemdirigida ao exe'rcito portugue^s e ao povo das zonas ainda ndo libertadas emgeral, mas com uma oferta especial para os colonos que quisessern ficar numMoqambique dirigido pela Frelimo.Saudamo-los a todos e dizemos-lhes que a Frefirno pertence ao povomoqambicano e nas nossas fileiras hd lugar e trabalho para todos osmogambicanos e mogambicanas, para todos os que desejarem ser mogambicanosincluindo aqueles que, embora ndo nascidos aqui, querem experimentar econstruir o novo Mogambique.S6 uma minoria dos portugueses vivendo em Mogambique levou a oferta deSamora a serio. Muitos foram-se embora por varladas raz6es. Muitos brancosestavam tdo ultrajantemente envolvidos na exploraqdo dos negros quesabiam quendo poderiam continuar ap6s a independEncia. Outros, simplesmente, estavamimbufdos do sentimento racista de que os negros ndo eram capazesde governar.Outros foram vftimas de boatos como o de que a Frelimo la nacionalizar os seusfilhos.No periodo entre 1974 e 1976, cerca de 200 000 brancos e indianos deixaramMogambique, encontrando abrigo na Rod6sia, Africa do Sul ou Portugal. Houvefamilias divididas. Jovens brancos, cheios de entusiasmo e admiraqdo porSamora, despediam-se dos pais que viajavam para Lisboa. Esposas ficaramenquanto, os maridos partiam. Maridos ficaram enquanto as esposas iam.Ern meados de 1974 o poder imperial portucues em Mogambique estava emvis'vel derrocada. Colonos abandonavarn o pafs, soldados desertavam,recusavam-se a combater ou pediam a Frelimo cessar-fogos locais, semautorizagdo do seu governo.

136 IAIN CHRISTIEAs conversaq6es programadas para Julho de 1974 em Lusaka ndose realizaram.Nesse m6s, no entanto, Samora decidlu que tinha chegado o momentodedemonstrar como era fdcil para a Frelimo tomar as guarniq6es do ex6rcitoportugu8s ao longo da fronteira com a Tanzania, as mesmas em relagdo As quaisLdzaro Nkavandame tinha vociferado uns anos antes. Soldados da Frelimocercaram o posto de Namatil (tamb6m conhecido como Omar), perto do rioRovuma, e, usando megafones, disseram aos portugueses que ou se rendiam oumorriam. Todos os 140 portugueses safram do posto com as mdos noar mas tr8sconseguiram fugir antes de serem presos.Os direitistas sobreviventes na administraqdo portuguesa ficaram furiosos eprotestaram dizendo que a Frelimo tinha enganado a guarniqdo levando-a arender-se ao dizerem aos soldados que a guerra tinha acabado.Disseram queaquilo ndo la ajudar as conversaq6es e apelaram a Samora para repudiar a acqdo.Samora ignorou-os. Ele tinha um diligente enviado, Aquino de Braganqa,farejando nos corredores do poder, em Lisboa, e informando sobre quemrealmente tinha peso na administraqdo portuguesa. Braganqa sabia que MeloAntunes, um oficial do exercito anticolonialista, que tinha sido um dos dirigentesdo golpe de 25 de Abril, era uma figura-chave. Antunes era o poderpor detrds do

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trono e sabia que era o momento de Portugal acabar com os prejufzos e sair deAfrica. 0 ex6rcito ndo ia combater.Embora as conversaq6es marcadas para Julho ndo tenham ocorrido, osportugueses contactaram a Frellmo e chegaram a acordo que deveriam serrealizados novos contactos. Essas conversaq6es foram realizadas secretamente emDar-es-Salam, em Agosto, e desta vez a delegaqdo portuguesa era dirigida por ummembro do Movimento das Forqas Armadas. Mais tarde, no princfplo deSetembro, Samora foi a Lusaka onde se encontrou com uma delegagdo, dirigidapor Melo Antunes, que era ministro sem Pasta. Mdrio Soares tinha sidorelegadopara n-dmero dois da delegaqdo.Neste encontro Portugal concordou com a entrega do poder em Moqambique AFrelimo. Os Acordos de Lusaka sobre a in-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 137depend8ncia de Moqambique foram assinados no sdbado, 7 de Setembro, apenaspor Samora Machel, por parte da Frelimo, e por Melo Antunes e mais setecolegas, entre militates e civis, por parte de Portugal.Foi o momento de triunfo de Samora. la ser formado, nesse mes, umgoverno detransiqdo corn o primeiro-ministro e seis membros do gabinete indicados pelaFrelimo, enquanto outros tres membros seriam indicados por um altocomissairioportugu8s. De salientar que, na altura da independ8ncia, dois dostr8s ministrosescolhidos por Portugal tomaram a nacionalidade mogambicana.Um deles, LufsMaria de Alcdntara Santos, tornou-se, mats tarde, ministro dos Transportes eComunicaqo-es. Morreu ao lado de Samora em Mbuzim. A independ8nciacompleta seria a 25 de Junho de 1975.Ap6s a assinatura do acordo Samora dirigiu-se a delegaqdo portuguesa e aosdiriaentes zambianos, incluindo o Presidente Kaunda, que assistiram Acerimo'nia. (<Ao fim de quinhentos anos de opressdo colonial, ao fim de dez anosde luta armada dirigida pela Frelimo, o povo mogambicano conseguiuimpor osseus direitos [ ... ]. Esta 6 a vit6ria da coragern. hist6rica do povo mogambicano [... ].>> Mas, no momento em que ele iniciava este discurso hist6rico, desenrolava-se uma conspiraqdo para roubar a vitoria A Frelimo. Ainda a tinta ndoestava secano acordo quando um grupo da linha dura racista ocupou a estaqdo de rddio emLourenqo Marques e comegou a transmitir emiss6es contra a Frelimo.Os rebeldes, que se intitulavam <<Os Drag6es da Morte>>, apelavam a apoiantesentre as unidades portuguesas de elite, os comandos, para se reunirem emdeterminados pontos onde se encontrariam com comandantes.Samora ficou furioso. Quando soube destas notfcias s6 um dos membros dadelegaqdo portuguesa ndo tinha delxado id Lusaka e o infortunado oficial doex6rcito que ficou para trds teve que suportar a f6ria de Samora. 0 dirigente daFrelimo acusou o chefe do Estado-Maior das Forgas Armadas portuguesas,general Costa Gomes, de ter tentado promover um movimento de oposlqdo AFrelimo, sob a direcqdo de Joana Simedo, uma mulher negra que tinhatrabalhadoquer com a Coremo quer

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corn o regime de Marcelo Caetano. Telefonou para Lisboa para acusar Spi'nolapessoalmente de ludibriar a Frelimo.No dia seguinte, jd mais calmo, Samora enviou uma mensagem pela rddio,emtermos comedidos, ao povo moqambicano e aos soldados e civis portugueses emMoqambique. 0 tema era a tomada dos estildlos do Rddio Clube.Este bando de facinoras composto por criminosos deguerra, agentes da PIDE-DGS (') e conhecidos representantes dasforqasexploradoras tenta desesperadamente opor-se A vontade de pazdo povomoqambicano e do povo portugues. 0 objectivo desses elementos, sem pdtria esem ideal, e impedir a independencia de Moqambique. Para isso pro curamprovocar um clima de conflito racial, de caos e anarquia que sirva depretextopara uma internacionalizaqdo da agressdo contra o nosso povo. Neste quadrorecrutaram forqas mercendrias e buscaram o apoio de forqas racistas ereacciondrias.[ ... ] o nosso dever e' neutralizarmos imediatamente arebelido colonial-fascista. Dentro do espfrito e letra dos Acordos de Lusaka, asForqas Populares de Libertaqdo de Moqambique (1) e as forqas armadasportuguesas, que honram a sua palavra, colaborardo intimamenteparasalvaguardarem a ordem plblica, defenderem a integridade territorial eassegurarem o processo da independe^ncia moqambicana.Samora avisou os brancos para ndo serem levados a uma confrontaqdo que s6servia os interesses de uma minoria de exploradores e ndo os interesses dosbrancos de Moqambique, de uma forma geral. Reiterou a sua convicqa-o de quemuitos dos(1) Quando o nome da PIDE foi mudado para DGS (Direcqdo-Geral deSeguranga) a Frefirno afirmou que se tratava apenas de uma mudanga de nome en5o de natureza. Por isso o Movimento referia-se frequentemente a ela como&IDE-DGS>>.(1) As Forgas Populares de Libertaq5o de Mogambique (FPLM) era o ex6rcitoguerrilheiro da Frelimo durante a luta pela independencia. A sigla confinuou ap6sa independ8ricia para manter a tradi9do e o ex6rcito passou a ser conhecido comoForgas Armadas de Moqambique (FPLM).

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 139brancos em, Mogambique erarn otrabalhadores honestos>> e apeloupara querecusassem cooperar com os rebeldes.Tornou tambem claro que tinha a certeza de a Frelimo ter o apoio da populagdonegra na capital mogambicana. <<O povo deve bloquear todos os abastecimentose comunicag6es com o pequeno grupo de fanaticos e aventureiros>>, afirmou,num momento em que a1gumas dreas dos meios de comunicagdo socialinternacionais americanos afirmavarn que os negros urbanos eramhostis a ummovimento comunista baseado nos camponeses. Quem tinha razdo, os americanosou Samora? Ele estava a dar uma ordern a pessoas, no Sul, que tinham sidolevadas por outros a acreditar que a Frelimo era um movimento macondedominado pelos chineses ou pelos russos ou por ambos. Serd que o povo dacapital iria obedecer 'a ordem de Samora ou simplesmente ignord-lo?

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Hoje parece uma pergunta est'pida. Podemos pensar que era garantido que o povosurgiria autornaticamente em apoio da Frelimo. Mas, naquele momento, ndo erauma pergunta assirn tdo est'pida. A ideia de Samora de a Frelimo e as forgasarmadas portuguesas cooperarem para salvaguardar a ordem plblica era muitoboa, mas ndo havia tropas da Frelimo em Lourengo Marques. As 1nicas forqaspresentes eram, o ex6rcito e a polfcia portugueses, portanto, nos primeiros diasapos o acordo para a independ6ncia, a ordem pdblica dependia deles e deorganizadores da Frelimo desarmados.Os Draa6es da Morte rapidamente mostraram as suas cores politicas. Foram Aprincipal prisdo da capital e libertararn cerca de 200 agentes da PIDE que asautoridades portuguesas posteriores ao golpe tinham detido, 'a espera deinqu6ritos sobre a sua responsabilidade na tortura de prisioneiros polfticos. Outrosapoiantes dos Drag6es percorriam os subdrbios negros em vefculos abertosdisparando ao acaso contra mo ambicanos negros.A ocupaqdo da estaqdo de rddlo s6 durou urn fim-de-semana, terminando nasegunda-feira 9, depois de as forgas armadas portuguesas teremdado um ultimatoaos rebeldes para saffrem ou enfrentarem as consequencias. Mas, embora tenharnsido os oficiais portugueses quern tenha dado a ordem, fizeram-nonum

140 IAIN CHRISTIEcontexto criado pela Frelimo e que ndo apresentava nenhuma alternativa racional.0 facto de o govemo portugu8s ter cedido As exig8ncias da Frelimo era umaimportante razdo para o ex6rcito n5o apoiar os colonos brancos na estagdo derddio.Mas havia va'rias outras raz6es. Os guerrilheiros tinham-se deslocadorapidamente para sul a partir do Corredor da Beira, atravessando orio Save eestabelecendo posig6es em Gaza que poderiam ser transformadas em basesmilitares se a situaqdo o exigisse.Na capital um certo nlmero de partidos polfticos tinham surgido no perfodo ap6so golpe em Portugal numa tentativa transparente de criar internacionalmente aimpressdo de que a Frelimo ndo era o 1nico candidato ao poder polftico. Mas arealidade, da qual o ex6rcito portugu8s estava muito consciente, era de que aFrelimo ndo s6 tinha peso militarmente sobre grande parte do Norte deMogambique como tinha a iniciativa polftica em Lourengo Marques. Haviac6lulas clandestinas na cidade desde o inicio dos anos 60 e, embora. muitos dosmais proeminentes dirigentes tivessem sido presos pela PIDE, tinham sidolibertados ap6s o golpe de Lisboa. Durante as perturbaq6es na cidade, na semanaa seguir aos Acordos de Lusaka, os portugueses descobriram que os organizadoresda Frelimo eram as 6nicas pessoas com suficiente autoridade para controlarem asituagdo, apelando A calma e persuadindo o povo a evitar a vio18ncia.A reportagern de um jornal brltdnico da epoca citava um diplomata ocidental emLourenqo Marques como tendo dito: <<Era inacreditdvel a forma como a Frelimoconseguiu controlar a situaqdo durante tr8s dias face a grande provocaqdo [ ... 1.Apo's 400 anos de colonialismo portugues, os africanos virarn os brancos atentarem roubar-lhes a independencia. Mas, apesar disso, mantiveram-se calmos e

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isso demonstra o controlo da Frelimo sobre o povo e a maturidade da Frelimo.>>(1)0) <<Frelimo p6ra. a reacq5o popular violenta>), The Obsener, Londres, 15 deSetembro de 1974.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 141No fundo, para o soldado portugu8s em Mogambique a oportunidadede regressara casa e 'a farnflia deve ter parecido muito mats atraente do que voluntariar-separa outra guerra contra a Frelimo.Para o colono portugu8s de extrema-direita, contudo, havia uma possibilidade dese manter agarrado aos queridos privi]6gios coloniais: a intervengdo da Africa doSul e da Rodesia. Ha indicaq6es de que o ministro sul-africano da Defesa, R W.Botha, estava, de facto, a planear uma invasdo. Uma reportagern afirma que umacoluna de blindados estava posicionada em Komatipoort, cidade sul-africanafronteiriqa a cerca de 90 quilo'metros de Lourenqo Marques, prontapara invadirMoqambique em apoio aos colonos rebeldes (1).Samora estava consciente do perigo. Na sua transmissdo radIof6nIca de 8 deSetembro, disse:Aos pafses vizinhos, que os criminosos desejam envolver no seu actodesesperado, queremos advertir que nem a Frelimo nem os aliadosafricanos e n5oafricanos do povo moqambicano nem a comunidade internacional tolerardo o quesera obrigatoriamente considerado uma agressdo imperialista.Teria a Frellmo a1gurna oferta de apoio externo em caso de uma invasdo sul-africana ou Samora estava a fazer bluff.? A marca de um bom bluffer A mesa dejogo 6 que nunca se descobre se ele estava a fazer bluff ou ndo. Neste caso nemos sul-africanos nem os rodeslanos desafiaram o bluff de Samora.Ao longo dos anos peritos apresentaram vdrias explicago-es paraa ndointervengdo sul-afficana. Uma e que a tentativa de golpe em Lourenqo Marquesf6i desencadeada numa data errada, cedo de mais para o plano da invasdo. Outra 6que o chefe da seguran a sul-africana, Van Den Bergh, tinha um conflito pessoalcom R W. Botha e conseguitt persuadir o primeiro-ministro John Vorster aencravar os canh6es de Botha. Outra e' que(') Tempo, Maputo, 5 de Setembro de 1982.

142 lAIN CHRISTIEos sul-africanos pensaram que o ex6rcito portugues poderia serusado contra eles,levando a um conflito de desfecho totalmente imprevisivel. Pode terhavido partesde verdade em todas ou em cada uma destas hist6rias, mas o que 6 conhecido aocerto 6 que Samora Machel proferiu a dura ameaga acima citada. Ossul-africanostinham de tomdi-la em consideragdo, mas se Samora estava a fazer bluff ou ndocontinua a ser uma questdo intrigante ainda hoje.Em relaqdo aos rodesianos de Ian Smith, no entanto, estava a desenvolver-se umdiferente piano de caga. 0 director-geral da Organizaqdo Central de Inteligenciada Rod6sia (CIO), Ken Flower, estava em contacto corn as autoridadesportuguesas hi vdrios anos devido as actividades da Frelimo em dreas junto 'Rod6sia e ao uso pela Zanu das zonas libertadas da Frelimo como via de

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infiltragdo na Rod6sia. Em 1972, Flower tinha ido a Lisboa onde debateu corn oprimeiro-ministro Marcelo Caetano a possibilidade de trabalharem juntos parapatrocinar um grupo dissidente anti-Frelimo em Moqambique. Em Abril de 1974,pouco antes do golpe em Portugal, Flower chegou a um acordo sobre ospormenores do piano num encontro em Lisboa corn o chefe da PIDE-DGS, majorSilva Pais (5).Ao princfpio o golpe pareceu bloquear o piano. Mas, na pritica, os rodesianosretiraram beneffcios quase imediatos. Racistas faniticos, mercenairios emogambicanos negros nas forgas de seguranga portuguesas, quetinham estadoenvolvidos em massacres de civis, estavam prontos a ser recrutadospara essanova forqa.Segundo Flower, o primeiro grupo de voluntairios para a nova quinta coluna daRod6sia entrou na Rod6sia a 2 de Junho, enquanto Samora e as novas autoridadesportuguesas se estavam a preparar para o seu primeiro encontro em Lusaka.Muitos dos 40 voluntdirios tinham sido membros de grupos especiaisdo ex6rcitoportugues ou dos Flechas, a ala militar da PIDE-DGS. Os negros desse grupo, edos outros que se Ihe seguiram, sern dtlvida sentiam que estariam numa posiqdodiffcil se continuas(5) Martin e Johnson, Destructive Engagement,Harare, 1986,pp. 1-15.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 143sern em Mogambique, devido ao perigo de serern reconhecidos por parentes ouamigos das suas vftimas.Na altura nada se soube publicamente sobre a criaqdo deste grupo que, mais tarde,se tornou conhecido como Resist8ncia Nacional Mogambicana, RNMouRenamo, e que langaria agitagdo e terror por todo o pafs.A calma antes da tempestadeQuando f6i reprimido o levantamento fascista de Setembro de 1974 emLourenqoMarques, ndo havia indicaq6es praticamente nenhumas dos problemas queestavam para vir. Soldados da Frelimo chegaram 'a capital uma semana depoisdos Acordos de Lusaka e, em geral, trabalhararn bern corn o exe'rcito e a policiaportugueses. Houve uma grave explosdo de viole^ncia a 21 de Outubro quandoum choque entre civis negros e comandos portugueses levou a uma intervenqdoda Frelimo, a ataques portugueses contra soldados da Frelimo e aolevantamentode barricadas por parte de apolantes da Frelimo nos bairros suburbanos. Desta vezmuitos dos mortos eram. brancos, ao contra'rio do que tinha acontecido ernSetembro. Mas a situagdo foi controlada no mesmo dia e os comandosportugueses renegados foram metidos num navio e enviados paraPortugal.Os acontecimentos de 7 de Setembro e 21 de Outubro de 1974 foramas tentativasfinais do colonial-fascismo portugu6s para evitar a independenciadeMogambique e o acesso ao poder da Frelimo. Seguiram-se algunsmeses de paz.No momento dos Acordos de Lusaka, a direc do da Frelimo tinha tido queescolher a sua equipa para o governo de tranSi9do em Lourengo Marques e oshomens escolhidos erarn uma mistura de veteranos da Frelimo. Alguns erarnconhecidos pelos seus feitos como comandantes da guerrilha, outros pelas suas

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actividades polfticas e diplomdticas e outros ainda pelo seu trabalho naclandestinidade em, Lourenqo Marques.A Frelimo decidiu que ndo era apropriado o pr'prio Samora estar nogovernodurante a transiqa-o para a independe^ncia. Joaquim Chissano,chefe daSeguranga e principal representan-

144 IAIN CHRISTIEte da Frelimo em Dar-es-Salam, foi indicado para. primeiro-ministro.Enquanto Chissano e a sua equipa trabalhavarn ern Lourenqo Marques paraconstruir as fundag6es para o governo da independ8ncia, Samora concentrou-seem reforgar os lagos corn paises que tinham vindo a fornecer um apoio vital paraa Frelimo. Em Dezembro foi A Alemanha de Leste, A BulgAria e A Romdnia e,em Marqo de 1975, A China e Coreia do Norte, para estabelecer acordos sobre afutura cooperagdo economica. Ern Maio fez uma digressdo pela Tanzania e pelaZdmbia para agradecer aos povos desses paises o seu apoio durantea luta pelaindependencia.A 24 de Maio iniciou uma digressdo triunfal por Moqambique, do rio Rovuma, noNorte, W ao rio Maputo, no Sul, dirigindo-se a comi'cios de massas, ao longo dotrajecto, para explicar a polftica da Frellmo. A viagem levou um m6s e Samorachegou a Lourengo Marques a 23 de Junho.Na noite de 24 de Junho dezenas de milhares de moqambicanos dirigiram-se aoEstddio da Machava, nos arredores da capital, para saudar uma nova e'poca nahist6ria de Mogambique. Caiu uma chuvada e as ruas ficaram bloqueadas corncarros e pessoas. Engarrafamentos impediram muitas pessoas dechegar aoestddio antes da meia-noite, quando devia iniciar-se a cerimonia daindepend8ncia. Mas a cerim6nia foi atrasada de forma que toda a gente chegou atempo para assistir ao acontecimento, o fim. do colonialismo portugues ernMoqambique.Samora, vestido com uma farda militar, estava debaixo de urn abrigo com outrosdirigentes da Frelimo e corn o Presidente, na altura, da Organizagdo da UnidadeAfricana, Mohammed Siad Barre da Somalia. Barre tinha sido, porcoincidEncia,o primeiro dirigente a dar a Samora uma recepqao de chefe de Estadocom. hinose uma salva de 21 tiros de canhdo quando o dirigente da Frelimo visitouMogadishu em 1973.Pouco depois da meia-noite a bandeira portuguesa f6i arriada e fol iqada abandeira da Republica Popular de Moqambique. Correctamente, a bandeiramogambicana f6i i9ada por Alberto Chipande, o homem que, em 1964, tinhadisparado o primeiro

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 145tiro da guerra. Houve uma explosdo de alegria no estadio. MIIhares de pessoasfelicitaram-se ate' ficarem roucas. Para a1guns membros da geraqdo mais velha,que tinharn vivido os piores rigores do colonial-fascismo, o impacto emocionalera demasiado. Puseram as m5os nos olhos e choraram. Mas as suas lagrimaseram Idgrimas de alegria.

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Samora estava em sentido, saudando a bandeira, com a face baixa deemogdo,enquanto se preparava para ler a proclamaqdo da independencia. Estava habituadoa dirigir-se a reunioes publicas nas zonas libertadas, mas nunca tinha visto umamultiddo deste tamanho. Sem nenhuma introduqdo explicativa comeqou por ler adeclaraqdo da Frelimo no 1nfcio da guerra pela independ8ncia,em 1964. A suavoz trovejou atrav6s dos altifalantes: <<A Frelimo proclama hoje, solenemente ainsurreiqao geral armada do povo moqambicano contra o colonialismoportugu6s[ ... ]. 0 nosso combate n5o cessard sen5o corn a liquidaqdo total e completa docolonialismo portugu8s.>> Depois, para alivio daqueles que possam ter pensadoque aquilo era a declaraq5o de uma nova guerra, ele acrescentou:<<Foi com estaspalavras que, hal quase onze anos [ ... ].>>Falou da hist6ria centendria da luta de Moqambique contra a dominaqdoexterna,culminando na crlaqdo da Frelimo e no lanqamento da guerra de libertaqdonacional. Falou do futuro, <<urn estado de Democracia Popular emque, sob adirecqdo da alianqa dos camponeses e operdrios, todas as camadas patri6ticas seengaJarn na luta pela destruiqdo das sequelas do colonialismo e da depend8nciaimperialista, pelo aniquilamento do sisterna de exploraqdo do homem pelohomem [ ... I >>.Ninguern que tenha ali estado nessa noite jamais esquecerd. Samora trouxe umarn nsagern de esperanqa para o povo de Moqambique, explorado e humilhado. Poroutro lado, ele transpirava electrIcIdade, forqa de personalidade, uma esp6cie depresenqa real africana. Tinha posto o seu selo pessoal no novo Moqambique.A euforia ndo durou muito. Um m6s apos a independ8ncia, a revista Temporeportava que tinha havido infiltraqdo inimiga, atraves da <<fronteira porosa como Malawi de Banda>>, para o distrito de Milange, na provifficia da Zambezia.Ndo eram da-

146 IAIN CHRISTIEdos pormenores e poucas pessoas na capital atribufram muita importancia Anotfcia (6).Mas a 5 de Agosto os camponeses de Vila Alegre, na provfncia de Manica, juntoA fronteira com a Rode'sia, tiveram o duvidoso privilegio de serem os primeiros aaperceber-se de que so' tinha sido ganha uma fase da guerra. Tropas rodesianasabriram fogo contra eles. Uma patrulha do exe'rcito moqambicano retaliou. Nodia seguinte um helicoptero rodesiano entrou na mesma zona e um seuatiradormatou um soldado mogambicano. Ao Iongo do me^s de Agosto continuaram oscombates na provincia de Manica e em Tete (1). Nern uma palavra sobre estesacontecimentos surgiu na imprensa moqambicana e rodesiana da 6poca.Em Setembro, no entanto, at6 mesmo em Lourenqo Marques se comegava atornar evidente que a independ8ncia ndo tinha terminado a guerra.No centro dacapital um jovern perdeu tre^s dedos quando uma caneta, que tinhaencontrado narua, Ihe explodiu nas mdos. Nos dias seguintes mais de cem objectos explosivosdo mesmo tipo tinham sido encontrados e desarmadiIhados pela policia. Nenhumaorganizag2io reivindicou a responsabilidade mas o pdnico provocado pelascanetas-bomba teve lugar exactamente um ano ap6s o levantamento fascista e as

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canetas apresentavam inscriq6es locais, portanto parece provdvel que osterroristas estivessern baseados em Moqambique.Ndo demorou muito que essas pessoas verificassem que existia umaestruturaorganizada a partir da qual podiam. trabaIhar - o grupo de Ken Flower, naRode'sia. Em Novembro as forgas armadas da Rod6sia estavam Ja aoperar emGaza, bern como ern Manica e Tete. Flower, naturalmente, tinha sido inteligenteao constituir a sua forqa de descontentes portugueses e moqambicanos pararealizar operag6es no territ6rio moqambicano em apoio 'as forgas regularesrodesianas.Os rodesianos queriarn impedir a Frelimo de apoiar o movimento delibertagdo doZimbabwe. Portanto agrediam o povoTempo, Lourengo Marques, n.' 251.Estes e muitos outros pormenores dos ataques rodesianos foram dados porSamora a 3 de Margo de 1976, quando anunciou o encerramento das fronteirasmoqambicanas com a Rod6sia,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 147mogambicano, cansado da guerra, com o objectivo de demonstraremque eramelhor lutar ao lado dos <<superiores>> brancos que estavam destinados avencer.Este f6i um perfodo de desanuviamento na Africa Austral. Em PretoriaJohnVorster tentava impor o ritmo de um processo que conduziria a um tipodeindependencia para a Rodesia aceitalvel pelo seu regime. Os veteranos dirigentesnacionalistas Joshua Nkomo, Robert Mugabe e Ndabaningi Sitholetinham sido,temporariamente, libertados da prisdo para conversaq6es com Nyerere, Kaunda,Seretse Khama do Botswana e Samora, grupo informal que se tornou conhecidocomo Linha da Frente.Os dirigentes da Linha da Frente tinham tentado dar alguma coesdoaofragmentado movimento de libertagdo do Zimbabwe, forqando as suas variascomponentes a uma coligaqdo conhecida como o Conselho NacionalAfricano(ANC). A teoria era que o ANC negociaria com Ian Smith para obter um governode maioria. Na pratica Smith ndo tinha nenhuma intengdo de negociar tal coisa.Em Marqo de 1975 o seu serviqo secreto tinha assassinado Herbert Chitepo, oexilado dirigente da Zanu, e tinha conseguido atirar as culpas para o comandantemilitar da Zanu, Josiah Tongogara. Tongogara, conhecido pelos seus homenscomo Camarada Tongo, foi detido e preso pelas autoridades zambianas. Variosoutros importantes quadros da Zanu foram igualmente detidos na Zambia emligaga-o com o assassinato de Chitepo.Tongogara tinha sido o homem chave nas operagoes da Zanu dentroda Rodesia, apartir da provfncia de Tete, e foi pesadamente sentida a sua falta comocomandante. Na altura da independencia de Mogambique a ala militarda Zanu, oExe'rcito Nacional Africano de Libertaqdo do Zimbabwe (Zanla) estava em mauestado. Embora surgisse como parte do ANC, dirigido pelo bispo AbelMuzorewa, muitos dos seus membros apoiavam Tongogara e Robert Mugabe.Com esta confusdo toda a luta de libertagdo do Zimbabwe tinha, efectivamente,parado.

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Quando Ian Smith langou os seus primeiros ataques contra o Mogambiqueindependente, em Agosto de 1975, dificilmente podia afirmar que estava a retaliarcontra uma ofensiva da guer-

148 IAIN CHRISTIErilha atrav6s da fronteira. Ndo havia ofensiva nenhuma. Mas os ataques podem tersido golpes preventivos.0 momento em que ocorreram foi curioso. Em Julho os Presidentes da Linha daFrente tinham-se encontrado em Dar-es-Salam e dois deles, Nyerere e Samora,tinham defendido que " processo de desanuviamento ndo levava a lado nenhum eera " momento para ressuscitar a guerra de gueff ilha no Zimbabwe. Kaundaachava que valia a pena continuar A procura de um acordo negociado e, ap6s acimeira, renovou os contactos com Pret6ria atrav6s do seu enviadoespecial MarkChona.Esses contactos culminaram com as conversaq6es entre Smith e o ANC deMuzorewa, em Victoria Falls, em finais de Agosto. 0 encontro, presidido porKaunda e Vorster, decorreu num comboio sul-africano estacionado numa pontesobre o Zarnbeze, metade na Zambia e metade na Rodesia. Smith prop6sconversaq6es constitucionais na Rod6sia e Muzorewa aceitou de md vontade, nacondiqdo de ser garantida a imunidade aos delegados do ANC. Quando ouvlu estepedido perfeitamente razodvel Smith abandonou o encontro, tornando claro quendo tinha nenhuma intenqdo de negociar um fim para o domfnio branco. Atentativa de moderaqdo de Kaunda tinha falhado.E claro que Smith jd sabia que ela la falhar e deve ter sabido tambem que Samorae Nyerere ficavam numa posiqdo de dizer <<n6s bern te avisdmos>>a Kaunda.Ndo deve ter sido coincidencia, portanto, o facto de poucos dias antes do fracassode Victoria Falls as forqas armadas rodesianas terem lanqado os seusprimeirosataques contra Mogambique independente.Mas se o objectivo dos ataques contra Manica e Tete era intimidar Samora e levd-lo a recusar apoio a uma forga de guerrilha zimbabweana, falhou.Os dirigentes daLinha da Frente reuniram-se em Lusaka em 15 de Setembro e enterraram odesanuviamento. Chegaram a acordo que todos os guerrilheiroszimbabweanostreinados, excepto os detidos na Zdmbia por acusaq6es concretas, seriamtransferidos da Tanzania e da Zdmbia para Moqambique.Mas o reinfcio da luta armada no Zimbabwe ndo dependia apenas do uso doterrit6rio mogambicano. A pol'tica zimbabweana tinha-se tornadoextremamentecomplexa nos anos 70,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 149tendo falhado todas as tentativas para conseguir a unidade. A Frelimo tinhadesenvolvido laqos fortes com a Zanu mas, como parte do novo arranjo, viriampara Mogambique ndo s6 guerriIheiros da Zanu mas tamb6m da Zapu. A unidadedebaixo do nome do ANC tInha sido, em grande parte, imaginaria. Samora ndoqueria dois ex6rcitos de guerrilha separados a operar a partir deMogambique ep6s a unidade como condigdo para o uso do territorio moqambicano.

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Felizmente muitos comandantes guerrilheiros do Zimbabwe procuravarn tamb6ma unidade e, em Novembro de 1975, criaram um comite militar conjunto Zanu-Zapu que comegou a enviar combatentes para o interior do Zimbabwe,a partir deMoqambique, em Janeiro.Os rodesianos rapidamente aumentaram as suas operaq6es ern Moqambique,principalmente com assaltos da forga a6rea, artilharia e infantariaAs aldeiasfronteirigas de Pafuri, na margem sul do Limpopo, e Mavue, a sul do rio Save, a23 e 24 de Fevereiro. Disse-se que participaram no ataque a Mavue antigosmembros das forgas especiais portuguesas (1).A 3 de Marqo Samora convocou todos os embaixadores estrangeiros em Maputo(como Lourenqo Marques tinha passado a chamar-se um mes antes) para ouviruma declaragdo importante: a frontelra com a Rod6sla la ser imediatamentefechada e Mogambique ia aplicar integralmente as sango-es prescritas pelasNag6es Unidas como parte do esforqo internacional para libertar o povozimbabweano do domfnio racista. 0 uso dos portos da Beira e de Maputo para asimportag6es e exportag6es da Rod6sia terminava imediatamente. Daiem dianteSmith teria que usar as rotas para o mar atrav6s da Africa do Sul, maisdispendiosas.Ao mesmo tempo parecia que o movimento de libertagdo do Zimbabwe tinha,finalmente, conseguido a harmonia. Soldados da Zanu e da Zapu estavam atrabalhar juntos e a nova forqa de libertagdo conjunta tinha adoptado um nome,Exercito do Povo do Zimbabwe (Zipa). Mas em meados do ano o acordo(1) Tempo, Maputo, n.' 284, p. 18.

