Quine, W. v. - Sobre o Que Há (Tradução de Luis Henrique Dos Santos - Coleção Os Pensadores,...

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WVQUINE DE UM PONTO DE VISTA LÓG I CO* Tradução de Luis Henrique dos Santos (Sobre o que Há), Marcelo Guimarães da Silva Lima (Dois Dogmas do Empirisrno) e João Paulo Monteiro (Identidade, Ostensâo, Hipóstase) • Traduzido do original inglês: From a Logical Point of View, Carnbridge, Mass., 1953. Harvard University Press. Desse texto são extraídos os ensaios acima citados, que constituem os três primeiros capítulos. (N. do E.)

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  • WVQUINE

    DE UM PONTODE VISTALG I CO*

    Traduo de Luis Henrique dos Santos (Sobre o que H), Marcelo Guimares da Silva Lima(Dois Dogmas do Empirisrno) e Joo Paulo Monteiro (Identidade, Ostenso, Hipstase)

    Traduzido do original ingls: From a Logical Point of View, Carnbridge, Mass., 1953. Harvard UniversityPress. Desse texto so extrados os ensaios acima citados, que constituem os trs primeiros captulos. (N.do E.)

  • SOBRE O QUE H*

    Um aspecto curioso do problema ontolgico sua simplicidade. Ele pode-ser formulado com trs monosslabos portugueses: "O que h?" Alm disso,pode ser resolvido com uma palavra - "Tudo" - e todos aceitaro essaresposta como verdadeira. No entanto, isso simplesmente dizer que h o queh. Resta margem para desacordo em situaes particulares; e assim a questopermaneceu de p pelos sculos.

    Suponhamos que dois filsofos, McX e eu, discordem em antologia. Supo-nhamos que McX sustente haver algo que eu sustente no haver. McX pode,inteiramente de acordo com seu prprio ponto de vista, traar nossa diferenade opinio dizendo que eu me recuso a reconhecer certas entidades. Devo, natu-ralmente, objetar que sua formulao de nosso desacordo no correta, poissustento no haver nenhuma entidade, da espcie que ele alega, para que euas reconhea; mas julgar incorreta sua formulao de nosso desacordo irrele-vanre, pois de qualquer modo sou obrigado a considerar sua ontologia incorreta.

    Quando, por outro lado, tento formular nossa diferena de opinio, pareceque me vejo em embarao. No posso admitir que h coisas que McX sustenta;; eu no, pois, ao admitir que h tais coisas, eu estaria contradizendo minhaprpria rejeio delas.

    Seguir-se-ia, se esse raciocnio fosse slido, que em toda disputa ontol-gica quem defende a parte negativa sofre a desvantagem de no poder admitirque seu oponente dele discorda.

    Esse o velho enigma platnico do no-ser. O no-ser deve em algumsentido ser, caso contrrio o que seria aquilo, que no ? Essa doutrina emara-nhada pode ser apelidada de a barba de Plato; historicamente provou-se obsti-nada tirando freqentemente o fio da navalha de Occam.

    uma tal linha de pensamento que conduz filsofos como McX a atribuirser onde, de outro modo, Se contentariam em reconhecer que no h nada.Assim, tomemos Pgaso. Se Pgaso no fosse, argumenta McX, no estaramosfalando de nada quando usamos essa palavra; portanto, no teria sentido dizernem mesmo que Pgaso no . Acreditando ter assim mostrado que a negaode Pgaso no pode ser coerentemente mantida, conclui que Pgaso .

    McX no pode, na verdade, persuadir-se de todo de que alguma regiodo espao-tempo, prxima ou remota, contenha um cavalo alado de carne eosso. Instado a fornecer mais pormenores acerca de Pgaso, diz ento que uma idia nas mentes dos homens. Aqui, entretanto, comea a se tornar evidente

    Traduzido do original ingls "On What There is", in From a Logica! Point 01 Vie>t-.Har-pec & Row, Nova York, 1963, pp. 1-19.

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    uma confuso. Podemos, para argumentar, conceder que haja uma entidade,e mesmo uma nica entidade (embora de fato isso seja pouco plausvel), queseria a idia-rnental-Pgaso; mas no dessa entidade mental que se est falandoquando se nega Pgaso.

    McX nunca confunde o Partenon com a idia-Partenon, O Partenon fsico;a idia-Partenon mental (ao menos de acordo com a verso de McX a respeitode idias, e no tenho nenhuma melhor para oferecer). O Partenon visvel:a idia-Partenon invisvel. Dificilmente poderamos imaginar duas coisas maisdiferentes e menos propensas a serem confundidas do que o Partenon e a idia-Paternon. Mas, quando passamos do Partenon para Pgaso, a confuso instala-se- p.ela simples razo de que McX se deixaria tapear pela fraude mais grosseirae evidente antes de conceder o no-ser de Pgaso.

    Vimos como a idia de que Pgaso deva ser, porque, caso contrrio, noteria sentido dizer nem mesmo que Pgaso no , levou McX a uma confusoelementar. Mentes mais sutis tomando do mesmo preceito como ponto de par-tida, aparecem com teorias sobre Pgaso cujos defeitos so menos patentes, eproporcionalmente mais difceis de erradicar. Uma dessas mentes mais sutischama-se, digamos, sr. Y. Pgaso, afirma o sr. Y, possui ser na qualidade depossvel no realizado. Quando falamos de Pgaso e dizemos que no h talcoisa, estamos dizendo, mais precisamente, que Pgaso no possui o atributoespecfico da realidade. Dizer que Pgaso no real algo logicamente anlogoa dizer que o Partenon no vermelho; em ambos os casos afirmamos algode uma entidade cujo ser no se questiona.

