Neves

347
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Fabrício Monteiro Neves BÍOS E TECHNÉ: ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA DE BIOTECNOLOGIA PERIFÉRICO Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Sociologia. Orientador: Clarissa Eckert Baeta Neves Co-orientador: Renato de Oliveira Porto Alegre 2009 FABRÍCIO MONTEIRO NEVES

description

tese de doutorado sobre biotecnologia

Transcript of Neves

  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    Fabrcio Monteiro Neves

    BOS E TECHN: ESTUDO SOBRE A CONSTRUO DO SISTEMA DE BIOTECNOLOGIA PERIFRICO

    Tese submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Sociologia.

    Orientador: Clarissa Eckert Baeta Neves Co-orientador: Renato de Oliveira

    Porto Alegre 2009 FABRCIO MONTEIRO NEVES

  • 2

    BOS E TECHN: ESTUDO SOBRE A CONSTRUO DO SISTEMA DE BIOTECNOLOGIA PERIFRICO

    Tese submetida ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Sociologia.

    ORIENTADOR: DR.Clarissa Eckert Baeta Neves UFRGS

    CO-ORIENTADOR: DR. Renato de Oliveira UFRGS

    DR. Evando Mirra de Paula e Silva CGEE

    DR. Lo Peixoto Rodrigues PUC-RS

    DR. Jalcione Pereira de Almeida UFRGS

  • 3

    Dedico esta tese ao meu pai, Jlio, e minha me, Maria; aos meus irmos, Cac, Bubu e Fred. Especialmente, dedico Tain, que no pde ter, neste perodo, um cachorrinho.

  • 4

    AGRADECIMENTO

    professora Clarissa Neves, pela liberdade de investigao, pela troca intelectual irrestrita e pelo incentivo ao aprofundamento em temas ainda no consolidados no Brasil.

    Ao professor Renato de Oliveira, pelas instigantes aulas e pelos comentrios crticos que no momento crucial direcionaram incertezas tericas e empricas.

    Ao professor Jalcione Almeida, pela construo de um ambiente realmente acadmico de discusso, por meio do grupo TEMAS (Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade), estendo, portanto, os agradecimentos aos amigos e interlocutores que l fiz.

    Aos lderes de pesquisa, pela cordialidade e disponibilidade na entrevista.

    Ao Adriano Premebida, Cristiane Amaro e Hlio Aguilar, sem os quais a vida acadmica no valeria tanto a pena.

    Rogrio, Heraida, Debie, Lipe, Dnis, Hlio e Cidriana, Dulce, sem os quais a vida no valeria muito a pena.

    Aos amigos distantes, Eduardo, Brand, Vitor, Roberto, Fabrcio, George, Rmulo, Ana e Flvio.

    Aos amigos prximos, Leonardo, Bruno, Bruna, Simone, Leandro, Vanessa, Rochele, Daniel, Lus Fernando, Laura, rio, Letcia, Carla.

    minha turma de doutorado, que se perdeu no meio do caminho por razes que fogem ao controle de uma turma de doutorado, Vera, Francis, Mari, Luciana, Odil, Alessandra, Rosana.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Sociologia (PPGS), fontes de aprendizado constante.

  • 5

    Aos professores da banca de qualificao de projeto, Mara Baumgarten e Emil Sobottka, pelos conselhos e apontamentos.

    Regiane Accorsi pelo suporte eficiente e pela disposio sempre cordial.

    CAPES, PROPESQ e PPGS, pelos auxlios financeiros.

  • 6

    Certas seitas, como se pode verificar apegaram-se sobretudo verdade; outras utilidade. Estas tiveram mais xito. A misria de nossa condio faz que aquilo que se nos apresenta como mais verdadeiro nem sempre o que nos fora mais til. Assim se observa com as seitas mais ousadas, as de Epicuro, Pirro, e da Academia aps as ltimas modificaes por que passou, as quais se viram foradas a dobrar-se ante as leis civis.

    Michel de Montaigne (1533-1592) Ensaios

  • 7

    RESUMO

    Esta tese trata, de forma ampla, da relao cincia e sociedade. Especificamente procura compreender o processo de construo do sistema biotecnolgico em face do contexto ao qual est relacionado. A argumentao terica estrutura-se em torno de questes levantadas pelos estudos sociais da cincia e tecnologia, e tem como marco terico a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, que parte da diferena sistema/entorno para compreender a relao cincia e sociedade. A questo levantada refere-se estrutura de reproduo da cincia contempornea e sua relao com o entorno. A hiptese argumenta que a estrutura do sistema biotecnolgico sofreu uma mudana, da reproduo baseada na verdade reproduo baseada no funcionamento. Esta ltima forma de reproduo emerge em funo das perturbaes do entorno da cincia, principalmente em funo do contexto caracterizado por exigncias tecnolgicas. Vinculadas a tais exigncias esto ainda exigncias de aplicao, legalidade, lucratividade, segurana, inovao. A pesquisa utilizou entrevista semi-estruturada com lderes de grupos de pesquisa em biotecnologia em seis estados da federao, e pesquisa documental, como mtodos de coleta de dados, e utilizou tcnicas qualitativas de anlise, especificamente, a anlise de contedo temtica. De maneira mais especfica, a investigao localiza-se na periferia do sistema global de cincia e tecnologia, e apresenta como a diferenciao centro/periferia tambm incide na reproduo do sistema biotecnolgico. Para tanto, constri-se o conceito de regime de produo de conhecimento, um regime de perturbaes recprocas entre sistemas, limitado pelas configuraes institucionais dos Estados nacionais. Tal regime, no Brasil, foi caracterizado pelos sistemas do direito, da economia, da poltica e da cincia, e as perturbaes dos trs primeiros na biotecnologia o que se investiga nesta pesquisa. Conclui-se que a pesquisa biotecnolgica produz um outro tipo de verdade, a saber, a verdade eficaz.

    Palavras-chave: cincia/sociedade, biotecnologia, centro/periferia, estudos sociais da cincia e tecnologia, teoria dos sistemas.

  • 8

    ABSTRACT

    Bos and Techn: study on the construction of the system peripheral biotechnology

    This thesis deals with the relationship between science and society. It particularly seeks to understand the process of construction of biotechnology and its context. Beyond this, it searches to link biotechnology research to the global society and to the specific context of peripheral science The theoretical argument is structured around issues raised by social studies of science and technology, and uses the theoretical framework of the theory of social systems of Niklas Luhmann, who considered the difference system / environment to understand the relationship between science and society. The main question raised refers to the structure of the reproduction of contemporary science and its relation with the environment. Therefore, our hypothesis argues that the structure of the biotechnology has changed from a reproduction based on "truth" to a reproduction based on "operation". The latter form of reproduction emerges in the light of disturbances around the science, especialy in a context characterized by technological requirements. Besides theses, there are requirements for application, legality, profitability, safety and innovation. This research was conducted using semi-structured interviews with leaders of biotechnology research groups from six brazilian states. Besides, a documentary research was conducted and a thematic content analysis was performed. Particularly, this research is located at the periphery of the global system of science and technology, and presents how the differentiation center/periphery also affects the reproductive system of biotechnology. In this sense, we construct the concept of knowledge production regime, a regime of mutual disturbances between systems, which is limited by the institutional configurations of national states. In Brazil, such regime was characterized by systems of law, economy, policy and science. This research has focused on the disturbance of the first three on biotechnology. It is concluded that research biotechnology produces another kind of truth, namely truth effectively.

    Keywords: science/society, biotechnology, center/periphery, social studies of science and technology, theory of systems.

  • 9

    ndice de Ilustraes

    Ilustrao 1 Tecnologias convergentes.............................................................................. 156 Ilustrao 2 Interesses em torno das tecnologias............................................................... 185 Ilustrao 3 Elementos do contrato multinstitucional. ...................................................... 192 Ilustrao 4 Regime de produo de conhecimento .......................................................... 241 Ilustrao 5 Cdigo direito ................................................................................................ 272 Ilustrao 6 Cdigo centro/ periferia ................................................................................. 278 Ilustrao 7 Cdigo doena negligenciada ........................................................................ 283 Ilustrao 8 Cdigo aplicao............................................................................................ 285 Ilustrao 9 Cdigo inovao ............................................................................................ 287 Ilustrao 10 Cdigo funcionamento................................................................................. 301

  • 10

    ndice de Tabelas

    Tabela 1 Brasil: Execuo da despesa oramentria do governo federal em pesquisa e desenvolvimento (P&D), por objetivos scio-econmicos, 2000-2007 (em R$ milhes).244 Tabela 2 Artigos brasileiros, da Amrica Latina e do mundo publicados em peridicos cientficos internacionais indexados no Institute for Scientific Information (ISI), segundo as reas do conhecimento, 1997-2006. ..............................................................................246 Tabela 3 Distribuio das famlias de patentes tridicas (%) ............................................247 Tabela 4 Pedidos de patentes de inveno depositados no escritrio de marcas e patentes dos Estados Unidos da Amrica segundo classes selecionadas, 2003/2007......................247

  • 11

    ndice de Quadros

    Quadro 1 Documentos e caractersticas - entrevistas .......................................................... 32 Quadro 2 Documentos e caractersticas - artigos ................................................................ 32 Quadro 3 Sistema social geral ............................................................................................. 64 Quadro 4 Concepes sobre o relacionamento entre cincia (C) e tecnologia (T) ........... 182 Quadro 5 Nveis de argumentao e formas de diferenciao da sociedade..................... 221 Quadro 6 Exemplos de Legislaes nacionais a respeito de pesquisa com clulas-tronco239 Quadro 7 PAC-cincia: Promoo da Inovao Tecnolgica nas Empresas .................... 251 Quadro 8 PAC-cincia: Fortalecer as atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovao em reas estratgicas para o Pas....................................................................................... 252 Quadro 9 Diretrizes da poltica de biotecnologia .............................................................. 255 Quadro 10 Grupo de Pesquisa Ecologia Qumica de Insetos Vetores .................... ..........293

  • 12

    Lista de Abreviaturas e Siglas

    AGIL Adaptation, Goal-attainment, Integration, Latency ANT Actor-Network Theory

    ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria C & T Cincia e Tecnologia C, T&I Cincia, Tecnologia e Inovao

    CENARGEN Centro Nacional de Recursos Genticos e Biotecnologia CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CRO Contract Research Organization CTNBIO Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana DC Department of Commerce DGP Diretrio dos Grupos de Pesquisa no Brasil DNA cido Desoxirribonuclico EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EPA Environmental Protection Agency

