Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

download Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

of 70

Transcript of Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    1/70

    SEMINÁRIO PRESBITERIANO DO SUL

    THIAGO MACHADO SILVA

    LEI E GRAÇA: A PERSPECTIVA DE PAULO

    Campinas

    2012

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    2/70

     

    2

    THIAGO MACHADO SILVA

    LEI E GRAÇA: A PERSPECTIVA DE PAULO

    Monografia entregue ao SeminárioPresbiteriano do Sul como parte do requisito

     para a obtenção do grau de Bacharel emTeologia.

    Campinas2012

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    3/70

     

    3

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Si38L SILVA, Thiago Machado

    Lei e Graça: A perspectiva de Paulo / ThiagoMachado. – Campinas, 2012. – 60 f.

    Monografia – Seminário Presbiteriano do Sul.Graduação. Curso de Teologia.

    Orientador: Prof. Ms. Carlos Henrique Machado

    1. Teologia Moral – Leis e bases da moralidade  2.Salvação – graça - justificação I. Título

    CDD 241.2234.7

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    4/70

     

    4

    AGRADECIMENTOS

    À Deus por ter escolhido desde o ventre de minha mãe para ser um discípulo de

    Jesus Cristo, por ter me chamado para o ministério da Palavra e me sustentado durante

    os quatro anos no seminário.

    À minha esposa, Lidia, que é o meu braço direito e tem me dado toda a força no

    desempenho do ministério para o qual fui chamado.

    Aos meus pais, Alceu e Flávia, por terem me ensinado o caminho em que devo

    andar e me educado no evangelho de Jesus Cristo.

    Ao meu tutor, Rev. Misael, com quem tenho aprendido muito sobre o ministério

     pastoral e a vida da igreja, e que muito me auxiliou e me encorajou no desenvolvimento

    deste trabalho.

    Ao meu orientador, Rev. Carlos Henrique Machado, por ter me orientado com

    toda paciência durante este ano, tanto no desenvolvimento da monografia quanto nos

    meus planos e projetos de ministério.

    Á Cláudia, que tem acompanhado todo o meu processo de formação e que foi a

    revisora deste trabalho.

    Aos meus amigos de seminário: Ricardo, Will e Eun (koreano) que me

     proporcionaram, nestes quatro anos, momentos de aprendizagem, amizade, boas

    experiências e muita alegria.

    E por último, mas não menos importante, a todos os meus professores do

    Seminário Presbiteriano do Sul, que foram aqueles que contribuíram para o meu preparo

    teológico e que me deram os recursos necessários para o desenvolvimento do chamado

    que Deus colocou sobre a minha vida.

    A todos vocês, o meu muito obrigado!

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    5/70

     

    5

    RESUMO

    Com base no capítulo XIX da Confissão de Fé de Westminster, aborda o temaLei e Graça: A perspectiva de Paulo. Faz uma análise da carta de Paulo aos gálatas,

     baseado em João Calvino e Martinho Lutero observando a teologia paulina sobre Lei e

    Graça e como nós, reformados, interpretamos esta doutrina. Aborda a “Nova

    Perspectiva de Paulo” baseado em Dunn e Sanders, para ver o que eles tem ensinado e

    quais são os pontos de divergência entre a perspectiva tradicional e esta nova

     perspectiva. Procura responder biblicamente aos pontos fracos desta Nova Perspectiva

    de Paulo. Propõe-se a responder a pergunta: Para quê serve a lei se vivemos na era da

    graça? De acordo com a teologia reformada e de uma maneira prática, mostra qual a

    maneira correta de lidarmos com a lei.

    Palavras-chave: Lei. Graça. Gálatas. Paulo. Nova Perspectiva de Paulo

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    6/70

     

    6

    ABSTRACT

    Based on chapter XIX of Westminster Confession of Faith, it approaches the

    theme: Law and Grace: The Perspective of Paulo. Makes an analysis of Paul's letter to

    the Galatians, based on John Calvin and Martin Luther observing the Pauline theology

    on Law and Grace, and how the reformed people can interpret this doctrine. Discusses

    the "New Perspective of Paul" based on Dunn and Sanders to see what they have taught

    and what are the divergence points between the traditional perspective and this new

     perspective. It seeks to respond biblically to the weaknesses points of this New

    Perspective of Paul. It is proposed to answer the question: Is the law useful in an age of

    grace? According to Reformed theology and In a practical way, it shows the proper way

    to deal with the law.

    Keywords: Law. Grace. Galatians. Paul. The New Perspective on Paul.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    7/70

     

    7

    SUMÁRIO

    Introdução ......................................................................................................... 09 

    Base Confessional............................................................................................... 11 

    1. Lei e Graça: uma abordagem baseada em Gálatas ................................... 16

    1.1 O contexto..................................................................................................... 16 

    1.2 Gálatas 1 e 2 ................................................................................................. 18 

    1.3 Gálatas 3 ....................................................................................................... 22 

    1.4 Gálatas 4 ....................................................................................................... 25

    1.5 Gálatas 5 ....................................................................................................... 26 

    1.6 Gálatas 6 ....................................................................................................... 28

    1.7 Conclusões de Lutero e Calvino ................................................................... 30 

    2. A Nova Perspectiva de Paulo........................................................................ 34

    2.1 Os principais expoentes ................................................................................ 34

    2.1.1 E. P. Sanders ................................................................................................ 35

    2.1.2 James Dunn .................................................................................................. 37

    2.2 Gálatas 2.16 .................................................................................................. 38

    2.3 “Obras da lei” ............................................................................................... 40

    2.4 As fraquezas da Nova Perspectiva de Paulo ................................................. 44

    3. A importância da lei na era da graça ......................................................... 48

    3.1 O tríplice uso da lei ....................................................................................... 48

    3.2 Dois perigos que devemos evitar .................................................................. 50 

    3.2.1 Legalismo .................................................................................................... 50

    3.2.2 Antinomismo ............................................................................................... 513.3 O ponto de equilíbrio .................................................................................... 53 

    3.4 A graça nos capacita a cumprir a lei ............................................................. 54

    3.5 A lei de Cristo ............................................................................................... 57 

    4. Considerações finais ...................................................................................... 63

    Referências ......................................................................................................... 69

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    8/70

     

    8

    PREFÁCIO

    Escrevo este prefácio com alegria e profundo senso de privilégio.

    O Thiago é um autêntico servo de Cristo, irmão e amigo cuja vida tem

    abençoado a Igreja Presbiteriana Central de São José do Rio Preto. Seu trabalho sobre a

    doutrina bíblica da Lei e da Graça é uma contribuição muito bem-vinda, especialmente

     por enquadrar, sob a verdadeira perspectiva do apóstolo Paulo, a chamada "Nova

    Perspectiva". Thiago mostra que é falsa a pressuposição da Nova Perspectiva, de que os

    estudiosos, desde a Reforma, leem Gálatas (e Romanos) com as lentes de Calvino e

    Lutero. Sua monografia demonstra, com acuidade, que a teologia dos escritos paulinos

    acomoda a ênfase tradicional da justificação articulada pelos pais reformadores.

    Minha oração é que Deus continue usando o Thiago como ministro fiel do

    evangelho, que é o anúncio transformador de Deus alcançando seus eleitos somente pela

    graça.

    Rev. Misael Batista do Nascimento, D.Min. 

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    9/70

     

    9

    Introdução

    Escreveu o apóstolo João: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; agraça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1.17). Na economia

    de Deus, a lei foi exposta em primeiro lugar e a graça posteriormente. OAntigo Testamento é dominado pela grande realidade da lei de Deus, talcomo o Novo Testamento é dominado pela graça de Deus. Porém, comorelacionar a graça com a lei, visto que a lei veio antes da graça?16 

    Esta monografia tem como título “Lei e Graça: A perspectiva de Paulo”; ao

    enfatizar a natureza do trabalho, busca-se compreender a doutrina da lei e graça, tendo

    como fonte a Palavra de Deus, e mais especificamente o apóstolo Paulo, que foi quem

    mais escreveu e teceu interpretações acerca desta doutrina.

    A doutrina da lei e graça tem sido alvo de debates entre teólogos, e através dos

    anos têm surgido movimentos para tentar explicar o assunto. Alguns afirmam a lei em

    detrimento da graça e tornam-se legalistas17, outros desprezam a lei em função da graça,

    tornando-se antinomistas18. Nosso objetivo é dar uma interpretação bíblica acerca da lei

    e graça.

    O legalismo estava tomando conta da religião judaica na época de Paulo, e por

    esta causa veio a advertência aos gálatas que começaram a pensar que precisavam

    acrescentar coisas à fé em Cristo, como a circuncisão: “De Cristo vos desligastes, vós

    que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes.” (Gálatas 5.4). O legalismo

    contradiz a graça de Deus, porque busca aceitação e retidão mediante a religiosidade e

    as obras da lei.

    16 PACKER, J. I. Vocábulos de Deus. São José dos Campos: Editora Fiel, 1994, p. 93.17 O principal grupo de legalistas é o dos fariseus, e podemos ver em Mateus 23.1-36 Jesus indo contra olegalismo deste grupo religioso. Hoje existem movimentos como a Igreja Adventista do Sétimo Dia quecaíram no perigo do legalismo.

    18 “O antinomismo foi endossado por alguns gnósticos na Igreja Primitiva, por alguns sectários na IdadeMédia e na época da Reforma, pelos anabatistas [...] Apareceu posteriormente em algumas seitas naInglaterra e continua sendo advogada por alguns grupos sectários nos Estados Unidos.” TENNEY,Merrill [org]. Enciclopédia da Bíblia: Cultura Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, vol.1, 2008, p. 338.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    10/70

     

    10

    J. I. Packer afirma que confiar nas próprias obras, juntamente com a obra de

    Cristo para a salvação, desonra-o, deturpa a graça e priva a pessoa da vida eterna. 19 

    “Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu

    Cristo em vão.” (Gálatas 2.21).

    Por outro lado, é necessário tomar cuidado para não desprezar totalmente a lei

    em função da graça, privando-nos de uma leitura de oposição entre elas. Dizer que o

    cristão vive na era da graça e, por isso, não tem qualquer relação com a lei é uma falácia.