    O sr. Y, a propsito, um destes filsofos que se uniram para arruinara boa e velha palavra "existir". A despeito de sua adeso a possveis no reali-zados, ele limita a palavra "existncia" realidade - preservando assim umaaparncia de acordo ontolgico entre ele e ns, que repudiamos o resto de seudenso universo. Todos ns tendemos sempre a afirmar, empregando "existir"conforme o senso comum, que Pgaso no existe, querendo dizer simplesmenteque no h, de modo algum, uma tal entidade. Se Pgaso existisse, estaria certa-mente no espao e no tempo, mas apenas porque a palavra "Pgaso" tem cono-taes espao-temporais, e no porque "existe" tenha conotaes espao-tem-porais. Se falta referncia espao-temporal quando afirmamos a existncia daraiz cbica de 27, isso ocorre simplesmente porque uma raiz cbica no umaespcie de coisa espao-temporal, e no porque empreguemos ambiguamente"existir",' O sr. Y, contudo, num esforo mal-intencionado para parecer agra-dvel, gentilmente nos concede a inexistncia de Pgaso e, em seguida, contra-riamente ao que ns entendemos por inexistncia de Pgaso, insiste em quePgaso seja. Existncia uma coisa, diz ele, e subsistncia outra. A nicamaneira que conheo de fazer frente a esse emaranhado de problemas darao sr. Y a palavra "existir". Tentarei no us-Ia novamente; disponho aindade "ser" e "haver". E basta de lexicografia; voltemos ontologia do sr. Y.

    O super-habitado universo do sr. Y , por muitos aspectos, desagradvel.Ele ofende o senso esttico dos que, como ns, tm uma queda por paisagens

    I A tendncia a distinguir terminologicamente entre existncia enquanto aplicada a objetosrealizados em algum ponto do espao-tempo e existncia (ou subsistncia, ou ser) enquantoaplicada a outras entidades surge em parte, talvez, da idia de que a observao da naturezaseja .rel~vante apenas para questes de existncia de primeira espcie. Mas esta idia pnontanamente refutada por contra-exemplos como "a razo entre o nmero de centaurose o nmero de unicrnios". Se houvesse uma tal razo, ela seria uma entidade abstrata, asaber, um nmero. Entretanto, apenas investigando a natureza que conclumos ser zerotanto o nmero de centauros quanto o de unicrnios e, portanto. no haver uma tal raiz

    SOBRE O QUE H 2.25

    desertas, mas isso no o pior. O cortio de possveis do sr. Y um terrenopropcio proliferao de elementos desordeiros. Considere-se, por exemplo,o homem gordo possvel no umbral daquela porta; e agcra o homem calvopossvel no umbral daquela porta. So eles o mesmo homem possvel ou doishomens possveis? Como decidir? Quantos homens possveis h no umbral daquelaporta? H mais magros do que gordos possveis? Quantos deles so semelhantes?Ou o fato de serem semelhantes torna-os um nico? Duas coisas possveis nuncaso semelhantes? Isso o mesmo 'que afirmar ser impossvel que duas coisassejam semelhantes? Ou, finalmente, o conceito de identidade simplesmenteinaplicvel a possveis no realizados? Mas que sentido h em falar de entidadesque no podem significativamente ser ditas idnticas a si mesmas e distintas umada outra? Esses elementos so praticamente incorrigveis. Por meio de uma terapiafregiana de conceitos individuais 2 poder-se-ia fazer uma tentativa de reabili-tao; mas pressinto que o melhor seja simplesmente remover o cortio do sr. Ye esquec-lo.

    A possibilidade, assim como as demais modalidades da' necessidade, mpos-sibilidade e contingncia, coloca problemas aos quais no pretendo sugerir quedevamos dar as costas. Mas podemos ao menos restringir as modalidades aenunciados globais. Podemos impor o advrbio "possivelmente" a um enunciadoglobal e podemos perfeitamente preocupar-nos com a anlise semntica dessaconstruo; mas de esperar um pequeno progresso efetivo nessa anlisepor expandirmos nosso universo a fim de nele incluir as chamadas entidadespossveis. Suspeito que o principal motivo dessa expanso seja simplesmente avelha idia de que Pgaso, por exemplo, deva ser, porque caso contrrio noteria sentido dizer nem mesmo que ele no . .

    Ainda mais, toda a riqueza e exuberncia do universo de possveis do sr. Ypareceria reduzir-se a nada ao modificarmos um pouco o exemplo e falarmosno de Pgaso, mas da cpula redonda e quadrada do Berkeley CoIlege. Se, limenos que Pgaso fosse, no tivesse sentido dizer que ele no , ento, pelomesmo motivo, a menos que a cpula redonda e quadrada do Berkeley Collegefosse no teria sentido dizer que ela no . Mas, ao contrrio de Pgaso, acpula redonda e quadrada do Berkeley College no pode ser admitida nemmesmo como um possvel no realizado. Podemos agora obrigar o sr, Y a admitirtambm um reino de impossveis no realizados? Nesse caso, um bom nmerode questes embaraosas poder-se-ia levantar a seu respeito. Poderamos inclu-sive esperar que o sr. Y fosse apanhado em contradies, levando-o a admitirque algumas dessas entidades so ao mesmo tempo redondas e quadradas. Maso "esperto sr. Y escolhe a outra parte do dilema e concede que no tem sentidodizer que a cpula redonda e quadrada do Berkeley College no seja. Ele dizque a expresso "cpula redonda e quadrada" assignificativa.

