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ISSN 1809-0362
98 | Candombá – Revista Virtual, v. 2, n. 2, p. 98–117, jul – dez 2006
MANEIRAS DE PENSAR E DE REPRESENTAR O MUNDO:
OS ENGENHOS DO NORDESTE DO BRASIL NO DISCURSO TÉCNICO, NA PINTURA HOLANDESA E NO ROMANCE REALISTA
Rosiléia Oliveira de Almeida*
* Professora do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas das Faculdades Jorge Amado – FJA, Salvador - BA. Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas - SP. E-mail: [email protected] Resumo: As implicações conceituais e cognitivas na história natural e nas artes das mudanças nas maneiras de pensar e de representar o mundo, ocorridas com o advento da imprensa, na idade clássica, são o foco deste artigo. A nova concepção teórica do mundo que então surgiu envolveu a redução do campo da experiência humana a uma ordem descritiva que procurava suprimir toda mediação entre as palavras e as coisas e atender à crescente expectativa de que a ciência se tornasse acessível a todos e propiciasse o progresso e a prosperidade. As recomendações de Miguel Calmon Du Pin e Almeida para a modernização dos meios técnicos de produção de açúcar nos engenhos no Brasil no início do século XIX, a pintura holandesa de paisagens do século XVII e sua relação estreita com a cartografia nas representações dos engenhos do Nordeste do Brasil por Frans Post e, ainda, o romance regionalista de José Lins do Rego, do início do século XX, ambientado em engenhos do Nordeste brasileiro, nos quais o autor empenha-se mais em copiar a realidade do que em transfigurá-la, buscando uma correspondência unívoca entre o mundo simbólico e o mundo real, são evidências de que os modelos conceituais emergentes influenciaram profundamente as formas de ler, de escrever e de representar os engenhos do Nordeste brasileiro. Palavras-chave: concepções teóricas de mundo; modelos conceituais; discursos da ciência; engenhos do Nordeste do Brasil. Abstract: The conceptual and cognitive implications, in the natural history and in the arts, of the changing in the ways of thinking and representing the world that occurred with the advent of the press in the classical age, are the focus of this article. This new theoretical conception of the world, that turned up then, reduced the human experience field to a descriptive order that tried to remove all the mediation between the words and the things and tired to mind the increasing expectation that science had become accessible to everybody and brought progress and prosperity. The recommendations of Miguel Calmon Du Pin e Almeida to modernize the techniques of production of sugar on the Brazilian farms in the beginning of XIX century, the Dutch painting of landscapes of the XVII century and its close relation with the cartography in the representation of the sugarcane farms in the Brazilian northeast by Frans Post, and the regional novel from José Lins do Rego, in the beginning of the XX century, in which the characters lived on sugarcane farms in the Brazilian northeast, in which the author endeavors more in coping the reality than transfigur it, trying to find a univocal correspondence between the symbolic world and the real world, are evidences that the emergent conceptual models affected deeply the way of reading, writing and representing sugarcane farms from the Brazilian northeast. Keywords: theoretical conception of the world; conceptual models; speeches of the science; sugarcane farms from the Brazilian northeast. INTRODUÇÃO
Nos séculos XVII e XVIII as viagens científicas de descobrimento, possibilitadas pelas novas
maneiras de representar o mundo no papel e que surgiram com o advento da imprensa, envolviam a
busca de ler e descrever as “terras não mais tão distantes”, de forma factual, objetiva e impessoal, o que
se evidenciou na pintura holandesa, na cartografia, na história natural, nos avanços técnicos e, até
mesmo, na literatura.
O processo de colonização do Brasil foi marcado por esta nova compreensão do mundo. Os
naturalistas e artistas que aqui estiveram naquele período buscavam apresentar à Europa as plantas, os
animais, as paisagens e os cenários sociais por si mesmos, buscando eliminar os significados e as
interpretações. Por outro lado, na literatura, vários autores manifestaram a pretensão de retratar a
realidade brasileira, sem retoques.
R. O. Almeida. Maneiras de pensar e de representar o mundo: os engenhos do Nordeste do Brasil no discurso técnico, na pintura holandesa e no romance realista
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Neste trabalho analisamos como as mudanças nas formas de representar o mundo, que se
processaram no cenário mundial, foram sendo traduzidas e ressignificadas na descrição das práticas
cotidianas nos engenhos de cana-de-açúcar do Nordeste brasileiro.
1 A REDUÇÃO DA EXPERIÊNCIA PELAS REPRESENTAÇÕES CIENTÍFICAS
Usando a metáfora do “mundo no papel”, Olson (1997b) considera que o advento da imprensa no
século XVII representou um profundo impacto nas maneiras de pensar, com grandes implicações
conceituais e cognitivas, pois envolveu uma nova compreensão dos textos, que passaram a ser vistos não
mais como suporte da memória1, mas sim como representações.
A produção dos textos naquela época passou a envolver uma nova atitude em relação aos signos,
uma vez que a leitura passou a ser baseada no sentido literal e a escrita transformou-se na construção de
representações supostamente verídicas, com base nas propriedades dos objetos, as quais, também,
supostamente, todos poderiam ver.
Os mapas, no século XVII, ao buscarem traduzir o mundo no papel como forma de atender às
necessidades da navegação e de fornecer uma visão compreensível do planeta, representavam uma nova
concepção teórica do mundo. Essa nova concepção impulsionou a busca da criação de um mapa
abrangente do mundo, capaz de integrar as informações acumuladas durante as freqüentes viagens de
descobrimento às “terras distantes” que ocorriam naquela época, o que só se tornou possível com a
invenção da imprensa e da gravura e com a matematização do espaço geográfico.
Os mapas tornaram-se, assim, “o esquema conceitual em termos do qual o mundo percebido pelos
sentidos podia ser compreendido” (OLSON, 1997b, p. 224) e que, por outro lado, propiciava novas
predições para as viagens de descobrimento, que lhes serviam de testes empíricos. Enquanto
representações teóricas, permitiam pensar sobre o desconhecido, diferindo das representações
intuitivas envolvidas nas práticas de navegação de determinados povos, úteis apenas como apoio para a
memória, ou seja, para pensar o que já se sabe.
Embora ambas envolvam operações mentais sofisticadas e possam resultar em conhecimentos
precisos, há diferenças fundamentais entre as representações teóricas e intuitivas nos quadros de
referência, na forma de determinar a localização do barco e, ainda, na natureza e forma de execução das
operações mentais envolvidas. No emprego de mapas a partir da experiência prática, as operações
mentais de observar, calcular e interpretar ocorrem simultaneamente e de forma implícita, ao passo que
no uso de mapas, enquanto modelos teóricos, tais operações são executadas em seqüência e de forma
explícita.
1 Um fato histórico ilustrativo da concepção da escrita enquanto suporte da memória é a construção da biblioteca de Alexandria no século IV a.C. Concebendo, com base na influência dos gregos, que a escrita era símbolo de sabedoria e poder, os egípcios construíram essa biblioteca com o objetivo de “abrigar a totalidade do conhecimento humano [...], constituindo-se na memória do mundo”. (MANGUEL, 1997, p. 217, grifo do autor).
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As mudanças na maneira de pensar, proporcionadas pela imprensa e pela experiência com o uso dos
mapas “teóricos”, tiveram grandes repercussões na construção do conhecimento, pois, se no antigo
mundo oral a natureza deveria ser contemplada, agora ela passa a ser concebida como algo a ser
“explorado”, o que se verifica, na Física, com a matematização do movimento por Galileu, e, na Botânica,
com a iconografia das plantas.