    Dessa maneira, podemos cair em uma heresia denominada antinomismo20, que é a

    negação da lei em função da graça. O antinomismo, em oposição ao legalismo, afirma

    que a lei não tem nenhum papel a desempenhar na vida do cristão, e enquanto o

    legalismo exalta de tal maneira a lei, que chega a excluir a graça, o antinomismo exalta

    de tal maneira a graça a ponto de perder de vista a lei, como uma regra de vida.

     No séc. XVI, os reformadores foram acusados pelos católicos de antinomistas,

     pois eram vistos como contrários à lei de Deus. Martinho Lutero, que deu uma ênfase

    muito grande à graça de Deus, foi contra as obras da lei praticadas pela Igreja Católica e

    com isso, foi mal interpretado.21 Desde a época da Reforma, têm surgido movimentos

    tentando explicar a questão da lei e graça, mas sempre enfatizando um ou outro, de

    forma excludente.

     No séc. XIX, surgiu um movimento chamado dispensacionalismo, que

    caracterizava a lei como a forma de salvação no período de Moisés, no AntigoTestamento, e o evangelho (a graça), como forma de salvação na dispensação da igreja,

    no Novo Testamento. Este movimento continua a influenciar cristãos até os dias de

    hoje.22 

    19 PACKER, 1994, p. 93.20 Ibid.21 MEISTER, Mauro. Lei e Graça. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 73.22 Ibid., p. 74.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    11/70

     

    11

    Recentemente, tem surgido um movimento denominado “Nova Perspectiva de

    Paulo”, que faz uma crítica e discorda da visão reformada de como o apóstolo Paulo

    interpretava essa doutrina para o judaísmo do séc. I. Qual será a validade da lei na época

    da graça?

    Mauro Meister afirma que “as implicações da forma como entendemos a relação

    entre lei e graça vão muito além do aspecto puramente intelectual. Esse entendimento

    vai, na verdade, determinar toda a forma como alguém enxerga a vida cristã e que tipo

    de ética esse cristão irá assumir em sua caminhada.”23  Por isso, o objetivo geral do

    trabalho é trazer uma maior compreensão sobre a maneira como lidamos com a lei de

    Deus na era da graça, e como interpretamos o apóstolo Paulo, principalmente quando

    lemos Gálatas, para que possamos assumir uma postura correta em nossa caminhada

    como cristãos.

    Base Confessional

    O capítulo da Confissão de Fé de Westminster (CFW) que tomaremos como

     base é o XIX – Da Lei de Deus, uma vez que este traz um panorama geral dos usos e

    costumes da lei escrita dada por Moisés: leis cerimonial, civil e moral. Encerraremos

    com o parágrafo VII que diz que os “usos da lei não são contrários à graça do

    Evangelho...”

    24

     Antes de mais nada, é necessário compreender o que a CFW chama de pacto das

    obras e pacto da graça. O pacto das obras foi o pacto que Deus fez com Adão, e nos

    termos da CFW, capítulo XIX, parágrafo I, “por este pacto, Deus o obrigou, bem como

    toda sua posteridade, a uma obediência pessoal, inteira, exata e perpétua; promete-lhe a

    vida sob a condição dele cumprir a lei e o ameaçou com a morte no caso dele violá-la; e

    23 MEISTER, 2003, p. 26.24 Símbolos de fé: Confissão de Fé, Catecismo Maior e Breve / Assembléia de Westminster. São Paulo:Cultura Cristã, 2005.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    12/70

     

    12

    dotou-o com o poder e capacidade de guardá-la.”. No entanto, esse é o pacto que operou

    antes da Queda de Adão e Eva, em Gênesis 3.

    Berkhof 25 aponta algumas diferenças entre o pacto das obras e o pacto da graça,

    e dentre elas destacamos:

    1. O pacto das obras dependia da incerta obediência do ser humano, enquanto o

     pacto da graça repousa na obediência de Cristo como Mediador;

    2. No pacto das obras a guarda da lei é o caminho para a vida, no pacto da graça

    o caminho para a vida está na fé em Jesus Cristo;

    3. No pacto das obras, o homem comparece diante de Deus como criatura, e não

    há um mediador, ao passo que no pacto da graça, o homem comparece diante de Deus

    como um pecador, mas esse comparecimento se dá mediante um mediador, que é Cristo.

    Adão e Eva viveram originalmente sob o pacto das obras e dependiam da

    obediência à lei dada por Deus em Gênesis 2.17 (“Mas da árvore do conhecimento do

     bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”)

    Quando desobedeceram à lei, incorreram na maldição do pacto das obras, a morte. A

     partir disso, entra em ação o pacto da graça, que é a “manifestação graciosa e

    misericordiosa de Deus, aplicando a maldição do Pacto das obras à pessoa de seu Filho,

    Jesus Cristo, fazendo com que parte da sua criação, primeiramente representada em

    Adão, e agora representada por Cristo, pudesse ser redimida.”26 

    É interessante notar que a lei, antes da Queda, não se resumia apenas à ordem denão comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Existem outras leis,

    como a que lemos em Gênesis 1.28 (“E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos,

    multiplicai-vos, enchei a terra e sujeita-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves

    dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.”).

    25 BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Trad. Odayr Olivetti. 3 Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 253.26 MEISTER, 2003, p. 31.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    13/70

     

    13

    A revelação da lei de Deus expressa de forma objetiva foi dada nos tempos de

    Moisés, e a CFW divide os muitos aspectos da lei de Deus em três tipos de leis: lei

    moral, civil e cerimonial. É importante entendermos essas divisões para sabermos o

    contexto em que cada lei é dada e em que tipo de lei estamos pensando, quando falamos

    em Lei.

    1. A lei moral   representa a vontade de Deus para a humanidade, no que diz

    respeito ao comportamento e aos seus principais deveres. Tem a finalidade de deixar

    claro ao ser humano quais são seus deveres, auxiliando-o a discernir entre o que é bom e

    o que é mau.27 Nos parágrafos II e III do capítulo XIX da CFW, afirma-se que a lei

    moral aponta para os dez mandamentos dados a Moisés. Ao contrário do que os

    antinomistas afirmam, negando qualquer tipo de obediência à lei moral, a CFW nos

    ensina que a lei moral, ao contrário da civil e cerimonial, não tem tempo e nem lugar e

    ainda é válida como um orientador para a vida.

    Observe o que o Catecismo Maior de Westminster entende por lei moral

    (pergunta 95):

    “Qual é o uso da lei moral para todos os homens?”

    Resposta: A lei moral é de uso para todos os homens, para informá-los sobrea natureza santa de Deus e sua vontade, e de sua tarefa, constrangendo-os aandarem conformemente; para convencê-los da sua incapacidade em guardá-la e da poluição pecaminosa de sua natureza, de seus corações e vidas; parahumilhá-los no sentido de seu pecado e miséria e, desse modo, guiá-los parauma visão mais clara da necessidade de Cristo e da perfeição de suaobediência.”

    2. A lei civil   representa a legislação dada à nação de Israel, definindo, por

    exemplo, o que é crime e o que não é. Seu objetivo é regular a sociedade civil do estado

    teocrático de Israel, apresentando os direitos e deveres de cada cidadão. Como a própria

    CFW afirma no parágrafo IV do capítulo XIX, a Lei Civil terminou com aquela

    nacionalidade. Como exemplo da lei civil temos o relato de Números 35.6-12:

    27 MEISTER, 2003, p. 54.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    14/70

     

    14

    Das cidades, pois, que dareis aos levitas, seis haverá de refúgio, as quaisdareis para que, nelas, se acolha o homicida; além destas, lhes darei quarentae duas cidades [...] Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando passardes oJordão para a terra de Canaã, escolhei para vós outros cidades que vos sirvamde refúgio, para que, nelas, se acolha o homicida que matar alguéminvoluntariamente. Estas cidades vos serão para refúgio do vingador dosangue, para que o homicida não morra antes de ser apresentado perante a

    congregação para julgamento.

    3. E lei cerimonial   ou religiosa28, representa a legislação levítica do Antigo

    Testamento, como os sacrifícios e os simbolismos religiosos. Ela é cercada de símbolos,

    sinais e rituais que distinguiam o povo escolhido de Deus dos outros povos. Sua

    finalidade era imprimir no homem a santidade de Deus e apontar para Cristo. 29 Sendo

    assim, a lei cerimonial foi cumprida com a vinda de Jesus Cristo no Novo Testamento.

    O parágrafo III do capítulo XIX da CFW, afirma que as leis cerimoniais “estão todas

    abrogadas sob o Novo Testamento.”

    Podemos dizer, portanto, que quando Paulo critica os que estão vivendo sob a lei

    no Novo Testamento, ele está lutando, na verdade, contra aqueles que ainda praticavam

     principalmente as leis cerimoniais como a circuncisão, sacrifícios, ritos religiosos, que

    foram encerradas com a vinda de Cristo. Também contra aqueles que se submetiam à lei

    moral dos dez mandamentos como forma de obter salvação, negando assim a suficiência

    da morte substitutiva de Jesus Cristo.

    Para quê serve, pois, a lei, se vivemos na era da graça? É o que vamos buscar

    entender e responder no decorrer deste trabalho. No capítulo 1, faremos uma análise da

    carta de Paulo aos Gálatas e procuraremos compreender como João Calvino e Martinho

    Lutero interpretaram essa carta no que diz respeito ao legalismo presente no judaísmo

    do séc. I. Também procuraremos entender como Paulo enxergava as obras da lei e o

    evangelho da graça de Jesus Cristo.

    28 Toda a lei cerimonial pode ser encontrada nos livros de Êxodo, Levítico e Deuteronômio, sendoLevítico o principal manual para os israelitas.29 MEISTER, 2003, p. 46. 

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    15/70

     

    15

     No capítulo 2, voltaremos nossos olhos para a “Nova Perspectiva de Paulo”,

     baseada em Sanders e Dunn. Procuraremos entender o que é, o que tem ensinado e quais

    os pontos de divergência entre a mesma e a perspectiva tradicional, no que diz respeito

    ao tema “Lei e Graça”. Procuraremos, então, responder biblicamente aos pontos fracos

    desta nova perspectiva.

    Finalmente, no terceiro e último capítulo, nossa proposta é buscar responder à

     pergunta: “Para quê serve então a lei, se vivemos na era da graça?”, de acordo com a

    teologia reformada, enfatizando o último parágrafo (VII), do capítulo XIX da CFW que

    diz: “os supracitados usos da lei não são contrários à graça do Evangelho, mas

    suavemente condizem com ela, pois o Espírito de Cristo submete e habilita a vontade do

    homem a fazer livre e alegremente aquilo que a vontade de Deus, revelada na lei, requer

    se faça.”

