O advento da Lei Nacional de Convivência Familiar e a adoção

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457 Kelly Bizinotto* O adventO da Lei naciOnaL de cOnvivência FamiLiar e a adOçãO intuitu personae The aDvenT oF nacional law oF Family livinG anD intuitu personae aDopTion el aDvenimienTo De la ley nacional De la convivencia Familiar y la aDopción intuitu personae resumo: apesar de a doutrina da proteção integral ter sido pautada há mais de vinte anos, os dados atuais identificam um número significativo do público infanto-juvenil em acolhimento institucional. para con- tornar essa situação foi promulgada a Lei n. 12.010/09, que tentou aprimorar os dispositivos relacionados à colocação em família substituta, em especial a adoção. Contudo, estabeleceu-se a obrigatoriedade da inscrição no cadastro de adoção como requi- sito para tal procedimento e a proibição da adoção intuitu perso- nae. o presente trabalho visa apresentar as principais alterações trazidas pela referida Lei, enfatizando as disposições relacionadas à proibição da adoção intuitu personae face aos princípios da doutrina da proteção integral inerente à Constituição Federal de 1988 e à jurisprudência do superior tribunal de Justiça (stJ). abstract: Despite the doctrine of full protection has been ruled for more than twenty years, the current data identify a significant number of children and youth in residential care. to work around this situation was enacted * Bacharel em Direito pela UFG.

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apesar de a doutrina da proteção integral ter sido pautada há mais de vinte anos, os dados atuais identificam um número significativo do público infanto-juvenil em acolhimento institucional. para contornar essa situação foi promulgada a Lei n. 12.010/09, que tentou aprimorar os dispositivos relacionados à colocação em família substituta, em especial a adoção.

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Kelly Bizinotto*

O adventO da Lei naciOnaL de cOnvivência FamiLiar e a adOçãO intuitu personae

The aDvenT oF nacional law oF Family

livinG anD intuitu personae aDopTion

el aDvenimienTo De la ley nacional De la

convivencia Familiar y la aDopción intuitu personae

resumo:

apesar de a doutrina da proteção integral ter sido pautada há mais

de vinte anos, os dados atuais identificam um número significativo

do público infanto-juvenil em acolhimento institucional. para con-

tornar essa situação foi promulgada a Lei n. 12.010/09, que tentou

aprimorar os dispositivos relacionados à colocação em família

substituta, em especial a adoção. Contudo, estabeleceu-se a

obrigatoriedade da inscrição no cadastro de adoção como requi-

sito para tal procedimento e a proibição da adoção intuitu perso-nae. o presente trabalho visa apresentar as principais alterações

trazidas pela referida Lei, enfatizando as disposições relacionadas

à proibição da adoção intuitu personae face aos princípios da

doutrina da proteção integral inerente à Constituição Federal de

1988 e à jurisprudência do superior tribunal de Justiça (stJ).

abstract:

Despite the doctrine of full protection has been ruled for more than

twenty years, the current data identify a significant number of children

and youth in residential care. to work around this situation was enacted

* Bacharel em Direito pela UFG.

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Law 12.010/09, which tried to improve the provisions relating to place-

ment in a foster family, in particular the adoption. However, it was esta-

blished the requirement of registration in the register of adoption as a

requirement for this procedure and the prohibition of the adoption intuitupersonae. the present paper presents the main changes introduced by

this Law, with emphasis on provisions relating to the prohibition of the

adoption intuitu personae against the principles of the doctrine of full

protection inherent in the Constitution of 1988 and the jurisprudence of

the superior tribunal de Justiça (stJ).

resumen:

a pesar de la creación de la doctrina de la protección integral tener

más de veinte años, los datos actuales indican un número significa-

tivo de niños y jóvenes en acogimiento institucional. para evitar esta

situación se promulgó la Ley 12.010/09, que trató de mejorar las dis-

posiciones relativas a la colocación en una familia de acogida, en

particular la adopción. sin embargo, se estableció el requisito de ins-

cripción en el registro de adopción como un requisito para este pro-

cedimiento y para la prohibición de la adopción intuitu personae. La

presente ponencia presenta los principales cambios introducidos

por la presente Ley, con énfasis en las disposiciones relativas a

la prohibición de la adopción intuitu personae contra el principio de

la doctrina de protección integral inherente a la Constitución de 1988

y la jurisprudencia del superior tribunal de Justicia (stJ).

palavras-chaves:

adoção, Lei n. 12.010/09, doutrina da proteção integral.

Keywords:

adoption, Law 12.010/09, doctrine of full protection.

palabras clave:

adopción, Ley 12.010/09, doctrina de la protección integral.

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intrOdUçãO

a lei n. 12.010, de 03 de agosto de 2009, modificouconsideravelmente o texto do estatuto da criança e do adoles-cente, bem como do código civil e de alguns dispositivos em leisesparsas. Foi denominada “lei nacional de adoção” ou “leinacional de convivência Familiar” e tem por finalidade, em suma,propiciar condições mais favoráveis ao exercício do direito àconvivência familiar, garantido pela constituição de 1988, aopúblico infanto-juvenil.

os dados levantados pelo conanDa, disponíveis nolevantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentesda rede Sac do ministério do Desenvolvimento Social e no planonacional de promoção, proteção e Defesa do Direito da criançae do adolescente à convivência Familiar e comunitária, apontamum elevado número de crianças e adolescentes em situação deacolhimento institucional, não necessariamente órfãos do poderfamiliar, mas distantes da proteção proveniente deste.

assim, além de traçar planos para o desenvolvimento depolíticas públicas, esses dados motivaram paralelamente amudança da legislação, tendo por escopo transformar os resultadosdas pesquisas realizadas.

apesar de ser mais conhecida por lei nacional de adoção,a lei n. 12.010/09 foca, primordialmente, a preservação dosvínculos da família natural, com assistência do poder público.caso constatada a deficiência incontornável nas relações familiaresnaturais, busca-se colocar a criança ou o adolescente sob aproteção da família extensa, por meio de guarda ou tutela, paraque haja a sua manutenção entre pessoas conhecidas, com asquais exista uma relação de afinidade e afeto.

em se mostrando inviável tal possibilidade, desloca-se acriança ou o adolescente para o atendimento em programas de

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acolhimento familiar ou institucional, o que for mais apropriadopara seu bem-estar.

identificando a impossibilidade de reatar a relação com afamília natural, o estado-juiz, devidamente provocado em proce-dimento judicial, determinará a destituição definitiva do poderfamiliar, registrando a criança ou o adolescente nos cadastros deadoção. apenas aqueles adultos também devidamente cadastradospoderão adotá-lo, ou seja, as adoções ditas “diretas” não são maispermitidas pela legislação.