A matematização do movimento representou uma mudança radical, pois as propriedades não
espaciais da natureza passaram a ser vistas como susceptíveis de serem representadas geometricamente,
o que foi traduzido na célebre frase de Galileu de que o livro da natureza está escrito em linguagem
matemática, ou seja, representado no papel. Uma outra revolução notável na maneira de pensar
correspondeu à formulação das leis do movimento de forma algébrica. Dessa forma, as teorias, antes
concebidas como produto da indução, ou seja, da simples e fiel tradução em símbolos do que se conhece
através da experiência, adquirem uma forma lógica e preditiva, concebida como verdadeira. Assim, as
teorias, enquanto linguagens escritas e formalizadas, passam a ser testadas pela experiência, através de
um processo dedutivo.
Na Botânica, a partir do século XVI e XVII, também houve um significativo esforço de representar o
conhecimento das plantas em imagens e textos. Antes do advento da imprensa e da gravura havia
dificuldade de se representar as plantas, pois, se por um lado, os textos eram insuficientes para traduzir
seus detalhes visuais, por outro lado, as cópias sucessivas dos desenhos alteravam seus traços
distintivos.
No século XV, mesmo com a impossibilidade de reprodução fiel e de difusão das imagens das
plantas, já havia uma tentativa de superar a mera representação artística pela representação realista das
plantas. Porém, os progressos na padronização dos desenhos e na sua difusão, em decorrência dos
avanços na impressão e na gravura, associados à inexistência na Botânica de uma linguagem técnica de
sentido preciso e universal para a descrição das plantas, fez com que no século XVII fossem intensificados
os esforços para separar as funções técnicas das funções meramente estéticas do desenho. Assim como
na arte holandesa do mesmo período, os desenhos técnicos das plantas buscavam representar apenas as
suas propriedades visíveis, excluindo todas as associações simbólicas ou mitológicas.
No século XVIII, quando a descrição científica passou a se coordenar com o desenho ou, em certos
casos, a dispensá-lo, é que a Botânica se converteu de fato em uma ciência. Para o botânico sueco Lineu,
a descrição botânica estaria vinculada à representação das características visíveis, designáveis e
retratáveis das plantas, desprezando as diferenças individuais e as similaridades com outras plantas. Tais
representações das plantas buscam retratar suas propriedades universais, independentemente de suas
funções sociais ou simbólicas, adquirindo o estatuto de modelos conceituais, de quadros teóricos de
referência, que orientam o estudo das plantas reais, o que representou uma ruptura epistemológica
significativa com a biologia prática do senso comum.
Apesar de hoje concebermos que toda observação está carregada de teoria e de interpretarmos
como epistemologicamente ingênuas as representações científicas dos séculos XVII e XVIII, seus autores
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tiveram uma grande importância ao promoverem a emergência de um discurso teórico e mais objetivo do
mundo. Ao consultarem diretamente o mundo, eles colocaram em questionamento o discurso mediado
pelos textos das autoridades medievais.
Segundo Verger (2001, p. 66), nas escolas da Idade Média o saber estava baseado exclusivamente
nos livros. “Nem a imaginação criadora, [...] nem, essencialmente, a observação direta dos fenômenos ou
a experimentação tinham lugar ali”. Havia textos básicos ou “autoridades” que, a partir de um consenso
unânime, forneciam os conteúdos do ensino, entre os quais se destacavam a Bíblia e as obras dos
filósofos antigos, aos quais se juntavam obras de ‘sábios modernos’, com menor prestígio, mas também
consideradas úteis. Embora o século XII tenha se caracterizado por um grande entusiasmo intelectual e
espírito crítico, a renovação dos saberes ensinados ocorria exclusivamente por dois processos: a melhoria
dos métodos de exegese dos textos e o acesso a novos textos, especialmente por meio das traduções.
O discurso analítico-referencial da ciência do século XVII se contrapôs ao discurso da ciência
medieval, que buscava detectar os sinais que se ocultavam nos acontecimentos, a partir do pressuposto
da existência de uma identidade entre a leitura do Livro da Natureza e a leitura do Livro das Escrituras.
Para os escritores modernos os textos da ciência medieval eram excessivamente ambíguos e
polissêmicos, pois remetiam a “significados profundos, ocultos ou místicos”, dando margem e, até
mesmo, estimulando a leitura nas entrelinhas. Entre estes escritores destacou-se Francis Bacon, que
buscou fundamentar metodologicamente a ciência empírica e preconizou uma linguagem transparente
para representar o mundo. (OLSON, 1997a, p. 178).
Os escritores do século XVII tinham uma profunda desconfiança em relação às palavras. Para eles,
as palavras, situando-se entre as idéias e as coisas, impediriam a representação correta. Esta só seria
alcançada pela leitura direta do Livro da Natureza, sem a mediação das palavras, sempre sujeitas à
ambigüidade, o que para Galileu se daria pela linguagem matemática. Essa leitura era vista como um
processo “mais ou menos ‘algorítmico’, mais ou menos mecânico, e disponível a todos que seguissem os
procedimentos corretos”, dispensando a interpretação e o comentário, que adquiriam, assim, uma
conotação pejorativa. (OLSON, 1997a, p. 183).
Olson (1997a, p. 185) destaca a existência de um “claro vínculo entre a metodologia científica e a
teologia protestante”, implicando em uma maneira objetiva de ler a Natureza e a Escritura Sagrada,
fundamentada nas evidências diretamente disponíveis para os sentidos. Através de métodos apropriados
seria possível ter acesso à estrutura última da realidade e à verdade religiosa.
Para os escritores da Reforma Protestante a interpretação correta da escritura sagrada deveria se
basear estritamente nos sentidos explicitamente relevados pelos textos, eliminando-se os sentidos
espirituais e alegóricos, vistos como produtos da imaginação do leitor. A metáfora da leitura do Livro da
Natureza passou a seguir o mesmo pressuposto: os sentidos estariam inscritos nas propriedades
observáveis dos objetos e poderiam ser revelados através de seu exame cuidadoso e pelo esforço de
eliminar, senão da mente, pelo menos do discurso, do mundo no papel, as indesejáveis conjeturas e
hipóteses.
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Eliminar do discurso tudo o que é produto da imaginação exigiu uma nova atitude. Se por um lado a
verdade de Deus passou a ser revelada apenas através da sua obra, essa obra só poderia ser
compreendida por aqueles que conhecessem a linguagem matemática da natureza. A validade das leituras
da Escritura e da natureza passou a ser conferida pelo “testemunho dos sentidos”, com a adoção de um
método mecânico, especificável e neutro de avaliar as evidências, consideradas claramente visíveis para
todos.
Apesar do fracasso do protestantismo e da ciência empírica, tendo em vista o pensamento
epistemológico atual, em atingir suas metas de decifrar o sentido definitivo da Escritura e de alcançar o
conhecimento verdadeiro do Livro da Natureza, respectivamente, eles representaram a superação da
leitura mística do fim da Idade Média, inaugurando uma nova maneira de representar o mundo no papel,
especialmente importante naquele momento em que as fronteiras do mundo estavam se ampliando com
as viagens de descobrimento. (OLSON, 1997a).
Envolvida com a nova maneira de representar o mundo no papel, a comunidade científica francesa
dos primeiros anos do século XIX, “sustentada por uma ideologia progressista, por uma preocupação com
a interconexão entre os diferentes ramos do saber e pela fé na precisão do método científico”
(DHOMBRES, 1996, p. 257), promoveu um crescimento consistente na produção de livros, seguindo uma
tendência que começou a se manifestar na última década do século XVIII, ou seja, a década da Revolução
Francesa, tendo em vista o projeto político dos revolucionários de difundir os conhecimentos científicos e
as invenções que deles decorreram, como, por exemplo, o sistema métrico.