    Como conclusão do trabalho, procuramos resumir o que foi tratado ao longo dos

    três capítulos, e de um modo prático, aplicar a doutrina da Lei e Graça na vida

    eclesiástica, sempre tendo o cuidado de não cair no legalismo ou no antinomismo, mas

    atraídos pela graça, nos comprometendo com a lei de Deus, com seus mandamentos

     prescritos nas Sagradas Escrituras, e que nos levam a amar a Deus sobre todas as coisas

    e ao próximo como a nós mesmos.

    De acordo com Packer, “a doutrina paulina da graça gratuita e soberana tanto

    humilha a soberba dos legalistas, que são justos aos seus próprios olhos, como condenaa lassidão preguiçosa e irresponsável dos antinomianos. Entendido corretamente, esse

    ensino gera uma jubilosa segurança e uma incansável energia no serviço de nosso

    Salvador.”30 É esta “doutrina paulina” que passaremos a analisar daqui em diante.

    30 PACKER, 1994, p. 95.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    16/70

     

    16

    1. Lei e Graça: Uma abordagem baseada em Gálatas

     Neste capítulo, faremos um estudo da carta de Paulo aos Gálatas, na qual ele

    trata da lei31 e do evangelho da graça de Jesus Cristo. Ao usar a palavra !"µ"# 32 vezes

    em Gálatas, podemos dizer que esta é a carta magna da liberdade cristã - a liberdade que

    nos toma pela mão e nos conduz à prática do amor.

    A todos aqueles que desejam levar Deus a sério e entender um pouco sobre lei e

    graça, Gálatas mostra o caminho em direção à verdadeira liberdade: a liberdade de ser

    escravo de Cristo, e não do legalismo. “Se Paulo tivesse se rendido ao legalismo, o

    Cristianismo teria sido conhecido como nada mais do que um Judaísmo modificado,

    que de forma alguma teria conquistado o mundo. Os gentios o teriam rejeitado.”32 

    1.1 O contexto

     Nos dias de Paulo, os gálatas encontravam-se sob o domínio do Império

    Romano. Eles haviam sido fielmente instruídos pelo Apóstolo no verdadeiro evangelho,

    mas, em sua ausência, falsos apóstolos insidiosamente se infiltraram entre os gálatas e

    corromperam o genuíno evangelho por meio de dogmas e doutrinas falsas. As igrejas da

    Galácia haviam sido invadidas por falsos mestres judaizantes logo após a primeira

    viagem missionária de Paulo e um ensino legalista estava pervertendo o evangelho

    31 Paulo usa a palavra “lei” (!$µ"#) para referir-se ao “corpo de regulamentos dados por Deus a Israelmediante Moisés no Sinai, e como tal ela é abordada pelo apóstolo nessa carta, não em sua função sociale nacional como emblema do judaísmo, mas como o conjunto de requisitos legais de Deus em relação aos

     judeus, os quais os oponentes de Paulo queriam impor aos gentios.” LOPES, Augustus Nicodemus. A

    Nova Perspectiva sobre Paulo: um estudo sobre as “obras da lei” em Gálatas. In: Fides Reformata XI,nº1, 2006, p. 89. 32 HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Gálatas. Trad. Valter Graciano Martins.São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 11.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    17/70

     

    17

     pregado e ensinado por este anteriormente. Esses novos ensinamentos pregavam que os

    gentios deveriam ser circuncidados bem como deveriam observar a lei de Moisés a fim

    de alcançarem a salvação. Afirmavam que a lei de Moisés precisava complementar a

    obra de Cristo, negando assim a suficiência da graça de Deus para a salvação. Na visão

    daqueles homens, as obras eram condição, juntamente com a fé, para que alguém fosse

    aceito por Deus. Era imperativo guardar também a lei, pois a fé em Cristo não era

    suficiente para a salvação.33 Estavam interpretando erroneamente tanto a lei quanto a

    graça de Deus.

    Quando Paulo quando fica sabendo de tudo isso, escreve a carta aos Gálatas, a

    fim de levá-los de volta ao verdadeiro evangelho, bem como esclarecer o entendimento

    dos crentes da Galácia sobre lei e graça. Para o apóstolo, “a função da lei não é salvar,

    mas revelar o pecado. A função da lei não é levar o homem para o céu, mas conduzi-lo

    ao Salvador.”34 A carta aos Gálatas é, na verdade, um grito de alerta a todos os cristãos

    que se deixam seduzir por uma falsa doutrina semelhante a essa. É o estandarte de

    liberdade para uma igreja que está caminhando mais uma vez para a escravidão da qual

    um dia foram libertos pelo sangue de Cristo.

    Paulo luta por essa tese como por um artigo fundamental da fé cristã. E naverdade o é, pois nem o mal mais aparentemente inofensivo não haverá deextinguir o resplendor do evangelho, armar cilada às consciências e removera distinção entre a antiga e a nova aliança. Ele percebeu que tais errosestavam também relacionados com uma opinião ímpia e destrutiva sobre omerecimento de justiça. E essa é a razão por que ele batalha com tamanhovigor e veemência. Quando tivermos compreendido quão significativa e sériaé a natureza desta controvérsia, então haveremos de estuda-la com uma

    atenção muito mais aguçada.35 

    O propósito de Paulo ao escrever esta carta era o de convencer os gálatas de que

    nenhum gentio precisava aceitar a circuncisão a fim de pertencer ao povo da aliança

    divina. A salvação e a verdade do evangelho vêm através da fé em Cristo, portanto,

    33 LOPES, Hernandes Dias. Gálatas: A carta da liberdade cristã. São Paulo: Hagnos, 2011, p. 0734 Ibid., p. 08.35 CALVINO, João. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses: Série Comentários Bíblicos. Trad.Valter Graciano Martins. São José dos Campos: Editora Fiel, 2010, p. 22-23.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    18/70

     

    18

    qualquer que busque violar a esfera sagrada da fé, adicionando leis, regras e novas

    exigências, estará adulterando o evangelho e deve ser confrontado.

    1.2 Gálatas 1 e 2

    Paulo escreve às igrejas da Galácia (Gl 1.1-2) 36, que antes haviam recebido o

    verdadeiro evangelho da graça de Cristo, mas o haviam abandonado para viver um

    outro evangelho baseado em ritos e leis: “Admiro-me de que vocês estejam

    abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para

    seguirem outro evangelho.” (1.6)

     Nesta carta nós encontramos Paulo muito preocupado com aqueles crentes, e o

    desejo dele é que as igrejas da Galácia voltem para o verdadeiro evangelho, baseado na

    graça de Cristo. Talvez seja por essa preocupação que encontramos a palavra "graça"

    ( %&'(#) sete vezes, e "evangelho" ()*+,,-.("!) onze vezes por toda a carta, segundo o

    GNT37. Paulo então, já no começo da carta, reapresenta bem rapidamente o verdadeiro

    evangelho que os gálatas estavam se esquecendo: “A vocês, graça e paz da parte de

    Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo por nossos

     pecados a fim de nos resgatar desta presente era perversa, segundo a vontade de nosso

    Deus e Pai, a quem seja a glória para todo o sempre. Amém.” (1.3-5) 

    “Segundo a vontade de Deus e Pai” (1.4) e não de acordo com os méritos

    humanos e os nossos esforços em cumprir leis e rituais. Paulo quer que os gálatas

    entendam exatamente isso. Algumas pessoas tinham pervertido o evangelho da graça,

    inserindo elementos judaicos, certos rituais, tradições e leis, como se a graça de Cristo

    não fosse suficiente. Esse evangelho que eles estão ensinando, na realidade, não é o

    36

     De agora em diante, quando as referencias não vierem acompanhadas das iniciais, significa que elas sãoreferencias tiradas da carta aos Gálatas.37 NESTLE-ALAND. O Novo Testamento Grego. 4.ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    19/70

     

    19

    evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo

     perverter o evangelho de Cristo. “Mas ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um

    evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!” (1.7-8)

    Paulo agora luta para manter a pureza do evangelho e a suficiência de Cristo

     para nossa salvação. Nesse intuito, ele ilustra com sua própria história, como Cristo

    havia revelado sua graça a ele, e como ele passou do judaísmo para o cristianismo, do

    outro evangelho pervertido para o verdadeiro evangelho da graça de Deus (1.11-2.21),

    da escravidão da lei para a liberdade em Cristo.

    Os elementos dessa história são comuns e podem muito bem parecer com nossa

     própria história também: Paulo primeiramente apresenta sua vida sem Cristo, quando

     perseguia implacavelmente a igreja de Deus, procurando destruí-la. No judaísmo, Paulo

    superava a maioria dos judeus, e era extremamente zeloso das tradições dos seus

    antepassados (1.13-14).

    Em segundo lugar, Paulo mostra o seu encontro com Cristo. Ele diz que Deus o

    havia separado desde o ventre materno e o havia chamado pela Graça (1.15-16). Depois

    disso, ele foi levado para a Arábia, e passou um tempo de solidão, sendo formado pelo

     próprio Deus (1.17).

    Após esse tempo, Paulo começa a compartilhar sua história e a sua fé em Cristo

    (Gl. 1.18-20). Relata, então, sua missão no mundo, indo pelas muitas regiões da Síria e

    Cilícia, pelas igrejas da Judéia, pregando e anunciando a graça de Cristo (1.21-24). A partir do capítulo 2, o apóstolo relata a transformação que ocorreu em seus

    relacionamentos com amigos e inimigos (2.1-10).

    Finalmente, após contar toda sua história, Paulo chega à grande conclusão que

    vai desmoronar toda a crença que os gálatas estavam abraçando: “Ninguém é justificado

     pela prática da lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo” (2.16).

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    20/70

     

    20

    De acordo com o RIENECKER e ROGERS, o verbo “justificar” (/(0+($1)

    aparece três vezes em Gálatas 2.16, e todas elas se encontram na voz passiva, que

    “aponta ao fato que ninguém se justifica, mas é declarado justo por outra pessoa.”  38 

    Portanto, “ser justificado” deve ser definido como aquele ato gracioso de Deus pelo

    qual, tão-somente com base na obra mediadora que Cristo consumou, ele declara o

     pecador como justo, e este aceita tal benefício com um coração crente.39 Paulo desvenda

    a doutrina da justificação pela fé, que é a doutrina central do cristianismo, e que foi

    restabelecida pela Reforma. O meio necessário para a justificação é a fé em Jesus como

    Salvador crucificado e como Senhor ressurreto. A fé é necessária porque o mérito de

    nossa justificação não está em nós, mas em Cristo.