Diante desse cenário, o presente trabalho visa apresentaras principais alterações trazidas pela referida lei, enfatizando asdisposições relacionadas à proibição da adoção intuitu personae

face aos princípios da doutrina da proteção integral inerente àconstituição Federal de 1988 e à jurisprudência do SuperiorTribunal de Justiça (STJ).

PrinciPaiS inOvaçÕeS traZidaS aO eca cOm OadventO da Lei n. 12.010/09

alteração da nomenclatura “pátrio poder” para “poder familiar”

coadunando com o princípio constitucional de igualdadeentre homens e mulheres, a lei adotou o termo “poder familiar” emlugar da expressão “pátrio poder”, que carregava a concepçãopatriarcalista de família, para designar os direitos e deveres dosmembros de uma família entre si e, principalmente, em relação àcriança e ao adolescente que a compõe.

e não podia ser diferente. a carta magna já reconheceu odeclínio do patriarcalismo em nossa sociedade ao dispor, em seuart. 226, §5º, que os direitos e deveres referentes à sociedade

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conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher,assim como o código civil, que dita ser competente aos pais,durante o casamento ou a união estável, o poder familiar e, na faltaou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

isso não significa que as únicas organizações familiaresreconhecidas sejam provenientes do casamento ou da união estável,pois o rol constitucional não é taxativo. com os diversos arranjosfamiliares contemporâneos, o rol exemplificativo é o meio quealcança tratamento igualitário a todas as constituições familiares.nesse sentido argumenta Farias e rosenvald (2010, p. 4):

os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea so-brepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicio-nal de família. a arquitetura da sociedade moderna impõe ummodelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e des-matrimonializado. o escopo precípuo da família passa a ser a so-lidariedade social e demais condições necessárias aoaperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiarpelo afeto, como mola propulsora.

assim, determinar preliminarmente quem são e como compõema entidade familiar é tentar estagnar o desenvolvimento das relações so-ciais em seu núcleo, o que não propõe a constituição Federal de 1988.

classificação trinária dos grupos familiares

a lei nacional de adoção trouxe ao eca a concepçãotrinária dos grupos familiares. para as famílias formadas pelospais, ou por um deles, e por seus descendentes, dá-se o nomede família natural. ela reconhece as diversas composições dasrelações conjugais (casamento, união estável, etc.), ou seudesfazimento (separação, divórcio, etc.), e a monoparentalidade,isto é, a manutenção do lar apenas por um dos genitores. afamília natural é o primeiro núcleo social responsável pela garantia

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dos direitos da criança e do adolescente, pois é nela que se cons-tituem os primeiros traços de formação do ser humano.

a família extensa, também chamada de ampliada, éformada por parentes próximos (avós, primos, tios, etc.) com osquais a pessoa em formação convive e apresenta vínculos afeti-vos ou de afinidade. caso haja impossibilidade de manutençãoda criança ou do adolescente em sua família natural, esse é osegundo núcleo ao que se recorre para garantir o exercício dodireito à convivência familiar.

em se recorrendo por meio da guarda, tutela ou adoção,tem-se a terceira espécie de grupo familiar, a família substituta.Sua finalidade é suprir a situação de desamparo e abandonosofrida pela criança ou adolescente e provocada pelos pais bio-lógicos. Sua inserção deve ser gradativa, com prévia preparaçãoe acompanhamento psicológico, a fim de evitar circunstânciasdelicadas, como a de rejeição já vivenciada.

criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidaderemanescente de quilombo

o estatuto da criança e do adolescente não abordavaquestões relacionadas ao público infanto-juvenil indígena ou aomembro de comunidade quilombola. a lei n. 12.010/09 inovounesse sentido, trazendo o seguinte dispositivo:

art. 28. a colocação em família substituta far-se-á medianteguarda, tutela ou adoção, independentemente da situaçãojurídica da criança ou adolescente, nos termos desta lei. § 6º em se tratando de criança ou adolescente indígena ou prove-niente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório:i - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social ecultural, os seus costumes e tradições, bem como suas insti-tuições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fun-damentais reconhecidos por esta lei e pela constituição Federal;ii - que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de suacomunidade ou junto a membros da mesma etnia;

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iii - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federalresponsável pela política indigenista, no caso de crianças e ado-lescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe inter-profissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.

o eca preceitua o respeito aos povos indígenas e a suacultura, já garantido constitucionalmente, e prioriza a colocação dacriança ou do adolescente em família substituta condizente com suaorigem étnica. Tal comando visa evitar choques culturais, que podemagredir a formação da pessoa na família inserida. esse respeito élimitado pelos direitos fundamentais instituídos pela carta magna:nesses casos, prefere-se o contido nesta em detrimento dos coman-dos provenientes dos costumes das referidas comunidades.

não muito diferente do que acontece nos processos deadoção comuns, eles serão acompanhados por equipe interpro-fissional também composta por especialistas nas questões indí-genas ou quilombolas, exercendo, assim, a proteção devidatraçada pelo estatuto.

habilitação prévia dos postulantes à adoção

prevê o eca que os interessados em adotar deverão seinscrever no cadastro de adoção. para tanto, um período de prepa-ração psicossocial e jurídica, orientado por equipe técnica da Justiçada infância e Juventude, é requisito indispensável.