150 IAIN CHRISTIEde unidade militar tinha-se quebrado e quase todo o contingente militar da Zapuabandonou Mogambique. Samora ficou outra vez sozinho com a Zanu.Se isso tivesse representado o fim das complicaq6es no interior do movimento delibertaqdo do Zimbabwe, Samora poderia ter deixado os combatentesda liberdadecontinuar a guerra no Zimbabwe enquanto se concentrava na defesadeMogambique e no desenvolvimento da economia mogambicana. Mas ascolsasndo eram assim tdo simples.0 Zipa era, para todos os efeitos, nem mais nem menos do que a ala militar daZanu. Em Margo os comandantes da Zanu na alianga Zipa tinham entregue aSamora uma lista de dez homens que consideravam como seus dirigentespolfticos. 0 nome do secretdrio-gerat da Zanu, Robert Mugabe, estava A cabeqada lista. A mcio do ano, depois da safda dos elementos da Zapu, o Zipa estava sobo comando de um comandante veterano da Zanu, Rex Nhongo, e o n6mero doisera Dzinashe Machingura, um funciondrio polftico da Zanu, com elevado grau deinstrugdo.Nhongo nunca deixou, na verdade, de prestar obedl8ncia a Mugabe, que viviaexilado na cidade mogambicana de Quellmane, junto A costa, longedas zonas deguerra e de Maputo.Mas Machingura inclinava-se para a ideia do Zipa como uma <<terceira forqa>>,um movimento de guerrilha que estivesse acima das rixas destrutivas da anteriorpolftica zimbabweana. Tinha sido esta a idela de Samora e Nyererequando

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convidaram os comandantes guerrilheiros da Zanu e da Zapu para trabalharemjuntos em campos em Mogambique, nos finals de 1975. Mas a situaqdo tinhamudado. Com a safda da Zapu do esforgo conjunto, o que restava eraa Zanu.Nessa altura Samora ndo sabia muito bem o que fazer de Mugabe. Tinham-seencontrado pela primeira vez em Novembro de 1974, durante o periodo dodesanuviamento, quando Mugabe tinha sido libertado da detengdona Rode'siapara se ir encontrar com os dirigentes da Linha da Frente em Lusaka. Osdirigentes estavam h espera do Presidente da Zanu, Ndabaningl Sithole, tambe'mdetido na Rodesia, e ficaram surpreendidos quando, em vez dele,chegou Mugabe,o nlmero dois da organizaqdo. Sithole tinha renunciado A luta armadae foidemitido

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 151do cargo atraves de uma votagdo entre os membros do Comite Central da Zanu naprisdo. Eles tinham escolhido Mugabe como o novo dirigente. Os dirigentes daLinha da Frente sabiam pouco sobre o que se passava nas cadeias ecentros dedetengdo de Ian Smith e, para eles, a questdo cheirava muito mal. Samoradescreveu, na 6poca, a situaqdo como um golpe de Estado na Zanu, no interiordas pris6es de Smith, Nyerere tambe'm ndo ficou satisfeito. Mugabe foi metidonum avido e devolvido 'a prisa~o na Rode'sia.Em Dezembro foi libertado como parte do processo de desanuviamento e, emAbril, seguiu para Moqambique. Faltavam ainda dois meses para a independ6nciae Samora ndo estava la para o receber. 0 dirigente moqambicano acabava devisitar a China e a Coreia e estava prestes a iniciar as suas digress6es triunfaispela Tanzania e pela ZAmbia. Mugabe passou vdrias semanas em campos comrecrutas da guerrilha zimbabweana antes de ser mandado veranear paraQuelimane, onde ficou, virtualmente isolado, por varios meses.Em Margo de 1976, quando os comandantes da Zanu declararam que Mugabe erao seu dirigente, Samora interessou-se mals por ele. A questdo deNdabaningiSithole tinha sido clarificada e era evidente que ele tinha pouco apoio efectivo naZanu. Em meados do ano o alto comando do Zipa ndo sabia o que fazer arespeitode Mugabe. Os comandantes estavam divididos entre prosseguir sozinhos oualinhar atrds de Mugabe.Nhongo, a principal figura favordvel a Mugabe, e comandante militar do Zipa,estava numa posiqdo inc6moda. Mugabe estava longe, em Quelimane, eTongogara, a quem Nhongo era tamb6m leal, numa prisdo da Zambia, acusado deter assassinado Herbert Chitepo. Nhongo deixava Machingura, queera oComissario Politico do Zipa, fazer a maior parte das declarag6es u'blicas. EMachingura apresentava cada vez mais a ideia de que o Zipa era uma novaentidade politico-militar separada sem nenhuma obedi8ncia a nenhum dos antigosdirigentes polfticos.Apesar das contradiq6es internas a guerra no Zimbabwe, em 1976,desenvolveu-se a favor das forgas do Zipa. Era multo dificil para Samora saberque ala do Zipaapoiar: os lealistas da

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Zanu ou os independentes do Zipa, confessamente marxistas, dirigidos porMachingura.At6 perto do fim do ano inclinou-se para Machingura. Entdo aconteceu tudo aomesmo tempo. Ern Outubro a Zanu e a Zapu tiverarn. mais um ataque de unidade,formando a Frente Patrl6tica. Tongogara e outros detidos da Zanu na Zambiaforam libertaclos. Uma nova confer8ncia sobre a independEncia do Zimbabwe folorganizada em Genebra. Tongogara declarou o seu apolo a Mugabe. Machinguramanteve-se afastado e ndo quis ir a Genebra como parte da delegagdo da Zanu.Machingura era um jovem muito inteligente e muito dedicado A libertagdo do seupals. Mas tinha cometiclo um erro. Pensou que apresentando uma posiqaomarxista para o Zipa - posiqdo em que provavelmente acreditava genuinamente -teria o apoio de Samora. Este, no entanto, tinha ideias diferentes. Na sua opinido omovimento de libertaqdo do Zimbabwe estava a lutar pelo governo de maioria enao pelo socialismo.Os dirigentes do Zipa recusaram-se a ir a conferEncia de Genebrae comeqaram acompilar documentos atacando Mugabe, denunclando Genebra e anunciandoplanos para transformar o Zipa num partido polftico,Neste ponto o relacionamento entre Mo ambique e um futuro Zimbabweindependente estava em causa. A complexa mistura de disputas ideol6gicas,tribals e pessoais que tinha lugar entre os dirigentes do Zipa era perturbadora, e osministros e altos oficiais do exdrcito mogambicano andavarn ocupaclos aadivinhar quem estava a fazer o qu8 e porqu8.Em Dezembro Samora convocou os dirigentes do Zipa para a prala do Bilene, anorte de Maputo, oncle estava a passar as suas f6rias anuais. 0 encontro foldecisivo.Samora apresentou-se firmemente do lado de Mugabe e descompos Machingura eos seus apoiantes. Na medida em que Samora tinha, W entdo, mostradosimpatiapelos jovens dirigentes do Zipa, a sua atitude deve ter constitufdo umchoquepara. eles. 0 choque deve ter sido ainda malor quando, no m8s seguinte, foramdetidos e mantidos internaclos durante o resto da guerra.No Bilene Samora deu uma liqdo ao comit6 do Zipa sobre o que era, para ele, umponto fundamental: saber quando ne-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 153gociar 6 uma atributo indispensdvel de urn born general. Estava provavelmente apensar nas suas proprias experiencias de 1974 quando, apesar dasua fortehostilidade ern relagdo a Spfnola, negociou corn sucesso corn os portugueses.Nessa altura Nyerere era urn defensor de uma deliberagdo cuidadosa sobre aspossibilidades de uma paz negociada. Samora tinha dado ouvidos a um estadistamais velho e mais experiente e agora esperava que os jovens zimbabweanosfizessem o mesmo (').Virtualmente ordenou-1hes que enviassern uma mensagern de apoio a Mugabeern Genebra e disse a urn grupo de dirigentes para irern pessoalmente paraGenebra e juntarem-se delegado da Zanu.Samora estava zangado por vdrias raz6es. Para comeqar, os Presidentes da Linhada Frente tinharn pedido ao governo britdnico para convocar a confer8ncia e o

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acontecimento seria uma farsa sem a presenqa dos guerrilheiros doZipa, cuj'aacqao militar tinha enfraquecido o regime de Smith at6 ao ponto de ele aceltaruma tal confer8ncia. Em segundo lugar o comit6 directivo do Zipa, dirigido porRex Nhongo, tinha-lhe dito em Marqo, e de novo em Setembro, que Mugabe era oseu dirigente. Ern terceiro luaar Mugabe e Nkomo tinharn criadouma alianqapolitica, a Frente Patri6tica, que podia fazer muito para levar a comunidadeinternacional a tomar mais a s6rio o movimento nacionalista zimbabweano comoum todo. Em quarto lugar, as forqas armadas rodesianas tinharn levado a guerrapara o seu proprio pafs e organizado uma forga terrorista substituta. Samora tinhao dever, em, relaqdo ao seu pr6prio povo, de fazer todos(1) Ndo hd provas de que Nyerere tenha tido que fazer pressdo directa sobreSamora para negociar com os portugueses em 1974. Mas a hostilidade da Frelimopara com Spfnola era muito forte e isso foi reflectido num editorial do TanzaniaDailY News de 27 de Abril de 1974. 0 editorial, escrito ap6s consultas com umfuncionArio superior da Frelimo, condenava Spfnola como um homem que queriacontinuar o colonialismo portugu8s sob um novo disfarce. Dois dias mais tarde omesmo jornal publicou um editorial muito mais inteligente e pr6prio deurnestadista que, embora questionando a polftica de Spfnola, lhe oferecianegociaq6es para a independ8ncia c opaz e amizade com a Africa>>.Fui eu quemescreveu o primeiro editorial, Julius Nyerere, que era o editor-chefe do jornal,escreveu o segundo.

154 IAIN CHRISTIEos esforgos para garantir que o seu sofrimento ndo se arrastariaindefinidamente.Samora era muito bom a identificar o inicio de um processo. Podia ver,comoqualquer outro, que Smith muito provavelmente sabotaria Genebra, como tinhasabotado Victoria Falls. Mas W mesmo uma confer8ncia de Genebra falhada eraum f6rum para os nacionalistas. Henry Kissinger tinha sido um dos elementos-chave para a realizagdo da confer8ncia. Nessa altura tudo o queKissinger fizesseatraia a atengdo do mundo e, portanto, os zimbabweanos presentes estariam aestabelecer as suas identidades perante uma vasta audi8ncia intemacional.Ate' onde o mundo sabia, a questdo da Rode'sia envolvia, por um lado, Ian Smithe, por outro, Mugabe, Nkomo e o bispo Muzorewa. Os zimbabweanos, emGenebra, estavam a conseguir o estatuto de estadistas internacionais e, no futuro,seriam os elementos-chave de todas as movimentag6es politicas visando ogoverno de maioria, a ndo ser que o Zipa pudesse apresentar uma alternativa.A 6poca do encontro do Bilene tinha-se tornado 6bvio para Samora que o comit6dirigente do Zipa ndo era alternativa para a Frente Patri6tica na arena diplomaticainternacional. 0 comandante do Zipa, Nhongo, de qualquer forma, ficou muitosatisfeito por seguir Mugabe. Machingura era um porta-voz bern articulado dogrupo que favorecia uma identidade (mica para o Zipa, A parte dos movimentostradicionais, mas faltava ao grupo finesse diplomatica.Eles apenas tinham dado uma conferEncia de imprensa internacional, no HotelCardoso, em Maputo, em Setembro, que correu muito mal. A frente dascAmarasde televisdo britAnicas Machingura afirmou que a Grd-Bretanha n5o tinha odireito de convocar a conferEncia de Genebra e dissociou o Zipa de Mugabe.

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Como descreveu o rep6rter do Times de Londres: <<Usando uma boina castanhae uniforme cinzento, ele [Machingural estava acompanhado por cincomembrossuperiores da forga deilha cuja apar^ncia selvagem dificilmente seria apropriada para inspirar confiangaentre os brancos rodesianos.>> Nao se tratava de saber se os brancos rodesianos,cujo exe'rcito tinha assassinado perto de 700 refugiados zimbabweanos emNyazonia,

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 155em Mogambique, no mes anterior, mereciam uma tdo grande consideragdo. Masos homens do Zipa eram, na verdade, antipdticos. Foi tambe'm porisso, muitoprovavelmente, que Machingura se apresentou de boina, dado quetinha rapadotodo o cabelo e ficava com um aspecto muito mais bizarro com a cabeqadescoberta.0 espirito militar de Samora levou-o a exigir garbo e um comportamento dignodos seus proprios oficiais e ministros a todo o momento e esperava queos oficiaissuperiores do Zipa tivessem uma presenga igualmente digna. NoBilene ele posem causa as pretens6es de Machingura 'a direcqdo e disse-1heque ele ndoentraria nem pela porta da cozinha da Presidencia no Zimbabwe, ap6s a libertaqdo(11)).Um grupo do comit6 dirigente do Zipa f6i A confer8ncia de Genebra mas ndosurgiu nenhum acordo. Posteriormente as contradig6es entre o grupo deMachingura e a direc9do da Zanu ndo se resolveram e Samora sancionou ointernamento do primeiro. A partir desse momento Samora lidou com Mugabecomo dirigente polftico das forgas de guerrilha que transitavarn atrav6s deMogambique, e com Tongogara, que voltou a assumir o seu posto de comandantee manteve Nhongo como seu vice-comandante. Samora tinha-se colocado ao ladode Mugabe por raz6es que pouco tinham a ver com a popularidade pessoal deMugabe no interior da Rod6sia. Nem Samora nem Mugabe tinham forma deavaliar isso nessa epoca. Mas quando foram realizadas as primeiras eleig6es livresno Zimbabwe, em 1980, tornou-se, 6bvio que Mugabe tinha um apoiomacigo.(11) 0 meu relato das discuss6es no Bilene 6 retirado de uma conversa n5ogravada com o Assistente Especial de Samora, Fernando Honwana, que actuavamuitas vezes como int6rprete entre o Presidente e os dirigentes zimbabweanos.At6 onde recordo 6 uma descriq-5o correcta, mas nao me foi possfvel voltar aconfirmar com Honwana no momento em que estou a escrever: ele morreu juntocom Samora.

8. 0 caminho para MbuziniNo perfodo que se segulu ao colapso da confer8ncia de Genebra oregimerodesiano aumentou os ataques a Mogambique, numa tentativa de forqar Samoraa acabar com o apoio aos guerrilheiros da Zanu. Perante isto Samoraestava numaposiqdo fraca. 0 ano de 1977 tinha comeqado mal, com grandes perdas decolheitas e de gado causadas pelas piores cheias do rio Limpopo emcerca de um

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quarto de seculo, e havia muitos outros factores que favoreciam aofensivarodesiana:- Apo's a independencia Samora e os seus colegas tinham-se instalado semnenhuma experiencia directa ou conhecimento sobre administragdo de um Estado.Era inevitdvel que cometessem erros de julgamento, de que osrodesianos podiam aproveitar-se.- Moqambique ndo tinha um exercito regular modernoe bem equipado. A estrutura de gueffilha herdada dos dias da guerra pelaindepend8ncia surgia como inadequada face a grandes invas6escom infantaria eartilharia e um forte apoio aereo. Os mogambicanos eram obrigados a investir

158 IAIN CHRISTIEfortemente em material militar pesado, o que limitava severamente acapacidadede o governo melhorar o n' el de vidados seus cidaddos.- Em parte devido ao crescimento das despesas com aguerra e em parte porque quase todos os te'cnicos no pals eram portugueses etinham ido embora, os moqambicanos ndo eram capazes de reparar as infra-estruturas destrufdas durante os ataques rodesianos. Ao esmagar aldeias e destruirestradas, pontes, linhas de caminho-de-ferro e centros vitais de telecomunicag6es,o comandante militar de Smith, o general Peter Walls, estava a fazermuito maisdo que aumentar o factor custo da guerra: estava a mostrar que os moqambicanosestavam a perder o pouco que tinham herdado dosportugueses e, em breve, n5o terlam nada.- Os rodesianos conheciam perfeitamente a zona fronteiriga de Moqambique. Ndoso' combatiam nessa drea desde o inicio da decada como tinham ajudado osportuguesesa traqar mapas pormenorizados da zona.Apesar dessas fraquezas e de pesadas baixas humanas e materiais na guerra, adirecq5o da Frelimo transformou 1977 num ano de acqdo nas frentes interna einternacional.Internamente houve dois acontecimentos importantes: o terceiro congresso daFRELIMO, que transformou o movimento num partido de vanguarda marxista-leninista, Frelimo, e eleiq6es gerais que criaram o parlamento nacional, aAssembleia Popular, bem como conselhos locais por todo o pafs.Desta formaeram estabelecidos os componentes ba'sicos de uma nova estrutura de poder.Um outro desenvolvimento interno nesse ano comeqou em Marqo, quandoSamora falou aos estudantes para lhes anunciar que os que estavam nos 61timosdois anos do ensino secundario iriam ser professores, fazer cursos acelerados paraentrar na Universidade ou para as forqas armadas. Disse-lhes que sabia que elestinham as suas pr6prias prefere^ncias e ambiq6es profissionais, mas que o pal'sn5o tinha um dnico agronomo nem um piloto de caqas a jacto. Era essaa heranqado colonialismo portugues. Fez apelo ao patriotismo deste grupo, a elite da ju-

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ventude mogambicana que, de uma forma geral, ficou zangadfssimacorn adecisdo. Muitos derarn consigo metidos nurn uniforme militar num. centroeducacional especial para cursos acelerados, ern Maputo, enquanto outros eramenviados para a Unido Sovietica para formaqdo como pilotos de cagas MIG.Os jovens estudantes ndo se apercebiarn, provavelmente, do significado daformagdo na Unido Sovi6tica como pilotos de MIG e engenheiros. Samora sabiaque o seu pai's estava numa guerra que ia durar e ndo queria estar dependente depessoal militar estrangeiro. Queria que o seu pr6prio povo fosse capaz de pilotar emanter a sofisticada maquinaria de guerra.0 ano de 1977 foi igualmente importante nas relaqo-es externas. Nofinal deMargo o Presidente Podgorny, da Unido Sovieftica, fez uma visita aMogambique. A visita culminou com. a assinatura de um tratado de amizade ecooperagdo de 20 anos que inclufa uma c1dusula sobre coordenaqAo daestrat6gia de defesa ono caso de situag6es que tendarn a amea ar ouperturbar apaz>>.0 mesmo me^s assistiu a uma visita 'a cidade da Beira pelo dirigente cubano,Fidel Castro, e, quando Samora visitou Havana, ern Outubro, foi assinado umtratado de amizade, por 20 anos, entre Mogarnbique e Cuba.Mas Samora continuava com a sua politica de ofazer mais amigos e menosinimigos>>. Ern Abril realizou a sua primeira visita ao, Ocidente como chefe deEstado, fazendo uma digressdo pela Sue'cia, Noruega, Dinamarca e Finlandia.Um sinal do sucesso dessa visita e que, nesse mesmo ano, os paisesn6rdicosassinararn uma acordo agri'cola, no valor de 50 milh6es de d6lares, cornMogarnbique - o maior apoio conjunto dos n6rdicos a urn paifs ate' Aquela. data.Ern Junho Samora enviou Marcelino dos Santos ao ConseIho de Seguranqa dasNaq6es Unidas para apelar 'a assist8ncia militar e de outro tipo de toda acomunidade internacional, face a escalada rapidamente crescente da agressdo peloregime ilegal rodesiano. Nesse momento Samora estava a tornar claro, que, se oseu governo se tornasse militarmente dependente da Unido Sovietica, de Cuba eoutros pafses socialistas, o Ocidente ndo tinha o, direito de se queixar. Estava-se apedir 'as pot8ncias

160 IAIN CHRISTIEocidentais para ajudar Mogambique a defender-se contra um regime em abertarebelido contra a coroa britanica.Mogambique conseguiu, de facto, uma resolugdo do Conse1ho deSegurangaapelando a todos os paises para ajudarem Mogambique com assistenciamilitarpara defender as suas fronteiras contra os ataques rodesianos. Nenhum dosmembros ocidentais do Conselho vetou a resoluqdo. Considerando queMoqambique era um estado marxista-leninista de partido dnico, a votagdo era, emsl pr6pria, uma vit6ria notdvel, embora, na prdtica, ndo tenha sido fornecidonenhum apoio militar ocidental.Foi em 1977 que dois ocidentals, rece'm-chegados 'a cena polfticada AfricaAustral, saltitaram pela regido, na esteira do falhango, em 1976, do pr6priogrande saltador, Henry Kissinger. 0 embaixador dos Estados Unidosnas Naq6esUnidas, Andrew Young, e o secretdrio para os Neg6cios Estrangeiros brita^nico,

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David Owen, apareceram com um novo plano de soluqa-o para a Rod6sia queficou conhecido como as Propostas Anglo-Americanas.0 plano acabou por se afundar como todas as anteriores propostas ocidentais masndo antes de Samora ter provocado um forte impacto em Young e Owen. QuandoSamora foi morto, Owen ficou suficientemente comovido para escrever umafectuoso tributo, intitulado oAfrica perde um realista>>:Se Moqambique se tivesse colocado 'a parte da luta naRod6sia, ter-lhe-ia sido possivel estabelecer um relacionamento com a Africa doSul. Uma linha de actuaqdo do tipo <<Mogambique estd primeiro>> deve terparecido muito tentadora. Mas, como fizeram Kenneth Kaunda e Seretse Khamano Botswana, Samora Machel nunca hesitou em apoiar a luta do Zimbabwe.Moqambique tornou-se o lar de Robert Mugabe e da Zanu. Foi esterelacionamento entre Machel e Mugabe que se tornou a forja da independ6ncia doZimbabwe. Machel ndo p6s limites ao seu apoio, embora experimentasseconstantes incurs6es das forgas de Ian Smith e infiltrag6es dos Selous Scouts. Umelemento crucial desta ruptura tdo precoce foi o apoio dos serviqos secretosrodesianos ao movimento de guerrilha moqambicano, Renamo.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 161Ap6s a independencia do Zimbabwe a Renamo continuou, com o apoio da Africado Sul, e tornou-se uma ameaga real.A amizade de Machel para com Mugabe e o seu engajamento na sua causa foramsempre bem pensados, realistas e determinados. Ele foi um dos primeirosdirigentes africanos a ver os mritos das propostas anglo-americanas. Queria ligaro poder dos Estados Unidos A luta pela liberdade do Zimbabwe e estavaperfeitamente consciente que nem a Unido Sovi6tica nem a AlemanhaOriental ouCuba tinham a capacidade que seria necessiria para derrubar Ian Smithe estabelecer um Zimbabwe independente (').Naquela altura, como indicava Owen, muitos outros dirigentes africanos n.o viamgrande vantagem em tentar ligar o poder dos Estados Unidos A luta pela liberdadedo Zimbabwe. Mas Moqambique estava na linha de fogo e Samora tinha maisraz6es que muitos outros para procurar aliados em sftios improvveis.Havia, contudo, vaurios obstaiculos ao estabelecimento de boas relag6es com osEstados Unidos e os seus principais aliados. O Congresso dos Estados Unidostinha posto Moqambique na sua lista negra de ajuda econ6rmica, os parses daOTAN tinham ligages militares com a Africa do Sul, havia mercendiriosamericanos e britanicos incorporados nas forgas armadas rodesianas e, pelomenos do ponto de vista de Mogambique, a imprensa ocidental estava arealizaruma campanha contra Mogambique. Para alfm disso, Washington tinha ajudado,anteriormente, o regime colonial portugu~s.Samora teve a primeira oportunidade de conversar sobre as relaq6es entre os doisparses frente a frente com um Presidente dos Estados Unidos quando foi AAm6rica em Outubro de 1977, para se dirigir As Naq6es Unidas. Num encontrocom o Presidente James Carter ofereceu-se para <apagar o quadroe esquecer acolaboragdo passada entre Washington e Lisboa (2). A julgar pelos comentiriossubsequentes do Conselheiro Nacio(') Times, Londres, 21 de Outubro de 1986.

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(2) Isaacman, Mozambique: From Colonialism to Revolution, Westview, Boulder,Colorado and Zimbabwe Publishing House, 1983, p. 185.

162 IAIN CHRISTIEnal para a Seguranqa de Carter, Zbigniew Brzezinski, o Presidentendo gostou que1he recordassem essa colaboragdo. Segundo Brzezinsky, Samora abriu o encontrocom uma tirada de cinco minutos sobre o alegado apoio americano aocolonialismo europeu. Carter ouviu sem piscar um olho. Quando Samora,finalmente, parou, Carter inclinou-se para a frente, olhou para o seu h6spede bemnos olhos e disse, muito calmamente, <<Senhor Presidente, o senhor tem umaideia muito distorcida do meu pals>>.Ainda segundo Brzezinski, Samora ficou surpreendido e caiu em silencio.Brzezinski n5o especula sobre o que Samora estaria a pensar nesse momento.Talvez, no entanto, estivessem a passar pela mente do dirigente moqambicanomemorias da assist8ncia que os militares dos Estados Unidos deram aKadlza deArriaga, ou o investimento de 435 milh6es de do'lares que Richard Nixon fez nofascismo portugues, em 1971. Samora n5o consegulu um tostdo deWashington eapolo militar era um sonho absurdo. Deve ter pensado sobre quem, afinal, tinhauma ideia distorcida sobre o pafs do outro.Carter, nas palavras de Brzezinski, <<podia ser muito brusco - emesmo assimndo ofender desnecessariamente>>. Esta brusquiddo inofensiva, no entanto, na-oaparece na frase seguinte de Carter. Brzezinski diz que Carter,<<no mesmo tomdescontraido, continuou dizendo que ndo precisava de lig6es de alou6m quedirige uma sociedade totalitaria (e usou a palavra "totalitdria") sobre a forma degovernar a Am6rica e sobre qual deveria ser o papel da Am6rica nomundo>> (3).Samora ndo reagiu a esta brusquiddo inofensiva. Ao contrdrio de Carter ele tinha,de facto, vivido sob um regime totalitario e sabia o que isso era. E recordava-se dequern. tinha despejado dinheiro nesse regime.Numa entrevista em Maputo, em Maio de 1979, Samora foi estranhamente cort8spara com Jimmy Carter. Nessa altura ja as propostas anglo-americanas para oZimbabwe tinham sido abandonadas e havia mais raz6es do que em qualqueroutra ocasido(1) Brzezinski, Zbigniew, Power and Principle, New York, Farrar-Straus-Giroux,1983, p. 527.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 163para dizer a Carter o que deveria ser a sua polftica para a Africa Austral. Em vezdisso Samora foi brando.0 Presidente Carter e a sua administragdo tentararn iniciar uma nova polifticaamericana em relagdo a Africa que, pela primeira vez, afastasse osEstadosUnidos das injustigas do colonialismo, racismo e apartheid. Essa intenqdo e'positiva, mas permanecern realidades desconcertantes apesar da boa vontadeexpressa. Temos observado as posig6es permanentemente hesitantes dos EstadosUnidos ern relagdo ao Zimbabwe e 'a Namilbia. 0 abandono do planoanglo-americano para o Zimbabwe, o virtual abandono do plano das cincopote^ncias

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ocidentais para a Namibia, testemunham uma falta de coerencia ou umaincapacidade paraimplementar uma polftica de boas intengo-es.Samora tinha uma idela clara sobre o peso relativo dos Estados Unidose deMoqambique. oNdo podemos dizer aos Estados Unidos para fazer isto ouaquilo>>, disse ele. E acrescentou que oCarter e' uma pessoa de boa vontade.Vamos-lhe dar mais algum tempo antes de o julgar>> (4).Na verdade a administraqdo Carter tinha aparecido com destaque nas negociag6essobre o Zimbabwe de 1977 e 1978, dando mesmo um papel activo ao secretariode Estado Cyrus Vance numa certa fase, mas o efeito sobre Ian Smithndo foiaquele que a Frente Patri6tica e os Estados da Linha da Frente queriam. Tendoque enfrentar uma crescente pressdo militar dos guerri1heiros e pressdodiplomatica do Ocidente, Smith institucionalizou o tipo errado de mudangas.Enquanto aumentava os ataques a Mogambique e A Za^mbia assinou um oacordointerno>> com tr8s zimbabweanos que n5o faziam parte do esforgo deguerra daFrente Patriotica - o bispo Muzorewa, Ndabaningi Sithole e um chefetribal pagopelo governo chamado Chirau. Haveria uma forma qualquer de eleig6es e o pafsmudaria o nome para Zimbabwe-Rod6sia, mas o poder militar e polftico(1) Sarnora Machel nurna entrevista a Allen Isaacman e lain Christie ern Maputo,ern Maio de 1979.

164 IAIN CHRISTIEcontinuaria, efectivamente, nas mdos da minoria branca. E f0i assim que oConselho Nacional Afficano Unido (UANC) de Muzorewa venceu as<<eleiq6es>> de Abril e o bispo foi designado <<primeiro-ministro>> em Junho.Os termos do acordo de Smith eram claramente destinados a mantero statu quo.A Zanu e a Zapu foram excluidas das eleig6es. Ndo houve supervisaointernacional e as forgas de seguranqa rodesianas andaram a arrebanhar pessoaspara as obrigar a ir votar. 0 Conselho de Seguranqa das Naq6es Unidas tinhaconsiderado o acordo interno como <<ilegal e inaceltdvel>> mas havia sinaisinquietantes de que o governo nominalmente dirigido por Muzorewapoderiareceber algum reconhecimento internacional. 0 Senado dos Estados Unidos estavaa tentar forqar Carter a levantar as sang6es. 0 reconhecimento pelaGrd-Bretanhaparecia iminente apos a vit6ria eleitoral do Partido Conservador de MargaretThatcher em Maio de 1979. Thatcher tinha-se referido 'a Frente Patrioltica como<<uma organizagdo terrorista>> e o seu grupo de observadores naseleig6es doZimbabwe-Rodesia afirmou que foram conduzidas de forma justa.Samora e os seus colegas, da Linha da Frente, contudo, consideravarn as eleiq6essem valor, uma tentativa para afastar uma verdadeira liberdade e independ8nciapara o Zimbabwe. Moqambique avisou que uma ocumplicidade externa>> com oacordo, por outras palavras, a sua aceitaqdo por Londres e Washington,significaria a continuaqdo da guerra e o perigo da <<internacionalizaqdo doconflito>>.Estas palavras soam de forma familiar. Foi o mesmo tipo de aviso - outeria sidobluff? - que Samora fez em Setembro de 1974 quando os colonos fascistas eSimango tinham capturado a estagdo de rddio e se preparavam para afastar a

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verdadeira independencia de Mogambique. Quer Samora estivesse a fazer bluffem 1974 quer ndo, desta vez ndo estava.Ndo eram so' os dirigentes dos Estados da Linha da Frente que estavamaborrecidos com a possibilidade de Londres e Washington tentarem conferirrespeitabilidade ao regime do Zimbabwe-Rode'sia. Os pa'ses socialistas tambemestavam preocupados, e Cuba apresentou um plano para enfrentara amea aocidental. 0 plano envolvia a organizaqdo de uma cerimonia de

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 165independencia numa drea do Zimbabwe controlada pelos guerrilheiros da Zanu ea indicagdo de um govemo da Frente Patri6tica, antes de Muzorewa poder tomarposse. Isto envolvia levar a essa cerimonia rep6rteres e fotografos de dezenas depaises socialistas e ndo alinhados, cujos governos reconheceriam, depois, ogoverno da FP.Samora estava, aparentemente, disposto a fazer a experi8ncia. t claro que acaravana teria que entrar no Zimbabwe a partir de Moqambique. Martin eJohnson, que se referem pormenorizaclamente a este extraordinario plano em TheStruggle for Zimbabwe, dizem que estava a postos um batalhdo mecanizado comartilharia e uniclades antia6reas para ir com Nkomo, Mugabe e os homens daimprensa.Tudo isto se baseava na teoria de que Mugabe e Nkomo poderiam transformar aFP de uma allanga frouxa entre rivais numa frente polftica unicla. Esse era osonho de Samora. Tempos antes, em 1979, ele e os ajudantes tinham tragado umesquema de uniclade que faria de Nkomo o dirigente titular, enquantoa Zanu deMugabe teria a maloria do poder, especialmente na area militar. Samora pareciapensar que este esquema satisfaria a vaidade de Nkomo ao mesmo tempo queprotegia o controlo por Mugabe da luta de guerrilhas. Os cubanos propuseramuma estrutura similar para o governo da FP nas zonas libertaclas.Joshua Nkomo ndo gostou do plano de uniclacle quando o ouviu da boca dosdirigentes da Linha da Frente, em Abril, e ainda gostou menos quando ovoltou aouvir, remenclado e incorporado num projecto de independ6ncia, em Junho.Quando Samora convocou uma cimeira da Linha da Frente para Maputo, paradiscutir o plano cubano, Nkomo clemonstrou o seu desagrado recusando-se acomparecer. Isto foi uma surpresa para Samora porque um enviado cubano, osecretario para as Rela96es Exteriores do particlo Raul Valdez Vivo, Ihe tinhadito que Nkomo tinha concordado. Samora ficou, entdo, na embaragosa posigdode receber Nyerere e Kaunda para uma cimeira da Linha da Frente sem ter nadana agenda. Disse a Martin Mora, o embaixaclor cubano, para enviarumamensagem a Castro exprimindo o, seu aborrecimento por este fracasso.