    Segundo John Stott, esses capítulos nos apresentam quatro verdades cristãs: (1)

    “a maior necessidade do homem é a justificação, ou a aceitação de Deus”. (2) “A

     justificação não é pelas obras da lei, mas pela fé em Cristo. O trabalho da lei é me dizer

    o que eu devo fazer, mas eu preciso dar ouvidos ao evangelho, que me ensina o que

    Cristo já fez por mim”. (3) “Não confiar em Jesus Cristo por causa da confiança em si

    mesmo é um insulto à graça de Deus e à cruz de Cristo, pois é dizer que são

    desnecessárias”. (4) “Confiar em Jesus Cristo, sendo assim unido a ele, é começar uma

    nova vida”.40 

    Quando Paulo nos diz que somos justificados por meio da fé, visto não

     podermos ser justificados por meio das obras, ele tem certeza daquilo que é verdadeiro,

    ou seja, “não podemos ser justificados pela justiça de Cristo, a menos que sejamos

     pobres e destituídos de nossa própria justiça”41. Sendo assim, temos que atribuir tudo ou

    nada à fé ou às obras.

    38 RIENECKER, Fritz, ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Trad.:Gordon Chown e Júlio Zabatiero. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 374.

    39 HENDRIKSEN, 1999, p. 143.40 STOTT, John. A mensagem de Gálatas. Trad. Yolanda Mirdsa Krievin. São Paulo: ABU Editora,1989, p. 64.41 CALVINO, 2010, p. 79.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    21/70

     

    21

    Paulo tentou ser justo e obedecer a um grande número de leis e regras para

    agradar a Deus, mas não funcionou. E assim como Paulo, nós precisamos desistir de ser

    "homens da lei" para sermos "homens de Deus", que creem na graça de Deus e não em

    nossas próprias forças. Nosso ego precisa morrer, para que a vida de Cristo possa ser

    viva em nós. Para viver a vida de Cristo não é preciso obedecer e seguir a leis e rituais,

     pois tudo o que precisava ser feito, Cristo já fez na cruz do calvário, quando ele se

    entregou por nossos pecados. Deus se agrada de nós, quando nós confiamos e vivemos a

    vida de Cristo. Deus nos ama através de Cristo e este amor não é baseado pelo número

    de leis que seguimos.

    Martinho Lutero, no Debate de Heidelberg, diz que “o ser humano que crê

    querer chegar à graça fazendo o que está em si acrescenta pecado sobre pecado, de sorte

    que se torna duplamente réu”42, ou seja, o ser humano precisa se ajoelhar e pedir graça,

    colocando toda a esperança em Cristo, no qual está nossa salvação, vida e ressurreição.

    Quando Paulo declara em Gálatas 2.19: “morri para a lei...”, podemos afirmar,

     baseado em Calvino que, morrer para a lei é renunciá-la e libertar-se de seu domínio, de

    modo que não mais confiamos nela e ela não mais nos mantém cativos sob o jugo da

    escravidão. E então Paulo contrasta a morte para a lei com a morte vivificante da cruz

    de Cristo. Estar crucificado juntamente com Cristo é sinal de vida, “porque eu, mediante

    a própria lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus” (2.19). Em suma, Paulo nos diz

    que essa morte (para a lei) não é o fim, e sim o início de uma vida melhor, porque Deusnos resgata do naufrágio da lei e, mediante sua graça, nos restaura para uma nova vida.

    “Nada direi a respeito das outras interpretações. Este me parece ser o verdadeiro

    significado do apóstolo.” afirma Calvino43.

    42  LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: Os primórdios escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo:Editora Sinodal, Porto Alegre: Concórdia Editora, vol.1, 1987, p. 48.43 CALVINO, 2010, p. 83.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    22/70

     

    22

    A observância da lei não desempenha qualquer papel na justificação, esta se

    realiza exclusivamente pela fé, pois acha-se somente em Cristo e através dele, e

    somente pela graça.

    A justiça de Deus não é adquirida através de atos frequentemente repetidos, mas

    é infundida pela fé. A graça e a fé são infundidas, e as obras são uma consequência

    dessa realidade. São obras de Deus, operadas através de Cristo. Assim, pela fé Cristo

    está em nós e é ele quem cumpre toda a lei de Deus, “razão pela qual também nós

    cumprimos toda ela, através de Cristo, uma vez que (Cristo) se tornou nosso pela fé.”44 

    A lei é diferente da fé porque exige as obras para justificar o homem, enquanto a fé não

    as exige. Aquele que é justificado pela fé é justificado sem nenhum mérito, pois a fé

    recebe a justiça que a graça oferece, que se encontra unicamente em Cristo.

    1.3 Gálatas 3

    Depois de mostrar aos gálatas com sua própria história que ninguém é

     justificado pela prática da lei, mas somente mediante a fé em Jesus Cristo, no capítulo 3,

    Paulo passa a questioná-los, sendo que nos cinco primeiros versículos, faz cinco

     perguntas muito pessoais e incisivas:

    Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foiJesus Cristo exposto como crucificado? Quero apenas saber isto de vós:recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois assim

    insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais, agora, vosaperfeiçoando na carne? Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes? Se, naverdade, foram em vão. Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que operamilagres entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei ou pela pregação dafé? (3.1-5)

    Paulo começa a confrontar os gálatas quanto aos novos ensinamentos do "outro

    evangelho" que estava sendo ensinado: Como começou a nova vida de vocês? Será que

    44 LUTERO, 1987, v.1, p. 52-53.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    23/70

     

    23

    foi resultado de esforço para agradar a Deus? Para Paulo, é preciso perder o juízo para

     pensar que é possível completar o que foi iniciado por Deus por esforço próprio.

    E então, o apóstolo começa a citar o Antigo Testamento, mais especificamente, a

    experiência de Abraão em Gênesis 15, a fim de mostrar que Abraão foi considerado

     justo não por ter cumprido regras e leis, mas porque creu em Deus. Pela fé em Deus,

    Abraão foi feito justo, e agora, pela fé, nós também fazemos parte da bênção de Abraão:

    "Em ti, serão abençoados todos os povos" (3.8). Isso nos mostra que todo o que tentar

    viver a justiça por esforço próprio, independentemente de Deus, está destinado ao

    fracasso. O apóstolo, então, continua citando Deuteronômio 27.26; 21.23, e Gênesis

    12.7, a fim de mostrar que o Espírito de Deus que habita em nós vem pela pregação da

    fé e não pela prática da lei. É graça e não mérito nosso, e isso já vem sendo ensinado

    desde os tempos antigos. Era verdade para Abraão, era verdade para os gálatas, e

    continua sendo verdade para nós hoje! O argumento de Paulo é que ninguém é capaz de

    guardar a lei na sua totalidade. Calvino afirma que nunca houve tal pessoa que

    cumprisse plenamente a lei, e jamais haverá. Sendo assim, todo homem está

    condenado.45 

    Mas então, se ninguém é capaz de cumprir plenamente a lei, qual é o objetivo

    dela? Paulo vai explicar isso a partir do versículo 19. O propósito da lei era preservar

    um povo pecador na história da salvação até que "o descendente" viesse, herdando as

     promessas e concedendo-as também para nós. Paulo afirma que a lei era como ostutores gregos, que conduziam as crianças à escola e as protegiam de perigos ou

    distrações, certificando-se de que chegariam onde deveriam. Lutero diz que:

    a lei dá a conhecer o pecado, para que, sendo conhecido o pecado, se procuree se obtenha a graça. [...]. A lei humilha, a graça exalta. A lei opera o temor ea ira; a graça opera a esperança e a misericórdia. Pois pela lei é adquirido oconhecimento do pecado; pelo conhecimento do pecado, porém, a humildade;e pela humildade, a graça. Desta forma, a obra estranha de Deus realiza, porfim, a sua obra própria, fazendo um pecador para torná-lo justo.46 

    45 CALVINO, 2010, p. 99.46 LUTERO, 1987, v.1, p. 48.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    24/70

     

    24

    A lei nos serve de "aio" para nos conduzir até Cristo, para que sejamos

     justificados pela fé nele. Segundo Calvino, um aio não era designado para toda a vida de

    uma pessoa, somente para a infância. O objetivo era preparar a criança, por meio de

    instruções, para as coisas mais excelentes. Assim, a autoridade da lei se limitava a

    determinada época, e seu propósito era preparar seus alunos de tal modo que, ao

    findarem as instruções elementares, eles fariam progressos dignos da maturidade. A lei,

    ao revelar a justiça de Deus, convenceu os homens de sua própria injustiça, e ela não

    lhes dava descanso, enquanto não fossem constrangidos a buscar a graça de Cristo.

    Paulo, em se tratando do objetivo da lei, afirma que ela foi promulgada para

    tornar conhecidas as transgressões e compelir o homem a reconhecer sua culpa,47 “até

    que viesse o descendente” (3.19) – O descendente mencionado é aquele sobre qual a

     bênção foi pronunciada, e então Calvino conclui que a lei tinha que ocupar não a

     posição mais elevada, mas sim uma posição subordinada. “Ela foi promulgada para

    estimular os homens a esperarem por Cristo.”48 

    Com a vinda de Cristo, temos livre acesso a Deus Pai, bem como um

    relacionamento direto com Deus, não havendo necessidade da lei para nos conduzir até

    ele, mesmo porque nós nunca conseguiríamos obedecer toda a lei para nos justificarmos

    diante do Pai e agradá-lo. Apenas Cristo é capaz de cumprir toda a lei, e ele fez isso por

    nós, para que a justiça de Cristo fosse imputada a nós, e então pudéssemos ser aceitos

     por Deus, e justificados unicamente pela fé nele.

     Não é a nossa performance que nos faz aceitáveis diante de Deus, mas é a fé

    naquele que já fez tudo o que tinha que ser feito para que pudéssemos ser aceitos: Jesus

    Cristo. É isso que agrada a Deus!