Diante da progressiva secularização da sociedade, passa a ser atribuída à ciência, naquela época, a
significativa função de controlar o destino da humanidade, pois a ela eram associadas expectativas de
mudanças sociais e de progresso. Neste sentido, a ciência é incorporada ao discurso político, que
propugna a necessidade de que os conhecimentos científicos, mesmo os mais abstratos, se tornassem
acessíveis ao público. Muitos sábios da Revolução Francesa, convencidos pelo mito de Condillac da
“ciência ao alcance de todos”, se dedicaram diretamente à tarefa de popularizar suas obras. Porém, o que
se constatou é que o nível de formalização e de especialização alcançado pela ciência já naquela época
colocou-a inteiramente fora do alcance dos leigos.
Ao perceber a impossibilidade de popularização da ciência através de obras originais dos cientistas,
que, segundo Dhombres (1996, p. 284), não passou de um “fogo de palha”, o governo revolucionário
estimulou a produção de manuais didáticos e de currículos estruturados.
Em relação à produção de textos dedicados à explicação de técnicas específicas, não houve um
aumento significativo durante a primeira década do período revolucionário. Muitas obras dedicavam-se ao
contexto militar e incluíam, com freqüência, frases de teor revolucionário. Outra tendência das obras era a
“divulgação de técnicas para uma vida mais confortável, que provieram naturalmente do progresso”
(DHOMBRES, 1996, p. 279), entre as quais aquelas que objetivavam aliviar o trabalho e gerar
prosperidade pelo domínio das artes e ofícios. A formação técnica, antes vinculada às corporações de
ofício, é transferida para os manuais técnicos e para a escola.
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Os sistemas de classificação utilizados passaram também a refletir a nova concepção teórica de
mundo. Conforme ressalta Manguel (1997), todos os sistemas de categorização dos saberes são
artificiais, sendo que o valor que determinado saber pode adquirir em certa época histórica reflete de
forma mais ou menos arbitrária a ordem social vigente, sempre havendo a possibilidade de novos
rearranjos.
Verger (2001), ao resgatar os sistemas de classificação do saber propostos no século XII, comenta
que eles tinham por preocupação não apenas manter a unificação dos saberes, mas também delimitar o
campo dos saberes legítimos e hierarquizá-los. Um dos arranjos mais bem elaborados das classificações
do saber daquela época foi proposto por Hugo de Saint-Victor, na obra Didascalicon, da década de 1130.
Com uma definição ampla do campo do saber, dele excluindo apenas a magia, dividia-o em saberes que
se referem à “inteligência das coisas superiores” (a teórica, a prática ou moral e a lógica) e os que se
referem ao “conhecimento das realidades inferiores” (a mecânica).
Apesar de Hugo de Saint-Victor ter introduzido a mecânica em sua classificação das ciências como
um conhecimento inferior, o que refletia a ordem social vigente, ele foi o primeiro autor da Idade Média a
reconhecer o desenvolvimento sistemático pelo qual vinham passando as artes mecânicas, considerando-
as uma atividade que honra o homem e o aproxima da salvação, da mesma forma que a contemplação
das realidades superiores. No entanto, Verger (2001, p. 83) argumenta que tal reconhecimento
provavelmente vinculava-se mais a uma “preocupação de renovação filosófica” do que a um interesse
autêntico de reabilitação do trabalho manual pela promoção do saber tecnológico disponível e pela criação
de novos saberes.
Na segunda metade do século XVII constata-se um novo rearranjo dos sistemas de classificação.
Naquela época havia na Europa um grande interesse de se superar a confusão gerada pela ambigüidade
na linguagem pela criação de uma linguagem universal, rigorosa e perfeita, na qual os símbolos fizessem
referência diretamente às coisas, ou seja, entre eles deveria existir uma relação unívoca, uma identidade.
Como predominava uma concepção fixista da natureza, havia a pretensão de se classificar com
exatidão todas as coisas que existem no mundo, através da construção de uma enciclopédia universal, de
forma que ao se saber o nome de determinada coisa já se conheceria a sua natureza. De acordo com esta
concepção, seria possível ao ser humano atingir o conhecimento definitivo sobre o mundo. (ROSSI,
2001).
Com o tempo passou-se a perceber que distinguir o que é essencial e o que é supérfluo nas
classificações não é algo evidente, comportando múltiplos caminhos. O mérito deste esforço de
compilação das coisas naturais residiu, principalmente, na busca de superação das representações dos
pensadores da Antiguidade e da Renascença, nas quais eram freqüentes interpretações alegóricas,
poéticas e literárias. (ROSSI, 2001).
Segundo Foucault (1992, p. 143-144), do século XVI até meados do século XVII concebia-se que os
signos faziam parte das coisas, sendo que a partir de então eles se tornam “modos de representação”. O
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historiador, que até então tinha por tarefa a compilação dos documentos e sua repetição, retomou o papel
que possuía no pensamento grego. Ele é “aquele que vê e que narra a partir de seu olhar”. Dessa forma,
a história natural, que surgiu na idade clássica a partir da ordem descritiva proposta por Lineu, não seria
nada mais que a nomeação do visível, buscando-se aproximar cada vez mais a linguagem, o olhar e as
coisas olhadas.
A idade clássica confere à história um sentido totalmente diferente: o de pousar pela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas e de transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e fiéis. Compreende-se que nessa ‘purificação’, a primeira forma de história que se constituiu tenha sido a história da natureza. Pois, para construir-se, ela tem necessidade apenas de palavras aplicadas sem intermediário às coisas mesmas. Os documentos desta história nova não são outras palavras, textos ou arquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem: herbários, coleções, jardins; [...] despojados de todo comentário, de toda linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já virtualmente analisados e portadores apenas de seu nome. (FOUCAULT, 1992, p. 144-145).
A idade clássica se esforçou por limitar o campo da experiência humana e a reduzi-la à “simplicidade
aparente de um visível descrito”. Além de excluir o ouvir-dizer, excluiu também o gosto, o sabor, o tato,
cuja incerteza não permitia uma análise em elementos visíveis universalmente aceita, dando privilégio
quase exclusivo à visão de sua “estrutura”, filtrada pelas variáveis: número, figura, proporção e situação.
A observação de um ente deveria restringir-se a vê-lo, a descrevê-lo de forma reconhecível e aceitável
por todos e a lhe atribuir um nome, segundo as diferenças e similaridades que apresentasse em relação
ao conjunto dos entes, numa linguagem taxonômica, perfeita, fixa e universalmente válida. Neste sentido,
a maior visibilidade dos órgãos nas plantas do que nos animais é que explicaria o primado epistemológico
da botânica nos séculos XVII e XVIII. (FOUCAULT, 1992).
Para Foucault (1992, p. 173) havia na idade clássica uma “disposição fundamental do saber que
ordena o conhecimento dos seres segundo a possibilidade de representá-los num sistema de nomes”,
constituindo-se em um a priori daquela época, ou seja, em algo que “recorta na experiência um campo de
saber possível, define o modo de ser dos objetos que aí aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes
teóricos e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como
verdadeiro”. Esse a priori influenciou as práticas reformistas dos senhores de engenho do Brasil no final
do século XVIII e início do século XIX.
1.1 Os engenhos e a popularização do conhecimento técnico por Miguel Calmon Du Pin e
Almeida
Quando em 1825 vi, pela primeira vez, 24 carros, conduzindo 1867 quintaes de carvão de pedra, puxados por uma só carroça, movida por vapor, e caminhando todas legoa e meia por hora; reconheci então, que o Homem era o Rei da Natureza. (Miguel Calmon, em relato sobre sua viagem à Inglaterra) (ALMEIDA, 2002, p. 48).