166 IAIN CHRISTIEDevido 'a rejeiqdo de Nkomo o plano cubano desmoronou-se. Na realidade ndofoi um grande desastre porque nenhum pafs reconheceu a administragdoMuzorewa como governo genuino. Se o plano tivesse prosseguido,contudo, operigo de ointernacionalizaqdo>> do conflito, de que Samora advertia, teria sidobem real. Teria havido dois governos no Zimbabwe, urn. apoiado pelo Ocidente e

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seus aliados e o outro apoiado pelo resto do mundo. A Africa do Sul poderiatamb6m ter intervindo em for9a, como defensora dos interesses do Ocidente. 0resto pode ser deixado A imaginaqdo.Para Samora a questdo jd ndo era simplesmente um problema de justiqa para opovo do Zimbabwe. Por esta altura cada vez mais traidores moqambicanosestavam a ser capturados no decoffer das incurs6es e as suas declarag6esapresentavam uma imagem terrivel dos planos da Rode'sia e da Africa do Sul emrelaqdo a Moqambique. Tinha sido estabelecida uma forma de actuaqdo.Moqambicanos a trabalhar nas minas da Africa do Sul eram recrutados para treinomilitar na Rod6sia, a partir da qual tomarlam lugar em incurs6es emMoqambique, ao lado do ngcleo da <<Resist8ncia Nacional Moqambicana>>,formado por ant1gos membros das forgas especiais portuguesas.0 primeiro casopublicitado referia-se a um emigrante, um mineiro-transformado-em-mercenariochamado Afonso Cotoi. Depois de ter sido capturado disse que f6i recrutado naAfrica do Sul e levado para a Rod6sia para. treino militar ministradopor sul-africanos, rodesianos e portugueses.Tinham-lhe dito que o seu chefe era Jorge Jardim, o magnata. portugues que tinhasido c6nsul do Malawi na Beira. Um dos objectivos do grupo era assassinarSamora e outros dirigentes da Frelimo (1).Mogambique 6, e ja era nessa altura, um pafs pobre e portanto recrutarmercendrios como Cotoi ndo era dificil. Tornou-se ainda menos diffcil depois deos rodesianos e os seus fantoches destruirem escolas, postos desau'de einstalaq6es de comunica96es que tinham sido construfdos apos a independencia.Novas aldeias, com todas essas instalag6es, foram atacadas e os cam-(') Boletim de lnfonna !do da AIM, n.* 15.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 167poneses foram assassinados. Para muitos jovens, juntar-se aosbandidos era alinha de menor resist~ncia.Em 1979 o crescimento de um exercito de bandidos estava na sua infancia. Mas jaestava presente e era uma ameaga aos esforgos da Frelimo para construir umanova naqao.Apareceu uma forma de sair do pAntano. A Conferencia da Commonwealth, umf6rum tradicional de debate sobre a Africa Austral, deveria ser realizada, esse anopela primeira vez, na Africa Austral. Em Lusaka, uma capital da Linha da Frente.Samora ndo era um dirigente da Commonwealth e mal tinha uma vaga ideia sobreo que era a Commonwealth, mas um dos seus pontos fortes era conhecer as suasfraquezas. Queria conhecer esse fen6meno Commonwealth, de forma que enviouum dos seus ajudantes a Londres, para investigar. Foi o Assistente Especial doPresidente, Fernando Honwana, homem ji muito versado em quest~esrelacionadas com a Grd-Bretanha. Tinha li vivido e tinha-se formadonaUniversidade de York antes de se transformar em comandante de pelotdo noexercito de libertaqdo da Frelimo.Samora decidiu nao comeqar uma luta com Thatcher. A posiqdo dela eraambfgua. Por um lado chamava oterroristas aos guerrilheiros da Frente Patri6tica

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mas, por outro lado, comprometia o seu governo com um cgenufno governo demaioria negra na Rod6sia . Havia espago para discussdo.Samora ndo podia participar na Conferencia da Commonwealth em Lusaka masfoi organizada uma cimeira da Linha da Frente na v6spera do encontro, na capitalzambiana, especificamente para discutir a estrat6gia sobre o Zimbabwe. 0Presidente Agostinho Neto, de Angola, que nessa 6poca abrigava a direcqo daZapu, exilada em Luanda, esteve presente e teve um encontro privado comSamora num hotel de Lusaka antes do infcio da cimeira. Por sorte eu estava aentrevistar Samora no seu quarto de hotel quando Neto chegou. Umempregadotinha acabado de deitar duas generosas doses de whisky Dimple, uma para mim eoutra para Samora. Samora tinha olhado para mim, com um brilho travesso noolhar, e disse: <Este 6 tamb6m para ti, escocs>, enquanto despejavao copo deleno meu. A brincadeira parou quando Neto entrou. Samora ficou visivelmentechocado com a apar~ncia descarnada e macilenta do seu velho

168 1AIN CHRISTIEcamarada dos dias da luta contra o colonialismo portugu8s. Neto estava a morrerde cancro.Nessa altura Samora. tinha sido bern informado por Fernando Honwana sobre aforma de trabalhar da Commonwealth e tinha-se apercebido que o EncontroRegular de Chefes de Govemo (CHGM) podia ser muito influente. Mascontinuava a achar o acontecimento, com a presenqa da rainha Isabel nacerimonia de abertura, uma colsa um bocado bizarra. Os carros oficlais, emLusaka, tinham umas placas especiais dizendo CHGM, o que levou Samora adizer, divertido, a um dos seus ministros: <<Sabes o que aquilo quer dizer? tChegou Hoje a Grande Mde.>> Ndo estava claro se se referia A Rainha ou Asenhora Thatcher.Na cimeira da Linha da Frente Samora e Neto acordaram com os tr8s membros daCommonwealth, Nyerere, Kaunda e Khama, sobre as tActicas para aConfere^ncia. Partindo da hipo'tese de que Thatcher poderia ndo ser tdo inflexfvela respeito do Zimbabwe como implicava o seu comentairio sobre <<terroristas>>e poderia ser levada a uma soluqdo que livrasse, de vez, a Grd-Bretanha doproblema rodesiano, chegaram a acordo que Nyerere deveria fazer um discurso demoderaqdo, razoavel, embora mantendo os princl'pios bdsicos. Portanto, odirigente da Tanzania, enquanto insistia em eleiq6es correctas e numaconstituiqdo democrdtica, chamou a atenqdo para que Ian Smith jd tinha aceite oprincfpio do governo de maioria. Smith que tinha, em tempos, dito que isso ndoaconteceria nem em mil anos. Smith pode ter pensado que a sua manobraZimbabwe-Rode'sia iria, na prAtica, manter o governo de minoria sob uma formacamuflada, mas n5o o podia dizer em pu'blico.Thatcher, a conselho do seu secretdrio para os Neg6cios Estrangeiros, LordCarrington, aceitou a responsabilidade colonial da Grd-Bretanha pela Rodesia econvocou todas as partes envolvidas para uma confer8ncia sobrea independenciana Lancaster House, em Londres. Haveria eleiq6es livres e justas, sob supervisdobritinica e com observadores da Commonwealth. Samora ficou encantado. Em1978 tinha enviado soldados moqambicanos para o interior da Rod6siacom os

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gueffilheiros da Zanu e tinha, em conseque^ncia, sido informadosobre a situaqdointerna. Era evidente o grande apoio 'a Zanu.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 169A conferencia de Lancaster House, que comeqou a 10 de Setembro de 1979, tevegrande apoio de Samora. Alguns membros da direcqo da Zanu eram menosentusia'sticos, ndo confiando no governo de Thatcher e receandoque aconfer~ncia fosse uma manobra para lhes retirar a vit6ria que em breve seria suano campo de batalha. Dirigentes da Zapu corn quem falei em Lusakaimediatamente ap6s Thatcher ter anunciado que seria realizada a confer~ncia naos6 ndo estavam entusiasmados como eram claramente hostis a todo oplano. MasSamora e os seus colegas da Linha da Frente convenceram as duasalas da FrentePatri6tica a ir a Londres e negociar seriamente.E uma tentaqdo comparar e contrastar a oposiqdo de Samora ao voto no seupr6prio pals, depois do golpe em Portugal em 1974, e o seu entusiasmo pelasurnas na Rodesia. De facto as duas situaq6es eram muito diferentes. A Frelimoera o dnico movimento de libertagdo efectivo em Mogambique em 1974 e o queSpfnola oferecia era urn referendo sobre a descolonizagdo, uma questdo que, aosolhos das NU, nao se punha: as pot~ncias coloniais deviam pura e simplesmenteabandonar as suas col6nias. A Rodesia, por outro lado, estava a serdescolonizadapela Grd-Bretanha, com elei 6es devidamente supervisionadas para determinarqual dos va'rios partidos zimbabweanos rivais tinha apoio da maioria.A conferencia de Lancaster House foi uma coisa tortuosa que searrastou durantemeses. Samora manteve uma delegagAo em Londres o tempo todo no paraparticipar na pr6pria conferencia mas para fazer a ligagdo cornMugabe e Nkomoe, na medida do possfvel, corn as autoridades britanicas. A posiqoconstrutiva deSamora em relaqdo aos acontecimentos impressionou o presidente daconfer~ncia, Lord Carrington, e a pr6pria senhora Thatcher. Samora tamb6mficou impressionado com a determinagdo de Thatcher em resolver o problema.Surgia uma relagdo especial entre o marxista Samora e a ultraconservadoraThatcher (6).(6) Esta relago especial reforgou-se no princfpio de 1980, durante a transi .o doZimbabwe para a independ~ncia sob o governador-geral brit.nico,

170 IAIN CHRISTIEA 21 de Dezembro foi assinado um acordo em Lancaster House, ern parte devidoAs press6es exercidas por Samora sobre a Zanu. Ele estava convencido de que oacordo que era oferecido satisfaria as aspirag6es dos nacionalistas. Haveria urncessar-fogo, eleiq6es e a independ8ncia. A Frente Patrio'tica tinha que fazer aconcessa-o num ponto importante: haveria lugares do parlamento reservados parabrancos. Mas no seu conjunto o acordo garantia urn governo de maioria nurnZimbabwe independente.Para Samora Machel o acordo de Lancaster House era mais do que urn acordopara po^r firn a uma disputa constitucional. Era um. acordo para terminar umaguerra em que Mogambique era um participante activo. Durante a conferEnciatinha havido desenvolvimentos importantes ern Mogambique. 0 general Walls

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lanqou alguns dos maiores ataques de toda a guerra, causando grandes destruig6esno ocidente de Mogambique. Como aspecto positivo havia o facto de osrodesianos terem perdido o seu mais eficaz traidor mogambicano,Andr6Matzangaissa, o homem que tinham colocado A frente da RNM. Mas na alturaern que Matzangaissa foi morto pelo exe'rcito mogambicano, em Outubro, osrodesianos jd tinharn estabelecido uma grande base da RNM na Gorongosa,mesmo a norte do Corredor da Beira.Samora ndo parecia preocupado corn a RNM, nessa altura. Pareciapensar que eladesapareceria junto com o seu criador, o regime rodesiano. Ele tinha,intencionalmente, evitado provoLord Soames. Tinham sido feitas tentativas paraassassinar Mugabe, milhares de membros da Zanu, que tentavarn regressar aoZimbabwe, a partir de Moqambique, para votarern nas vitais eleiq6es para aindepend6ncia foram impedidos de o fazerem pela administraq5o brit5nica; eLord Soames ameaqava impedir a Zanu de concorrer As eleig6es ern certas zonas.Samora notificou o governo de Thatcher de que os membros da Zanu emMogambique estavam armados, que n5o tinha sido por culpa deles que ndotinharn regressado para entregar as suas armas e que seria diffcil para ele impedi-los de retomarem a guerra no caso de Mugabe ser assassinado ou os candidatos daZanu injustamente banidos. A ameaga de banir candidatos da Zanu foi retirada eMugabe foi o triunfador das cleiq6es. A seguir, Samora convidouSoames parauma recepqdo com champagne no palAcio, ern Maputo, onde descreveu a senhoraThatcher como o melhor primeiro-ministro britfinico desde 1965, ano daDeclaragdo Unilateral de Independ8ncia (UDI) de Ian Smith.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 171car o regime sul-africano para uma posiqdo de hostilidade militar.0 Malawi eraagora um aliado potencial porque tinha acesso aos portos da Beirae de Nacala.Finalmente parecia ndo haver obstdculos s6rios ' paz em Mogambique.Contudo, na realidade o acordo de Lancaster House e a vit6ria estrondosa da Zanunas eleigfes de Fevereiro de 1980 marcaram o inicio de uma nova,e maismortffera, fase na guerra contra Mogambique. Os ataques pelas forgas armadasrodesianas pararam mas a Africa do Sul passou entdo a exercer um controlodirecto sobre a campanha para desestabilizar Moqambique.As autoridades sul-africanas tinham ficado alarmadas pelo crescimento de SamoraMachel. Ndo podiam ter esquecido as entusidsticas manifestaq6es afavor daFrelimo nos subtirbios sul-africanos negros ap6s a derrota do colonialismoportugues em Moqambique. Agora, em 1980, o Zimbabwe tinha um governo demaioria devido a um exercito de guerrilha que se tinha inspirado muito na Frelimoe que tinha beneficiado do apoio logistico de Samora. A estrutura do poder brancona Africa Austral estava, ao que parecia, a ser derrubada, tijolo a tijolo, e Samoradestacava-se visivelmente na equipa de demoliqdo.0 problema para os defensores da supremacia branca na Africa Austral ndo eraapenas o facto de Samora ser um inimigo inteligente e cheio de recursos que seestava a tornar inc6modo. Uma questao mais s6ria era que, para muitosmilh6esde pessoas, ele se estava a tornar um sfmbolo vivo e vibrante da inevita'vel vit6riada luta de libertagdo. Esta imagem idealizada de Samora junto da juventude do

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subcontinente era, num sentido muito real, um perigo maior para o apartheid queo pr6prio Presidente e comandante-em-chefe em carne e osso. Umhomem podeser morto num segundo. Destruir um simbolo leva mais tempo.Ap6s Lancaster House as autoridades de Pret6ria moveram-se rapidamente paracomeqar a destruiqdo sistema'tica da imagem de Samora e da Frelimo, atirandolixo para Mogambique. Os pistoleiros da RNM passaram do Zimbabwepara aAfrica do Sul, onde receberam armas e treinamento que os transformaram numaameaqa muito maior para a administragdo de Samora. Foram treinados,essencialmente, para destruir a economia e o

172 lAIN CHRISTIEtecido social de Mogambique atrav6s de uma campanha de sabotagens e terror.As infra-estruturas econ6micas e sociais do pais jd tinham sido seriamenteenfraquecidas pelas repercuss6es da confrontado com o racismo.0 custoecon6mico directo de impor as sang6es das NU contra a Rod6sia estava muitoacima dos 500 milh6es de d6lares, segundo estimativas das NU, e os prejufzoscausados pelas incurs~es rodesianas fazem os niimeros subir para perto de 600milh6es. Isto corresponde a mais de duas vezes o valor das exportag6es anuais deMoqambique no seu melhor ano de com6rcio externo ap6s a independ~ncia,1981. A Africa do Sul, entretanto, tinha estado, devagar mas sistematicamente, aapertar os parafusos de Mogambique, explorando as relaq6es de dependencia quetinham sido estabelecidas no periodo colonial. A Camara de Minas da Africa doSul reduziu o recrutamento de mineiros mogambicanos de 118 030, em 1975, para45 824 em 1980 e revogou um acordo de 1928 segundo o qual o governo deMogambique podia usar 60 % dos salirios dos mineiros para comprar ouro a umprego preferencial. 0 porto de Maputo, que foi construfdo principalmente paraservir a Africa do Sul, foi, ap6s a independ~ncia de Moqambique,sistematicamente privado do sangue vital que 6 o comercio sul-africano.Para al6m das perdas em dinheiro causadas por estes acontecimentos, houve umgrande custo social. 0 governo de Samora ndo conseguia arranjar empregos paraos homens que ji nao podiam ir trabalhar nas minas de ouro do Rand nempara as10 000 outras pessoas que tinham sido despedidas na zona da Beiraem resultadodas sanq6es contra a Rod6sia.Apesar disto tudo houve alguns avangos importantes no perfodo at6 1981, o anoem que o patrocfnio da Africa do Sul A RNM comeqou a surgir em termosdeuma muito maior capacidade de destruigdo. Ate 1981 mais de 10 000 hectares deterra de cultivo tinham sido irrigados. A produgdo de castanha decaju, a principalexportagdo do pafs, foi a maior desde a independ~ncia e as receitas totais, detodas as exportaq6es, atingiram o nfvel recorde de 250 milh~es de d6lares.Estavam a ser construfdas novas f-ibricas, principalmente paramanufacturart~xteis e processar madeira. Tinham sido construfdos centenas

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 173de postos de sadide e todos os distritos do pais tinham, pelo menos, urntrabalhador da sauide profissional. Mais de 10 000 professores primrios tinhamsido formados para responder a uma explosdo na educago: o nu-mero de alunos

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da escola prim ria tinha duplicado desde a independ ncia e da escolasecundairiatinha quadruplicado. Entre 1977 e 1981 o produto nacional bruto cresceu 11,6 %(7).Em 1980 Morambique tinha sido um membro fundador entusia'stico daConfer~ncia para a Coordenaqdo do Desenvolvimento da Africa Austral(SADCC), alianqa regional criada para quebrar as cadeias de dependencia,especialmente em relaqo i Africa do Sul. Os portos e caminhos-de-ferro deMogambique eram um factor-chave na estrat6gia da SADCC, na medida em quepodiam ser desenvolvidos como rotas alternativas para paises do interiordependentes dos portos sul-africanos. Como seria de esperar a Africa do Sulcomegou a destruir as rotas moqambicanas em 1981, umas vezes usando as suaspr6prias tropas e outras os fantoches da RNM.Na defensivaA diferenga mais chocante entre a posiqdo estrat6gica da Frelimoantes e depoisde 1981 6 que, de uma forma geral, o primeiro perfodo foi caracterizado por umaquase permanente ofensiva militar enquanto nos uiltimos anos da vida de Samoraele esteve quase permanentemente a dirigir uma campanha defensiva. E' verdadeque, na luta anticolonial, tinha sido necessdrio defender as zonas libertadas, noNorte, mas o aspecto saliente da luta era um avango da guerrilha esforgado einexoravel. Tamb6m 6 verdade que durante a guerra com a Rod6sia grande partedo esforqo militar da Frelimo foi para a defesa do territ6rio sob ataque externo.Mas se olharmos para a imagem mais alargada de uma alianqa entre osmogambicanos e as for(7) The Economy of Mozambique and ApartheidDestabilising Action,Ag~ncia de Informagfo de Mogambique (AIM), 25 de Outubro de 1986.

174 IAIN CHRISTIEqas de libertaqdo do Zimbabwe, podemos ver que erarn os rodesianos queestavarn constantemente na defensiva. Samora e Tongogara, o comandante militarda Zanu, dirigiarn ex6rcitos com identidades separadas mas papeiscomplementares contra urn inimigo comum que perdia terreno dia adia.0 inimigo sul-africano era multo mais formidavel ern termos militarese exerciaurn enorme poder economico sobre muitos dos pafses da SADCC. Samora nuncaesteve em posiqdo de permitir ao Congresso Nacional Africano (ANQqueestabelecesse campos de trdnsito de guerrilheiros como o Zipa, e depois a Zanu,tinharn feito. Na verdade 6 duvidoso que o ANC a1guma vez tenha pedido essasfacilidades na medida ern que estava a travar um tipo de luta diferente, baseadaern pequenas unidades de guerrilha que se podern instalar mais confortavelmentenos sub'rbios negros da Africa do Sul que nos palses vizinhos.Mas Samora permitiu ao ANC que abrisse urn escrito'rio em Maputo e deu abrigoa refugiados do apartheid. Pret6ria afirmou que isto era uma cobertura para oestabelecimento de facilidades de comando e coordenagdo do ANCernMogambique e que os gueffilheiros se estavam a infiltrar na Africa do Sul a partirde territorio mogambicano. 0 Acordo de Ndo-Agressdo de Nkomatiem 1984, aoabrigo do qual Moqambique e a Africa do Sul concordaram ern garantir que osseus respectivos territ6rios ndo fossern utilizados como plataformas para ataques

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militares contra o outro, foi interpretado em alguns sectores como uma admissdotdcita, por parte da Frelimo, de que havia alguma verdade na acusaqdo dePret6ria.Contudo, de facto, o acordo era uma declaragdo de intenq6es para. ofuturo e adnica admissdo tacita significativa de actividades passadas veio dePret6ria.Segundo os termos do acordo, os sul-africanos enceffararn a estagdo de radio daRNM, que a RNM sempre tinha afirmado que estava no interior de Mogambiquemas estava, de facto, no Transvaal. Desta forma Preto'ria estava aconfirmarpublicamente que a RNM tinha beneficlado de facilidades na Africa doSul. Estaligaqdo, de que a estaqdo de radio era apenas uma pequena parte, nunca tinha sidoantes admitida porque nenhum grupo apoiado pelo regime do

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 175apartheid podia esperar ser considerado seriamente como um representante deinteresses africanos.Moqambique, por outro lado, nunca fez segredo do seu apoio polftico e moral aoANC, que continuou, abertamente, ap6s Nkomati. Aquilo corn que Samoraconcordou foi n~o permitir que o ANC operasse militarmente a partirdeMoqambique e ndo permitir incitamentos i viol~ncia na Africa do Sulatraves daridio.Mas a subsequente violagdo sistemdtica do acordo de Nkomati pela Africa doSul, depois de a Frelimo ter tornado medidas para impedir o ANC de incomodarmilitarmente Pret6ria, indica que o principal objectivo de Pret6ria ndo era acabarcom o ANC em Mogambique.0 alvo era a SADCC, que ameaqava os pianos de P. W. Botha para <umaconstelaqdo de Estados na Africa Austral com Pret6ria como a principal estrelano firmamento. Moqambique era vital para a SADCC e Samora era vital paraMogambique. Toda a desestabilizagdo de Moqambique posterior aNkomatiindica que a alegada preocupaqAo de Pret6ria sobre a presenqa do ANC emMogambique era uma balela.Mas isso ainda ndo estava claro a 30 de Janeiro de 1981, quando as forgasarmadas sul-africanas lanqaram o seu primeiro ataque directo e aberto contraMoqambique e comandos brancos mataram 12 oponentes do regime que viviamna Matola, arredores de Maputo. Jornalistas que estiveram no local afirmaramque, durante a incursdo, foi morto um soldado branco e o corpo foideixado paratris. No capacete tinha pintada uma sudstica e as palavras «sieg heib.Samora ficou furioso, ndo propriamente com o regime sul-africano mas pelo factode a forqa invasora ter passado, impunemente, junto do grande quartel do exercitoem Boane, na estrada entre a Africa do Sul e a Matola.A 14 de Fevereiro foi organizado um comicio de massas. Samora apresentou oitooficiais do exercito, acusados de traigao, colaboraqdo com o inimigo ou de ndoterem actuado contra os invasores. Mas a sua principal raiva era contra os sul-africanos partiddrios da supremacia branca. Dezenas de milharesde pessoasouviram o seu disturso apaixonado que ficou conhecido no meio dosjornalistaslocais como o discurso oQue Venham.

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176 IAIN CHRISTIEN6s ndo queremos a guerra [ ... ] A paz e um principiofundamental da nossa vida [ ... I Mas se eles ve^m? Se eles v8m paraaqui, o que6 que vamos fazer? [ ... I Que os sul-africanos venham, mas que estejam certosque a guerra terminard em Pret6ria! Que venham. Liquidaremos a guerra.de uma vez por todas. Haverd verdadeira paz na zona.Um cantor popular de Maputo, Yana, escreveu mesmo e gravou uma cangdo desucesso chamada <<Que Venham>>, baseada no discurso de Samora. Contudo,por detrds de toda esta atitude de desafio havia um sentimento de apreensdo e aconsci6ncia de que tinha sido cometido um erro potencialmente desastroso. 0ataque foi possfvel, segundo Samora, porque <<subestimdmos o inimigo Como fim da guerra na Rod6siacriou-se um sentimento generalizado de que finalmente havia paz no nossopafs>>.Samora tinha razdo. Ainda ndo tinha sido conseguida a paz. Mas o ataque AMatola era apenas uma colsa secunddria comparada com o que os sul-africanostinham estado a preparar para Moqambique desde o principio de 1980,quandopassaram a controlar completamente a RNM. Os pistoleiros receberam bases noTransvaal e foram treinados no uso de armas pesadas. Foi montada uma nova baseinterna em Garagua, perto do rio Save. Foram definidos novos alvos estrategicos,principalmente o Corredor da Beira, que jd ndo servia os interessesdospartiddrios da supremacia branca e agora servia como via vital para o com6rcio deum Zimbabwe livre.Enquanto tudo isto estava a ser preparado pelas autoridades militares e daespionagem sul-africanas, Samora e os colegas traqavam planos ambiciosos paraa inddstria, agricultura, educagdo e comunicaq6es para fazer o pafs sair dosubdesenvolvimento W ao fim dos anos 80. Mas eram planos para uma nagdo ernpaz.Havia a1gumas indicag6es de que Samora ndo estava completamente embaladonuma ilusdo de paz, em 1980. Em Setembro, desse ano foram introduzidaspatentes formais nas forgas armadas. 0 pr6prio Samora tornou-se marechal daRepublica e dirigentes veteranos da Frelimo receberam varias patentes de generalpara baixo.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 177Era uma fase inevitdvel no processo de construqdo de uma estrutura. militarmoderna, mas ofendeu, em a1gumas pessoas, o sentido de nostalgia pelos bonsvelhos tempos igualitarios da guerra pela independencia. Era uma atitude queparecia assinalar o afastamento da estrutura informal da guerrilha que tinhafuncionado tdo bern no passado. Mas olhando hoje para trds podemos ver queSamora. estava a usar o espaqo para respirar de que dispunha naquele momentopara fazer uma coisa que seria multo diffcil mats tarde, se tivesse que haver outraconfrontaqdo militar. A primeira. distribuiq5o de insignias de oficiaisa antigoscomandantes da guerrilha e dirigentes politicos cria, inevitavelmente, uma certatensdo porque alguns soldados sentem que a1gumas pessoas ndo receberam ospostos que mereciam. Os murm'rios que se ouviam nos, relativamente pacificos,

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dias de Setembro de 1980, foram facilmente contidos. Um ano mais tarde ndoteria sido tdo fdcil, no melo de uma nova ofensiva inimiga.Em 1980 a RNM recebeu, do coronel Charles van Niekerk, da espionagem militarsul-africana, uma fista de alvos para 1981. Havia uma grande 8nfase na drea daBeira e, ao longo do ano, assistiu-se, de facto, a ataques a pontes rodovidrias eferrovidr1as, ao oleoduto que transporta combustfveis lfquidospara o Zimbabwee destruiqdo das b6ias de sinalizaqdo da entrada do porto. Muitas destas acq6esforam realizadas pelos pr6prios sul-africanos e a1gumas por grupos, mistos. ARNM tornou-se uma forma c6moda de Pret6ria lanqar a responsabilidade da suadesestabilizaqdo sobre aquilo a que podiam chamar uma oposiqdo moqambicana.Nos anos seguintes Samora afirmaria que n5o havia nenhuma oposiqdo politicamoqambicana. No sentido em que a RNM nunca apresentou um programa politicoconvincente, isso era verdade. Mas eles conseguiram recrutar largamente entre oshomens que perderam poder e privil6gios quando a Frelimo conquistou o poder enos campos de reeducaqdo, praticamente sem guardas. 0 tribalismo tamb6m foium factor, com o recrutamento a ser baseado em argumentos de que este ouaquele grupo ndo estd suficientemente representado no governo. Alguns antigosguerritheiros da Frelimo, aborrecidos por varias razoes,

178 IAIN CHRISTIEtamb6m aderiram, e alguns trabalhadores emigrados na. Africa doSul foramrecrutados 'a base de dinheiro. Houve tamb6m emigrantes ilegais na Africa do Sulque foram recrutados porque lhes disserarn que a alternativa eraa prisao.Mas o grande aumento no recrutamento, que teve lugar no princfpio dos anos 80,deve ser atn'bufdo, em grande parte, A seca prolongada que criou car6nciasalimentares desesperantes em grande parte da metade sul do pa's. Um antigoembaixador britanico ern Moqambique, John Stewart, disse-me uma vez queconcordava com a caracterizagdo que Samora fazia da RNM como <<bandidosarmados>>. Na terrfvel situaqdo provocada pela seca, segundoo embaixador, ndoera de admirar que grande n'mero de jovens aceitassem a ofertade uma arma parase langarem no saque, obtendo pela forga o que estivesse disponivel. Estebanditismo armado e tefforismo, a par de acq6es deliberadamente calculadas parasabotar a economia nacional e regional, era a principal forma de operaqdo daRNM W ao momento da morte de Samora. No entanto, devido ao treino intensivodos sul-africanos, a RNM tambe'rn desenvolveu uma certa capacidade militargenufna e o exercito encontrou-se, por vezes, perante confrontos reais.Os tre^s anos que se seguiram a incursdo A Matola foram marcados por umaescalada do conflito que concentrou a atenqdo do mundo sobre Mogambique. EmMaio de 1983 ocorreu uma sequ8ncia dramdtica de acontecimentos.Primeiro: um sul-africano branco capturado, Peter Benjamin Schoeman, apareceuna televisdo mogambicana e disse que tinha sido capturado quando se preparavapara realizar varias missoes, uma das quais era oo assassinato do Presidente deMoqambique>>. 0 governo sul-africano protestou afirmando que Schoeman eraurn criminoso de delito comum. Afirmaram que, embora ele tivessesido um.soldado sul-africano, jd ndo era membro das forqas armadas. Pret6ria apresentoua questdo Schoeman como uma operagdo de propaganda mogambicana. Se era,

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era singularmente inepta porque as conversag6es de paz que Mogambique tinhapedido para realizar com a Africa do Sul estavam prestes a ter lugarna cidadefronteiriqa sul-africana de Komatipoort.Segundo: a 23 de Maio a forga aerea sul-africana entrou pela primeira vez naguerra como forga de ataque e ndo como apoio

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 179log'stico 'a RNM. Caqas Impala e Mirage sobrevoaram a Matola disparandodezenas de m'sseis contra a cidade e matando seis pessoas. 0 ndmerode mortesf6i pequeno mas o efeito de terror foi grande. Enquanto diplomatase jornalistasvisitavarn a cidade atacada, o governo sul-africano afirmava que os alvos da forqaa6rea tinham sido gueffilheiros do ANC.Fui um dos primeiros jornalistas a chegar, antes mesmo de alguem do governo oudo quartel-general do exe'rcito. Pudemos dar a volta 'a cidade Avontade. Tr8s dosmortos eram trabalhadores moqambicanos de uma fAbrica de compotaque sofreuum ataque de mfsseis. Uma rapariguinha foi morta no exterior da casa dos pais. -Urn soldado moqambicano morreu enquanto guardava uma ponte. E havia umsul-africano - membro do ANC -, que fol atingido quando lavava um carro noexterior de um pequeno ediffcio onde se guardavam roupas para refugiados sul-africanos.Muitas casas, ocupadas por moqambicanos sem nenhuma ligagdo com o ANC,foram destrufdas ou muito danificadas pelos mi'sseis. Cerca de40 moqambicanosforam feridos. Mas em todos os locais onde n6s, os jornalistas, fornos para ver osestragos havia indicaq6es de que o ANC tinha, em tempos, tido uma presenqanesse local. Numa casa destrufda em que entramos havia urn cartazdo ANC naparede. A familia mogambicana que vivia na casa disse-nos que jao tinhaencontrado ali quando para Id foram morar, 18 meses antes, e deixaram-no naparede por gostarem dele. Na fdbrica de compota um miliciano apontou uma casaproxima e disse que tinham la morado pessoas do ANC mas jd tinham safdo hdmuito tempo.Por outras palavras, 'a parte manter um pequeno armazem de roupas, o ANC jdtinha safdo da Matola ha muito tempo. A espionagern sul-africana estavaaparentemente desactualizada.Exactamente uma semana apo's a incursdo ae'rea 'a Matola, os sul-africanosfizerarn entrar a tecnologia militar dos anos 80 na guerra, para tentarem descobrirurn pouco mais sobre o que realmente se estava a passar em Mogambique. Umavido espido sem piloto, fornecido pelos israelitas, voou sem dificuldades sobre aprovifficia de Maputo, fornecendo fotos a um jacto que voava mais atras. Este,por seu turno, transmitia as f6tos para

180 MIN CHRISTIEa Africa do Sul. As forgas mogambicanas aparentemente n5o, tinham a menorideia do que se estava a passar. 0 avido da frente ndo respondia aos pedidos deidentificagdo. 0 comando do ex6rcito esperou at6 ele se aproximardo espaqo,ae'reo sobre o gabinete presidencial de Samora e entdo decidiu que jal era de malse mandou que fosse abatido. Fol abatido mas nesse momento a Africa do Sul jd

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tinha nas mdos uma excelente cobertura fotogra'fica a6rea do Sul deMogambique. 0 avido acompanhante fez mela volta e regressou A Africa do Sul.S6 quando o avido espido f6i pescado do mar 6 que as forgas armadasmogambicanas perceberam com o que e que estavam a lidar.Enfrentado bandidos comandados por controlo remoto e avi6es de guerra tamb6mde controlo remoto, Samora sabia que a guerra tinha tomado proporg6es para asquais o seu pafs ndo estava equip tdo para lidar. Calculou que um pacto de ndo-agressdo, com a Africa do Sul poderia p6r fim a isso tudo. As negociag6es comPret6ria continuaram ate' que, com grande brilho, foi assinado o Acordo deNkomati de Ndo-Agressdo e Boa Vizinhanga, a 16 de Marqo de 1984.Em troca do fim da agressdo sul-africana, incluindo os ataques pela RNM, ogoverno de Samora garantiria que o ANC ndo operaria militarmente a partir deMogambique.Fol uma decisdo controversa que espantou muitos dos apoiantes e amigos daFrelimo em todo o mundo. Os membros do ANC ficaram, obviamente,transtornados pelo acordo e houve uma ou duas declaraq6es do ANC quepoderiam ser julgadas pouco, moderadas. Contudo o Presidente domovimento,Oliver Tambo, tomou uma posiqdo digna de um estadista e equilibrada, numaconferencia de imprensa em Londres. Tambo reconheceu que Samora e os seuscolegas estavam a fazer <<o que pensam ser necessdrio>>. Acrescentou: <<Ndotenho a certeza se, no seu lugar, teria ido tdo longe, mas temos que aceitar que oregime sul-africano tinha decidido destruir Moqambique, mata-lo em termos deEstado, e os seus dirigentes tiveram que escolher entre a morte e a vida. E se issosignificava abragar a hiena eles tinham que o fazer. N6s outros temos que aceitaressa posigdo, mas tamb6m temos que defender a nossa poslqdo.>)

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 181Podia ter-se passado tudo pela calada mas Sarnora disse que ndo.Insistiu numacerim6nia p6blica corno uma questdo de principio, recusando-sea realizaracordos pela porta das traseiras como pelo menos outro governo daregido tinhafeito (').0 acordo foi assinado num pedaqo de terra-de-ningu6m especialmente criadojunto ao rio Incomati, na fronteira entre os dois pafses. Sarnora declarou que oacordo era urna vit6ria da polftica de paz da Frelirno. Nurna visitaA EuropaOcidental em Outubro de 1983, e em conversas corn funcionalrios dos Neg6ciosEstrangeiros americanos, ele tinha pedido ao Ocidente para pressionar a Africa doSul para assinar urn tal acordo.Ndo era apenas urna questdo de mostrar boa cara. Durante esse perfodo ouviSarnora falar em vdrias ocasi6es, quer em p6blico quer em privado,e a minhaimpressdo era de que ele acreditava sinceramente que os sul-africanos tinham sidoempurrados para urn acordo que os seus amigos do Ocidente os obrigariarn arespeitar.Estava tamb6m muito consciente de que ia magoar a direcqAo do ANC,ndonecessariamente em termos da luta do movimento no terreno mas em termos deparecer que tinha perdido urn aliado africano pr6ximo. Pouco antes da assinaturado acordo encontrou-se corn o Presidente do ANC, Oliver Tambo,na sua casa de

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f6rias no Bilene, no mesmo local onde tinha tido urna discussdo cornos jovenscomandantes do Zipa em 1976. Desta vez, contudo, a situaqdo era muitodiferente. Era Samora quern se estava a explicar. Estava basicamente preocupadocorn a ameaqa real A sobreviv~ncia do Estado moqambicano, numa situagdo emque nao se vislumbravam sinais de uma vit6ria iminente do ANC na AfricadoSul. 0 ANC ndo seria proibido de entrar em Mogambique, mas Mogambiquendopoderia ser usado como base para actividades militares.(1) Urn acordo de seguranga entre a Africa do Sul e a Swazil5ndia, que entrou emvigor em Fevereiro de 1982, foi mantido em segredo atW 31 de Marco de 1984,duas semanas depois de Nkomati. 0 texto do acordo e o reconhecimento piblico,dois anos mais tarde, podem ser encontrados em Destructive Engagement, Harare,Zimbabwe Publishing House, 1986, pp. 332-338.