Tal procedimento visa avaliar as condições oferecidas pelopostulante tanto no que se referem ao ambiente familiar em que seráinserida a criança ou o adolescente quanto aos aspectos psicológicosdo pretendente a pai/mãe. o lugar de convivência necessita ser ade-quado ao desenvolvimento físico e mental de uma pessoa, coexistindosalubridade, mínimo conforto e harmonia para que o crescimento in-fanto-juvenil se dê, em todos os aspectos, de forma saudável.

outro ponto a se destacar diz respeito às expectativas dos

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postulantes. Uma vez que a inscrição permite a escolha das carac-terísticas da criança ou do adolescente que se deseja adotar, há po-tencialmente a geração de (pre)conceitos em relação ao futuro filho.por isso, a adoção não é recomendada como forma de sanar frus-trações, por exemplo, as decorrentes de infertilidade. Também nãopode se resumir a um ato de caridade, pois o sentimento ideal nãoé de compaixão, mas aquele inerente à paternidade/maternidade.

assim, esse momento precedente à inscrição é uma forma deconscientizar os interessados sobre a responsabilidade pertinente aoexercício do poder familiar, com todos os seus desafios e satisfações,para se tornar possível um estágio de convivência com a criança ou oadolescente escolhido antes de se efetivar a adoção (art. 46, eca).

aprimoramento do texto legal pertinente à adoção internacional

a adoção internacional, antes do advento da lei nacionalde convivência Familiar, era regulada por alguns poucos artigosdo eca, pelo Decreto 3.087/99, que promulgou a convenção dehaia relativa à proteção das crianças e à cooperação em ma-téria de adoção internacional, e pelo Decreto 3.174/99, que dis-punha sobre a competência das autoridades centraisrelacionadas na convenção.

por ser assunto distribuído esparsamente na legislação, osrepresentantes do Sistema de Garantia de Direitos encontravam difi-culdades e despendiam um grande esforço para conciliar os disposi-tivos. a compilação em um único documento colaborou com o trabalho,especialmente dos juízes das varas da infância e Juventude.

Qualifica-se a adoção como internacional utilizando-se ocritério da territorialidade, ou seja, o que se leva em consideraçãoé o deslocamento da criança ou do adolescente para outro país,seja com pais brasileiros ou estrangeiros. Seu caráter é subsi-diário, pois somente será deferida se forem esgotadas todas as

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possibilidades de colocação em família substituta residente noBrasil.

os artigos referentes à adoção internacional disciplinam cri-teriosamente o rito procedimental, pois essa modalidade de adoçãoimporta em inserção em nova cultura, com costumes, hábitos e idiomadiferentes. além disso, uma vez em país estrangeiro, o sistema deproteção brasileiro pouco pode fazer para a criança ou o adolescente,porque tange questões de soberania entre estados-nação.

por ser matéria complexa que merece um estudo pró-prio, o presente trabalho não irá discorrer sobre ela em detalhes,encerrando aqui sua abordagem sobre o tema.

permanência máxima de dois anos em acolhimento institucional

prevê o art. 19, do eca, que a permanência da criança edo adolescente em programa de acolhimento institucional não seprolongará por mais de dois anos, salvo comprovada necessidadeque atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentadapela autoridade judiciária.

essa medida foi inserida no estatuto como forma de trans-formar a realidade apontada pelo "levantamento nacional de abri-gos para crianças e adolescentes da rede Sac do ministério doDesenvolvimento Social e combate à Fome", promovido em 2005,pela Secretaria de Direitos humanos da presidência da república(SDh), que descreve a situação das entidades de acolhimento e operfil de quem ali vive. Destaca que

os abrigos pesquisados atendem cerca de 20 mil crianças e ado-lescentes que são, na maioria, meninos (58,5%), afro-descendentes(63,6%) e têm entre sete e 15 anos (61,3%). estão nos abrigos háum período que varia de sete meses a cinco anos (55,2%), sendoque a parcela mais significativa (32,9%) está nos abrigos há umperíodo entre dois e cinco anos, ainda que a medida de abrigoseja estabelecida como excepcional e provisória. (miniSTÉrio DoDeSenvolvimenTo Social e comBaTe À Fome, 2005).

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esses dados, combinados com a demora do poderJudiciário em resolver a situação da criança e do adolescente,como referido anteriormente, levaram representantes dopoder legislativo a repensar a situação e redigir norma natentativa de revertê-la. ocorre que o dispositivo do textorecém-promulgado é de difícil execução, pois para aquelesque são órfãos ou tiveram os pais destituídos do poder fami-liar, ou, ainda, têm pais desconhecidos, não havendo interes-sados em adotá-los, restam duas alternativas, o acolhimentofamiliar e o institucional. como o primeiro não é amplamentedesenvolvido, poucas são as pessoas beneficiadas por ele,consequentemente, recorre-se à instituição:

a investigação dos motivos que levaram esses meninos e essasmeninas aos abrigos mostra que a pobreza é a mais citada, com24,2%. entre outros, aparecem como importantes, pela freqüênciacom que foram referidos, o abandono (18,9%); a violência domés-tica (11,7%); a dependência química dos pais ou responsáveis,incluindo alcoolismo (11,4%); a vivência de rua (7,0%); e a orfan-dade (5,2%). (miniSTÉrio Do DeSenvolvimenTo Sociale comBaTe À Fome, 2005).

para as crianças e os adolescentes que estão em insti-tuição de acolhimento, mas mantêm vínculo familiar, sendo,segundo o levantamento da SDh, 58% dos acolhidos, improdutivaserá a nova legislação se não houver um trabalho de reinserção nogrupo familiar, que colabore com a extinção dos problemas que oslevaram a estarem em tais condições.

proibição da adoção intuitu personae e suas exceções

a adoção intuitu personae, ou adoção direta, é modalidadede colocação em família substituta na qual os pais biológicos inter-ferem na escolha dos adotantes em momento anterior ao pedido

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judicial. isso normalmente ocorre em circunstâncias especiais,quando os interessados conhecem os genitores da criança ou sãoindicados por uma pessoa próxima de sua confiança.