O processo de desenvolvimento econômico do Brasil foi profundamente marcado, segundo vários
historiadores, pela reduzida propensão de nossos colonizadores ao trabalho produtivo e ao esforço
sistemático. Segundo Senna (1995), na época das viagens marítimas o setor agrícola de Portugal
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encontrava-se em lamentável estado de subdesenvolvimento, ao contrário de outras regiões da Europa,
nas quais ele se constituía em principal atividade econômica.
Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. [...] enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade clássica. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e que a atividade produtiva é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor. (HOLANDA, 1995, p. 38)
No setor de produção de açúcar optou-se pela produção em larga escala, com o uso do braço
escravo e com a concentração das atividades em latifúndios. Os grandes proprietários, em geral, não se
preocupavam em cuidar da terra e dos escravos ou em aperfeiçoar tecnologicamente a produção.
Contraditoriamente, num país essencialmente dedicado à atividade agrícola o trabalho e a formação
técnica eram desvalorizados.
De acordo com depoimentos de viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil, durante o século XIX, um jovem preferiria morrer de fome a abraçar uma profissão manual, pois era considerado excessivamente degradante o aprendizado de um ofício. [...] os carpinteiros, ferreiros, pedreiros e outros profissionais estavam sempre comprando escravos, a quem procuravam instruir. [...] Os portugueses acabariam por proibir a instalação de indústrias manufatureiras em nosso território, durante praticamente todo o período colonial. O ócio e a preguiça foram transformados em virtude. (SENNA, 1995, p. 138)
Schwartz (1988) afirma que há registros de que já em 1604 os escravos dos engenhos da Bahia
passavam fome, devido à escassez de alimentos, o que revela o descaso dos senhores de engenho. Em
1688 e 1701, a legislação régia determinou que os produtores de açúcar plantassem mandioca o
suficiente para alimentar seus escravos.
Nesse cenário avesso ao trabalho orgânico e produtivo, no final do século XVIII foi gerado entre
proprietários de engenhos baianos que se auto-proclamavam mais esclarecidos e progressistas um
movimento pela modernização da agricultura e da produção de açúcar, o qual foi patrocinado pelo
governo. Em 1790 foram enviadas missões científicas às principais capitais européias e os burocratas
buscavam promover um clima favorável à experimentação prática na colônia. Muitos melhoramentos
foram testados, entre eles a introdução da cana caiena. Esse movimento foi impulsionado, no início do
século XIX, pela prosperidade do setor açucareiro no mercado internacional, sendo influenciado pelas
políticas de melhoramentos econômicos e diversificação agrícola implantados por Pombal, pelas doutrinas
fisiocráticas2, pela teoria econômica de Adam Smith e pelos princípios iluministas.
Segundo Schwartz (1988, p. 350), “o problema continuava a ser o fato de que a combinação de
experiência no fabrico do açúcar e ciência raramente era encontrada em um mesmo indivíduo”. Manuel
Ferreira da Câmara Bettencourt (1764-1830) é um exemplo dessa combinação, pois era um senhor de
engenho que tinha interesse nas aplicações da química na indústria açucareira, realizando pesquisas em
seu próprio engenho sobre a extração da potassa e a purificação do açúcar. Esta combinação foi verificada
2 Escola de pensamento econômico em voga na França no século XVIII que sustentava ser a terra a única verdadeira fonte de riqueza e que defendia o liberalismo econômico, tendo François Quesnay como seu principal representante. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 909.).
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Figura 1. Folha de rosto do Ensaio sobre o fabrico do assucar, publicado, em 1834, por Miguel Calmon. Fonte: Almeida (2002).
também em alto grau em Miguel Calmon Du Pin e Almeida (Marquês de Abrantes), filho de um abastado
casal proprietário do Engenho Santo Antônio, situado no município de Santo Amaro, na Província da
Bahia. Como um empresário preocupado em inserir-se na modernidade de sua época e em “esclarecer” os
agricultores brasileiros, publica, em 1834, aos quarenta anos, o Ensaio sobre o fabrico do assucar3
(Figura 1).
Além de ter se destacado no cenário político baiano e nacional, Miguel Calmon se notabilizou devido
ao seu pensamento renovador no campo econômico e por sua atuação na construção de uma sociedade
mais dinâmica no Brasil colonial. Entre suas iniciativas também se destacam a fundação, em 1832, da
Sociedade de Agricultura, Comércio e Indústria da Província da Bahia; a edição, a partir de 1833, de um
periódico mensal, intitulado “O Auxiliador da Indústria Nacional”, que difundia as inovações tecnológicas;
e, ainda, sua participação em organizações científicas de expressão da época na Bélgica, França e Itália.
Miguel Calmon tinha uma sólida e ampla formação intelectual, tendo obtido o título de doutor em
leis, em 1821, pela Universidade de Coimbra – Portugal. Posteriormente, realizou viagens a países
europeus que influenciaram suas idéias progressistas e seu pensamento renovador. Em 1825 esteve na
Inglaterra e, em 1830, visitou usinas de cana-de-açúcar e beterraba na França.
3 O único exemplar original disponível ao público desta obra, com elevado valor histórico e cultural, encontra-se na Seção de Obras Raras da Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB), a partir de reprodução xerográfica autorizada, tornou-a mais facilmente acessível, publicando-a em edição fac-símile.
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Sua erudição e seu amplo conhecimento nas áreas de humanidades e na área tecnológica são
evidenciados ao longo das 192 páginas do Ensaio sobre o fabrico do açúcar. Nelas, o autor cita vários
autores clássicos latinos, como Columela (De res rustica), Sêneca, (De Clementia), Varrão (Rerum
rusticarum) e Plínio, o Velho (Naturalis historia), nos quais se fundamenta para defender a moderação das
penas aos “ociosos que entulham as cidades” no Brasil colonial e o tratamento mais digno dos escravos e
para firmar sua convicção de que a natureza é a base da riqueza humana. Pensadores e literatos
franceses também são citados no livro, entre os quais Rousseau (Émile) e La Fontaine, nos quais o autor
justifica sua condenação à ociosidade e sua denúncia da falsidade da concepção de que o trabalho é
aviltante.
Em relação à área tecnológica, além de referir-se a vários autores estrangeiros, Miguel Calmon
aborda as contribuições do reformista Manoel Jacinto de Sampaio e Melo, professor de filosofia e
proprietário do engenho São Carlos, então localizado na vila de Cachoeira, província da Bahia. Segundo
Schwartz (1988, p. 350), esse reformista teria afirmado que “as ciências naturais não se estudam para
disputar nas aulas ou conversar nas assembléias, mas para descobrir verdades interessantes ao bem
comum”. Agindo de forma coerente com essa idéia, adotou várias medidas para renovação dos métodos
de fabricação em seu próprio engenho e publicou, em 1816, o livro Reforma geral economica dos
engenhos do Brazil, um trabalho pioneiro, mas recebido com desprezo por seus contemporâneos que, em
tom pejorativo, passaram a chamar sua propriedade de “engenho da Filosofia”.
Segundo notas do historiador crítico José Honário Rodrigues, inseridas na edição consultada do
Ensaio sobre o fabrico do assucar:
Neste período é quase impossível separar o reformador do senhor de engenho. Acumulam as duas funções. Transformam os engenhos em laboratórios de experiências e pesquisas. Na nova ciência química ou ciência física encontravam o caminho das reformas e inovações. [...] Certamente, ninguém foi mais erudito e mais científico do que Miguel Calmon du Pin e Almeida, marquês de Abrantes. Seu livro exerceu enorme influência e até hoje representa o mais alto nível atingido por uma obra dedicada a um produto no Brasil. (ALMEIDA, 2002, p. XLIV).