182 IAIN CHRISTIEOs membros do ANC que tivessem empregos reais ern Mogambique poderiamcontinuar nesses empregos e os outros teriam que viver em camposde refugiados,excepto no caso de uma missdo diplomdtica do ANC de 10 membros. Cerca de200 membros do ANC deixaram Mogambique, o que da uma ideia do tipo deameaga que a presenqa do ANC ern Mogambique representava parao regime dePretoria. Em comparagao, cerca de 20 000 guerrilheiros zimbabweanos deixararnMogambique em 1980, depois do acordo de Lancaster House.A posiqdo de Samora parece ter-se baseado na ideia de que o regime sul-africanoestava a perseguir Mogambique apenas porque alguns guerrilheiros do ANCestavam a esgueirar-se atrav6s da fronteira. Se era essa a sua ideia, entdo tinha-setornado multo ing6nuo. 0 que parece mais provaivel 6 que Samora,estivesseinteligentemente a tirar vantagem da propaganda do governo sul-africano segundoa qual o seu pal's era culpado pela viol8ncia na Africa do Sul. Esta ideia tinha tidoeco, de uma forma surda, em certas, areas influentes da imprensa ocidental. Aoganhar o apoio americano para um pacto que forgaria os sul-africanos a largarema RNM, uma criaqdo dos racistas brancos da regido, Samora estava a receberalguma coisa ern troca de nada. 0 ANC n5o era criaq5o sua. Jd existia antes de P.W. Botha nascer e sobreviveria e floresceria, quer a fronteira de Moqambiqueestivesse disponivel ou ndo. A RNM, por outro lado, estava condenada adesaparecer de morte natural quando lhe fosse cortado o corddoumbilical.Samora s6 tinha meia razdo. 0 ANC de facto floresceu sern a fronteiramogambicana. Ele pr6prio criou uma impressdo favordvel junto dos dirigentesocidentais ao ponto de eles estarern preparados para reconhecer que ele ndo eraurn diabo marxista tdo mau como se suspeitava. E ja que ele estava a pedir pazpara a Africa Austral eles estavam preparados para pressionar Pret6ria no sentidode ser razodvel e assinar um pacto. Mas o principal problema era aobrigatoriedade. Nenhurn pafs ocidental forgaria P. W. Bothaa respeitar oAcordo de Nkomati e a desmantelar a RNM.A cerimo'nia junto ao Incomati fol uma paro'dia. P. W. Botha apertoua mdo aSamora no mesmo momento em que, abasteci-

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mentos para a RNM voavam para o interior de Moqambique. Em brevePret6riacomegou a melhorar a base da RNM na Gorongosa. Chamaram-lhe Casa Banana.Quando a Casa Banana foi capturada pelo exe'rcito (com um apoio zimbabweanodecisivo), mais de urn ano depois do acordo de Nkomati, os dia'rios edocumentosdeixados no terreno mostravam que Samora Machel tinha sido enganado. Os sul-africanos nunca tiveram a intengdo de cumprir o Acordo de Nkomati.Continuaram a abastecer a RNM e ate' construfram uma pista de aterragem naCasa Banana. Entre os visitantes A base dos rebeldes tinha estadoLouis Nel, ovice-ministro dos Neg6cios Estrangeiros sul-africano.Os sul-africanos tinham iniciado as mais importantes operaq6es da RNM a partirde bases no Malawi em 1981 e, depois de Nkomati, essas operag6es foramampliadas. 0 Malawi tornou-se um foco de desestabilizaqdo. As autoridadesmogambicanas fizeram muitos protestos em relaqdo ao Malawi, culminando comuma visita a Blantyre, a I I de Setembro de 1986, de Samora, Kaundae Mugabe.Quando Samora partiu para essa viagem la furioso. Detestava Bandae va'riasvezes o tinha descrito, na minha presenga, como fascista. Samora queria que osjornalistas estrangeiros soubessem o resultado da confrontaqdo corn Banda emBlantyre e, portanto, convidou todos os jornalistas estrangeiros em Maputo parairem com ele. Mas, quando os rep6rteres chegaram ao aeroporto, nessa manhd,foram informados por um atrapalhado funciondrio do protocolo queo governomalawiano tinha enviado uma mensagem dizendo que n5o seria permitida aentrada no Malawi a nenhum jornalista estrangeiro - havia um banimento geral dejornalistas estrangeiros e ndo seria levantado para a cimeira.Samora soube disso id no avido. Tendo sido eu um dos correspondentes queficaram na pista ndo posso clescrever a sua reacqdo 'a noti'cia. Pessoasque'estavam a bordo, no entanto, dizem que explodiu de raiva. A chegada aBlantyre mandou enviar uma mensagem para Maputo dizendo que queria todos oscorrespondentes do Oriente e do Ocidente no aeroporto para uma confere^ncia deimprensa quando regressasse.

184 IAIN CHRISTIE<<O que 6 que fard se o Malawi na-o parar o seu apoio a RNMN, perguntoualgu6m.<<Colocaremos mfsseis ao longo da fronteira e fecharemos a fronteira ao trdfegoentre o Malawi e a Africa do Sul que passa por Mogambique>>, respondeu. Erauma ameaqa seria considerando que cerca de 70 cami6es por dia passavamatrav6s da provincia moqambicana de Tete na estrada internacional para os portosda Africa do Sul.Cinco semanas mals tarde, o avido de Samora Machel despenhava-se na colina deMbuzini, na Africa do Sul, quando regressava de uma visita A Za^mbia.

Samora MachelTerceira ParteRETRATO DE UM REVOLUCIONARIOAprendemos muito, cometemos erros e vimos como os deviamos corrigirAo faZer isso desenvolvemos uma teoria a partir da nossa prdtica;

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e descobrimos que essa nossa teoria, saida da nossa prdtica, j6 tinha adquiridouma teoriza do sob circunsOncias diferentes, noutros lugares,em diferentes tempos e Ittgares. Essa teoria e teorizaf!a-o g o marxismo-leninismo.

9. Marxismo caseiroConta-se uma historia da visita a Maputo, no princfpio da de'cada de 80, dosocio'logo suiqo Jean Ziegler, acad6mico s6rio e homem com boas inteng6es arespeito de Mogambique. Desde o princfpio da visita ele comeqou a tentardescobrir de onde tinha vindo o marxismo da Frelimo.Teria sido que muitos membros da Frelimo tivessem, antes, sido membros doPartido Comunista Portugues? Ou seria que a Frelimo tivesse mandadograndesquanticlades de pessoas para serem formadas nos pafses socialistas e tivessernvoltado com ideias marxistas?Quando os dirigentes da Frelimo o convenceram de que nenhuma das hip6tesesera correcta, o espantado sociologo levantou a questdo num encontro com SamoraMachel: oQuando foi a primeira. vez que leu MarxN, perguntou o visitante, indodirecto ao assunto.<<Bem>>, disse o Presidente, oquando era jovem costurnava ajudar o meu pai,que era campones.>> E continuou descrevendo como os camponeses africanosrecebiam pregos multo mais baixos pelos seus produtos que os colonosportugueses, e

188 IAIN CHRISTIEfalou das vdrias facetas da exploragdo que testemunhou em crianqa.Ziegler, comegando a ficar impaciente, disse: <<Sim, senhor Presidente, masquando leu Marx pela primeira vez?>><<Bem>>, disse Samora, <<mais tarde na vida juntei-me A Frelimo e tomei partena luta armada.>> E continuou falando dos conflitos polfticos dentro domovimento, como a historia de Nkavandame e dos novos exploradores.Ndo querendo ser metido no bolso com esta evasiva bern clara, o soci'logoinsistiu: <<Sirn, sim, mas ainda ndo me disse quando fol a primeira vezque leuMarx.>><<Ah, isso>>, disse Samora. <<Durante a luta de libertaqdo alguem me deu umlivro de Marx. A medida que o lia, apercebi-me que estava "a ler" Marx pelasegunda vez.>> (1)Embora isto fosse, sem d6vida, uma reflex5o honesta de Samora sobre as origensdas suas convicq6es marxistas, 6, com certeza, apenas parte dahist6ria. Durante asua adolesc8ncia e primeiros anos como adulto os acontecimentos em todo omundo obrigavam os jovens inteligentes na Africa colonizada a pensar nomarxismo para o tomar em consideraqdo, mesmo que ndo necessariamente paraaceitar os seus principios.Em 1949, quando Samora tinha 16 anos, a revolugdo triunfou na China. Numanagdo de camponeses os comunistas derrotaram os ricos e poderosos atrav6s deuma guerra proloncyada. Cinco anos mals tarde outro ex6rcito de camponeses

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dirigido por camponeses, dessa vez no Vietname, derrotou os franceses em DienBien Phu. Em 1959 Fidel Castro chegou ao poder em Cuba.Em Africa a descolonizagdo tinha comeqado e dirigentes professando idelassocialistas captavam a imaginaqdo de jovens de todo o continente. KwameNkrumah tornou-se um hero'i continental em 1957 quando conduziu o povo doGana 'a independencia da Grd-Bretanha. Vierarn depois Sekou Toure', Lumumba,Nyerere.(') Esta hist6ria foi-me contada por urn funciondrio superior da Frefirno queesteve presente na conversa. Urna versa-o urn pouco diferente foi publicada nosernandrio portugu8s Expresso, ern 1982.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 189Pal'ses emergindo do colonialismo ignoravam as proibiq6es dos seus antigosdominadores e estabeleciam relag6es amistosas com a Unido Sovi6tica, a China eos outros pafses socialistas.Esse tipo de acontecimentos influenciaram inevitavelmente Samorae os outrosdirigentes da Frelimo.No prIncfpIo a organizaqdo era ideologicamente heterogenea, masndo levoumuito tempo para os elementos revoluciondrios na direcqdo porem as suas cartassocialistas na mesa e projectarem-nas internacionalmente como polftica oficial daFrellmo. Um cla'ssico exemplo disto apareceu como editorial na ediqdo deMarqo-Maio de 1966 da revista da Frelimo em lfngua inglesa, MozambiqueRevolution (2) . Esse editorial sobre <<A liqdo que nos ensinam os recentesacontecimentos em Africa>> era uma referencia ndo explfcita masclara aoderrube de Kwame Nkrumah num golpe de Estado nesse ano. Ele tinhatentadodecretar a revoluqdo de cima para baixo sem construir urn. partido marxista paragarantir a participagdo activa dos trabalhadores. 0 povo do Gana aceitoupassivamente o golpe de Estado, sem oroanizar uma unica manifestaqdoimportante. A revista da Frelimo argumentava que:fundamentalmente e' necessario encorajar o povo aparticipar na vida poll'tica do pafs; para al6m disso e necessdrio rejeitar umconceito em que a Revolugdo (socialismo) 6 construfda por um ndcleo activo dedirigentes que pensam, criam e ddo tudo, e que sdo seguidos por uma massapassiva, que se limita a receber e executar. Esse conceito 6 o resultado de umaconscie^ncia polftica fraca e expressa falta de confianqa na capacidade de luta erevoluciondn"a do povo.Ja em 1966, portanto, a Frelimo tinha o comego de uma agenda socialista e osseus dirigentes tinham pensado consideravelmente sobre o que queriam dizer aofalarem de socialismo.(2 ) Em 1967 o nome da revista mudou de Mozambican Revolution paraMozambique Revolution.

190 MIN CHRISTIEEm 1969 Eduardo Mondlane estava preparado para ser mais especffico. Numaentrevista pouco antes de ser assassinado, Mondlane disse:

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Estou convencido agora de que a Frelimo tem uma linha polftica, agora, maisclara do que antigamente ... j uma base comurn que todos tinhamos quandoformaimos a Frelimo era o odio ao colonialismo, a necessidade de se destruir essaestrutura colonial e de se impor uma nova estrutura social. Mas que tipodeestrutura social, que tipo de organizagdo social teriamos ningu6m sabia. Algunssabiam, tinham ideias. Mas mesmo aqueles que tinham ideias teoricas,essasidelas teoricas foram transformadas pela luta agora. Hd urna qualescencia depensamento que se operou durante os dltimos seis anos que me autoriza a concluirque a Frelimo realmente agora 6 muito mais socialista, revolucionairiaeprogressista do que nunca. E e a linha, agora, a tende^ncia, mais emais emdirecqdo ao socialismo do tipo marxista-leninista. Porque as condiq6es de vida deMoqambique, o tipo de inimigo que no's temos, ndo admite qualqueroutraalternativa [ ... I Eu acho que a Frelimo, sem comprometer o partido que aindando fez uma declaragdo oficial declarando-se marxista-leninista,mas eu acho quea Frelimo estd-se inclinando mais e mais nessa direcqdo porque as condiq6esern que n6s lutamos e trabalhamos assim o ditam (3).Tem sido sugerido que Mondlane e Samora foram fortemente influenciados porMarcelino dos Santos. As suas posig6es marxistas foram desenvolvidas enquantoesteve exilado na Europa - atrave's da participaqdo na polftica a nivelinternacional, do estudo universitario e do contacto e debate com intelectuaiseuropeus e africanos. Mas embora Marcelino dos Santos tenha desempenhado umpapel-chave no desenvolvimento ideolo'gico(1) Esta cita do de urna entrevista conduzida ern 1969 por Aquino de Bragangafoi retirada de urna cassete corn a voz de Eduardo Mondlane editada pela RddioMo arnbique ern 1996.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 191da Frelimo, ninguem que tenha conhecido bern Samora e Mondlane podeacreditar que eles pudessem ser levados, mesmo por um homem como intelecto eos poderes de persuasdo de Marcelino dos Santos. 0 que parece mais provaivel eque tenha havido uma relagdo simbiotica entre estes tres homens.Com os seusdiferentes passados e temperamentos eles aprenderam, sem ddvida, uns com osoutros.Um factor-chave no desenvolvimento da perspectiva marxista em Samora era aexperie^ncia da Frellmo na luta de libertaqa-o nacional. t dificil avaliar o impactoideolo'gico nd Frellmo do simples facto de que os pal'ses socialistas estavam afornecer armas ao movimento anticolonial em Africa enquanto as pot8nclascapitalistas da OTAN estavam a ajudar Portugal. Qualquer sugestdo de que aFrelimo recebeu a sua ideologia de Moscovo como parte de um pacote,comespingardas AK-47 e bazucas para fazer a boca doce, receberiauma negativarispida de Samora, mas a solidariedade e o apoio material das pote^nciasmarxistas impress ionaram-n o ao ponto de ele ate' ao fim se referir aelas como<<os nossos aliados naturais>>.Contudo, mais importante para o desenvolvimento ideologico de Samora f6i aexperiencia da Frelimo nas zonas libertadas do Norte. Nelas tinham que sertomadas decis6es em quest6es economicas, principalmente as que envolviam o

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comercio. Antes todas as lojas tinham pertencido a comerciantes portugueses e,tal como acontecia na provifficia natal de Samora, Gaza, os comerciantesaldrabavam sisternaticamente os camponeses, com a aprovaqdo dogoverno. Amedida que o esforqo de guerra da Frelimo permitia ao movimento ocontrolo degrandes areas, os comerciantes colonos fugiam. Que tipo de sistema de com6rciodeveria substituir o outro?A 1nica colsa que a Frelimo podia fazer era estabelecer uma ligaqdo comercialcom o Sul da Tanzania, com os camponeses a carregarem produtos como acastanha de caju atrav6s do Rovurna para voltarem trazendo, entreoutras coisas,roupa. Os carregadores recebiam um pequeno pagamento em roupae sal. No casode Cabo Delgado o sistema comercial estava sob o controlo de LazaroNkavandame, o secretario provincial do movimento, e dos seus subordinados, oschairmen distritais.

192 IAIN CHRISTIENkavandame e os chairmen tinham, igualmente, pessoas a tra.balhar para eles nassuas machambas privadas.Antes de a guerra comeqar tinha havido multas Was e vindas entre o povo deCabo Delgado e o Sul da Tanzania e, portanto, os mogambicanos tinham uma boaidela do custo dos produtos do outro lado da fronteira.Tornou-se rapidamente visfvel que o sistema ndo estava a funcionarde forma amanter o apoio dos camponeses. Eles comegaram a queixar-se de que estavam afazer pior negocio com os homens de Nkavandame do que antes com oscomerciantes portugueses. Nkavandame e os chairmen foram acusados delucrarem e especularem com bens escassos como, por exemplo, camisas.Dirigentes como Mondlane e Samora tiveram, entdo, que enfrentar esses factosdiffceis. Por que e' que estavam a lutar e a morrer os seus jovens guerrilheiros?Por que estavam os camponeses das zonas de guerra e das zonas libertadas a fazersacriffcios? Seria apenas para substituir um grupo de exploradores por outro?Se o problema ndo tivesse sido resolvido Samora. tinha ficado numa posiqdoparticularmente vulnerdvel. Como secretario para a Defesa era responsdvel porgarantir que a luta militar avanqasse, e, para conseguir isso, tinhaque convenceros guerrilheiros e os camponeses que os apoiavam de que a independ8ncia ndo iaser o mesmo reme'dio colonial agora administrado por m6dicos mogambicanos.Ndo surpreende, portanto, que ele estivesse na primeira linha da lutacontra oprotocapitalismo de Nkavandame.0 socialismo tinha sido abraqado pela Frellmo, verbalmente, desde 1966, mas aquestdo Nkavandame galvanizou a esquerda na Frelimo a tentar p6-lo, de facto,em prdtica, na economia das zonas libertadas.A Tanzania, principal base recuada do movimento de libertagdo, tinha tamb6muma liqdo sobre o socialismo para Samora e para toda a direcq5o da Frelimo. Elestinham a oportunidade de testemunhar o desenrolar dos interessantes debatessobre o socialismo que Id tiveram lugar nos finals dos anos 60 e comego dos anos70. A Declaragdo de Arusha de 1967 tinha defini-

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do uma via tanzaniana para o socialism mas Julius Nyerere n5o aceitava asposig6es marxistas sobre algumas quest6es fundamentais, tais como a luta declasses.Os marxistas tanzanianos continuavarn a lutar, no interior da UnidoNacionalAfricana do Tanganica (TANU), no poder, atingindo o seu ponto mais alto com aadopqdo das Linhas de Orientaqdo da TANU que levaram 'a ocupaqdo def6bricas pelos trabalhadores no princfpio de 1971.Nyerere gozava da dedicaqdo e do respeito das pessoas da TANU cominclinag6es marxistas, mesmo se ndo concordavarn com a sua atitudenegativa emrelagdo a alguns aspectos do marxismo. Ele foi sempre considerado o arquitecto eo melhor guardido dos avangos socialistas que tinham sido conseguidos W aomomento.Samora, nessa altura jd Presidente da Frelimo, ia e vinha entre a Tanzania e aszonas libertadas de Mogambique, encontrando-se frequentemente com oPresidente Nyerere e aprendendo constantemente com as variasforgas queinteractuavarn naquele jovem pai's que procurava a sua propria, e unica, via parao socialismo.Em plblico Samora sempre insistiu em que nao tinha divergencias polifticas comNyerere. Os dois homens eram muito amigos e, ap6s a morte de Samora, Nyererechegou a Maputo antes de qualquer outro dignitairio estrangeiro paraprestar umtributo emocional ao seu velho camarada, em camara-ardente no SaIdo Nobre doConselho Executivo da cidade.Contudo, os dois homens diferiam profundamente sobre a questdo hist6rica desaber se, na Africa pre'-colonial, tinha havido antagonismos de classe, tema dedebate quente, ha' muitos anos, entre os socialistas marxistas e ndo-marxistas.Nyerere exprimiu a sua posiqdo ndo-marxista num panfleto da TANU em 1962:Quer os <<ricos>> quer os <<pobres>> tinham uma seguranqa completa nasociedade africana. Calamidades naturais traziam forne, mas traziam forne paratoda a gente - <<pobres>> ou <<ricos>>. Ningu6m morria 'a forne,fosse decomida ou de dignidade humana, por n5o ter riqueza pessoal. Po-

194 IAIN CHRISTIEdia apoiar-se na riqueza possufda pela comunidade de queera membro. Isso era socialismo. Isso 6 socialismo [ ... I0 socialista europeu ndo consegue pensar no seu socialismo sern opai - ocapitalismo! Criado no socialismo tribal, devo dizer que consideroessacontradiqdo intolerdvel [ ... ]0 socialismo africano [...] ndo gozava do obeneffcio>> daRevoluqdo Agralria ou da Revolu do Industrial. Ndo comeqou a partir daexistencia de <<classes>> em conflito na sociedade. Na verdade duvido queexista o equivalente A palavra <<classe>> em alguma lingua africana indigena;porque a linguagern descreve as ideias daqueles que a falam e a ideia de oclasseoou de ocasta>> ndo existia na sociedadeafricana (1).Samora ndo partilhava esta visdo idflica do passado africano. Em 1983 exp^s,desta forma, a sua posiqdo:

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A nossa hist6ria prova a validade da tese de que o motor da historia 6 a luta declasses. A luta de classes foi, ee, uma realidade no continente africano.A nossa sociedade pre'-colonial conheceu a existe^ncia deformag6es estatais complexas, como o Monomotapa e Gaza.Eram sistemas polfticos e sociais de tipo feudal, em etapas diferenciadas dedesenvolvimento. Em. alguns ainda estavam presentes elementos de sistemasesclavagistas anteriores.Noutros emergiam ja camadas de mercadores que, noutra fase hist6rica, deveriamdeterminar uma nova evoluqdo da sociedade. Em todos eles se diferenciavarnexplorados eexploradores.A supressdo colonial dessas formag6es estatais e a integragdoda sociedade nosistema capitalista e imperialista, emergente na 6poca, provocaramnovastransformaq6es hist6ricas.Os antagonismos existentes na sociedade facilitaram a(1) Nyerere, Julius K., Ujamaa: Essays on Socialism, Dar-es-Salam, 1968, pp. 3-4.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 195ocupaqdo colonial. Representantes das camadas exploradoras trafrarn a causanacional e aliaram-se ao estrangeiro para continuarem a dominare explorar o seupr6prio povo. Uma vez conquistado o pal's, os traidores nacionais foram tamb6msujeitos ao papel de dominados, tendo sido trafdos pelos seusaliados da v6spera (1).A adesdo intelectual de Samora ao conceito de que a luta de classesndo era umacoisa importada para Africa pelos colonialistas, mas sim um feno'meno que ja la'existia, era parte de uma convicqdo mais geral de que o marxismo ndo era umtexto sagrado da Europa. Ficava furioso A mais pequena insinuaqdo de heresia da<<ideologia estrangeira>>.Eu pr6prio incorri uma vez na fdria de Samora ao pedir-lhe para me explicarcomo e que a Frelimo consegula popularizar os conceitos marxistas-leninistasjunto dos operdrios e camponeses moqambicanos, em grande parte analfabetos.Foi em 1979, dois anos apo's o Terceiro Congresso da Frelimo ter transformado 0movimento num partido marxista-leninista. Samora, trajando a sua farda militarhabitual, olhou para mim, severamente, por cima da mesa, apontou-me um dedoreprovador e disse: <<Essa pergunta tem como base uma concepqaoerrada doque e o marxismo. 0 pensamento que esta por detra's da pergunta 6 que omarxismo 6 uma experiencia externa. Portanto, como 6 que eles o podemaprender, se n5o sabem lerNA entrevista continuou com a1gumas notdveis revelaq6es sobre a visdo do mundode Samora:SAMORA: 0 marxismo-leninismo, ouqam muito bern,este 6 que 6 o ponto principal, 6 uma cie^ncia de classe.Aceitam que hd classes em Moqambique? Classe operdria?Aceitam? Quem e' que faz o marxismo? Quem e' que faz esta

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cie^ncia, afinal? t o cientista, fechado na sua biblioteca?(1) Parte de um discurso proferido em Berlim a I I de Abril de 1983, nascelebrg6es do centengrio da morte de Marx. NotIcias de Maputo,14 de Abril de1983.

196 IAIN CHRISTIEEle pertence ao seu criador. Quem 6 o criador do marxismo-leninismo? t umaci8ncia de classe. Pertence ao seu criador que e a classe operairia. 0 seu criador 6o povo, o povo na sua luta multissecular contra as diferentes formas esistemas deexploragdo. 0 seu criador e', sobretudo, a classe operdria que,pelo seu papelespecffico na sociedade, 6 capaz de conceber a nova sociedade,urn novo tipo derela96esentre os homens.E ou ndo 6?0 melhor marxista qual e? t aquele que estal na biblioteca a ler o compendio ouaquele que estd a realizar a tarefa? Ndo foi entre os frequentadores de bibliotecase universidades que se forjou e desenvolveu o Socialismo Cientifico. E mentira!Nem foram os engenheiros agr6nomos que inventararn a geometria. Foram oscamponeses, correcto? Foram os camponeses, ndo foi agr'nomonenhum, nademarcaqdo dos seus terrenos. Inventararn a ci8ncia, la.Por isso dizemos: ndo fol nas bibliotecas e nas universidades que sefizeram asrevoluq6es que transformaram o mundo. Correcto?Os trabalhadores moqambicanos te^m uma longa experiencia de sofrimento e deluta contra o esclavagismo, contra o feudalismo, contra o capitalismo. 0 que e'isso? Como 6 que interpretam isso? Quem foram os que tomaram o poder naRdssia? Foram os universitarios? Quem sdo os que fizeram a Longa Marcha, naChina? Sdo os universltdrios? Quando eu marchava contigo o quee' queestdvamos a fazer? Aqueles que estavam ao teu lado ali, a apoiar-te e defender-te,o que e que estavam a fazer? Ndo sabiam ler nem escrever. Foi a guerra que nosensinou. A guerra, a experi8ncia, a prdtica.CHRISTIE: Mas foi o camarada Presidente que disse que ndo se pode construir osocialismo com analfabetismo...SAMORA: Estd bem. Na campanha de alfabetizaqdo. Para se poder ler, paraterem a capacidade de sintetizar as experiencias. Levar a teorla. Ja'realizam, mas6 preclso elevar isso 'a categoria de teoria.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 197Hal duas coisas, aqui. Uma, 6 ver de onde vem a teoria, de onde ve^m as ideias.Vem da prdtica! Agora queremos que sintetizem essa praitica, tenhamacapacidade de sintetizar as experiencias, a sua prdtica.Por isso os camponeses analfabetos de Cabo Delgado aprenderama essencia dosistema de exploraqdo do homem pelo homern que os novos exploradores dogrupo Simango/ /Lazaro pretendiam introduzir nas zonas libertadas. Ndo foinenhurn marxista la' dizer: <<Olhem, isto 6 exploraqdo, isto e isto e isto e'isto.>> Ndo leram nenhum comp6ndio, mas sentiram. Esses sdo novosexploradores, esses. Vamos combate-los.

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Foram eles que se baterarn e fizerarn triunfar as cooperativas contra o com6rcioprivado explorador e os latifdndios. Foram eles! Foram eles quese baterarn efizeram triunfar o poder popular, o poder de classe, contra o poder feudal eburgu8s que os novos exploradores pretendiam impor. Ndo sabiam onde era aporta da Universidade. Nem o caminho. Ndo conheciam.A guerra popular de libertaqdo, a nossa ci8ncia militar que derrotouos generaiscolon ial-fasc i stas, f6i elaborada e desenvolvida pelo nosso povo analfabeto. 0marxismo-leninismo ndo surge na nossa pdtria como produto de importaqdo.Sublinhem bern, essa 6 uma ideia que queremos combater. Produto de importaqdoou o resultado de mera. leitura. de cldssicos. Ndo. 0 nosso partidondo 6 um grupode estudo de cientistas especializados na leitura e interpretagdo de Marx, Engels eLenine. Ndo. 0 nosso partido ndo6.A nossa luta, a luta de classes dos nossos trabalhadores, as suas experi8ncias desofrimento permitem-lhe assumir e interiorizar os fundamentos do socialismocientffico. Esta mesma luta contribui para desenvolver e enriquecercontinuamente o que constitui o patrimonio comum de todos os povos e classesexploradas, o marxismo-leninismo.No processo de luta sintetizdmos as nossas experiencias e vamos elevando osnossos conhecimentos te6ricos. E diferente de primeiro estudar a teoria, sei la',como e' que se

198 IAIN CHRISTIEfaz a guerra, entdo vamos 16 fazer. No's fizemos e agorasintetizamos (1).Nessa torrente esponta^nea de palavras, Samora, corn a sua escolaridade formalrudimentar, tinha argumentos contra o seu velho amigo, Nyerere, com educagdouniversitdria. Enquanto o tanzaniano insistia ern que a linguagern exprime asideias daqueles que a falam e, ipso facto, n5o pode ter havido classes emAfricaporque ndo existe essa palavra, o mogambicano diz que os camponeses tamb6mndo tinharn palavras para descrever o dngulo recto mas isso na-o queria dizer quendo fossern capazes de marcar um no canto de uma machamba.Para Samora a luta de libertagdo nacional foi mals do que uma luta dosmoqambicanos determinados a controlar o seu proprio destino. 0 proprio processoda guerra popular prolongada trouxe ao de cima as contradiq6es,forgando oscombatentes e os camponeses a pensar para al6m do problema imediatoderemover o colonialismo portugu6s. A palavra <<classe>> poderia ndo estar noseu vocabuldrio mas a crise de 1967-1970 na Frelimo obrigou todos os envolvidosa consultarern o dicionario do socialismo cientffico, metaforicamente falando.Era uma questdo de sobrevivencia da luta de libertagdo.Quando essa luta foi vencida, contudo, a Frelimo enfrentou algunsobstdculosdificeis para construir o tipo de Estado socialista previsto pelos revolucionariosmarxistas-leninistas. Garantir o apoio entusidstico do povo 'a revoluqdo socialistan5o era o problema. Depois de provar que era capaz de organizaras energias dopovo para arrombar as portas que levavarn A independ6ncia polftica, a direcqdoda Frelimo gozava de uma confianga maciqa por parte do plblico. Quem poderia

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duvidar de que Sarnora Machel era o homem indicado para indicar o caminhopara a prosperidade e a igualdade de todos os mogambicanos?Como o mundo sabe, Moqambique estava longe de atingir os objectivos deSamora na altura da sua morte. Examinar as(6 ) Entrevista corn Sarnora Machel ern Maputo, ern Maio de 1979, conduzidapor lain Christie e Allen Isaacman.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 199raz6es para. este facto em pormenor neste volume transformal-lo-ia numa historiado Moqambique moderno em vez de uma reflexdo sobre a vida de SamoraMachel. Mas uma descriqdo dos problemas que a Frelimo enfrentavaao dirigir aluta para construir o socialismo em Moqambique pode ajudar-nos acompreendermelhor o homem. Ndo vou aqui entrar em problemas como a economia nabancarrota que a Frelimo herdou dos portugueses ou as calamidadesnaturaiscomo a seca e as inundaq6es. Estes factos teriam acontecido mesmo que aFrelimo tivesse escolhido o capitalismo em vez do socialismo.Vem-nos 'a mente tre^s problemas que tem uma relaqdo directa na escolha pelaFrelimo do socialismo cientffico.0 primeiro 6 o problema de criar o tipo certo de partido e estruturas democrdticaspara. serem pontas de lanqa da revoluqdo.0 segundo 6 a falta de urn. proletariado organizado que, para os socialistasmarxistas, 6 o sine qua non de uma revolugdo socialista.0 terceiro e o eterno fantasma dos marxistas no mundo subdesenvolvido: ondemeter os camponeses?Estabelecendo o poder popularApo's a independencia a Frelimo teve que encontrar o camlnho para. a criaqdo deuma estrutura. para. o poder popular, quer atraves da democracianos lugares detrabalho quer atrav6s do estabelecimento de um Partido no qual a classe operdria,em alianqa com o campesinato, fosse capaz de exercer o seu papelcomo forgadirigente da revoluqdo mogambicana.As estruturas iniciais do poder popular no Moqambique po's-colonial eramconhecidas por Grupos Dinamizadores. Eram comites polfticos de base eleitosnos lugares de trabalho, aldeias e bairros urbanos. Para os mogambicanos que ndotinham tomado parte na luta armada pela independ8ncia, os GDs erama primeiraexperi8ncia de uma actividade politica organizada. Os GDs fundaramcooperativas, produziram jornais de parede em f6bricas e bairros, organizaramaulas de alfabetizaqa-o, patrulhas contra a criminalidade, discuss6es polfticas ereabriram

200 1AIN CHRISTIElojas abandonadas. Quando os pr6dios de rendimento foram nacionalizados, em1976, os GDs estavam tdo bem implantados na sociedade que foram capazes deapresentar um inventdrio do que tinha sido adquirido uma ou duas semanas depoisda decisdo.Por altura. da morte de Samora os Grupos Dinamizadores ainda funcionavarncomo organizaq6es da comunidade local, mas nos lugares de trabalho tinham sido

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substitufdos por novas estruturas. Primeiro foram criados os Conselhos deProduqdo, que substitufram os GDs. Depois os pro'prios Conselhosde Produqdoforam substitufdos por sindicatos em cada inddstria, agrupados naOrganizaqdodos Trabalhadores Moqambicanos (OTM). Os operdrios estavam a experlmentar,de facto, uma transformaq5o das relaq6es socials de produgdo, envolvendo-secada vez mais na planificaqdo e no controlo.A criaqdo dos Grupos Dinamizadores tinha sido uma fase de transiqdo natransforma do da Frelimo, movimento de libertaqdo, na Frelimo, partido polftico.Uma das tarefas dos GDs era elevar a consciencia polftica das massas para tomarpossivel essa transformaqdo.A Frelimo, movimento de libertaqdo, realizou o seu terceiro congresso emFevereiro de 1977 em Maputo, depois de vdrios meses de preparaqdoeexplicaq6es. 0 congresso anunciou a crlaqdo do Partido Frelimo, uma organizaqaode vanguarda marxista-leninista cuia <<missdo hist6rica 6 dirigir, organizar,orientar e educar as massas, transformando assim o movimento popular de massasnum poderoso instrumento para a destruiqdo do capitalismo e a construgdo dosocialismo>>.Na mesma linha do pensamento de Samora sobre a teoria e a prdtica, detalhadamais atra's neste capftulo, o conliecimento teo'rico do marxismo ndoera um pr6-requisito para ser membro do partido. Ndo havia sinais do tipo de <<candidatoscom conhecimento do materiallsmo dialectico t8m mals hip6teses de admissdo>>,para deter as massas analfabetas, embora se esperasse que as pessoas queaderissem fizessem o esforqo para aprender a ler e escrever e para tentaremchegar 'a compreensdo te6rica.A admissdo no partido era quase automdtica para as pessoas que tinham sidomembros do movimento de libertaqdo. Outros passaram por um rigoroso processode selecqdo, no qual as fa-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 201ses-chave eram entrevistas com os GDs (que continuaram a existir ap6s a criaqdodo partido), apresentaqdo perante colegas ou vizinhos e o veto dalista final peloquartel-general da Frelimo. 0 objectivo era descobrir se os candidatos tinham bomaracter e estavam comprometidos com a defesa dos interesses da maioria do povo.Se um candidato fosse apresentado como um antigo agente da PIDE,ndo seriaadmitido. Provas de comprometimento no trabalho comunitdrio, poroutro lado,colocavam o candidato em boa posigdo.A Frelimo cavalgava a crista da onda nesse periodo. Os ataques militares daRode'sia estavam a comegar a cobrar o seu prego mas ndo faziam desanimar oapoio popular A Frelimo e A sua polftica. Em Outubro Samora f6i 'as Nag6esUnidas e, num discurso A Assembleia Geral, atacou os aspectos<<profundamente antidemocraticos>> das propostas anglo-americanas para umacordo sobre a Rod6sia e garantlu o apolo mogambicano permanente a luta delibertaqdo do Zimbabwe. So' o p6de fazer porque sabia que tinha, por tra's de si, opovo moqambicano.Para os observadores estrangeiros era 6bvio o entusiasmo pelo programasocialista da Frelimo e pela polftica de solidariedade com os zimbabweanos.