    O sr. Y no foi o primeiro a abraar essa alternativa. A doutrina da assig-nificatividade das contradies remonta ao passado. A tradio sobrevive, almdisso, em autores que parecem no compartilhar de nenhuma das motivaesdo sr. Y; Ainda assim, fico imaginando se no foi essencialmente a mesma moti-vao observada no sr. Y que pela primeira vez instigou a uma tal doutrinaEla no dispe, certamente, de nenhum atrativo intrnseco; e conduziu seusadeptos a extremos to quixotescos quanto o de contestar o mtodo de prova

    , Cf. Quine, From " Logical Point oi View, Harper & Row, Nova York, L963, p. 1:52.

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    por reductio ad absurdum - atitude em que pressinto uma reductio ad absurdumda prpria doutrina.

    Alm disso, a doutrina de assignificatividade das contradies apresenta asria desvantagem metodolgica de tornar impossvel, por princpio, que algumdia se elabore um teste efetivo de significatividade. No nos seria jamais possvelarquitetar meios sistemticos para decidir se uma cadeia de sinais faz sentido -mesmo para cada um de ns individualmente, deixando-se os outros de lado -ou no. Isso porque se segue de uma descoberta de Church 3 em lgica mate-mtica que no pode haver nenhum teste de contraditoriedade geralmente apli-cvel.

    Referi-me desairosamente barba de Plato e insinuei que ela emara-nhada. Estendi-me longamente sobre os inconvenientes de sustent-Ia. horade pensar em medidas positivas.

    Russell, em sua teoria das chamadas descries singulares, mostrouc\ara-mente corno podemos empregar significativamente nomes aparentes sem suporque haja as entidades supostamente nomeadas. Os nomes a que a teoria deRussell diretamente se aplica so nomes descritivos complexos, tais como "oautor de Waverley", "o atual rei da Frana", "a cpula redonda e quadrada doBerk.eley College". Russell analisa tais expresses sistematicamente como frag-mentos das sentenas globais onde ocorrem. A sentena "O autor de Waverleyfoi um poeta", por exemplo, globalmente interpretada corno significando"Algum (ou melhor: algo) escreveu Waverley e foi um poeta, E- nada maisescreveu Waverley". (O objetivo dessa orao adicional o de afirmar a unici-dade que est implcita na palavra "o", em "o autor de Waverley".) A sentena"A cpula redonda e quadrada do Berkeley College rosa" interpretada como..Algo redondo e quadrado e uma cpula do Berkeley College e rosa, enada mais redondo e quadrado e uma cpula do Berkeley College", '

    A virtude dessa anlise consiste em que o nome aparente parafraseadono contexto, como um chamado smbolo incompleto. Nenhuma expresso inde-pendente se oferece como urna anlise de expresso descritiva, mas o enunciadocomo um todo, que era o contexto dessa expresso, mantm ainda sua cotaintegral de significado - seja ele verdadeiro ou falso.

    O enunciado no analisado "O autor de Waverley foi um poeta" contmuma parte, "o autor de Waverley", que McX e o sr. Y incorretamente supemexigir referncia objetiva para ser de alguma maneira significativa. Mas, natraduo de Russell, "Algo escreveuWaverley e foi um poeta e nada maisescreveu Waverley", o fardo da referncia objetiva, que se havia posto sobrea expresso descritiva, agora assumido por palavras do tipo daquelas que oslgicos chamam de variveis ligadas, variveis de quantificao, a saber, palavrascomo "algo", "nada", "tudo". Essas palavras, longe de pretenderem ser nomesespecificamente do autor de Waverley, no pretendem absolutamente ser nomes;referem-se a entidades em geral, com uma espcie de ambigidade intencionalque lhes peculiar. 5 Essas palavras quantificacionais ou variveis ligadas cons-tituem naturalmente uma parte bsica da linguagem e sua significatividade, aomenos em contextos, no deve ser contestada. Mas sua significatividade de modo

    s cr. Church, "A note on the Entscheidungsproblem", Journal o] Symbolic Logic 1, 1936,pp. 40 e 55., \O1 e SI. Para uma apresentao possivelmente mais conveniente do argumento,cf, Hilbert and Bernavs, Gr undlagen der Matbematik, vo1. 2 (Springer), Berlim, 1934. 1939;seglUlda impresso, Edwards, Ann Arbor, 1944)., Para mais pormenores sobre a teoria das descries, cf. Quine, op. cit., pp_ 85 e 5_, 166 e s.5 Para um tratamento mais explcito das variveis ligadas, cf. Quine. op. cir., pp. 82. 102 e s.

    SOBRE O QUE H 227

    algum pressupe haver ou o autor de Waverley, ou a redonda cpula quadradado Berkeley CoUege, ou quaisquer outros objetos especificamente predeterminados.

    No que diz respeito a descries, no h mais qualquer dificuldade emafirmar ou negar ser. "H o autor de Waverley" interpretado por Russell comosignificando "Algum (ou mais rigorosamente, algo) escreveu Waverley e nadamais escreveu Waverley". "O autor de Waverle>' no interpretado, corres-pondentemente, como a disjuno "Ou cada coisa no escreveu Waverley, ouduas ou mais coisas escreveram WaverJey". Essa disjuno falsa, mas signi-ficativa; e no contm nenhuma expresso que pretenda nomear o autor deWaverley. O enunciado "A cpula redonda e quadrada do Berkeley Collegeno " analisado de maneira anloga. Arruna-se assim a velha idia de queenunciados de no-ser se autodestroem. Quando um enunciado de ser ou no-ser analisado segundo a teoria das descries de Russell, deixa de conter qual-quer expresso que at mesmo pretenda nomear a suposta entidade cujo serest em questo, de modo que no se pode mais conceber que a significativi-dade do enunciado pressuponha haver tal entidade.