Por contrapor-se ao hábito e à rotina e por questionar o fato de as Artes Agrícolas, ao contrário das
demais, não seguir preceitos, na Introducção do Ensaio Miguel Calmon manifesta sua satisfação com as
mudanças em curso em outros países:
Mas felizmente para a Humanidade, os Governos dos Povos civilisados hão-se esmerado sempre em debellar aquelle monstro [a rotina], e promover a Agricultura pela creação de Escollas publicas, e leitura de Compendios, e livros uteis; muito persuadidos de que as boas instituições agrárias formão a mais solida base da prosperidade das Nações. (ALMEIDA, 2002, p. 2).
Para atestar o desenvolvimento e a prosperidade advindos da Economia rural, são apresentadas pelo
reformador iniciativas adotadas em diversos países:
Na França, o Theatro d’Agricultura de Olivier de Serres; os escriptos de Fenelon; o Dicionario de Rosier; os Annaes do Jardim das Plantas de Paris; as Memorias da Sociedade d’Agricultura do Sena; e muitos outros bons livros tem contribuido poderosamente para essa grandeza á que vai chegando a produção agricola Franceza. [...] Na Suecia, Região hyperborea, outro bom Rei, Gustavo 3º, e o douto Lineo, escrevendo, e fazendo ensinar as Artes rústicas em Stockolmo, e Upsal, conseguirão promover a cultura do Campo no Paiz dos gelos [...]. (ALMEIDA, 2002, p. 3-4).
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Miguel Calmon atribui ao empenho dos príncipes, governantes e sábios uma grande importância no
melhoramento da Economia rural e na organização dos fabricantes e inventores em sociedades, a
exemplo da França, onde se criou a Sociedade Auxiliadora da Industria, o que estaria resultando no
progresso material, na felicidade e na riqueza de muitos povos e regiões:
A idéa politica, e economica de expôr aos olhos do Povo os productos da Industria Nacional, reunidos em um lugar, idéa concebida, em 1798, por Mr. de Neufehateau, Ministro do Interior; e ampliada por Mr. Chaptal, Ministro da mesma Repartição, em 1801; despertou a outra de associar os Fabricantes e os Agronomos, para que juntos promovessem, com o geral, seu proprio interesse. E assim fundou-se aquella grande Sociedade espontanea, com o titulo de Auxiliadora, sem intervenção alguma do Governo. (ALMEIDA, 2002, p. 9, grifo do autor).
O discurso de Miguel de Calmon é coerente com as maneiras de pensar e de representar o mundo
predominantes na Idade Moderna, o que é reconhecido por ele no seguinte trecho:
O Espirito Humano cançado das conquistas dos Tempos Antigos, dos feitos d’armas da Idade-barbara, da vida contemplativa do Baixo-imperio, e das questões religiosas de Carlos 5º; emprega-se hoje exclusivamente na descoberta dos meios mechanicos, e scientificos, necessários para a felicidade do homem no Mundo que habitamos. Uma tendencia, quase irresistivel, para a communhão de forças, e luzes, caracterisa a nossa Idade. (ALMEIDA, 2002, p. 11, grifo nosso).
A adesão dos mais jovens aos ideais iluministas é ilustrada pelo seguinte comentário:
A nossa Mocidade ilustrada, e que deseja avançar na carreira do bom saber, tem organisado em nossa Provincia outra Sociedade, que deve necessariamente promover a Industria geral. Fallo da Sociedade Philomathico-Chimica da Bahia, installada em 1832, para o fim de applicar às Sciencias, e Artes os princípios da Chimica. Ja possue um Laboratório, que, apezar de acanhado ainda, promette com tudo augmentar-se com rapidez, e ja derrama, por meio de bons ensaios, muitas luzes, e conhecimentos de que todos carecemos. (ALMEIDA, 2002, p. 14, grifo nosso).
A obra é dividida em três partes. Na primeira o autor apresenta argumentos favoráveis à
necessidade de reformas dos engenhos; na segunda, resgata procedimentos sugeridos por outros autores
para a efetivação das reformas; e, na última, descreve o método de fabrico que considera mais
apropriado para melhorar a qualidade do açúcar brasileiro. Uma das medidas sugeridas para tornar mais
produtiva a cultura das canas é a construção de um alambique em cada engenho, o que é feito com apoio
no discurso da modernidade:
Se a experiencia he a mestra da vida, e industria humana; se aos factos, confirmados por ella, devemos ceder como à argumentos irresistiveis; não póde entrar em duvida a vantagem e utilidade, que resulta do estabelecimento de um Alambique em cada Engenho. (ALMEIDA, 2002, p. 75)
A matematização da ciência e a propensão a valorizar o “visível descrito” que caracterizaram o
espírito e as práticas da modernidade são brilhantemente ilustrados no seguinte trecho:
[...] Mr. Dutrône, chimico Francez, que habitou por algum tempo a ilha de S. Domingos; onde reformou varios engenhos; foi o primeiro homem, que entrou com a luz da sciencia nas casas de caldeiras; e estabeleceo um methodo de fabricar assucar, fundado em principios certos, e não em signaes duvidosos. (ALMEIDA, 2002, p. 124, grifos nossos).
Embora enfatize que a produção de açúcar deveria basear-se em sinais não duvidosos, as
recomendações de Miguel Calmon não conseguem expulsar totalmente do processo produtivo os indícios
obtidos pela experiência, recorrendo a eles ou recomendando-os, seja porque o avanço técnico ainda não
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teria encontrado soluções apropriadas para certas operações, seja porque tais indícios oferecidos pelos
sentidos davam resultados práticos adequados:
A limpeza, ou defecação consiste em separar do caldo crú as feculas, e particulas de terra, que nelle se contém. Esta separação faz-se por meio do calor, dos alkalis, e da escumadeira. [...] He mister empregar sempre pouca quantidade de qualquer alkali; por ser milhor applicar antes nova dose, do que expor-se á arruinar o caldo. A prudência, e a experiencia saõ as unicas balanças em que se deve pezar a quantidade de cal, ou outro alkali, necessária para cada meladura. No tempo de Dutrône foi inventada por um inglez certa balança hydrostatica para esse fim; mas, como em escriptos posteriores não se falle mais de tal invento, creio que cahio em desuso. (ALMEIDA, 2002, p. 125, grifo do autor).
O recurso aos sentidos também é recomendado nas operações empregadas para o reconhecimento
do final da limpeza do açúcar, embora já existissem processos químicos precisos a ele aplicáveis:
O termo final da limpeza, ou defecaçaõ do caldo, he conhecido, alèm de outros caracteres chimicos, por estes signaes – 1º Uma separaçaõ visível do liquido em flocos, ou aljofares, que nadam em um caldo claro, e facil de ser observado em uma colher de prata – 2º Uma pelicula rugosa, que se forma na superficie do caldo, logo que se assopra sobre elle – e 3º Uma escuma pegajosa, e esverdinbada, que se vai tornando cada vez mais espessa, ou grossa, sobre a superficie do caldo. Entretanto he certo, que a experiencia, ou a pratica aturada supre á todos estes signaes, reconhecendo pelo cheiro, e pela simples côr o termo da limpeza. Mas, em caso de duvida, bom he sempre recorrer á elles. (ALMEIDA, 2002, p. 126-127, grifo do autor).
Em outras operações os sentidos eram os únicos instrumentos de que dispunham Miguel Calmon e
todos aqueles que se empenhavam em penetrar nos engenhos com as luzes da ciência.