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Michael Kaufman, do New York Tines, escreveu, em Novembro: <<Se oentusiasmo decaiu noutros lugares (em Africa), aqui ele 6 palpdvel. A experl8nciade Moqambique s6 tem dois anos e qualquer leitura imediata das mudangasrevoluciondrias estd sujeita a revis6es. No entanto ha, provas de que o grau demobilizaqdo e espfrito nacional aqui atingido 6 grande e pode ser mais duradouroque qualquer outra coisa que a Africa tenha conhecido.>>Quando a direcqdo do partido atinglu a velocidade maxima com a sua campanhade recrutamento em 1978, as pessoas aderiram 'a Frellmo As dezenas de milhares.Por altura do quarto congresso da Frelimo, em 1983, o partido tinhaI 10 000membros.Debaixo desta imagem, no entanto, havia um problema no partido. Enquanto on6mero de membros crescia, ndo estava a ser dada suficiente atengdoparagarantir o controlo do Estado pelo partido, o que devia acontecernos termos dasdecis6es do terceiro congresso.

202 IAIN CHRISTIE0 problema comeqava de cima. Ndo havia uma direcqdo do partido a tempointeiro. A Frelimo tinha um Bureau Polftico e um Secretariado mas todos osmembros desses 0rgdos tinharn empregos no governo ou no ex6rcito. S6 em1980, tres anos ap6s a criaqdo do partido, 6 que esta situagdo fol mudada. Doismembros do Bureau Polftico da Frellmo e do Secretariado, Marcelino dos Santose Jorge Rebelo, foram libertos dos seus lugares de ministros, em Abril de 1980,para ficarem secretdrios do partido a tempo inteiro. A reacqdo da imprensaocidental foi de que dois <<ide'logos marxistas da linha dura>> tinham sidopostos de lado e que isso era um sinal de que Samora Machel se estava a afastardo marxismo. Na verdade era precisamente o contrario. Samora tinha-seapercebido de que o partido, se queria funcionar correctamente,precisava dequadros superiores na sua direcqdo, e, portanto, deu a Marcelino dos Santos e aRebelo a tarefa de revitalizarem. a Frelimo.0 aspecto, que passou despercebido a muitos observadores fol que Samora tinhalevado tres anos a dar este, passo que, nos seus pr6prios termos derefer8ncia, eraabsolutamente fundamental. Tinha perdido um tempo precioso. 0 partido jd tinhacomegado a perder parte do seu dinamismo.A decisdo de Abril de 1980 foi importante e fol seguida por um grande esforgo deconstruqdo do partido. Estava-se num momento crucial da hist6ria do partido,com a Frelimo mais popular do que nunca devido ao exito da sua polfticadeapoio a Zanu e A consequente independencia do Zimbabwe. 0 esforgo demobilizaqdo do partido cresceu na corrida para o congresso de 1983, mas nesseano Samora decidiu enviar Marcelino dos Santos para a Beira para seencarregarda provfncia de Sofala, na ess8ncia um trabalho do governo. Istodeixou Rebelocomo o Onico membro, do Bureau Polftico com um emprego " tempo inteiro nopartido - ou, melhor, com dois empregos " tempo inteiro - secreta'rio para, oTrabalho Ideol6gico e primeiro-secretdrio de Maputo. Embora fosse verdade quehavia falta de quadros, a relutdncia de Samora em por mais dos seus principaisquadros a trabalhar no partido a tempo inteiro, e o seu proprio envolvimento, cada

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vez mais esporddico, nas actividades do partido, sugerem que a absorgdo doPresidente

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 203pelas quest6es do Estado o distraiam da importancia do partido.Durante um longo perlodo Samora tinha estado 'a frente de uma actividade cujoobjectivo era fazer da Frelimo um facto permanente da vida de Moqambique, umaorganizaqdo que interiorizasse permanentemente as esperanqas easpirag6es doseu povo. Depois parece que ele comeqou a dar essa tarefa como garantida,assumindo que a Frelimo jd podia prosseguir pelos seus pr6prios p6s.Dito isto, contudo, temos que acrescentar que a Frelimo que ele deixava para trasndo estava, de forma nenhuma, morlbunda. 0 partido podia ser bernmalsdindmico do que era mas funcionava, de facto, em todo o pafs, de uma formaexcepcional em Africa. Mogambique continuava a ser um genuino Estado departido 6nico e ndo o <<Estado sem partido>> que caracterizou tantos paisesafricanos na altura.E os operairios?Um dos problemas na construgdo do socialismo em Mogambique era adificuldade em desenvolver uma classe operdria forte, permanentee capacitada,em oposlqdo a uma forga de trabalho essencialmente baseada num trabalho casuale ndo especializado nas plantag6es e nos portos, mineiros migrantes na Africa doSul e uma pequena e desorganizada forqa de trabaIho nas f6bricas.No momento da independencia havia um considerd'vel n6mero de moqambicanoscomo trabalhadores assalariados. Em termos africanos um numeromesmo muitoconsiderd'vel, mas ndo havia multa coesdo proletdria ou consci8ncia de classe.Havia os mineiros moqambicanos migrantes na Africa do Sul. Eram, em 1975,cerca de 115 000. Mas ndo eram, de facto, uma forga real para dirigir a classedentro de Mogambique. Durante os seus penodos na Africa do Sul eramoperalrios industriais, mas no seu regresso, voltavam para o campesinato disperso.Internamente, grande parte da classe operdria tinha sido portuguesa. No momentoda independe^ncia apenas havia um

204 MIN CHRISTIEcondutor de locomotivas mogambicano negro, s6 para. dar um eXeMplo (7). Osassalariados nos portos e nas construq6es eram, tendencialmente,trabalhadorestemporarios, pagos ao dia. Os trabalhadores das plantaq6es ndo s6 eramtempordrios como, ainda por cima, sazonais.Nos finais do perfodo colonial algumas barreiras de emprego comeqaram a cair Amedida que os portugueses ficavarn mais preocupados com os avanqos daFrelimo, mas n5o houve mudanqa substancial num cendrio em que osnegrosestavarn confinados a empregos temporarios, dome'sticos e ndo especializados.Em contraste, na altura da morte de Samora ja' existia uma classe operdria negrapermanente e capacitada, formada a partir da independencia. Ainda era pequena,mas os africanos tinham aprendido n5o s6 a trabalhar com as maquinas mas aadministrar as fdbricas: e todos os maquinistas de comboios eram mogambicanos.

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Este salto para o seculo xx fol conseguido, em parte, atrav6s do emprego demilhares de professores e tdcnicos estrangeiros - os cooperantes - para transmitiros conhecimentos que tinham sido guardados tdo ciosamente pelos colonosportugueses. Mas ndo teria sido possfvel sem o enorme, esforqo que f6i feito naeducaqdo basica nos anos que se seguiram -a independencia, um esforqo queelevou milhares de pessoas ao nivel de compreensdo necessdrio para absorveremconhecimentos t6cnicos.0 problerna que a Frelimo herdou na independe^ncia era agravado pelas regras doEstado corporativo fascista, que impediam o desenvolvimento de verdadeirossindicatos.Isto ndo quer dizer que ndo houvesse greves ou outras formas de acqdo laboralem Moqambique. Havla, principalmente nos portos, onde existia um grandecontingente de trabalhadores assalariados. Mas a repressdo tinha levado muitosoperarios a acreditar que o mdximo a que podiam aspirar era um acordo salarialde vez em quando. Urna associaq2io livre dos operarios poderia terlevado aocrescimento da consci8ncia de classe.(1) Funciongrios do Ministdrio dos Transportes deram esta informagdo ao autor.Acrescentaram que o dnico maquinista negro, era um agente da PIDE.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 205Samora colocou este problema com clareza nurn encontro corn cerca de 1500operarios de Maputo ern Outubro de 1976.Muitos participavarn nas greves e pensavarn que isso erauma atitude nacionalista. Mas ndo ha' luta polftica sem consciencia polftica.Urn estivador podia dizer: <<eu ndo descarrego estas caixas porque o dinheiroque me pagam 6 pouco>>. As caixas eram de armas, munig6es e bombas que oexe'rcito colonial utilizava para combater a Frelimo. Mas passavarn a pagar maisao estivador e ele descarregava. Quem 6 que ficava a ganhar? 0 povomogambicano, por causa do aumento do saldrio do estivador, ou os nossosinimigos que ficavarn cornmais bombas para. massacrarern o povo moqambicano?Na altura em que Samora fez aquele discurso a classe opeaJ r ia, noseu conjunto,tinha conseguido alguns beneffcios significativos da polftica dogoverno daFrelimo. 0 Estado tinha introduzido um. serviqo de sau'de virtualmente gratuito,educaqdo gratuita para, as crianqas e aulas de alfabetizagdo e cursos nocturnospara. os adultos. Milhares de famflias negras pobres tinham podido mudar-se dossub6rbios para os modernos apartamentos e casas das cidades, anteriormente dealtas rendas e ocupados pelos brancos. Isto fbi conseguido atrav6s danacionalizagdo dos pre'dios de rendimento, a maior parte dos quais erampropriedade dos colonos portugueses e muitos dos quais estavam vazios depois doe^xodo dos colonos por altura da independe^ncia. Os negros ndo tinharn sidoproibidos de viver nas cidades, mas o apartheid era conseguido atraves de meioseconomicos e os donos dos pr6dios recusavam-se a baixar as suasrendas mesmoquando as casas tinham sido abandonadas. Apo's a nacionalizaqdoas rendas erarnem fungdo dos salarios, tomando esse tipo de acomodaqdo acessfvel aostrabalhadores negros.

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Samora chamou a atenq5o, no entanto, para que as acq6es de muitostrabalhadores ndo correspondiarn A nova situaqdo. Havia diminuiq6es no ritmodo trabalho em apoio a exige^ncias salariais e neglige^ncia e absentismogeneralizados. Havia falta de consciencia de classe, uma incapacidade para verque <<a si-

206 AIN CHRISTIEtuaqdo actual 6 profundamente diferente da que era no passado>>. Explicou:No tempo colonial o operairio so' podia lutar pelo seubeneffclo pessoal. Procurava resolver a sua vida atrave's do saldrio. Mas o saldriondo dava acesso propriedade da terra, aos consult6rios privados, ndo permitiamandar os filhos A Universidade, viver nas casas de cimento. Hoje ooperdrio,com o seu poder, pode decidir o futuro do seu pal'sHoje, com o nosso poder, criamos as condig6es para usar oproduto do nosso trabalho em nosso pr6prio beneffcio.Nesse dia o Presidente usou da palavra para tentar convencer a classe operdria deque devia aumentar a produtividade dado que, nas suas palavras, <<o nossogoverno estA a destruir as pr6prias bases da exploraqdo>>. 0 discurso foi seguldopela criaqdo de embri6es de estruturas sindicais nas oficinas, conhecidas porConselhos de Produqdo, cujo papel ndo era conseguir maiores saldrios para osseus membros mas envolver os operarios na planificaqdo e no controlo daproduqdo e no aumento da produtividade em beneffcio da nagdo no seu todo.Para convencer os operdrios a aceitarem isto era necessario mostrar-lhes, naprdtica, que ndo estavam a ser embarretados por uma direcqdo desonesta queenchesse os bolsos dos seus membros ao mesmo tempo que pedia sacrificios aopovo que produz a riqueza.Na. fase final da vida de Samora houve vdrios casos confirmados decorrupqdo oudesonestidade entre funciondrios de nfvel me'dio. Alguns roubaram dinheiro efugiram para Portugal. Mas Samora manteve uma disciplina apertada no que diziarespeito ao topo, Aqueles que faziam a polftica do Partido e do governo, e nuncasurgiu nenhuma prova de grave desvio financeiro contra pessoasdos escal6essuperiores do poder (11).(1) No perfodo que vai desde a independEncia W morte de Samora omilitanteda Frelimo de mais alto nfvel a ser acusado de desvio de fundos foi

SAMORA - UIVIA BIOGRAFIA 207A corrupqdo e a desonestidade dos dirigentes podem ser endemicosem pafsessubdesenvolvidos mas Samora, e os seus principais colegas mantiveram limpa areputaqdo de Moqambique nesse aspecto. Os funciona'rios da ajuda internacionale as embaixadas ndo tinham sendo elogios para a forma como a administraqdoconseguia garantir que a ajuda chegasse onde devia chegar e n5ofossedesaparecendo pelo caminho em beneficio de dirigentes politicos.Mas ao mobilizar a classe operaria para assumir o seu papel dirigente narevolugdo, Samora. fez mais do que simplesmente convencer osoperdrios de quea direcqdo do pais ndo estava a viver no luxo A custa deles. Assegurouigualmente que eles tinham um papel a desempenhar na vida do partido numa

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proporqdo malor do que a relaqdo operdrios-camponeses no pafs.Por altura doquarto congresso, em 1983, mais de 90 % da populaqdo era camponesa. Mas, noPartido Frelimo, 54 % dos membros eram camponeses e 19 % operarios. E, nocongresso, os operdrios eram 26 % dos delegados, enquanto 29 % eramcamponeses e 13 % soldados.E os camponeses?Ap6s a independEncia Samora aceltou conselhos no sentido de que grandesempresas estatais mecanizadas eram a forma socialista de produzir excedentes nascolheitas, nas condiq6es de Moqambique, sem relag6es de produqdo baseadas naexploragdo. No papel parecia bom. Mas essas empresas necessitavam deinvestimentos maciqos em moeda convertfvel, para a importa9do de tractores eoutra maquinaria, bern como fertilizantes e pesticidas. E a maquinaria requeriapeqas sobressalentes e combusti'vel, tamb6m importados.Francisco Langa, urn veterano cornandante guerrilheiro e mernbro do Cornit6Central. Tornou-se chefe do Gabinete de Apoio aos Refugiados e Movirnentos deLibertaqdo. Foi colocado sob pris5o domiciligria por se ter apropriado de fundosdo Estado e, ern Maio de 1980, suicidou-se, antes de ser levado a tribunal.

208 IAIN CHRISTIEA produqdo nessas empresas, por conseguinte, fazia. exlg8ncias pesadas aosescassos recursos do pafs em moeda externa.0 estfmulo A agricultura, de pequena escala pelas fam'lias camponesas e pelascooperativas tamb6m tem custos em divisas estrangeiras. Tem queser importadosinstrumentos manuais de trabalho e bens de consurno para encorajaroscamponeses a produzir para o mercado. Se ndo for assim eles pouco terdo paracomprar com o dinheiro que ganham.Por conseguinte o governo teve que fazer investimentos em moeda externa querpara as empresas estatais quer para a agricultura camponesa, dando prioridade Asprimeiras. Duas estati'sticas tornam isto claro. Nos quatro anos quese seguem aocongresso da Frelimo, em 1977, Moqambique importou 50 miWes de libras emmaquinaria agrfcola, incluindo 3000 tractores. Era especialmente para asempresas estatais agrfcolas. Os camponeses, por outro lado,viram, secar o seuabastecimento em enxadas. Ap6s a independencia a produqdo local de enxadascaiu para menos de metade do nfvel anterior A independencia e foraminterrompidas as importaq6es (9).Conta-se a histo'ria de um funciondrio superior da planificaqdo, em Maputo, aquem foi apresentada uma proposta de orgamento de importaqdo que inclufavdrios milh6es de meticais para comprar panelas, espelhos, rel6gios, cintos,pentes, bugigangas e coisas e loisas variadas para abastecer as lojasrurais.Afastou a proposta, muito zangado, argumentando que o Estado ndoia gastar osseus fundos para comprar ninharias quando o dinheiro poderia ser usado paraimportar coisas dteis como comida. Mas 6 claro que o funciondrio subalterno quefez a proposta 6 que tinha razdo. Quando os camponeses descobriram que ndohavia produtos para comprar com o dinheiro que recebiarn pelos seus produtosficararn sem incentivo para produzirem para o mercado.

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Este tipo de pensamento ajudou a estropiar a produqdo agrfcola camponesa e aaumentar o fluxo da populagdo rural para.(') Pode ser encontrada uma andlise detalhada deste problema em Hanlon,Mozambique: The Revolution Under Fire, Londres, Zed Books Ltd., 1984, deonde foram tiradas estas estatisticas.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 209as cidades. Dessa maneira pessoas que tinham sido produtoras de alimentostornaram-se consumidoras de alimentos que ndo produziram. As empresas estataisagri'colas, minadas por problemas administrativos, economicos e t6cnicos, foramincapazes de corresponder ao aumento da procura.Os principais planeadores econ6micos recusavam-se a investir naagriculturacamponesa. Pareciam ter a ideia de que os camponeses podiam resolverperfeitamente, os seus problemas por si pro'prios, na medida em que o tinhamfeito durante s6culos. Havia um conceito abstracto de que o PartidoFrelimodeveria <<mobilizar>> os camponeses para produzirem mais, enquanto o governodevia oinvestir>> em grandes empresas agrfcolas.Os planificadores pareclam ndo compreender que os camponeses necessitavam debens de consurno, id para ndo falar de enxadas e outros instrumentos, vitals para aagricultura campesina.Seria simplista explicar esta situaqdo referindo o marxismo de Samora eacusando-o de um dogmatismo ideologico que consideraria os camponeses comoquase irrelevantes para a revoluqdo. Esta ideia estd muito longe da verdade.Em muitos discursos ele tornou clara a sua preocupaqdo de trazer os camponesespara o seculo xx, como parte de uma modemizaqdo geral do pals. Censurou osnovos citadinos por trazerem com eles habitos camponeses:0 pal come 'a mesa e a melhor comida. Os filhos, a muIher ou mulherescomemna cozinha ou no quintal, sentados na esteira, com um pau na mdo esquerda paraenxotar galinhas e, na mdo direita, uma caneca de dgua. 0 pal andavestido ecalqado, os filhos rotos e descalqos. Pode faltar dinheiro para oleite da crianga,mas nunca falta para a cerveja do pai (11).Algumas pessoas podem interpretar este discurso como mostrando umpreconceito contra o campesinato, mas seria mais acertado v8-lo como umadefesa dos direitos das esposas e dos filhos, a maioria em qualquer famflia,camponesa ou outra.(11) Discurso em Maputo a 13 de Fevereiro de 1982.

210 IAIN CHRISTIESamora tinha uma consciencia aguda de que tinha sido o apoio dos camponesesdo Norte de Mogambique que tinha levado a Frelimo ao poder. Nunca subestimoua importancia desse apolo.Logo no princfpio do desenvolvimento do problema <<agricultor camponescontra empresa estatal agricola>> percebeu que alguma coisa estava errada. EmAgosto de 1978 demitiu o ministro da Agricultura, Joaquim de Carvalho, e disse,numa declaragdo:Dando sisternaticamente prioridade A t6cnica, desprezou

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a iniciativa e a contribulgdo popular. 0 sector de produgdo familiar, que constituia fonte principal da produgdo agrifcola do nosso pafs, foi desprezado.No ano seguinte Samora tornou, mais uma vez, clara a posigdo do seupartido aodizer que <<estimular o agricultor familiar requer uma rede comercial parafornecer ao agricultor' e 'a sua familia os artigos indispensalveise para adquirir asua produqdo excedenta'ria)>. Ndo havia ddvidas, na mente de Samora, de que oscamponeses estavam a passar mal mas a burocracia governamental ndo fez nadapara remediar a situagdo.Em 1982 o jornalista Joseph Hanlon, entdo baseado em Maputo comocorrespondente da British Broadcasting Corporation e do jornalGuardian deLondres, deu uma volta pela f6rtil provfncia da Zamb6zia e ficou surpreendidocom o que viu. Hanlon tinha visitado Mogambique antes, em 1977, eposteriormente escreveu uma seria crftica da polftica agricola de Mogambiquepara a publicagdo londrina New Scientist. Acompanhou o, desenvolvimento dessapolftica com um olho atento aos pormenores, visi'vel nos seus comentdriosposteriores sobre a Zambezia em 1982.A Frelimo tinha encorajado os comerciantes privados avoltarem para as dreas rurais e muitos fizeram-no. Alem disso, o Estadoestabeleceu brigadas de comercializaga-o para irem 'as zonas rurais mais remotaspara comprar os excedentes dos camponeses e das cooperativas. Assim, em 1981o

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 211Estado tinha montado um razodvel sistema de comercializaqdo rural. Mas deu aosdonos das lojas e 'as brigadas pouca coisa para vender aos camponeses, em troca [... I as lojas estavarn vazias. S6 tinham sal, cha, po de caril, a1gumas roupas parahomem e os sempre presentes feij6es em lata. Hal mals de tres anos que ndo seviam pegas sobressalentes para bicicletas. As mercadorias para asdreas ruraisestavam, purae simplesmente, no fundo da lista (11).Parecia que os funcionainos governamentais ndo tinharn prestado atengdo ao queSamora. dizia. Por outro lado, podia ser que a direcqdo do partido ndo estivesse ainsistir suficientemente em mudanqas orqamentais para apoiar as orientaq6esclaras dadas pelo Presidente. Uma coisa 6 exigir apoio para os camponeses eoutra. garantir que sejam providencladas as finangas para. Isso.Em 1982, no entanto, Samora comegou a tomar acq6es decisivas. Como era tipiconele, foi uma missdo de inspecqao no terreno que Ihe fez perder acabeqa. EmMargo desse ano fez uma digressdo pela sua provfncia natal de Gaza, ondetinham sido estabelecidas mais de cem aldeias comunais desde as desastrosasinundaq6es na zona em 1977. Milhares de familias camponesas tinhamrespondido ao apelo da Frelimo para comegar uma nova forma de vidasocialistacriando aquelas aldeias, mas tinha-se permitido que o entusiasmo se desvanecessepor falta de apoio das autoridades provinciais.Samora demitiu o governador provincial, o major-general Joao Pelembe, urn.homem. que tinha entrado para a Frelimo no mesmo ano que ele proprio e se tinhatornado um dos principais comandantes da guerrilha. Foi uma decisdo penosa,

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como se tornava claro na declaraqdo oficial. Samora enviou 6scar Monteiro,membro do Secretariado do partido e ministro, da Presid8ncia, para governarGaza. Muito rapidamente Monteiro redistribuiu 40 000 acres de terra ndoutilizada aos agricultores camponeses.Mais tarde, no quarto congresso da Frelimo, ern 1983, a direcqdodo Partidoreconheceu, em termos muito mais duros,(") Hanlon, obra citada, p. 111.

212 MIN CHRISTIEos problemas que os camponeses do pal's estavarn a enfrentar em resultado dedecis6es falhadas. No congresso Samora presidiu ao abandonoformal daspolfticas falhadas que tinham canalizado investimentos macigos para empresasestatais agrfcolas que ndo produziam lucros, enquanto praticamente ndo haviadinheiro para instrumentos de trabalho e bens de consurno para estimular aagricultura camponesa. Grandes machambas estatais foram divididasem unidadesmais pequenas e mais facilmente, administrdvels, milhares de utensflios manuaisforam importados e fol dada mais terra aos camponeses.

10. A arma sofisticadaEntre as multas contribuiq6es de Samora Machel para. as lutas delibertaqdo daAfrica Austral estava a sua perspectiva fresca e vigorosa sobre a questdo da raqa.A raqa f6i, quase por definiqdo, um factor nessas lutas dado que todas elassurgiram. da exploraqdo e opressdo de negros por brancos. 0 que Mondlane eSamora rejeitavam, no entanto, era a noqdo de que a cor da pele era umaindicaqdo sobre quem, era amigo e quem era adversdrio. Para eles a opressdoracial era uma injustlqa fundamental mas ndo queria dizer que o inimiaopudesseser definido em termos de cor. Para eles a contradiqao fundamental era entre opovo moqambicano e o sistema colonial portugues. 0 inimigo era essesistema eaqueles que o impunham.Mondlane e Samora. queriam que os regimes racistas brancos fossem. removidosdo poder em Africa mas insistiam tambe'rn em que a luta da Frelimo ndo era umacruzada antibranco. Ndo eram os primeiros dirigentes de urn, movimento delibertaqdo a proclamar essa polftica, mas estiveram entre os primeiros a levd-lapara al6m de uma mera. declaraqdo de princfpios

214 MIN CHRISTIEe em circunstdncias que eram, muitas vezes, dificeis e perigosas.Samora falava multas vezes do problema da raqa ern termos de complexos deinferioridade e de superioridade. Viu que havia, quer entre os brancos quer entreos negros, aqueles que ndo conseguiam romper com o condicionamento mentalque decretava, por exemplo, que os brancos eram bons administradores, osasidticos bons contabilistas e que os negros ndo eram muito bons em nada a ndoser no trabalho manual.Os brancos reacciondrios tratavam os negros como bestas de carga e muitosnegros, abatidos por anos de opressdo, tinham as mentes colonizadas. Recordo umexemplo flagrante, no momento das celebraq6es da independ8ncia,em Junho de

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1975, quando partilhava um quarto no Hotel Cardoso com um amigotanzaniano.Um velho porteiro negro do hotel aproximou-se de mim torcendo as mdos, aflito,para me pedir para. localizar um dos hospedes, cujo nome ndo conhecia mas que,descobrimos mais tarde, era o tanzaniano. Para descrever o homemo porteirodisse, em ingles, embaragado: <t um cafre (kaffir) como eu, mas 6... bem,... bern,penso... seu... amlgo.>>Reduzido ao estado de <<cafre>>, abaixo de cdo, estava claramente para alern dacompreensdo daquele porteiro que um branco e um negro pudessem ser amigos ereagia como se estivesse num planeta estranho.Samora Machel destruiu esse complexo de inferioridade em milh6es dos seuscompatriotas ao dirigir uma luta vitoriosa contra o colonialismo portugu8s. Para oporteiro do Hotel Cardoso e muitas outras pessoas a mensagem de que o pal'sestava livre n5o fol imediatamente captada. Mas, gradualmente, osmoqambicanosdescobriram que tinham ganho a dignidade de serem cidaddos livresde umanagdo independente. Jd ndo eram cafres.Os privil6gios baseados na raga desapareceram. A lei, os cuidados de sau'de, aeducagdo, a habitagdo, as oportunidades de trabalho - tudo isto passou a estarlivre da discriminaqdo racial.Contudo, desde a sua juventude que Sarnora viu, para alem do ultraje 6bvio dasupremacia branca, o perigo de reduzir a definiqdo do inimigo ao ohomembranco>>. Tinha conscie^ncia de

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 215que um governo neocolonial negro so' iria substituir a autoridade portuguesa econtinuar tudo como antigamente. Estava consciente do facto de quealgunsmogambicanos negros queriam que os brancos fossem expulsos do pafs, mastendia a ver isso ndo tanto como simples reacqdo a anos de opress5o mas comoum desejo de ficar no lugar dos exploradores.A forma como ele lidou com esses problemas ao longo dos anos foi atrave's deuma teimosa anailise dos problemas da socledade em termos de classe- ndo deraqa -, desafiando constantemente os que queriam ser onovos exploradores>>,impondo medidas polfticas e economicas para remover os privilegios baseados naraga e tornando a educaqdo acessfvel 8 massasAnegras, que tinham sido mantidas na ignorancia pelos colonialistas.Ndo aceitava rejeitar, por raz6es raciais, a participaqdo de ndo-negros na luta pelaindependencia de Moqambique e, mals tarde, pelo desenvolvimento. Costurnavadizer que a Frelimo tinha camaradas brancos e negros e inimigos brancos enegros. Para ele a luta era contra um sistema de exploraqdo e n5o contrauma cor.Resumiu este seu ponto de vista numa dessas metdforas pitorescas queadoravausar: <<O piolho, o carrapato e o percevejo ndo t8m a mesma cor, masnenhumdeles bebe dgua ou leite - vivem de sangue.>>Poupar os prisioneirosDurante a luta pela indepen&ncia a Frelimo declarou, com frequ8ncia, que lutavacontra o colonialismo portugues e n5o contra o povo portugue-s, que era vftimada opressdo fascista. At6 mesmo os soldados portugueses, os alvos das balas da

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Frelimo, eram olhados com certa simpatia. A politica da Frelimo era poupar avida dos prisioneiros e desertores do exercito portugu6s e entrega-Ios aorganizag6es internacionais como a Cruz Vermelha.Um artigo na Mozambique Revolution de Outubro-Dezembro de 1968 afirmava:<<Os soldados portugueses n5o podem compreender como 6 que podem estar alutar por Portugal num

216 MIN CHRISTIEpais estrangeiro. 0 que eles querem e' voltar para casa, para as suas famflias.>>Esta andlise, formulacla primeiro sob a direcqao de Mondlane,foi tamb6mclefinicla por Samora quando se tornou Presidente da Frelimo. Numa entrevista,em 1972, disse ao autor:Quando capturamos soldados portugueses ndo os matamos ou maltratamos. 0nosso povo sabe que esses homens estdo a participar na guerra porque sdoobrigados. Ndo estdo a defender os seus pr6prios interesses nem os interesses dopovo portugu8s, mas sim os interesses dos capitalistas portugueses e doimperialismo internacional. Por isso hd soldados portugueses que desertam para*unto de nos. Consideramos esses como nossos allaclos. A sua deserqdo e umacto de apoio 'a nossa luta (1).A polftica de cleme^ncia da Frelimo com os prisioneiros portugueses ndo tinhareciprocidade por parte do ex6rcito e da polfc1a secreta dos portugueses. Ap6s ocessar-fogo, em 1974, a Frelimo entregou cerca de 150 soldados portuguesescapturados. Os portugueses n5o tinham um U'nico guerrilheiro da Frefirnocapturado para entregar em troca. Hal poucas clu'viclas sobre o que 1hesaconteceu.Ao insistir que as forqas da Frelimo deveriam poupar os prislonetros e osdesertores e n5o deviam comportar-se como as forqas coloniais, Samora eMondlane estavam a fazer tr6s coisas: em primeiro lugar estavam a reclamar umasupremacia moral na arena polftica internacional; ern segundo lugar estavam aencorajar os soldados portugueses a clesertar ou mesmo a amotinarem-se; e, ernterceiro lugar, estavam a forqar os moqambicanos comuns a avanqarpoliticamente para al6m da perspectiva de que a luta era para matarbrancos enada mais.As observaq6es de urn estudante ugande^s, de 24 anos, na Universidade de Dar-es-Salam, que visitou as zonas libertaclas da Frelimo no Norte de Mogambique,em Setembro de 1968,V) Entrevista publicada, pela primeira vez, no jornal Sunday News, Tanzania, a 2de Abril de 1972.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 217ilustram bem at6 que ponto esta d1tima questdo era um problema.Tremendamente impressionado com o que tinha visto, escreveu um artigo sobre oassunto num jornal da Universidade, sob o titulo Teoria de Fanon sobre aviolencia: Sua VerificaCdo no Mo ambique Libertado. Vejamos um extracto:Temos que ver que a <<Invencibilidade>> do inimigo e

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uma fraude; ele 6 invencfvel porque nunca foi desafiado por umaforqarevoluciondria usando os m6todos correctos da viol8ncia revoluciondria. Por issoem Moqambique f6i considerado necessdrio mostrar aos camponeses pedaqos deum soldado portugues despedaqado por uma mina ou, ainda melhor, asua cabeqa.Quando o campones ve os guerrilheiros corn a cabeqa do antigo patrdo, a cabeqado branco fria de morte, ndo obstante a pele branca, o cabelo liso, onariz alto e osolhos azuis, fica a saber, ou pelo menos comeqa a suspeitar, que a imagem quetradicionalmente Ihe apresentam da invencibilidade do homem branco ndo 6sendo um espantalho. Logo que o campones oindigena>> de Moqambique e,tenho a certeza, de outros locais, descubra que o opressor pode ser destrufdo,passa a mover-se com grande velocidade impulsionado pelo 6dio aoinimigo quetem hd muito tempo. Contudo, quando a fdria dos camponeses acorda,normalmente saltam para o outro extremo: todos os brancos sdo diabos e todos osprisioneiros brancos devern ser mortos. Qualquer contacto entre militantesafricanos e os brancos 6 sinal de traiqdo. Esta posiVdo ndo 9 completamenteerrada, mas deve ser corrigida para se empreender uma lutacientffica (1).0 estudante era Yowerl Museveni, que recebeu, mais tarde, treino militar pelaFrelimo e participou na guerra contra o ditador ugandes Idi Amin. Museveni,subsequentemente, dirigiu uma(1) 0 ensaio de Museveni apareceu em Essays on the Liberation of SouthernAfrica, produzido pelo Departamento de Ci8ncias Polfficas da Universidade deDar-es-Salam e publicado pela Tanzanian Publishing House em 1972.

218 IAIN CHRISTIEguerra de guerrilha contra os governos de Milton Obote e Tito Okelo, antes de setornar ele pr6prio Presidente do Uganda ern Janeiro de 1986.A raz5o desta citagdo 6 que ela mostra a forga das opini6es contrairias queMondlane e Sarnora tiverarn que enfrentar quando insistiarn ern que eracompletarnente errado matar todos os prisioneiros brancos, considerar todos osbrancos corno diabos e considerar os contactos corn brancos corno trai9do. 0carnpon8s-modelo de Museveni, motivado pela observagdo da cabega decepadado branco, deve ter-se convencido, enquanto o pr6prio Musevenin5o fol decertoo U'nico acadernico radical que descobrlu a1gurn m6rito no pontode vista dessecarnpones.Para ale'rn disso, a1gurnas figuras polfticas africanas proeminentes ndo estavammuito dispostas a aceitar as regras das Convenq6es de Genebra nas lutas delibertaqdo da epoca. 0 xeque Karurne, o controverso Presidentede Zanzibar,explicou a sua posigdo nurn cornfcio pr6-Frelirno na ilha das especiarias. Osportugueses, disse ele, ndo cornern ugali (farinha de milho) e, dado que isso era o6nico tipo de alimento que os guerrilheiros da Frelirno tinharn, era melhor pura esimplesmente matar os prisioneiros.A direcqdo da Frelirno concordava ern que os mogambicanos negros tinharn sidocondicionados a ter urna esp6cie de medo religioso, dos portugueses, acreditandoque eles erarn invulnerdveis e que oera necessa-rio que o, nosso povo visse oscolonialistas a cafrern debaixo do fogo das nossas armas, porque so' entdo todas

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as inibig6es mentais criadas pela anterior opressao cornegarlarn a dissolver-se>>(1). Mas Sarnora ndo comprou a ideia de cortar as cabeqas dos prisioneiros para.enfatizar esta questdo, nern partilhou a opinido do xeque Karurne sobre a questdodiet6tica. Corn boas raz6es.Sarnora sabia que os soldados portugueses erarn mandados para Africa sob opretexto de defenderern a ocivilizagdo branca>> contra a ideia de urna selvajariaafricana corn urna inocen(') Editorial do primeiro ndmero da MozambiqueRevolution que publicou uma foto de Samora na capa. N.0 44, de Julho-Setembrode 1970.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 219cia de crianga. Ndo havia melhor maneira de contrariar esse mito do quetratarbem os prisioneiros, mostrar-lhes como era realmente a Frelimo e depois liberta-Ios para espalharern isso tudo entre os amigos em Portugal. Samora eos colegasna direcqdo da Frelimo calcularam, correctamente, que isso iria agudizar ascontradlq6es na sociedade portuguesa. A polftica de cleme^ncia, combinada cornuma estrategia bem sucedida no carnpo de batalha, aumentaria as tens6es entre osgenerais portugueses e os seus oficials subalternos e soldados.Na selva da provincia de Cabo Delgado, em 1973, Samora disse-me que previaum golpe de Estado do ex6rcito em Portugal; outros, mais proximos dele, dizemque ele ja pensava dessa forma desde 1968. t dificil fugir A conclusdo de que ogolpe de Estado que teve lugar em Abril de 1974, em Lisboa, e que levouaodesmoronamento do imp6rio colonial portugu8s, esteve directamente ligado Acombinaqdo subtil, por Samora, da estrat6gia militar e da acqdo polftica.0 que Samora fez foi trazer 'a luz urn vfnculo de interesses comuns entre o seuproprio ex6rcito africano negro e muitos soldados brancos do outro lado. Umanotavel prova disso aconteceu pouco antes da independe^ncia, em 1975, quandosoldados portugueses chegaram a Lisboa, idos de Mogambique, comuma tarjabranca, a todo o comprimento do seu navio, dizendo FaVamos como aFrelimo.Poder PopularAp6s a independEncia ele sempre enfatizou que os movimentos de libertagdo emAngola e na Guine-Bissau tambem desempenhararn um papel importante paraprovocar o golpe de Estado. No entanto, de facto, Mogambique era,naquelemomento hist6rico, o principal ponto de pressdo sobre o regime portugues.Africanos brancos e portugueses negrosSamora Machel cresceu no meio de uma polftica colonial portuguesa sobre anacionalidade calculada para humilhar, ou pelo menos confundir, os negros. Osbrancos, quer tivessem nascido em Portugal quer em Mogambique,tinham, dedireito, a nacionalidade portuguesa. Ndo existia a cidadania mogambi-

220 IAIN CHRISTIEcana. Os negros erarn considerados <<indfgenas>> W conseguirem provar que setinharn tornado <<c1vilizados>>, altura ern que passavarn a ter oestatuto de<<assimilados>> ou portugueses honordrios. Urn assimilado tinhaque saber ler eescrever em portugu8s, aceitar a cultura portuguesa e abandonar a cultura<<tribal>>.

