PAHO/WHO Immunology Research And Training Centre ... · imunologia, descrever o contexto em que o...

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1 PAHO/WHO Immunology Research And Training Centre - Instituto Butantan: Uma contribuição para o desenvolvimento da Imunologia no Brasil. Cristiano Corrêa de Azevedo Marques, Olga Sofia Faberge Alves, Sabrina Acosta, Sarah Regina de Souza Botelho, Paulo Henrique Nico Monteiro, Nelson Ibanez. Laboratório Especial de História da Ciência CDC Instituto Butantan SP. Introdução No início da década de 1960, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece no campo da imunologia um caminho promissor para a busca de novas perspectivas para o controle de doenças infectocontagiosas, seja na área diagnóstica, seja na área de imunização, reafirmando que o esforço de controle dessas doenças, especialmente em países em desenvolvimento, constituía sua missão e deveria ser compreendido como parte fundamental de seus programas. Doenças como a cólera e a malária foram vistas como alvos centrais desse projeto e o esforço para o desenvolvimento de diagnósticos mais rápidos e precisos (sensibilidade e especificidade), com vacinas eficazes e seguras tornou-se prioritário (WHO, 1969). Sendo na época um campo emergente, a OMS constata ser necessária uma ação coordenada e de amplitude global para a consolidação desse campo. Nesse sentido, afirma seu papel ao declarar que The role of WHO was thus to endeavour to extend the teaching of immunology in medical schools and in post-graduate education as well as to encourage basic immunologists to conduct research into the diseases representing a public health problem in some areas of the world and then to make these results as widely available as possible, and to encourage and to advise on their application (WHO, 1969, p.02).

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PAHO/WHO Immunology Research And Training Centre - Instituto Butantan:

Uma contribuição para o desenvolvimento da Imunologia no Brasil.

Cristiano Corrêa de Azevedo Marques, Olga Sofia Faberge Alves, Sabrina Acosta,

Sarah Regina de Souza Botelho, Paulo Henrique Nico Monteiro, Nelson Ibanez.

Laboratório Especial de História da Ciência – CDC – Instituto Butantan – SP.

Introdução

No início da década de 1960, a Organização Mundial de Saúde (OMS)

reconhece no campo da imunologia um caminho promissor para a busca de novas

perspectivas para o controle de doenças infectocontagiosas, seja na área diagnóstica,

seja na área de imunização, reafirmando que o esforço de controle dessas doenças,

especialmente em países em desenvolvimento, constituía sua missão e deveria ser

compreendido como parte fundamental de seus programas. Doenças como a cólera e a

malária foram vistas como alvos centrais desse projeto e o esforço para o

desenvolvimento de diagnósticos mais rápidos e precisos (sensibilidade e

especificidade), com vacinas eficazes e seguras tornou-se prioritário (WHO, 1969).

Sendo na época um campo emergente, a OMS constata ser necessária uma ação

coordenada e de amplitude global para a consolidação desse campo. Nesse sentido,

afirma seu papel ao declarar que

The role of WHO was thus to endeavour to extend the teaching of

immunology in medical schools and in post-graduate education

as well as to encourage basic immunologists to conduct research

into the diseases representing a public health problem in some

areas of the world and then to make these results as widely

available as possible, and to encourage and to advise on their

application (WHO, 1969, p.02).

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A partir desse entendimento e da constatação de que “apesar das doenças

tropicais que afetam grande parte da população mundial estarem associadas a

fenômenos imunológicos [...], o número de pesquisadores engajados em tentativas de

mensurar e interpretar essas respostas imunológicas é muito pequeno” (WHO, 1969,

p.10), foi estabelecido em 1963 um programa em escala mundial voltado ao

desenvolvimento de pesquisas em imunologia. Para tanto, foram definidas seis áreas de

atuação.

