INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …
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INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE DO MINHO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
FILOSOFIA
2000
SENTIMENTALISMO FILOSÓFICO:
A NOÇÃO DE COMUNIDADE NO PENSAMENTO DE
C. S. PEIRCE
ALEXANDRA MARIA LAFAIA MACHADO ABRANCHES
2
“(...) yet the most balsamic of all the sweets of sweet philosophy is the lesson that
personal existence is an illusion and a practical joke (...) the truth that neither selves
nor neighbourselves were anything more than vicinities; while the love they would
not entertain was the essence of every scent.” (C.P. 4.68, 1893)
3
ÍNDICE
INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 5
CAPÍTULO I - A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE : REALISMO,
ANTI-PSICOLOGISMO, ANTI-INTUICIONISMO. ...................................................................... 13
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 13
2.ANTI-INTUICIONISMO: O PENSAMENTO COMO INTERPRETAÇÃO. ........................ 20
2.1. O PRIMEIRO ARTIGO: “QUESTÕES ACERCA DE CERTAS FACULDADES
ATRIBUÍDAS AO HOMEM” (C.P. 5.213-263; W2 .193-211)..................................................... 20
2.2. O SEGUNDO ARTIGO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO
INCAPACIDADES. (C.P.5.264-317; W2.211-242) ................................................................... 36
2.3. O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA
LÓGICA: OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES
(C.P.5.318-357; W2.242-272) ....................................................................................................... 48
3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE BERKELEY”
(C.P.8.7-38) ....................................................................................................................................... 56
4.CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 61
CAPÍTULO II - A TEORIA DO INQUÉRITO. ............................................................................... 65
1.INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 65
2. A DIMENSÃO NORMATIVA DO MÉTODO CIENTÍFICO ................................................ 68
3. A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO. ..................................... 81
4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE. ........................... 90
5.CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 95
4
CAPÍTULO III - TEORIA E PRÁTICA, RAZÃO E INSTINTO .................................................. 97
1.INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 97
2.TEORIA E PRÁTICA ................................................................................................................... 98
3.UMA TEORIA DO INSTINTO ................................................................................................. 111
4.PEIRCE E HUME :INSTINTO, RAZÃO E HÁBITO. ............................................................ 121
5. A TEORIA DA HIPÓTESE ....................................................................................................... 133
5.CONCLUSÃO: SENSO COMUM CRÍTICO .......................................................................... 143
CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 152
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 158
Primária .......................................................................................................................................... 158
Secundária ...................................................................................................................................... 159
a) artigos ..................................................................................................................................... 159
b) obras........................................................................................................................................ 165
5
INTRODUÇÃO
Charles Sanders Peirce é um autor de difícil acesso. Muita desta dificuldade tem a
ver com a forma da sua obra, um conjunto vasto, e ainda não totalmente publicado,
de artigos, entradas de dicionário, recensões de livros, cartas, planos de obras,
versando os mais variados assuntos filosóficos e científicos1. Esta dispersão é, no
entanto, o trabalho de um autor que se vê a si próprio como um filósofo sistemático,
assumindo a intenção arquitectónica definida por Kant na Crítica da Razão Pura2.
Assim, uma outra dificuldade resulta da publicação em oito volumes3 de apenas uma
parte desta produção, onde os editores “sistematizaram” os textos de Peirce,
dividindo-os, muitas vezes truncando e desmembrando, em tópicos que permitissem
visualizar essa intenção sistemática, mas esquecendo a cronologia dos textos4. E esta
1 Para uma articulação entre este carácter da obra de Peirce e a sua biografia, ver Brent, J.,
Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University Press, 1993.
2 No seu estudo já clássico sobre Peirce, Murray G. Murphey reconstrói quatro diferentes
sistemas resultantes da evolução do pensamento de Peirce. Murphey, M.G., The
Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993. 3 The Collected Papers of C.S. Peirce, vols. 1-6, Harsthorne, C. e Weiss, P., eds.,
Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1931-1935, vols. 7-8, Burks, A., ed.,
Cambridge Mass, Harvard University Press, 1958. Neste trabalho será adoptada a forma
convencional de citação das obras de Peirce: número do volume,ponto, número do
parágrafo; ex. C.P.5.278. A tradução das citações é da responsabilidade da autora. 4 Encontra-se em publicação uma edição cronológica dos textos de Peirce, a que será feita
referência, e da qual acaba de publicar-se o sexto volume. Writings of Charles S. Peirce,
vols.1,2,4 e 5, Kloesel C.J.W. ed., Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press,
vol.1-1982, vol.2 – 1984, vol.4 –1986, vol.5-1993. Esta edição será citada de forma
6
é relevante até porque Peirce é um autor em constante auto-revisão e que, como diz
Murphey, “preserva a terminologia e o esboço formal geral das doutrinas mesmo
quando o seu conteúdo sofreu uma modificação radical.”5. Ainda assim, isto é, apesar
da consensual dificuldade de acesso, Peirce é um autor a quem se tem atribuído
importância tanto em áreas específicas, enquanto promotor de uma teoria semiótica
ou de avanços significativos no domínio da lógica, como no quadro geral da filosofia
contemporânea, sendo reconhecido não apenas como um dos maiores filósofos
americanos6, mas principalmente como o fundador daquele que parece ser o
contributo americano original para esta, o pragmatismo7.
O pragmatismo de Peirce caracteriza-se por ter o conhecimento científico no
centro das suas preocupações, especificamente no que diz respeito a questões
metodológicas. A própria filosofia é exortada a seguir o modelo das ciências, o que
nos poderia fazer antecipar um Peirce positivista, reconduzindo todas as áreas do
saber humano a uma matriz de racionalidade esvaziada de metafísica. Mas também
na sua preocupação com a ciência Peirce exibe a sua influência kantiana; o próprio
termo “pragmatismo” tê-lo-á Peirce ido buscar a Kant, que intitula a sua última obra
semelhante à utilizada para os Collected Papers: número do volume, ponto, número da
página (já que nesta edição não se verifica uma divisão do texto em parágrafos numerados);
ex. W.3.120. 5 Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993, p.3.
6 Cf.Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.
Cf. também Dancy, J. E Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell,
1992. 7 O que não impede o neo-pragmático Rorty, que prefere William James, de o ver como um
“mau pai”, insuficiente, metafísico. Cf. Rorty, R., Conséquences du Pragmatisme, Paris,
Éditions du Seuil, 1993.Para um esclarecimento deste ponto, veja-se a distinção entre
pragmatismo revisionista e revolucionário apresentada por Susan Haack em Dancy, J. E
Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1992, pp.351-356.
7
Antropologia do Ponto de Vista Pragmático8. Aqui, o termo adjectiva um campo de
estudo que visa o carácter orientado para fins do comportamento humano, ou a
análise de como se realiza no homem “a apropriação da natureza pela liberdade.”9
Tratar-se-ia de resolver a questão da unidade da filosofia ou de encontrar um ponto
de passagem entre a filosofia teórica e a filosofia prática, a filosofia da natureza e a
da liberdade10
. Este tema da continuidade entre diferentes âmbitos da racionalidade
humana permite chamar a atenção para uma outra continuidade, histórica, do
pragmatismo americano, o de Peirce em particular, com a tradição filosófica
europeia. Os estudos sobre o contexto intelectual do nascimento da pragmatismo
testemunham suficientemente essa continuidade11
, e ela é tanto mais evidente em
Peirce quanto ele foi um estudioso atento das grandes figuras do pensamento
filosófico ocidental, dos clássicos gregos aos modernos, passando pelos escolásticos
medievais. Assim, se de alguma coisa o pragmatismo não pode ser acusado é de
ignorância histórica, ao mesmo tempo que não pode pretender atribuir-se a si próprio
uma originalidade nativa absoluta12
.
Nesta medida, percebemos melhor a relevância das propostas de Peirce se o virmos
como tentando pensar um problema da filosofia moderna, tal como se apresenta em
8 Kant, I., Antropologie du Point de Vue Pragmatique, Flammarion, Paris, 1993.
9ibid., prefácio p.7
10 ibid. prefácio p.6
11 Cf. Faerna, A.M., Introducción a la Teoria Pragmatista del Conocimiento, Madrid, Siglo
XXI, 1996. E também Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,
Cambridge, Hackett, 1993. Ou ainda Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism,
Bloomington, Indiana University Press, 1986. 12
Esta inscrição na tradição ocidental é, aliás, explicitamente reconhecida pelos autores
pragmatistas, tanto por Peirce, que discute directamente autores dessa tradição, como por
William James, que dá o seguinte subtítulo ao seu ensaio Pragmatism : “A new name for
8
Descartes, na tradição empirista britânica e em Kant, o problema da relação entre
uma concepção de racionalidade que vê o conhecimento autêntico como
conhecimento do universal e necessário, e os desafios epistemológicos colocados
pela moderna ciência da natureza, que exige justificar a sua relação com a
experiência e a sua plausibilidade cognitiva. O fundacionalismo cartesiano torna o
empreendimento cognitivo dependente da concepção de uma divindade benévola e
deixa como legado problemático a questão da relação entre res cogitans e res
extensa. Locke e Hume contestam o racionalismo inatista de Descartes à custa da
confiança no alcance da razão humana. A síntese kantiana pretende restaurar essa
confiança através da estratégia transcendental, cujo resultado é a partição do mundo
em fenoménico e numénico e, estranhamente – já que a intenção era salvar a ideia de
objectividade -, a preparação para o assalto relativista à racionalidade. Contra esta
“prorrogação” do cepticismo que a filosofia transcendental de certo modo representa,
Peirce afirma o seu optimismo gnoseológico e epistemológico transformando a
atitude naturalista do empirismo à luz do criticismo kantiano e da sua noção de
experiência como resultado de actos interpretativos do sujeito13
.
A originalidade de Peirce, e do pragmatismo, consiste em ter cortado com uma
concepção representacionalista do conhecimento, deste como uma relação especular
some old ways of thinking”. James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York,
1995. 13
Cf. Faerna, A.M., Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, Madrid, Siglo
XXI de Espanã Editores, S.A., 1996. Peirce recusa de Kant o transcendentalismo mas aceita
o criticismo.
9
entre a mente e o mundo, comum aos autores que vêm sendo mencionados14
, e em
levar mais longe a actividade do sujeito na relação cognitiva. Ou seja, o
conhecimento é visto por Peirce como uma forma de acção e não como contraposto à
acção: a teoria é uma prática e, como qualquer prática, realiza-se em função de uma
finalidade, envolve uma motivação e escolhe o método mais eficaz para se realizar.
Esta perspectiva é tanto mais significativa quanto ela permite pensar uma outra
questão moderna: a da relação entre racionalidade teórica e racionalidade prática.
Neste campo, mesmo Kant, que tentou superar o racionalismo e o empirismo quanto
ao conhecimento, não realiza a síntese entre as duas tradições modernas, o
racionalismo e o sentimentalismo empirista, e opta claramente por uma ética
racionalista: o Imperativo Categórico é o teste formal de um agente plenamente
racional que elimina da sua motivação qualquer referência ao sentimento, ao desejo,
ao bem-estar, à felicidade. O sentimentalismo15
, por seu lado, recusa à razão e a tudo
o que é do âmbito cognitivo o acesso a factos éticos imperativos, e naturaliza a ética
radicando a motivação na vontade e na projecção de inclinações passionais,
identificando a aprovação moral com emoções e não com juízos. Hume representa
esta tradição ao defender no campo da ética uma espécie de “educação sentimental”
que nos permita compartilhar ou reprovar determinadas preferências16
, não havendo
14
Kant, apesar de introduzir uma perspectiva que atribui ao sujeito uma actividade de
interpetação, apresenta-o como transcendental, como sendo uma estrutura racional
universal, a priori e definitiva. 15
Nem só o empirismo britânico, no entanto, pode ser inscrito nas hostes sentimentalistas.
Curiosamente, outra via traz consigo implicações semelhantes, a via filosofico-teológica que
discute o papel da razão em relação à fé. Pascal e a sua aposta representam uma recusa do
racionalismo tão veemente como o naturalismo humeano. 16
Encontramos um exemplo desta posição de Hume na seguinte passagem de um dos seus
ensaios, sobre as virtudes civilizadoras da literatura : “But perhaps I have gone too far in
10
maneira de demonstrar se são racionais ou irracionais. Restringida à descrição
daquilo que é, a razão não pode prescrever aquilo que deve ser sem abusar dos seus
poderes17
. A especificidade de Peirce quanto a este ponto consistirá na preservação
das exigências normativas presentes em Kant, sem aceitar o racionalismo deste. Isto
consegue-o através da integração de uma dimensão de temporalidade associada ao
conceito de evolução.