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0 n6mero relativamente pequeno de criangas negras que conseguiaentrar para aescola era encorajado a aspirar ao estatuto de assimilado. Eramuito tentador. Osassimilados estavam isentos do trabalho forqado que era exigido aos<<indigenas>> e, se tivessem posses para isso, podiam. viver numadas poucaszonas de Lourenqo Marques reservadas para os negros <<civilizados>>, ndomuito longe de onde viviarn os brancos.Urn assimilado podia andar na cidade obranca>> 'a noite, desde quelevasse umbilhete de identidade que provasse o seu estatuto privilegiado - um documentoque, com efeito, dizia que ele era quase tdo bom, mas n5o exactamentetdo bom,como um europeu. As portas dos restaurantes, clubes e teatros obrancos>>continuavam fechadas para os assimilados porque eram. ncgros.Samora era muito franco sobre os seus pr6pnos antecedentes ern LourenqoMarques. <<Eu era urn assimilado. Era urn portugu6s ndo por causa do meubilhete de identidade mas pela forma como actuava.>> 0 seu emprego comoenfermeiro era um dos melhores que um. negro podia esperar conseguir noMo9ambique colonial. 0 salario e o estatuto social prendiam Samora A corridados ratos da epoca. <<Eu tinha uma grande admiraqdo pela burguesla>>, disseele.A admiraqdo desapareceu e, com ela, o breve estatuto de assimilado de Samora. 0Samora Machel que se escapou para o Tanganica, em 1963, para sejuntar AFrelimo, tinha conscientemente rejeltado a lavagem ao, ce'rebro colonial e estavapronto para afirmar a sua pr6pria opersonalidade mogambicana>> ea do seupovo. Segundo ele: <<Libertei-me e fugi. Deitei fora o saldrio mastamb6m amentalidade colonial.>> (4)(4 ) Estas recordaq6es de Samora Machel, num jantar na provfncia deNampula,em 1977, s5o citadas por Hanlon em The Revolution Under Fire, p. 189.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 221A experiencia de ter sido um <<portugues honordrio>> deixou marcas profundasern Samora. Tinha visto, em primeira mdo, o que era o estatuto de assimilado.Ndo tinha nada a ver com igualdade. Era uma cidadania de segunda classe de umpais estrangeiro. Samora, Mondlane e os outros revolucionairios na direcqdo daFrelimo estavam determinados a que ndo houvesse esse tipo de mistificagdo sobreraga e nacionalidade no novo Mogambique. <<O nosso objectivo e' conquistar aindependencia completa, instalar um Poder Popular, construir uma SociedadeNova sem exploraqdo, para beneffcio de todos aqueles que se senternmogambicanos),>, escreveu Samora em 1974 (1).Esta posiqdo tinha implicag6es para muitos ndo-negros em Mogambique queapoiavam a luta armada pela independ8ncia.Esse apoio manifestava-se de vairias formas. Tr8s meses apos 0 ini'cio da lutaarmada, em 1964, a PIDE esmagou uma c6lula da Frelimo em LourenqoMarques. Pelo menos dois brancos, o poeta Rul Nogar e o jornalista Jodo dosReis, estavam entre os presos. Mesmo antes disso alguns brancos tinham-seapresentado como voluntdrios para a luta armada, como, por exemplo, JacintoVeloso e Jodo Ferreira, que pegaram num avido e voaram para a Tanzania para sejuntarem 'a Frelimo.

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A Frelimo deixou outros militantes brancos dentro do pafs para realizarem umtrabalho clandestino de espionagern e reconhecimento por detrdsdas linhas. Umdos mais proeminentes f6i Jose' Lufs Cabaqo, cujo trabalho como chefe depessoal de uma empresa de construqdo, com obras a decorrer emzonas de guerra,Ihe permitia tirar fotografias de alvos militares chave que se mostraram U'teispara as forgas da linha da frente da Frelimo.Alguns mulatos e pessoas de origem asidtica tamb6m se juntaram 'a Frelimo nafase inicial.De que nacionalidade erarn essas pessoas? Muitos deles tinham nascido emMoqambique mas, como jd vimos, ndo existia o estatuto legal da nacionalidademoqambicana.Samora assumiu a posiqdo de que os ndo-negros com raizes em Moqambique eque estavarn prontos a lutar pela independ&(1) Samora Machel,Estabelecer oPoder Popular para Servir as Massas, Maputo, 1975.

222 IAIN CHRISTIEcia do pafs, sob a direc9do da Frelimo, deveriam ser considerados moqambicanos.hd brancos, nascidos em Mogambique, que se querem juntar As nossas fileiras.Ndo os consideramos como estrangeiros que nos apoiam. Consideramo-los nossosaliados, esse tipo de homem 6 um de n6s e e' seu dever, tal como e'meu dever, libertar Mogambique (6).Mondlane e Samora disseram simplesmente que a raga e a cor ndo contavamcomo crit6rios para avaliar a militdncia ou a nacionalidade. E ha um argumento,serio que diz que esta politica ajudou a evitar um banho de sangue. Para o firn daluta pela independ6ncia havia cerca de um quarto de milhdo de brancos emMogambique. 0 anti-racismo da Frelimo provavelmente encorajou os brancos aaceitarem a mudanqa de governo em vez de lutarem at6 ao dltimo homemcommedo de serern atirados ao mar.Tal como a polftica de clemencia para, com os desertores e os soldadosportugueses capturados, a linha geral sobre a raga e a nacionalidade tinha umvalor polftico e militar a par de uma base moral. Samora, descrev6-la-ia maistarde como uma das suas <<armas sofisticadas>> na confrontagdo com a Africado Sul do apartheid.Retorica do poder negroNdo foi sem luta que Mondlane e Samora conseguirarn estabelecer o anti-racismocomo parte do arsenal polftico da Frelimo. No final dos anos 60 o grupo deSimango no interior da Frelimo viu esta questdo como urn Otil cacete paradesancar os revoluciona'rios. 0 grupo jogou corn o facto de que ocomportamento,supremacista dos brancos e a brutalidade colonial ao longo dos anos tinha,inevitavelmente, virado muitos negros contra os brancos em geral.(6) Sunday News.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 223A verdadeira razdo Para as diferengas entre esse grupo e os revoluciona'rios ndotinha nada a ver com. quest6es raciais, mas eles usararn a raqa como umaalavanca.

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Uria Simango, por exemplo, queixava-se de que os brancos que tinham aderido 'aFrelimo eram. <<cidaddos portugueses [...] determinados a infiltrar o Comit6Central como membros>>. E acrescentava:Marcelino dos Santos desempenhou urn papel muito importante Paraconseguirisso, na base de que eles tambern erarn mogambicanos, como as massas negras -de que ndo deviam ser discriminados -, uma definiqdo que ndo estavaestabelecida por nenhurn o'rgdo da Frelimo (1).0 que aborrecia, de facto, Simango, ao dizer isto, era que o Comit6 Central (quenessa altura ndo tinha nern urn jinico branco) se tinha recusado a eleg8-lo ParaPresidente na sua sessdo de Abril de 1969, ern Dar-es-Salam, apos a morte deMondlane. Dado que ele era vice-presidente pensava que subiria 'a preside^nciaautomaticamente.0 principio dessa sessdo foi dramaltico. Samora Machel estava corn as suas tropasna provfncia de Cabo Delgado quando Mondlane foi assassinado,ern Fevereiro.<<Ouvi a notfcia na BBC>>, afirmou ele nessa sessdo. <<A noticia dizia quevoce^s estavam a discutir a questdo da direc95o.>> Samora falavanurn murmuriorouco, cheio de emogdo. Falava ern portugues mas as palavras othe leadershipquestion>> foram ditas ern ingles. Repetiu essas tr8s palavras, devagar, erningle^s. E continuou:Sabern qual e a primeira questdo que pomos quandoperdemos um comandante ern combate? Ndo e' a questdo da direc9do. A primeiraquestdo que colocamos 6: quals foram as circunsta^ncias da sua morte? Quandoaqui cheguei men(') Uria Simango, Gloomy Situation in Frelimo, mimeo,Novembro de 1969.

224 lAIN CHRISTIEcionei isto e alguns de voces disseram que era apenas propaganda da BBC. Masnao era, pois nao? Alguns de voces queriam discutir a questao da lideranga mal onosso Presidente morreu (8).De acordo com ele pr6prio, Simango gastou 15 horas a falar em sua pr6priadefesa. Tinha sido acusado de <<cumplicidade com todas as forqasque podiamser usadas contra a direcqdo do Presidente [Mondlane]>> (9) e deestar ligado Aconspiraqdo secessionista de Nkavandame e 's manobras do padre MateusGwengere. Gwengere tinha mobilizado os estudantes para se revoltarem contra adirecqdo por duas raz6es: Mondlane tinha dado a moqambicanos brancos -cidaddos portugueses, como lhes chamava Simango - lugares de professores naescola e, em segundo lugar, Mondlane insistia em que todos os estudantespassassem algum tempo a ensinar nas zonas libertadas.As declaraq6es de Simango nos meses que se seguiram A sessdo do Comit6Central expressavam apoio a Nkavandame e a Gwengere e comparavam outrorenegado da Frelimo, Silverio Nungu, a Jesus Cristo. Dado que Nungu era oprincipal suspeito de ser o agente da PIDE que garantiu que o livro-bomba fosseentregue a Eduardo Mondlane, esse tipo de linguagem nao era bernaceite pelosoutros dirigentes da Frelimo (Io).Nkavandame foi expulso da Frelimo por ter preparado o assassinato de PauloSamuel Kankomba, um dos principais comandantes militares da Frelimo, e

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Simango foi expulso do movimento numa reunido do Comit6 Central em Maio de1970. Nkavandame foi logo trabalhar para o regime colonial portugues, fazendoapelos aos combatentes da liberdade, na sua provincia natal deCabo Delgado,para se renderem. Simango esperou(1) Transcrito pelo autor de uma gravaqdo da reunido do Comitd Central.(9) Mozambique Revolution, n.' 43, p. 9.(JO) Na sua declaraqdo Gloomy Situation in Frelimo (ver nota 7) Simango diziaque Nungu tinha sido levado perante membros do pdblico moqambicano(presumivelmente nas zonas libertadas) e acusado de crimes. <<Drama de Cristoperante Pilatos, o dirigente romano!>,, escreveu Simango.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 225ate' ao golpe de Estado em Portugal, em 1974, antes de se associar aos Drag6es daMorte. Outro elemento do grupo de Simango, Miguel Murupa, desertou para olado dos portugueses na sequencia da sessdo do Comite Central de Abril de 1969e foi trabalhar como propagandista do <<multirracialismo>> portugues.Olhando A distancia 6 hoje fdcil ver por dentro a reto'rica de poder negro dessegrupo. Mas na epoca nao era fdcil. Foi criada, no interior da administraqdotanzaniana, stificiente confusdo para o grupo conseguir a deportagdo, em 1968,dos mogambicanos brancos que eram professores na escola da Frelimo. Foi umgolpe serio no campo da assiste^ncia m6dica aos guerrilheiros feridos e aos civisdoentes das zonas libertadas. Urn dos professores expulsos foi o instrutor m6dico,Helder Martins (que se tornaria, mais tarde, o primeiro ministro da Safide doMoqambique independente) e os cursos de enfermagem tiverarn que sersuspensos durante tr8s anos.Samora, mais tarde, descreveu a dimensdo do desastre:Nos U'Itimos tres anos houve combatentes que morrerampor falta. de cuidados m6dicos, membros da populagdo morreram porque n5oestavamos ern posigdo de fornecer mesmo um min imo de ajuda m6dicaPerdemos a batalhaporque a consciencia politica dos nossos estudantes n5o era suficiente para Ihespermitir perceberem o significado e a importancia da batalha queestava a sertravada e, dessa forma, eles permitiram ao inimigo que fosse para o meio deles [... ]. 0 racismo levou A desunido entre estudantes e professores.Afirmando-serevolucionalrios, estudantes que ainda ndo tinharn dado provas deverdadeirocompromisso revoluciondrio lutaram contra professores que jd tinham dadoamplas provas da sua dedicaga-o 'a causa do povo, apenas porque os professoreseram brancos. Combinando egoismo e ambigdo, os estudantes rejeitararn umprograma de estudos planificado para responder 'as necessidadesimediatas eurgentes da luta e exigiram programas que lhes conferissem diplomaseprivil6gios para poderem explorar o povo no futuro. Queriam vir a ser uma elitede parasitas, adquirindo

226 IAIN CHRISTIEriqueza e proemine^ncia social 'a custa do sofrimento do poVo C 1).

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Mondlane e Samora ndo abandonaram os militantes brancos que foram expulsosda Tanzania. Foram encontrados lugares para eles em varios pal'ses, onde podiamcontinuar a dar alguma contribui9do para a luta e, mais tarde, todosreceberamposiq6es de responsabilidade no Moqambique p6s-independencia.Esses homens e mulheres eram uma minoria fnfima entre os brancos deMoqambique. Muitos dos brancos pensavarn em si pr6prios comoportugueses ecomeqaram a abandonar o pais quando o espectro de um govemo de maioriaapareceu no horizonte. Ndo podiam aceitar a ideia de um governopredominantemente negro e, particularmente, de um governo revoluciondrio.Quando Samora comeqou a tomar medidas radicais, como a nacionalizaqdo dospre'dios de rendimento, ern 1976, os indecisos fugiram tambem. 0 MNambiquecolonial tinha sido uma sociedade bizarra, na qual portugueses sem um tostdoconsegulam atingir a riqueza e uma posiqdo quase do dia para a noite. Nos seusanos de crepdsculo o regime colonial tentou desesperadamente atrair grandendmero de portugueses para Moqambique para actuarem como uma barreiracontra o avanqo nacionalista. Humildes empregados comerciais receberamgrandes emprestimos banca'os para construlrem pr6dios de apartamentos quedepois eram. arrendados a qualquer pessoa, excepto aos negros. Ndo era estranhoencontrar um operan*o portugue^s dos caminhos-de-ferro que possufsse umaddzia de apartamentos, cuja renda lhe dava uma vida de luxo enquantoosoperarios negros, que, de facto, tinharn construfdo os apartamentos, viviam empardieiros miseraveis.0 governo de Samora mudou isso tudo com a nacionalizaq5o. Ninguempodiapossuir mais de duas casas, uma para viver e outra para f6rias.Para muitos dosportugueses que ficaram, talvez confundindo o anti-racismo de Samora com umaatracdo sentimental para os brancos, era o firn da lua-de-mel. Levantaram-se esairam. Muitos dos residentes brancos que ficaram(") Mozambique Revolution, n.' 58, pp. 12-17.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 227eram pessoas que tinham optado, no momento da independ8ncia, pelanacionalidade moqambicana, direito conferido a todos os que tinharn. nascido nopa's. Alguns desses tambem se foram embora quando as condiq6es de vida setornaram cada vez mais dificeis, 'a medida que aumentava a guerra contraMoqambique.Mas alguns milhares ficaram, para partilhar como iguais as alegrias e tristezas damaioria negra, para celebrar as conquistas e resmungar por causa dos problemas,como toda a gente. Houve problemas. Os brancos, devido ao, n'velde educaqdomals elevado que receberarn no perfodo colonial, muitas vezes ocuparam postoselevados provocando o ressentimento dos negros que se sentiram bloqueados noacesso aos postos superiores. 0 comando do exercito, por raz6esso' deleconhecidas, mostrou tendencia para ndo recrutar brancos e issotambem ajudou agerar a ideia de que os brancos estavam a ser favorecidos. Mas havia brancos alevantarem-se em reuni6es, nos locais de trabalho, para se queixarem de estar aser discriminados, exigindo o direito de receber uma arma para defender o pafs.

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Samora tinha, de facto, criado milhares de africanos brancos e estava orgulhosodisso.Fyn Agosto de 1982 o general Magnus Malan, ministro da Defesa da Africa doSul e um homem que tinha por Samora um odio antigoe profundo, queixou-se deque Moqambique estava a ameaqar a Africa do Sul ao concentrar armassofisticadas ao longo da fronteira. Samora respondeu: <<Nenhum homem sensatopode pensar que um pafs subdesenvolvido e pobre como o nosso,com tantasferidas de guerra ainda sangrando, possa ameaqar a soberania, a integridadeterritorial, a estabilidade de qualquer Estado, particularmente, umapot8ncia comoa Africa do Sul. De facto a unica coisa que o regime pode recear e o nossoexemplo.>>Samora, que falava durante uma sessdo do Comit6 Central da Frelimo, disse que,de facto, era verdade que Moqambique tinha armas sofisticadas. Mas ndo erammi'sseis. Erarn polfticas que representavarn uma alternativa civilizada para abarbarie do apartheid.Porque socialista, a sociedade moqambicana define o homem, a sua realizaqdo,como a sua forga e raz5o de ser. No

228 IAIN CHRISTIEcontinente africano, e ern especial na Africa Austral, onde estdovivas e presentesas cicatrizes e feridas de um. esclavagismo e de um colonialismo quehistoricamente foi sobretudo europeu e branco, construi'mos urn partido, umanagdo, uma sociedade, uma vida ern que cores ndo contarn, regi6es, tribos ndocontam, tudo o que secundariamente divide come9a a deixar de existir na conencia dos homens. E isso queameaga como arma sofisticada.Ndo somos uma sociedade ern que coexistern ou se justap6em harmonicamenteraqas e cores, regi6es e tribos. Ultrapassdmos essas noqoes, ao longo de uma lutaem. que, por vezes, violentdmos a consciMcia dos homens para se libertarem. doscomplexos e preconceitos, para se tomarern simplesmente homens.[ ... ] Dizemos, corn toda a convicqdo, que os brancos sul-africanos, os boers, ndosdo o nosso inimigo. Ndo sdo estrangeiros no seu pais e no nosso continente. Elessdo homens africanos, homens como nos.Foi o racismo, foi o fascismo que deformou as mentalidades dos brancos sul-africanos, que os fez assumir o espirito de opovo eleito>>.Era esta a ess8ncia do pensamento de Samora sobre a raga. Era por isso que osdirigentes do regime do apartheid da Africa do Sul o odiavam tanto. Elearneaqava virar o seu proprio volk contra eles.Durante as conversaq6es A volta do Pacto de Ndo-Agressdo de Nkomati cornPret6ria, ern 1984, Samora teve vdrios encontros corn o ministro dosNego'ciosEstrangeiros sul-africano, Roelof <<Pik>> Botha. Samora sabia que Botha erauma pessoa entendida ern pecuaina, como ele pro'pn*o, e perguntou se os sul-africanos tinham vacas de varias ragas. Botha respondeu que sim eSamoraperguntou-lhe, a seguir, se as guardavarn todas no mesmo lugar. Botha voltou aresponder que sirn e Sarnora. concluiu perguntando por que 6 queele tratava asvacas como iguais mas insistia em separar o povo sul-africano com. base na raga.

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Botha ndo teve resposta.

11. 0 inimigo intemoEra uma noite quente de Outubro e o cheiro dos cajueiros em flor pairava sobre apequena comunidade rural de Nangade, no Norte de Mogambique. Estava-se em1973 e os aldedos de Nangade estavam no seu nono ano de guerra contra asforgas armadas coloniais portuguesas. Nangade, na provfncia de Cabo Delgado,era territorio da Frelimo, libertado mas ainda sujeito a ataques. De manhd eu tinhaamolgado uma costela ao atirar-me para um abrigo antia6reo quando urn Fiat G-91 rugiu, a baixa altitude, atirando o que suponho fossem mi'sseispara o mato.Mas agora a atmosfera estava calma - o Presidente Samora. ia falar aoscamponeses.0 seu tema, nessa noite, era um tema a que ele voltaria muitas vezes nos anosseguintes. Era a questdo do abuso do poder e da autoridade. Em Nangade o podere autoridade da Frelimo ndo eram grande coisa, se os compararmos com odomfnio de um pais ou mesmo de uma cidade. A Frelimo, indubitavelmente,dominava ali - apesar das negativas dos portugueses na 6poca -, mas isso apenassignificava dirigir uma rede comercial, uma escola, um hospital rudimentar, umaunidade de defesa civil e um conselho polftico.

230 IAIN CHRISTIEMas Samora achou a questdo do abuso de poder suficientemente importante paradeixar que ela dominasse a discussdo. Passou frente de quest6es como saber oque as forgas armadas portuguesas estariam a preparar para la das drvores.Grande parte do encontro, de facto, foi passado com discuss6es sobre raparigaslocais com filhos ilegftimos cujos pais eram quadros uniformizados da Frelimo.Samora falou com jovens com bebe's e perguntou-1hes quem era o pai. 0comissairio polftico que ca vem de vez em quando, disse a primeira. 0 chefe daseguranga que nos visita, disse a segunda, e a terceira atribuiu as culpas a uminspector escolar itinerante da Frelimo.Samora ndo estava tdo preocupado com a ilegitimidade das criangas mas sim como facto de tres mulheres escolhidas ao acaso no melo da multiddo terem todascrianqas filhas de funcionarios itinerantes da Frelimo. <<Ndo deixemque osvfcios dos colonialistas se enralzem aqui>>, disse ele, e avisou particularmentecontra o pessoal da escola que usava o seu prestigio para seduzir as mogasestudantes. Deixou claro que nao estava preparado para aceitar queo uniforme daFrelimo se transformas-se num passaporte para a gratificagdo sexual.Jd nessa altura e, depois, nos seus anos como chefe de Estado, Samora tinha umaconsciencia profunda de que o abuso de poder, o mau uso deliberado daautoridade e a indisciplina militar eram as maneiras mais seguras de seperder oprestigio e a popularidade que a Frelimo tinha construfdo penosamente desde oini'cio da luta. 0 seu farejar constante 'a procura de criminosos em uniforme ndoera resultado de nenhuma santidade intema da sua parte, mas surgia da convicqdode que isso era necessdrio para a sobrevivencia da Frelimo e para o seu sucessocomo forqa politica. Durante a luta de libertagdo ele dava li96es sobreos malesde os professores engravidarem raparigas nas escolas da Frelimo ndo apenas por

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raz6es morais mas tamb6m porque isso desencorajava os pais de enviarem asfilhas A escola. As implicag6es eram O'bvias na medida em que a educaqdogratuita nas zonas libertadas era uma das coisas que atraiam as pessoas para aFrelimo.Depois da independe^ncia a luta contra o comportamento insolente, arrogante, pormembros das forqas armadas, pela po-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 231licia e por agentes da seguranga era uma obsessdo de Samora. Quando chegou aLourengo Marques, em Junho de 1975, no final do Govemo de Transigdo, n5odemorou a descobrir que havia problemas s6rios com alguns dos gueffilheirosenviados para a capital ap6s o cessar-fogo.Os guerrilheiros chegaram a cidade e foram recebidos de forma euf6rica pelapopulagdo local. Nada era bom de mais para os herois conquistadores. Ndotinham dinheiro mas isso ndo era problema. Tinham comida no quartele o povoenchia-os de alcool e outros favores. Mas, obviamente, aquilo ndopodia durareternamente. Quando a euforia inicial se desvaneceu as pessoas esperavarn que osguerritheiros se acalmassem, curassem as bebedeiras e se comportassern como umexercito disciplinado. Uns fizeram isso mas outros ndo.Os problemas surgiram 'a luz do dia a 13 de Dezembro, seis meses ap6saindepend8ncia. Um comunicado publicado no final de uma reunido do exe'rcito,que durou 4 dias, dirigida por Samora, falava de soldados que prendiam pessoasarbitrariamente, que maltratavarn violentamente os detidos, que violavammulheres e cometiam outros abusos. Um grupo de culpados, despidos dos seusuniformes militares, f6i apresentado no encontro. Foi ordenadoaos comandantesque exercessern um controlo estrito sobre os seus homens e f6i introduzida umase'rie de penas duras para aquele tipo de crimes, incluindo um mes decadeia paraquem bebesse enquanto fardado e um ano de prisdo e expulsdo desonrosa paraqualquer soldado encontrado b8bedo na posse de uma arma. Nenhumsoldadopodia entrar num cinema sem comprar bilhete nem exigir transporte gratuito nosautocarros ou refeig6es gratuitas nos restaurantes.A reacqdo foi rapida. A 17 de Dezembro, 600 soldados descontentes amotinaram-se na capital (1). Ocuparam um dep6sito de munig6es e mais algunspontosestrat6gicos mas foram rapidamente cercados e, a 19, tudo estavajd calmo. Oscabecilhas(') Na altura do motim o governo disse que tinharn estado envolvidos400soldados. Veja-se a revista Tempo, de Maputo, n.' 273. 0 nOrnero600 foi dado noandncio do perd5o a 13 de Dezernbro de 1980. Ver o boletim mensal da Ag8nciade Informaqdo de Moqambique, n.' 54.

232 IAIN CHRISTIEforam oficialmente descritos como agentes do imperialismo, colocados muitoantes nas fileiras da Frelimo, que incitararn <<elementos corruptos econfusos>>para fazerem o motim como reacqdo As medidas de 13 de Dezembro. Osamotinados passaram cinco anos na cadeia antes de serem perdoados e libertados.

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A forma como Samora lidou com o exercito nesses primeiros tempos daindepend8ncia e a sua insist8ncia em que o exercito estava ali para servir o povo endo para o contrdrio, ajudaram sem d6vida a manter a sua popularidade ao longodos anos dificeis do conflito com a Rode'sia. Houve notl'cias ocasionais dequebras se'rias da disciplina e da legalidade por membros das forgas de defesa eseguranga mas essas quest6es ndo voltaram a ser um importante ponto de debateate' Janeiro de 1980, no final do conflito rodesiano.Nesse me^s foi reaberto o posto fronteiriqo Zimbabwe-MoqambiqueemMachipanda devido ao acordo de Lancaster House e ao fim das hostilidades.Quando os jornalistas baseados em Maputo regressavarn de Machipanda, apo's oacontecimento, fizeram uma escala na Beira e foram entdo avisadosde quedeviam interromper a viagem porque Samora, que tinha estado numa cimeira daLinha da Frente naquela cidade, ia dirigir urn omicio.Aquele comfcio acabou por ser o infcio de um dos mais notdveis epis6dios da suapresid8ncia: a <<ofensiva>>. Aparentemente tinha decidido que ofim do conflitocom os rodesianos era o momento para virar a sua atengdo - de uma forma maisconfrontacional que antes - para alguns dos problemas internos mogambicanos. Apartir desse dia a ofensiva era apresentada pela informagdo localcomo umacampanha dirigida pessoalmente por Samora. Destinava-se a desenralzar ooinimigo internoo e a travar a falta de eficiencia, a neglige^ncia, a corrupqdo e oabuso do poder pelas autoridades.A Beira, capital da provincia central de Sofala, era o local o bvio para iniciar aofensiva. Em 1980 esta cidade, que cresceu explosivamente nos anos 70, era umacidade deprimida e deprimente. A anterior prosperidade da Beira tinhasido criadapelo facto de ser o entreposto, natural para a Rod6sia, sem sai-

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 233das para o mar, e um centro de f6rias para os turistas rodesianos amantes da praiae loucos pelos camar6es. 0 principio do fim dessa prosperidade chegou a 3 deMarqo de 1976, quando o governo anunciou que Moqambique ia importodo oconjunto de sanq6es das Naq6es Unidas contra a Rodesia.Quatro anos depois ainda se trabalhava no porto mas, quando o Presidente deuuma volta pelas suas instalaq6es, encontrou apatia, neglig8ncia, roubo e uma for ade trabalho desmoralizada. Era t'pico de Samora escolher um problema deseguranqa no porto para ser especialmente comentado no momento emquecriticava a administraqdo do porto. A erva que crescia em zonas A volta dos caisja' chegava A altura. do peito e, ao ver isto, o Presidente chamou umdos seusantigos companheiros na guerrilha, o coronel 6scar Monteiro. <<6scar>>, disseele, <<o que e que nos podi'amos ter feito com condiq6es destas nos outrosternposN Monteiro respondeu: <<De facto estava a pensar mesmo nisso.Podfamos ter uma unidade de sabotagem aqui, escondida no capim alto. Semproblema.>> Estava fresco na memo'ria de todos o sucesso de uma unidade desabotadores rodesianos que, uns meses antes, tinha feito explodir algunsdepo'sitos de combustivel na Beira.Contudo a apatia e falta de vigildncia na Beira estava provavelmente muitorelacionada com a incapacidade de a Frelimo conquistar o corpo e a alma da

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cidade, como tinha feito em Maputo. Era uma das contradiq6es peculiares emMoqambique. Peculiar porque a Beira tinha sido um centro do racismobranco notempo colonial e deveria ter sido fdcil para o jovem governo da Frelimo por la asua marca. Tinha sido IA que missiondrios cat6licos pro'-Frelimo, que iam serdeportados, foram agredidos por uma multiddo de portugueses enfurecidos noaeroporto. A multiddo fez mesmo manifestaq6es contra o exercito portugu8s pelasua incapacidade para reprimir a luta pela independencia. Tinha havido, comosalientou Samora no seu discurso de Janeiro de 1980, <<racismo que semanifestava nos hot6is, nos machimbombos, nos restaurantes,nas pens6es, naspraias, em toda a parte>>. Era um feudo do principal Gauleiter de Salazar, JorgeJardim, que tinha assento como representante da col6nia na Assembleia Nacionalportuguesa, era Presidente

234 IAIN CHRISTIEda Ca^mara de Come'rcio da Beira, C6nsul do Malawi e proprietdrioda imprensalocal.Ndo era de admirar que a Frelimo tivesse recebido na Beira, em 1974, a recep9dodedicada aos herlis, mas, nos anos que se seguiram, tinha-se desvanecido o apoiogenuffio ao, movimento. Samora parecia ter comegado a ficar preocupado comisso e decidido tomar a1gumas medidas no princfpio de 1980, quando aproximaindepend8ncia do Zimbabwe tornava a Beira crucial para o futuro de todo osubcontinente. A Beira ndo era apenas um entreposto para o Zimbabwe mastambem para o Malawi e, atraves do Zimbabwe, para a Zambia e o Zaire. Com ofim das sanq6es, uma populagdo da Beira bem motivada e um porto daBeiraeficiente podiam constituir um importante impulso para a economia mogambicanae para tornar dramaticamente diferente a sorte dos vizinhos de Mogambique,reduzindo a sua depend8ncia do sistema de portos e transportes da Africa do Sul.Mas a Beira ndo estava motivada e ndo era s6 devido a problemas econo'micos. Arepressdo andava no ar. Na segunda metade dos anos 70 podia-se-lhe sentir ocheiro - e mesmo, por vezes, v6-la. Em 1977 um jovem jornalista branco beirensemostrou-me as marcas de cordas nos braqos depois de ter tido os braqosamarrados atrds das costas por criticar as autoridades devido 'a uma violagdo dosdireitos humanos. E, no entanto, o jovem continuava a apolar a Frelimo.Espantado, perguntei-lhe porqu6. Fez um comentairio no sentido de que n6s,reporteres de Maputo, ndo sabiamos o que se estava a passar na Beira e ndosabfamos quem governava a cidade. Ndo deu mais pon-nenores.So' a I I de Janeiro de 1980, enquanto esperdvamos pelo discurso deSamora naBeira, comecei a aperceber-me do sentido daquele comentairio. Antes de ir para ocomfcio Samora visitou a estagdo dos caminhos-de-ferro, uma estruturaimpressionante, com uma cupula. Quando chegou ao grande dtrio parou e, 6 claro,a comitiva parou tambem. Fez-se silEncio. Samora olhou a volta, sorrindo. Entdocomegou a assobiar e, tendo notado a maravilhosa ac(istica da estagdo, continuoua assobiar. Ao fim de algum tempo as pessoas aperceberam-se do que ele estava aassobiar. Era uma cangdo da Frelimo chamada Ndo Vamos Es-

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quecer e tem versos como oUrn pai de quatro filhos era tratado por rapaz. Ndovamos esquecer.>> Esta refer8ncia ao halbito dos colonialistas detratarem oshomens negros por <<rapazes>> ndo tinha nenhuma implicaqdo naBeira daquelemomento e, para muitos dos presentes, pareceu gratuita.Mais tarde, no mesmo dia, tornou-se claro o que ia na mente de Samora naquelemomento. Mas comeqamos a ter uma ideia previa no cortejo automolveldaestaqdo do caminho-de-ferro para o campo de futebol onde ia decoffer o comicio.As pessoas alinhavam-se ao longo das ruas, em sentido e sem sorrirem. Urnjornalista local que ia no nosso autocarro disse-nos que o povo da Beira tinharecebido ordens das autoridades locais para actuar dessa forma.Um fotografomoqambicano, baseado em Maputo, Ricardo Rangel, sentado ao meu lado, perdeua cabega. Inclinou-se para fora na traseira do autocarro, naquela procissao de altospoderes, e gritou para o povo: <<CARNEIROS, CARNEIROS!>>. Aspessoasolhavam, divertidas, para Rangel enquanto ele gritava: <<Por que e' que estdo emsentido?>> Quem seria aquele lundtico na comitiva presidencial capaz de um talsacril6gio? Esta era a pergunta que parecia escrita na cara das pessoas.A medida que a coluna ganhava velocidade em direcqao ao estddlo ndoeramapenas os reporteres e os fotografos que reparavam, de boca aberta, nestademonstraqdo de arregimentagdo. Um ministro disse ao grupo dejornalistas, maistarde nesse dia, que o Presidente e os seus conselheiros tamb6m a tinham notado etinham ficado muito perturbados com a cena. Era uma coisa completamente novapara o Presidente, habituado a multid6es ondulantes que o saudavam.No comicio tornou-se claro que Samora estava bern informado dos males daBeira. Comeqou a cantar <<Ndo vamos esquecer ... >> na sua voz rica, embora'as vezes desafinada, de baritono. A multiddo juntou-se a ele.0 que e que teria sido esquecido?No seu discurso, Samora recordou as pris6es arbitrairias, a tortura, as violaq6es eassassinatos realizados por agentes da administraqdo coloniale pela PIDE. <<ABeira era centro de preparaqdo de criminosos. Os agentes de Jardim humilhavarna populaqdo, brutalizavarn a populagdo, abusavam das mulheres.>>