Essas áreas compreendiam: 1) o fomento às atividades de formação com o

estabelecimento de treinamentos e parcerias internacionais; 2) o estabelecimento de 11

centros mundiais de referência em imunologia; 3) a afirmação da importância da

inserção da imunologia como disciplina do currículo das escolas de medicina; 4) a

colaboração com outros programas da OMS, como cuidados materno-infantis e doenças

específicas, dentre outros e 5) a definição e normalização de nomenclatura básica do

campo, que até então constituía um entrave para o estabelecimento de parcerias entre

grupos de pesquisa e para o estabelecimento de protocolos comuns.

A sexta estratégia para a consolidação do campo, e considerada como ação

fundamental por um grupo de especialistas da OMS reunidos 1964, era a urgente

necessidade de formar, em escala mundial, de especialistas na área

Prime emphasis [for research program in immunology] was

placed for all groups on the urgent and importance of training

immunologists, as basis for the development of immunology in

the future. It should include training not only in developing

countries but also in developed countries where immunology is

relatively neglected (WHO, 1964).

Para tanto foram estabelecidos e financiados pela OMS centros de pesquisa e

treinamento em imunologia (Immunology Research and Tranning Centre – IRTC) em

países em desenvolvimento, em pontos estratégicos, que deveriam trabalhar sob a

coordenação do WHO- IRTC, localizado no Instituto de Bioquímica da Universidade de

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Lausanne, Suíça. Esses centros deveriam, além de formar especialistas na área,

desenvolver pesquisas relacionadas aos problemas de saúde pública regionais.

A OMS justificava essa proposta ao afirmar que

The main method was the establishment of research and training

centres in Ibadan, Nigeria (for Africa), in Sao Paulo, Brazil and

in Mexico City, Mexico (for Latin America) and in Singapore

(for South-East Asia and the Western Pacific) with a coordinating

base centre in Lausanne, Switzerland. These centres organize

courses in immunological concepts and in immunological

techniques (Annex III). The centres also conduct research. The

research projects are carried out in collaboration with the host

institution and with teaching and research institutions in the area.

Experienced consultant immunologists visit the centres in order

to lecture and to collaborate with local medical personnel who are

interested in immunology, with the aim of breaking through their

scientific isolation and creating contact between them and places

where immunology is well developed (WHO, 1969, p. 02).

No que tange às Américas, foram criados em 1966 o PAHO/WHO Immunology

Research and Trainning Centre em São Paulo, Brasil, e o PAHO/WHO Immunology

Research and Trainning Centre, na Cidade no México, ambos sob a coordenação da

Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).

O Centro brasileiro foi instalado na Escola Paulista de Medicina (EPM) atual

UNIFESP em 1966 e em 1969, passou a desenvolver suas atividades no Instituto

Butantan (relatório Twelfth Meeting of the Advisory Committee on Medical Research,

1973), onde permaneceu, ativo até 1987. Cabe ressaltar que nos anos 1980, o curso

adquire um caráter itinerante sendo ministrado em outros estados brasileiros,

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especificamente na região nordeste do Brasil, na tentativa de reduzir as desigualdades

regionais1 (PAHO, 1976; e Relatório de Gestão do IB, 1981).

O presente trabalho tem como objetivo analisar o PAHO/WHO Immunology

Research and Trainning Centre, São Paulo, unidade de pesquisa e formação em

imunologia, descrever o contexto em que o curso foi desenvolvido, seus objetivos e

conteúdos, público-alvo e atividades, identificando os principais personagens (docentes

e alunos) que se destacaram na consolidação desta área do conhecimento. Serão

apresentados os desdobramentos dessa ação de caráter regional, no estabelecimento da

imunologia como campo de conhecimento no Brasil e na América Latina, assim como

suas influências na formação de uma geração pioneira de imunologistas na região.

Método

Foi realizada pesquisa documental em bases de dados eletrônicos da OMS e da

OPAS, em documentos oficiais e relatórios de gestão do Instituto Butantan e

documentos da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI). Além disso, foram feitas

entrevistas semiestruturadas com cinco pesquisadores que participaram do curso

realizado pelo IRTC São Paulo como professores e/ou alunos e que atualmente são

líderes de grupos de pesquisa do Instituto Butantan.