    E quanto a "Pgaso"? Sendo uma palavra, mais do que uma expressodescritiva, a ela o argumento de Russell no se aplica imediatamente. No entanto,pode-se facilmente fazer com que se aplique. Temos apenas que reescrever"Pgaso' corno uma descrio, de qualquer maneira que parea particularizaradequadamente nossa idia; digamos, "o cavalo alado que foi capturado porBelerofonte". Substituindo "Pgaso" por essa expresso, podemos ento procedera urna anlise do enunciado "Pgaso ", ou "Pgaso no ", exatamente anloga anlise de Russel de "O autor de Waverley " e "O autor de de Waverley no ".

    Assim, para subsumir um nome, ou suposto nome, constitudo por umanica palavra, como "Pgaso", sob a teoria das descries de Russell, natural-mente devemos antes ser capazes de traduzir essa palavra em termos de umadescrio. Mas essa no uma restrio efetiva. Se a idia de Pgaso fosse toobscura ou to bsica a ponto de naturalmente no se ter oerecido nenhumatraduo conveniente em termos de uma expresso descritiva, poderamos aindater-nos valido do seguinte estratagema artificial e aparentemente trivial; pode-ramos ter recorrido ao atributo de ser Pgaso, ex hypothes! no analisvel eirredutvel, adotando para exprim-lo o verbo "-Pgaso", ou "pegaseia". Osubstantivo "Pgaso" poderia ento, ele prprio, ser tratado como derivado eidentificado, em ltima instncia, com a descrio: "a coisa que -Pgaso", "acoisa que pegaseia", 6

    Se a importao de um predicado como "pegaseia" parece obrigar-nos areconhecer que h, no cu de Plato ou nas mentes dos homens, um atributocorrespondente, o pegasear, est tudo muito bem. At agora nem ns .nem osr. Y nem McX discutamos a respeito do ser ou no-ser do; universais, masa respeito do ser ou no-ser de Pgaso. Se em termos de pegasear podemo,interpretar o substantivo "Pgaso" como uma descrio sujeita teoria dasdescries de Russell, afastamos ento a velha idia de que no se pode dizerque Pgaso no sem pressupor que, em algum sentido, Pgaso seja.

    Nosso argumento agora suficientemente geral. McX e o sr. Y supunhamque no podamos significativamente afirmar um enunciado da forma "Tal-e-talno ", com um substantivo singular simples ou descritivo no lugar de "tal-e-tal",a menos que tal-e-tal fosse. Vemos agora que essa suposio geralmente inun-

    " Para mais observaes quanto a essa assimilao de todos 05 termos singulares em des-cries, d. Quine, op. cit., p_ 16'7; tambm Quine, Methods of LOI,ic. Holt, Nova York1950. PI>. 218-224_

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    dada, desde que o substantivo singular em questo pode sempre, trivialmenteou no, ser convertido numa descrio singular e ento analisado ia Russell.

    Comprometemo-nos com uma ontologia que contm nmeros, quando dize-mos que h nmeros primos maiores que um milho; comprometemo-nos comuma ontologia que contm centauros, quando dizemos que h centauros; e com-prometemo-nos com uma ontologia que contm Pgaso, quando dizemos quePgaso . Mas no nos comprometemos com uma ontologia que contm Pgaso,ou o autor de Waverley, ou a cpula redonda e quadrada do Berkeley College,quando dizemos que Pgaso, ou o autor de Waverley, ou a cpula em questono . No precisamos mais trabalhar sob o peso da iluso de que a significa-tividade de um enunciado que contm um termo singular pressupe uma enti-dade nomeada pelo termo. Um termo singular no precisa nomear para ser signi-ficante.

    Um simples pressentimento desse fato poderia ter iluminado o sr. Y e McX,mesmo sem proveito para Russell, se tivessem percebido - como to poucosde ns o fazem - que h um abismo entre significar e nomear, mesmo no casode um termo singular que genuinamente nome de um objeto. O seguinte exemplode Frege 7 ser suficiente. A expresso "Estrela da Tarde" nomeia um certoobjeto fsico, grande e esfrico, que se move no espao a alguns milhes demilhas daqui. A expresso "Estrela da Manh" nomeia a mesma coisa, tal comoo estabeleceu possivelmente pela primeira vez algum babilnico observador. Masno se pode considerar que as duas expresses tenham o mesmo significado;caso contrrio, aquele babilnico poderia ter dispensado suas observaes e ter-secontentado em refletir sobre os significados de suas palavras. Os significados,nesse caso, sendo diferentes um do outro, devem ser distintos do objeto nomeado,que um e o mesmo em ambos os casos.

    A confuso entre significar e nomear no apenas fez McX acreditar queno poderia significativamente repudiar Pgaso; a persistncia de uma confusoentre significar e nomear sem dvida ajudou a engendrar sua idia absurda deque Pgaso seja urna idia, uma entidade mental. A estrutura dessa confuso a seguinte. Ele confundiu o suposto objeto nomeado Pgaso com o significadoda palavra "Pgaso", concluindo portanto que Pgaso deve ser a fim de que apalavra tenha significado. Mas que espcie de coisas so os significados? Esse um ponto de disputa; no entanto, pode-se bem plausivelmente entender signi-ficados como idias na mente, supondo-se que possamos compreender clara-mente, por sua vez, a idia de idias na mente. Pgaso, portanto, inicialmenteconfundido com um significado, acaba como urna idia na mente. O mais notvel ? fato de que o sr. Y, sujeito mesma motivao inicial que McX, devesseevitar essa bobagem particular e, em compensao, acabar com possveis norealizados.