A importância do tempo manifesta-se num conceito central para a compreensão
da epistemologia “finalizada” ou teleológica de Peirce: o conceito de comunidade.
Ainda que possa ter começado por ser apenas uma expressão do convencionalismo
da sua época, acaba por integrar plenamente a teoria da realidade e da verdade
daquele autor, contribuindo para uma redefinição não dualista de racionalidade18
.
Assim, o primeiro capítulo deste trabalho tenta mostrar o modo como este conceito
de comunidade surge para superar uma concepção fundacionalista da actividade
cognitiva, intimamente ligada a uma determinada concepção do sujeito gnoseológico
e de consequências cépticas. A estratégia moderna iniciada com Descartes coloca, de
facto, o cepticismo no centro das questões epistemológicas, ao pôr em causa a
saying that a cultivated taste for the polite arts extinguishes the passions, and renders us
indifferent to those objects, which are so fondly pursued by the rest of mankind. On farther
reflection, I find, that it rather improves our sensibility for all the tender and agreeable
passions; at the same time that it renders the mind incapable of the rougher and more
boisterous emotions.
Ingenuas didicisse fideliter artes,
Emollit mores, nec sinit esse feros.”.Hume,D. Essays – Moral, Political
and Literary, Indianapolis, Liberty Fund, 1985, p.6. 17
Trata-se do problema conhecido como a falácia naturalista. 18
Isto é, uma superação do golfo entre racionalidade teórica e racionalidade prática pela
afirmação da dependência da Lógica em relação à Ética. Esta dependência é normativa, e
não deve confundir-se com a questão das relações entre teoria ou investigação e prática ou
conduta empírica.
11
justificação do conhecimento. É uma estratégia que redunda no naturalismo de
Hume, onde a justificação cede o passo à descrição e a epistemologia se torna um
capítulo da psicologia; e no transcendentalismo de Kant, que nos deixa com o
problema da descontinuidade entre natureza e liberdade e do estatuto cognitivo da
metafísica. A resposta de Peirce a Descartes, Hume e Kant consistirá, em grande
medida, na alteração do quadro epistemológico individualista comum a estes autores,
e na introdução do conceito de comunidade, que permite também pôr em causa o
egoísmo como base de uma racionalidade prática naturalizada. Logo, um dos
resultados desta alteração será a articulação entre Lógica e Ética, expressa sob a
forma de sentimentos exigidos por uma actividade cognitiva válida.
O segundo capítulo deste trabalho aborda a adopção, por Peirce, de um tom
biologista na sua descrição da actividade lógica como uma forma de comportamento
adaptativo. Mais do que uma concessão ao naturalismo humeano, este ponto de vista
exibe uma reflexão sobre o evolucionismo onde se tenta preservar o carácter
normativo da investigação. A tentativa de mostrar a superioridade do método
científico recupera as teorias da verdade e da realidade desenvolvidas nos textos
apresentados no primeiro capítulo, tornando mais claro o estatuto epistemológico do
conceito de comunidade e impedindo uma sua interpretação nominalista ou empírica,
como manifesta a utilização da máxima pragmática. Para este efeito, concorre a
reafirmação do pano de fundo sentimental da lógica, como exercício deliberado de
uma razão hipotética orientada para fins.
Finalmente, o terceiro capítulo pretende apresentar o esforço de Peirce para evitar
a redução da actividade cognitiva, e das suas motivações, às exigências imediatistas
12
da prática, sendo que a recondução da racionalidade à categoria da acção visa antes
exibir o seu carácter normativo e não a sua utilidade. Ou ainda, trata-se de esclarecer
a ideia de sentimentalismo filosófico afirmada por Peirce, e que parece representar a
sua específica integração do evolucionismo como estratégia de justificação da
actividade cognitiva, o seu “empirismo normativo”.
13
CAPÍTULO I - A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE :
REALISMO, ANTI-PSICOLOGISMO, ANTI-INTUICIONISMO.
1. INTRODUÇÃO
Há três temas persistentes e articulados entre si nos escritos de Peirce que
envolvem a questão da comunidade, tanto na sua vertente epistemológica, como nas
suas implicações éticas. São eles, em primeiro lugar, a opção pelo realismo e
consequente crítica das posições nominalistas19
. Em segundo lugar, a recusa da
redução da lógica à psicologia20
, como pretendia o associacionismo empirista e a
lógica de Mill. E, finalmente, a posição anti-fundacionalista em epistemologia, 21
que
se manifesta na crítica da intuição como faculdade cognitiva privilegiada.
19
cf. Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,
1986, pp.186-200, onde se descreve a progressão de Peirce do nominalismo em direcção ao
realismo. Esta progressão ilustra, afinal, o carácter procedimental - que resulta em
afirmações substantivas - da filosofia peirceana. 20
Sobre a questão da naturalização cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985, p.2;
e também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981,
p.222. 21
Como correcção dos impasses do transcendentalismo kantiano, de que é exemplo a cisão
númeno / coisa em si, na superação dos extremismos cépticos ou dogmáticos.
14
Quanto ao primeiro tema, podemos dizer que Peirce recupera o debate entre
nominalistas e realistas fazendo dele o problema da ciência, da metafísica, da
ontologia e da lógica modernas, em suma, o terreno onde se decide a sustentabilidade
do edifício do saber humano. Na disputa medieval entre nominalistas e realistas, o
que está em causa é o estatuto dos universais, daquelas partes do nosso discurso
sobre o mundo que não pretendem referir-se a coisas individuais concretas mas
atribuem a estas uma comunidade através da predicação, da inclusão de indivíduos
em classes. Trata-se de saber se os géneros e espécies se limitam a ser entidades
fabricadas pelo discurso e que usamos para falar mais comodamente acerca da
realidade, uma “estenografia conceptual” 22
, sendo que as únicas entidades reais são
os indivíduos, ou se, pelo contrário, têm uma existência e podem ser ditos reais,
independentemente do nosso discurso acerca deles ; ou ainda, trata-se de determinar
se há realmente algo em comum entre duas coisas que partilham o mesmo predicado.
Peirce descreve as posições face ao problema da seguinte forma num texto de 186623
:
“Os realistas acreditavam que existe realmente humanidade no homem, animalidade
nos animais e assim por diante; enquanto os nominalistas defendiam que a
humanidade, a animalidade e termos semelhantes, são apenas palavras que indicam a
aplicabilidade a homens, animais, etc., das suas designações de classe.”24
. O
problema dos universais é crucial quando se pretende, como é o caso de Peirce, dar
conta da actividade cognitiva e, mais especificamente, da sua forma científica. É que
22
James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York, 1995, p.22. 23
Trata-se aqui de uma descrição de um momento na história da lógica e não ainda de uma
tomada de posição sobre o assunto.
15
uma tomada de posição quanto ao conhecimento e à ciência acaba por envolver o
estatuto das propriedades e relações que atribuimos às coisas do mundo acerca das
quais alegamos ou pretendemos obter conhecimento; isto é, põe a questão de decidir
se as categorias com as quais operamos são descobertas e têm realidade ou são de
alguma forma inventadas e impostas como estratégias apenas subjectivas, sem
realidade para além daquela de uma ficção linguística ou resultado de uma abstracção
mental. É, afinal, todo o empreendimento científico que está em causa, ou melhor, as
leis que a ciência pretende serem as leis do real são reais ou não? Como evitar que o
facto de o conhecimento ser nosso nos faça cair no cepticismo ou então num
idealismo de tipo absoluto, de qualquer modo sempre formas do subjectivismo
moderno inaugurado por Descartes? Como respeitar a articulação entre a observação
do mundo externo e a elaboração de hipóteses explicativas sem reduzir aquele a uma
mera construção mental remetendo para uma coisa-em-si inacessível? O nosso
pensamento diz ou não respeito a objectos reais? Convicto de que as intenções da
ciência são as melhores e os seus resultados fiáveis; tendo estudado intensamente a
Crítica da Razão Pura de Kant em busca de uma objectividade para além da
subjectividade transcendental; tendo desde os seus primeiros textos de relevo tratado
da lógica da ciência, incluindo o problema da indução, que depende de uma tomada
de posição quanto à questão dos universais, e das categorias, Peirce acabou por, ao
estudar os lógicos medievais, entender que tudo estava em jogo nesta decisão
filosófica : nominalismo versus realismo. O autor não irá optar pelo realismo
24
“Realists believed that there is really humanity in man, animality in animals, and so forth;
while the Nominalists held that humanity, animality and such terms, are merely words
indicating the applicability to men, animals, etc., of their class appelations.” (W1.360)
16
extremo de Platão25
, que afirma a realidade dos universais ante rem e reduz as nossas
percepções de coisas individuais a uma ilusão dos sentidos; mas também recusa o
extremo nominalista do flattus voci , que consiste em considerar ilusória a imposição
de universalidade levada a cabo pelo nosso conhecimento discursivo. O seu
optimismo epistemológico levá-lo-á a considerar a resposta de Duns Escoto, um
realismo separado do nominalismo “pela espessura de um cabelo”26
, como a mais
aceitável. Segundo Escoto, existe uma “distinção formal” entre a existência
individual e a essência universal, que consiste numa distinção mental, como queriam
os nominalistas, mas com uma base factual. Assim, os universais são de algum modo
reais e não simples abstracções. Não existe apenas uma “distinção lógica” entre
indivíduos e classes. Mas também não existe uma “distinção real”, in re , como
pretendem os defensores de um realismo extremo. A generalidade que as leis da
ciência expressam faz parte da nossa experiência das coisas sob a forma de hábitos
ou disposições que compõem o sentido dos predicados.
As teses nominalistas que Peirce irá consistentemente recusar são, assim, que a
realidade seja composta exclusivamente por existentes individuais27
; que,
consequentemente, as leis e termos expressando generalidade consistam
simplesmente em ficções intelectuais, por mais úteis que sejam; a consequente
25
Mais do que substâncias, ou predicados essencializados, interessam-lhe relações ou leis:
“general principles are really operative in nature” (C.P.5.101). Cf. Almeder, R., The
Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.160-183. E também
Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993,
pp.126ss. 26
C.P.8.12 27
O progressivo realismo de Peirce irá aceitar finalmente a realidade dos indivíduos; numa
fase adiantada da sua filosofia, procede a um desenvolvimento da sua categoria da
Secondness ligado à noção de haecceitas.
17
concepção de uma discrepância fundamental entre o nosso discurso, que emprega
termos universais e descreve os “indivíduos” através de leis, e a realidade, com base
na oposição entre o individual e o geral e seus diferentes estatutos ontológicos28
.
O que nos traz ao segundo tema referido no início, o anti-psicologismo quanto à
lógica. O nominalismo parece ter como consequência uma naturalização da lógica
que consiste em vê-la como uma parte da psicologia, descrevendo o modo como de
facto pensamos, isto é, como a partir da experiência do individual criamos aquela
ilusão de universalidade e necessidade que caracterizam o discurso, e que nos leva a
falar em termos de leis, com estatuto meramente convencional, contingente,
subjectivo. Segundo o próprio Peirce29
, o século XIX tentou fazer da psicologia a
chave para a filosofia, submetendo as questões de validade lógica à factualidade de
operações mentais empíricas. Toda a investigação lógica e metodológica em Peirce
conduz, pelo contrário, a uma concepção daquela como independente dos sujeitos
empíricos e da sua diversidade psicológica : a lógica não é uma descrição do modo
como de facto pensamos mas sim a disciplina das regras segundo as quais devemos
pensar30
, sendo que este nós é normativo também, corresponde àquilo que Peirce
designa como “inteligência científica” e não é exclusivo dos humanos e da sua
configuração fisiológica, não depende do facto de termos um cérebro31
. A visão anti-
psicologista da lógica, a sua normatividade, liga-se estreitamente àquele aspecto do
28
De que a distinção kantiana entre fenómeno e númeno será um exemplo e que presume
que a cognição é um efeito de uma realidade incognoscível que de algum modo afecta o
sujeito.