Breve histórico do campo da imunologia no Brasil

Para Santos & Rumjaneck (2001), os primeiros movimentos do que poderia ser

considerado o campo da imunologia no Brasil podem ser observados no final do século

XIX, era de ouro do desenvolvimento de vacinas e do Instituto Pasteur de Paris.

Naquele período verifica-se a constituição de importantes instituições na ciência

biomédica brasileira, dentre elas o Instituto Bacteriológico em 1892; o Instituto

1 O convênio entre o Instituto Butantan e a OPAS permaneceu ativo até 1990. O IRTC passou a ser uma

unidade de pesquisa, transformando-se posteriormente no Laboratório de Imunopatologia, que passou a

desenvolver suas atividades em parceria com programas de pós-graduação da Universidade de São Paulo.

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Serumterápico de Manguinhos em 1900 (Atualmente, FIOCRUZ) e o Instituto

Serumterapico de São Paulo (atual Instituto Butantan), em 1901.

Um dos marcos nos estudos desenvolvidos nesse período no campo que

futuramente seria denominado como imunologia foi o debate travado acerca do soro

antiofídico. Albert Calmette defendia a existência de um soro universal para o

tratamento de vítimas de acidentes com serpentes. A partir dos estudos de Vital Brazil

desde o final do século XIX, foi reconhecida pela comunidade internacional a

especificidade do soro antiofídico, refutando a tese de Calmette, na França, do soro de

caráter universal. (SANT’ANNA, 2007).

Em 1941, Otto Bier, na época pesquisador do Instituto Biológico de São Paulo e

que foi diretor do Instituto Butantan a partir de 1944, escreve o primeiro livro de

referência em imunologia em língua portuguesa, a partir de anotações realizadas no

curso de “bacteriologia e imunologia” por ele ministrado na então Escola Paulista de

Medicina.

Nas décadas de 1940-50, o Instituto Biológico congregava um grupo de

pesquisadores que podem ser considerados um dos pioneiros no campo da imunologia

no Brasil e que viriam a se constituir como uma das referências para a primeira geração

de imunologistas brasileiros, dos quais pode-se destacar: Maurício Rocha e Silva,

Wilson Teixeira Beraldo e Gastão Rosenfeld. Além destes, Nelson Vaz, oriundo da

escola de Manguinhos, em conjunto com Bernard Levine, realizaram nos Estados

Unidos da América estudos pioneiros sobre imunotolerância. (SANT’ANNA, 2007)

A despeito deste início distante e de certa forma precoce, a imunologia brasileira

somente se organizou em uma sociedade em 1972 (SBI, 2016), com menos de 20

membros. Sua primeira diretoria era composta por cientistas de renome que lideravam a

pesquisa neste campo: Otto Guilherme Bier (Presidente) ; Humberto de Araújo Rangel

(1º Vice‐Presidente); Antonio de Oliveira Lima (2º Vice‐Presidente); Ivan da Mota e

Albuquerque (Secretário Geral); Wilmar Dias da Silva (1º Secretário); Nelson M. Vaz

(2º Secretario); Benedito de Oliveira (1º Tesoureiro) e Maria Siqueira Pinheiro (2º

Tesoureiro). Destes, quatro eram vinculados ao Instituto Butantan.

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Nos últimos anos, a imunologia brasileira vive um momento de grande produção

acadêmica. Um estudo do Ministério de Ciência e Tecnologia de 2002 mostrou que a

produção da Imunologia brasileira ocupava o 11° lugar na pesquisa mundial em

imunologia, enquanto a ciência brasileira ocupava o 17° lugar na produção científica

mundial, (SBI, 2016). Verificamos hoje que no Brasil existe uma geração de líderes de

pesquisa em imunologia que tem uma produção consistente tanto nacional quanto

internacionalmente. Nesse sentido, um dos elementos fundamentais para este

desenvolvimento foi o Centro de pesquisa e treinamento da OPAS no qual se formaram

algumas das atuais lideranças da pesquisa em imunologia no Brasil.