    EPOR Empirical Programme of Relativism

    FDA Food and Drug Administration FIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz ICTs Institutos de Cincia e Tecnologia MAPA Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento MCT Ministrio de cincia e tecnologia MDICE Ministrio de Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior MS Ministrio da Sade NBIC Nanotecnologia, Biotecnologia, Tecnologias Informao, cincias Cognitivas

    NSF Nacional Science Fundation OECD Organization for Economic Cooperation and Development OGMs Organismos Geneticamente Modificados ONGS Organizaes No-Governamentais OSRD Office of Scientific Research and Development P&D Pesquisa e Desenvolvimento P, D&I Pesquisa, Desenvolvimento e inovao

    PAC Plano de acelerao do crescimento

  • 13

    PCR Polymerase Chain Reaction PDE Plano de Desenvolvimento da EMBRAPA PDP Poltica de Desenvolvimento Produtivo PITCE Poltica Industrial, Tecnolgica e de Comrcio Exterior PT Partido dos Trabalhadores PUC-PR Pontifcia Universidade Catlica do Paran PUC-RS A Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do sul RNA cido Ribonuclico SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia SIBRATEC Sistema Brasileiro de Tecnologia SSK Sociology of Scientific Knowledge STF Superior Tribunal Federal STS Science and Technology Studies TB Tuberculose UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFOP Universidade Federal de Ouro Preto UFPE Universidade Federal de Pernambuco UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do sul UFV Universidade Federal de Viosa USDA U. S. Department of Agriculture

    USP Universidade de So Paulo

  • 14

    ndice geral

    ndice de Ilustraes ............................................................................................................ 9 ndice de Tabelas ............................................................................................................... 10 ndice de Quadros.............................................................................................................. 11 Lista de Abreviaturas e Siglas .......................................................................................... 12 INTRODUO ................................................................................................................. 16

    1 Problemtica ................................................................................................................. 16 2 Questes ....................................................................................................................... 24 3 Hipteses ...................................................................................................................... 24 4 Metodologia e tcnicas de pesquisa ............................................................................. 25

    4.1 Nota metodolgica observao de segunda ordem............................................. 25 4.2 Procedimentos metodolgicos............................................................................... 27

    5 Organizao da tese ...................................................................................................... 37 CAPTULO 1 ..................................................................................................................... 38 Da rede contnua aos sistemas sociais .............................................................................. 38

    1.1 A noo primitiva de sistema e a unidade de anlise dos estudos da sociedade ....... 39 1.2 A diferenciao terica bsica: ao/estrutura. ......................................................... 44 1.3 A unidade de anlise dos estudos sociais da cincia e da tecnologia ........................ 48 1.4 A teoria dos sistemas sociais e sua unidade de anlise ............................................. 62 1.5 O contexto de reproduo do sistema cientfico perifrico ....................................... 84

    CAPTULO 2 ..................................................................................................................... 91 A Modernidade da cincia e da tecnologia ...................................................................... 91

    2.1 O tardio medievo e a produo do conhecimento ..................................................... 93 2.2 Tcnica e cincia como dimenses retroalimentadas .............................................. 100 2.3 A sociedade funcionalmente diferenciada como contexto do sistema cientfico. ... 113 2.4 Sistema cientfico e as novas exigncias funcionais ............................................... 116 2.5 Verdade e cincia..................................................................................................... 122 2.6 Tcnica, cincia e a verdade eficaz ......................................................................... 129 2.7 Tcnica e natureza ................................................................................................... 133

    2.7.1 Tcnica e sociedade.......................................................................................... 140 2.8 A regra de duplicao: funcionamento e verdade ................................................... 144 2.9 Biologia: natureza e polissemia............................................................................... 148 2.10 Biotecnologia como sntese: cincia e tcnica ...................................................... 152

    CAPTULO 3 ................................................................................................................... 160 A organizao da cincia e tecnologia modernas.......................................................... 160

    3.1 Diferenciao cincia/ sociedade na Inglaterra do sculo XVII.............................. 161 3.2 A cincia da organizao da cincia: a produo do conhecimento cientfico. ...... 166

    3.2.1 A produo de conhecimento em modo 2 ........................................................ 168 3.2.2 A produo de conhecimento em hlice tripla ................................................. 171 3.2.3 Para a crtica dos usos de paradigma ............................................................ 174

    3.2.3.1 Paradigmas tecnolgicos e cientficos; cincia e tecnologia: atualizao do modelo linear? ....................................................................................................... 178 3.2.3.2 A emergncia da tecnologia em uma sociedade complexa e os interesses do sistema econmico................................................................................................. 183

    3.3 Acoplamentos estruturais e organizao ................................................................. 188 3.3.1 Organizao e sociedade: o caso da ALZA ....................................................... 194 3.3.2 Organizao e sociedade: Genmica, direito e poltica.................................... 198 3.3.3 Organizao: o conhecimento vlido entre membro e no membro ................ 208

  • 15

    3.4 Cincia moderna e risco tecnolgico....................................................................... 211 3.4.1 Uma teoria sistmica do risco e a dinmica dos sistemas sociais .................... 214

    CAPTULO 4 ................................................................................................................... 219 A lgica seletiva da periferia do sistema mundial de cincia e tecnologia ................. 219 4.1 Sociologias e formas de observao ........................................................................ 223

    4.2 centro/periferia e o contexto perifrico ................................................................... 228 4.3 Centro/periferia na construo do sistema cientfico .............................................. 234 4.4 Formas de diferenciao temtica ........................................................................... 241 4.5 O modelo bioambiental e suas consequncias polticas .......................................... 249

    4.5.1 Cincia, Tecnologia e Inovao para o Desenvolvimento Nacional Plano de ao 2007-2010. ........................................................................................................ 250 4.5.2 Poltica de biotecnologia proteo e desenvolvimento.................................. 253

    4.6 O modelo bioambiental e as exigncias tecnolgicas ............................................. 256 4.7 Movimento de protesto............................................................................................ 258

    CAPTULO 5 ................................................................................................................... 262 Sistema biotecnolgico e a periferia da cincia global ................................................. 262

    5.1 Sistema biotecnolgico e seu regime de produo de conhecimento...................... 264 5.2 Sistema biotecnolgico, sociedade global e estratgias de diferenciao ............... 278 5.3 Cincia reproduzida: cincia aplicada ..................................................................... 284 5.4 Sistema biotecnolgico e inovao ......................................................................... 287 5.5 Cincia como Biotecnologia, cincia como ferramenta .......................................... 294 5.6 Conhecimento publicado: funcionamento e caixa-preta ......................................... 303 5.7 Funcionamento e pragmatismo na sociologia do conhecimento ............................. 314

    CONCLUSO.................................................................................................................. 319 COMENTRIOS FINAIS .............................................................................................. 327 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 330 DOCUMENTOS .............................................................................................................. 344 REPORTAGENS............................................................................................................. 346 APNDICE ...................................................................................................................... 346

  • 16

    INTRODUO

    1 Problemtica

    A relao entre cincia e sociedade ainda objeto de controvrsias, a despeito de haver dcadas de discusso filosfica e sociolgica a respeito. Esta querela interminvel, e sem horizonte de soluo vista, tocou sempre o problema dos limites da cincia, dos critrios de demarcao entre aquilo que era reconhecido como prprio da cincia e o que no. Em um primeiro momento da investigao sociolgica da cincia, isto envolveu os limites da organizao cientfica, porm, mais recentemente, uma guinada levou a sociologia investigao dos limites do conhecimento cientfico. Esta tese tem como finalidade discutir tais relaes e seus limites, apresentando-as sob um ponto de vista da teoria dos sistemas.

    O objeto da tese a organizao cientfica contempornea - que engendra uma relao de diferena com a sociedade - e o conhecimento cientfico - que se diferencia de outras formas de conhecimento. A tese, neste sentido, parte da ideia de diferena em contraposio queles que observaram a relao cincia e sociedade sobre o prisma da unidade. a diferena que nos permite, ademais, acurar a especificidade da cincia frente sociedade como um todo.

    A cincia na modernidade se diferenciou da sociedade ao centralizar, como uma atribuio prpria, a produo da verdade, tudo o mais em seu interior passa a depender dessa funo social. A tese, no entanto, argumenta que tal funo foi superada quando se observa a biotecnologia: a cincia neste mbito de investigao altera radicalmente sua funo em decorrncia da relao que historicamente a biotecnologia estabeleceu com a sociedade. A tese argumenta que a tecnologia o horizonte da cincia atual, e o funcionamento o que a estrutura.

    Atualmente h o entendimento de que a relao cincia/sociedade est passando por uma intensa transformao, e que a forma do conhecimento vem com isso sendo alterada. Novos conhecimentos tm surgido em funo do aparecimento de novas formas de produzi-los o processo e estas formas respondem, atualmente, por aquilo que tem se chamado organizao tecnocientfica moderna. Em decorrncia disto, tem se alterado concomitantemente a forma do conhecimento cientfico - o produto.

  • 17

    Esta nova forma do conhecimento traz incrustada uma srie de condicionantes, os fatores sociais, que revelam um tipo especfico de relao entre sistema e sociedade. A tese argumenta que a relao da cincia com o direito, a poltica e a economia transformou a forma do conhecimento cientfico, estruturado, agora, como tcnica ou verdade eficaz.

    O objetivo da tese compreender tal transformao na produo e no contedo do conhecimento cientfico a partir do estudo de grupos de pesquisa em biotecnologia na periferia do sistema mundial de cincia e tecnologia. Tal proposta, embora no seja indita, justifica-se exatamente pelo fato de que ainda no se chegou a uma definio que possa dirimir as dvidas que pairam no estabelecimento do limite entre cincia e sociedade. Embora no seja objetivo desta tese propor uma definio final para o problema, a proposta de uma anlise da cincia com base na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, se nos apresenta mais enriquecedora. A tese argumenta que tal ponto de vista oferece uma forma mais abstrata de observao, tornando possvel, finalmente, intercalar duas escolas aparentemente divergentes nos estudos sociolgicos do conhecimento e da cincia: os trabalhos da sociologia da cincia da tradio americana de Robert King Merton e a sociologia do conhecimento da Escola de Edimburgo, Escola de Bath e dos estudos construtivistas de laboratrio. A ideia de que a instituio cientfica se altera com as mudanas sociais, contribuio da vertente mertoniana, vem sucedida da ideia de que estas transformaes orientam o conhecimento cientfico, o que se relaciona com os

    trabalhos das ltimas vertentes. No se entende aqui o conhecimento cientfico como construto isolado e isento dos

    fatores sociais. No entanto, esta posio foi consensual at boa parte do sculo XX: a transcendncia do conhecimento cientfico em relao aos processos sociais mais amplos (poder, interesses, conflito, consenso, entre outros) foi um pressuposto da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim um dos sistematizadores da rea e da sociologia da cincia de Robert Merton. Para estes, o sistema cientfico se reproduz como uma unidade de valores autnoma no interior da sociedade, formando um ethos prprio, um autogoverno, uma comunidade cuja produo cognitiva salvaguardada, justo por causa da autonomia, de influncias externas. Nesta tese, argumentar-se- por uma diferena de novo tipo entre cincia e sociedade, em que se ressalta a imanncia do conhecimento cientfico, posto que sua construo se efetua na sociedade, porm sendo definido nos limites da organizao cientfica que se diferencia da sociedade.