    Quando, pois, [a pessoa] aprendeu sua impotência por meio dos preceitos e jáficou ansiosa quanto a como satisfazer a lei [...] então, realmente humilhada ereduzida a nada a seus olhos, não encontra em si mesma aquilo pelo qual

    47 CALVINO, 2010, p. 110.48 Ibid. p. 111.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    25/70

     

    25

     possa ser justificada e salva. Neste ponto se faz presente a outra parte daEscritura – as promissões de Deus, que anunciam a glória de Deus e dizem:“Se queres cumprir a lei, não cobiçar, como exige a lei, crê em Cristo no qualte são prometidas a graça, justiça, paz, liberdade, e tudo; se creres, terás; senão creres, ficarás sem.” Pois o que te é impossível em todas as obras da lei,que são muitas, e, assim mesmo, inúteis, isso cumprirás de modo fácil eresumido pela fé. [...] Só ele (Deus) dá preceitos, só ele os cumpre.49 

    1.4 Gálatas 4

    “Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de

    mulher, nascido debaixo da lei, a fim de redimir os que estavam sob a lei, para que

    recebêssemos a adoção de filhos.” (Gl 4:4-5)

    Após Paulo questionar os gálatas quanto às obras da lei e a fé em Cristo, e

    chegar à conclusão de que absolutamente ninguém é justificado pela prática da lei, no

    capítulo 4, o apóstolo nos relata as implicações de tudo o que ele disse anteriormente

    sobre as obras da lei e a fé em Cristo. Ele começa fazendo uma comparação entre

    escravos e livres. Como escravos, dependíamos dos dominadores deste mundo, sem

    autoridade sobre a própria vida, pois ainda não havíamos sido emancipados; os escravos

    vivem sob a lei. Porém, quando chegou o tempo estabelecido por Deus, o próprio Deus

    enviou seu Filho, Jesus Cristo, nascido de mulher, sob as condições da lei, para redimir

    os que estavam escravizados, sob o domínio da lei. “Ainda que sem pecado, Cristo

    nasceu sob a lei, não somente com a obrigação de cumprir toda a lei, mas identificando-

    se com os pecadores, os quais estão debaixo da maldição da lei”.50 

    A morte de Cristo nos libertou dessa maldição. Quando o apóstolo Paulo diz em

    Gálatas 4.4 que Deus enviou seu Filho, nascido sob a lei, significa que o Filho de Deus,

    que por direito era isento de toda sujeição à lei, tornou-se sujeito a ela. Ele fez isso em

    nosso lugar, com o objetivo de obter a liberdade para nós. Cristo decidiu tornar-se

    49 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: O Programa da Reforma Escritos de 1520. São Leopoldo:Editora Sinodal, Porto Alegre: Concórdia Editora, vol.2, 1989, p. 440. 50 BÍBLIA de Estudo de Genebra. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã,1999, p. 1394.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    26/70

     

    26

    obrigado a cumprir a lei, a fim de obter isenção para nós. Do contrário, ele teria se

    submetido ao jugo da lei inutilmente. Mas temos que observar que a isenção da lei que

    Cristo conquistou para nós, não significa que não devamos mais obediência ao ensino

    da lei, pois, segundo Calvino, a lei é a norma eterna de uma vida agradável e santa.

    Paulo está se referindo à lei com todos os seus apêndices.51 

    Assim, ele nos libertou da escravidão da lei para sermos não mais escravos, mas

    filhos que têm direito à herança. Uma vez libertos, fomos adotados como filhos. O filho

    não é escravo, mas livre do domínio da lei. A lei de Cristo e a justiça de Cristo é que

    têm domínio sob aqueles que são filhos. A intimidade com Deus é para aqueles que são

    filhos, não para os escravos.

    E Paulo, mais uma vez preocupado com a situação dos gálatas, questiona: agora

    que vocês conhecem o Deus verdadeiro, como podem se sujeitar novamente às tradições

    e superstições? (4.9). A preocupação do apóstolo é tão grande, que ele afirma que está

    sofrendo como uma mãe em dores de parto, e o maior desejo dele é que Jesus Cristo

    seja formado nos gálatas, ou seja, que Cristo seja uma realidade na vida deles. Para

    ilustrar tudo isso, novamente Paulo se volta para Gênesis, e cita Abraão (Gênesis 16,

    21). O Patriarca teve dois filhos: um da escrava e outra da livre. O filho da escrava

    nasceu por iniciativa humana, mas o filho da livre nasceu pela promessa de Deus. Dois

    modos de relacionamento com Deus. O primeiro filho da escrava fala de uma vida

    escrava que produz escravos como descendentes. O segundo filho fala da Jerusaléminvisível, uma Jerusalém livre.

    1.5 Gálatas 5

    51 CALVINO, 2010, p. 136.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    27/70

     

    27

    Após fazer comparações com Abraão e afirmar que nós, filhos da promessa

    como Isaque, não somos escravos, mas livres, Paulo passa a explicar de quê somos

    livres, e como viver essa liberdade que Cristo veio nos trazer. Ele começa o capítulo 5

    afirmando que "Para a liberdade foi que Cristo nos libertou." É muito comum ouvirmos

    esse versículo fora de contexto, dando margens para uma interpretação errada da

    liberdade que Cristo nos oferece. De quê fomos, então, libertos?

    Em primeiro lugar, Cristo nos libertou da lei como sistema de salvação. No v.3

    Paulo afirma que quem aceita o sistema da circuncisão ou qualquer outro sistema de

    regras, troca a maravilhosa vida de liberdade em Cristo pelas obrigações da vida de

    escravo da lei, ou seja, o dom da liberdade que Cristo conquistou com sofrimento, se

    entregando na cruz, acaba sendo desperdiçado. Calvino diz que a liberdade que Paulo

    falava é a isenção de cerimônias da lei, cuja observância era exigida, como necessária,

     pelos falsos apóstolos.52 

    Em segundo lugar, Cristo nos libertou do domínio do pecado. No v.13 Paulo diz

    que nós fomos chamados para a liberdade, mas não devemos usar essa liberdade para

    dar ocasião à carne, ou seja, não podemos usar essa liberdade como desculpa para fazer

    o que bem entendemos, pois agindo assim, destruiremos essa liberdade.

    Após falar sobre a liberdade que temos em Cristo, em Gálatas 5.3 (“Testifico a

    todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei”) entende-

    se que os pregadores da circuncisão não fizeram tal exigência; e em 6.13 Paulo diz:“Eles mesmos não observam a lei”. De acordo com Paulo, cumprir toda a lei significa

    cumprir a lei na abrangência e com o rigor como ele o fez como judeu e fariseu,

    segundo a norma da interpretação farisaica da lei. O que Paulo está querendo dizer em

    5.3 é que se os cristãos optarem pela circuncisão, que também se sujeitem ao

    52 CALVINO, 2010, p. 159.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    28/70

     

    28

    cumprimento da lei em toda a sua abrangência e rigor. Percebemos aqui que o legalismo

    tinha de fato sido compreendido como caminho para a salvação.53 

    O apóstolo, então, diz que existe uma guerra dentro de cada um de nós. Há uma

    raiz de egoísmo que guerreia contra a liberdade do Espírito que Cristo nos concedeu; a

    nossa carne milita contra o Espírito (v.17). Ele faz uma lista de coisas que as pessoas

    que vivem sob o domínio do pecado fazem: prostituição, impureza, lascívia, idolatria,

    feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas,

     bebedices, glutonarias, e cousas semelhantes a estas (vs.19-20). Paulo nos ensina que

    devemos usar nossa liberdade com moderação, para não darmos liberdade à carne, “que

    deve, antes, ser mantida sob jugo; mas a liberdade é um benefício espiritual que

    somente os espíritos piedosos são capazes de desfrutar.”54 

    Em seguida, Paulo passa a falar da vida com Deus. Quando recebemos o fruto

    do Espírito: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,

    mansidão e domínio próprio, passamos a viver no caminho de Deus e contra essas

    coisas não há lei (vs.22-23). Como podemos, então, usufruir dessa liberdade

    conquistada por Cristo na cruz? Encontramos a resposta nos vs. 6 e 14: "Porque, em

    Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua

     pelo amor" e: "Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: 'Amarás o teu

     próximo como a ti mesmo'".

    Em Cristo, nem nossa religião, nem nossa indiferença quanto às obrigaçõesreligiosas significam alguma coisa. O que importa é a fé que atua pelo amor. (Gl. 5.6)

    1.6 Gálatas 6

    53 VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva: Introdução ao Novo Testamento,aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos. Trad. Ilson Kayser. Santo André: Editora Academia Cristã, 2005, p.144.54 CALVINO, 2010, p. 171.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    29/70

     

    29

    Finalizando a abordagem da carta de Paulo aos Gálatas, o apóstolo vai dizer

    como nós podemos cumprir a lei de Cristo, e que a única coisa que nós temos que nos

    gloriar, não é em nossa performance, nem em nossos méritos, mas na cruz de Cristo.

    O capítulo começa tratando da importância de nos auxiliarmos uns aos outros,

    de tomarmos responsabilidade para com o nosso próximo. Para Paulo essa é a maneira

    de cumprirmos a lei de Cristo, uma forma concreta da “fé que atua pelo amor” que ele

    afirma no capítulo 5, versículo 6. “Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a

    lei de Cristo.” (Gl. 6.2). Isto é, se alguém cair em pecado, restaurem essa pessoa com

     perdão. Ajam com misericórdia e estendam a mão aos que precisam de ajuda. Fazendo

    isso, estaremos cumprindo a lei de Cristo.

    Calvino dá a seguinte interpretação a Gálatas 6.2: “Se vocês têm um grande

    desejo de guardar uma lei, Cristo lhes recomenda uma lei que vocês preferirão a todas

    as outras, qual seja: exercer benevolência uns para com os outros”.55 Lutero diz que

    é cristão cuidar do corpo, para que por meio do seu vigor e bem-estar, possamos trabalhar, adquirir bens e preservá-los para o subsídio daqueles que

    têm carência, para que assim o membro robusto sirva ao membro fraco, esejamos filhos de Deus, um preocupado e trabalhando pelo outro, carregandoos fardos uns dos outros e assim cumprindo a lei de Cristo.56 

    Paulo novamente volta ao assunto da circuncisão e da vida centrada em regras, e

    ensina que de nada vale tudo isso, só levam a uma vida de orgulho; uma vida baseada

    em leis e regras leva apenas ao egoísmo e à soberba. É por isso que a partir do v. 14

    Paulo diz: “Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus

    Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu, para o mundo.”