O Centro de Pesquisa e Treinamento em Imunologia em São Paulo: contexto de

criação e atividades principais

O Centro de Pesquisa e Treinamento em Imunologia em São Paulo da

OPAS/OMS (PAHO/WHO Immunology Research and Training Center – IRTC) foi

criado em 1966 no departamento de Microbiologia e Parasitologia da Escola Paulista de

Medicina (EPM), atual Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A partir de um

acordo estabelecido em entre a OPAS, a Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo e a

Universidade de São Paulo, o IRTC passou, em 1969, a funcionar no Instituto Butantan.

Vale ressaltar que a mudança do Centro para o Butantan ocorreu em função de

uma troca de poderes na Escola Paulista de Medicina, gerada em grande parte por uma

greve estudantil, em um momento politicamente controverso da história nacional

levando à deposição do reitor, de diversos professores, assim como de grande parte da

equipe do Centro (IRTC) (HANKINS, 2001).

Nos primeiros anos de funcionamento o Centro foi dirigido pelo Professor Otto

G. Bier, que “cansado das atividades burocráticas e com desejo de “voltar à bancada

(HANKINS 2001, p. 257) indicou o Professor Ivan Mota para substitui-lo a partir de

1971. (PAHO, 1976; HANKINS 2011). Em sua entrevista ao Centro de Pesquisa e

Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), Bier cita sua passagem

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pela OMS entre 1963-1966 e pela OPAS entre 1965-1969, como fundamentais para

trazer o Centro para o Brasil.

Em 1963, fui convidado para membro do Comitê de Pesquisas da

Organização Mundial de Saúde, em substituição do Prof. Carlos

Chagas [...]. A sugestão foi aceita e fiquei indo, anualmente, a

Genebra para esse Comitê, durante os anos de 1963, 1964, 1965,

1966 [...]. Graças a essa filiação pude trazer para o Brasil o

Centro Treinamento em Imunologia patrocinado pela OMS

(BIER, 2010)

Entre os convocados para a tarefa de montar o curso estava Wilmar Dias da

Silva, então pesquisador de uma instituição nos Estados Unidos. A partir desse convite

em 1969, Wilmar volta ao Brasil e passa a fazer parte do primeiro grupo de professores

do curso do IRTC no Butantan.

Quando eu estava mudando para Connecticut [para trabalhar na

Universidade de Connecticut], eu recebi um telefonema do

professor Otto Guilherme Bier. Isso foi em 69. Ele me ligou; eu o

conhecia de nome, era uma figura ícone da ciência médica,

conhecido pela liderança, pela inteligência. E naquela época a

imunologia estava realmente começando a aparecer. Ele disse:

“Wilmar, quem fala aqui é o professor Otto Bier, você não vai

para Connecticut, você volta para o seu país; você tem

compromisso com o seu país, para nós desenvolvermos aqui a

Imunologia, que está emergindo [...] eu acabei de implantar no

Instituto Butantan o Centro de Formação de Imunologia da

WHO. Já arrumei um contrato para você e estou te esperando

aqui (SILVA, W.,2014).

O Centro estruturava suas atividades a partir de um curso anual de quatro meses

em imunologia básica que compreendia aulas teóricas, seminários e atividades

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laboratoriais com atividades de tempo integral. Com a mudança para o Instituto

Butantan em 1969, foi criada com apoio da OPAS e da Fundação de Amparo à Pesquisa

do Estado de São Paulo (FAPESP) uma estrutura laboratorial e de pesquisa de

aproximadamente 600 m2 e contava, já em 1971, com a dedicação exclusiva de três

pesquisadores do Instituto Butantan.

Em concordância com as diretrizes e objetivos da OPAS, o caráter

internacionalista do curso fica evidente. Todas as atividades eram desenvolvidas em

inglês e o curso recebia professores de diversos países e instituições como convidados.