  • 18

    Neste sentido, pergunta-se: o que teria a cincia, enquanto objeto sociolgico, de especial em relao aos outros sistemas sociais? O que faz com que se indique algo chamado cincia em contraste a algo chamado poltica? A resposta a esta questo que torna possvel um empreendimento chamado sociologia da cincia. Sem esta diferenciao, poder-se-ia estudar o processo de obteno de poder poltico e relacion-lo obteno de poder cientfico, sem nenhuma peculiaridade que os distinguissem. Esta tese argumentar no mesmo sentido do clssico estudo de Knorr-Cetina (1982), que faz crticas a abordagens que relacionam diretamente poder poltico e cientfico, ganho econmico e aumento da reputao, assim por diante.

    Partir-se- aqui do argumento terico de que processos cientficos so de natureza distinta de processos polticos, jurdicos, econmicos ou de qualquer outro sistema da sociedade, embora tais processos se diferenciem e se reproduzam em um mesmo sistema: na sociedade. Parte-se da concepo da sociologia do conhecimento de que todo conhecimento condicionado, portanto, as condies do conhecimento cientfico a serem investigadas, necessariamente tero que passar pela forma atual de sistematizao e organizao da cincia. Esta, opera selees condicionadas pelos seus prprios processos estruturais, baseados em decises contextuais com sentido restrito aos seus limites operacionais.

    Como se ver frente, derivar caractersticas cognitivas do conhecimento cientfico de suas condies sociais uma tendncia aberta pelos estudos da Escola de Edimburgo, Bath e os estudos etnogrficos em laboratrios, a partir da dcada de 1970. A tese orienta-se, em termos tericos e metodolgicos, nestas vertentes. Privilegiou-se as caractersticas do conhecimento que dizem respeito ao seu carter aplicado, prtico, tcnico, sua relao com exigncias de financiadores, exigncias ticas, polticas, seu contexto de descoberta e aplicao, os valores implcitos em sua produo, regras de publicao, cienciometria, entre outros. A partir disso, busca-se, finalmente, relacionar estes elementos forma do conhecimento impresso em artigos e livros.

    Em geral, o estudo sociolgico da cincia tem criado categorias que buscam dar conta da construo do conhecimento na modernidade, tendo como referncia uma dada coletividade, relegando o conhecimento do gnio individual ao papel de crena idiossincrtica. Pode-se dizer que esta virada no nvel da observao est principalmente ligada aos revisionismos tericos provenientes da segunda metade do sculo passado e que,

  • 19

    dentre outros objetivos, buscavam articular perspectivas micro e macro sociolgicas1. Foi o caso da intelligentsia de Karl Mannheim, do ethos cientfico de Robert Merton (1979), da comunidade cientfica de Thomas Kuhn (1995) e de Warren Hagstrom (1975), do autogoverno da cincia de Polanyi (2003), do campo cientfico de Bourdieu (1983), do crculo de credibilidade de Latour (2001), das arenas transepistmicas de Knorr-Cetina (1982), e assim por diante. Ou seja, as concepes mais antigas sobre a cincia, baseada em atividades de indivduos isolados, foram abandonados em prol de anlises que levaram em conta a sociabilidade da prtica cientfica, seu condicionamento, a partir do momento em que passa a se constituir como unidade discreta.

    A anlise sistmica segue este mesmo caminho, desacreditando as formas de anlises clssicas de tratar cincia e tecnologia. A teoria dos sistemas trata da cincia e tecnologia como mbitos sistematizados, com peculiaridades especficas, dependendo de quais comunicaes se reproduzem em seu interior, quais cdigos de comunicao reproduzem, como observam a si mesmos (autorreferncia) e seu entorno (heterorreferncia), qual o tratamento dado s informaes do entorno, ou seja, como as selecionam e como lidam com a prpria complexidade. Para entender o sistema social cincia buscar-se- na estrutura comunicacional dos grupos de pesquisa, isto , nas expectativas que assumem dimenso estrutural, seus traos caractersticos, seus critrios de seleo. Parte-se, mais concretamente, da unidade de anlise grupo de pesquisa, e da forma atual com que esta unidade se relaciona com seu ambiente em contnua transformao, o qual est incessantemente a lhe exigir respostas, as quais se ligam

    estrutura interna desenvolvida pela prpria cincia: suas comunicaes que definem verdade, conhecimento e pertinncia, que reproduzem valores, regras e cdigos especficos. Comunicao , desta forma, conceito-chave nesta perspectiva, conceito derivado da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, quem define sistema social como sistema de comunicao autorreferente. Grupo de pesquisa, neste sentido, uma diferenciao da organizao cientfica.

    A comunicao cristaliza-se no decorrer dos processos cientficos em teorias, mtodos, relatrios de pesquisa, dissertaes, teses, projetos e cria limites de sentido capazes de diferenciar a cincia de outros sistemas sociais, como o direito e a economia. Tais comunicaes produzem, tambm, limites as diferenciaes internos do sistema, como as disciplinas e as temticas e, na medida em que o sistema se apresenta na forma de

    1 Sobre estas perspectivas ver o clssico estudo de Knorr-Cetina; Cicourel (1981)

  • 20

    organizao, criam tambm limites organizacionais como universidades e institutos de pesquisa, departamentos, laboratrios e grupos de pesquisa. Todo este processo de diferenciaes, por meio de comunicaes, a base operacional para novas afirmaes sobre o mundo, novos conhecimentos, novas disciplinas, novas temticas de pesquisa, novas teorias e mtodos, enfim, novas expectativas cognitivas e organizacionais. Concomitantemente, novos grupos so impelidos a dar conta de tanta complexidade construda, criando uma nova dinmica de produo de conhecimento. Esta tese busca descrever este processo de cristalizao das comunicaes cientficas nos grupos de pesquisa, descrever a complexificao destes subsistemas por meio de seus processos de diferenciao.

    Alguns condicionantes operaram na pesquisa e exigiram recortes para diminuir a complexidade dos grupos e temticas que se poderia escolher para pesquisar. Na medida em que se trata de estudar grupos de pesquisa, deve-se especificar quais e observar aqueles que apresentem temticas comuns. Por vrios motivos optou-se por grupos de pesquisa em biotecnologia: 1- esta temtica tem importncia para a sociedade contempornea na forma de riscos e valores culturais; 2- esta temtica tem aparecido como preocupao em outros sistemas funcionais, como o direito Lei de biossegurana , a poltica poltica de biotecnologia e a economia estratgias empresariais expondo mais claramente a relao entre cincia e sociedade; 3 - Esta temtica expe com clareza a forma como os grupos de pesquisa incorporam a sociedade em seus processos reprodutores; 4 - Tal rea de pesquisa experimentou transformaes recentes que se inscrevem no prprio contedo do conhecimento que atualmente se tem gerado.

    A pesquisa biotecnolgica atrai interesses variados da economia na medida em que as inovaes, nessa rea, tm representado lucros para empresas indstria farmacutica e mercado agrcola; esta rea de pesquisa tem desencadeado processos de complexificao estatal com a criao de comisses temticas especiais, com funes to variadas como a legislao da pesquisa e a comercializao de produtos, so exemplos deste processo, a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) e a Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana (CTNBio); leva criao de polticas especficas, como o Fundo Setorial de Biotecnologia e a Poltica de Biotecnologia; impele, tambm, o sistema do direito a uma complexificao interna, quer dizer, irrita-o para que opere agora com um acrscimo de comunicaes que tematizam a biotecnologia. Esta lgica de relaes entre sistema sociais ser entendida como um regime de produo de conhecimento, um conceito baseado em

  • 21

    Gnther Teubner (2005), porm repensado luz do processo de produo de conhecimento.

    De acordo com a teoria dos sistemas de Luhmann, o sistema cientfico contemporneo se reproduz em uma sociedade cuja estrutura corresponde a vrios sistemas sociais funcionalmente diferenciados que operam sem regra hierrquica entre eles, criando internamente processos comunicativos que os diferenciam do entorno, segundo regras prprias de seleo de irritao. No entanto, com o conceito de regime de produo de conhecimento derivado desta teoria da sociedade , buscou-se compreender o sistema de pesquisa biotecnolgico perifrico, assumindo que os Estados Nacionais fornecem um contexto institucional especfico que acaba incidindo na organizao do sistema e em sua insero em uma ordem social global. Este contexto ser descrito em termos de um regime de produo de conhecimento formado pelo acoplamento estrutural entre sistemas sociais distintos, quais sejam, a economia, o direito, a poltica e a cincia. Ressalta-se, porm, que o que aqui interessa a repercusso deste regime no sistema cientfico. Portanto, tratou-se de observar como o sistema cientfico tem observado e incorporado o entorno na rede comunicacional que o reproduz. Cada perodo histrico especificou uma cincia singular em funo do tipo de relao que o sistema cientfico estabeleceu com os outros sistemas sociais, neste sentido, fala-se de evoluo das formas sociais.

    Evoluo da sociedade pressupe diferenciao e identidade. Neste sentido, fala-se de centros de produo de conhecimento no interior do sistema global da cincia, e, portanto, tambm em periferia. Mas, centro/periferia somente um critrio de observao que perpassa as comunicaes cientficas, desde o centro e desde a periferia. Como cdigo de observao, centro/periferia acaba incidindo na prpria prtica cientfica, diferenciando a cincia em organizao de ponta/organizao atrasada, pesquisa de fronteira/pesquisa convencional, valor global/valor local, autoridade/no autoridade. Cada lado destas dicotomias estrutura determinadas regras operativas, desde o que deve ser financiado at o que deve ser reproduzido, quem deve ser respeitado e quem no, e geralmente isto se relaciona com contextos regionalizados na sociedade global, tendo como referncia o espao demarcado pelo Estado Nacional moderno. Nos Estados Nacionais, o regime de produo de conhecimento, formado pela configurao historicamente tomada pelos sistemas sociais e das relaes entre eles, disponibiliza informaes no contexto que acabam incidindo nos critrios de observao de cada sistema especfico.