    Voltemo-nos agora ao problema ontolgico dos universais: questo desaber se h entidades tais como atributos, relaes, classes, nmeros, funes.McX, bem caracteristicamente, acredita que h. Falando de atributos, ele diz:"H casas vermelhas, rosas vermelhas, ocasos vermelhos; tudo isso senso comumpr-filosfico, com o que todos devemos concordar. Essas casas, rosas e ocasostm, pois, algo em comum; e isso que eles tm em comum tudo o queentendo pelo atributo da vermelhido". Para McX, portanto, haver atributos

    7 CL Frege, "On Sense and Nominatum", in Feigl and Sellars (eds.), Readings in Philoso-phical Analysis, Appleton-CenturyCrofts, 1949, pp. 85102. Traduo de "Ueber Sino undBedeutung", Zeitschrl]t [uer Philosophle und Phllosophische Kritik 100. 1892, pp. 25-10.

    ainda mais bvio e trivial do que o fato bvio e trivial de haver casas, rosas eocasos vermelhos. Isso, creio eu, caracterstico da metafsica, ou ao menosdaquela parte da meta fsica chamada de ontologia: quem considera um enunciadodessa disciplina de algum modo verdadeiro, deve consider-Ia trivialmente verda-deiro. A antologia de cada um est na base do esquema conceitual por meiodo qual interpreta todas as suas experincias, mesmo as mais ordinrias. Julgadono interior de algum esquema conceitual particular - e de que outro modo possvel um juzo? - um enunciado ontolgico mantm-se por si, no reque-rendo absolutamente nenhuma justificao particular. Enunciados ontolgicosseguem-se imediatamente de toda espcie de enunciados casuais acerca de fatosordinrios, assim como - ao menos do ponto de vista do esquema conceitualde McX - "H um atributo" segue-se de "H casas vermelhas, rosas vermelhas,ocasos vermelhos".

    Julgado em outro esquema conceitual, um enunciado ontolgico que axio-mtico para a mente de McX pode, de modo igualmente imediato e trivial, serpronunciado falso. Algum pode admitir que haja casas, rosas e ocasos .ver-melhos, mas negar, exceto como uma maneira de dizer vulgar e traioeira, queeles tenham algo em comum. As palavras "casas", "rosas" e "ocasos" so verda-deiras de diversas entidades individuais que so casas e rosas e ocasos, e apalavra "vermelho", ou "objeto vermelho", verdadeira de cada uma das diversasentidades individuais que so casas vermelhas, rosas vermelhas, ocasos vermelhos;mas no h, alm disso, qualquer entidade, individual ou no, nomeada pelapalavra "vermelhido" nem, do mesmo modo, pela palavra "casidade", "rosi-dade", "ocasidade", Que as casas, rosas e ocasos sejam todos eles vermelhospode ser considerado algo fundamental e irredutvel, e pode-se sustentar qaeMcX no ganha nada, em termos de poder explicativo efetivo, com todas asentidades ocultas que ele pe sob nomes tais como "vermelhido".

    Uma das maneiras pelas quais McX poderia naturalmente ter-nos tentadoimpor sua antologia de universais j foi afastada, antes que nos voltssemos aoproblema dos universais. McX no pode argumentar que predicados corno "ver-melho" ou "-vermelho", que todos concordamos em empregar, devam ser enca-rados como nomes, cada um de uma nica entidade universal, a fim de seremde algum modo significativos. Isto porque vimos que ser nome de algo umtrao muito mais especfico do que ser significativo. Ele no pode nem mesmonos acusar - ao menos no por este argumento - de termos suposto um atri-buto de pegasearao adotarmos o predlcado "pegaseia",

    No entanto, McX descobre um estratagema diferente. "Aceitemos", diz ele,"essa distino entre significar e nomear que voc tanto preza. Aceitemos mesmoque '-vermelho', 'pegaseia', etc., no sejam nomes de atributos. Ainda assimvoc admite que possuem significados. Mas esses significados, sejam eles nomea-dos ou no, so ainda universais, e arrisco-me a dizer que alguns deles podemmesmo ser as prprias coisas que chamo de atributos, ou algo que em ltimaanlise resulte no mesmo."

    Para McX esse um discurso extraordinariamente penetrante; e no sei deoutra maneira de opor-me a ele seno recusando-me a aceitar significados. Noentanto, no sinto nenhuma relutncia em recusar-me a aceitar significados, poisnem por isso nego que palavras e enunciados sejam significativos. McX e eupodemos concordar literalmente em nossa classificao das formas lingsticasem significativas e assignficatvas, mesmo McX construindo a significatividadecorno o possuir (em algum sentido de "possuir") alguma entidade abstrata quechama de significado, enquanto eu no o fao. Contnuo livre para sustentarque o fato de que uma dada emisso lingstica seja significativa (ou signiiicante,

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    como prefiro dizer, de modo a no favorecer a hipstase de significados cornoentidades) 8 seja uma realidade fundamental e irredutvel; ou ento posso tentaranalis-Io diretamente em termos do que as pessoas fazem na presena da emissolingstica em questo e de outras semelhantes a ela.