    João Calvino, sobre esse versículo, diz que Paulo está contrastando as tramas

    dos falsos apóstolos com sua própria sinceridade, como se estivesse dizendo: “Para não

    serem compelidos a levar a cruz, então negam a cruz de Cristo, adquirem os aplausos

    55 CALVINO, 2010, p. 186.56 LUTERO, 1989, v. 2, p. 452.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    30/70

     

    30

    dos homens com o preço de vossa carne e terminam conduzindo-vos em triunfo. Meu

    triunfo e minha glória, porém, se encontram na cruz do Filho de Deus”57 

    Finalmente, no último versículo, Paulo despede-se dizendo: "Que a graça de

    Cristo seja com o vosso espírito." Calvino diz que Paulo ora não para que a graça fosse

    derramada sobre eles gratuitamente, mas para que pudessem ter em sua mente um

    sentimento correto sobre ela. Realmente, ela só é usufruída por nós quando atinge o

    nosso espírito. Devemos, pois, pedir a Deus que prepare nossa alma para ser uma

    habitação de sua graça.58 

    1.7 Conclusões de Lutero e Calvino

    Lutero, em suas teses debatidas em Heidelberg, conclui que “a lei de Deus, mui

    salutar doutrina da vida, não pode levar o ser humano à justiça; antes, o impede”; e essa

    mesma lei, “provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa, julga e condena tudo o que não

    está em Cristo”.59 É por isso que nós precisamos seguir o que ele chama de Teologia da

    Cruz, pois a lei, em si, não é má, e nós não devemos fugir dela. “A lei é santa e toda

    dádiva de Deus é boa. Entretanto, quem ainda não foi destruído, reduzido a nada pela

    cruz e pelo sofrimento, atribui as obras a si mesmo e não a Deus.” 60 Quem foi atingido

     pelo sofrimento e pela cruz de Cristo, sabe que é Deus quem nele opera e tudo realiza, e

    então entende que a lei só pode ser cumprida através de Cristo, diferente da teologia daglória, onde as pessoas ignoram Cristo e seu sofrimento e buscam encontrar Deus nas

     boas obras e no cumprimento de regras, na glória e no poder, tornando-se egoístas e

    inimigas da cruz de Cristo. Portanto, é necessário olhar para a lei, com humildade, e

    reconhecer que é impossível cumpri-la sem a ajuda de Cristo.

    57 CALVINO, 2010, p. 197.58 CALVINO, 2010, p. 202.59 LUTERO, 1987, v. 1, p. 38-39.60 Ibid, p. 51-52.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    31/70

     

    31

    João Calvino diz que “a lei nos foi dada pelo Senhor para nos ensinar a justiça

     perfeita, e que nela nenhuma outra justiça nos é ensinada, senão a que nos manda

    regrar-nos pela vontade de Deus e conformar-nos a ela”61 Portanto, a vida do homem

    deve ser regrada pela lei, não somente por uma honestidade externa, mas também para a

     justiça interna e espiritual. O reformador ainda afirma que Cristo não foi um segundo

    Moisés, que deu uma segunda lei para suprir o que faltava na lei mosaica. Cristo não fez

    acréscimos à lei, mas a restabeleceu em sua inteireza, limpou-a das mentiras dos

    fariseus com as quais a tinham obscurecido.62  Contudo, se o espírito da graça for

    retirado, a lei só servirá para acusar e matar.

    A lei de Deus é letra morta e mata os que a seguem, quando estádesvinculada da graça de Cristo e somente soa nos ouvidos, mas não toca ocoração. Mas se o Espírito a imprime de fato na sede da vontade, e se ele noscomunica Jesus Cristo, a Escritura é de fato a Palavra da vida, converte almase “dá sabedoria aos símplices (Salmos 19.7).63 

    Ao olhar para a carta aos Gálatas, o que podemos perceber, é que a lei de Deus

    nos ensina o caminho da justiça divina, mas ela também nos recrimina, tanto por nossa

    natureza pecaminosa como por nossa injustiça. A lei de Deus nos revela o quanto somos

     perversos e avessos à justiça de Deus, e estamos muito longe de sermos capazes de

    cumpri-la perfeitamente.

    Podemos aprender que a lei de Deus expressa a vontade de Deus para nossas

    vidas, mas sozinhos, somos incapazes de observá-la. Olhando para dentro de nós,

     percebemos que não satisfazemos a vontade de Deus, e portanto, somos indignos de

    manter nosso lugar entre as criaturas. Sendo assim, existe a necessidade de olharmos

     para Cristo, que é o único que cumpriu perfeitamente a vontade de Deus, e nos tornou

    aceitáveis diante do Pai. Sem Cristo, a lei somente nos acusa e mata, mas com Cristo, a

    lei nos revela a perfeita vontade de Deus.

    61 CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Cultura Cristã,vol.1, 2006, p. 167.62 CALVINO, 2006, v.1, p. 168.63 Ibid. p. 77.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    32/70

     

    32

    Quando temos plena convicção da nossa imperfeição e total dependência de

    Cristo, somos libertos do jugo da lei, e essa liberdade faz com que nossa consciência

     busque obedecer a lei, não como constrangidos ou forçados a tal tarefa, para conseguir a

     justificação própria e ser aceitos por Deus, mas livremente, como resposta ao que Cristo

     já fez por nós. O fim dessa liberdade que Cristo conquistou para nós é incentivar-nos à

     prática do bem.

    Precisamos, portanto, apegar-nos mais à graça de Deus, que nos supre do que

    falta à lei, e amar a misericórdia divina, pela qual a graça nos é concedida, porque

    quando estamos debaixo da graça de Deus, a lei não exerce todo o seu rigor

     pressionando-nos até o fim, de modo a só ficar satisfeita se cumprirmos tudo o que ela

    manda. Em vez disso, ela nos exorta à perfeição para a qual nos chama, e nos mostra a

    meta que devemos buscar durante a nossa vida. “Quando chegarmos ao fim, o Senhor

    nos fará o benefício de levar-nos a alcançar a meta, a qual ainda estaremos buscando,

    embora distantes dela.”64 

    Concluindo este primeiro capítulo, apresentaremos três verdades compreendidas

    até aqui: Em primeiro lugar, quando Paulo usa a expressão “obras da lei”, em sua carta

    aos Gálatas, ele se refere aos atos de obediência às leis cerimoniais como a circuncisão,

    e à lei moral de Moisés realizados pelos judeus de sua época, com a intenção de serem

    aceitos por Deus. Em segundo lugar, nunca foi propósito de Deus que a lei servisse de

    caminho para a salvação. E em terceiro e último lugar, o homem é totalmentecorrompido, devido ao pecado, e, portanto, não é capaz de cumprir o que a lei ordena.

     Ninguém pode se justificar pela lei simplesmente porque ninguém é capaz de fazer tudo

    o que a lei exige. Dependemos de Cristo para sermos aceitos e justificados por Deus. A

    guarda da lei não vale a pena fora de Cristo.

    Eis o resumo disso tudo: se buscarmos a salvação em nossas obras, é-nosnecessário guardar os mandamentos, os quais nos instruem sobre a justiça

     perfeita. Mas não devemos parar aqui, se não quisermos desfalecer no meio

    64 CALVINO, 2006, v.1, p. 228.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    33/70

     

    33

    do caminho, porque nenhum de nós é capaz de os guardar. Assim, depois determos sido excluídos da justiça da lei, precisamos de outro retiro e socorro,qual seja, a fé em Jesus Cristo. Portanto, assim como o Senhor Jesus nessa

     passagem (Mateus 19.17) remete de volta à lei o doutor dela, sabendo que eleestava inchado de vã confiança em suas obras, e o fez para que ele sereconhecesse pobre pecador e sujeito à condenação, assim também noutrolugar ele consola com a promessa de sua graça os que se humilham por

    aquele reconhecimento, e os consola sem fazer menção da lei. “Vinde amim”, diz ele, “todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei”(Mateus 11.28)65 

    2. A Nova Perspectiva de Paulo

    Depois de abordarmos a carta aos Gálatas baseados nos comentários de Lutero e

    Calvino, e mostrarmos a Teologia Bíblica de Paulo, neste segundo capítulo,examinaremos um tipo de interpretação mais recente da teologia de Paulo que tem feito

    oposição à teologia reformada, e que é chamada de “Nova Perspectiva de Paulo”. Ao

    final, tentaremos responder a seguinte pergunta: É a Nova Perspectiva de Paulo, bíblica

    e confiável?

     Nosso objetivo com este capítulo é mostrar quem são os principais expoentes da

     Nova Perspectiva, o que ela tem proposto e no que ela diverge da perspectiva

    tradicional e bíblica que vem sendo adotada pelos cristãos de teologia reformada.

    2.1 Os principais expoentes

    A interpretação tradicional que dominou os estudos paulinos por muito tempo

     passou a ser contestada por estudiosos, dentre eles, destacaremos E. P. Sanders e James

    Dunn. Eles dizem que “a teologia de Paulo tem sido mal compreendida porque tem sido

    interpretada pelas lentes de Lutero e da Reforma”66 . Essa é a maior crítica dos

    defensores da Nova Perspectiva. O ponto fundamental não diz respeito à pessoa de

    65 CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Cultura Cristã,vol2, 2006, p. 264-265.66 STUHLMACHER, Peter, Lei e Graça em Paulo: uma resposta à polêmica em torno da doutrina da

     justificação. Trad. Lucy Yamakami. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 98.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    34/70

     

    34

    Paulo, mas à natureza do judaísmo do primeiro século, como Paulo e o judaísmo

    enxergavam a questão da lei e graça.

    Estes teólogos não concordaram com a perspectiva tradicional que vinha sendo

    adotada, principalmente pelos cristãos reformados, pois acreditavam que a teologia de

    Paulo estava sendo interpretada de acordo com a visão e interpretação que Lutero fez na

    época da Reforma Protestante. Sendo assim, eles propuseram uma nova interpretação da

    teologia paulina, sem as lentes da Reforma, ou seja, uma nova maneira de enxergar os

    escritos de Paulo, um novo jeito de interpretar as Escrituras e o judaísmo do primeiro

    século. Nasce então a Nova Perspectiva de Paulo.