O termo final da purificaçaõ, ou a prova de que está completa, consegue-se, como diz Dutrône, tomando o caldo purificado em uma colher de prata (ou em copo de vidro claro); e ahi observado com a vista, ou com uma lente, se não aparecerem ergueiros subtis; ou tambem, lançando-se no mesmo caldo algumas gôtas de leite de cal filtrado, se não se apresentar, passado 1 ou 2 minutos, corpo algum sólido sobre o liquido; póde-se ficar seguro de que a purificação está bem feita. (ALMEIDA, 2002, p. 133, grifo do autor).
Mesmo no caso de existirem aparelhos disponíveis para auxiliar na realização de certas operações,
como na identificação do “ponto” de cozimento, a importância da aplicação dos sentidos é indiscutível,
como é evidenciado pela minuciosidade da seguinte descrição:
[...] seja qual fôr o methodo, ou aparelho empregado para o cosimento; este, como as outras operações do fabrico do assucar, tem um termo final, ou a sua prova de que está bem feito. He reconhecido este termo, pelo auxilio do Thermometro, em suas indicações de 100 á 110 gràos; e por signaes differentes, como os do fio, do sopro, &c. O signal, ou prova do fio obtem-se, metendo-se uma escumadeira no melado, suspendendo-a, revirando-a, e aparando sobre o dedo index algumas gôtas do mesmo melado. Arrefecidas estas, unir-se-ha o polegar ao index, e separando-os rapidamente, ver-se-ha um fio estender-se entre os dedos. Se o fio quebrar-se logo da parte do index, he signal de ponto fraco, isto he, de que o cosimento não está perfeito. Se porém o fio estender-se de 1 à 2 polegadas, quebrar-se para o lado do polegar, e recolher-se rapidamente em fórma de anzol para o lado do index; he signal de ponto forte, isto he, de que o cosimento está perfeito. E se o fio estender-se mais de 2 polegadas, quebrar-se do lado do polegar, e encolher-se lentamente para o index; he signal de ponto demais, isto he, de que ha principio de queima. O signal ou prova do sopro obtem-se metendo-se a escumadeira no melado, voltando-a debaixo para cima à fim de escorrer, pondo-a depois verticalmente defronte da boca, e assoprando-a com força a través dos furos. Se com o sôpro destacarem-se muitos aljôfares, similhantes á pequeninas empôlas de sabão, durando por algum tempo sem desfazer-se; he signal de ponto forte, ou perfeito. Se ao contrario os aljofares nem forem muitos, nem durarem; signal de ponto fraco, ou imperfeito. (ALMEIDA, 2002, p. 144-145)
A tentativa de convencimento de outros proprietários de engenhos sobre as vantagens de
investimentos em equipamentos para a melhoria da qualidade do açúcar produzido é evidenciada no
seguinte trecho:
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A esperança de supprir com a quantidade o que faltar na qualidade do assucar, he fundada em um calculo barbaro, e tem por base uma absurdidade. He devéras barbaro preferir o sacrificio da fabrica-viva, ou maior fadiga dos escravos, e maior trabalho dos animaes, ao cuidado que exigiria a pratica de bons methodos para milhorar o assucar. E há absurdidade em um calculo, onde se reputa mais economica a perda, que por excesso de serviço póde verificar-se nos pretos, bois e cavallos; e que por mais cumprida moagem, deve haver no tempo, e beneficio das lavouras; do que a despeza da compra, e estabelecimento d´algumas machinas, e novos processos, que dessem um producto de boa qualidade. (ALMEIDA, 2002, p. 2-3, grifos do autor).
Mas Miguel Calmon reconhece a necessidade de demonstrações para romper com as resistências às
suas idéias, quando afirma que “a acção de idéas recebidas desde o berço, corroboradas pelo exemplo de
ascendentes, e fortificadas por calculos inexactos; demanda a reacção de todas as demonstrações, por
mais óbvias, e intuitivas que pareção”. (ALMEIDA, 2002, p. 103-104, grifos do autor).
É importante destacar que todas as tentativas de aperfeiçoar os meios técnicos para melhorar a
produção do açúcar a partir do início do século XIX decorreram da situação econômica precária dos
engenhos. Os produtores viram-se na necessidade de substituir os meios empíricos empregados por
novos métodos para tentar reverter a crise. Miguel Calmon, diante da pergunta “o que se deve fazer em
semelhante crise?”, defende a industrialização da produção do açúcar.
Parece-me que darei a táo justa pergunta uma resposta cabal, pedindo encarecidamente à todos os Lavradores, que procurem antes nas proprias casas do que esperem de fora os auxilios de que ja carecem; e dizendo afoitamente – que nos recursos da Industria, filha da necessidade, achar-se-hão os meios mais efficazes, e os antidotos mais promptos contra a crise que nos ameaça. [...] He pois na adopção, e practica dos bons principios, e conselhos dessa May das Artes, dessa Industria, que enriquece, e moraliza o homem; que devemos fundar toda nossa esperança, no estado presente da Lavoura das canas. (ALMEIDA, 2002, p. 44-45, grifo do autor).
Lamentando o fato de ainda se usar nas casas de caldeiras os mesmos processos e aparelhos de que
se serviram os antepassados dos senhores de engenho, com exceção das fornalhas e dos clarificadores,
Miguel Calmon expõe as vantagens de uso de aparelhos como o sacarímetro e o termômetro nos
engenhos e explica como utilizá-los:
Nem haja medo de que os nossos taes quaes Mestres, Caldeireiros, e Tacheiros não se ageitem ao uso dos mesmos instrumentos, e à pratica dos novos processos, que me parecem admissíveis; pois com difficuldade haverà algum, que, explicando-se-lhe uma, e outra vez aquelle uso, e esta pratica, não acabe por entende-la; ou que, observando a utilidade real do processo, não estime um methodo que o ajude á fazer bom assucar, alvo a que por vangloria, e interesse, todos eles atirão. O desejo, que cada um tem de acreditar-se [...] dispô-los-há á ouvir de bom grado os conselhos da razão, e as regras da arte. (ALMEIDA, 2002, p. 110, grifo do autor).
Fica evidente que Miguel Calmon não percebe as implicações conceituais e cognitivas envolvidas no
uso desses aparelhos e que também minimiza as dificuldades que seu emprego representaria no
cotidiano.
2 A TRADIÇÃO DESCRITIVA DA PINTURA HOLANDESA
Contrapondo-se à tradição renascentista e tendo como base epistemológica a crença na “descrição”,
entendida como a representação, de forma realista e acurada, de objetos, cenas cotidianas e paisagens, a
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arte holandesa do século XVII destituiu das imagens a função evocativa ou narrativa, buscando delas
eliminar o enfoque interpretativo, ou seja, a busca de motivações e significados nas situações retratadas.
A intenção da arte holandesa do século XVII era retratar os eventos visíveis de forma factual e
literal, prendendo-se às coisas tal qual elas se apresentavam à inspeção visual cuidadosa, minuciosa e
precisa, ou seja, evitando interpretá-las. As raízes dessa tendência são situadas por Alpers (1983, citado
por OLSON, 1997b, p. 216) na tradição científica inglesa, representada por Francis Bacon, Robert Hooke e
Robert Boyle. Esses cientistas modernos buscavam atentar estritamente para a aparência dos objetos e
para a sua tradução transparente nos textos. No entanto, para Olson (1997b, p. 218), ambas as
tendências são subprodutos de uma nova maneira de ler as Escrituras, empreendida pelos protestantes,
que se caracterizava pela busca dos significados literais e pelo repúdio às interpretações.
A arte italiana, ligada à leitura interpretativa das Escrituras pelo catolicismo, permitia a atribuição de
significados às pinturas, uma vez que elas remetiam a valores universais e a características humanas
gerais. Por outro lado, a pintura holandesa, coerente com o protestantismo vigente no seu país, busca
retratar a individualidade de cada pessoa ou objeto através do testemunho verdadeiro dos olhos,
separando-os das interpretações, que, numa visão pejorativa, passam a ser consideradas subjetivas e
enganosas.