Esse intercâmbio suscitava, além das atividades inerentes ao curso, a possibilidade de

troca de experiências entre esses professores, que eram oriundos de centros de

excelência científica, e demais pesquisadores e grupos de pesquisa brasileiros. Tais

elementos corroboram ou podem auxiliar na explicação do rápido crescimento da

imunologia no Brasil (SANTOS; RUNJANEK, 2001) e seu destaque alcançado entre as

disciplinas melhor posicionadas no ranking mundial de produtividade (SBI, 2016).

Nos dez primeiros anos de funcionamento do IRTC em São Paulo foram recebidos 21

professores estrangeiros, de 18 instituições distintas de sete países (Argentina, Austrália,

Canadá, França, Inglaterra, Israel e Estados Unidos da América). O curso era

coordenado por uma equipe do próprio Centro (IRTC), e 12 pesquisadores brasileiros de

renome que também participaram como convidados das atividades do curso (tab. 1).

Esse mesmo caráter internacional se expressa no corpo discente. Entre 1966 e

1983 foram formados pelo menos 204 imunologistas, sendo que destes 176 do Brasil e

25 estrangeiros. Isto significou um importante aporte para formação de uma massa

crítica para a consolidação desta disciplina no País e na América Latina.

As atividades do centro se assentavam no binômio ensino-pesquisa e durante os

quatro meses do curso os alunos deveriam participar de aproximadamente 600 horas de

atividades, dentre as quais um mínimo de 320 horas deveriam ser dedicadas ao trabalho

laboratorial. Os alunos passavam por avaliações parciais no decorrer do curso – que

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eram requisitos para a continuidade no mesmo - e a avaliação final era realizada por

especialistas designados pela OMS para essa tarefa.

O IRTC e o campo da imunologia no Brasil e nas Américas: influências e legado

Dada sua amplitude regional, qualificação do corpo docente e aporte de

infraestrutura o IRTC de São Paulo pode ser considerado como um referencial para a

constituição do campo da imunologia no Brasil e na América Latina.

Um primeiro aspecto a ser apontado é o fato de que, a partir de sua experiência

no IRTC, profissionais provenientes de áreas como a parasitologia, microbiologia,

patologia, histologia e bioquímica (SANT’ANNA, 2007), se decidiram definitivamente

pelo campo da imunologia. O depoimento a seguir exemplifica esse aspecto, “nunca fui

uma pessoa que gostasse de ficar trancada numa sala. Até que eu vi, na universidade, o

curso de Imunologia que ia ser ministrado por Dr. Ivan Mota que era pesquisador do

Butantan” (Entrevistado 1, 2014).

O próprio diretor afirma, em documento para a OPAS que

As a result of the solid immunological background acquired in

the Course on Basic Immunology many of the students decisively

focused their interest in immunology research and some of them

were sent abroad for further training in high level laboratories, in

Europe and the United States […]. In this way the IRTC is

accomplishing role of selecting good candidates to become future

first class researchers in the field of Immunology. (PAHO,1976)

Outra contribuição do IRTC e sua parceria com a Universidade de São Paulo foi

o encaminhamento de alunos à pós-graduação, inclusive no exterior, o que era raro na

época:

a gente trabalhava numa linha de Doença de Chagas e convivia

muito mais com a Universidade do que com o Instituto

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propriamente dito. Inclusive recursos, tudo era independente do

Instituto, assim eu tive possibilidade de desenvolver a pós-

Graduação, pesquisa, aprender, ir para congresso, algo que, na

época, era muito difícil [no Instituto]. (Entrevistado 2, 2014)

Estes e outros desdobramentos propiciaram a formação de uma geração de

especialistas em imunologia que acabaram por se tornar referência na área. Dois dos ex-

alunos entrevistados destacam esse papel ao afirmarem que: “tinha esse curso de

formação em Imunologia que a OMS patrocinava, vinham professores de fora. Eu diria

que a maioria dos imunologistas acima dos 55 anos passaram por aqui. A gente vem

dessa tradição” (SILVA A., 2014), e: “logo que me formei, eu fui fazer o curso da

OMS, fui muito bem no curso, os professores queriam me levar para fora”.