    2.1.1 E. P. Sanders

    Sanders é um especialista em Novo Testamento e um dos principais proponentes

    da Nova Perspectiva de Paulo. Seu campo de interesse é o judaísmo e o cristianismo no

    mundo greco-romano. Muito citado por James Dunn, E. P. Sanders afirma que o

     judaísmo palestinense do primeiro século, não era uma religião de obras feitas para a

    obtenção da aprovação por Deus e entrada no pacto.67  Em uma de suas principais

    obras68, ele propõe uma reavaliação do pensamento paulino, de forma que seja possível

     perceber mais do que simples oposições e refutações à lei.

    Em suas conclusões, Sanders afirma que o judaísmo da época de Paulo entendiaa salvação como eleição e pacto, onde Deus escolhe Israel. Ele dizia que a lei observada

     pelos judeus era praticada não para entrarem na aliança, mas para se manterem nela. A

    isto, Sanders dá o nome de “nomismo da aliança”. Dunn, citando Sanders define

    “nomismo da aliança” como:

    67  DUNN, James D. G., A nova perspectiva sobre Paulo. Trad. Monika Ottermann. Santo André:Academia Cristã, 2011, p. 19.68  SANDERS Ed Parish, Paulo, a lei e o povo judeu. Trad. José Raimundo Vidigal. São Paulo:Academia Cristã, Paulus, 2009.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    35/70

     

    35

    A ideia de que o nosso lugar no plano de Deus está estabelecido com base naaliança e que a aliança exige como resposta apropriada do homem suaobediência aos mandamentos, fornecendo meios de expiação dastransgressões [...] A obediência mantém nossa posição na aliança, mas nãomerece a graça de Deus como tal [...] Justiça no judaísmo é termo queimplica a manutenção do status entre o grupo dos eleitos.69 

    Sanders entendia que os fariseus da época de Paulo, já nasciam dentro da graça e

    da aliança. Eles praticavam as “obras da lei” não por legalismo ou para conseguir a

    aprovação de Deus, mas para se manter dentro do pacto. Afirma-se, então, que o

     judaísmo não é uma religião legalista, mas baseada na graça de Deus revelada nas

    alianças com Israel. A Nova Perspectiva veio para confrontar toda a teologia tradicional

    de Paulo que era sustentada principalmente por Lutero e Calvino. Para Sanders, Paulo

    adotava a tese corrente da época, de que pertencer ao grupo de cristãos implicava

     procedimento correto, ou seja, observar a lei.70 

    Sanders nos ofereceu uma oportunidade inédita de olhar para Paulo comnovos olhos, de mudar nossa perspectiva do séc. XVI para o séc. I, de fazeralgo que todo verdadeiro exegeta quer fazer – a saber, ver Pauloapropriadamente dentro de seu próprio contexto, ouvir Paulo nos termos deseu próprio tempo, deixar Paulo ser ele mesmo.71 

    Em resumo, o argumento fundamental de Sanders é que o judaísmo não era uma

    religião de obras mas da graça e misericórdia de Deus. A partir de um estudo

    aprofundado da maior parte da literatura judaica do primeiro século, Sanders tentou

    mostrar que a relação de aliança que Israel tinha com Deus era básica para o sentimento

    de nacionalidade do judeu e para sua compreensão da religião. Ele afirma que Deus

    escolheu Israel para ser seu povo, para desfrutar de um relacionamento especial. A lei

    então foi dada como uma expressão dessa aliança, “para regular e preservar o

    relacionamento estabelecido pela aliança.”72 

    Isso significa que, no judaísmo, a obediência à Lei nunca foi pensada comoum meio de entrar na aliança, de conseguir um relacionamento especial comDeus; era antes a questão de manter o relacionamento da aliança com Deus.

    69 DUNN, James D. G. A teologia de Paulo. Trad. Edwino Royer. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p.

    391.70 SANDERS, 2009, p. 132.71 DUNN, 2011, p. 16172 Ibid, p. 160.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    36/70

     

    36

    A partir disso, Sanders elabora sua expressão chave para caracterizar o judaísmo palestinense do primeiro século, “nomismo da aliança”.73 

    Um outro ponto importante na Nova Perspectiva é sobre a justificação pela fé,

    que na visão reformada, é o centro da teologia de Paulo, mas que agora é vista por

    Sanders e outros teólogos da Nova Perspectiva como uma tática pragmática para

    facilitar a missão aos gentios. Para Albert Schweitzer, que é um dos teólogos da Nova

    Perspectiva, citado na obra de Stuhlmacher: “a doutrina da justificação pela fé é uma

    cratera secundária, formada dentro da cratera principal, a doutrina mística da redenção

     por meio do ‘estar em Cristo’”74 

    2.1.2 James Dunn

    Além de Sanders, outro teólogo escocês, que tem contribuído para a Nova

    Perspectiva é James Dunn, autor de uma das principais obras sobre esta corrente

    teológica, e que tem como título “A Nova Perspectiva sobre Paulo”. Ele percorre linhas

    um pouco diferentes, e apesar de sofrer influência da apresentação do judaísmo feita por

    Sanders, apresenta algumas discordâncias do retrato que este faz de Paulo.

    Dunn sustenta duas ideias básicas: (1) O judaísmo não é uma religião legalista,

    que prega a justificação pelas obras, mas uma religião de graça. (2) O ensino de Paulo

    sobre a justificação independente das obras da lei é baseado na igualdade entre judeus e

    gentios diante de Deus. O que Paulo deseja é mostrar aos dois grupos (gentios e judeus)

    que Deus se inclina de maneira graciosa em direção a eles e os aceita.75 

    Em seu artigo sobre a Nova Perspectiva, falando sobre James Dunn, Augustus

     Nicodemus diz:

    Sua abordagem sociológica tem recebido vasta aceitação. Para ele, Pauloataca as “obras da lei” não porque elas expressam algum desejo de alcançar

    73 Ibid.74 STUHLMACHER, 2002, p. 96.75 Ibid., p. 47.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    37/70

     

    37

    mérito por parte dos judeus, mas porque entende que elas fazem umadistinção entre os judeus, o povo de Deus da antiga dispensação, e os gentios,a quem o evangelho está sendo oferecido. As “obras da lei”, que Pauloidentifica como restritas à circuncisão, às leis sobre alimentos puros eimpuros (kashrut ) e aos dias especiais do calendário judaico, são emblemasque caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatizam aseparação entre judeus e não-judeus, a qual Cristo veio abolir 76 

    A partir de agora então, o Judaísmo não é mais visto como uma religião legalista,

    mas como “nomismo da aliança”, ou seja, a lei depende da graça, vem depois da graça e

    o observar a lei é compreendido como a resposta de Israel à graça de Deus. A Nova

    Perspectiva de Paulo entende que o legalismo é uma distorção do Judaísmo e não o

     próprio Judaísmo, e que as “obras da lei” são a marca principal da identidade judaica. O

    que faz de um judeu, um verdadeiro judeu é a prática das “obras da lei” que o diferencia

    do gentio: a circuncisão, a guarda do sábado, as regras sobre alimentação entre outros

    rituais.

    2.2 Gálatas 2.16

    Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei e sim mediante afé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos

     justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguémserá justificado.” (Gálatas 2.16)

    Um dos pontos chaves da Nova Perspectiva de Paulo é quando Paulo fala sobre

     justificação em Gálatas 2.16. Justificação é uma palavra tomada emprestada dos

    tribunais, e é exatamente o oposto de condenação. Como vimos no primeiro capítulo

    sobre este texto, a palavra “justificar” é um verbo que se encontra na voz passiva pois é

    ato exclusivo e gracioso de Deus que torna justo o pecador injusto. James Dunn, por sua

    vez, entende que quando Paulo se refere ao “ser justificado”, não é um ato

    distintivamente iniciatório de Deus, mas é o reconhecimento divino de que alguém está

    dentro da aliança. E Paulo não está falando aqui para cristãos que coincidentemente são

    76 LOPES, 2006, p. 86.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    38/70

     

    38

     judeus, mas para judeus cuja fé cristã é um extensão da fé judaica em um Deus que

    escolhe e sustenta pela graça.77 

    Dunn afirma que

    Em Gálatas 2.16, Paulo lida de fato, com o judaísmo como sabemos ter sidono primeiro século – um sistema de religião consciente de seurelacionamento especial com Deus e sensível a suas obrigações peculiaresdentro de tal relacionamento. As críticas a Paulo por sua falha noentendimento do judaísmo, portanto, envolvem uma falha dupla de

     perspectiva. O que os eruditos no judaísmo rejeitaram como falha deentendimento de Paulo é uma falha no entendimento sobre Paulo, baseada na(re-) leitura protestante padrão pelas lentes da Reforma. Quando tiramosessas lentes, Paulo não parece estar tão fora de contato com seu contexto do

     primeiro século como até mesmo Sanders imagina. Sanders, de fato, libertoua exegese paulina de seus faróis do século dezesseis, mas ele ainda nosdeixou com um Paulo que teria feito pouco sentido para seus contemporâneos

     judeus e com uma disposição para observar a lei em alguns momentos (1 Co

    9.19-23) que teria soado com a mais espetacular contradição.78

     

    Os reformados sempre afirmaram, com base principalmente em Gálatas e

    Romanos, que a mensagem central das cartas de Paulo é que os pecadores podem ser

     justificados mediante a fé em Jesus Cristo, sem obras pessoais e meritórias. E que esta

     justificação consiste em Deus nos imputar – isto é, atribuir – a própria justiça de Cristo.

    Entendemos que a justiça de Cristo imputada ao ser humano injusto é a doutrina central

    da teologia paulina. O rev. Hernandes Dias Lopes chega a afirmar que “quando a igreja

    caminhou na verdade, essa doutrina (justificação pela fé) foi sustentada. Sempre que

    entrou em declínio, foi esquecida”.79 Somos justificados com uma justiça alheia, a de

    Cristo, e não com uma justiça nossa, que procede de nossa obediência à lei de Deus

    (obras da lei). Lutero e os demais reformadores entenderam que esse era exatamente o

     ponto de discussão entre Paulo e os judaizantes, que à sua época queriam exigir que os

    crentes não judeus guardassem a lei de Moisés para poderem ser salvos.