29
Cf. C.P. 8.167 30
Cf. C.P. 2.7 31
Cf. C.P. 4.550. E cf. Fann,K.T., Peirce’s Theory of Abduction, The Hague, Martinus
Nijhoff, 1970, p.38ss, sobre a lógica como ciência normativa.
18
pensamento de Peirce que mais o celebrizou, a semiótica. É que a lógica “formalista”
32 opera não com actos e faculdades mentais pressupostos mas com aquilo que é
directamente observável: os produtos do pensamento expressos na linguagem, em
proposições e argumentos, isto é, com signos e a sua operatividade específica. A
opção é, então, pela lógica como teoria geral dos signos e das leis da sua
transformação, pelo que o que há a ter em conta, enquanto é a lógica o método
subjacente à actividade cognitiva, são os aspectos externalizáveis, partilháveis e
susceptíveis de controlo deliberado. A psicologia não é capaz de fornecer a
justificação teórica das leis da lógica e qualquer naturalismo neste sentido é recusado
por Peirce33
.
A posição realista e o estatuto da lógica sustentam-se, finalmente, na recusa de
uma pretensão epistemológica comum a racionalistas e empiristas, aquela que diz
respeito a uma faculdade de intuição especial permitindo o acesso a um momento
inicial, fundador, do processo cognitivo, seja ele a apreensão imediata de ideias ou de
dados dos sentidos, funcionando como premissas últimas numa dedução conducente
a um conhecimento absolutamente certo. O que equivale a afirmar uma relação
imediata, de justificação problemática, entre o sujeito e o mundo, traduzida no
32
cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge, 1985, p.15ss. 33
A falar de naturalismo em Peirce, e penso que em certa medida poderemos fazê-lo, este
resulta do empirismo de Peirce, que é um empirismo com uma epistemologia transformada :
não fundacionalista, não nominalista, não individualista. Cf. H. Putnam in Peirce, C.S.,
Reasoning and the Logic of Things, Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard
University Presss, 1992, p.79, acerca da metafísica revisível de Peirce; cf. também C.J.
Dougherty, “C.S. Peirce’s Critique of Psychologism” in Caws, P., ed., Two Centuries of
Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.86-93. Cf. ainda Almeder, R.,
The Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980; e Ayer, A.J., The
Origins of Pragmatism, London, Macmillan, 1968. E também, mais uma vez, Skagestad,P.,
The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, p.222.
19
discurso e exterior a ele, autorizando-o, ao mesmo tempo que o torna suspeito na sua
função de instância mediadora: a intuição implica uma tomada de posição
nominalista na medida em que subordina as generalizações discursivas a uma relação
entre indivíduos. Em Peirce, tratar-se-á de levar a sério o carácter mediador do
discurso, e assim compreender em que consiste a sua natureza representativa: o
pensamento é uma actividade de interpretação de signos e não um receptáculo de
materiais heterogéneos; essa actividade é o objecto de estudo da lógica, que se
preocupa com as condições da sua validade; pensar consiste, sempre e
inevitavelmente, em fazer inferências e pensar correctamente é fazer inferências
válidas. Aquilo que Peirce nos fornece, e que começa a ser visto como um contributo
pertinente para questões da actual Filosofia da Mente34
, é uma nova visão do mental,
compatível com uma epistemologia falibilista e com instâncias normativas que
preservam as pretensões metafísicas da filosofia sem a dissociar definitivamente da
ciência.
O que se fará em seguida é apresentar um conjunto de três textos de Peirce de
finais da década de 6035
do século XIX, onde realismo, anti-psicologismo e anti-
34
Cf. E.J. Crombie, “Peirce on our Knowledge of Mind: a Neglected Third Approach” in
Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.
77-85; e também Chauviré,C., Peirce et la Signification, Paris, PUF, 1995. E ainda
Tiercelin,C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993. 35
Estes textos de 1868 foram publicados no Journal of Speculative Philosophy, a primeira
publicação americana regular consagrada a questões técnicas da filosofia. Segundo Max
Fisch, num artigo intitulado “Peirce’s progress from nominalism to realism” e já referido,
constituem o primeiro passo de Peirce em direcção ao realismo, a partir de uma posição
anterior declaradamente nominalista, cuja afirmação terá levado o realista e hegeliano W.T.
Harris, editor da revista, a desafiar Peirce a explicar a validade das leis da lógica. Fisch,M.,
Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986, pp.186-
200.
20
intuicionismo conduzem a um quadro epistemológico de onde se destaca a noção de
comunidade. Faz todo o sentido ver estes três artigos como um tríptico onde, para
enfrentar a questão da possibilidade do conhecimento, Peirce propõe uma concepção
da mente e da realidade em alternativa àquilo a que chama o “espírito do
cartesianismo”36
. Assim, o tratamento da questão da validade das leis da lógica e,
especificamente, o problema da indução, é preparado pela crítica da intuição levada a
cabo no primeiro artigo, e pelo desenvolvimento da concepção da actividade mental
vista como inferência levado a cabo no segundo, acompanhado por uma redefinição
da concepção de realidade. O resultado destes três artigos contém a afirmação da
comunidade como essencial para o processo cognitivo e estabelece a dependência da
lógica em relação à ética.
2.ANTI-INTUICIONISMO: O PENSAMENTO COMO INTERPRETAÇÃO.
2.1. O PRIMEIRO ARTIGO: “QUESTÕES ACERCA DE CERTAS
FACULDADES ATRIBUÍDAS AO HOMEM” (C.P. 5.213-263; W2 .193-211)37
Vários autores38
têm chamado a atenção para a forma escolástica deste texto: são
definidas sete questões e apresentados argumentos positivos e negativos quanto a
36
C.P. 5.264. 37
Este texto, cujo título no original inglês é “Questions Concerning certain Faculties
claimed for Man”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla: QFM.
21
cada uma delas. Não será certamente apenas uma curiosidade estilística esta adopção
de um esquema argumentativo que parte de um exame de respostas disponíveis para
uma questão e não de uma suspensão do juízo típica da metodologia cartesiana. Ela
indica desde logo que é com estes materiais - razões, argumentos, provas, crenças,
hipóteses - que a razão lida; e que, assim, a hipótese cartesiana é uma entre outras e
tem que ser provada - e que é e que tem de ser este o seu ponto de partida. Esta é
aliás uma prática cuja enunciação clara e justificação serão objecto do artigo
seguinte. Assim, à questão genérica “como funciona a mente?”, Peirce responde
subdividindo-a em sete questões acerca de “faculdades atribuídas ao homem”, isto é,
definindo problemas manejáveis face aos factos e teorias disponíveis, e seguindo
como preceito metodológico a Navalha de Ockham. No caso presente, trata-se de
determinar a admissibilidade de cada hipótese colocada a propósito de cada questão,
com base na sua pertinência e necessidade explicativa: se os factos podem ser
explicados sem recurso a uma dada hipótese e se esta até aumenta a obscuridade de
uma questão postulando entidades ou capacidades misteriosas, então não precisamos
dessa hipótese, ela não serve o seu propósito explicativo - não explica e aumenta o
número de coisas a explicar - e acaba por remeter para uma qualquer
inexplicabilidade : um apriorismo, um fundamento axiomático, uma autoridade, um
limite à possibilidade de inquérito.
38
Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.
Cf. também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press,
1981.
22
A primeira das sete questões, ou a primeira hipótese a verificar, diz respeito a uma
faculdade fundamental no quadro da psicologia e da epistemologia cartesianas39
:
trata-se de saber se, perante a hipótese de uma faculdade intuitiva, somos capazes de
reconhecer intuitivamente que uma dada cognição é uma intuição, isto é, um
conhecimento não mediado por uma cognição prévia. A forma como a questão é
colocada é significativa. Ela revela o ponto de vista de Peirce quanto ao
funcionamento mental afastando-o de uma problemática simplesmente psicológica e
aproximando-o de uma outra, lógica e epistemológica. Assim, a questão é formulada
em termos cognitivos: “Se, pela simples contemplação de uma cognição,
indepedentemente de qualquer conhecimento anterior e sem raciocínio a partir de
signos, nos é possível ajuizar correctamente se tal cognição foi determinada por uma
cognição prévia ou se se refere imediatamente ao seu objecto.”40
. A intuição é
definida como “ uma cognição não determinda por uma cognição prévia do mesmo
objecto e, consequntemente, determinada por algo exterior à consciência” ou ainda,
“uma premissa que não é, ela própria, uma conclusão”41
. Trata-se, então, de saber
que tipo de relação existe entre mente e mundo e à qual damos o nome de
39
Mas não só. Como já tem sido referido, tanto a tradição racionalista como a tradição
empirista modernas são aqui postas em causa. Segundo Murphey, muitos dos escritos de
Peirce deste período podem ser vistos como respostas directas a Hume e a todo o empirismo
britânico, que afinal partilha com o racionalismo uma concepção do mental e uma
concepção de realidade cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,
Cambridge, Hackett, 1993. Também Hookway,C., Peirce, London, Routledge, 1992. 40
“Whether by the simple contemplation of a cognition, independently of any previous
knowledge and without reasoning from signs, we are enabled rightly to judge whether that
cognition has been determined by a previous cognition or whether it refers immediately to
its object.” C.P. 5.213; W 2.193. 41
“a cognition not determined by a previous cognition of the same object, and therefore so
determined by something out of consciousness”; “a premiss not itself a conclusion” (C.P.
5.213; W 2.193).
23
conhecimento, ou qual o fundamento das nossas representações. Como diz Claudine
Tiercelin, “aquí, e menos a intuição como faculdade que está em causa, que a
pretensa necessidade de recorrer a ela para fundar a ciência.”42
Ou seja, racionalistas
e empiristas reclamam uma faculdade fundadora, a intuição, postulando a
necessidade de um momento da cadeia cognitiva em que há um contacto imediato
com o objecto da cognição e onde uma operação cognitiva especial, não discursiva,
não da natureza de um argumento, fornece o ponto de apoio da discursividade, seja
ele uma ideia da razão ou os dados dos sentidos.43
A questão começa então ,
reflexivamente, por ser aquela que diz respeito à própria possibilidade de determinar
o carácter intuitivo de uma intuição. Isto é, trata-se de saber se o tipo de
determinação de uma cognição, imediatamente por um “objecto transcendental”
(intuição) ou mediatamente por uma outra cognição (conhecimento discursivo ou
inferência) é dado também na ou faz parte da cognição em causa, se estão
invariavelmente ligadas e são dissociáveis apenas no pensamento, de modo a
podermos sempre distinguir uma intuição de uma não-intuição. Se for o caso que o
tipo de determinação faz parte da cognição, então estaremos perante uma faculdade
ou poder intuitivo de distinguir uma intuição de outra cognição e fica provada a
42
Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993, p.13. 43
J. Chenu faz notar que há um sentido, a que podemos chamar fenomenológico, da
capacidade de intuição que Peirce aceita, como se pode ver no parágrafo seguinte,: “Every
cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself.” (C.P. 5.214; W2.194)
Assim, os dois sentidos em que se pode compreender a capacidade de intuição e que estão
presentes na filosofia escolástica, em Sto Anselmo por exemplo, estariam também presentes
em Peirce.cf. também C.P.5.213 n1. Peirce, Textes Anti-Cartésiens, trad. e int. Joseph
Chenu, Paris, Aubier, 1984, pp.92-93.
24
hipótese de uma faculdade intuitiva ou de um contacto imediato como base do nosso
conhecimento dos “objectos transcendentais”.
Que provas temos então desta faculdade ? Qual a evidência da intuição? “Parece
que sentimos tê-la.”44
. Mas recorrer ao testemunho de uma sensação ou sentimento é
circular ou remete até para uma regressão infinita: “será este sentimento infalível? E
será este juízo acerca dela infalível, e assim por diante, ad infinitum?”45
. Se este
sentimento, esta “fé”, fosse tudo o que é necessário, qualquer investigação do que
quer que fosse - enquanto é uma busca de provas - seria desnecessária. Um homem
completamente satisfeito com os seus “sentimentos” seria “impermeável à verdade” e
à prova de prova46
. Aliás, esta sensação ou convicção individual é desmentida tanto
pela história como pela psicologia. Aquilo que uma observação do nosso passado
intelectual nos mostra é uma enorme dissensão quanto ao que é considerado
intuitivo, e até quanto a qual possa ser a fonte de autoridade da intuição. E o que nos
impede de esperar uma denúncia da autoridade moderna - a consciência individual
cartesiana - semelhante à que derrubou a autoridade medieval - os textos de certos
autores? “E se a nossa autoridade interna tivesse o mesmo destino, na história das
opiniões, que aquela autoridade externa?”47
. E da psicologia Peirce apresenta
exemplos que permitem colocar genuinamente em dúvida o carácter intuitivo de
44
C.P.5.214 ; W2.194. 45
C.P. 5.214; W2 p.194. 46
Este é um tema importante e que será retomada em pleno no texto de 1878 “The Fixation
of Belief” (C.P.5.358-387 ; W3.242-257). 47
“Now what if our internal authority should meet the same fate, in the history of opinions,
as that external authority has met ?” (C.P. 5.215; W2 p.195) A questão da autoridade, tal
como é tratada aqui, antecipa a questão da comunidade : esta, mais do que uma autoridade
absoluta, deve colaborar com o outro requisito do método científico, a verificação
experimental.