Tal modalidade foi proibida com o advento da lei n.12.010/09, que alterou o estatuto da criança e do adolescenteacrescentando a seguinte redação:

art. 50 a autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou fororegional, um registro de crianças e adolescentes em condiçõesde serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção.§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candi-dato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nostermos desta lei quando:i - se tratar de pedido de adoção unilateral;ii - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescentemantenha vínculos de afinidade e afetividade;iii - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal decriança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso detempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade eafetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquerdas situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta lei. (grifo nosso)

extrai-se da legislação que a inscrição no cadastro de adoçãode todos os envolvidos no processo é condição sine qua non para odeferimento do pedido, excetuando os casos em que um dos cônjugesadota o enteado ou o pedido é feito por familiar que comprova vínculo,com observação dos impedimentos, ou, ainda, quando se tem aguarda ou a tutela do adotando maior de três anos. ou seja, em ne-nhuma hipótese é possível adotar a pessoa em tenra idade, a menosque esteja na vez do postulante inscrito no cadastro de adoção.

há um tratamento diferenciado para um grupo de criançasem detrimento das demais, pois para adotar pessoa com idade in-ferior a três anos é expressa a necessidade de se respeitar o ca-dastro e, para aquelas que superam essa idade, tal regra admitecerta relatividade, em decorrência de os pretendentes à adoçãopreferirem esse recorte do público infantil. Todavia, o cenário apre-sentado não deveria justificar tal atitude por parte dos legisladores,pois, dentro de um mesmo grupo de sujeitos que merecem atenção

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especial por parte do estado para que atinjam a igualdade materialface aos capazes civilmente, existe uma desigualdade injustificável.não se observa necessidade em diferenciar o zelo para com umacriança de três anos em relação à outra com quatro anos de idade.

Se um adulto não cadastrado, com a guarda legal ou a tutelade uma pessoa com três anos e meio de vida, comprovar tempo deconvivência e laços de afinidade e afetividade para com ela, ele poderáter seu processo de adoção deferido. porém, se esse mesmo adultocomprovar a mesma situação para com uma criança de dois anos emeio de idade, tal processo não terá o mesmo resultado e, baseadono texto legal anteriormente transcrito, seu pedido será indeferido.

argumenta-se que a existência de um contato prévio entreos envolvidos é prejudicial aos interesses infanto-juvenis, uma vezque pode ocorrer a comercialização da criança, tomando-a por ob-jeto, o que viola severamente a dignidade da pessoa humana. eque a natalidade, em casos extremos, serviria como fonte de rendaaos genitores sem escrúpulos.

levanta-se também a incerteza das condições dos adotan-tes em exercer a paternidade, pois a avaliação da equipe multipro-fissional, como requisito para inscrição no cadastro, mostra-setardia, com perda de suas finalidades, que são a de avaliar a com-patibilidade com a natureza da medida e a averiguação de ambientefamiliar adequado (art. 29, eca).

ainda, tem-se por argumento o desrespeito à ordem de ins-crição no cadastro e, por consequência, uma agressão às expecta-tivas de quem aguarda na “fila”, o que gera uma sensação detratamento desigual entre os inscritos e os não inscritos.

o tráfico de pessoas, a avaliação prévia por equipe multi-profissional e o desrespeito à fila do cadastro são argumentos gené-ricos que tanto podem ser utilizados em circunstâncias que envolvamcrianças com idade superior a três anos como em situações queenvolvam crianças com menos de três anos. Desse modo, ques-tiona-se se, de fato, é plausível o exercício de tal desigualdade.

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infração administrativa relacionada com a operacionalização doscadastros de adoção

Dita o art. 258-a do eca que a autoridade competenteque deixar de providenciar a instalação e a operacionalizaçãodos cadastros previstos no art. 50 e no § 11 do art. 101 do esta-tuto incorrerá em multa de r$1.000,00 (mil reais) a r$3.000,00(três mil reais). ainda, incorre nas mesmas penas a autoridadeque deixar de efetuar o cadastramento de crianças e adolescen-tes em condições de serem adotadas, de pessoas ou casais ha-bilitados à adoção e de crianças e adolescentes em regime deacolhimento institucional ou familiar.

a autoridade competente a que o dispositivo se refereconsiste no juiz da vara da infância e Juventude ou no juiz de di-reito nas comarcas em que ainda não foi designada vara espe-cializada. considera-se corresponsável a autoridade centralestadual e a autoridade central Federal Brasileira por tambémser conferido a elas o zelo pela manutenção e correta alimenta-ção dos cadastros no âmbito de sua atuação (art. 50, § 9º, eca).Subsidiariamente, é responsável o ministério público, pois cabea ele fiscalizar a utilização dos cadastros, conforme previsto noart. 50, §1º e § 12 do eca.

a Secretaria de Direitos humanos da presidência da re-pública foi designada pelo Decreto 3.087/99 como a autoridadecentral Federal Brasileira. compete a ela, dentre outras coisas:representar os interesses do estado brasileiro na preservaçãodos direitos e das garantias individuais das crianças e dos ado-lescentes face aos demais estados-nação; promover ações decooperação técnica e colaboração entre as autoridades centraisdos estados federados brasileiros e do Distrito Federal; gerenciarbanco de dados para análise e decisão quanto aos dados daspessoas inscritas no cadastro de adoção, promover o credencia-mento dos organismos que atuem em adoção internacional no

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estado brasileiro, verificando se também estão credenciadas pelaautoridade central do país contratante de onde são originários ecomunicando o credenciamento ao Bureau permanente da con-ferência da haia de Direito internacional privado.

as autoridades centrais estaduais são as comissõesestaduais Judiciárias de adoção, compostas por um desembar-gador presidente e um secretário executivo. a SDh mantém listaatualizada de todas essas entidades para consulta pública1.