A pintura holandesa de paisagens manteve uma estreita relação com a cartografia factual
desenvolvida também na Holanda. A pintura era concebida como “uma superfície para inscrever o
mundo”, e não como uma forma de retratar ações humanas significativas, de forma que não se
estabelecia uma distinção clara entre “os mapas e a arte, entre o conhecimento e a decoração”.
Evidências dessa sobreposição são, por exemplo, a freqüente coincidência de perspectivas a partir das
quais os artistas pintavam a paisagem e os cartógrafos elaboravam os mapas, bem como o fato de que
era comum que as pinturas contivessem palavras. (ALPERS, 1983 citado por OLSON, 1997b, p. 217).
2.1 Os engenhos na pintura de Frans Post
Segundo Holanda (1995) o processo de colonização no Brasil caracterizou-se pelo contraste entre o
desenvolvimento urbano promovido pelos holandeses em Recife em contraste com as demais cidades. Lá
foram erigidos palácios monumentais como os de Schoonzicht e o de Vrijburg.
Seus parques opulentos abrigavam os exemplares mais vários da fauna e da flora indígenas. Neles é que os sábios Piso e Marcgrave iam encontrar à mão o material de que precisavam para a sua Historia naturalis brasiliae e onde Frans Post se exercia em transpor para a tela as cores magníficas da natureza tropical. (HOLANDA, (1995, p. 63).
Os holandeses chegaram ao Brasil em 1624 e aqui permaneceram por quase 25 anos. O Conde
Maurício de Nassau trouxe à “Nova Holanda” artistas e cientistas, que se instalaram em Recife e se
dedicavam à representação minuciosa, em desenhos, gravuras e pinturas, de animais e plantas, e de
paisagens naturais e urbanas, revelando estreita relação entre arte e cartografia. Entre eles destacaram-
se Frans J. Post e Albert Eckhout.
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Frans Post é considerado o primeiro paisagista a trabalhar nas Américas, tendo aqui permanecido
entre 1637 e 1644, produzindo cerca de 150 obras, que enriquecem o acervo de vários museus do
mundo. Sua principal tarefa no novo mundo foi a de documentar edifícios, portos e fortificações, porém,
segundo Schwartz (1988), entre suas obras há o registro de várias cenas do cotidiano dos engenhos
(Figura 2), algo de que não se dispõe na iconografia portuguesa.
Figura 2. Imagem de um engenho movido a água, pintado no século XVII por Frans Post, retratando a casa-grande e a capela no plano superior. Fonte: Schwartz (1988, p. 96).
Segundo Belluzzo (2000), Frans Post foi o pintor oficial do governo holandês no Brasil. De forma
condizente com as responsabilidades do cargo assumido durante sua permanência no Brasil, predominam
em suas obras a descrição topográfica do Nordeste e o registro da vida militar dos ocupantes holandeses.
Após seu retorno à Holanda, Frans Post continuou a pintar temas brasileiros, realizando uma centena de
quadros a óleo, baseados em seus esboços e desenhos de paisagens rurais e urbanas e de cenas
cotidianas. Nessa fase, passa a ter como tema constante a paisagem do sertão, com imagens das casas
habitadas pelos negros, de plantações de cana, da casa-grande e dos moinhos de açúcar. (Figuras 3 e 4).
Figura 3. Engenho de açúcar. s/d. Óleo sobre tela. 49 x 62 cm. National Gallery of Ireland (Dublin, Irlanda). Fonte: <http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas /Enciclopedia/artesvisuais2003/home/index.cfm>.
Figura 4. Carro de bois. 1638. Óleo sobre tela. 61 x 88 cm. Musée du Louvre (Paris, França). Fonte: <http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/ Enciclopedia/artesvisuais2003/home/index.cfm>.
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Nestes quadros, “a vista era sempre atirada ao longe, onde se deveria concentrar por todos os
meios”, em articulação com a floresta e exemplares da fauna em primeiro plano, retratados em
pormenores. (BELLUZZO, 2000, p. 125).
3 A VIDA COTIDIANA NO ROMANCE REALISTA
O romance realista, uma das formas literárias próprias da Idade Moderna, explorou o estilo narrativo
da ciência no século XVIII, caracterizado pela busca de credibilidade através da representação literal,
empregando-o em um contexto ficcional.
Com Defoe, Richardson e Fielding, a descrição factual da ciência passou a ser utilizada
extensamente com objetivos literários, assumindo o papel de uma verdade alegórica, ou seja, de um
discurso que finge dizer a verdade. Segundo Olson (1997b, p. 244) esse papel é ressaltado no trecho do
prefácio de Robinson Crusoé, em que Defoe ressalta que se tratava de “uma história exata de fatos; não
há nela qualquer traço de ficção”.
Tendo por objetivo explicitar em que medida as condições sociais e literárias da época favoreceram
a emergência do romance no início do século XVIII, Watt (1990) afirma que, para os historiados do
romance, a característica mais original e típica dessa forma literária em relação à ficção antiga é o
“realismo”, entendido como a busca de se “retratar todo tipo de experiência humana”, o que envolve um
problema essencialmente epistemológico: “o problema da correspondência entre a obra literária e a
realidade que ela imita”. (p. 13).
Uma das características da idade moderna foi a rejeição à idéia da existência de verdades
universais, pois passou-se a conceber que a verdade poderia ser descoberta através dos sentidos.
Originando-se com Descartes e Locke, essa concepção, denominada realismo filosófico, embora
ingênua, do ponto de vista epistemológico, envolvia formas de pensamento, métodos e problemas de
grande importância para o gênero literário romance. Quanto às suas formas de pensamento, estas se
caracterizavam por serem críticas, antitradicionais e inovadoras; seu método correspondia ao relato
autêntico de aspectos particulares da experiência pelo pesquisador individual e, como problema,
privilegiava a correspondência entre as palavras e a realidade.
Ao contrário das formas literárias precedentes, que se ajustavam à tradição coletiva da herança
clássica e medieval, o romance refletiu a tendência individualista e inovadora da ciência, buscando, em
seus enredos não tradicionais e estruturados de acordo com o “modelo da memória autobiográfica”, dar a
impressão de fidelidade à experiência humana singular, com toda a originalidade que ela comporta.
O enfoque generalizante que perpassou o pensamento ocidental até o século XVII e que ainda
persistia no início do século XVIII manifestou-se nas produções literárias por meio de um lugar e um
tempo genéricos e vagos. Por outro lado, os enredos dos romances caracterizam-se por envolver “pessoas
específicas em circunstâncias específicas”, seguindo a tendência moderna de que, como expressou
Berkeley, em 1713, “tudo que existe é particular”. (WATT, 1990, p. 17).
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A atenção às particularidades das personagens e a riqueza de minúcias na descrição dos ambientes
e paisagens aproximam o estilo narrativo típico do romance à pintura holandesa, conferindo a essas
produções artísticas um alto grau de verossimilhança. Também com esta finalidade, os romances
atribuem às personagens nomes próprios, que sugerem que têm uma vida real e identidade, a qual se
altera com as experiências adquiridas em um contexto social com ambiente físico e tempo bem definidos.
O interesse em retratar a vida através do tempo é uma característica marcante do romance, sendo
coerente com a concepção renascentista de que “o tempo é não só uma dimensão crucial do mundo físico
como ainda a força que molda a história individual e coletiva dos homens”. (WATT, 1990, p. 22).