25
qualquer cognição, contra todos os “sentimentos” individuais. Ou, se quisermos,
aquilo que suscita dúvidas segundo Peirce é aquilo que resiste à dúvida segundo
Descartes. O testemunho das pessoas em situações complexas mostra que é difícil
distinguir o que se viu daquilo que se inferiu : “a nossa única garantia, em casos
difíceis, está em alguns signos dos quais podemos inferir que um dado facto deve ter
sido visto ou deve ter sido inferido”48
. Isto é, é a própria possibilidade da ilusão (o
exemplo envolve as nossas percepções de truques de magia) e do erro que está em
causa e que mostra a dificuldade em admitir uma faculdade intuitiva. O caso dos
sonhos adensa esta dificuldade: a nossa recolecção deles é simultaneamente uma
recomposição. Os sonhos, aliás, parecem fornecer o exemplo da distinção entre o que
é e o que não é determinado por cognições prévias, distinguindo-se assim da
experiência. Mas as diferenças entre sonhos e experiências reais não são decisivas,
são quando muito uma questão de grau, mas não, como parece ser o caso para
Hume49
, de tal modo determinadas que permitam uma identificação inequívoca, e “é
frequente acontecer que um sonho é tão nítido que a memória dele é confundida com
a memória de um acontecimento real.”50
. As crianças, cujos poderes perceptivos são
os mesmos de um adulto, e que poderiam permitir uma avaliação mais “pura” das
nossas faculdades mentais, são também incapazes de distinguir entre intuições e
cognições determinadas por outras cognições. Mesmo no domínio de experiências
mais simples, como é o caso da percepção, não somos capazes de proceder com
48
“(…)our only security in difficult cases is in some signs from which we can infer that a
given fact must have been seen or must have been inferred.” (C.P. 5.216; W2 p.196) 49
Cf. Hume,D., A Treatise Of Human Nature, Penguin ,London, 1985, p.49.
26
facilidade a uma distinção, como terá ficado demonstrado por Berkeley a propósito
da terceira dimensão do espaço, cuja percepção resulta de uma inferência e não é
intuitiva : “Tínhamos estado a contemplar o objecto desde a criação do homem, mas
esta descoberta só foi feita quando começámos a raciocinar sobre ele.”51
A percepção
é um processo de interpretação que envolve uma série de inferências inconscientes
que permitem preencher descontinuidades empíricas do dado, como é exemplificado
no texto pelo caso do ponto cego da retina. Começa a desenhar-se o cerne da
substituição peirceana do quadro mental cartesiano: da contemplação, relação
estática entre dois pólos, para o raciocínio, que é um tipo de acção que permite uma
abordagem do mental em termos de operações - e não de faculdades, receptivas ou
não; como um processo e não como uma substância exigindo metáforas espaciais,
lugares onde diferentes coisas acontecem. E repare-se também que este exemplo
fortalece ou insiste na insuficiência do sentimento subjectivo, desmontável quando
começamos a pensar racionalmente, e de qualquer autoridade histórica
momentânea.52
50
“(…)not unfrequently a dream is so vivid that the memory of it is mistaken for the
memory of an actual occurrence.” (C.P. 5.217; W2 p.196) 51
“We had been contemplating the object since the very creation of man, but this discovery
was not made until we began to reason about it.” (C.P. 5.219; W2 p.197). 52
Este é, aliás, um tema central na teoria da verdade de Peirce : o seu carácter complexo
combina as concepções de verdade como adequação e verdade como coerência ao erigir
como critérios a experiência e o consenso comunitário. Cf H.S. Thayer , “Peirce on Truth”
in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980,
pp.63-76. O apelo ao sentimento em Peirce nunca cai no individualismo, no subjectivismo
ou no irracionalismo, porque o sentimento é controlável/criticável pela razão; e porque é
uma característica da espécie e não do indivíduo : é nisto que consiste o Senso-Comum
Crítico que Peirce irá enunciar mais tarde.
27
A própria fisiologia da percepção e a análise das sensações fornecem razões para
duvidar de uma faculdade de intuição, isto é, não a exigem como hipótese
explicativa. Temos então “uma variedade de factos, os quais podemos
expedientemente explicar com base na suposição segundo a qual não temos qualquer
faculdade intuitiva de distinguir entre cognições intuitivas e mediatas.”; e há, assim,
“razões fortes para não acreditar na existência desta faculdade”53
. Se retirarmos as
consequências disto, teremos ainda mais fortes razões para recusar uma tal
faculdade54
.
Será que pelo menos a experiência “interna” nos fornece provas a favor da
intuição? A segunda das sete questões postas neste texto investiga a possibilidade de
uma auto-consciência intuitiva, isto é, pretende saber se tomamos conhecimento de
nós próprios através de uma intuição, imediatamente, e não em resultado de uma
inferência a partir de cognições prévias; sendo que essa auto-consciência é a auto-
consciência privada de cada um e não o eu abstracto (o sujeito epistemológico ou a
síntese kantiana da apercepção). Ou ainda, como é que eu sei que eu - o meu eu -
existo ? Terei acesso imediato ao meu eu privado? A resposta, negativa, à questão
anterior, deixou-nos com a impossibilidade de distinguir intuitivamente uma intuição
de outra cognição. Logo, não é de todo evidente que tenhamos acesso intuitivo à
auto-consciência: isto tem que ser determinado a partir de provas. Conseguimos
53
C.P.5.224; W2.200. 54
Repare-se que este é o procedimento hipotético-dedutivo-indutivo que, para Peirce,
equivale ao funcionamento mental e, simultaneamente, à metodologia da investigação
científica e se “resume” na máxima pragmática formulada mais tarde (no artigo “How to
Make Our Ideas Clear”, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.5.388-410; W3.257-
276): trata-se retirar consequências de uma hipótese para saber o que significa - isto é,
determinar a sua validade enquanto hipótese.
28
provar ou demonstrar o conhecimento do eu privado sem recurso à hipótese de uma
faculdade de intuição especial? Peirce escolhe aquilo a que podemos chamar uma via
genética para explicar a tomada de consciência do eu próprio, ou a forma como
chegamos a saber que somos um eu55
. A auto-consciência parece desde logo ser
posterior ao “poder de pensamento”, como atesta a utilização tardia da palavra “eu”
nas crianças, e o facto destas pensarem “objectivamente”, isto é, as experiências são
tratadas não em termos de faculdades do sujeito (“eu ouço um som”), mas antes em
termos de comportamento e atributos dos objectos (“o sino toca”). A relação entre a
criança e os objectos exteriores é mediada pelo corpo e não por uma auto-
consciência; os estados de consciência são indistintos das disposições “objectivas”
dos corpos externos e do corpo próprio. Mesmo a aprendizagem da linguagem é um
processo exteriorizado: vai-se estabelecendo uma conexão habitual entre sons e
factos - através de experiências, copiando o que se verifica na observação -
wittgensteineanamente e contra a versão augustiniana da linguagem como
“rotulagem”, os contextos de aprendizagem, o uso, o “treino” explicam a aquisição
da linguagem sem dar lugar a significados misteriosos ou entidades e causas mentais
subjacentes às palavras. Assim, invertendo a posição cartesiana, o eu próprio é um
produto do pensamento, não é prioritário em relação a este e não serve, pois, como
instância de confirmação ou autoridade. Há que apresentar outras instâncias de
validação.
A aquisição da linguagem permite a descoberta do testemunho dos outros como
fonte dos factos, mais forte do que os próprios factos, ou antes, do que o testemunho
55
C.P: 5.227-235; W2.201-203.
29
individual do próprio: a experiência própria confirma a experiência dos outros
criando expectativas credíveis quanto a esta - e cria também a consciência de que a
experiência própria é insuficiente, incompleta ou falsa : “Assim, ele toma
consciência da ignorância, e é necessário supor um eu próprio a que esta ignorãncia
possa pertencer”56
; isto é, faz-se um juízo de atribuição perante uma característica
do mundo que se experimentou - mas, primeiro “está” o mundo e os outros, só depois
o eu. A possibilidade do erro, da discrepância entre a expectativa própria e o
testemunho dos outros, sugere a necessidade de uma hipótese quanto à existência de
um eu que é falível - é necessária para a explicação do erro, de uma anomalia
observada. O eu não é o resultado de uma intuição, um dado ou uma substância
captável por si própria, mas sim uma hipótese, uma teoria com fins explicativos. Esta
génese do eu próprio, externalista e inferencial, põe por terra o acesso intuitivo
representado pelo cogito ergo sum cartesiano - aquilo que resta quando todo o
exterior é suspenso pela dúvida metódica. Também a auto-consciência intuitiva não
encontra plausibilidade : pode facilmente ser o resultado de uma inferência, o que
introduz na concepção do eu uma dimensão de temporalidade, evolucionista, capaz
de melhoramento; e semiótica, em constante actividade de interpretação.
Será que pelo menos temos acesso intuitivo aos elementos subjectivos dos
diferentes tipos de cognição? Será que a intuição do elemento subjectivo (aquilo a
que hoje se chama atitudes proposicionais - o carácter de uma cognição: crença,
desejo, sonho, imaginação, concepção, etc.) de uma cognição acompanha cada
56
“Thus he becomes aware of ignorance, and it is necessary to suppose a self in which this
ignorance can inhere.” (C.P. 5.233; W2 .202)
30
cognição e é dado imediatamente, conhecido intuitivamente ? Não temos que fazer
qualquer inferência para saber de que tipo de cognição se trata? Parece que se não
tivessemos este poder de discriminar intuitivamente os elementos subjectivos das
cognições, nunca conseguiriamos distinguir entre ver e imaginar, entre aquilo que
sonhamos e aquilo que realmente experimentamos, entre uma crença e uma
concepção. Mas, mais uma vez, será que precisamos da hipótese de uma faculdade
especial para chegar a fazer todas estas distinções? A diferença entre modos de
consciência respeitantes à actividade dos sentidos e da imaginação é inferida a partir
da diferença entre os objectos imediatos da consciência, assim como a crença se
distingue da concepção seja pelo sentimento de convicção que acompanha a primeira
e não a segunda, seja pela observação de factos externos, do comportamento de quem
acredita, isto de acordo com a definição de crença que Peirce recebe e aceita de
Alexander Bain : a crença é uma disposição para agir, a crença afecta visivelmente o
comportamento, é um “juízo com base no qual um indivíduo irá agir”57
. É, de
qualquer modo, sempre suficiente uma explicação inferencial dessa distinção, sem
necessidade de postular faculdades adicionais ou formas especiais de intuição. O
funcionamento da mente é sempre o mesmo: a inferência.
Da negação da possibilidade de reconhecer intuitivamente, em geral, uma
intuição, na resposta à primeira questão, seguiu-se a negação de intuições
particulares: do eu e de elementos subjectivos da cognição.
Se até agora se tratou de mostrar que não existe um procedimento mental
privilegiado mas que encontramos sempre raciocínio onde acreditávamos ou
57
“(…) a judgement from which a man shall act(..)” (C.P. 5.242; W2.205).
31
sentíamos haver contacto directo com a realidade, trata-se agora, na quarta questão,
de saber se a distinção entre o conhecimento que temos do chamado mundo interior e
do mundo exterior é logica e epistemologicamente relevante, isto é, se há uma
metodologia privilegiada, um modo de acesso diferente ao mental e aos seus
fenómenos, se temos um poder de introspecção.