(Entrevistado 3, 2014). O professor Wilmar da Silva reforça essa ideia ao afirmar que:

“ele (Bier) trazia pessoas importantíssimas de fora, dávamos o curso e formamos aí um

contingente fabuloso de novos imunologistas. A maioria dos imunologistas que está

aqui em liderança são ex-alunos daqui.” (SILVA, W., 2014).

Portanto, parece claro que o intercâmbio com professores e pesquisadores

estrangeiros exerceu forte influência nessa geração de pioneiros e acabou por definir

objetos e linhas de pesquisa que permanecem ativas até hoje no Butantan, “ o Dr. Otto

Bier era o coordenador do curso e o Dr. Guido Biozzi vinha dar aulas. Eram meses de

tempo integral. Muitos imunologistas da minha geração foram formados nesse curso.

Depois, infelizmente, terminou. Mas nesse curso, muitas linhas de pesquisa foram

estabelecidas por conta dessas visitas” (Entrevistado 4, 2014).

Um segundo aspecto a ser ressaltado é o desenvolvimento de material

instrucional no campo da imunologia. Como um dos objetivos da OMS/OPAS na

implementação dos IRTC nas várias regiões consistia na introdução da disciplina de

Imunologia nas escolas médicas, a disponibilização de material didático era

fundamental. Outro desdobramento das atividades do IRTC-SP sob a direção de Bier foi

a edição, em 1971, do primeiro livro dedicado à imunologia em Língua Portuguesa. De

acordo com Bier:

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Quando começamos a preocupar-nos com a formação dos

estudantes pós-graduados em Imunologia, sentimos uma outra

dificuldade: a inexistência de um livro de textos que pudesse

servir ao estudante pós-graduado. Associei-me, então, a três

colegas para escrevermos um livro sobre a Imunologia, cuja

pretensão, era, apenas, servir ao estudante pós-graduado. O Dr.

Ivan Mota (que, quando me afastei para ser coordenador, indiquei

para diretor do Centro, ainda o sendo atualmente); o Dr. Wilmar

Dias da Silva, que estava em Belo Horizonte e veio para

colaborar com o Centro; e o Dr. Nelson Vaz, imunologista muito

talentoso, professor na Faculdade Fluminense de Medicina,

atualmente, nos Estados Unidos (BIER, 2010 p.21).

O livro, cuja primeira edição data do mesmo período, tem o prefácio do Dr.

Benacerraf - prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1980 pelo descobrimento dos

complexos de histocompatibilidade. Nele, o eminente imunologista ressalta o

crescimento explosivo das subdisciplinas como imunoquímica, imunogenética,

imunologia celular, imunopatologia e outras, assim como a capacidade dos autores de

reunirem todas essas informações em um compêndio com rigor e espírito crítico. (BIER

et al. 2003). Vale ressaltar que esse livro foi traduzido para outros quatro idiomas, “para

vocês terem uma ideia da importância que o Bier tinha em suas conexões internacionais,

imediatamente o livro foi traduzido para o inglês. Depois, para alemão, depois para

tcheco, depois para húngaro e finalmente, para japonês” (Silva W. , 2016).

Um terceiro aspecto diz respeito à influência do IRTC na criação de grupos de

pesquisa em imunologia no país, assim como na criação da Sociedade Brasileira de

Imunologia em 1972, como já referido. A criação do departamento de imunologia no

Instituto de Ciências Biológicas do Universidade de São Paulo (ICB-USP) teve forte

determinação e também pode ser considera como um desdobramento do IRTC,

O curso já tinha cumprido o seu papel, estava para encerrar; aí

abriu um concurso para a USP e eu fui para lá em 75. Aí eu fui

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para a USP; lá eu fui encarregado de organizar o Departamento

de Imunologia; eu organizei, que antes era junto com a

Microbiologia e eu separei. Depois fui organizar o curso de Pós-

Graduação em Imunologia” (SILVA, W, 2014).

Além disso, o aporte de infraestrutura e a fixação de pesquisadores especialistas

na área no Instituto Butantan decorrentes do IRTC resultou na criação do Laboratório de

Imunopatologia do Instituto que permanece ativo e produtivo até hoje.