  • 22

    Trata-se da construo social do conhecimento tecnocientfico e dos contextos dentro dos quais ele construdo na modernidade, no caso especfico, na modernidade perifrica, no regime de produo do conhecimento brasileiro. Assume-se que a diferenciao centro/periferia vai condicionar um tipo de conhecimento, na medida em que um critrio de observao que organiza os contextos em que bilogos moleculares e engenheiros genticos trabalham. O conhecimento, na medida em que contingncia, na medida em que poderia ter assumido outras formas, sofrer das limitaes de determinadas maneiras de observar, criadas comunicativamente e estruturadas pelo sistema. Portanto, quer-se saber como os critrios de observao do sistema biotecnolgico tm incidido na forma do conhecimento cientfico na periferia. Uma sociedade que se estrutura em termos de sistemas funcionalmente diferenciados se reproduz em funo dos resultados da evoluo de cada um deles. Estes resultados esto sempre disponveis e cobram sadas particulares dos sistemas funcionais. A cincia moderna resultado desta presso ambiental, que entendida como informao no interior do sistema. Neste sentido, fala-se em acoplamento estrutural entre sistemas, um processo de perturbao recproca que modifica cada um dos sistemas acoplados. Contemporaneamente tem-se falado que a cincia, como nunca, tematiza estes acoplamentos em suas comunicaes: a economia dispondo sua complexidade em termos de financiamentos, a poltica pressionando por nveis superiores de produo cientfica e o direito, limitando o rol das possveis comunicaes. O resultado disto na organizao cientfica aquilo a que os tericos contemporneos, principalmente os estudiosos dos estudos sociais da cincia e tecnologia (STS Science and Technology Studies) tm chamado de construo social do conhecimento. A construo do conhecimento ser aqui abordada segundo sua natureza comunicativa e a sua existncia em uma sociedade funcionalmente diferenciada, portanto, no se discute a natureza da verdade, mas a sua comunicao.

    A construo do conhecimento em sociedade, chamada aqui, complexa, envolve o mbito sistmico, relativo s comunicaes cientficas e o mbito organizacional, relativo s decises cientficas. A cincia moderna caracteristicamente definida como cincia organizada, e sobre esta base de formao sistmica, a dimenso das decises sobre temas, recursos e tempo, assume uma existncia estruturante para a prtica cientfica. Mais que

    isso, cincia organizada define estas dimenses em termos de decises compartilhadas com outros sistemas, e o resultado so projetos comuns que, no final, significa a construo do

  • 23

    conhecimento como um fenmeno que emerge dos limites das organizaes envolvidas: entre universidades e firmas tecnolgicas, entre empresas de base tecnolgica e firmas de venture capital, firmas privadas e empresas pblicas, incubadoras de empresas e universidades, entre outros. Buscou-se responder ento seguinte pergunta: qual conhecimento emerge em funo da organizao da pesquisa cientfica? No caso do Brasil, estrutura-se um modelo de desenvolvimento cientfico e tecnolgico bioambiental como resultado do acoplamento estrutural entre diversos sistemas, incidindo na concentrao de pesquisas nos temas contemplados por estes acoplamentos, relacionados s pesquisas agrcolas, ambientais e de sade. Em face disto, entende-se que a biotecnologia, como rea fundamental de pesquisa para os temas tratados pelo modelo bioambiental, surge para o regime de produo de conhecimento como uma rea estratgica: ganha, concomitantemente, grande parte dos financiamentos de pesquisa e detm uma quantidade desproporcional de patentes e artigos, em relao s outras reas. Neste sentido, ao se querer compreender os desenvolvimentos da cincia moderna neste incio do sculo, na periferia do sistema mundial de cincia e tecnologia, nada mais apropriado que entender a formao do sistema biotecnolgico de pesquisa. Nele que vai estar inscrito, nas comunicaes, o que h de mais avanado em termos da reproduo do sistema global de cincia, posto sua centralidade no modelo de desenvolvimento tecnocientfico perifrico.

    Ao se configurar assim, o regime de produo perifrico de conhecimento que se verifica no Brasil, assume sua dimenso tecnolgica e deixa evidente seus critrios de reproduo. O critrio bsico constatado o uso do cdigo funciona/ no funciona, que vem acrescido de comunicaes do tipo cincia aplicada, utilidade econmica, inovao tecnolgica, entre outros. Este o cdigo da tecnologia, e, em funo de tal estruturao do sistema, verificam-se critrios de justificao novos, que emergem no intercurso da evoluo da cincia, quando a lgica funcionalmente diferenciada da cincia moderna deixa de ser governada por critrios como verdade/ no-verdade, f/ no-f, Metafsica/ fsica. No mais a religio demandante e credora de conhecimento, mas a legitimidade agora se d de forma autorreferida. A cincia perturbada, cada vez mais, por projetos polticos, por financiamentos econmicos e por limites jurdicos, e em face disto, responde com seus mecanismos prprios de reproduo, os quais, nesta dinmica, podem mudar.

  • 24

    2 Questes

    Desta problemtica decorrem algumas questes que orientaram a investigao: 1- A partir de uma sociedade complexa, em que se ressalta a relao entre

    sistemas de funes distintas e autorreferenciados, como o sistema da cincia tem produzido conhecimento cientfico em biotecnologia na modernidade perifrica?

    2- Em que sentido as transformaes recentes no sistema de cincia e tecnologia em que se sublinha a emergncia de uma dinmica da inovao tecnolgica, de uma acentuada participao de estados na produo tecnocientfica, do aumento da participao empresarial na pesquisa e de legislaes especficas para a rea tm incidido na definio da forma de produo do conhecimento biotecnolgico?

    3- Qual a forma assumida pelo conhecimento tecnocientfico na periferia do sistema global de cincia e tecnologia a partir do surgimento de uma nova forma de produzir conhecimento?

    3 Hipteses

    Em funo de tudo o que foi dito, a investigao tenta compreender a especificidade da reproduo cientfica em um contexto disciplinar especfico, a biotecnologia, e em um contexto especfico da sociedade global, a periferia do sistema de cincia e tecnologia. A tese busca, portanto, especificar a relao cincia e sociedade e a relao centro e periferia. Desta busca, emergem algumas hipteses orientadoras da investigao.

    1- O processo de produo do conhecimento biotecnolgico foi profundamente alterado na sociedade moderna devido relao com o seu entorno social, especificamente, com o sistema poltico e as

    expectativas da poltica cientfica e tecnolgica, o sistema econmico e as expectativas de lucros e o sistema do direito atravs das expectativas legais.

  • 25

    2- O cdigo de comunicao simbolicamente generalizado da tecnologia funciona/no-funciona, tem substitudo o cdigo cientfico, verdade/no-verdade, como unidade condutora dos processos internos do sistema biotecnolgico.

    3- O sistema biotecnolgico tem operado com selees que priorizam, na investigao biotecnolgica, a aplicao, o funcionamento, o ganho, o legal, a novidade, a segurana, a verdade eficaz.

    4 Metodologia e tcnicas de pesquisa 4.1 Nota metodolgica observao de segunda ordem

    As mudanas paradigmticas na viso do universo, ocorridas no sculo passado, tm na concepo do observador um dos pontos centrais. Tal mudana colocou entre parnteses o observador, ao afirmar que a observao depende da posio, no havendo mais nem observador absoluto e nem fenmeno desvinculado da observao. Diversas cincias tiveram que rever alguns princpios metodolgicos, incluindo agora o observador como elemento importante na prpria conceitualizao. Foi inclusive tarefa para a

    sociologia, que reviu uma srie de concepes cannicas que tendiam a separar sujeito e objeto. Buscou-se ento compreender os fenmenos sociais, problematizando a objetividade da sociedade por meio da perspectiva do ator, e a objetividade da observao sociolgica, posto que sujeito e objeto participavam da mesma base operativa, socialmente dada. Isto levou a sociologia a repensar o fenmeno ideolgico e da construo da realidade social2. Tirou-se toda a carga ontolgica do observador ao consider-lo, tambm, fruto de uma observao que partiu de alguma posio, preenchendo de construtivismo a operao de observao. Concebe-se, desde ento, que observar tem lugar em um sistema que faz uso de sua prpria estrutura para distinguir e indicar um lado ou outro da distino (Luhmann, 1996a). A observao se d em um ambiente dotado de sentido, onde toda observao, assim, limitada semanticamente. Observao, aqui, ser compreendida como um processo dos sistemas sociais, nos quais o sentido prprio das distines e indicaes se impe na observao, imprimindo suas preferncias e expectativas autoconstrudas. Por isso, em lugar da soluo tradicional que postula a

    2 Ver Mannheim (2001) e Berger; Luckmann (1985)

  • 26

    exigncia de um observador externo e o ideal de um sujeito extramundano, a teoria da observao deve encontrar outra forma de observao (LUHMANN, 1996b, p. 118).

    Ao observar, todo sistema diminui a complexidade do entorno, j que se poderia partir de outras diferenciaes e outras indicaes, distintas daquelas que foram selecionadas pelo sistema que observa (NEVES; NEVES, 2006). As possibilidades de operao de observao so infinitas, mas o sistema tem apenas aquele horizonte de possibilidades que ele mesmo lhe permite, ou seja, que foi estruturado em seu intercurso evolutivo. Neste sentido, ao distinguir e indicar com base em sua prpria estrutura, o sistema que observa constri suas prprias formas e estas formas lhe daro o horizonte de onde partiro as prximas observaes, em um processo que envolve recursividade e novidade. Este processo demanda o tratamento do outro lado da forma aquilo que se observa como sistema, portanto, como observador que tem suas prprias preferncias e que indica e seleciona de determinada maneira, tambm no tendo nenhum acesso privilegiado realidade. Em decorrncia disto o que a observao sistmica faz observar como outros observam, portanto, se constitui em uma observao de segunda ordem.