Como no caso das questões anteriores, Peirce começa por avaliar a resposta
afirmativa: parece que a introspecção é possível e adequada ao conhecimento dos
“fenómenos mentais” ou dos “factos internos”, isto é, da psique entendida como uma
res separada. Ainda que não intuídos, parecem estar num determinado lugar - o teatro
cartesiano, segundo a expressão do filósofo americano Daniel Dennett - que não
necessita de excursos pelo exterior para ser conhecido. As emoções, por exemplo,
parecem dizer respeito apenas à mente, e fornecer um ponto de partida para um
conhecimento acerca dela independente de qualquer referência a coisas exteriores. O
apelo à intuição, já foi visto, não serve para justificar ou demonstrar a existência
deste “modo de consciência”. Logo, a única forma de proceder a uma demonstração
será, como até aqui, verificando se os factos - o nosso conhecimento de uma emoção,
de um “facto mental” como contraposto a um “facto físico” - podem ou não ser
explicados sem a sua postulação. Ora, aquilo que a reflexão mostra é que as emoções
são predicações e que quando um homem diz “estou zangado”, isto é a consequência
de uma circunstância em que algo num objecto determina esse estado emocional e é
assim um equivalente de “esta coisa é vil, abominável, etc.”. “Qualquer emoção é
32
uma predicação acerca de algum objecto(...)”58
. Também a volição, “o sentido do
querer”, pode ser explicada sem recurso a uma faculdade misteriosa de introspecção,
isto é, pode ser inferida a partir do conhecimento de factos externos. Assim, mais do
que “voltado para dentro”, o eu orienta-se para o exterior e é nesta interacção que
surgem e fazem sentido os seus “estados” : exprimem relações com referentes
externos. A intencionalidade, e não uma qualquer substancialidade, é a característica
específica dos “factos mentais”. Deste modo, não há métodos psicológicos distintos,
excepcionais: “A única maneira de investigar uma questão psicológica é através de
uma inferência a partir de factos externos.”59
).
A quinta questão é a seguinte: podemos pensar sem signos ? Ou seja, haverá uma
causa mental “interna” suposta sob a exteriorização dela numa linguagem ? Aqueles
que pretendem responder afirmativamente dizem simplesmente que o pensamento
deve preceder qualquer signo, que este é apenas o revestimento público de um
pensamento privado a-linguístico, completamente mental. Não existindo um poder de
introspecção, temos que proceder a uma argumentação a partir de factos externos, e
estes só nos mostram pensamento em signos: uma vez que todo o pensamento é
mediação, como foi estabelecido na resposta à primeira questão, qualquer
pensamento dado é, por definição, uma interpretação de um pensamento anterior, ou
qualquer premissa é uma conclusão a partir de premissas prévias. “O único
58
C.P. 5.247; W2.206. Também a este propósito, Peirce inverte Hume: para este, juízos
qualitativos são projecções emocionais; para Peirce, as emoções são inferências. 59
C.P. 5.249; W2.207. Repare-se na importância deste aspecto para a recusa da
psicologizacão da lógica: estudar uma questão psicológica exige fazer inferências; a lógica
estuda as inferências e a sua forma correcta ou a sua validade; logo, a psicologia como
ciência especial depende da lógica como ciência dos métodos.
33
pensamento que pode, então, ser conhecido, é pensamento em signos”60
. O facto de
não explicitarmos completamente todos os passos de um raciocínio quando o
expressamos não significa que algum passo misterioso e não exteriorizável - isto é,
uma causa mental que não é um signo mas que é significada por ele - tenha ocorrido,
mas apenas que há falta de distinção.
O facto de todo o pensamento ter o carácter de um signo implica que todo o
pensamento determina um outro, o que equivale a dizer que o pensamento não é um
acto instantâneo mas um fluxo contínuo de signos que determinam outros signos, ou
seja, tem uma dimensão temporal. É precisamente esta característica que conduz a
uma concepção do conhecimento como uma actividade falível, um processo sem
garantias absolutas fornecidas por um fundamento intuitivo.
Quanto aos signos, e esta será a questão número seis, podem eles ter algum
significado se, por definição, forem signos de algo absolutamente incognoscível? Ou
seja, há alguma realidade que o eu possa não vir a conhecer de algum modo, que seja
absolutamente inacessível ao conhecimento?61
Mais uma vez, Peirce começa pela
resposta afirmativa : as proposições universais e as proposições hipotéticas, uma vez
que se referem àquilo que está fora da experiência presente ou possível, parecem
60
C.P.5.251; W2.207. 61
Esta questão é central na medida em que se trata aqui de não abdicar de uma posição
realista, e assim cair no nominalismo, pelo facto de termos como hipótese explicativa da
acção mental o seu carácter inferencial, ou seja, semiótico. A linguagem não torna o
conhecimento numa questão de convenção, não é um filtro entre o sujeito e uma realidade
finalmente inacessível. Peirce tem aqui que demarcar-se da tradição nominalista, tanto mais
quanto esta dá uma grande importância à linguagem como é exemplo o caso de Locke, que
terá até sido o primeiro a usar o termo semiose.
34
significar objectos incognoscíveis62
. Subjacente à resposta de Peirce está, segundo
Corrington63
, a opção por um idealismo objectivo e a consequente crença de que o
mundo é real e é parte de alguma experiência : “A cognoscibilidade e o ser são não
apenas metafisicamente o mesmo, mas são termos sinónimos.”64
. Ser é ser objecto de
alguma experiência. Para estabelecer isto, a estratégia de Peirce consiste em mostrar
que a ideia de incognoscível é auto-contraditória65
e que o prefixo de negação é
sincategoremático. Assim, até estruturas infinitas são de alguma forma cognoscíveis,
experienciáveis, não directa e plenamente mas através de indução, isto é,
inferencialmente. As proposições universais e hipotéticas são cognoscíveis, ainda que
indirectamente. Mas isto é, afinal, o que caracteriza o processo de conhecimento,
dada a implausibilidade da intuição: ele é sempre um acto de mediação66
. Também
Esposito vê nestes artigos a confirmação do idealismo de Peirce, que é consequência
da rejeição do fundacionalismo cartesiano67
e que permite esclarecer a relação entre
inferência probabilística e realidade, ou seja, a questão da validade das leis da lógica
ou da possibilidade do conhecimento sintético.
62
Poderia, a este propósito, pôr-se a questão do saber se as condições de possibilidade do
conhecimento podem, pors ua vez, ser conhecidas, visto serem os limites da actividade
cognitiva. De alguma forma, a teoria social da lógica e o sentimentalismo como condição de
possibilidade da lógica, que serão abordados neste trabalho, aparecerão como resposta a este
paradoxo: recusa do incognoscível/ conhecer condições de possibilidade. 63
Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce - Philosopher, Semiotician and Ecstatic
Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers, inc., 1993,p.83. 64
C.P. 5. 257; W2.208. 65
cf. C.P.5.257 66
cf. C.P.5.284: o pensamento é isomorfo do tempo na medida em que é um processo
contínuo e um processo de crescimento. Cf. Esposito,J.L., Evolutionary Metaphysics,
Athens Ohio, Ohio University Press, 1980, p.119.
67
cf. C.P.5.310
35
A sétima e última questão pode ser vista como o fechamento de um círculo. É
que se o texto começa com uma questão acerca da possibilidade de reconhecer
intuitivamente uma intuição definindo esta como conhecimento imediato, isto é, não
determinado por outra cognição mas pelo objecto (como acontece para os empiristas
no caso da afecção sensorial ou para os racionalistas no caso de certas ideias), ou
como uma premissa que não é por sua vez uma conclusão, a sétima questão põe
directamente em causa a intuição em geral : “Se existe alguma cognição não
determinada por uma cognição prévia.”68
Terá havido um primeiro momento na série das cognições ou o nosso estado
cognitivo em qualquer momento é completamente determinado, de acordo com leis
lógicas, pelo nosso estado cognitivo em qualquer momento anterior? Como
responder a esta alternativa quando parece haver tantas provas a favor de um
primeiro momento na série das cognições, isto é, de uma intuição fundadora? Bom,
desde logo aplicando as conclusões das questões anteriores que mostraram, em geral
e para casos particulares, que “é impossível saber intuitivamente que uma dada
cognição não é determinada por uma cognição anterior.”69
, isto é, não distinguimos
intuitivamente uma intuição de uma cognição mediata. É, afinal, a presunção de uma
intuição ou de uma faculdade intuitiva (e a imagem do conhecimento como contacto
imediato e assegurado entre a coisa-mente e a coisa-mundo ) que levanta este
problema - e este desaparece juntamente com a presunção de um conhecimento
68
“Whether there is any cognition not determined by a previous cognition”. (C.P. 5.260;
W2.209)
69
C.P. 5.260; W2.209.
36
intuitivo: deixa de ser o problema. Assim, uma das conclusões deste ataque à
intuição, será exactamente o abandono da concepção individualista, internalista,
autosuficiente e imediatista do conhecimento, que acompanha os vários
fundacionalismos gerados por Descartes, e a sua substituição por um outro conceito
epistemológico significativamente diferente, o de comunidade, adequado à
insistência no carácter temporal ou processual do pensamento, e ao qual se chega
examinando “algumas consequências de quatro incapacidades”.
2.2. O SEGUNDO ARTIGO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO
INCAPACIDADES. (C.P.5.264-317; W2.211-242)70
O ataque ao eu substancialista levado a cabo no artigo anterior sob a forma da
sua invalidação como hipótese explicativa dos “factos internos” e da cognição faz-
nos desembocar em pleno “espírito do cartesianismo”71
, cujas características, em
oposição à filosofia escolástica que o antecedeu, são, segundo Peirce, as seguintes: a
dúvida universal como ponto de partida da filosofia; a consciência individual como
teste último da certeza; um fio argumentativo único como estratégia de
fundamentação e justificação, frequentemente dependente de “premissas
inconspícuas”; e, finalmente, ter como resultado tornar as coisas absolutamente
inexplicáveis. Peirce defende exactamente o contrário destas quatro pretensões e isto
70
Este texto, cujo título original é “Some Consequences of Four Incapacities”, será a partir
de agora identificado com a seguinte sigla : CFI. 71
C.P. 5.264; W2.211
37
em nome das exigências da ciência e da lógica modernas72
. Assim, à dúvida
metódica cartesiana opõe a dúvida real, aquela que surge de facto num determinado
contexto problemático, e que tanto pode ocorrer na investigação científica como na
experiência quotidiana. O que se passa, segundo Peirce, é que nunca estamos
realmente num estado de descrença total, nem conseguimos dispensar “com uma
máxima”73
todos os preconceitos que constituem, afinal, o nosso ponto de vista, a
nossa posição na relação cognitiva com o mundo ; o cepticismo radical é auto-ilusão.
A dúvida será, em Peirce, resgatada das suas implicações cépticas e integrada
positivamente no método; deixa de ser contraditória ou estéril, passa a produzir
resultados substantivos em vez de condenar a filosofia ao formalismo74
. Também a
certeza individual é um “fundamento” pernicioso. Aliás, já o artigo anterior chamara
a atenção para os problemas do sentimento subjectivo e para a forma como a
confirmação de expectativas e da nossa própria identidade depende do testemunho
dos outros: o conhecimento é um assunto comunitário e a certeza decorre do acordo
sobre uma teoria posta à prova por todos aqueles que investigam.. A filosofia
deveria, pois, “imitar as ciências de sucesso nos seus métodos”75
e recorrer a
múltiplos e variados argumentos: um feixe ou cabo é sempre mais forte do que um
único elo. Finalmente, presumir uma inexplicabilidade na base dos fenómenos que se
72
C.P.5.265 73
C.P. 5.265; W2.212 74
cf. Browning, D., “The Limits of the Practical in Peirce’s View of Philosophical Inquiry”
in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /
Providence, Berg, 1994, pp.15-29, onde se discutem as ambiguidades da cocepção de dúvida
em Peirce.
Este tema é retomado na famosa metáfora do pântano, de 1898, onde Peirce reafirma o
seu anti-fundacionalismo : não há um ponto de vista privilegiado e neutro sobre a totalidade,
estamos sempre já in media res e na posse de algum conhecimento provisório.
38
pretende explicar é perfeitamente injustificado, dado que o objectivo é, precisamente,
explicar; é uma forma arbitrária, autoritária de travar o processo de investigação, é
uma estabilização artificial.