    Reduzem-se a duas as maneiras teis como as pessoas ordinariamente falam,ou aparentemente falam, de significados: o ter significado, que a significncia,e a identidade de significado, ou sinonmia. O que chamamos dar o significadode uma emisso consiste simplesmente em emitir um sinnimo, freqentementeformulado numa linguagem mais clara. Se formos .alrgicos aos significadosenquanto tais, poderemos falar diretamente de emisses como sendo signiicantesou no significantes, e como sinnimas ou heternimas uma em relao outra.O problema de explicar esses adjetivos "significante" e "sinnimo" com algumgrau de clareza e rigor - de preferncia, a meu modo de ver. em termos decomportamento - to difcil quanto importante. 9 Mas o valor explicativo deentidades intermedirias especficas e irredutveis, chamadas de significados, certamente ilusrio.

    At agora argumentei que podemos empregar termos singulares significante-mente em sentenas, sem pressupor haver as entidades que esses termos pretendemnomear. Argumentei ainda que podemos empregar termos gerais, por exemplo,predicados, sem reconhec-los como nomes de entidades abstratas. Argumenteiainda que podemos encarar emisses como significantes, e sinnimas ou heter-nmas urna em relao outra, sem admitir um reino de entidades chamadas sig-nificados. Nesta altura McX comea a se perguntar se h algum tipo de limitepara nossa imunidade ontolgica, Nada do que possamos dizer nos comprome-te com a assuno de universais ou outras entidades que possamos julgar in-desejveis?

    J sugeri uma resposta negativa a essa questo, ao falar de variveis ligadas,ou variveis de quantificao, em conexo com a teoria das descries de Russell.podemos facilmente envolver-nos em compromissos ontolgicos dizendo, porexemplo, que h algo (varivel ligada) que casas e ocasos vermelhos tm em co-mum; ou que h algo que um nmero primo maior que um milho. Mas essa anica maneira de nos envolvermos em compromissos ontolgicos: pelo nosso usode variveis ligadas. O uso de supostos nomes no critrio, pois seu carter denome pode ser repudiado num piscar de olhos, a menos que a assuno de umaentidade correspondente possa ser descoberta entre aquilo que afirmamos emtermos de variveis ligadas. Os nomes so, de fato, totalmente rrelevantes parao problema ontolgico, pois mostrei, em relao a "Pgaso" e "pegasear", quenomes podem ser convertidos em descries, e Russell mostrou que descriespodem ser eliminadas. Tudo quanto dizemos com o auxlio de nomes pode serdito numa linguagem que os dispense totalmente. Ser assumido como entidade ,pura e simplesmente, ser reconhecido como o valor de uma varivel. Em termosdas categorias da gramtica tradicional, sso equivale aproximadamente a dizer queser estar no domnio de referncia de um pronome. Pronomes so os meiosbsicos de referncia; os substantivos, melhor seria-cham-los de propronomes.As variveis de quantificao, "algo", "nada", "tudo", percorrem toda a nossaantologia, qualquer que seja ela; e ficamos atados e uma pressuposio ontolgicaparticular se e somente se o pretenso pressuposto tiver que ser reconhecido entre

    B O sentido dessa observaD apenas se torna claro se alentamos elimologia do correspon-dente ingls da palavra "significativo": meaningjul = meaning (significado) + full (cheio).(N. do T.)9 Cf. Quine, From a Logica{ Point of Vie",. ed. ct., artigos 11 elIl.

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    as entidades que nossas variveis percorrem a fim de tomar uma de nossas afir-maes verdadeiras.

    Podemos dizer, por exemplo, que alguns ces so brancos e nem por issonos comprometemos a reconhecer ou a canidade ou a brancura corno entidades."Alguns ces so brancos" diz que algumas coisas que so ces so brancas; e, afim de que esse enunciado seja verdadeiro, as coisas que a varivel ligada "algo"percorre devem incluir alguns ces brancos, mas no precisam incluir a candadeou a brancura. Por outro lado, quando dizemos que algumas espcies zoolgicasse caracterizam pela fecundao por cruzamento, estam os .nos comprome-.tendo a reconhecer como entidades as diversas espcies, elas prprias, por maisabstratas que sejam. Permanecemos assim comprometidos ao menos at arqui-tetarmos alguma maneira de parafrasear o enunciado de modo a mostrar quea aparente referncia a espcies por parte de nossa varivel ligada era uma ma-neira de dizer evitvel. 10

    A matemtica clssica, como o exemplo dos primos maiores que um milhoilustra claramente, est envolvida at o pescoo por compromissos com uma onto-logia de entidades abstratas. Assim que a vasta controvrsia medieval sobre osuniversais reacendeu-se na moderna filosofia da matemtica. V-se o problemamais claramente agora do que antes, porque agora dispomos de um critrio maisexplcito para decidir com que ontologia uma dada teoria ou tipo de discursoest comprometida: uma teoria est comprometida com aquelas e apenas comaquelas entidades a que as variveis ligadas da teoria devem ser capazes de sereferir a fim de que as afirmaes feitas na teoria sejam verdadeiras.

    Porque esse critrio de pressuposio ontolgica no emergiu claramente natradio filosfica, os matemticos filsofos modernos em geral no perceberamque debatiam o mesmo e velho problema dos universais, em uma forma elu-cidada de maneira original. Mas as diferenas bsicas entre os modernos pontosde vista sobre os fundamentos da matemtica de fato reduzem-se bem explicita-mente a divergncias acerca do domnio de entidades a que as variveis ligadasdevem ser autorizadas a se referir.

    Os trs pontos de vista medievais mais importantes no que. concerne aosuniversais so designados pelos historiadores como realismo, conceituatismo e no-minalismo. Essencialmente, essas mesmas trs doutrinas reaparecem nas exposiesda filosofia da matemtica do sculo XX sob os novos nomes de ogicismo, intui-donismo e [ormalismo,

    O nudismo, tal como essa palavra empregada em conexo com a contro-vrsia medieval dos universais, a doutrina platnica de que universas ou entidadesabstratas possuem ser de modo independente da mente; a mente pode descobri-los,mas no pode cri-los, O logicismo, representado por Frege, Russell, Whitehead,Church e Carnap tolera o emprego de variveis ligadas para a referncia a entidadesabstratas conhecidas e desconhecidas, especificveis ou no, indiscriminadamente.