236 IAIN CHRISTIEDescreveu a Beira como uma cidade ocom aspectos particulares, onde hatribalismo, racismo e regionalismo e uma populaqdo cheia de complexos>>.Disse que as autoridades locais tinharn sido infiltradas, durante o Governo deTransigdo, por antigos, agentes da PIDE e membros do partido fascista portugu6s,a ANPAqui na Beira foram eles que receberam a Frelimo. Ofereceram carros,residencias, organizararn festas e organizaram tambem a oboa moga>> Para oscomandantes da Frelimo.[ ... ] Entdo estes antigos agentes do inimigo infiltram-se nas estruturias dogoverno, das empresas, das fdbricas, infiltram-se em toda a parte, tornam asr6deas. E, at6 hoje, ainda ndo os desaloja'mos [ ... 1. Alguns daqueles que onternforam assassinos do povo chegaram a ser nossos administradores. Como podiamser bons administradores da Frelimo? [ ... I Quando ocuparam lugares de

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responsabilidade [ ... ] implantaram a injustiqa na Beira e isto criou confusdo noseio da populaqdo.Eles utilizaram o nosso poder Para violentar o povo.- medida que falava, Samora olhava, de um lado Para o outro, Paraos dignitdriosda Beira, no mesmo palanque em que ele estava, e a multiddo aplaudiu quandodisse:0 crime feito pelo inspector da poll'Cia nunca e' descoberto porquee' ele quenomeia aqueles que vdo investigar. Ele manda arquivar o processo e assimcontinuarn os crimes, os abusos, as violag6es, as agress6es ideologicas, Micas emorais. Todos conhecemos aquela historia dos animais que se reuniram Paraescolher o seu chefe. Escolheram o leopardo, que passou a ter umacadeira grandee passou a andar vestido. A noite, com a sua corte, o pr6prio chefe safa Para cagaros outros animais. Os parentes vinham apresentar queixa ao chefe eeste respondiasempre: Wigia as caracterfsticas do animal que comeu o teu filho.>> 0 queixosorespondia: <<A unica caracter'stica que temos visto e que esse animal temcauda.>> Mas o chefe tinha a cauda dentro das calqas e estava sempre sentado.Por isso ndo era possfvel identifical-lo.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 2370 Presidente continuou a descrever casos especfficos de abuso da autoridade,como funciondrios que desviavam dinheiro e professores que davam boas notas'as alunas em troca de favores sexuais. Mas, com este 61timo comentdrio, meteu-se num problema que ndo era raro nas suas reprimendas espontaneas em comfciosde massas. Foi mal interpretado, talvez intencionalmente, pelos <<Ieopardos>>.Nessa noite, na Beira, os casais eram interceptados na rua exigindo-se-lhes provasde que eram casados. Os que ndo as apresentavarn eram presos. As palavras deSamora estavam a ser viradas contra as proprias reformas que exigia para a Beira.Algumas semanas mais tarde o entdo ministro dos Transportes, Jose'LufsCabaqo, foi 'a Beira e falou para trabalhadores portualrios. Quando Ihes pediupara falarem francamente sobre os seus problemas e os problemasdo porto fez-seo sil8ncio. Cabaqo insistiu que Samora e o governo estavam determinados a fazerdesaparecer a intimidaqdo crescente na Beira e, depois disso, a1gumas pessoasfalaram. Logo que Cabago abandonou a cidade foram presas pelasautoridadeslocais e foi necessairia uma intervengdo presidencial para serem libertadas.Samora ndo era tdo ing6nuo ao ponto de pensar que o problema da Beiraseresolvia com uma simples visita. sua seguida de alguns reparos judiciosos, a longadistdncia, a partir de Maputo. 0 que ele fez foi distanciar-se a si proprio e 'aFrelimo de uma administragdo impopular na Beira num momento crucialparaaquela cidade e para o seu papel de pivot na Africa Austral, e preparar o caminhopara uma acq5o correctiva.0 passo seguinte tinha que ser a remogdo do governador provincial, FernandoMatavele, porque embora ele, pessoalmente, tivesse as mdos limpas,era, ernUJItima andlise, responsaivel por permitir que a situagdo se deteriorasse W aoponto a que chegou. 0 novo governador tinha que ser a1guem com a experie^nciapolftica e a visdo necessairias para fazer a Beira entrar nos anos 80. E assim,como parte de uma importante remodelagdo governamental, em Abril de1980

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Samora deu um passo sem precedentes ao colocar um membro do Bureau Polfticodo Comite' Central da Frelimo como responsaivel por Sofala. 0 homem escolhidofoi o major-general Mariano Matsinhe, ministro

238 IAIN CHRISTIEdo Interior, e uma das principais figuras da luta pela independe^ncia. 0 lugar dadoa Matsinhe era, efectivamente, o de um governador provincial, normalmenteocupado por dirigentes da Frelimo de segundo grau, mas, para tornar claro queMatsinhe ndo estava a ser despromovido, recebeu o titulo de Ministro-Residente.Foi o primeiro de tr8s membros do Bureau Polftico que foram colocados comoresponsdveis de Sofala antes de a provfncia regressar 'as mdos de uma pessoa demenor ni'vel, em 1986.Tern que ser dito que a questdo do abuso do poder ndo era a unica raz5o para.colocar pessoas do topo na cadeira quente da Beira. Havia toda umagama deproblemas relacionados com incompetencia executiva, neglige^ncia e corrupgaoque tinha que ser enfrentada urgentemente devido ao novo e vitalpapel regionalda Beira.Mas a experie^ncia de 1980, na Beira, indicava que Samora estava de novo natrilha da guerra contra aqueles que estavam a p6r em causa a popularidade daFrelimo. Levou-lhe quase dois anos, depois do comfcio da Beira, at6transformaro abuso do poder numa questdo nacional, mas quando o fez f6i de formadramdtica.Num comicio de massas em Maputo, a 5 de Novembro de 1981, Samoracomegouo seu discurso num tom sombrio:Viemos aqui hoje para analisarmos uma situagdo anormal que se verifica nonosso pafs. Temos assistido, na ReU'blica Popular de Mogambique, a violag6essistemdticas dalegalidade; violag6es da Constituiqdo, violaq6es das leis e regulamentos,violaq6es dos nossos princfpios.Um aspecto particularmente grave desta situaga-o e queessas violag6es sdo cometidas, em muitos casos, por elementos pertencentes 'asForgas de Defesa e Seguranga. Sdo cometidas por elementos das Forgas Armadasde Mogambique (FPLM), por elementos das diversas forgas policiaise dasmill'cias, por elementos do Ministe'rio da Seguranga(SNASP).E continuou fazendo uma lista de uma se'rie de abusos por membros dessas forgasque eram oresultantes da persistencia de

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 239valores e prdticas das sociedades colon ial-capital i sta e tribal-feudal. Erros edesvios resultantes das nossas proprias insuficiencias>>. Tinha havido, segundoele, roubos por soldados e milicias nos postos de controlo, violaq6es,pris6esarbitrarias, agress6es, intimidaqdo e extorsdo.<<A agressdo e a tortura sdo utilizadas como forma de punir faltas, muitas delasinexistentes, como forma de levar pessoas a confessarem crimes, cometidos oundo.>>

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Nessa altura, no entanto, a analise de Samora sobre as raz6es dos problemastinha-se desenvolvido consideravelmente desde o cendrio dos <<agentes doimperialismo>>, ern 1975, e da explicaqdo atrav6s dos infiltradosfascistas, de1980. E claro que ele ainda falou da distinqdo oentre as nossas heroicas Forqas deDefesa e Seguranqa, que defendem o povo, e os reacciondrios, osagentes doinimigo, infiltrados nas nossas forqas>>. Mas, desta vez, estava preparado paraser mals especifico sobre o que considerava agentes do inimigo.Era, na realidade, urn conceito partilhado por Samora e pelos colegas na direcqdoda Frelimo ha muitos anos. Quando falarn sobre agentes do inimigoou sobreinfiltraqdo imperialista ndo estdo necessariamente - de facto n5o estdo, sequer,normalmente - a falar de uma penetraqdo ffsica de agentes da CIA oudosserviqos de espionagern da Africa do Sul. Falarn mais no sentido da penetraqdode ideias e formas de comportamento que sdo contrairias 'as da direcqdo daFrelimo. Para eles a Frelimo e mais uma forma de vida do que urn partidopolitico. No seu discurso de Novembro de 1980 Samora resumiu issodestamaneira: <<Mais do que nunca a demarcaqao entre no's e o inimigo e' umademarcaqdo ideologica, uma linha de fronteira traqada pelo comportamento, pelaidentificagdo com. o povo.>>Foi mais alern chamando a atenqdo para a falta de politizagdo nas Forgas deDefesa e Seguranga no po's-independencia, em contraste cornos tempos antigosem que ele dirigia carnpos da Frelimo na Tanzania, e disse que, agora, oquernentra, confuso, continua confuso>>. A sua franqueza sobre esta questdo mereceuma citaqdo em detalhe:

240 IAIN CHRISTIEPor isso encontramos depois, na actuaqdo desses elementos como membros dasForgas de Defesa e Seguranqa, asmarcas profundas da sua origem, do seu passado.As marcas do passado ficaram. Os O'dios, os recalcamentos ndo morreram,principalmente entre aqueles que ndo viveram directamente o processo da lutaarmada de libertaq5o nacional.I ... I0 branco de origem humilde, que, na escola, f6i humilhado pelo filho do senhordoutor, hoje, se esta' na Seguran9a, tem satisfagdo em prender, em humilhar,aquele que o humilhava em crianqa; o mulato, que agora e' agente da PIC,aproveita para se vingar da familia branca, ou mulata mais rica, quendo lhepermitiu casar com a moga de que ele gostava; o preto, que agora esta na PPM,gosta de prender o branco ou o indiano, para lhes mostrar que ja e gente, que ja'tem poder. Quer vingar-se dos 6dios, dos recalcamentos, das humilhaq6essoffidas. Entre os pretos, que hoje estdo na polfcia ou nas milicias,surge tambemo problema do tribalismo. Se e do Sul prende o do Norte ou do Centro, so' paralhe mostrar a sua superioridade tribal.Mas deixa ficar impune o verdadeiro criminoso, porque' e da sua tribo Em todos estes casos o que detectalmos e a utilizagdo do nossopoder - alf 6 que esta o problema -, a utilizaqdo da nossa farda, das nossas armas,para a satisfaqdo de mesquinhos odios e recalcamentos pessoais.

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Ndo foi por isto que no's lutalmos. Ndo permitiremos queisto acontega na Repdblica Popular de Moqambique.Puniremos severamente todos estes tipos de casos.0 discurso de Samora f6i transmitido, em directo, pela Rddio Moqambique para anaqdo. Ele disse que tinha tomado conhecimento da situaqdo atrave'sde membrosdo plblico e apelou a qualquer pessoa que tivesse conhecimento deum abusodesse tipo no futuro para informar sobre ele sem qualquer hesitagdo. <<E ai dequem se atrever a exercer represaflias contra um cidaddo que tenha denunciado osseus abusos. Ndo teremos contemplaq6es. Que isto fique bem claro.>>

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 241Ele disse 'as pessoas que elas prolprias tinham o poder de prenderos membros dasForgas de Defesa e Seguranqa apanhados em flagrante delito. Disse que eraobrigat6rio os homens da seguranqa apresentarem os seus bilhetes de identidadequando lhes fossem pedidos, acrescentando: <<Ndo queremos uma polfciasecreta. Ndo precisamos dela.>> Avisou que os homens da defesa e seguranqaacusados de crimes seriam sujeitos ndo so' a processos disciplinares internos, mastamb6m a punigoes severas nos tribunais civis. A polfcia e as forqasde segurangaforam absolutamente proibidas de fazerem pris6es ou buscas domicilidrias semum mandato.Para tornar a mensagem clara, Samora apresentou os seus ministros da Justiqa, daSeguranqa e do Interior e dois vice-ministros da Defesa, que estavam na tribuna,declarando que eles seriam responsabilizados, pessoalmente,por garantir queseria feita uma limpeza (1).0 discurso, mais tarde publicado sob o tftulo <<Desalojemos os infiltrados nasForqas de Defesa e Seguranqa>>, teve um grande impacto.Num caso, levado perante o tribunal provincial de Inhambane aindanesse me^s,dois agentes da seguranga receberam, cada um deles, multas equivalentes a 100do'lares americanos e prisdo durante cinco meses por agredirem duas mulheres. 0tribunal foi informado de que os dois homens estavam embriagados e espancararnas duas mulheres que se dirigiam ao mercado. A Age^ncia de Informaqdo deMogambique comentou, nessa altura, que <<no passado as duas mulheres teriamficado, muito provavelmente, demasiado intimidadas para apresentarem queixa e,de qualquer forma, a policia local ndo teria feito grande coisa para lidar com essaqueixa>>.Foi o primeiro de muitos casos semelhantes noticiados na imprensa local. t claroque o discurso n5o p6s fim aos abusos dos membros do ex6rcito e dasegurangamas tornou muito mais simples para a imprensa falar sobre os patifesuniformizados(1) Em Junho de 1984 os ministros da Seguranga e do Interior foram demitidosentre aiega 6es de continuagdo de abusos.

242 lAIN CHRISTIEsem medo de represailias. Isto foi particularmente importante em 1984 e 1985 nodesencadear de um surto de roubos por soldados e milicianos na Area A volta deMaputo.

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Urn dos efeitos mais curiosos da questdo, contudo, foi a deserqdo de umimportante funcionairio da seguranqa para a Africa do Sul. Jorge Costa, um dosvairios brancos em posiq6es importantes nos serviqos de seguranga, estava numavisita oficial a Joanesburgo, em Junho de 1982, quando anuncioua sua decisdo deficar no campo do inimigo.Costa era o exemplo classico do seguranga branco de que Samoratinha falado noseu discurso, cinco meses antes. Como um autor escreveu maistarde: <,Filho deurn proprietario de transportes em pequena escala de Lourengo Marques, Costadesenvolveu um grande ressentimento devido A discriminaqdo de classe quesofreu, quando andava na escola, As mdos dos filhos da classe m6dia. Quando foiestudar Direito para Portugal, no princfpio dos anos 70, aderiu ' Frelimo (e tambrna urn partido maoista, em Portugal, ap6s o golpe de Estado) e regressou aMogambique para ajudar a estabelecer a nova policia e servigos de seguranqa.Conseguiu a sua desforra pelas desconsiderag6es reais ou imaginairiasincomodando os brancos da classe m6dia [ ...] e fomentando a persegui9qo aosbrancos. As suas ac96es, e as de outros como ele, tornaram a vidamuitodesagradrvel para muitos colonos.> (3)0 ministro mogambicano da Seguranga afirmou que Costa se tinha oposto 'acampanha de Samora nas Forqas de Defesa e Seguranqa e <<apresentou aofensiva da legalidade como desmobilizadora para os quadros da defesa eseguranqa .Nos servigos de seguranqa da Africa do Sul ndo havia esse tipo de factoresdesmobilizadores. A policia polftica sul-africana foi sempre capaz de descansar,segura de que ndo teria que enfrentar a ftiria de um presidente queexigeexplicaq6es e(3) Joseph Hanlon, Mozambique: The Revolution Under Fire, Londres, ZedBooks Ltd, 1984, p. 47. (0 livro do Dr. Hanlon 6 uma fonte de informaq6es eanilises de valor incalculivel sobre o Moqambique p6s-independ~ncia.)

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 243ameaqa com punig6es severas. No momento em que Costa se entregava, asautoridades sul-africanas levantavam os bragos, com ultrajada inoc8ncia, Asugestdo de que poderiam ter assassinado o sindicalista branco anti-apartheid,Neil Aggett. Em Fevereiro Aggett tinha morrido, como tantos outros que tinhamfeito campanhas contra o apartheid, nas celas da esquadra da poll'cia de JohnVorster, em Joanesburgo.Nessa ocasi5o a causa da morte que f6i divulgada foi que ele se tinha enforcado.Cair das janelas e' outra causa vulgar de morte nas esquadras de policia da Africado Sul. Outros receberam pancadas fatais na cabeqa, como aconteceu a SteveBiko, em 1977.A fuga de Jorge Costa para um servigo de seguranqa que Samora Macheldescreveu uma vez como uma organizaqdo que <<suicida pessoas>> e umtestemunho apropriado dos esforqos constantes do dirigente moqambicano para sever livre daquilo a que charnava <<carga impura>>. Nem sempre teve sucesso,mas, ao menos, tentou.

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Foi tamb6m apropriado o facto de Steve Biko ter chamado ao seu u'Itimo filhoSamora, em honra do dirigente moqambicano.

12. 0 toque samorianoSamora Machel, o dirigente polftico e militar, teve a estatura de um homemexcepcional do sell tempo.Houve muitos outros dirigentes com o mesmo entusiasmo e sinceridade nabatalha contra a injustiqa. Ndo estava sozinho ao conduzir um pal's da dominaqdocolonial ate' 'a independencia atrav6s da luta armada. Outros foram,como ele,intelectuals revoluciona'rios e, simultaneamente, homens de acqdo militar, e elendo foi o dnico dirigente da sua geraqdo a combinar um encanto pessoal natural efdcil com a firmeza polftica necessdria para conseguir que as coisas fossem feitas.Mas a grandeza de Samora era 1nica. Para ale'm dos atributos usuais numestadista, essa grandeza era expressa em qualidades muito humanas - uma visdode largo alcance, uma honestidade compulsiva, determinaqdo, amor'a vida eamor pelos contactos humanos. Tinha uma vibragdo, um panache eumaautoconfian a que derrubava as barreiras da linguagern e da ideologia.Samora tinha uma sede de experl8ncias praticamente insacia'vel. Durante a lutapela independ6ncia tinha tendEncia para se afastar da seguranqa das basesrecuadas, na Tanzania, e en-

246 IAIN CHRISTIEtrar nas zonas da Frelimo em Moqambique para poder experimentar pessoalmenteos triunfos e as trage'dias de uma naqao a ser construfda debaixo dosbombardeamentos dos portugueses.Uma vez, sentado ao lado de Samora, durante um. ataque a6reo em CaboDelgado, enquanto jactos Fiat G-91 langavam uma chuva de mfsseis, perguntei-lhe por que diabo achava necessdrio expor-se a um tal risco e colocar omovirriento em risco de perder o seu dirigente. Usou uma das suas muitasanalogias m6dicas para explicar, dizendo qualquer coisa do g6nero, de que adirecqdo tinha que conhecer a temperatura nessas zonas e, portanto, all estava elecom o termometro.Samora nunca perdeu este espirito nos illtimos anos, mas tornou-se extremamentediffcil para ele manter o ouvido encostado ao chdo. Um exemplo disto e' o factode, depois da independencia, a sua primeira visita 'a provincia de Tete, que foisempre uma airea-chave durante a gueffa, ter sido apenas pollcas semanas antesda sua morte.Ele tinha a opinido de que a guerra ainda ndo tinha acabado e que a sua presengacomo dirigente mobilizador no terreno era tdo necessdria depois da independenciacomo antes. Mas, 6 claro, as exigencias que recaem sobre um chefe de Estado sdoenormes, principalmente quando ele e', simultaneamente, chefe do governo,dirigente do partido no poder e comandante-em-chefe das forgasarmadas.Organizar o sell calenddrio oficial deve ter sido um pesadelo. Asviagens asprovincias tinham que competir, em termos de tempo, com reuni6es do governo,reuni6es do Bureau Polftico e do Comite Central, reuni6es do pessoal da defesa,

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audi8ncias aos dignitarios visitantes e visitas oficiais ao estrangeiro. Tambemtinha que dormir, de vez em quando, e ter f6rias uma vez por ano - coisa em queele insistia igualmente com os seus funcionairios.Como Presidente da Replblica ndo viajava dentro do pals nada que se parecessecom o que queria. Isto na-o quer dizer que ele se escondesse em Maputo e nuncaviajasse. E verdade que viajava, mas, em vez das viagens de rotina que fazia pelopals nos tempos antigos, agora cada visita sua a uma provifficia transformava-senum acontecimento mediatico em vez de uma coisa que era parte integrante dotrabalho de um, Presidente.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 247Samora conseguia aguentar este exigente calendario mantendo-se emexcelenteforma ffsica, em parte com a ajuda de uma bicicleta de exerci'cios nareside^nciapresidencial da Ponta Vermelha, em Maputo. No fim dos seus dias tinha o ffsico eo vigor de um atleta.Ndo furnava e objectava a que as pessoas fumassem perto dele. Numa ocasido asua secretdria apanhou-me a chupar no meu cachimbo no vestibulo do gabinetepresidencial e, delicadamente, pediu-me para parar. Ela explicou-me que oPresidente tinha o habito de, quando chegava ao trabalho, de manhd, torcer onariz e comentar, com um franzir de sobrancelhas: <<Esteve aqui algu6m afumar.>>A sua preocupagdo com uma vida sauddvel ndo se estendia, ao contrairio do queo Times, de Londres, afirmou no seu obitudrio, 'a abstinencia do d1cool. t verdadeque quando marchava no mato so' bebia agua ou chd de mbalakate (uma ervaselvagern com sabor a limdo) e aborrecia-se com casos de embriaguez. Um antigojornalista tanzaniano, Ferdinand Ruhinda, conta a hist6ria de uma viagem hszonas libertadas com Samora quando, ao fim de um dia de marchaparticularmente exaustivo, o dirigente guerrilheiro Ihe perguntou: <<Ruhinda,gostavas de um copo de cerveja gelada?>> Ruhinda diz que lambeu os Idbiossecos e, agradecido, aceitou, omas era uma brincadeira cruel.Ndo haviacerveja>>. Nos d1timos anos, no entanto, Samora tomava um copo ou dois debom scotch, A noite e, nas recepq6es oficiais, sorvia o seu champagne de umcopo de conhecedor, em forma de tulipa.Era bern conhecida a sua paixdo pela forma ffsica, nem sempre muitoapreciadapelos homens sob o seu comando. Quando viajei com ele no mato, durante a lutapela independencia, ingenuamente disse ao meu interprete que os guerrilheiros danossa coluna se deviam sentir muito satisfeitos por terem sido escolhidos para ircom o Presidente. <<Ndo muito>>, disse ele, explicando que uma marcha dirigidapor Samora era um casti90. <<E por isso que estamos satisfeitos poro termos, asi, connosco>>, acrescentou. <<Samora vai ter que limitar a distancia e avelocidade de cada dia de marcha para voc8 aguentar.>> Ndo muito lisonjeadormas absolutamente verdadeiro.

248 IAIN CHRISTIEUma vez, no infcio dos anos 70, ele estava numa capital africana paraumacimeira da OUA. Ndo f6i muito depois do assassinato do dirigente nacionalista da

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Guine-Bissau, Amilcar Cabral. Samora, como dirigente de urn movimento defibertaqdo corn sucesso crescente era, obviamente, outro alvo potencial paraassassinio, de forma que o alojamento onde estava era bern guardado.Um jornalista que fez a cobertura da conferEncia disse-me que uma manhd, cercadas 5 horas, os guardas ficararn horrorizados ao ouvir rufdosassustadores vindosdo quarto de Samora. Correram para a cena do que parecia urn assassinio polfticoparticularmente brutal. Abriram violentamente a porta, com as armasengatilhadas, s6 para encontrarem Samora a saltar, para cima e para baixo, hcorda.Saltar corda 6 um exercicio cldssico, para os praticantes do boxe e Samora nuncaperdeu o entusiasmo pela nobre arte. Sabia que era de rigueur ospolfticosamericanos negros interessaremse por esse desporto e nunca perdia a ocasido deconversar com eles sobre esse assunto. Conseguiu que Andrew Young, antigoembaixador americano nas Naq6es Unidas,,Ihe enviasse vfdeos de combatesimportantes. Quando o reverendo Jesse Jackson o visitou, em Setembro de 1986,Samora notou imediatarnente o poderoso fisico daquele dirigente decampanhaspelos direitos civis e achou que tinha encontrado alguem com quern conversarsobre o seu desporto favorito. Os dois homens realizaram conversag6es oficiaissobre a situaqdo na Africa Austral e sobre o que os americanos deveriam estar afazer a esse respeito. Depois ficaram a conversar sobre o boxe americano pelanoite adiante (1).Para Samora as recordag6es do boxe e a insist8ncia ern manter-se em formafisicamente ndo eram meros fetiches. Sabia que tinha que manter a sa'de de formaa cumprir aquilo que, de outra forma, seria um programa impossfvel. Era por issoque tinha dois m6dicos cubanos de primeiro piano no seu pessoal permanente. Atarefa deles era garantir que aquele dinamo hu(') Kraft, Scott, Los Angeles Vines,14 de Setembro de 1986.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 249mano nao quebrasse devido tensdo. Conseguiram faze^-Io, mas, no final, os seusconhecimentos ndo puderam salvar Samora. Ambos estavam na viagem ae'reafatal e ambos morreram. Um deles, seriamente ferido, tentou desesperadamentelibertar-se dos escombros Para ir em auxi'lio do Presidente, enquanto os sul-africanos andavam a vasculhar os documentos, ignorando as vitimas. Ndo houveajuda nem para o m6dico nem para o Presidente.Samora era um alvo ha varios anos. Em Julho de 1972 os portuguesesenviaramcontra ele um assassino treinado. 0 <<Chacal>>, cujo nome era Pedro AlvaresCabral Lopes de Bettencourt da Cdmara, sargento moqambicano das forqasarmadas portuguesas. Recebeu boas-vindas calorosas da Frelimo quando desertouna provincia de Tete, forneceu muita informagdo sobre a estrat6gia militar epolftica dos portugueses e disse que queria tornar-se um combatente da liberdade.Fol enviado Para receber treino para o campo de Nachingwea, na Tanzania, ondepermaneceu inocuo durante vdrios meses. A verdadeira raz5o Para se passar paraa Frelimo foi descoberta quando ele fol interrogado depois de tersido apanhadocom uma caqadeira com mira telescopica que tinha obtido ilegalmenteno arsenaldo campo. Confessou que tinha sido enviado para assassinar Samora (2).

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Em 1983 houve o caso do sul-africano Peter Benjamin Schoeman, mencionado nocapftulo oito. 0 proprio Samora, no m8s em que morreu, falou de uma tentativa deassassinato, em Setembro de 1985, pelos sul-africanos. Envolvia, aparentemente,o Plano de um ataque com bazuca ao seu carro oficial. Ele ndo(2) Esta tentativa para matar Sarnora, descrita ao autor por veteranos da luta daFrelirno pela independ8ncia, teve lugar ern a1gurn mornento de 1973, mas nuncafoi tornada p6blica atd agora, atd onde sei. Quando CAmara penetrou na Frelimocausou boa impressdo por ter fornecido o que pareciarn boas informag6es.Disse que o cornandante portugu8s ern Mo arnbique, Ka6lza de Arriaga, estavaenvolvido nurna conspiragdo para fazer urna declaraq5o unilateral deindepend8ncia de Portugal norneando urn fantoche negro cornopresidente, odesertor da Frelirno Miguel Murupa. Aparecerarn pormenoresdesta alegadaconspiraqdo no jornal Times of Zambia, de 18 de Dezembro de 1972 (<<ThePuppet President>>, por lain Christie).

250 IAIN CHRISTIEera capaz de ficar ansioso devido a este tipo de incidentes. <<Temosque seroptimistas. Eu sou sempre optimistao, disse Oito dias mais tarde estava morto.Tinha uma atitude aparentemente despreocupada com a sua seguranqa pessoal,muitas vezes parecendo que se expunha, desnecessariamente, 'as balas de umassassino. Era capaz de atravessar uma cidade ou uma aldeia na parte de tra's deuma viatura aberta, de pe' e acenando 'as multid6es, corno se ndo tivesse um6nico inimigo no mundo. Durante os seus 11 anos como Presidente da Republicadirigiu dezenas de comfcios ao ar livre, de p6 e falando durante horas seguidas adezenas de mi1hares de pessoas, qualquer uma das quais podia serum pistoleirosul-afficano. Muitas vezes, no fim do comfcio, saltava do palanque e avangavapara dentro da multiddo com os guarda-costas a tentarem, desesperadamente,acompanhd-lo A medida que ele desaparecia no meio da multiddo saudando eapertando mdos.Mas ndo era, realmente, loucura. Samora estava muito consciente da sua pr6priapopularidade e sabia que, se algum pistoleiro, no meio das pessoas, fizesse algummovimento, o povo cafa-lhe em cima num segundo. Estava sempre em seguranqa,no meio do seu povo, no chdo. E quando percorria a cidade num carro aberto,quando os rodesianos ou os sul-afficanos podiam ter um chacal colocado numajanela alta, os seus segurangas iam ali 'a frente, olhando para cima, com as armasna mdo.Se Samora ndo tivesse podido deslocar-se no meio do povo, a adrenalina tinha-lhesecado. 0 contacto humano era corno uma droga para ele.Em nenhum lado se sentia mais em casa do que num comfcio de massas.Ve-lopela primeira vez num comi'cio era umaAexperi8ncia inesquecfvel e essa experiencia nunca foi mais bern descrita do quepor um jornalista canadiano, Michael Valpy, num retrato verbal daactuaqdo deSamora em Harare, num congresso da Zanu, em 1984.(3) Conversa com o autor e outros jornalistas na Casa Lichinga, a I I de Outubrode 1986.

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SAMORA - UMA BIOGRAFIA 251Machel, quando e' apresentado, ndo caminha simplesmente Para o microfone -catapulta-se Para ele como um tigre faminto sobre um cabrito amarrado. Depoisirradia luz como um querubim e, muitas vezes, comega a fir ate' todaa gente estara fir com ele. Tern o ritmo, a mu'sica interna que se espera de um mestre orador.Bate com a mdo. 0 pe marca o compasso dos seus voos orat6rios. Quando falaparece que se esta' a conduzir a si pro'prio (e estd, claro). Uma vez apresentado auma audi8ncia ele toma conta dela...Quando ja' tinha entrado bem no discurso sentiu que aaudiencia comeqava a diminuir de atengdo. Imediatamente interrompeu o texto ecomegou a cantarolar uma cangao revoluciondria zimbabweana. Samora fez umgesto A banda, perto da tribuna, Para o acompanhar. Ministros zimbabweanos, natribuna, levantaram-se e comegaram a danqar e a cantar [ ... 1 0 pfiblico estava dep6, batendo palmas e danqando. Crianqas das escolas com grinaldas de flores [ ...] correram, Para a frente da tribuna e dangaram com a mdsica.Valpy, dizendo que Samora tinha <<truques oratorios nunca sonhados por muitospolfticos>>, continuou Para descrever o final.Samora lanqou uma longa dendncia do imperialismo. Afparou. <<A Luta Continua>>, gritou. <<Continua>>, respondeu a multiddo.Machel, entdo, gritou, em traduqdo: <<E contra o que e que a luta continuaNFicou em p6, calado, 'a espera.Cerca de uma centena de vozes espalhadas disseram, hesitantemente: <<Imperialis mo. >> Machel perguntou, de novo: <<Contra que e' que a luta continuaNDesta vez uma centena de vozes disse, com mais seguranga: <<Capital i smo. >>Machel deixou o silencio continuar quase ate' ao ponto de as pessoassentiremdesconforto. Entdo veio a erupgao: <<A luta continua contra o tribalismo! A lutacontinua contra o regionalismo! A luta continua contra o racismo! Contra aignordncia! Contra o analfabetismo! Contra a superstigdo!Contra a mise'ria! Contra a forne! ... >>

252 MIN CHRISTIEComo Valpy tdo correctamente observou, Samora era urn mestre em atrair a suaaudiencia ocom a1gumas cang6es de embalar sobre o capitalismo e oimperialismo - para depois introduzir a sua propria lista devastadora. de alvospara a luta africana>>.Podia-se dizer que Samora elevou o discurso politico ao nivel de umaarte. Eraquase incapaz de fazer urn discurso sem irromper numa cangdo revoluciondria,envolvendo a multiddo toda numa harmonia a dols tempos. Hal um. vastoreport6rio de canq6es revoluciondrias da Frelimo, compostas nos anos da guerrapela independ8ncia e com. letras nas liffiguas africanas de Moqambique ou ernportugu8s. Devido diversidade das linguas em Moqambique as pessoas do Sulmuitas vezes ndo sabem exactamente o que 6 que estdo a cantar, se a letra fornuma lingua do Norte, e vice-versa. Mas conhecern o sentido geralde cadacanqdo e, dado que as mlsicas sdo, normalmente, muito atractivas,toda a gentegosta de as cantar.

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A m6sica e outros aspectos histrionicos de Samora serviam para vdriosobjectivos. Por urn lado erarn uma forma de impedir que as pessoas secomeqassem a aborrecer. Mas erarn tamb6m uma forma de controlar multid6esturbulentas - um talento U'til nurn pal's cuja policia parece nunca ter ouvido falarde controlo de multid6es. Uma pessoa que ficou muito impressionada por estetalento foi o proprio Grande Orador - Fidel Castro. Em Marqo de 1977,quando odirigente cubano e Samora chegaram, para dirigir um comfcio na Beira, amultiddo estava excitada, barulhenta e turbulenta. Samora aproximou-se domicrofone e, ern poucos segundos, transformou a multiddo ca6tica num coro bernorganizado dirigindo o povo numa canqdo tranquilizadora chamada0 PovoOrganizado. Depois vierarn as palavras de ordem revolucionalriasdo costume.<<Viva o povo organizado!>>, gritou Samora.<<Viva!>>, rugiu a multiddo em. resposta, levantando os punhos fechados.<<Abaixo a indisciplina!>><<Abaixo!>>Castro disse, um pouco mais tarde, A multiddo: <<Ele e o primeiro dirigente queeu vi trazer ordern, 'as massas atrave's de

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 253cang6es revolucionarias. Foi, para n6s, uma coisa completamente nova.>>0 dirigente cubano prosseguiu dando alguns conselhos aos mogambicanos. Hojeas suas palavras tem um toque pungente:Voces tem que ter cuidado com o camarada SamoraMachel. T8m que desejar longa vida e boa sa6de ao camarada Samora Machel. Everdade que os homens passam mas as revoluq6es ficam. Mas quando umarevolugdo esta' no estdgio em que estd a mogambicana, o papel do dirigenteassume um caraActer extraordinaArio. E muito importante ter a clareza, oespifrito revolucionario que dirige o partido edirige 0 poVo (4).Foi nos comfcios de massas, especialmente em Maputo e na Beira, que a magia deSamora deixou a sua marca numa geraqdo de moqambicanos. 0 seu estilo nessescomicios provocava diferentes reacq6es. Alguns afirmavam quehavia nele umtoque de demagogia e, de facto, ele tinha o hdbito desconcertante degritar: <<Eou ndo eAN, depois de marcar um ponto num discurso. As pessoas davam aresposta que se esperava, quer acreditassem nisso quer ndo. Quem eA que querser diferente numa multiddo de 50 000 pessoas?Mas Samora conseguia ser manipulativo sem vergonha, sem ser intimidatArio 'amaneira dos ditadores. A sua relagdo com uma multiddo era bem-humorada echeia de um espirito de dar e receber. A participagdo do plblico fazia parte doespectalculo. Mas o espectdculo era um vefculo para a polftica. Samora tinha apreocupagdo de se manter informado sobre os problemas do dia-a-dia do seu povoe este conhecimento pr6vio das suas preocupaq6es era evidente emmuitoscomicios que dirigia. Era capaz de utilizar esses comAcios como sess6es deelevaqdo da consci8ncia, usando uma linguagern simples e exemplosda vidamoqambicana diaAria. John Saul observou isso:(1) Tempo, Maputo, n.' 339.