Segundo Mota, já na década de 1970, a influência do IRTC também podia ser

vista em outras instituições

A further indication of the influence exerted by the IRTC in the

development of Immunology in S. Paulo is the strong group of

immunologists now working at the Instituto Biológico in S.

Paulo. In that Institution are being developed research projects on

immunogenetics and on immunoglobulins of different animal

species with the collaboration of two visiting-professors of the

IRTC Immunology Course and of one former member of the

permanent staff of the Center. (PAHO,1976)

Por fim, vale apontar que a produção acadêmica de qualidade em periódicos

científicos renomados, “research in this early period was highly productive and led to

many publications in international journals such as Immunology and the American

Journal of Epidemiology.” (HANKINS, 2001, p.255). Entre 1966 e 1976 foram

publicados 21 artigos resultantes de pesquisas conduzidas no IRTC (PAHO, 1976), num

primeiro momento relacionados à estrutura e funcionamento dos anticorpos, passando

posteriormente a temas como a Doença de Chagas e ao Pênfigo Foliáceo - Pemphigus

foliaceus -, dentre outros (HANKINS, 2001).

Considerações finais

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A OMS e a OPAS envidaram esforços a partir da década de 1960 na

consolidação da imunologia como campo de conhecimento. Para tanto, centros de

excelência em pesquisa e formação de pesquisadores foram criados e apoiados em

diversas partes do mundo. O IRTC de São Paulo foi um deles e foi um elemento

fundamental para a consolidação da imunologia no país e na América Latina,

desenvolvendo pesquisas de ponta em temas relacionados aos problemas de saúde locais

e regionais. Dada sua atuação foi formada uma geração de imunologistas brasileiros que

exerceu e continua exercendo o papel de liderança científica no país.

O depoimento do Professor Wilmar Dias da Silva, quando da comemoração dos

40 anos de criação do Centro é emblemático nesse sentido,

O “PAHO/WHO Immunology Research and Training Centre”

ministrou seu último curso em 1987. Havia atingido seus

objetivos. As primeiras gerações de imunologistas sul-americanos

estavam formadas, ensinando, pesquisando, preparando pessoal.

Contribuiu, certamente, para o avanço da imunologia no Brasil.

Um exame da lista dos estudantes que frequentaram cursos

ministrados pelo “PAHO/WHO Immunology Research and

Training Centre” mostra que parte substancial desses estudantes

ocupa, hoje, posições de destaque na carreira acadêmica como

professores, cientistas, formadores de pessoal, em hospitais e

serviços médicos, e mesmo em empresas privadas produtoras de

reagentes imunológicos ou afins." (SILVA, W., 2008).

Esses resultados e o legado deixado pelo IRTC – São Paulo apontam que ações

como estas, de caráter mundial e regional, coordenadas por entidades como a OMS e a

OPAS podem se constituir como fundamentais para a consolidação de campos de

conhecimento, especialmente em países em desenvolvimento, assim como para

enfrentamento de problemas de saúde de características regionais ou mesmo locais, que

não necessariamente fazem parte da agenda de pesquisa dos centros de pesquisa já

estabelecidos.

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Entrevistado 1. Entrevista ao LEHC, Instituto Butantan a Cristiano C. de A. Marques.

São Paulo, 2014.

Entrevistado 2. Entrevista ao LEHC, Instituto Butantan a Cristiano C. de A. Marques e

Olga S. F. Alves. São Paulo, 2014.

Entrevistado 3. Entrevista ao LEHC, Instituto Butantan a Cristiano C. de A. Marques e

Olga S. F. Alves. São Paulo, 2014.