    Já James Dunn entende que a justificação pela fé não é contrária à justificação

     pelas “obras”, mas é a marca da identidade dos cristãos em contraste com os judeus e

    gentios. Para Dunn, a justificação não significa que Deus transfere a sua própria justiça

    77 DUNN, 2011, p. 167.78 DUNN, 2011, p. 18179 LOPES, 2011, p. 114.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    39/70

     

    39

    ao pecador, como ensina a doutrina reformada da imputação; Deus, à semelhança do

    que se faz num tribunal, considera vindicado o pecador, sem, todavia, imputar-lhe a sua

     própria justiça. A conclusão é que Paulo nunca ensinou a doutrina da imputação da

     justiça. Não é isso o que Paulo entende por justificação. Deus absolve o pecador por

    causa de sua fidelidade ao pacto, à aliança. É isso que significa a sua justiça.

    Então, o que Paulo estava atacando ao excluir a ideia de ser justificado pelas

    “obras da lei”? – Entendemos que Paulo está querendo dizer que não somos justificados

     pelas nossas obras, ou por aquilo que fazemos para Deus, mas sim, por aquilo que Deus

     já fez por nós. O que o apóstolo Paulo está dizendo é que a única obra que Deus aceita

    como base de nossa justificação é a expiação de seu filho Jesus Cristo na cruz do

    Calvário. Hernandes afirma que “somos justificados em virtude da sua morte em nosso

    lugar e em nosso favor”.80 

    Quando Paulo afirma que “por obras da lei, ninguém será justificado”, a palavra

    “ninguém” também pode ser traduzida como “carne”, ou seja, nenhuma carne será

     justificada. A palavra “carne” foi sugerida ao apóstolo Paulo não só pela natureza física

    das circuncisões que os adversários queriam realizar nos gálatas, mas também para

    indicar a fraqueza humana, o pecado humano, em textos como Gênesis 6.3,12 e Isaías

    40.6. “Elevar as ‘obras da lei’ ao nível de requisito para viver em harmoniosa relação de

    aliança com Deus, diz Paulo, é colocar tal relação fora do alcance de todos, não importa

    se judeus ou gentios, porque a inclinação humana a desobedecer a Deus impede toda‘carne’ de obedecer à lei completamente (Gálatas 2.16).”81 

    Para John Stott, precisamos entender duas coisas: A primeira é que Deus é justo;

    a segunda é que nós não somos. E estas duas realidades colocadas juntas, explicam

    nossa difícil situação. Algo está errado entre nós e Deus. Em vez de harmonia, há atrito,

    estamos sob juízo de Deus, e então Paulo, através deste versículo nos mostra como pode

    80 LOPES, 2011, p. 116.81 HAWTHORNE, Gerald F., MARTIN, Ralph P., REID, Daniel G. Dicionário de Paulo e suas cartas.Trad. Barbara Theoto Lambert. São Paulo: Paulus, Vida Nova, Loyola, 2008, p. 791.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    40/70

     

    40

    um pecador condenado ser considerado justo: através da justificação pela fé. Sem a

     justificação pela fé exposta neste versículo, não existe nenhuma outra maneira de o

    homem ser considerado justo perante Deus.82 

    2.3 “Obras da lei”

    Os teólogos da Nova Perspectiva (Sanders e Dunn) afirmam que Paulo nunca foi

    contra as “obras da lei” como um caminho de salvação. Já Lutero, Calvino e outros

    reformadores sustentavam o contrário, que as “obras da lei” eram um caminho falso de

    salvação. Portanto, a Nova Perspectiva entende que a lei, as “obras da lei” e o judaísmo

     precisam ser interpretados de maneira diferente.

    A teologia reformada entende “obras da lei” em Gálatas como aqueles atos

     praticados pelos judeus em obediência aos mais estritos preceitos da lei de Moisés. Lei

    são os mandamentos dados a Moisés, e “obras da lei” são as obras que fazemos em

    observância à lei, cumprindo e obedecendo-a.

    Eles procuravam guardar tais preceitos visando acumular méritos diante de Deus.

    Guardavam certos preceitos, praticavam boas obras, a fim de serem aceitos por Deus e

    conseguir então entrar na aliança. Mas, James Dunn, em especial, argumentou que as

    “obras da lei”, às quais Paulo se refere em Gálatas eram a circuncisão, a guarda do

    calendário religioso e as leis sobre os alimentos, que eram sinais que mostravam aidentidade judaica no século I.

    Paulo era contra estas coisas porque elas separavam judeus dos gentios e

    impediam que gentios convertidos se sentassem à mesa com judeus convertidos. Ou

    seja, a polêmica de Paulo não era contra o legalismo dos judaizantes, mas contra a

    insistência deles em manter os gentios distantes. Segundo os teólogos da Nova

    82 STOTT, 1989, p. 58.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    41/70

     

    41

    Perspectiva, a Reforma havia perdido este ponto de vista por causa de Lutero e

    Agostinho.

    Por três vezes num único versículo (Gálatas 2.16) Paulo repete a expressão “...

    não pelas obras da lei”, e de acordo com Dunn83

    , o apóstolo estava pensando nas obras

    da aliança, num sentido mais restrito, obras relacionadas à aliança, e praticadas em

    obediência à lei da aliança. Como o debate que estava acontecendo em Jerusalém era

     por causa da circuncisão, e em Antioquia por causa das leis alimentares, Dunn afirma

    que por “obras da lei” Paulo estava tratando sobre determinadas observâncias da lei

    como circuncisão e leis alimentares praticadas por aqueles que já pertenciam à aliança,

     para manter o status nela.

    Podemos, então, observar dois pontos fundamentais dos ensinamentos de James

    Dunn: (1) “Obras da lei” não são entendidas pelos judeus ou pelo próprio Paulo como

    obras que conseguem o favor de Deus; são simplesmente o que a condição de membro

    da aliança envolve, o que marca judeus como povo de Deus. Servem para demonstrar o

    status da aliança. (2) “Obras da lei”, diferente da exegese da Reforma, não significam

    “boas obras” em geral. A expressão “obras da lei” em Gálatas 2.16 se refere àqueles

    regulamentos prescritos pela lei que qualquer bom judeu simplesmente teria que seguir.

    Portanto, esta expressão, para a Nova Perspectiva, faz distinção entre judeus e gentios.

    A lei possuía uma função social e servia para delimitar e até separar Israel das

    outras nações. Ou seja, as “obras da lei” podiam funcionar como marcadores defronteiras, práticas e rituais que diferenciavam Israel dos outros povos. Por isso também

    foi que Paulo combateu as “obras da lei”, pois elas deixavam os gentios de fora, e só

     privilegiavam os judeus. Ou então os gentios tinham que judaizar-se, o que não agradou

    nem um pouco ao apóstolo Paulo.

    83 DUNN, 2011, p. 168

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    42/70

     

    42

    Contudo, nós entendemos que é mais provável que Paulo use a expressão “obras

    da lei”, principalmente em Gálatas 2.16, num sentido mais amplo, ou seja, “boas obras”

    com a finalidade de conseguir a aprovação de Deus. Entendemos “obras da lei”,

    conforme explica Longenecker, como “todo complexo legalista de ideias relacionadas

    com o adquirir do favor divino pelo acúmulo de méritos mediante a observância da

    Torá”.84 

    Augustus Nicodemus85  afirma que a expressão “obras da lei” implica em

    cumprir toda a lei, e não apenas os mandamentos sobre circuncisão, alimentos e dias

    santos como afirma a Nova Perspectiva. Ao contrastar “obras da lei” com “fé em Cristo

    Jesus” em Gálatas 2.16, diferentemente do que ensinam Sanders e Dunn86, entendemos

    que Paulo estava abrangendo judeus e gentios, não para manter o status, mas para entrar

    na aliança.

    Ou seja, o que ele estava dizendo é que não é por praticar as obras requeridas

     pela lei que alguém (judeu ou gentio) é salvo, ou consegue entrar na aliança, mas única

    e exclusivamente pela dependência de Deus e de Jesus Cristo como Senhor e Salvador.

    Os judaizantes acreditavam que somente através do trabalho duro, ou seja, das

     boas obras, é que o homem consegue ser justificado. Eles ensinavam que é necessário

    observar toda a lei, mas essa interpretação é falsa, pois a lei exige perfeição, e como

    vemos na própria Palavra de Deus, ninguém é perfeito, a não ser um, que é Cristo. O

    único que obedeceu completamente a lei e viveu sem pecado nenhum.Os judeus e judaizantes, segundo John Stott, afirmavam que

    É preciso amar e servir ao Deus vivo, e não ter outros deuses ou substitutos.É preciso reverenciar o seu nome e o seu dia, e honrar os pais. É precisoevitar o adultério, o homicídio e o roubo. Nunca devemos dar falsotestemunho contra o nosso próximo nem cobiçar alguma coisa que lhe

     pertença. Mas não era só isso. Além da lei moral, temos a lei cerimonial, àqual é preciso obedecer. É preciso levar a religião a sério, examinando as

    84 LONGENECKER, Richard N. Galatians. In: Word Biblical Commentary. Dallas: Word Books, 1990,

     p. 86.85 LOPES, 2006, p. 90.86 Para Sanders e Dunn, “obras da lei” são somente para os bons judeus que seguiam para manter o statusda aliança.

  • 8/18/2019 Lei e Graca a Perspectiva de Paulo

    43/70

     

    43

    Escrituras em particular e frequentando os cultos públicos. É preciso jejuar,orar e dar esmolas. E, se fizer tudo isso, sem falhar em nada, ter-se-áalcançado o sucesso e a aceitação de Deus sendo então justificado “pelasobras da lei”87 

    Portanto, Paulo rejeita as “obras da lei” porque o propósito de Deus nunca foi

    que a lei servisse de caminho para a salvação, e pelo fato do homem ser totalmente

    corrompido pelo pecado, ele é incapaz de cumprir o que a lei ordena. Diante disto, a

    teologia reformada sustenta que ninguém pode se justificar pelas “obras da lei” porque

    ninguém é capaz de obedecer e seguir tudo o que a lei exige.

    2.4 As fraquezas da Nova Perspectiva de Paulo

    A Nova Perspectiva, por diversas vezes, coloca em dúvida o judaísmo descrito

     por Paulo, e chega até a afirmar que o apóstolo era contraditório em suas postulações.

    Ela admite que autores bíblicos podem ter cometido erros históricos ou entrado em

    contradições, ou seja, os teólogos da Nova Perspectiva acabam atacando a autoridade e

    inerrância das Escrituras Sagradas, adotando práticas de interpretação liberal. Afirmar

    que Paulo pode ter falhado em al