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254 IAIN CHRISTIEHouve, muito provavelmente, mais genuffia andlise marxista da sociedademogambicana em alguns dos mais informals discursos de Samora Machel que emmuitos dos compendios de ornaterialismo diale'ctico e histor co>> produzidos por<<conselheiros de ideologia>> do governo mogambicano. Felizmenteque muitosmogambicanos parecern bernconscientes desse facto (1).0 seu instinto para a comunicaqa-o surgia tamb6m com forqa em encontrosformais do Estado e do partido: a abertura e encerramento do parlamento, oscongressos da Frelimo.0 quarto congresso da Frelimo, em 1983, foi talvez o classico do genero. Samoraleu o relat6rio do Comit6 Central aos 677 delegados e muitos convidadosestrangeiros, incluindo o primeiro-ministro do Zimbabwe, Robert Mugabe. Eclaro que ndo foi o pr6prio Samora quem escreveu o discurso. Eraum relat6riocolectivo, muito importante em termos de conteldo, mas ndo tinha sidoescritocom um estilo brilhante ou com graqa. Documento macigo, levou-lhe 10 horas aler, divididas em dois dias. Manter a atengdo de um plblico durante 10 horas comum discurso a falar de politica e economia e' uma tarefa assustadora. Na verdadeuma das imagens preferidas dos operadores de camara de televisdo em congressospolfticos e o grande plano de delegados a dormir, sem prestarem importa^ncia 'aselucubraq6es soporfferas do orador. Samora foi diferente, dramaticamentediferente.Comegou com uma perspectiva de oapelo e respostao. <<Khanimambo,Khanimambo>>, entoou numa exuberante voz de baritono que ressoou pela sala.<<FRE - Ll - MO>> foi a resposta. adagio do coro maciqo de sopranos, tenores ebarftonos marxistas na assistencia. A canqdo continuou. Estava dadoo tom.De hora em hora, aproximadamente, havia mais uma canqdo ou uma se'rie deVivas e Abaixos, mantendo inflamado o(') Saul, John, <<A Difficult Road: The Transition to Socialism inMozambique>>, New York, Monthly Review Press, 1985, p. 147.

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 255fervor revoluciondrio e mantendo acordados os delegados e convidados menosentusiastas. Ell estava sentado no balcdo ao lado de um ministro doZimbabweque passou, fascinado, todo o congresso. Quando famos a sair eledisse:<<Extraordinario desempenho... extraordinario... nunca na minha vida tinha vistonada semelhante.>>Em Maio de 1982 Samora teve urn, desempenho ainda mais extraordindriodurante uma se'rie de reuni6es no saldo nobre de uma escola de Maputo.Enfrentou cerca de mil moqambicanos que, antes da independ6ncia, tinharn sidomembros voluntdrios de organizaq6es que punham em prdtica as orientag6espolfticas, militares e de seguranga do Estado colonial-fascista. Estavam incluldosantigos agentes da PIDE-DGS, membros dos grupos militares e paramilitaresmais brutais e um punhado de hornens que aderiram ao partido fascistaportuguesAcqdo Nacional Popular (ANP).

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Eram o tipo de pessoas que, na Europa, foram cobertas de alcatr5o, tiverarn ocabelo rapado ou foram mesmo executadas depois da Segunda Guerra Mundial.Samora, honra Ihe seja, tinha proibido esse tipo de represdIlas ap6s aindependencia do seu pals.0 processo que conduziu 'as reuni6es de 1982 comeqou em 1978, quando Samoradell ordens para que se realizassern reuni6es nos lugares de trabalho onde os ex-colaboracionistas fossern convidados a identificar-se e a descrever o que tinhamfeito. As fotos dos ex-colaboracionistas foram postas em paineis nos locais detrabalho e la' ficaram. alguns anos.Havia dois objectivos. Urn. era simplesmente fazer os colaboracionistascompreenderern que tinham trafdo o seu proprio povo e que a repressdo selvagemem. que tinharn tomado parte ndo tinha justificaqdo possivel. 0 segundoobjectivo, mais importante, era evitar a chantagem. Havia dezenas de milharesdesses ex-colaboracionistas ern todo o pal's mas ninguem sabia dizer, ao certo,quantos e quern. erarn porque o regime colonial, quando saiu, ndo forneceu listasde nomes. A melhor informa95o sobre esta questdo estava nas mdos de homenscomo Orlando Cristina, que tinha sido oficial da seguranqa portuguesa e era,nesse momento, secretario-geral da RNM, e Evo

256 1AIN CHRISTIEFernandes, que tinha trabalhado para a polfcia portuguesa em Moqambique e eratambem, na altura, membro da direcqdo da RNM.Nos primeiros tr8s anos da independe^ncia a Frelimo ndo fez nenhumesforqoorganizado para identificar os ex-colaboraclonistas e e' impossivel estabelecerquantos foram chantageados por Cristina para adefirem 'a RNM. Teria sido fdcilrecrutar centenas, talvez milhares de pessoas que temiam que, se fossernconhecidos como antigos colaboracionistas, poderiam. perder osseus, empregos,ou plor ainda.0 apelo para as pessoas se apresentarem teve bons resultados, pelo menos emMaputo, onde tive oportunidade de testemunhar parte dos acontecimentos. Istondo 6, talvez, muito surpreendente porque ndo havla nenhuma ameaqa de puniqdopara al6m de ter afixado na parede a sua f6tografia, nome e organizaqdocolonialista.Em 1982 foi decidido que as fotografias jd estavam nos placards hd temposuficiente e os processos podiam ser cicatrizados. Os antigos colaboracionistas, atrabalhar em Maputo, foram convocados para os encontros de Maio com Samora.Estavam presentes a imprensa e a televisdo.Os antigos colaboracionistas - ou comprometidos, como eram entdo chamados -foram chamados 'a tribuna pelo Presidente para falarem sobre o seu passado.Samora disse-lhes que sabia que ninguem era perfeito e toda gente tinha cometidoerros. Mas, afirmou, tinham que falar francamente sobre o seu passado. Ndoqueria simples admiss6es de que tinham sido membros desta ou daquelaorganizaqdo. Queria pormenores sobre o que tinham feito. A ideia era que, se ospormenores ndo fossern revelados, continuava a haver ameaga de chantagem.0 Presidente andava de um lado para o outro da tribuna, falando sem parar,agitado por velhas mem6rias de amigos que tinham sido reduzidosa destroqos

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humanos antes de serem abatidos pelos colonialistas e seus sequazes. As coisastornaram-se intensamente pessoais: os enfermeiros do hospital que tinhamdesaparecido depois de serem levados para as masmorras da polfcia secreta, osguerrilhelros da Frelimo que foram capturados feridos e que se recusaram arevelar segredos debaixo de

SAMORA - UMA BIOGRAFIA 257torturas excruciantes. Samora tinha conhecimento pessoal de muitoscasos.Chamou as coisas pelos nomes.Entdo as recordag6es emergirarn do outro lado da sala. Horrfveisconfiss6es detraiqdo. Livres de qualquer ameaqa de serem atirados para a cadeiaouexecutados, homens admitirarn ter sido pagos pela polfcia secreta para, seinfiltrarern ern grupos de estudantes, associaq6es de debates e mesmo nasconversas nos comboios para conseguirem saber os nomes dos nacionalistasafricanos. Esses nacionalistas foram depois presos e, muitos deles, torturados W 'amorte na prisdo. Urn condutor da PIDE-DGS admitiu que levava os corpos paraserem atirados ao mar.Dois ex-comandos admitirarn ter estado presentes no massacre de Wiriamo, naprovifficia de Tete, em. 1972, ern que foram langadas granadas de mdo contrauma multiddo de alde6es. Levou tr8s dias a sepultar os corpos.De uma forma geral a sessdo foi um exemplo cldssico de como lidar, de formahumanitdria, corn as sequelas de uma era horrivel e traumdtica. Desde que aspessoas falassern aberta e honestamente, daquilo que tinham. feito erarnperdoadas: e, na verdade, a proibiqdo de eles ocuparern lugares de chefia nos seusempregos fol levantada.Mas, no ini'cio do encontro, Samora arengou contra urn homern que se recusava aadmitir a gravidade do que tinha feito. Era claro que Samora ou conhecia o casopessoalmente ou tinha uma ficha multo boa sobre o homem. Esteve sobre ele serndescanso. Mas o homem, urn artista mogambicano negro, continuava a minimizaros efeitos do seu colaboracionismo. Samora, a certa altura, perdeu a cabega echamou a poli'Cia para o levar embora. Ndo me consigo lembrar das palavrasexactas de Samora, mas o seu sentido era este: <<Levem-no para um. campo dereeducaqdo e deixem-no 16 ficar para sempre.))Lembro-me de ter pensado, na altura, que aquilo ndo era digno deSamora.Parecia revelar uma faceta cruel que eu nunca tinha visto antes. Ele estava a usaro seu poder presidencial para afastar aigu6m por toda a vida serno devidoprocesso legal. Fosse o que fosse que o homem tivesse feito mereciaumjulgamento melhor do que aquele. E qual seria o significado de reeducagdo se opreso ficasse A ate' 'a morte?

258 IAIN CHRISTIEMas ' claro que todo o episodio foi um truque de Samora para levar osoutros alimparem-se. E funcionou. Muitos deles falaram abertamente sobre as suasactividades passadas e Samora chamou alguns deles A tribuna para. lhes apertar amdo. A atmosfera desanuviou-se, houve um perddo geral e o acontecimento

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acabou com os antigos comandos coloniais a apresentarem-se comovoluntariospara a luta contra a RNM.E o que aconteceu ao artista que foi condenado a prisdo perpe'tua? Continuou aandar por Maputo, sorrindo como lhe 6 habitual, vendendo os seusquadros. EstAmelhor do que antes e ate' jd realizou exposiq6es do seu trabalho.A palavra <<samoriano)> no tftulo deste capftulo ndo 6 minha invenqdo. Foicunhada por Aquino de Braganqa, academico e jornalista que fol amigo pessoal epolftico de Samora durante muitos anos. Aquino entendia a palavra como adescri9do de um corpo de teoria polftica que cresceu a partir da lutapelaindepend8ncia de Moqambique e ndo no sentido em que eu a usei nestecapitulo.Quando Aquino mencionou a Samora que queria lanqar esta nova palavra oPresidente rejeitou imediatamente a ideia. PorquV Possivelmenteporque Samorapensava que jd havia um nu'mero suficiente de nomes de individualidades ligadosorganicamente 'a teoria socialista sem ter que acrescentar o seu A confusdo.Serd que ele teria objectado A ideia de a mesma palavra ser usada para descrevero seu estilo de direcqdo? Penso que nao, porque nem ele nem ninguernque otenha conhecido pode negar a sua originalidade nesse aspecto. Ndo gostava decomparaq6es e, uma vez, fez uma prelecqdo a um jornalista tanzaniano por odescrever, num artigo, como o Xhe Guevara africano>>. Ele tinhaaprendidoatrave's da experiencia de revolucionalrios de muitos pafses que actuaram antesdele, mas ndo adoptou nenhum como modelo e queria ser considerado apenascomo Samora Machel, de Mofambique. Nada mais.

EpitafioAs agonias do colonialismo e a experie^ncia da luta pela independenciaproduzirarn uma grande quantidade de comovente poesia moqambicana. Jos6Craveirinha, Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, Rui Nogar,Jorge Rebeloe muitos outros contarn eloquentemente esta histo'ria epica ern verso. SamoraMachel gostava de conversar sobre os m6ritos relativos deste ou deoutro poetamas ele proprio nunca se virou para a poesia de forma consistente, e demonstroupouco talento como bardo. S6 foram publicados dois poemas seus. Ambosdedicados a Josina, sua esposa e companheira, que morreu em 1971. Deixemosque este pequeno extracto de urn desses poemas seja um epitafio para Samoracomo foi para Josina e para todos aqueles que cairam na luta contrao racismo e ocolonialismo na Africa Austral.Como chorar um companheiro de armas sendo [empunhando a armacaidae prosseguindo o combate?

260 IAIN CHRISTIEAs minhas Idgrimas nascem na mesma fonte em que nasceu [o nosso amor,a nossa vontade e vida revoluciondrias.Por isso as ldgrimas sdo determinapo e juramento [de combate.As flores que caem da drvore 4m preparar a terra [para que novas,e mais belasflores cresVam na estaCdo seguinte.A tua vida continua nos continuadores da RevoluVdo.

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Indice de nomes e assuntosAAbuso de poder, 229-231, 236-240. Acordo de Lancaster House,170-171,182, 232.Africa do Sul, 13, 15-20, 26-27, 29-30,39-40, 43, 52, 62, 76-77, 81, 91-92, 99-100, 108, 118-119, 135, 141, 149, 160-161, 166, 171-175, 178, 180-182, 184, 203, 222, 227-228,234, 239, 242-243. Africa Report, 30. African Communist, 45. Aggett, Neil, 243.Aldeamentos, 108. Aldridge (Jr.), Leo Clinton, 68-69. Alemanha de Leste, 116,144, 161. Alemanha Ocidental, 115, 123, 126. Algodio (sistema do),27. Amin,Idi, 217.Anglo-American Corporation of SouthAfrica, 92.Angola, 13, 39, 118-119, 124, 131, 167, 219.Anti-Frelimo, 48-49, 61-62, 137-139. Anticolonialismo, 37, 45-49. Antunes,Melo, 136-137. Apartheid, 39, 51, 118, 163, 171, 174-175, 205,222, 227-228,243. Argd1ia, 54, 56, 62, 76. Armando, Timo, 54-55. Arriaga, Katilza de, 101,104-107, 110-111, 131, 133, 162, 249. Assimilados, 220-221.AssociaqdoAfricana, 38. Associaqdo dos Naturais de Mogambique,39.Azevedo, Adalberto, 35.BBanda, Hastings, 57, 59, 62, 65, 89-91,183.Beira, 90-91, 107, 126, 134, 149, 159,166, 171-172, 177, 202, 232-238,252-253.Bergh, Van Den, 141.

262 IAIN CHRISTIEBertulli, Cesare, 114. Biafra, 88.Biko, Steve, 243. Blantyre, 90, 183. Boormans, Daniel, 66-68. Botha, P. W., 17,141, 175, 182. Botha, Roelof (,Pik,, 228. Botswana, 43, 52, 147,160. Braganga,Aquino de, 136, 190, 258. Brzezinski, Zbigniew, 162. Bulgdria, 115, 144.Business Day, 78.CCabago, Jos6 Lufs, 221, 237. Cabo Delgado, 46, 52, 57-58, 63-69, 76,83, 86, 88, 92-93, 97-98, 103-108, 110-111, 116-117, 122-123, 125, 191-192,197, 219, 223-224, 229, 246. Cabo Verde, 39, 118, 124. CaboraBassa, 92-93,111, 124. Cabral, Amilcar, 113, 124, 133, 248. Caetano, Marcelo, 59, 73, 129,131-133,138, 142.Cfimara, Pedro Alvares Cabral Lopes deBettencourt da, 249. Carrington, Lord, 168-169. Carter, James, 161-164.Carvalho, Joaquim de, 210. Casa Banana, 183. Castro, Fidel, 159, 165, 188, 252.Catembe, 42.

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Ceausescu, Nicolae, 115. Centro Associativo dos Negros da Provincia deMoqambique, 38. Chai, 57, 63.Chilembene, 26-28, 49. China, 61, 115, 118-123, 144, 151, 188-189.Chipande, Alberto, 63, 65-66, 94, 106,109, 122, 144. Chirau, 163.Chissano, Joaquim, 48-49, 63, 79-80, 94,96, 100, 116-117, 143-144.Chitepo, Herbert, 127, 147, 151.Chona, Mark, 148. Chu Teh, 61. CIA, 118, 239. Cobue, 70-71. Comitd deLibertago da OUA, 125, 127,129.Comprometidos, 256.Conferdncia das Organizaq6es Nacionalistas das Col6nias Portuguesas(CONCP), 47.Confer~ncia de Genebra, 152, 154-155,157.Confer~ncia de Lancaster House, 169. Confer~ncia para a Coordenaqdo doDesenvolvimento da Africa Austral(SADCC), 173-175.Congresso Nacional Africano (ANC), 51-52, 118, 147-149, 174-175, 179-182.Congresso Pan-Africano (PAC), 119. Conselho Nacional Africano Unido(UANC), 164.Coreia do Norte, 34, 121, 144, 151. Coremo, 119-120, 137. Corredor da Beira,126, 129, 135, 140,170, 176.Costa, Jorge, 242-243. Cotoi, Afonso, 166. Craveirinha, Josd, 259. Cristina,Orlando, 68-69, 255-256. Cuamba, 90. Cuba, 159, 161, 164, 188.DDar-es-Salam, 9, 30, 41, 45-46, 48, 52,54-55, 67-69, 76, 82, 84, 86-88, 97, 99-100, 115, 121-122, 127, 135-136,144, 148, 194, 216-217, 223. Declaraqdo de Arusha, 192. Delgado, Humberto, 41,100. Dempsey, Jack, 34. Dinamarca, 159. Dodoma, 55-56. Dominio colonial,administrago, 28-29forgas de seguranqa, 41, 46, 71-73

SAMORA - UMA BIOGRAFIAopressfao, 38-40sistema de sadide, 35-37.Drag6es da Morte, 137, 139, 225.EEanes, Ant6nio Ramalho, 73-75. Eduardo, Tomd, 12 I. En-lai, Chu, 122. Estadosda Linha da Frente, 16, 147-148, 163-169.Estados Unidos da America, 40, 67, 86,104, 115-116, 118, 123, 126, 161,163.Evening Standard, 70. Exdrcito do Povo do Zimbabwe (ZIPA),

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149-155, 174, 181.FFaixa de Caprivi, 127. Fauvet, Paul, 15. Fay, Stephen, 99. Feira dos Cereais, 28.Fernandes, Evo, 255-256. Ferreira, Joo, 42-43, 221. Figueiredo, Ant6nio de, 99-100. Finlndia, 159. Flower, Ken, 142, 146. Franga, 115-116, 123, 126.Francistown, 52. Frelimo,Primeiro Congresso, 49, 53Segundo Congresso, 96Terceiro Congresso, 158, 201-202 Quarto Congresso, 202, 211,254anti-racismo, 48-49Comitd Central, 68, 101, 225destacamento feminino, 83divis6es internas, 85-87movimento de libertagdo, 52, 66-67,131-132partido polftico, 200-203perspectiva marxista-leninista, 187-199poliftica de clem~ncia, 216, 218 rela 6es externas, 114-129, 159.GGaragua, 176. Gaza, 26-27, 140, 146, 191, 194, 211. Giap, Vo Nguyen, 61, 121.Gomes, Francisco da Costa, 134, 137. Governo de transigo, 137, 143. Gouveia,Joaquim, 108. Gr,-Bretanha, 57, 86, 89, 115-116, 123,126, 154, 164, 167-169.Grupos Dinamizadores, 199-201. Guebuza, Armando, 96, 100, 259. Guin6-Bissau, 39. Gungunhana, 27. Gwarnbe. Adelino, 67. Gwengere, Mateus, 86-88,92, 100-101,224.HHanlon, Joseph, 210. Hassan 11, 124. Holanda, 115, 124. Honwana, Fernando, 9,155, 167-168. Hospital Miguel Bombarda, 33, 35-36,41-42.Hugo, Victor, 41-42. Hunguana, Teodato, 14.Ignatiev, Oleg, 117. Igreja Cat61ica, 31, 113. Igreja Metodista Livre, 31. Imp~riode Gaza, 27-28. Impdrio do Marave, 89. Inhaca (ilha da), 34. Itdilia, 114, 116.Izvestia, 117.Jackson, Jesse, 248. Jardim, Jorge, 90-91, 166, 233. Jivkov,Todor, 115. Juma,Pedro, 121.263

264 lAIN CHRISTIEKKankomba, Paulo Samuel, 97, 224. Karume (xeque), 218. Kaufman, Michael,201. Kaunda, Kenneth, 16, 93, 128, 137, 147-148, 160, 165, 168, 183. Khama,Seretse, 147, 160, 168. Khosa, Maguiguane, 27. Kilbracken, Lord, 70-71.Kissinger, Henry, 154, 160. Komatipoort, 141, 178. Komsomolskaya Pravda, 117.Kongwa, 55-57, 62, 76, 81, 95.

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LLago Kariba, 127. Langa, Francisco, 207. Limpopo, 25-26, 31, 149. Lisboa, 98,112-113, 131-133, 135-136,138, 140, 142, 161, 219. London Daily Telegraph, 68. Louis, Joe, 34. LourengoMarques, 33-36, 38, 40, 42, 48,84, 98, 104, 134, 137, 139-144,146, 149, 220-221, 231, 242. Lumumba, Patrice, 188. Lusaka (Conversaq6es),132, 134, 136. Luta armada,bases,Base Beira, 107Bagamoyo, 54, 62, 76Base Central, 107Boane, 134Nachingwea, 81, 95, 249Ngungunhana, 107Propriedade Agricola Dezassete, 81.estratdgia, 61-63, 67, 94-95, 109.MMabote, Machel, Machel,Sebastido, 109, 121-122. Edelson, 35. Graqa, 10, 18.Machel, Joscelina, 35. Machel, Josina,(ver Muthemba, Josina). Machel, Mandande Moisds, 26. Machel, Ntewane, 35.Machel, Olivia, 35. Machel, Samito, 84. Machel, Samora,carreira militar, 53-55, 61-62, 72,77, 176carreira politica, 37, 47, 101, 222, 245fuga de Moqambique, 43, 51-52instruqio, 31-33primeira viagem it Europa, 114-115primeiros anos, 25-30viagem ao Extremo Oriente, 121-123.Machingura, Dzinashe, 150-152, 154-155. Machipanda, 232. Macmillan, Harold,45. Macomia, 66. Macuacua, Lemos, 41, 43. Mafalala, 35. Mafudh,Ali, 79, 82-83, 94-95, 109. Magaia, Filipe Samuel, 65, 77-80, 89. Malan, Magnus, 16, 227.Malawi, 46, 49, 70-71, 85, 88-93. Mamadhussen, Muradali, 14. Manave, Aurdlio,34, 43, 100. Mandela, Nelson, 10, 18-21. Mandela, Winnie, 10, 18-19, 21.Maniamba, 70. Manica, 129, 146, 148. Maputo, 58, 74, 91, 172, 242, 256. Margo,Cecil, 16. Marks, 1. B., 52. Martin, David, 69, 99, 128. Martins,Helder, 225.Marx, Karl, 188, 195. Matabelelndia, 127. Mataca, 72-75. Matavele, Fernando,237. Matchedge, 95. Matola, 175-176, 178-179. Matsapa, 17. Matsinhe, Mariano,96, 237-238.

Matutuine, 42. Matzangaissa, Andr6, 170. Mavue, 149.Mbita, Hashim, 125. Mbuzini, 14, 16-17, 20, 137, 157, 184. Mecula, 72.Metangula, 70-71. Mikhailev, Pavel, 117. Milas, Leo, 67-69. Missfo de S. Paulode Massano, 31. Missdo Suiqa, 40. Mondlane, Cdndido, 104, 107. Mondlane,

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Eduardo Chivambo, 37, 40-41, 47-49, 53-54, 63-64, 67-68, 76,78-80, 82, 84, 86-88, 94-101, 105, 111, 114-116, 120, 123, 127, 190-192, 213, 216, 218, 221-226.Monomotapa, 194. Monteiro, Casimiro, 99-100. Monteiro, Oscar, 211, 233.Moore, Archie, 34. Mora, Martin, 165. Moscovo,(ver Unio Sovidtica). Moudoro, 57. Movimento das Forqas Armadas(MFA),73, 112, 132, 136.Movimento Nacional de Libertaqiio dasComores (MOLINACO), 118.Movimento Popular de Libertaqo deAngola (MPLA), 93, 112, 118, 131. Moyo, 73.Mozambique African National Union(MANU), 46, 65, 68-69.Mozambique Revolution, 36, 97, 112,114, 120, 124-125, 189, 215. Mtwara, 90, 97. Mueda, 46, 65, 104. Mugabe,Robert, 147, 150-155, 160-161,165, 169-170, 183, 254. Munslow, Barry, 71, 109. Murupa, Miguel, 225, 249.Museveni, Yoweri, 217-218. Muteto, David, 33. Muthemba, Josina,84, 115, 259.SAMORA - UMA BIOGRAFIA 265Muthemba, Mateus Sans~o, 88. Muzorewa, Abel, 147-148, 154, 163-165.NNacala, 90, 171. Namatil, 136. Namibia, 118, 163. Nampula, 68,75, 90, 101, 134,220. Nangade, 98, 229. Nasser, 34.Negrfo, Josd, 73. Nei, Louis, 183. Neto, Agostinho, 113, 124, 167. Nhongo, Rex,150-151, 153-155. Niassa, 57-58, 64-65, 69, 70-77, 92, 95,97, 115.Niassalandia, 89. Nicanorov, Anatole, 117. Niekerk, Charles van, 177. Niekerk, J.W. Van, 91. Nixon, Richard, 123, 162. Nkavandame, Lazaro, 86-88, 92, 94-101,116, 136, 188, 191-192, 197,224.Nkomati (Acordo de), 174-175, 180-183,228.Nkomo, Joshua, 127, 147, 153-154, 165166, 169.Nkrumah, Kwame, 34, 188-189. <N6 G6rdio>>, 101-102, 104-112, 116,131.Nogar, Rui, 221, 259. Noruega, 159. Not cias, 13. Nova Coimbra,70. Nticleo deEstudantes Secundirios Africanos de Mogambique (NESAM), 40,48, 84.Nungu, Silvdrio, 99-100, 224. Nussey, Wilf, 105-106. Nyaz6nia, 154. Nyerere,Julius, 47, 57, 82, 88, 90, 100,128, 147-148, 150-151, 153, 165,168, 188, 193-194, 198.

266 lAIN CHRISTIE0Obote, Milton, 218. Okelo, Tito, 218. Olivenqa, 70. Organizaqdoda UnidadeAfricana (OUA),

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89, 124-126, 132, 144, 248.Organiza ,o das Naq6es Unidas (ONU),115, 123-124, 159, 172, 201.Organizaqo do Tratado do AtinticoNorte (OTAN), 76, 115, 123-124,126, 161, 191.Organizaqo dos Povos do Sudoeste Af'icano (SWAPO), 118.Organizaqdo dos Trabalhadores Moqambicanos (OTM), 200. Owen, David, 160-161.pPachinuapa, Raimundo, 52-56, 109. Pacto de Vars6via, 122. Padres Brancos, 114.Pafuri, 149.Pais, Silva, 142. Partido Africano para a Independdncia daGuind e Cabo Verde (PAIGC), 112-113, 118, 131, 133.Partido Comunista Sul-Africano, 17,51.Partido Comunista Portugu~s, 187. Partido do Congresso do Malawi,91. Pequim,(ver China).Pertini, Sandro, 114. PIDE (Policia Internacional de Defesa doEstado), 41-43, 55-58, 67, 78-79, 98-100, 138-140, 142, 201, 204,221, 224, 235-236, 255, 257. Podgorny, Nicolai, 159. Polftica agricola, 207-212.Pollsmoor, 18. Porto Amdlia (Pemba), 64, 66. Porto Arroio, 64. Portugal, 53, 73,76-77, 92, 105, 112,116, 123, 129, 131, 215, 219.Pravda, 116-117. Propostas Anglo-Americanas, 160.QQuelimane, 150-151. Qudnia, 46.RRabat, 124-125. Ridio Moqambique, 14. Rangel, Ricardo, 235. Rebelo, Jorge, 96,123, 202, 259. Reis, Jofo dos, 221. Resistdncia Nacional Mogambicana (RNMou Renamo), 68-69, 99, 143, 160-161, 166, 170-171, 173-174,176-184, 255-256,258. Rhodes, Cecil, 59. Roddsia, 46, 62, 67, 126, 128-129, 135,141-142, 146-151, 154-155, 160,166-169, 172-173, 176, 201, 232-233.Rombzia, 58, 88-89, 91. Romania, 115, 144. Rovuma, 64-65, 69,88, 97-98, 105,110,136, 144, 191.Ruhinda, Ferdinand, 247.SSalazar, Ant6nio de Oliveira, 31, 47, 76-77 90, 233.Sande, Alberto, 121. Santos, Luis Maria AcAntara Santos,137.Santos, Marcelino dos, 14, 47-49, 94, 96,100-101, 113-114, 120, 128, 159,

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190-191, 202, 223, 259. Sdo Tomd e Principe, 39. Saul, John, 28, 30, 253-254.Savimbi, Jonas, 118. Sawaya, Geoffrey, 98. Schoeman, Peter Benjamin, 178, 249.Short, Philip, 90-91.

Sigauke, Jaime, 77-78. Simango, Uria, 94, 96, 100-101,116, 120-121, 134, 164, 197, 222-225.Sime~o, Joana, 137. Sithole, Ndabaningi, 147, 150-151, 163. Slovo, Joe, 51-52.Smith, ]an, 93, 126, 128-129, 142, 147-149, 151, 153-154, 158, 160-161,163-164, 168, 170. Soames, Lord, 170. Soares, Mdirio, 132, 136. Sofala, 129,202, 232, 237-238. Soshangane, 27. Souguene, 31. Sousa, Pombeiro de, 91.Spfnola, Ant6nio de, 132-134, 138, 153,169.Stewart, John, 178. Sudcia, 159.Sunday limes, 99. Svazilindia, 17, 42, 181.TTambo, Oliver, 180-181. Tanganica, 46, 52-53, 90-91, 220. Tanzania, 4, 9, 43, 45,52, 54-55, 57, 62,64-65, 69-71, 75, 79, 81, 82-83, 86-88, 94-95, 97-98, 101, 105-106, 108-110, 121,124, 136, 144, 148, 151, 168, 191-193, 221, 226, 239,245, 249.Tanzania Daily News, 153. Tempo, 145.Tete, 57, 65, 69, 92-93, 11I, 115-117,119, 120-122, 126-129, 134, 146-148, 184, 246, 249, 257.Thatcher, Margaret, 164, 167-170. Tchaiakomo, Sorita, 34. TheObserver, 99,140. To the Point, 68-69. Tongogara, Josiah, 127-128, 147, 151-152, 155, 174.Tour6, Sekou, 188. Trindade, Calisto, 91.SAMORA - UMA BIOGRAFIA 267UUganda, 218. Unio Democrtica Nacional de Moqambique (UDENAMO),46, 67.Unido dos Povos Africanos do Zimbabwe(ZAPU), 118, 127-128, 149-150,152, 164, 167, 169.Unido Nacional Africana da Rombdzia(UNAR), 58, 88-89, 91, 96.Unido Nacional Africana do Tanganica(TANU), 193.Unido Nacional dos Estudantes de Moqambique (UNEMO), 48.Unido Nacional de Moqambique para aIndependdncia (UNAMI), 46.Unio Sovidtica, 116-118, 121, 123, 159,161, 189.UNITA, 119. Universidade de Witwatersrand, 18.VValadim, 72.Valpy, Michael, 250-252. Vance, Cyrus, 163. Vaticano, 31, 112-113, 115.Veloso, Jacinto, 43, 221. Viana, Lomba, 42. Vieira, Sdrgio, 14, 121. Vietname do

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Norte, 121, 188. Vila Alegre, 146. Vila Cabral (Lichinga), 65, 71.Vila Pery, 135.25 de Abril (de 1974 em Portugal),47, 99-100, 129, 131, 136, 219,225.Vivo, Raul Valdez, 165. Vorster, John, 141, 147-148, 243.WWalcott, Jersey Joe, 34. Walls, Peter, 158, 170. Wassira, Alfredo, 57. Wiriamo,257.

268 lAIN CHRISTIExXai-Xai, 33.YYoung, Andrew, 160, 248.zZaire, 13, 234. Zambeze, 87, 89, 92-93, 111, 126-127,148.Zambdzia, 57, 65, 69, 92, 134, 145, 210. ZAmbia, 13-14, 16, 57,77, 93, 105-106,116, 119, 121, 124, 126, 134, 144,147-148, 151-152, 163, 184, 234. Zamco, 92.Zedong, Mao, 34.Ziegler, Jean, 187-188. Zimbabwe, 57, 69, 112, 127-129, 146-155,160-171, 174, 177, 201-202, 234. Zimbabwe African National Union(ZANU), 93, 119, 126-129, 142, 147, 149-153, 155, 157, 160, 164-165, 168-171,174, 202, 250.

NdjiraObras publicadas pela Editorial Ndjira:A Varanda do Franjipani, Mia Couto o Ap6stolo da Desgra~a, Nelson Saite AtMFicar Rouco, Machado da GraaEditorial NdjiraAvenida 25 de Setembro, N.0 1179 - 1.0 AndarP. 0. Box 4422 MaputoMoambique

NdjiraSAMORA- UMA BIOGRAFIA, de lain Christie, foi escrito originalmente emingles. Este livro sobre a figura de Samora Machel hd muito que ultrapassou a suacondico de biografia par se transfomiar num documento sobre a vida de umpersonagem singular na Hist6ria de Mozambique.Iain Christie nasceu escoces em 1943. Trabalhou para jornais britinicos de 1958 a1970, altura em que foi viver para a Tanzania. Ligado A Frelimo, conhecedor dos

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movimentos de libertaigdo, desde 1975 que vive e trabalha em Moambique. Em1996 adquiriu a nacionalidade mo~ambicana.Samora e visto neste livro como factor de libertaigo de Africa do Sul, Namibia,Zimbabwe, entre outros paises.Christie retrata o militar e o politico, sem the escapar o ser humano.Dez anos depois da sua morte, a Ndjira apresenta, pela primeira vezem linguaportuguesa, esta obra finica no genero sobre Samora Machel.