Entrevistado 4. Entrevista ao LEHC, Instituto Butantan a Olga S. F. Alves e Cristiano

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Nome Local Instituição

J.A. Andrade Argentina - Buenos Aires Dept. de Endocrinologia, Hosp Tarnú

A. Szenberg Austrália - Melbourne Walter and Elisa Institute of Medical Research

Wilmar Dias da Silva Brasil - Belo Horizonte Depto de Imunologia Instituto de Ciências

Médicas

Benedito de Oliveira Brasil - Campinas Depto de Imunologia, Unicamp

L. S. Prigenzi Brasil - Campinas Depto de Imunologia, Unicamp

A. de Oliveira Lima Brasil - Rio de Janeiro Laboratório de Imunologia, Escola de Medicina

Univ. Rio de Janeiro

S. Leal Prado Brasil - São Paulo Dept de Bioquímica, EPM

S. F. Lara Brasil - São Paulo Dept de Bioquímica, Instituto de Química, USP

Willy Beçak Brasil - São Paulo Instituto Butantan

Otto Bier Brasil - São Paulo Instituto Butantan

Mario Camargo Brasil - São Paulo Instituto de Medicina Tropical, USP

R. G. Ferri Brasil - São Paulo Dept de Microbiologia e Imunologia, Fac Med

USP

C. Fava Neto Brasil - São Paulo Depto de Microbiologia e Imunologia, Fac

Med USP

Maria Siqueira Brasil - São Paulo Divisão de Imunologia, Instituto Biológico

Claudio A.M.Sampaio Brasil - São Paulo Dep Bioquímica da Escola Paulista de

Medicina

E. Potworowski Canadá - Quebec Institute Armand-Frapier, Université du

Quebec

Robert Stroud EUA - Alabama FM U.Alabama

E.H.Beutner EUA - Buffalo Dept. of Bacteriology and Immunology, State

University of Buffalo

W.L. Hale EUA - Buffalo Dept. of Bacteriology and Immunology, State

University of Buffalo

Stewart Sell EUA - Califórnia Dep de Patologia da Esc Med da U.Califórnia

B. Waksman EUA - Connecticut Dept. of Pathology, Yale University

Nelson Vaz EUA - Denver The National Asthma Center

E.L.Becker EUA - Farmington Depart. of Pathology - The University

Connecticut School of Medicine

E. A. Kabat EUA - New York Columbia College of Surgeons

Victor Nussenzweig EUA - New York Dept. of Pathology, New York Univ.

Celso Bianco EUA - New York The Rockefeller University

Lamm EUA - New York Dep Bioquímica da U.NY

G. Voisin França - Paris Centre of Researches D’Immuno-Patologie,

Hospital Saint Antoine

R. Binaghi França - Paris Collége de France

G. Biozzi França - Paris Foundation Curie, Section of Biology

S. Avrameas França - Villenuif Inst Recherches Scientifiques Sur le Cancer

J.G. Howard Inglaterra - Kent The Wellcome Research Laboratories

C. Moreno Inglaterra – Kent The Wellcome Research Laboratories

Ivan Roitt Inglaterra - Londres Dept. of Immunology, The Middlesex Hospital

J. Pepys Inglaterra - Londres Inst Doenças Torácicas, Londres

18

J. L. Turk Inglaterra - Londres Royal College of Surgeons

Joseph Haimovich Israel - Rehonot Weisman Institute of Science

Ruth Arnon Israel - Rehonot Weisman Institute of Science

M. Sela Israel - Rehonot Weisman Institute of Science

M. Feldman Israel - Rehonot Weisman Institute of Science

Tabela 1 - Professores convidados para o curso de IRTC de São Paulo entre 1966 e 1976.

19

ANO Brasil A. Latina Total Observações

1966 05 0 05

1967 04 01 05

1968 04 02 06

1969 02 04 06

1970 09 01 10

1971 03 05 08

1972 05 03 08

1973 07 05 12

1974 05 01 06

1975 06 01 07

1976 ND ND _

1977 ND ND _ 3 cursos (1 externo na UFCE)

1978 ND ND _

1979 08 01 09

1980 07 00 07

1981 06 00 06 4 cursos (2 cursos externos na UFBA e na

FMUSP)

1982 12 00 12 2 cursos externos ICB-USP e UFAL

1983 ND ND _

1984 ND ND _

TABELA 2- Número de alunos Brasil/ Outros países A.L., por ano.