Como de algum modo aquelas características do cartesianismo se justificam à luz
de uma determinada teoria acerca da mente e do conhecimento, a sua refutação e a
aceitação concomitante destas contra-propostas ficará estabelecida se continuarmos o
processo de demolição desta mesma teoria da mente e do conhecimento. O primeiro
dos três artigos aqui em causa, ao responder às sete questões acerca de faculdades
reivindicadas para o homem permitira-nos identificar quatro incapacidades : 1) não
temos poder de introspecção; 2) não temos poder de intuição; 3) não temos o poder
de pensar sem signos; 4) não temos concepção do absolutamente incognoscível.
Agora, trata-se de sujeitar a teste estas quatro hipóteses, de retirar consequências
delas para delimitar uma alternativa consistente à res cogitans cartesiana e ao
nominalismo típico de toda a filosofia moderna.
A primeira proposição implica abandonar a “via” da auto-consciência como modo
de acesso cognitivo ao mundo externo (e interno). A descrição da acção mental terá,
mais uma vez, o estatuto de uma hipótese que deve ser levada até às suas últimas
consequências: “Por outras palavras, devemos, tanto quanto for possível sem
hipóteses adicionais, reduzir todos os tipos de acção mental a um tipo geral.”76
.
Afastado o conhecimento imediato, a intuição, resta o conhecimento mediato ou
discursivo, a inferência; e é esta então a hipótese em causa acerca do funcionamento
75
C.P.5.265; W2.213. 76
C.P. 5.266; W 2.214.
39
mental: “(...) devemos, tanto quanto possível, sem qualquer outra suposição a não ser
que a mente raciocina, reduzir toda a acção mental à fórmula do raciocínio válido.”77
As duas primeiras proposições permitem, então, identificar toda a actividade mental
com o raciocínio válido e com a recensão das suas formas possíveis : pensar é inferir
dedutiva, indutiva ou hipoteticamente, “ou então ele raciocínio válido combina
duas ou mais destas características.”78
Dedução, indução e hipótese79
são três
espécies diferentes de raciocínio válido, mas integram um mesmo género, partilham
uma forma geral80
, e esgotam toda a descrição possível da actividade mental de uma
forma que não é perturbada sequer pela possibilidade do erro, pelos raciocínios
falaciosos81
.
A terceira proposição afirma que não podemos pensar sem signos; isto é, que a
actividade mental, ou inferência, envolve a presença na consciência de uma
representação - seja ela um sentimento, uma imagem ou uma concepção - que
funciona sempre como um signo. Trata-se, como diz Thompson82
, de especificar a
natureza dos acontecimentos que ocorrem no processo mental. Este signo é,
simultaneamente, “uma manifestação fenoménica de nós próprios” e “um fenómeno
77
C.P. 5.267; W 2.214. 78
C.P. 5.276; W 2.217. 79
Tanto a indução como a hipótese são “reduções da multiplicidade à unidade” - cf.
C.P.5.275 para a indução e C.P.5.276 para a hipótese – logo, são formas de síntese, para
usar o termo kantiano, ou de obtenção de conhecimento. 80
C.P. 5.279. 81
C.P. 5.280-282. Até as falácias se conformam à fórmula da inferência válida. Não há erros
absolutos. Segundo Hookway, trata-se de racionalizar a irracionalidade ; a caridade é
constitutiva da compreensão dos outros. cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge,
1985,p.32. 82
Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,
University of Chicago Press, 1953, p.42.
40
de algo fora de nós”83
e constitui assim o mental propriamente ditto. Este é, então,
dinâmico, ou implica, como tinha já sido afirmado no artigo anterior, temporalidade,
tal como se pode compreender a partir da descrição que Peirce faz da noção de signo:
“Ora, um signo tem, enquanto tal, três referências: 1º, é um signo em relação a algum
pensamento que o interpreta; 2º, é um signo em relação a algum objecto do qual é um
equivalente nesse pensamento; 3º, é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que o
põe em relação com o seu objecto.”84
O primeiro correlato estabelece a acção mental
como um fluxo ininterrupto de acordo com a lei de associação de ideias : um
pensamento-signo (“thought-sign”) é sempre interpretado ou traduzido num outro
subsequente, o que desde logo decorre da nossa incapacidade para a intuição. O
pensamento é um processo contínuo no tempo e a única interrupção concebível é
“que todo o pensamento tenha um fim abrupto e definitivo com a morte.”85
O
segundo correlato, “a coisa externa real”, é referido pela mediação de um pensamento
anterior, que o denota, uma vez que cada pensamento é determinado por um
pensamento anterior e não directamente - intuitivamente - por um “objecto
transcendental”. E, finalmente, o terceiro correlato é o próprio pensamento, tal como
é pensado no pensamento subsequente para o qual é um signo. Assim, ainda que
possamos considerar duas outras propriedades dos signos, de grande importância
para a teoria da cognição, designadamente as qualidades materiais do signo e a sua
aplicação puramente demonstrativa, a função representativa do signo não está nem
83
C.P. 5.283; W 2.223 84
“Now, a sign has, as such, three references : 1st, it is a sign to some thought which
interprets it ; 2d, it is a sign for some object to which in that thought it is equivalent; 3d, it is
a sign, in some respect or quality, which brings it into connection with its object.” ( C.P.
5.283; W 2.223).
41
num nem noutro destes aspectos mas antes consiste naquilo que um signo é para um
pensamento : não em si próprio ou na sua relação real com o seu objecto. O signo é,
pois, irredutivelmente triádico86
. O carácter-signo de todo o pensamento, a sua
interpretabilidade indefinida, tem como corolário a constatação de que o sentido de
um pensamento é algo de virtual, nunca completamente determinado87
, dado que um
pensamento não é um objecto, uma coisa, mas um acontecimento, um acto da
mente88
que envolve tempo e cujo sentido depende da relação com pensamentos
subsequentes. A psicologia associacionista equivoca-se ao descrever o fluxo de
pensamento como uma sucessão de imagens entendidas como representações
singulares absolutamente determinadas, como se a sensação fosse uma cópia fiel de
objectos dados com todos os seus detalhes, esquecendo que cada sentido é “um
mecanismo de abstracção”89
e que afinal “a associação de ideias consiste nisto, que
um juízo dá origem a outro juízo, do qual é o signo. Ora isto não é mais nem menos
do que inferência.”90
A quarta proposição faz intervir um elemento central da alternativa proposta por
Peirce à mente cartesiana e empirista: a noção de comunidade. O que ela afirma,
então, é que o absolutamente incognoscível é absolutamente inconcebível. Esta é
uma discussão que tanto se dirige a Descartes como à coisa-em-si kantiana. Postular
85
C.P. 5.284; W 2.224 86
A relação semântica, de representação, de um signo com aquilo que ele significa, depende
do nosso uso ou compreensão dele como um signo dessa coisa: e ainda que um signo possa
não ser interpretado de facto, só é signo por ser capaz de ser interpretado ou compreendido
num certo modo. É signo de algo para alguém, envolve sempre três termos. Cf.Hookway,
C.,Peirce, London, Routledge, 1985,pp.32-33. 87
C.P. 5.289; W 2.227 88
C.P. 5.288. 89
C.P. 5.306
42
algo como real, existente, mas inacessível ao conhecimento não faz sentido fora do
quadro cartesiano do conhecimento como intuição. Dada a descrição do pensamento
como processo, estamos em qualquer momento de posse de certas cognições
resultando de uma “série infinita de induções e hipóteses”91
e essas cognições são de
dois tipos : “as verdadeiras e as falsas, ou cognições cujos objectos são reais e
aquelas cujos objectos não são reais”92
. A própria noção de real decorre de uma
inferência feita a partir da nossa capacidade de auto-correcção : “É uma concepção
que devemos ter tido pela primeira vez quando descobrimos que havia algo de não
real, uma ilusão; ou seja, quando nos corrigimos a nós próprios pela primeira vez.”93
O facto da auto-correcção implica, por sua vez, uma distinção entre “um ens relativo
a determinações internas privadas, às negações que pertencem à idiossincrasia” e
“um ens tal que subsistiria no longo prazo”, ou seja, o contraste entre a experiência
individual e um ideal de estabilidade, uma extensão do modo como tinha sido
descrita a origem da hipótese do eu a propósito da refutação de um acesso
privilegiado a uma auto consciência. Dito de outro modo, é o resultado de uma
inferência e é aquilo em que “mais cedo ou mais tarde, a informação e o raciocínio
finalmente resultariam, e que, consequentemente, é independente das variações
90
C.P. 5.307. 91
C.P. 5.311 92
C.P. 5.311. O sentido do termo “real” está, assim, estreitamente ligado ao sentido de
termo “verdadeiro”, implicam-se mutuamente, sendo que a pretensão à verdade é
simultaneamente uma pretensão ou afirmação da possibilidade do conhecimento do real.
Trata-se aqui do “realismo escolástico” de Peirce, expresso mais adiante no texto, onde
Peirce afirma que não conhece realidade mais profunda que o objecto de uma representação
verdadeira. 93
C.P. 5.311; W 2.239.
43
individuais”94
. Esta estabilidade em que resultaria “finalmente” a informação e o
raciocínio é o ponto de vista que permite avaliar os “fracassos” individuais pontuais -
e já não simplesmente o testemunho dos outros. Há que evitar cair em critérios
utilitaristas quanto ao valor lógico e epistemológico dos conhecimentos. Ou seja,
surge aqui já uma distinção entre o plano da experiência e o plano do ideal que
conduz a nossa abordagem dessa experiência e que é a finalidade última do inquérito
- tema que irá ser insistentemente abordado e desenvolvido a partir daqui em
direcção a uma concepção normativa da lógica, a uma articulação entre lógica e ética,
ao tema da diferença entre teoria e prática - e que tem uma expressão clara na
problemática da descontinuidade entre os métodos de fixação da crença que irá ser
objecto do próximo capítulo deste trabalho. Assim, a concepção de real exige a
noção de uma comunidade sem limites definidos e capaz de um aumento definido de
conhecimento ou de progredir em direcção à estabilidade no longo prazo95
e
substituindo o sujeito cartesiano auto-contido e auto-suficiente: o indivíduo não
fornece garantias suficientes de estabilidade. A noção de incognoscibilidade é posta
em causa dada a admissão de que a verdade e a realidade são aquilo que seria
descoberto se o inquérito continuasse suficientemente, no longo prazo. Esta admissão
depende, por sua vez, de uma interpretação estatística da indução que será defendida
no artigo seguinte.
A noção de realidade é, assim, o resultado de um processo de investigação e
não um dado ou uma qualquer transcendência, exterior ao discurso. Pelo contrário,
94
C.P. 5.311; W 2.239.
44
em Peirce o real é “aquilo que é representado numa representação verdadeira”96
e
esta é uma descrição que corresponde a uma posição realista: “Consequentemente,
aquilo que é pensado nestas cognições é real, tal como realmente é. Não há, então,
nada que nos impeça de conhecer as coisas externas tal como realmente são, e é
muito provável que assim aconteça em inúmeros casos,embora não possamos ter a
certeza absoluta de que o fazemos em algum caso especial.”97
. Uma aplicação desta
noção de real a um objecto específico como a mente mostra, e isto em função da
investigação levada a cabo neste e no artigo anterior, que a realidade da mente
consiste em realizar inferências ou “a mente é um signo que se desenvolve segundo
as leis da inferência”; e que “a palavra ou signo que o homem usa é o próprio
homem”98
. Esta parece, então, ser uma definição anti-individualista de homem:
enquanto signo, não é uma entidade estática ou definitiva e absolutamente
determinada, mas o seu sentido depende de interpretação num outro signo. Aquilo
que uma coisa é, é aquilo que finalmente será conhecida como sendo num estado
ideal de informação completa, “de modo que a realidade depende da decisão última
da comunidade”99
. Todo o pensamento que se dá num determinado momento,
embora aparentemente actual, é afinal apenas pensamento em potência, dependente
do pensamento futuro da comunidade. A pedra de toque da verdade e da realidade
95
“And so those two series of cognition – the real and the unreal – consist of those which, at
a time sufficiently future, the community will always continue to re-affirm; and of those
which, under the same conditions, will ever after be denied.” (C.P. 5.311). 96
C.P. 5.312 97
“Consequently, that which is thought in these cognitions is the real, as it really is. There is
nothing, then, to prevent our knowing outward things as they really are, and it is most likely
that we do thus know them in numberless cases, although we can never be absolutely certain
of doing so in any special case.” (C.P. 5.311) 98
C.P. 5.313.