    A observao de segunda ordem deve fixar com exatido o ponto desde o qual se observa como o outro observa o mundo. Ou dito de maneira mais precisa: que esquema de diferena utiliza aquele a quem se observa. Imediatamente surgem ento distintos planos de observao: o observador de segunda ordem distingue a observao (observada) de outras observaes. E isto de maneira muito distinta do observador de primeira ordem que tem aplicado um esquema de observao, por exemplo, moral/amoral, prximo/distante, pessoal/impessoal (LUHMANN, 1996b, p. 126).

    Neste sentido, no se trata de afirmar, como um desavisado relativismo epistemolgico tem feito, de que o mundo qualquer coisa, tudo vale. Ao contrrio, o processo de observao fornece os mecanismos sociais reais sobre os quais determinadas realidades so construdas e assumem um significado real. Alm do mais, esta observao que se quer real, parte tanto do observador como do observado, como duas realidades com preferncias reais, indicaes reais e que, portanto, se desenvolvem como realidades. Esta a realidade a que o construtivismo na sociologia perscruta e que o modelo metodolgico da observao de segunda ordem expe. esta forma de construtivismo a que se far meno nesta tese. Quais as selees, as preferncias, que as distines e indicaes dos sistemas observados expem quando so observados? nesta realidade, de sistemas que

  • 27

    observam, que se quer chegar na tese, acessando por meio de distines e indicaes os universos reais sob os quais a comunicao no sistema cientfico se reproduz. A tese, que se segue, utilizou uma srie de tcnicas qualitativas, ou seja, tcnicas que se referem primariamente a contedos, motivaes, intenes, expectativas e sentidos inscritos em uma totalidade dinmica socialmente contingente. O esforo buscou construir o sentido especfico das comunicaes investigadas em relao a sua existncia em contextos comunicativos estruturados semanticamente. Trata-se de uma abordagem construtivista, assim, observou-se, nos textos escritos e falados, outras observaes, no caso, a dos cientistas em biotecnologia. Desde uma posio especfica, desde um ponto de vista mpar, possvel que se faam observaes de observadores quanto s suas descries e diferenciaes, levando-se em conta valores positivos e negativos de cdigos simblicos que so a base de onde partem comunicaes ulteriores.

    Toda observao cotidiana e cientfica representa, por parte de seu observador aplicaes de esquemas de diferenas que lhe permite identificar/ descrever uma realidade. Tal informao lhe vale como horizonte para novas aes e experincias, quer dizer, tem um valor informativo. (ARNOLD, 2004, p. 16)

    Neste sentido, no se trata de observar objetos (primeira ordem de observao), mas sistemas que ao observar constroem mundos, a partir dos quais se orientam a posteriori.

    4.2 Procedimentos metodolgicos

    Buscou-se captar nesta tese as observaes dos cientistas e seus esquemas de diferenciao, cristalizados na histria institucional dos grupos em biotecnologia e na memria dos observadores, e descreveu-se como se estruturam as comunicaes na organizao cientfica contempornea, de acordo com programas cientficos especficos, linhas e temas de pesquisa, projetos e artigos. Estes esquemas revelaram a forma particular com que o sistema cientfico estrutura seu contexto significativo, sempre em relao a um

    entorno no significativo para ele. Alm do mais, encontrou-se as distines e os valores positivados, o que possibilitou verificar as tendncias que esto orientando a heterorreferncia, ou seja, a vinculao sistema e entorno. Observando o entorno (processando heterorreferncia) o sistema rompe sua circularidade processual

  • 28

    (autorreferncia) e se reconstri, com base nas suas prprias observaes. Com isso, a tese pde identificar os condicionantes da reproduo cientfica que esto direcionando a verdade e o funcionamento nos processos tecnocientficos contemporneos. Alguns esquemas diferenciadores na cincia, que emergem em funo da observao do entorno, foram construdos para direcionar a observao (reduzir a complexidade das possibilidades de observao), ajudando na construo dos instrumentos de pesquisa. So eles:

    1- Verdade/no-verdade (cdigo base do sistema cientfico) 2- Funciona/no-funciona (caracterstico da tecnologia) 3- Reputao (cdigo analgico da organizao cientfica) 4- Estatizao/privatizao 5- Biotecnologia clssica (tradicional)/Biotecnologia moderna (cdigo do sistema

    biotecnolgico) 6- Legal/ilegal (cdigo do direito) 7- Novo/velho (inovao) 8- Arriscado/seguro 9- Centro/periferia 10- Bsico/aplicado

    Ao observar as normas com as quais os grupos observam, organizam (diferenciam), valorizam (priorizam/positivam) e do sentido ao ambiente cotidiano, chega-se aos horizontes reais em que tais observadores operam, e, ao articular realidades idiossincrticas, pode-se expor a forma do operar sistmico tecnocientfico: como o sistema opera a diminuio da complexidade ambiental na modernidade perifrica da cincia, construindo preferncias internas e como se relaciona com o ambiente ao utilizar tais preferncias. A referncia sempre a sociedade, diferenciada no sistema cientfico. Esta proposta coaduna-se com as demais propostas construtivistas da sociologia do conhecimento cientfico a frente expostas, porm, o referencial sistmico ao modificar pressupostos analticos pode fazer emergir novos fenmenos, ainda no observveis, j que ao mudar a observao, a realidade muda.

    Neste sentido, as perguntas metodolgicas, diretrizes da abordagem sistmica, so as seguintes (ARNOLD, 2004, p. 18):

  • 29

    1- como os sistemas observam e organizam os entornos? 2- quais so os conhecimentos do ambiente que servem de base objetividade

    cotidiana desses sistemas?

    Assim, foi necessria a articulao das perspectivas parciais (entrevistas) com o conjunto dos materiais institucionais produzidos internamente (projetos, linhas de pesquisa, artigos), com o objetivo de se chegar a padres comuns de observao e reproduo, que respondem pela estrutura do grupo e os servem de base ftica para ulteriores comunicaes. Isto est presente, fundamentalmente, no processo de seleo do sistema de uma variedade de possibilidades, onde, seleo significa diminuio de complexidade, com base nos critrios que o prprio sistema elabora.

    Aqui no se pode deixar de fazer meno maneira como este procedimento faz referncia ao conceito de formas de vida de Ludwig Wittgenstein. No interior do sistema so definidos os paradigmas, as preferncias de seleo, as expectativas e o que mais tem sentido para uma determinada comunidade lingustica, e somente para ela. Isto quer dizer, por exemplo, que nas controvrsias paradigmticas na cincia, a vitria de um paradigma sobre outro s pode ser compreendida pela preferncia a uma forma de vida em detrimento de outra, uma articulao entre motivao e seleo, e esta preferncia no pode ser assumida por argumentos no-circulares (BARNES; 1982, p. 65), que no se refiram prpria forma de vida no interior da qual se d sua significao. Neste sentido, um contexto semntico se apresenta com limites, preferncias, expectativas e critrios de seleo. Isto tem relao com a contextualidade da produo do conhecimento cientfico, das selees operadas.

    As selees geradas pelo trabalho cientfico e seus equivalentes materiais so elas mesmas o contedo e o capital do trabalho. O que se reproduz neste ciclo a seletividade per se. (...) considerar a investigao cientfica como construtiva e no como descritiva ver os produtos cientficos como altamente construdos internamente em termos da seletividade que incorporam. Estudar a investigao cientfica , ento, estudar o processo pelo qual se efetuam as respectivas selees (KNORR-CETINA, 2005, p. 64-65).

    Portanto, o sistema cientfico cria seus critrios de seleo generalizados, em seu interior, espaos disciplinares e comunitrios (grupos) diferenciam-se pela construo de subsistemas distintos, com distintos critrios de seleo e preferncia. Coube identificar

  • 30

    estas diferenas na cincia e no sistema biotecnolgico moderno, expondo suas preferncias seletivas. Estas preferncias, na tese, estiveram relacionadas ao sistema global (cincia), ao subsistema (biotecnologia) e ao subsistema perifrico (regime perifrico de produo de conhecimento).

    Analiticamente, a observao parte sempre de uma diferena para se falar da unidade. Neste sentido, para falar de cincia, a diferenciao sistema/entorno se refere ao sistema funcionalmente diferenciado da cincia, ao mesmo tempo em que uma outra forma indicada, qual seja, seu entorno. Este corresponde s comunicaes no estruturadas pelo cdigo verdade/no-verdade (funciona/no funciona), corresponde ento a comunicaes que tm sentido vinculado a outros sistemas funcionalmente diferenciados, a outras formas de vida; a pesquisa privilegiou o sistema poltico, o sistema econmico e o sistema do direito. Mas esta forma de diferenciar corresponde estrutura primria da sociedade, sua forma correspondente aos sistemas funcionalmente diferenciados. possvel que se parta de outras diferenciaes, portanto, de outras unidades que se estruturam na diferena. cincia correspondem diferenciaes disciplinares, as disciplinas so subsistemas do sistema da cincia, se trata, pois, fundamentalmente de uma diferenciao do sistema (LUHMANN, 1996a, p. 319). Assim, fsica, qumica, biologia, sociologia so entornos umas para as outras. Tratou-se a biotecnologia como fenmeno emergente decorrente do acoplamento estrutural entre contribuies de diversas disciplinas. Aos outros sistemas correspondem outras diferenciaes internas, como a poltica de cincia e tecnologia para a poltica, os financiamentos para pesquisa e desenvolvimento para a economia e a legislao de biossegurana para o direito.

    Isto posto, investigou-se grupos de pesquisa cujo recorte temtico foi a biotecnologia, o que envolveu a anlise de projetos autodefinidos nesta disciplina. Averiguou-se tal recorte pela inscrio no Diretrio de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ), e comprovou-se a existncia dos mesmos atravs de telefonemas prvios e visitas. Tal diretrio forneceu dados atualizados sobre os grupos de pesquisa, as linhas desenvolvidas, a produo e a relao com o setor produtivo. O recorte temporal, neste sentido, correspondeu temporalidade do prprio grupo pesquisado e das linhas desenvolvidas. Muitos existem h 30 anos e passaram por todas as transformaes que a biotecnologia passou no mundo, privatizao da pesquisa, empreendedorismo acadmico, judicializao da cincia, os grandes projetos genomas, e a conscincia dos riscos biotecnolgicos recentes.