Ao contrário das formas literárias anteriores, que empregavam “histórias atemporais para refletir
verdades morais imutáveis”, o romance, por valorizar a dimensão temporal da vida humana, busca
“utilizar a experiência passada como a causa da ação presente” (WATT, 1990, p. 22) e se interessa pela
descrição minuciosa e precisa da vida cotidiana, encadeando os momentos “de maneira a compor uma
perspectiva biográfica convincente”. (WATT, 1990, p. 24).
Uma outra característica freqüente neste gênero literário, que permite a imitação mais imediata da
realidade, é o fato de não só se buscar uma coerência cronológica interna, mas também em relação a
eventos externos da época em que supostamente transcorre a ação.
A preocupação do realismo filosófico com o uso adequado das palavras de forma a fazê-las
corresponder à realidade influenciou os romancistas, fazendo com que a habilidade do autor se revelasse
na sua capacidade de excluir da linguagem a eloqüência, a elegância, a concisão, o refinamento, o uso
figurado das palavras e todo tipo de ornamentação. Enquanto nas formas literárias mais antigas a
linguagem e a habilidade do narrador ao utilizá-la se constituíam por si mesmos em fonte de interesse, no
romance a linguagem torna-se despojada e denotativa, convertendo-se em “simples veículo referencial”.
A prolixidade e a apresentação exaustiva, por garantirem a suposta autenticidade dos relatos, são
coerentes com essa nova função da linguagem.
Embora o realismo filosófico possa ter influenciado o realismo no romance, ambas as manifestações
resultaram de uma mudança mais ampla:
[...] tanto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser encaradas como manifestações paralelas de uma mudança mais ampla – aquela vasta transformação da civilização ocidental desde o Renascimento que substituiu a visão unificada de mundo da Idade Média por outra muito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de indivíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares. (WATT, 1990, p. 30).
3.1 Os engenhos como cenário das obras do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego
O romance realista no Brasil foi inaugurado por Machado de Assis, com a obra Memórias Póstumas
de Brás Cubas (1881), que foi sucedida por outras como Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899),
Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), sendo que esta última foi publicada pelo autor no ano de
sua morte. Entre os romancistas naturalistas, destacou-se Aluísio Azevedo, autor de O Mulato (1881), O
Cortiço (1890) e Casa de Pensão (1894).
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Sob a influência desse gênero literário, surgiu na década de 1930, na literatura nordestina, um
movimento literário de cunho regionalista, sendo uma de suas expressões José Lins do Rego (1901-
1957). Filho de um senhor de engenho paraibano e órfão de mãe, José Lins do Rego foi criado no
engenho do avô materno. Por pertencer à aristocracia rural nordestina, esse autor praticou uma literatura
da indignação, em que procurava retratar a decadência da sociedade patriarcal e escravista e evocava um
passado em crise com o advento da sociedade urbano industrial.
O romance regionalista de José Lins do Rego apresenta traços marcantes do Realismo,
empenhando-se mais em copiar a realidade do que transfigurá-la, sofrendo influência da produção
sociológica de seu amigo Gilberto Freyre, em cujas obras a nacionalidade brasileira era radicada na
tradição e a sociedade patriarcal era tomada como modelo de sociabilidade fundamental para a
manutenção da ordem social.
Outra tendência mundial, o romance cíclico, influenciou a obra de José Lins do Rego, havendo
registro de que realizou a leitura de A’la recherche du temps perdu, de Proust. Suas obras compõem o
que foi chamado pelo próprio autor de ciclos, entre eles destacando-se o ciclo da cana-de-açúcar, em que
retrata o seu próprio tempo perdido (ABL, 1998, p. 14), tendo sido chamado por Luciana Stegagno Picchio
de “Proust rústico”, devido à aproximação existente entre os cenários de suas produções: a decadência da
alta burguesia na França e a agonia dos senhores de engenho do nordeste brasileiro.
O primeiro livro do ciclo, O Menino de Engenho (1932), é um romance memorialista em que o autor
se auto-retrata de forma alegórica, mas em que também mostra como eram as vidas dos senhores de
engenho e dos cassacos, os moradores de engenho. Doidinho (1933) e Bangüê (1934) foram as obras
seguintes. Em Moleque Ricardo (1935), focaliza o envolvimento dos cassacos na luta política. Publica, em
seguida, Usina (1936) e fecha o ciclo com o livro considerado sua obra-prima, Fogo Morto (1943), que
retrata a agonia dos engenhos nordestinos, devorados pelas usinas e pela tecnologia.
Segundo Lêdo Ivo, O Menino de Engenho “é um romance linear, de narração linear, é um romance
no qual a linguagem é até geopolítica: a linguagem da tribo, a linguagem do povo, a linguagem da
sociedade. Também é um romance voltado para a realidade; é um romance documentário, sob certos
aspectos”. (ABL, 1998, p. 3).
Fogo Morto é considerado um marco no romance brasileiro, sendo que o título derivou da expressão
“engenho de fogo morto”, aplicado aos engenhos que sucumbiram diante da pressão das usinas e que
tiveram que substituir a produção de açúcar nos engenhos pelo abastecimento dessas usinas com a
matéria-prima, a cana-de-açúcar.
O estilo literário de José Lins do Rego é caracterizado pela narrativa direta de fatos concretos, como
a fome, a miséria, o autoritarismo no campo e nas cidades e o entrelaçamento entre arcaísmo e
modernidade, dando especial atenção à normatividade da língua. Tinha a pretensão de ser um minucioso
e autêntico retratista do país, inserindo o indivíduo no contexto social e, assim, propiciando o encontro
entre o tempo interior e o tempo histórico em suas obras.
R. O. Almeida. Maneiras de pensar e de representar o mundo: os engenhos do Nordeste do Brasil no discurso técnico, na pintura holandesa e no romance realista
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Para Albuquerque (2001), José Lins do Rego e outros autores romancistas regionalistas da década
de 1930, embora tivessem a intenção de representar essa região, ou seja, de apenas retratá-la “como ela
é”, através da elaboração de personagens e cenários típicos do Nordeste, de fato contribuíram para a
elaboração imagético-discursiva do Nordeste como o lugar da saudade e da tradição. Esses autores
adotam um estilo que procurava aproximar as coisas e os significados, criando “uma fala próxima à do
cotidiano, [...], uma tentativa de fazer a linguagem voltar a ser expressão do real, de restabelecer o
vínculo direto entre homens e coisas, de traçar um mundo que fosse imagem direta da realidade, em que
tudo parecesse visível e donde emanasse um sentido de imediato”. (p. 114).
Os romances de José Lins do Rego são nostálgicos em relação a uma visão naturalista e realista do
mundo. Neles “tudo parece claro, fixo, estável, e todas as hierarquias e ordenações no seu lugar”
(ALBUQUERQUE, 2001, p. 114), sendo construídos em um discurso monológico, não-crítico, supostamente
verdadeiro, que busca assegurar a sobrevivência de um passado patriarcal condenado pela
descontinuidade histórica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho buscamos trançar parte dos fios que ligam os avanços técnicos e a produção artística
relativos aos engenhos do Nordeste brasileiro ao cenário mundial numa época em que o discurso da
modernidade ainda era predominante. Esse discurso influenciava profundamente a forma como a
intrincada trama da vida cotidiana dos engenhos do nordeste brasileiro era tecida com base nas reformas
técnicas propugnadas de acordo com os avanços científicos, bem como representada na pintura e no
romance. Esse resgate é uma tentativa de contribuir para a compreensão de que a história do Brasil,
construída e reconstruída cotidianamente, está profundamente vinculada às formas de ler e de escrever o
mundo, aos modelos conceituais que vigoram em determinada época.
REFERÊNCIAS
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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2. ed. Recife: FJN/Massangana; São Paulo: Cortez, 2001.
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