    O conceitualismo sustenta que h universais, mas que eles so produtos damente. O intuicionismo esposado modernamente, numa forma ou noutra, por Poin-car, Brouwer, Weyl e outros, assegura o emprego de variveis ligadas para areferncia a entidades abstratas apenas quando essas entidades podem ser prepa-radas individualmente a partir de ingredientes especificados de antemo, Segundoa formulao de Fraenkel, o logicsmo afirma que as classes so descobertas, en-quanto o intuicionismo afirma que elas so inventadas - de fato. uma maneiraimpecvel de. enunciar a velha oposio entre realismo e conceitu al ismo, Essa

    IC Para mais pormenores a esse respeito, cf. Quine. idem, artigo V1.

  • III

    II

    232 QUINE

    oposio ~o ~m mero jog? de p~la~ras; ela e~sencial.mente relevante no queconcerne a porao da matemtica clssica que alguem esteja disposto a subscrever.Logicistas ou realistas podem a partir de suas assunes, chegar s ordens ascen-dentes de infinito de Cantor; os intuicionistas so obrigados a parar na ordem deinfinito mais baixa e, como conseqncia indireta, a abandonar at mesmo algumasdas leis clssicas dos nmeros reais. 11 A moderna controvrsia entre logicismo eintuicionismo nasce, de fato, de divergncias acerca do infinito.

    O [ormalismo, associado ao nome de Hilbert, faz eco ao intuicionismo aodeplorar o recurso desenfreado do logicista a universais. Mas o formalismo tambmjulga o intuicionismo insatistatrio. Isso poderia ocorrer por uma de duas razesopostas. O formalista poderia, como o logicista, opor-se mutilao da mate-mtica clssica; ou poderia, com os nominalistas de antigamente, opor-se admis-so de quaisquer entidades abstratas, mesmo no sentido restrito de entidades pro-duzidas pela mente. O desfecho o mesmo: o formalista conserva a matemticaclssica como um jogo de notaes no significantes. Esse jogo de notaes pode,no obstante, ter sua utilidade - toda a utilidade que j mostrou possuir naqu~lidade de m~le~a. ~ar~ fsicos e tecnlogos. Mas utilidade no implica neces-sanamente em significncia, em qualquer sentido lingstico literal. Nem o sucessomarcante dos matemticos em desfiar teoremas e encontrar bases objetivas paraacordo recproco quanto aos resultados de cada um implica necessariamente emsignificncia. Isto porque uma base adequada para acordo entre os matemticospode ser encontrada simplesmente nas regras que governam a manipulao dasnotaes - essas regras sintticas sendo, ao contrrio das prprias notaes, per-feitamente significantes e inteligveis. 12

    Argumentei que o tipo de ontologia que adotamos pode ser relevante -especialmente no que diz respeito matemtica, embora trate-se apenas de umexemplo. Ora, como decidir diante de ontologias rivais? A resposta no cer-tamente proporcionada pela frmula semntica "Ser ser o valor de uma va-rivel"; pelo contrrio, essa frmula serve antes para testar a conformidade deuma certa afirmao ou doutrina com respeito a um critrio ontolgico prviu.Atentamos a variveis ligadas no contexto da ontologia no a fim de saber oque h, mas a fim de saber o que uma certa afirmao ou doutrina, nossa oude outrem, diz que h; enquanto tal, esse propriamente um problema que dizrespeito linguagem. Mas o que h uma outra questo.

    Na discusso acerca do que h, ainda h razes para operarmos num planosemntico. Uma razo escapar do embarao apontado no incio deste ensaio:o fato de no poder eu admitir que h coisas que McX sustenta e eu no. En-quanto eu estiver ligado minha ontologia, oposta que de Mc X, no podereipermitir que minhas variveis ligadas se refiram a entidades que pertenam antologia de McX e no minha. Posso, no entanto, descrever coerentementenossa divergncia, caracterizando os enunciados que McX afirma. Desde que

    I

    III

    " Cf. Quine, idem, pp. 125 e ss.12 Cf. Goodman e Quine, "Steps toward a constructive nominalism", Iournal 01 SvmbolicLogic 12 (1947), pp. 105-122. (Para que o leitor no seja levado a entender mal certas pas-sagens do presente artigo ao tentar reconcili-Ias com a sentena francamente exortativa queabre o artigo citado, gostaria de dizer que hoje preferiria tratar essa sentenca como umenunciado hipottico de condies para a construo em causa.) Para uma discusso maisampla sobre as questes gerais tratadas nas duas ltimas pginas, cf. Bernays, "Sur le plato-nsme dans les mathrnatiques", L'Enseignement Mathmatique 34 (193536), pp. 52-69:Fraenkel, "Sur Ia notion d'existence dans les mathmatiques", idem. pp. 18-32; Black, TheNature oi Mtuhematics, Kegan Paul, Londres. 1933 e Harcourt Brace, Nova York, 1934.

    SOBRE O QUE H 233

    minha ontologia simplesmente admita formas lingsticas, ou ao menos inscri-es concretas e emisses, posso falar a respeito das sentenas de McX.