  • 31

    A pesquisa ento produziu atravs de entrevistas semi-estruturadas dados de segunda ordem at o ponto de saturao (MEJA, 2004, p. 110). As entrevistas foram realizadas em um perodo de dois anos, desde maro de 2006. Devido s dificuldades de financiamento teve-se que adequar as entrevistas, o que no impediu de realiz-las em quatro regies do pas, correspondendo a seis estados da federao: Pernambuco, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paran e Rio Grande do Sul. No total foram realizadas 22 entrevistas, uma foi descartada devido inadequao de sua temtica, que no contemplava os pr-requisitos necessrios para compor o corpus da pesquisa. Estes Estados representam grande parte da produo biotecnolgica no Brasil e detm posio central na produo cientfica, nas suas respectivas regies. Ademais, busou-se entrevistar aqueles lderes de pesquisa que tinham participado ou ainda participavam de comisses de biossegurana e firmas de biotecnologia.

    As organizaes investigadas compuseram um quadro bem distinto de loci de pesquisa possveis no Brasil. So elas: Firmas de biotecnologia, departamentos de biotecnologia de Universidades pblicas e privadas, empresas pblicas de pesquisa e desenvolvimento, empresas incubadas em universidades pblicas e empresas incubadas em universidades privadas. Os entrevistados compuseram tambm um quadro bem distinto de papis: cientistas stricto sensu, empresrios stricto sensu, cientistas-empresrios, diretores de inovao tecnolgica de empresas pblicas, membros da CTNBIO, lderes de pesquisa. O corpus prezou mais pela sua disperso, na tentativa de contemplar o maior nmero de possibilidades de pesquisa e desenvolvimento da cincia e tecnologia no Brasil.

    As instituies visitadas foram: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Belo Horizonte), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Porto Alegre), A Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC-RS, Porto Alegre), Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUC-PR, Curitiba), o Centro Nacional de Recursos Genticos e Biotecnologia da Embrapa (CENARGEN, Braslia), a Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ, Rio de Janeiro), a Universidade Federal de Viosa (UFV, Viosa, Minas Gerais), a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Juiz de fora, Minas Gerais), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, Recife) e Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP, Ouro Preto, Minas Gerais). Abaixo, um quadro resumo das entrevistas, acrescido da informao rea de pesquisa e empresa na qual o cientista fazia parte. Deve-se notar no quadro abaixo que biotecnologia uma rea mais genrica que biologia molecular e melhoramento clssico, envolvendo tcnicas variadas de obteno de

  • 32

    conhecimento biotecnolgico, ao passo que biologia molecular envolve as tcnicas moleculares de conhecimento gentico e engenharia gentica, e melhoramento clssico envolve a seleo de espcimes desejadas sem utilizar tcnicas de engenharia gentica.

    Quadro 1 Documentos e caractersticas - entrevistas DOCUMENTO AREA DE PESQUISA EMPRESA INSTITUIO

    (ENTREVISTA 1) BIOTECNOLOGIA TARGETDNA UFMG (ENTREVISTA 2) MELHORAMENTO CLSSICO NC UFRGS (ENTREVISTA 3) BIOLOGIA MOLECULAR NC UFRGS (ENTREVISTA 4) BIOLOGIA MOLECULAR 4G - BIOTECNOLOGIA PUC-RS (ENTREVISTA 5) BIOLOGIA MOLECULAR EMBRAPA CENARGEN (ENTREVISTA 6) BIOLOGIA MOLECULAR NC FIOCRUZ (ENTREVISTA 7) BIOLOGIA MOLECULAR EMBRAPA CENARGEN (ENTREVISTA 8) BIOLOGIA MOLECULAR EMBRAPA CENARGEN (ENTREVISTA 9) BIOLOGIA MOLECULAR 4G - BIOTECNOLOGIA PUC-RS

    (ENTREVISTA 10) BIOLOGIA MOLECULAR NC UFV (ENTREVISTA 11) INOVAO EMBRAPA - INOVAO NC (ENTREVISTA 12) BIOLOGIA MOLECULAR NC PUC-RS (ENTREVISTA 13) MELHORAMENTO CLSSICO NC UFRGS (ENTREVISTA 14) BIOLOGIA MOLECULAR NC UFJF (ENTREVISTA 15) BIOLOGIA MOLECULAR NC UFRGS (ENTREVISTA 16) BIOLOGIA MOLECULAR EMBRAPA CENARGEN (ENTREVISTA 17) BIOTECNOLOGIA NC PUC-PR (ENTREVISTA 18) BIOLOGIA MOLECULAR ECOVEC/ BIOGENE UFPE (ENTREVISTA 19) EVOLUO NC UFMG (ENTREVISTA 20) BIOLOGIA MOLECULAR NC UFMG (ENTREVISTA 21) BIOTECNOLOGIA NC UFOP Legenda: NC: No Consta.

    Quadro 2 Documentos e caractersticas - artigos DOCUMENTO AREA DE PESQUISA EMPRESA INSTITUIO DE PESQUISDA

    (ARTIGO 1) BIOTECNOLOGIA TARGETDNA UFMG (ARTIGO 2) BIOTECNOLOGIA TARGETDNA UFMG (ARTIGO 3) BIOLOGIA MOLECULAR 4G - BIOTECNOLOGIA PUC-RS (ARTIGO 4) BIOLOGIA MOLECULAR EMBRAPA CENARGEN (ARTIGO 5) BIOLOGIA MOLECULAR EMBRAPA CENARGEN

    A pesquisa selecionou tambm produtos cognitivos cristalizados programas, projetos, artigos. Buscou-se nos programas e projetos, as selees e as preferncias no processo de produo do conhecimento. Estes se referem observao e auto-observao do grupo em relao ao entorno. A estrutura emerge ento na captao de como o grupo observa o entorno (na justificativa, por exemplo) ou a si mesmo (nas linhas, instrumentos a utilizar, mtodos). O que se admite como verdade ou funcionamento inscreve-se no programa (LUHMANN, 1996a). Os contratos com empresas, os limites legais, a adequao s exigncias governamentais, tudo isto inscreve-se no planejamento da

  • 33

    pesquisa, no projeto. Estes so os elos entre o sistema e o entorno, ou seja, definem temporalidades, montante de recursos, limites operativos condicionados. Os peridicos apresentam a forma da produo, materiais e mtodos, teorias, apresentam controvrsias e identificam grupos, relacionam estes s suas selees e, principalmente, expem seu processo de administrao da relevncia na tentativa de estabelecimento de contato com o entorno. As entrevistas apresentam uma reflexividade mais direta, sem passar por formatos consagrados de discurso (literrios) ou sem ter que operar no limite de formas mais rgidas de comunicao. Neste sentido, abre possibilidades para um aprofundamento em relao comunicao reproduzida no interior do grupo e, ainda, a possibilidade de criar uma contraprova em relao aos dados institucionais. A articulao entre entrevista e artigo, fornece uma base real de preferncias e selees de cada grupo.

    Seguiu-se tambm a perspectiva de Arnold (2004), de acordo com o qual o mtodo de anlise de dados que mais se acopla perspectiva construtivista a anlise de contedo, pois permite desagregar os discursos individuais ou grupais e reagrup-los em subtemas especificados, no caso, nos lados das diferenciaes em que se operou a seleo (positividade), isso de acordo com a srie de comunicaes que o observador pr-selecionou como correspondente a cada lado da diferena da unidade. Aps esta fase, buscou-se reorganizar os subtemas em funo do reconhecimento das distines detectadas, esta foi a fase em que a estrutura ganhou relevo (sendo estrutura de expectativas dos sistemas e subsistemas, liga-se semntica da sociologia do conhecimento que relaciona esta estrutura inteno, motivo ou interesse da comunicao na cincia). Ao mesmo tempo, esta estrutura conduz a selees posteriores, conservando a circularidade do processo. Assim, a reproduo da cincia e tecnologia tratada como uma articulao entre expectativas (motivao, inteno ou interesse) e seleo. Com isto, se perguntou em cada etapa da pesquisa:

    1- Em face de quais expectativas se seleciona determinados contratos, linhas de financiamentos, instrumentos, tcnicas, mtodos, teorias, temas, objetos, peridicos, pessoas?

    2- Quais selees apresentam o sistema sob a forma de um emaranhado de comunicaes cujo processamento se refere mais ao lado positivo do cdigo da tecnologia (funcionamento) e menos do da cincia (verdade)?

  • 34

    Partiu-se ento para relacionar estes dados com as hipteses do projeto. Contou-se na anlise com o auxlio do programa QSR N-VIVO 2.0, como codificador da comunicao em torno dos temas presentes nas entrevistas e documentos. Os ns construdos para a codificao esto abaixo (tree nodes) e foram selecionados em funo da diferenciao bsica geral cincia/ sociedade, sendo o lado da sociedade diferenciado posteriormente em outros sistemas sociais: economia, direito e poltica.

    1= Al Tree Nodes 2= /Sociedade 3= /Sociedade/Economia 4= /Sociedade/Economia/ganho 5= /Sociedade/Economia/Firma 6= /Sociedade/Economia/Patente 7= /Sociedade/Economia/Indstria farmacutica 8= /Sociedade/Economia/Produtividade rural 9= /Sociedade/Direito 10= /Sociedade/Direito/Legal-Ilegal 11= /Sociedade/Direito/CTNBIO 12= /Sociedade/Direito/ANVISA 13= /Sociedade/Direito/Biossegurana 14= /Sociedade/Direito/Comit de tica 15= /Sociedade/Poltica 16= /Sociedade/Poltica/Poder 17= /Sociedade/Poltica/Cincia e tecnologia 18= /Sociedade/Inovao tecnolgica 19= /Sociedade/Inovao tecnolgica/Novo-Velho 20= /Sociedade/Empreendedorismo 21= /Sociedade/Cooperao 22= /Sociedade/Universidade 23= /Sociedade/Universidade/Produtividade 24= /Sociedade/Centro-periferia 25= /Cincia 26= /Cincia/Verdade 27= /Cincia/Funcionamento 28= /Cincia/Tecnologia 29= /Cincia/Financiamento 30= /Cincia/Biotecnologia 31= /Cincia/Biologia molecular 32= /Cincia/Colaborao 33= /Cincia/Doena negligenciada 34= /Cincia/Transgnicos 35= /Cincia/Aplicao 36= /Cincia/Biocombustveis

  • 35

    Aps a construo dos ns, passou-se para o processo de codificao das entrevistas, seguindo os procedimentos de codificao aberta presentes na teoria fundamentada de Strauss e Corbin (2008). A codificao proporcionou agrupar dados de acordo com similaridades. Segundo os autores (STRAUSS; CORBIN, 2008, p. 26), os procedimentos de codificao consistem em:

    1- construir em vez de testar a teoria; 2- fornecer aos pesquisadores ferramentas analticas para lidar com as massas de

    dados brutos; 3- ajudar os analistas a considerar significados alternativos para os fenmenos; 4- ser sistemtico e criativo simultaneamente;

    5- identificar e relacionar os conceitos que so os blocos de construo da teoria.