Discriminadas as autoridades e a conduta em que asmesmas incorrem em infração administrativa, o respeito ao ca-dastro se dará de forma objetiva, sem a devida ponderação dosinteresses da criança, haja vista que antes deles está o receioda sanção imposta que atinge moral e patrimonialmente.

aS caracterÍSticaS dO cadaStrO naciOnaL de adOçãO

a lei n. 12.010/09 trouxe ao estatuto da criança e do ado-lescente a obrigatoriedade de implementação e manutenção de ca-dastros estaduais e nacional de crianças e adolescentes em condiçõesde serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção. essamedida foi precedida pelo conselho nacional de Justiça que, por ini-ciativa da conselheira andrea pachá, editou a resolução n. 54, em29 de abril de 2008, criando o cadastro nacional de adoção – cna.

ao unificar os dados, o cna apresenta os resultados naseguinte ordem: a) pretendentes do foro regional (nos casos demais de uma vara na mesma comarca), por ordem cronológica dehabilitação; b) pretendentes da comarca, por ordem cronológica de

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1 mais informações no site da Secretaria de Direitos humanos da presidência darepública. endereços CeJas/CeJais. Disponível em: http://www.direitoshuma-nos.gov.br/aut_centr/adocao/ceJais%20-%20site.pdf. acesso em: 18 mai. 2011.

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habilitação; c) pretendentes da unidade da Federação, por ordemcronológica de habilitação; d) pretendentes da região geográfica,por ordem cronológica de habilitação; e) pretendentes das demaisregiões geográficas, por ordem cronológica de habilitação. e paraaqueles anteriormente habilitados há um respeito aos seus cadas-tros, em que irá constar preferência diante dos demais cadastradosem data posterior (cnJ, 2008). Dessa forma, as diversas habilita-ções que os interessados faziam em diferentes comarcas tornam-se desnecessárias, pois, ao informar na primeira inscrição quedeseja adotar pessoas em outras unidades da Federação, enume-rando-as, o pedido automaticamente se estende a elas.

esse sistema objetiva ampliar as possibilidades de en-contrar um lar em que a pessoa em acolhimento possa ser inse-rida. além disso, com a relação das características dos inscritosé possível traçar diretrizes na constituição de políticas públicas,dando enfoque às principais dificuldades encontradas para semanter a criança ou o adolescente na família de origem e tambémàs dificuldades encontradas para se adotar e ser adotado.

apesar de o cna oportunizar esses benefícios, os dadosque ele apresenta revelam duas realidades divergentes, que con-figuram um entrave à redução de seus números, porque

[...] dos 11.125 pretendentes a adoção, 90% são casados ouvivem em união estável, 10% vivem sozinhos e, nesta condição,pretendem assumir a paternidade ou a maternidade. a maioria(50%) possui renda média entre 3 e 10 salários mínimos, e nãotem filhos (76,5%). Quanto às preferências, 70% só aceitam crian-ças brancas. a grande maioria dos que querem adotar é tambémbranca (70%). 80,7% exigem crianças com no máximo três anos;o sistema mostra que apenas 7% das disponíveis para adoçãopossuem esta idade. além disso, 86% só aceitam adotar criançasou adolescentes sozinhos, quando é grande o número dos quepossuem irmãos, e separá-los constituiria um novo rompimento,o que deve ser evitado a todo custo. (neTo; pachÁ, 2008)

verifica-se que a liberdade concedida aos pretendentespara definir as características da criança ou do adolescente que

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se quer adotar - por exemplo, a cor, a idade, ter ou não irmãos -produz um projeto ideal de filho não condizente com a realidadedo público que se encontra em abrigos a espera de uma família.

esse fator constitui grande empecilho para viabilizar aadoção, ao mesmo tempo em que contribui para que pessoasqueiram participar desse processo, pois, ao fornecer uma espé-cie de “comanda” (informação verbal)2 para os habilitados esco-lherem as características que querem que seu filho adotivo tenha,gera uma expectativa de realização do ideal de filho perfeito, frus-trada quando os candidatos a pais se cansam de aguardar ouquando visitam uma instituição de acolhimento e conhecem aspessoas que ali esperam por uma família. o resultado, conformeapresentado, é o registro de duas extensas listas que não se co-municam: a lista de crianças e adolescentes aptos à adoção e alista de pretendentes à adoção.

Diante desse impasse, o plano nacional de promoção,proteção e Defesa do Direito de crianças e adolescentes à con-vivência Familiar e comunitária propõe a conscientização, sensi-bilização e desmistificação da adoção para que aquelas criançase adolescentes, preteridas pelos adotantes por motivos diversos,possam ter oportunizada a colocação em família substituta.

Todavia, apenas o planejamento não é suficiente. oprincípio constitucional da prioridade absoluta deve atravessartodos os níveis de atuação do poder público para atender essaspessoas em condição especial de desenvolvimento.

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2 no lançamento da campanha “adoção: família para todos”, lançada pela Se-cretaria especial de Direitos humanos (SDh), em parceria com o projeto acon-chego, no dia 24.05.2011, no palácio do planalto, houve a exibição de um vídeoem que um pai adotivo narra seu constrangimento ao receber do Juiz da varada infância e Juventude uma “comanda” com características que deveriam serassinaladas por ele na escolha do perfil do filho(a) que desejava adotar. infor-mações disponíveis em: http://www.direitoshumanos.gov.br/2011/05/25-mai-2011-ministra-chama-a-atencao-da-sociedade-para-o-direito-de-toda-crianca-ter-uma-familia. acesso em: 09 jun. 2011.