45
deixou definitivamente de ser um momento inicial, uma qualquer fundação, do
inquérito (estamos sempre já no processo - somos lançados no meio dos
acontecimentos), para ser a finalidade que o orienta, um estado futuro esperado e
regulador, um ideal. Assim, qualquer momento do percurso é relativizado - falível -
em função dessa finalidade, o que equivale a dizer que nenhum momento está
absolutamente fundado mas depende do aumento do conhecimento ou da progressão
do inquérito. Também o homem individual, tal como qualquer cognição particular, é
apenas negação.
O contexto de emergência do tema da comunidade é, directamente,
epistemológico. Ele começa a definir-se ainda na discussão da primeira questão das
QFM, quando se chama a atenção para a insuficiência de uma autoridade interna,
individual, para se decidir do carácter intuitivo de uma cognição100
; e atinge um
ponto decisivo na resposta à segunda questão, acerca da existência ou não de uma
auto-consciência intuitiva. Assim, podemos encontrar já aqui os dois critérios de
validação do conhecimento, ou da admissibilidade das hipóteses, que, combinados,
virão a constituir o núcleo normativo da noção de comunidade, definindo a sua
função epistemológica 101
: a auto-consciência é uma hipótese, o resultado de uma
inferência validada pela experiência ou tendo em vista explicar os factos, por um
lado, e, por outro, pelo testemunho dos outros, que confirma ou não a experiência
individual. A falta de autoridade do ponto de vista individual é ainda maior se
99
C.P. 5.316. 100
C.P. 5.214-15; W.2.194-5 101
Com consequências para a teoria peirceana de verdade, que não é já uma teoria da
verdade como adequação, sem ser ainda completamente uma teoria coerentista. Cf Thayer,
46
considerarmos a resposta à terceira questão posta no primeiro artigo, ou a terceira
incapacidade identificada no segundo, isto é, o facto de que todo o pensamento é um
signo , ou, que não podemos pensar sem signos. A linguagem, enquanto dimensão
incontornável numa teoria do conhecimento, implica uma concepção da
racionalidade como um conjunto de operações externalizáveis e submetidas a regras,
coincidindo com a concepção anti-psicologista da lógica em Peirce, como disciplina
cujo objecto de estudo são os produtos do pensamento tal como se manifestam em
proposições e argumentos.
Mas é a propósito da definição de real, no âmbito da discussão de uma quarta
incapacidade humana - a de conceber o incognoscível - que é explicitamente
introduzida a comunidade, acompanhando uma afirmação anti-fundacionalista
decorrente da incapacidade para a intuição : o real não é dado, é inferido como
hipótese explicativa de certos factos, do erro; e falibilista: não havendo uma recepção
imediata de qualquer parcela de realidade que funcione como fundamento, antes
sendo esta uma concepção que resulta de uma inferência na medida em que se
pretende dar conta de factos da experiência, a garantia da validade do conhecimento
dependerá da confirmação experimental possível e do acordo comunitário, do
testemunho dos outros num dado momento. Ou, se quisermos, a garantia é o
método102
de investigação com o qual abordamos a experiência partindo de uma
dúvida real, propondo hipóteses explicativas, verificando essas hipóteses e
“Peirce on Truth” ” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil
Blackwell, 1980, pp.63-76. 102
Daí a necessidade de: 1) validar as leis da lógica; 2) afirmar a superioridade do método
científico.
47
respeitando as regras de inferência, assegurando desse modo a convergência
representada pela noção de comunidade.
É importante salientar, finalmente, o modo como as posições anti-
individualistas, anti-fundacionalistas e falibilistas afirmadas até aqui por Peirce são
componentes fundamentais do seu realismo: é que, se a sua definição de real no
segundo artigo como dependente da decisão final a comunidade pode fazer pensar
num convencionalismo afinal nominalista, é preciso considerar, em primeiro lugar,
que o que está em causa é a insuficiência do indivíduo no que respeita à exigência de
inteligibilidade que comanda o inquérito103
; em segundo lugar, que os resultados,
falíveis e aproximativos, do inquérito não são simplesmente uma versão humana e
abreviada do modo como as coisas realmente são, mas que, para Peirce, o
conhecimento é literalmente possível e suficientemente justificável. Desde logo,
então, o passo seguinte será justificar o modo de funcionamento da razão humana no
processo cognitivo, que foi nestes dois artigos identificado com a inferência.
103
“The individual man, since his separate existence is manifested only by ignorance and
error, so far as he is anything apart from his fellows, and from what he and they are to be, is
only a negation. This is man,
...proud man,
Most ignorant of what he’s most assured,
His glassy essence.” C.P.5.317
48
2.3. O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA
LÓGICA: OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES
(C.P.5.318-357; W2.242-272)104
Este terceiro artigo, estabelecida uma teoria semiótica da mente e afirmada uma
posição realista no anterior, pretende explicar a validade das leis da lógica,
especialmente no caso dos raciocínios prováveis. Trata-se de saber como é possível
passar de um conhecimento do passado para um conhecimento do futuro, da parte
para o todo, como é possível conhecer o que não foi experimentado105
. Isto é,
recusado um modelo do mental que exige um momento fundador inicial, um contacto
directo com a realidade que se erige como critério de certeza, mas aceitando-se ainda
assim a possibilidade do conhecimento e do conhecimento verdadeiro acerca do real,
como se justifica esta última? A “faculdade” de conhecer pode até encontrar uma
explicação biológica, empírica: a sobrevivência da espécie atestaria simplesmente a
sua existência. Mas o problema agora é explicar a sua possibilidade a partir da sua
constatação (tal como Kant fizera com a ciência newtoniana na Crítica da Razão
Pura), dado que não podemos contar com qualquer intuição intelectual como
explicação e fundamento. “O que poderá permitir à mente conhecer coisas físicas que
104
Este artigo, cujo título original é “Grounds of Validity of the Laws of Logic – Further
Consequences of Four Incapacities”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla:
GVL. 105
“How magical is it that by examining a part of a class we can know what is true of the
whole class, and by study of the past we can know the future; in short, that we can know
what we have not experienced!” C.P.5.341.
49
não a influenciam fisicamente e que ela não influencia?”106
Esta é uma questão que
equivale àquela acerca da possibilidade da indução e da hipótese, isto é, das
inferências prováveis. E é uma questão tanto mais importante quanto não se deixa
resolver por qualquer presunção de regularidade na natureza.: “É verdade que as leis
especiais e as regularidades são inúmeras; mas ninguém considera as irregularidades,
que são infinitamente mais frequentes. Qualquer facto verdadeiro acerca de qualquer
coisa particular no universo está relacionado com qualquer facto verdadeiro acerca de
qualquer outra coisa. Mas a imensa maioria destas relações são fortuitas e irregulares.
Um homem na China comprou uma vaca três dias e cinco minutos depois de um
natural da Gronelândia ter espirrado. Estará esta circunstância abstracta relacionada
com qualquer tipo de regularidade?”107
Ainda que houvesse alguma ordem na
natureza (como “proporção”) e ainda que ela pudesse ser conhecida, isto não
explicaria o aumento do conhecimento, serviria apenas como base para a dedução
enquanto princípio geral108
. O nosso conhecimento não é simplesmente o espelho de
uma suposta “ordem das coisas” mas o resultado de um processo cuja validade é o
que está aqui em causa. E, mais ainda, a questão da validade ficaria comprometida se
a sua base fosse uma qualquer correspondência com uma ordem das coisas, isto
porque se tornaria relativa a essa mesma ordem das coisas, “dependente de uma
106
“What could enable the mind to know physical things which do not physically influence
it and which it does not influence?” (C.P. 5.342; W 2.264). 107
“It is true that the special laws and regularities are innumerable; but nobody thinks of the
irregularities, which are infinitely more frequent. Every fact true of any one thing in the
universe is related to every fact true of every other. But the immense majority of these
relations are fortuitous and irregular. A man in China bought a cow three days and five
minutes after a Greenlander has sneezed. Is that abstract circumstance connected with any
regularity whatever?” (C.P. 5.344). 108
C.P. 5.344.
50
constituição particular do universo”109
e o que importa é justificá-la de modo a operar
na passagem daquilo que conhecemos para aquilo que ainda não conhecemos.
“Assim, parece que somos conduzidos a este ponto. Por um lado, nenhuma
determinação das coisas, nenhum facto, pode ter como resultado a validade dos
argumentos de probabilidade; nem, por outro lado, podem tais argumentos ser
reduzidos a uma forma correcta, sejam os factos o que forem. Isto parece-se bastante
com a redução ao absurdo da validade de um tal raciocínio; e um paradoxo da maior
dificuldade apresenta-se como solução.”110
. Este é, então, o problema do aumento
justificado do conhecimento, ou do raciocínio sintético, e é “a fechadura na porta da
filosofia”111
. A resposta a esta questão, e aquilo de que a validade das inferências
prováveis depende, está na noção de no longo prazo - ou, se quisermos, depende da
direcção da investigação, do facto de se partir de um estado fragmentário tendo em
vista um estado completo, da parte para o todo, tem a ver com aquele estado de
informação completa que é a finalidade da investigação. “Qualquer inferência
provável, seja ela uma indução ou uma hipótese, é uma inferência que vai das partes
para o todo. É, pois, essencialmente semelhante à inferência estatística. Se, de um
saco de feijões pretos e brancos, tirarmos algumas mãos cheias, podemos, a partir
desta amostra, fazer um juízo aproximado acerca da proporção de feijões pretos e
brancos em relação à totalidade. Isto é semelhante ao que se passa na indução. Agora
109
C.P.5.345. 110
“Thus we seem to be driven to this point. On the one hand, no determination of things, no
fact, can result in the validity of probable argument; nor, on the other hand, is such argument
reducible to that form which holds good, however the facts may be. This seems very much
like a reduction to absurdity of the validity of such reasoning; and a paradox of the greatest
difficulty is presented for solution.” (C.P.5.347) 111
C.P.5.348; W2.268.
51
sabemos de que depende a validade desta inferência. Depende do facto de que, no
longo prazo, qualquer um dos feijões seria retirado tão frequentemente como
qualquer outro.”112
Ou, como diz Hookway, a estratégia de Peirce consiste em
argumentar que, de acordo com a noção de realidade apresentada, a inferência por
amostra, como relação parte/todo, como é o caso da indução e da hipótese, cumprem
um critério defensável de correcção lógica. Isto tem como consequência o carácter
aproximativo da indução113
. Por um lado, então, a validade da indução depende da
noção de realidade tal como fora apresentada no artigo anterior. Mas, por outro, põe-
se também a questão de saber porque é que os homens não estão sempre condenados
a fazer quelas induções que são altamente enganadoras, visto que o longo prazo não
se verifica aqui e agora, isto é, não fornece um suporte para a validade de curto prazo
da indução. Este é um tema desenvolvido com a teoria da hipótese ou abdução, que
será apresentada num capítulo posterior deste trabalho, mas que recebe já aqui uma
resposta significativa: “A resposta a esta questão pode ser colocada de uma forma
geral e abstracta, ou detalhada e especial. Se os homens não fossem capazes de
aprender através da indução, deveria ser porque, regra geral, quando fizeram essa
indução, a ordem das coisas (tal como elas aparecem na experiência), sofreria então
uma revolução. É exactamente nisto que consistiria a irrealidade de um tal universo;
nomeadamente, em que a ordem do universo dependeria da quantidade de
112
“All probable inference, whether induction or hypothesis, is inference from the parts to
the whole. It is essentially the same, therefore, as statistical inference. Out of a bag of black
and white beans I take a few handfuls, and from this sample I can judge approximately the
proportions of black and white in the whole. This is identical with induction. Now we know
upon what the validity of this inference depends. It depends upon the fact that in the long
run, any one bean would be taken out as often as any other.” (C.P.5.349). 113
C.P.5.350
52
conhecimento que os homens tivesem dele. Mas esta regra geral poderia ser ela
própria descoberta através da indução; e deveria então ser uma lei desse universo
que, quando fosse descoberta uma lei, ela deixaria de operar. Mas esta segunda lei
seria ela própria passível de ser descoberta. E assim, num tal universo, não poderia
haver nada que não pudesse mais tarde ou mais cedo ser conhecido; e teria uma
ordem passível de ser descoberta por um curso suficientemente longo de raciocínio.