    No entanto, o ponto 1 foi descartado j que no se pretendeu com esta tese construir uma teoria. O que este procedimento nos proporcionou foi relacionar a codificao das entrevistas s categorias analticas pr-selecionadas em funo da teoria utilizada e finalmente relacionar os resultados s hipteses propostas.

    O que se queria buscar era a dimenso da codificao sociedade na cincia, incluindo a diferenciao na prpria sociedade entre centro/periferia, deste objetivo partiu uma primeira codificao. Posteriormente, procurou-se averiguar at que ponto a presena da codificao sociedade nas entrevistas influenciava a codificao funcionamento. Assim, sociedade foi tambm decomposta em outros ns, como inovao tecnolgica, empreendimento, entre outros. O que importava era verificar a relao entre a observao do entorno (por meio do n sociedade) e a auto-construo do prprio sistema, de suas preferncias e selees. Como modo de exposio das relaes das entrevistas com os ns, optou-se por expor as entrevistas que foram fortemente codificadas com determinados ns, utilizando o modelo (model) do prprio QSR N-VIVO. Para isso, observou-se a incidncia de determinados ns nas entrevistas, no sentido da recorrncia: as entrevistas expostas no modelo deveriam corresponder a um nmero considervel e o sentido do trecho codificado deveria corresponder a positivao do cdigo. Por exemplo, em relao ao cdigo centro/periferia, a entrevista deveria conter tal codificao em quantidade relevante e o sentido dos trechos codificados deveria ressaltar tal cdigo, como motivao para a prtica.

  • 36

    Grande parte dos ns de codificao selecionados tinha um contedo analtico. Deste modo, ao codificar uma frase ou pargrafo, j estava operando um princpio de anlise do material, que, no entanto, foi aprofundado com anlises posteriores. Por exemplo, o n funcionamento identificava algum trecho que correspondia hiptese geral da tese, no entanto, o n aplicao necessitava de outras informaes para que se pudesse considerar aquele trecho como representativo da hiptese geral. A este procedimento posterior codificao aberta, Strauss e Corbin (2008) chamam de codificao axial.

    Os documentos, material institucional, folders das instituies e grupos pesquisados foram utilizados como dados complementares e a maioria serviu para endossar o argumento, ainda que no aparecessem no corpo da tese. Caso oposto ocorreu com os artigos dos grupos de pesquisa. Privilegiou-se esta fonte de dados porque nela aparece a cincia sob a forma tolerada pela sociedade, por meio de um mecanismo que opera na escrita do artigo chamado de administrao da relevncia (KNORR-CETINA, 2005). A administrao da relevncia a depurao da contingncia da prtica cientfica, mostrando as selees, antes contingentes, como necessrias. Neste ponto, pode-se averiguar o quanto cincia se encontra acoplada sociedade, e o quanto tal acoplamento cruza a prtica cientfica. exatamente a reconstruo dos cruzamentos dos ns cincia e sociedade na anlise o que forneceu a base compreensiva para a hiptese.

    Deve-se fazer uma ressalva quanto ao alcance de uma pesquisa como esta. Obviamente tal pesquisa no fornece informao para uma generalizao terica. Desconfia-se que alguma pesquisa o faa, na medida em que todas as relaes selecionadas para testar uma hiptese so contingentes e limitadas: encerram uma dimenso da realidade, no a realidade, sempre desconhecida porque construda. Esta pesquisa tem a pretenso de reproduzir a cincia e seu cnone generalizado, utilizando um ponto de vista que parte de um lugar especfico, com preferncias e selees contingentes. Pode-se reivindicar daqui sua originalidade, j que nenhuma observao igual outra.

  • 37

    5 Organizao da tese

    Nos captulos seguintes o que guiar o olhar sobre a cincia a ideia de que o conhecimento cientifico contextualizado. Sabe-se, porm, que existem diversas maneiras de contextualizao, dependendo de onde e o que se observa. Utilizou-se o critrio terico da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann para observar a formao dos sistemas sociais. Segundo esta concepo, discutida e contextualizada em um captulo terico (captulo 1), pode-se observar o processo de formao de sistemas sociais de trs modos: sistemas sociais, sistemas organizacionais e interaes (LUHMANN, 1998). Baseando-se nesta proposta terica, o desenho da tese e a investigao foram concentrados nos aspectos sistmico e organizacional da formao dos sistemas sociais que participam do regime de produo de conhecimento. Deste modo, buscou-se caracterizar a cincia ocidental moderna, primeiro em termos sistmicos, ressaltando o programa experimental e o controle do cdigo da verdade e no-verdade (captulo 2). Neste nvel ainda de formao sistmica discutiu-se as comunicaes cientficas que se reproduzem no subsistema biotecnolgico (captulo 2). Posteriormente investigou-se tal sistema social em termos de sua crescente organizao, ressaltando sua reproduo por meio de decises (contextuais) em organizaes como firmas de biotecnologia, incubadoras de empresas e universidades (captulo 3). No captulo 4, a regra de observao centro/ periferia foi utilizada para ver como o sistema cientfico organizado se reproduz na periferia do sistema cientfico global, especificamente como sistema biotecnolgico perifrico. E finalmente no captulo 5, acopla-se estes dois processos no estudo emprico da reproduo cientfica em grupos de pesquisas biotecnolgicos na periferia.

  • 38

    CAPTULO 1 Da rede contnua aos sistemas sociais

    Cincia no poltica por outros meios. Ao contrrio, eu defendo um olhar cuidadoso nas condies da produo do trabalho cientfico em questo e as relaes sociais que a sustentam.

    Timothy Lenoir

    Este captulo uma investigao sobre os conceitos utilizados nos estudos sociais da cincia e tecnologia, focalizando principalmente a unidade de anlise que as diferentes vertentes utilizaram na discusso da relao cincia/ sociedade. A investigao leva em conta estes conceitos no interior da teoria social, relacionando-os s diferenciaes sociolgicas clssicas como ao e estrutura, indivduo e sociedade, macro e micro teorizao. O objetivo observar as unidades de anlise com o olhar da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e apresentar finalmente como o conceito de sistema social pode ser uma forma que melhor lida com os problemas relacionados ao estabelecimento dos limites da relao unidade/ totalidade. O captulo discute duas premissas desta problemtica terica: aquela que considera a relao entre cincia e sociedade de maneira contnua - os processos cientficos no apresentando nenhuma diferena em relao aos processos sociais mais amplos -, ou, ao contrrio, aquela que considera tal relao levando em conta a diferena constitutiva de cada um destes mbitos cincia e sociedade como mbitos sui generis. Escolher entre estas premissas estruturar conceituaes diferentes e tratamento distinto para a relao cincia/ sociedade: o que pode fazer com que a cincia seja considerada um epifenmeno do fenmeno social mais amplo ou um fenmeno com qualidades prprias.

    Assume-se, nesta tese, a premissa de que h uma distino entre cincia e sociedade. Busca-se apresentar um referencial terico sistmico que permita observar a cincia como diferenciao processada no interior da sociedade e, portanto, que especifica seus prprios processos constituintes. Posteriormente, em funo da unidade de anlise sistema, apresentar-se- uma conceituao que permite observar a diferenciao centro/ periferia e, deste modo, possibilita compreender de forma mais acurada, o contexto

  • 39

    perifrico da produo cientfica. com o olhar voltado para a teoria social como um todo que se busca, neste captulo, teorizar o sistema sociedade e o sistema cientfico.

    1.1 A noo primitiva de sistema e a unidade de anlise dos estudos da sociedade

    A relao da sociologia com seu objeto, a sociedade moderna, se constri dentro do sistema da cincia, e todas as conceituaes que emergiram em sua histria so autoconstrues. Este objeto sociolgico torna-se, portanto, aquilo que o subsistema da sociologia descreve. A sociologia, por seu turno, transforma-se em relao com a sociedade, tal relao , portanto, sempre resignificada, reinterpretada. Isso posto, a observao sociolgica da sociedade moderna pode apresentar uma esfera crtica, normativa e descritiva, no exclusivamente, embora algumas abordagens se pretendam a isto. Estas observaes podem ser diferenciadas temporalmente e ganham, em perodos distintos, prevalncia em relao s outras, ao se autoconstruir atravs de suas agendas e temticas de pesquisa prprias, orientadas pela observao, apropriadas, por exemplo, ao momento poltico3. Toda teoria sofre destes condicionamentos, embora em uma sociedade em que a memria materializada sobrevalorizada, os fluxos e refluxos da aceitao e negao so mais corriqueiros, vide o caso do marxismo. Com a teoria dos sistemas no seria diferente. Em sua histria houve fluxos e refluxos, controvrsias cognitivas e polticas, e, isto tambm, se deveu ao estado da arte de diversas disciplinas ciberntica, biologia, teoria da informao, sociologia e ao estado da prpria sociedade.

    No correto afirmar que a teoria dos sistemas seja um marco de pensamento do sculo XX, porque em sua estrutura terica convivem elementos conceituais de diferentes teorias filosficas muito anteriores, ainda que nelas a ideia de sistema fosse apenas uma fraca intuio. Deste modo, como sustenta o prprio criador da abordagem sistmica atual, a noo de sistema to velha quanto a filosofia moderna (BERTALANFFY, 1972, p. 407). Esta noo estaria presente, por exemplo, na busca por uma ordem que pudesse

    3 Na histria da sociologia no so poucos os exemplos de teorias credenciadas e apropriadas a mbitos

    especficos como o direito e a poltica. O exemplo mais destacado foi o Projeto Camelot do Governo dos Estados Unidos, criado em 1964, que visava fundamentalmente a elaborao de um modelo de sistemas sociais com o intuito de prever e influenciar o curso da histria, primeiramente na Amrica Latina. O exrcito americano recrutou ento cientistas sociais funcionalistas para elaborarem tal plano e este contexto de pesquisa e aplicao acabou gerando relatrios carregados de uma linguagem higinica e sanitria (HOROWITZ, 1969).