    Outra razo para retirarmo-nos a um plano semntico encontrar terrenoc~mum para argumentar. Divergncia.s quanto ontologia ~nvolvem divergnciasb~s~cas, quanto a esquemas conceituais; entretanto, a despeito dessas divergnciasbsicas, McX. ~ eu ~am.o-nos con,ta de que nos.sos esquemas conceituais convergemem suas ram~ICa~oes mte:medlanas e. supeno!e~ o bastante para capacitar-nosa urna comurncaao proveItosa. a respeito de tOplCOScom? poltica, tempo e, emparticular, linguagem. Na medida em que nossa controvrsia bsica sobre onto-logia puder ser transformada numa _controvrsia s~~ntica ac~ra de palavras edo que fazer com elas, a degenerao da controvrsia em peltes de princpiospoder ser adiada.

    No de admirar, pois, que controvrsias ontolgicas devam levar a contro-vrsias sobre linguagem. Mas n

  • 234 QUINE \ SOBRE O QUE H 235virtude da maneira como inumeros eventos sensveis dispersos passam a ser as-sociados aos chamados objetos singulares; e mais, no nada verossmil que todasentena a respeito de objetos fsicos possa efetivamente ser traduzida, nem mesmode modo tortuoso e complexo, na linguagem fenomenalista. Objetos fsicos soentidades postuladas que uniformizam e simplificam nossa considerao do fluxoda experincia, assim ~omo a introduo dos nmeros irracionais simplifica asleis da aritmtica. Do ponto de vista exclusivo do esquema conceitual da aritmticaelementar dos nmeros racionais, a aritmtica mais ampla dos nmeros racionaise irracionais teria o estatuto de mito conveniente, mais simples que a verdadeliteral (a saber, aritmtica dos racionais) e, no entanto, contendo essa verdadeliteral como parte dispersa. Analogamente, de um ponto de vista fenomenalista oesquema conceitual dos objetos fsicos um mito conveniente, mais simples quea verdade literal e, no entanto, contendo essa verdade literal como parte dispersa. 13

    E quanto a classes ou atributos de objetos fsicos, por seu lado? Uma ontologiaplatnica dessa espcie , de um ponto de vista de um esquema conceitual, estri-tamente fisicalista, um mito, tanto quanto o prprio esquema conceitual fsica-lista o para o fenomenalismo. Esse mito mais elevado, por sua vez, bom etil, na medida em que simplifica nossa considerao da fsica. Sendo a mate-mtica uma parte integrante desse mito mais elevado, a utilidade desse mito paraa cincia fsica suficientemente evidente. Referindo-me a ele, apesar disso, comoa um mito, fao eco quela filosofia da matemtica a que aludi anteriormente sobo nome de formalismo. Mas uma atitude formalista poderia, com o mesmo direito,ser adotada em relao ao esquema conceitual fsico, por sua vez, pelo esteta oufenomenalista puro.

    A analogia entre o mito da matemtica e o mito da fsica , por algunsaspectos suplementares e talvez fortuitos, visivelmente estreita. Considere-se, porexemplo, a crise precipitada nos fundamentos da matemtica, no incio do sculo,pela descoberta do paradoxo de Russell e outras antinomias em teoria dos con-juntos. Essas contradies tiveram que ser obviadas por meio de artfcios ad hoc,no intuitivos; 14 nossa produo matemtica de mitos tornou-se deliberada eevidente a todos. E quanto fsica? Surgiu uma antinomia entre as explicaesondutatria e corpuscular da luz; e se ela no rigorosamente uma contradio,como o o paradoxo de Russell, suspeito que isso ocorra por no ser a fsicato rigorosa quanto a matemtica. Do mesmo modo, segunda grande crise mo-derna nos fundamentos da matemtica - precipitada em 1931 pela prova deGoedel 15 de que h inevitavelmente enunciados indecidveis em aritmtica -corresponde, em fsica, o princpio da indeterminao de Heisenberg.

    Em pginas anteriores empenhei-me em mostrar que alguns argumentoscomuns em favor de certas ontologias so fala ciosos. Adiantei, em seguida, umcritrio explcito para decidir quais os compromissos ontolgicos de uma teoria.Mas a questo de saber que ontologia efetivamente adotar permanece ainda aberta,e o conselho bvio tolerncia e esprito experimental. Usemos de todos os meiospara verificar quanto do esquema conceitual fisicalista pode ser reduzido a umIenomenalista; ainda assim, a fsica tambm requer, naturalmente, ser levadaadiante, mesmo se irredutvel in tato. Verifiquemos como e em que grau pode-se

    tornar a cincia natural independente da matemtica platnica; mas tambm le-vemos adiante a matemtica, e aprofundemo-nos em seus fundamentos platnicos.

    Dentre os vrios esquemas conceituais mais apropriados a essas vrias em-presas, um deles - o fenomenalista - reivindica prioridade epistemolgica.Encaradas do interior do esquema conceitual fenomenalista, as ontologias dosobjetos fsicos e dos objetos matemticos so mitos. A qualidade de mito, noentanto, relativa; relativa, nesse caso, ao ponto de vista epistemolgico. Esseponto de vista um entre vrios, correspondendo a um entre vrios de nossosinteresses e propsitos.

    13 A analogia aritmtica deve-se a Frank, Modern Science and its Philosophy, Harvard Uni-versity Pre55, Carnbridge, 1949, pp. 108 e 55.1< Cf. Quine, idem, pp. 90 e 55., 96 e 55., 122 e 55." CL Goedel, "Ueber formal unentscheidbare Satze der Principia Mathematica und verwandterSysterne", Monarshejte juer Mathematik und Physik 38 (1931), pp. 173-198. (Para um exameimrodutrio e mais referncias. -cf. Quine, Methods oi Logic, ed. cit., pp. 245 e 55.) l