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adOçãO intuitu personae e a Lei n. 12.010/09 À LUZ daJUriSPrUdência dO StJ

a resolução n. 54/2008 do conselho nacional de Justiça,que regula a instalação do cadastro nacional de adoção com seusrespectivos alimentadores estaduais, com a posterior promulgaçãoda lei n. 12.010/09, consolidaram a impossibilidade de se optar pelamodalidade adoção intuitu personae como forma de colocação emfamília substituta. contudo, não raro são os casos em que se ne-cessita desse instrumento jurídico para legitimar uma situação defato, como ocorreu no município de Sete lagoas, no estado deminas Gerais, que levou os pretendentes à adoção a recorrer aoSuperior Tribunal de Justiça para exercer o direito de postular o pe-dido de adoção sem estarem limitados pela inscrição no cadastro,resultando na seguinte decisão:

recUrSo eSpecial - aFeriÇÃo Da prevalÊncia enTreo caDaSTro De aDoTanTeS e a aDoÇÃo inTUiTU per-Sonae - aplicaÇÃo Do princÍpio Do melhor inTe-reSSe Do menor - veroSSÍmil eSTaBelecimenTo DevÍncUlo aFeTivo Da menor com o caSal De aDoTan-TeS nÃo caDaSTraDoS - permanÊncia Da crianÇa DU-ranTe oS primeiroS oiTo meSeS De viDa - TrÁFico DecrianÇa - nÃo veriFicaÇÃo - FaToS QUe, por Si, nÃoDenoTam a prÁTica De ilÍciTo - recUrSo eSpecialproviDo. i - a observância do cadastro de adotantes, vale dizer,a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas paraadotar determinada criança não é absoluta. excepciona-se tal re-gramento, em observância ao princípio do melhor interesse domenor, basilar e norteador; ii - É incontroverso nos autos, deacordo com a moldura fática delineada pelas instâncias ordinárias,que esta criança esteve sob a guarda dos ora recorrentes, deforma ininterrupta, durante os primeiros oito meses de vida, porconta de uma decisão judicial prolatada pelo i. desembargador-relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo ao agravo deinstrumento n. 1.0672.08.277590-5/001. em se tratando de açõesque objetivam a adoção de menores, nas quais há a primazia dointeresse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem opotencial de consolidar uma situação jurídica, muitas vezes, in-contornável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo; iii -em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente,

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durante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisãojudicial, ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial,o estreitamento da relação de maternidade (até mesmo com o es-sencial aleitamento da criança) e de paternidade e o conseqüentevínculo de afetividade; iv - mostra-se insubsistente o fundamentoadotado pelo Tribunal de origem no sentido de que a criança, porcontar com menos de um ano de idade, e, considerando a forma-lidade do cadastro, poderia ser afastada deste casal adotante, poisnão levou em consideração o único e imprescindível critério a serobservado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da in-fante com o casal adotante, que, como visto, insinua-se presente;v - o argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, de-pendente química e com vida desregrada, tendo já concedido, detodo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vín-culo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda queeste não se encontre sequer cadastrado no referido registro; an-teriormente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, àconclusão de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criançaadotanda. ademais, o verossímil estabelecimento do vínculo deafetividade da menor com os recorrentes deve sobrepor-se, nocaso dos autos, aos fatos que, por si só, não consubstanciam oinaceitável tráfico de criança; vi - recurso especial provido.3

o casal l.c.B. e a.c.G.S.B. conheceu, por meio de pes-soas de seu convívio, a.c.c. que, grávida, ofereceu entregar a filhaque esperava para adoção. assim, após o nascimento de l.c.c., amãe da criança e os pretendentes compareceram em juízo e assi-naram um Termo de Declaração, no qual havia a expressa manifes-tação daquela em consentir a adoção de sua filha para estes, semcoação ou benefício pessoal. o casal também ajuizou ação de ado-ção com pedido liminar de guarda provisória, o que levou o Juízoplantonista a autorizar, em 28.12.2007, a permanência do bebê soba guarda do casal pelo prazo de trinta dias.

porém, ao estarem os autos conclusos para o Juiz de Di-reito da 1ª vara criminal e de menores da comarca da referida ci-dade, ele determinou a imediata expedição de busca e apreensão

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3 inteiro teor em BraSil. Superior Tribunal de Justiça. Direito de Família. relações deparentesco. . aferição da prevalência entre o cadastro de adotantes e a adoção intuitupersonae. recurso especial nº 1.172.067 - mG. relator: ministro massami Uyeda. Bra-sília, 14 de abril de 2010. Disponível em http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/de-talhe.asp?numreg=200900529624&pv=010000000000&tp=51. acesso em: 02 jun. 2011.

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da criança devido ao casal não estar inscrito no cadastro de adoçãoe haver indícios de tráfico de influência. a decisão agravada nãochegou a produzir efeitos, pois o Desembargador-relator deferiu aorecurso efeito suspensivo, alegando que o processo não podia sesobrepor ao princípio do superior interesse da criança, e determinoua realização de estudo psicossocial e a oitiva do representante doministério público.

o Tribunal de Justiça, contrariando o relator, negou o pro-vimento do recurso, em 29 de julho de 2008, por considerar a guardade fato irregular ou criminosa, o que fez restabelecer o mandado debusca e apreensão expedido pelo Juiz a quo. apesar dos embargosde declaração, a decisão se manteve inerte.

o mandado foi cumprido, sendo a menina encaminhadapara uma entidade de acolhimento, onde permaneceu por seis dias,visto que o magistrado de primeira instância determinou seu desli-gamento com a sua entrega a um casal inscrito no cadastro, con-trariando a manifestação do ministério público.

o Tribunal de origem não admitiu o recurso especial inter-posto, ensejando o agravo de instrumento que, por decisão do STJ,foi convertido no recurso especial n. 1.172.067/mG, sendo-lhe atri-buído efeito suspensivo até seu julgamento. Dessa forma, a criançaretornou para a guarda do casal l.c.B. e a.c.G.S.B..

o voto invoca a determinação da normativa editada pelocnJ, apontando as vantagens do procedimento de colocação emfamília substituta. considera que a avaliação prévia por equipe téc-nica multidisciplinar reduz a possibilidade de ocorrer tráfico de pes-soas e a prática da adoção por intermédio de influências escusas,ao mesmo tempo em que propicia uma situação de igualdade decondições entre os pretendentes.