  • 40

    controlar um catico mundo primitivo pelos filsofos gregos, por meio do pensamento e ao racional, como Aristteles procedeu ao afirmar que o todo mais que a soma das partes. Estaria presente tambm, como todos unificados, em Santo Toms de Aquino na concepo de que as partes dependem do todo. Esta a premissa subjacente s investigaes da problemtica sistmica posterior. As diferentes manifestaes da noo de sistema, ainda que fossem intuies vagas, seguiram as possibilidades tericas de seu tempo, no se articularam em uma teoria comum, nem tiveram a mesma rubrica: foram manifestaes espordicas, condicionadas historicamente, de uma mesma noo que, ainda que intuitivamente, perpassou as diversas abordagens.

    Na noo de sistema est a ideia de que qualitativamente h uma ruptura entre os elementos discriminados em uma relao e a prpria relao: Cidados e a Polis, Criador e criaturas, Estado e sociedade, organismo e clula, sociedade e indivduo, sistema e ambiente. Todas estas diferenciaes tm como caracterstica a assimetria entre os elementos da relao e a relao mesma, e, neste sentido, a relao tem caractersticas que no podem ser reduzidas s caractersticas dos elementos relacionados. A fenomenologia da relao aquilo que a prpria encerra, sem precisar recorrer s caractersticas que so prprias dos elementos que a constitui. A formulao mais moderna para esta problemtica que resistiu ao tempo a ideia de que o todo no a soma das partes: a emergncia de uma totalidade cria uma especificidade fenomnica que passa a responder por si mesma, sem precisar de uma referncia externa para a sua caracterizao. Segundo Sorokin (1969, p.125) a floresta tem uma realidade, propriedades e funes muito diferentes da soma das propriedades de todas as rvores que a compem.

    Teorias como a teoria das mnadas de Leibniz (1646-1716) expressam esta noo em termos metafsicos. As mnadas, sobre as quais ele se debrua em seu mais famoso livro, so entidades simples que se juntam e constituem agregados, e ser sua constituio interna em determinados momentos que conduzir sua forma para configuraes futuras. Compostos vivos so pensados como sendo compostos por mnadas que encerram o limite do corpo, dentro do qual mnadas centrais esto implantadas e so o princpio da unidade viva (RUSSO, 1938). Ainda quando se analisa o fenmeno biolgico4, sob os auspcios do

    4 A ideia de mnada se assemelharia clula viva, esta seria sua referente emprica mais prxima

    (MARTNEZ, 1981). Robert Hook utilizou a palavra clula 50 anos antes do texto de Leibniz, sendo provvel que uma concepo de corpsculos viventes microscpicos j circulasse na atmosfera intelectual de Leibniz. Posteriormente a prpria evoluo do conceito de clula iria aparentemente se utilizar do monadismo ao considerar estas estruturas viventes como unidades compostas (sistemas vivos) e no simples, como Hooke as havia descrito. Posteriormente, uma outra transformao terica haveria de recriar o

  • 41

    monadismo, se apresentam elementos tericos que posteriormente faro parte de teorizaes sistmico-funcionalistas, como funo, o vivente como um ser em si mesmo,

    desenvolvimento interno a partir de programas autnomos, adaptao, a negao da mudana por meio de foras externas - Do que acabamos de dizer segue que as mudanas naturais das Mnadas procedem de um princpio interno, posto que uma causa externa no pode influir em seu interior (LEIBNIZ, 1981, pg. 81) -, a negao da causalidade, se tais elementos permitem ou no intercmbio de algum tipo, entre outros.

    Tampouco existe meio de explicar como uma Mnada pode ser alterada ou mudada em seu interior por alguma outra criatura, posto que nela no cabe transpor nada e nem conceber movimento interno algum que possa ser excitado, dirigido, aumentado ou diminudo dentro dela, como se fosse possvel nos compostos, onde existe mudana entre as partes. As Mnadas no tm em absoluto janelas pelas quais possa entrar ou sair algo (LEIBNIZ, 1981, pg. 77).

    Esta noo adentrou outros campos do saber na medida em que estes buscavam o fechamento metodolgico de seus objetos, processo que coincide com a prpria institucionalizao das disciplinas responsveis pelas investigaes. Era contra a disperso do objeto no todo que, metodologicamente, os observadores utilizavam a diferenciao parte/ todo, o que possibilitava selecionar aspectos especficos do mundo. complexificao destes campos de saber correspondeu a simplificao do objeto em torno de unidades discretas de anlise que mudaram o alcance do empreendimento cientfico: da diferenciao medieval holstica em parte e todo, para a diferenciao especificada entre sujeito e objeto5. O sculo XIX foi o herdeiro mais direto desta compreenso e, no

    monadismo e estabelecer uma outra unidade para a vida, desta vez o gene (Gregor Mendel como seu proponente), descrevendo o desenvolvimento dos organismos atravs da unidade da vida. O indivduo corpreo ser agora um fenmeno (somtico) um fentipo , porque a matria realmente biolgica o gene, e gene nem sequer um corpsculo (...), mas sim uma unidade funcional (...), um foco puntiforme que contem um programa (MARTNEZ, 1981, pg. 38). 5 creditado a Ren Descartes (1596-1650) o impulso metodolgico para tal mudana, mas deve-se atentar

    para o fato de que a filosofia mecanicista da revoluo cientfica em tudo contribua para compreender as coisas desta forma e para fornecer a base para um impulso decompositivo. Primeiro que o pensamento ps-medieval superava concepes escolsticas, de chamariz aristotlico, que compreendiam o engenho humano apartado do natural, este, divinizado, era incapaz de ser superado, restando aquele a artificialidade e a imitao. Segundo, a metfora do relgio, mecanismo que remonta ao final do sculo XIII, era suficientemente possuidora de uma nova compreenso do mundo, o relgio encerrava seu prprio mecanismo em torno de peas funcionais que podiam ser separadas e re-montadas. Finalmente, a organizao da pesquisa em torno do mtodo experimental, em desenvolvimento na poca, se adequava perfeitamente aos dois fatores anteriores na medida em que necessitava de uma concepo no-teolgica da natureza e mecnica do funcionamento para que se pudessem fazer experimentos sem implicar a afronta da ordem social (ver SHAPIN, 1999).

  • 42

    coincidentemente, o sculo de efetivao de grande parte das disciplinas hoje estabelecidas e com objetos definidos6.

    Importante ressaltar, neste perodo de consolidao da sociologia como disciplina, o trabalho de Georg Simmel e seus estudos das formas sociais, provavelmente a teoria social onde aquela noo de sistema antiga esteve mais presente. Simmel trata das formas sociais, um conceito fundamental tanto para suas pretenses exegticas, quanto para as pretenses cientficas da ento nascente disciplina. Segundo Wolff (1950, p. xxxix), a noo de forma a mais importante contribuio filosfica e metodolgica para o estabelecimento da sociologia como cincia, e, se pudesse ser definida em uma nica expresso algo ingrato pelos vrios usos em seu trabalho , poderia ser entendida

    como aquele elemento que entre os elementos relevantes, tanto para uma investigao particular quanto para um ponto de vista sociolgico geral, relativamente estvel em contraste com o contedo que, com as mesmas especificaes, relativamente varivel (WOLFF, 1950, p. xxxix).

    aqui que determinados elementos da anlise sistmica posterior encontram sua gnese sociolgica. Conceitos como forma, elemento, estabilidade, relao, passaro a ser recorrentes na anlise sociolgica e as perguntas metodolgicas de partida passam a prestar conta da forma estvel do objeto de anlise, dos elementos que o compem e da relao entre forma e elemento. A sociedade passa a ser estudada sobre o ponto de vista de elementos estveis que entram em interao formando o horizonte total de possibilidades de vivncia. Como segue:

    Tudo isso nos conduz questo do papel das formas da vida social em Simmel. A ideia bsica a de que determinados padres de interao destacam-se dos contedos (sentimentos, impulsos etc.) que de certo modo lhes davam vida e passam a operar por sua prpria conta, como receptculos para relaes que se ajustem a eles. Isso permite pensar a sociedade no diretamente como um conjunto de interaes em fluxo, mas como um conjunto de formas padronizadas (COHN, 1998, p. 28).

    Este impulso investigativo na direo das formas sociais pode ser melhor descrito como um impulso no sentido da forma socialmente relevante para o processo social. Descartar aquilo que, mesmo constatando a existncia, seria suprfluo para a anlise social.

    6 A esse respeito ver estudo de Lenoir (1997) sobre a institucionalizao do que ele, usando Pierre Bourdieu,

    chama de campos disciplinares.

  • 43

    Neste perodo de institucionalizao disciplinar avanada, as cincias estavam procura de suas unidades fundamentais, elementares, sobre as quais se assentaria a totalidade dos fenmenos correspondentes a seu campo de anlise, um ponto arquimdico para sustentar a observao. Isto era resultado, sem precisar retroceder a Demcrito e aos atomistas gregos, da busca incessante do cnone da fsica moderna pelos tijolos constitutivos da matria, que no sculo XIX ganhara fora nas novas propostas da estrutura atmica. O modelo da fsica foi incessantemente reiterado e buscado pelas outras cincias, a sociologia includa, e muitas vezes as conquistas no passavam de analogias grosseiras de conceitos como elemento, fora, mecnica, inrcia7. As teorias sociolgicas da derivadas eram de natureza singularista-atomistas ou sistmico-totalitrias, e privilegiavam a parte ou o todo nas anlises, dificilmente buscavam a articulao.

    O problema reside fundamentalmente naquilo que se considera como unidades elementares, afinal, at hoje, nem a fsica chegou s suas8. Esta problemtica orientou as posteriores discusses tericas sobre ao e estrutura, imbrglio sociolgico mor na definio de paradigmas sociolgicos no sculo XX. Mais do que isto, assumir um modelo fsico como horizonte metodolgico, naquele momento, envolveu assumir tacitamente a ideia do observador externo, mundo objetivo e descrio isenta de valores. Porm, a sociologia busca se separar deste obstculo epistemolgico ainda cedo e acaba caindo em outros: se a indicao objetiva do fenmeno uma impossibilidade, a negao de um mundo objetivo no soluciona o problema; se no h observador externo, o construtivismo radical tampouco pode servir de referncia ao problema da legitimidade da observao. Estes problemas permaneceram latentes em grande parte das propostas tericas elaboradas. A definio do ponto arquimdico da observao, da unidade discreta de anlise, do unit act da sociologia fora subteorizado, tacitamente aceito nas anlises.

    7 Embora houvesse tambm as analogias biolg