o preparo com a comissão multidisciplinar para habilitar-se como pretendente à adoção propõe esclarecer sobre o exercí-cio da maternidade/paternidade em seus diferentes aspectos,considerando as peculiaridades das crianças e dos adolescentes

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aptos a serem adotados, trabalhando ideias sobre educação,preconceitos e expectativas, a fim de que se obtenha sucessonos diversos tipos de adoção. É um trabalho importante que nãoexclui aqueles não cadastrados que estejam com a guarda e defato postulando a adoção.

nesse sentido também esteve o STJ, que continuou sua ar-gumentação negando o caráter absoluto do cadastro em favor do su-perior interesse da criança, na hipótese de haver vínculo afetivo.Discutiu a legitimidade da adoção direta no caso em que, além de amãe biológica ter interferido na escolha da família substituta, esta per-maneceu com o bebê em seus primeiros oito meses de vida, criandouma relação afetiva que foi confirmada pelo Serviço Social e psicologiado Tribunal de Justiça. apesar da pouca idade, a menina já identificavaa.c.G.S.B., que a amamentava após ter sido medicada para tanto.

após a citação de doutrina e jurisprudência, o Desembar-gador-relator concluiu pela permanência da infante junto aos paisadotivos até findar o processo de adoção, observando que a vidapregressa da mãe adotiva (dependente química e com vida desre-grada) não é fundamento suficiente para suspeitar de qualquer re-lação escusa, como o tráfico de pessoas. posição acertada, poispara constituir o delito de tráfico, previsto no art. 238 do eca, é ne-cessário ter por elemento a paga ou promessa de recompensa emtroca do filho, o que não ficou esclarecido sequer enquanto indício.

outro impasse que o caso ensejou foi a litispendência oca-sionada pelo segundo processo de adoção postulado pelo casal ins-crito, que permaneceu com a criança por alguns dias, devido adecisão do juiz a quo. apesar de ter sido gerada expectativa, o STJ,aplicando o princípio constitucional do superior interesse da criança,considerou o fato de ter a menina permanecido mais tempo com osrecorrentes, criando vínculo de afetividade, o que ficou comprovado,inclusive, por avaliação da equipe multiprofissional. acrescentouainda que o discutido não era o direito de um casal em detrimentodo outro, mas o direito da criança à convivência familiar com aqueles

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que representavam relação de afeto constituído.infere-se de toda celeuma que a divergência entre as dife-

rentes instâncias do poder Judiciário provocada pelas várias formasde interpretar o texto da lei resultou em prejuízo grave para a pessoasobre a qual discutiam o futuro. a menina, em seu primeiro ano devida, foi rejeitada pela mãe biológica, entregue a um casal conhecidopor esta, encaminhada para uma instituição de acolhimento, entre-gue a um segundo casal inscrito no cadastro, e, por fim, entreguenovamente ao primeiro casal. essa inconstância de local e de cui-dadores são fatores de risco ao desenvolvimento humano:

De acordo com a teoria psicossocial de erick erikson, o bebêaprende a confiar na “mãe”4, em si mesmo e no ambiente atravésda percepção materna de suas necessidades e exigências. esta-belecem-se entre mãe e criança a confiança mútua e um desejo deenfrentar junto às situações. para o neonato, a confiança requer umsentimento de conforto físico e o mínimo possível de medo e incer-teza. Um sentido de confiança básica ajuda o indivíduo a ser recep-tivo a novas experiências. (GallahUe; oZmUn, 2005, p. 40)

nos casos em que se trata da vida de pessoas em condi-ção peculiar de desenvolvimento, o tempo importa muito. em se tra-tando de uma criança, por exemplo, de um ano para outro nota-senão só diferença no tamanho, mas também em aptidões como afala, o caminhar, a coordenação motora, enfim, nas etapas de cres-cimento. com o adolescente da mesma forma, contudo, voltadopara a formação da personalidade face ao meio social, no ato de seafirmar enquanto indivíduo, se reconhecer e ser reconhecido.

a demora do poder Judiciário nos processos de adoção eas discordâncias de posicionamentos fazem a criança e o adoles-cente perderem a oportunidade de passar por essas fases do de-senvolvimento humano auxiliados pela família, pois a alternância delocais pelos quais eles passam impede a criação de vínculo seguro

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4 o termo mãe pode ser entendido como aquela pessoa diretamente responsávelpelos cuidados da criança, que se envolve afetiva e emocionalmente, nas afirma-ções de Gallahue e ozmun (2005).

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com quem se responsabiliza em cuidar. além disso, a longa esperaé fator negativo que contribui para o desinteresse na adoção, poisgera no adotante ansiedade e também insegurança sobre a decisãoa ser futuramente prolatada.

e um dos motivos que enseja a demora é a polêmica ado-ção intuitu personae face o princípio do superior interesse dacriança, como ocorreu no julgado supracitado. com o advento dalei nacional de adoção, a discussão tomou proporções de difícilcontorno, pois pune a autoridade competente caso não utilize devi-damente os cadastros de adoção. em meio a isso estão diversasvidas que aguardam por decisões que não se constituem enquantoconsenso, mas que são produzidas de forma a se chocarem e a re-tardarem ainda mais o processo.

apesar da imposição legal, muitos juristas permanecemcom o mesmo posicionamento no sentido de permitir a adoção diretaenquanto uma das modalidades de colocação em família substituta:

a adoção é o grande exemplo da filiação socioafetiva, seu únicoelo é o afeto, que deve prevalecer sobre tudo. Toda criança e ado-lescente que tem a possibilidade de ser adotada já passaram porum momento de rejeição em sua vida, tendo conseguido obter edar amor a um estranho que vê, agora, como um pai, superandoo sentimento da perda. não se justifica que, em nome ao respeitoa uma regra que tem a finalidade única de dar publicidade e le-galidade às adoções, o sentimento, o sustentáculo da adoçãoseja colocado em segundo plano e a criança seja obrigada a pas-sar por outro drama em sua vida, sair da companhia de quemaprendeu a amar. (BorDallo, 2007, p. 198)

assim também é a opinião de maria Berenice Dias(2010) que, inclusive, suscita a inconstitucionalidade da obriga-ção de observância ao cadastro e propõe uma alternativa proce-dimental nos casos de guarda de fato:

Deste modo, quando uma criança se encontrar sob a guarda defato de alguém que não esteja habilitado, ou sem que tenha sidorespeitada a ordem de inscrição, ao invés de retirá-la de ondese encontra, deve o juiz determinar o seu acompanhamento porequipe interdisciplinar. entre o medo e o dever, todos devem

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preservar o direito de crianças permanecerem no seu lar. Tornarobrigatória a observância do cadastro é de uma inconstitucionali-dade flagrante por desrespeitar o princípio do melhor interesse eo sagrado direito à convivência familiar. assim, desobedecer anorma constitucional e desrespeitar as regras postas na lei é quepode gerar a responsabilização que juízes e promotores tantotemem, por cometerem verdadeiros crimes contra quem mereceproteção integral com absoluta prioridade.

por um lado, em se tratando de adoção intuitu personae,os interesses dos envolvidos – a família adotiva, os genitores e opróprio juiz – são secundários diante da proteção constitucional de-dicada ao público infanto-juvenil, em especial para o exercício dodireito à convivência familiar. assim, é preferível que se acompanheo estágio de convivência originado de uma guarda de fato por pro-fissionais capazes de avaliar as condições nas quais a criança ou oadolescente foi inserido na família do que fazê-lo mudar inúmerasvezes de casa e de cuidadores, devido à obrigação de se respeitarregras de uma lei infraconstitucional.

De outra parte, o cuidado preventivo no sentido de barraro tráfico de crianças e outras condutas que afrontam a dignidadehumana dessas pessoas, enquanto motivação para se criar o dis-positivo de lei, são fatores relevantes ao se considerar a proteçãoao público infanto-juvenil. contudo, direcioná-lo apenas a crian-ças com idade não superior a três anos esvazia o sentido danorma, pois o critério de idade atende apenas uma situação atualem que a maioria dos pretendentes à adoção prefere criançasnessa faixa etária, fazendo com que esse público seja mais vul-nerável a condutas ilícitas.

porém, nada impede que esse perfil venha a se deslocarcomo forma de alcançar pessoas que não estejam nesse recorte etá-rio, o que levará o Sistema de Garantia de Direitos a ter que utilizaroutros meios de prevenção, como a avaliação multiprofissional, paracontornar a situação. portanto, instrumentos mais amplos de prote-ção, que abarcam todas as crianças e adolescentes sem critério de

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idade, são mais eficazes na garantia de seus direitos do que aqueleselaborados para atingir situações específicas potencialmente mutá-veis, o que leva a concluir que o art. 50, §13 do eca, não atinge oobjetivo proposto.

cOnSideraçÕeS FinaiS

os princípios norteadores do estatuto da criança e doadolescente são, antes de tudo, constitucionais, e têm por escopoproteger os direitos fundamentais do público infanto-juvenil. o su-perior interesse da criança e a prioridade absoluta garantem a pri-mazia ao atendimento das necessidades do público infanto-juvenil,norteando ações tanto do poder público como da sociedade civil.o princípio da convivência familiar ressalta a imprescindibilidadedesse elemento ao desenvolvimento humano, reconhecendo-ocomo direito fundamental especial da criança e do adolescente. De-vido à sua importância, aliada aos dados coletados recentementeapontando um número considerável de situações contrárias, foi pro-mulgada a lei n. 12.010/09, alterando o eca.

além de dispor sobre a preferência em se manter as rela-ções da família natural, a referida lei traz, de forma subsidiária, acolocação na família extensa ou em família substituta. o conceitodaquela aparece pela primeira vez no ordenamento jurídico brasi-leiro como forma de estender aos parentes da criança e do adoles-cente a responsabilidade inerente ao poder familiar nos casos emque os genitores não podem exercê-lo.

no que diz respeito à colocação em família substituta, areferida lei aprimora as condições e os requisitos do instituto daadoção. nesse aspecto, as principais alterações estão relaciona-das à obediência ao cadastro de adoção e à proibição da adoção

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intuitu personae em casos que envolvem crianças de até trêsanos de idade.

a relação filial proveniente da adoção é baseada exclu-sivamente no afeto: é filho porque se ama. nesse sentido, deter-minar o vínculo desse instituto ao cadastro de adoção semaveriguar previamente, nos casos concretos, a afinidade e aafetividade porventura existentes entre uma criança e os interes-sados em serem seus pais, é negar o princípio constitucional dosuperior interesse da criança. como no caso apresentado dacidade de Sete lagoas – mG, em que a menina, pela indecisãode se aplicar a legislação infraconstitucional ou o princípio, foilevada a diversos lugares para que fosse cuidada por diferentespessoas, sem, contudo, averiguar-se se tais procedimentos eramsaudáveis àquela vida.

o cadastro de adoção é importante para coibir ações ilíci-tas, quantificar e qualificar o público relacionado para direcionar po-líticas públicas, facilitar o encontro de pais para a criança ou oadolescente acolhido, dentre outros benefícios. contudo, não deveser utilizado para romper vínculos afetivos, por não serem legal-mente aceitáveis. Se a lei estabelece o acompanhamento multi-profissional, então, que esse seja também utilizado para avaliarexceções, podendo relativizá-la em benefício da criança. Dito emoutras palavras, a adoção intuitu personae quando, em casos con-cretos, se mostrar como instrumento mais apropriado para legitimaruma relação filial com notórios vínculos de afetividade e afinidade,o princípio do superior interesse da criança deve prevalecer diantedo dispositivo da lei n. 12.010/09, que proíbe utilizá-la como mo-dalidade de colocação em família substituta.

assim, verifica-se que as alterações legislativas devem serinterpretadas por meio das lentes dos princípios que regem o textoem que foram inseridas, em especial quando se trata do estatutoque rege a garantia dos direitos de pessoas em condição peculiarde desenvolvimento.

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