Mas isto é contrário à hipótese, logo, essa hipótese é absurda. Esta é a resposta
particular. Mas também podemos dizer,em geral, que se não existe nada que seja real,
então, uma vez que cada questão supõe que algo existe – já que afirma a sua própria
urgência – supõe apenas que apenas existe uma ilusão. Mas até a existência de uma
ilusão é uma realidade; pois uma ilusão ou afecta todos os homens ou não afecta. No
primeiro caso, é uma realidade segundo a nossa teoria da realidade; no segundo caso,
é independente dos estados mentais de quaisquer indivíduos excepto daqueles a
quem de facto afecta. Assim, a resposta à questão ‘Porque é o que quer que seja
real?’ é esta: a questão significa,’supondo que existe o que quer que seja, porque é
que algo qualquer é real?’ A resposta é que essa mesma existência é a realidade por
definição.”114
114
“The answer to this question may be put into a general and abstract, or a special detailed
form. If men were not to be able to learn from induction, it must be because as a general
rule, when they had made an induction, the order of things (as they appear in experience),
would then undergo a revolution. Just herein would the unreality of such a universe consist;
namely, that the order of the universe should depend on how much men should know of it.
But this general rule would be capable of being itself discovered by induction; and so it
must be a law of such a universe, that when this was discovered it would cease to operate.
But this second law would itself be capable of discovery. And so in such a universe there
would be nothing which would not sooner or later be known; and it would have an order
capable of discovery by a sufficiently long course of reasoning. But this is contrary to the
hypothesis, and therefore that hypothesis is absurd. This is the particular answer. But we
53
Esta identificação do longo prazo e do estado ideal de informação completa como
aquilo de que depende a validade da indução ou do raciocínio sintético, tem
implicações éticas. Prosseguindo a posição anti-individualista dos artigos anteriores,
associa à lógica certas “virtudes” e “sentimentos” que irão compor a sua
normatividade específica e que desembocarão mais tarde na teoria do auto-controle
deliberado, do instinto e do sentimentalismo filosófico. Dada a definição de realidade
como o acordo final de todos os homens, ou como o objecto da opinião que a
comunidade para sempre afirmará, e sendo que uma indução válida é aquela que se
aproxima, no longo prazo, deste estado, nenhuma inferência individual está alguma
vez absolutamente fundada, mas apenas relativa e provisoriamente. Daqui se segue
“que a lógica requer estritamente, antes de tudo o resto, que nenhum facto
determinado, nada do que possa acontecer ao eu próprio de um indivíduo, possa ser
de maior importância para ele do que tudo o resto. Aquele que não sacrificasse a sua
própria alma para salvar o mundo todo, seria ilógico em todas as suas inferências,
colectivamente. Assim, o princípio social está intrinsecamente enraizado na
lógica.”115
Ou seja, o interesse individual sobreposto ao carácter indefinidamente
may also say, in general, that if nothing real exists, then, since every question supposes that
something exists – for it maintains its own urgency – it supposes only an illusion to exist.
But the existence even of an illusion is a reality; for an illusion affects all men, or it does
not. In the former case, it is a reality according to our theory of reality; in the latter case, it is
independent of the state of mind of any individuals except those whom it happens to affect.
So, the answer to the question, Why is anything real? Is this: That question means,
‘supposing anything to exist, why is something real?’ The answer is, that that very existence
is reality by definition.” (C.P.5.352).
115
“(…)that logic rigidly requires, before all else, that no determinate fact, nothing which
can happen to a man’s self, should be of more consequence to him than everything else. He
who would not sacrifice his own soul to save the whole world, is illogical in all his
inferences, collectively. So the social principle is rooted intrinsically in logic.” (C.P.5.354).
54
aproximativo do conhecimento humano contraria aquilo sobre que repousa a validade
das inferências sintéticas. Logo, a lógica parece requerer uma virtude de auto-
sacrifício cujo “poder servirá para redimir a logicalidade de todos os homens”116
,
confirmada pelos factos, apesar de a opinião corrente afirmar que os homens só agem
tendo em vista o seu próprio prazer e a satisfação imediata. Num único parágrafo,
Peirce põe em causa a tendência moderna para descrever a racionalidade como um
cálculo de utilidades ao serviço da preservação ou satisfação individual,
acrescentando assim à recusa da soberania epistemológica do sujeito uma descrição
moral da lógica como necessariamente altruista, ou, se quisermos, denuncia o
caracter ilógico de uma concepção “egoísta” ou individualista do conhecimento. Só
sendo anti-utilitarista se preserva a “logicalidade”. A marca da “logicalidade” de um
indivíduo é a sua capacidade para ultrapassar o ponto de vista individual,
reconhecendo “a necessidade lógica de uma completa identificação dos interesses
próprios de cada um com os interesses da comunidade”117
, tendo assim uma base
para a validade das suas inferências cujo sinal maior é que “assim, considera como
válidas as suas próprias inferências apenas na medida em que elas seriam aceites por
aquele homem”118
. O que pode ser interpretado como a aplicação ao domínio da
lógica da exigência de universalidade representada pelo imperativo categórico
kantiano no domínio da prática. Encontramos a razão pura e a razão prática kantianas
unidas 119
numa concepção da lógica que exige como pressuposto da sua
116
C.P. 5.355. 117
C.P. 5.356. 118
C.P. 5.356. 119
cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,
University of Chicago Press, 1953, p.62.
55
racionalidade a esperança (hope) do sucesso, o que significa aqui a esperança num
estado ideal de completa informação na posse de uma comunidade ideal de
investigação. Isto é, para além de uma evidência da posição francamente optimista de
Peirce, a afirmação de que a condição última de possibilidade do conhecimento, dado
o seu carácter discursivo, inferencial e falível, não é estritamente racional, é um
sentimento - é uma atitude moral, o que é reconhecido pelo próprio Peirce em
C.P.5.357. De algum modo, a concepção de identidade pessoal contida nestes
primeiros textos, como algo móvel e construído ao longo do tempo, capaz de
aperfeiçoamento por interacção com os outros e o mundo exterior, exige um ponto de
vista teleológico que se manifesta na noção de auto-controlo deliberado - e é nisto
que consiste usar um método - que por sua vez exige um ideal, uma expectativa
motivadora e um padrão.
Parece seguro dizer-se que o pensamento subsequente de Peirce será dedicado a
abrir esta porta, a desenvolver a “teoria social da lógica”120
que, no final deste texto,
é, apenas, esboçada. Mais uma vez, o tema da comunidade ressurge como condição
de possibilidade da validade das inferências e do aumento do conhecimento, e
sustentando as noções de realidade e verdade. E, ainda contra o cartesianismo, a
certeza absoluta num fundamento inicial é substituida por um outro “sentimento”
exigido pela lógica: “o único pressuposto sobre o qual podemos agir racionalmente é
a esperança no sucesso.”121
Tal como no plano teórico a racionalidade de um
procedimento depende da sua orientação para um estado futuro, ou seja, a
120
Esta expressão não é do próprio Peirce, mas sim dos editores dos Collected Papers, que a
usam para intitular uma das secções em que dividiram este texto. 121
C.P. 5.357; W 2.272.
56
justificação encontra-se na finalidade e não no fundamento, também no plano prático
a motivação tem a ver com a consideração daquilo que transcende o sujeito e a sua
situação actual, é uma finalidade e não uma causa eficiente.
3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE
BERKELEY” (C.P.8.7-38)122
Segundo Max Fisch123
, neste texto Peirce dá o seu segundo passo decisivo em
direcção ao realismo. A necessidade de afirmar o realismo e que a ciência é realista
está, evidentemente, ligada à questão da objectividade: afinal, uma teoria da
cognição hipotética, falibilista e semiótica como a apresentada, sem a base intuitiva
do dado como fundamento, requer uma teoria da realidade que a afaste do
convencionalismo, do subjectivismo ou do idealismo absoluto. A afirmação segundo
a qual o real é o resultado do processo de conhecimento não deve confundir-se com
aquela segundo a qual a realidade é uma ficção subjectiva, social ou histórica.
O pretexto deste artigo é uma edição das obras completas de Berkeley e nele
Peirce oferece-nos uma apreciação de todo um modo de fazer filosofia que é o da
tradição britânica, com a sua tendência para o nominalismo. Esta tradição, empirista,
122
Publicado na North American Review em 1871, com o título original “Fraser’s Edition of
the Works of George Berkeley”. Cf. Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce -
Philosopher, Semiotician and Ecstatic Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers,
inc., 1993. p.33. 123
Fisch,M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,
1986.
57
e a sua psicologia associacionista, era já visada nos textos anti-cartesianos de 1868. E
também já nestes a teoria da cognição era a base para uma teoria da realidade que,
fundamentalmente, recusava a existência de uma realidade incognoscível e afirmava
que o real é o objecto de uma opinião verdadeira resultando no longo prazo da
investigação levada a cabo por uma comunidade “destinada” a encontrá-la. Neste
texto, Peirce traça a linhagem da filosofia empirista britânica situando na metafísica
medieval, principalmente na controvérsia em torno dos universais, a origem daquilo
a que chama as “fortes tendências nominalistas”124
dos filósofos britânicos. A
controvérsia consiste, segundo Peirce, na seguinte questão : Os universais são reais?.
Para compreender que problema está aqui em causa, há que esclarecer o que se
entende por “real”. O critério que permite distinguir “ficções” ou “sonhos” de
“realidades” é o seguinte : “Os primeiros são aqueles que existem apenas na medida
em que tu ou eu ou qualquer homem os imagina; as últimas são aquelas que têm uma
existência independente da tua mente ou da de qualquer número de pessoas. O real é
aquilo que não é o que quer que aconteça pensarmos que seja, mas que não é
afectado por aquilo que possamos pensar acerca dele.”125
Obtém-se assim a seguinte
descrição: “A questão é, então, se homem, cavalo e outras designações de classes
naturais, correspondem a algo que todos os homens, ou cavalos, têm realmente em
comum, independentemente do nosso pensamento, ou se estas classes são
124
C.P.8.10 125
“The former are those which exist only inasmuch as you or I or some man imagines
them; the latter are those which have an existence independent of your mind or that of any
number of persons. The real is that which is not whatever we happen to think it, but is
unaffected by what we may think of it.” (C.P.8.12). Já nos textos de 1868 é esta a concepção
de real assumida por Peirce.
58
constituidas simplesmente com base numa semelhança no modo como as nossas
mentes são afectadas pelos objectos individuais que não têm neles mesmos qualquer
semelhança ou relação.”126
Ora, esta definição de realidade como “algo exterior” e,
consequentemente, a questão dos universais, admite dois “pontos de vista muito
distantes”, o nominalista, para o qual o real é uma coisa fora da mente que influencia
directamente a sensação e através desta o pensamento; e o realista, para o qual o real
é o objecto da opinião final, eliminados gradualmente os erros, arbitrariedades,
acidentes, limitações de uma investigação individual, empírica, dados a informação e
o tempo suficiente, tendendo a opinião humana universalmente no longo prazo para
uma forma definida que é a verdade. Como consequência desta concepção de
realidade, temos a recusa de coisas em si, não relativas “à concepção que a mente
tem delas”127
, e incognoscíveis, de que as sensações seriam efeitos; e a concepção
das aparências dos sentidos como sinais das realidades concebidas como “númenos,
ou concepções inteligíveis que são os produtos finais da acção mental desencadeada
pela sensação”128
, atestando o carácter lógico, inferencial da acção mental tal como
tinha sido descrito nos textos de 1868 em oposição ao intuicionismo cartesiano. A
realidade, enquanto objecto da “opinião verdadeira”, é o resultado de uma
investigação em relação à qual “a matéria da sensação é completamente acidental”129
.
126
“The question, therefore, is whether man, horse, and other names of natural classes,
correspond with anything which all men, or all horses, really have in common, independent
of our thought, or whether these classes are constituted simply by a likeness in the way in
which our minds are affected by individual objects which have in themselves no
resemblance or relationship whatsoever.” (C.P.8.12). 127
C.P.8.13. 128
C.P.8.13. 129
C.P.8.13.
59
A afecção sensorial propriamente dita não é relevante no que respeita ao conteúdo
cognitivo da experiência, à informação a tratar logicamente, sendo que outras mentes
com aparelhos sensoriais completamente distintos dos humanos participariam
também, segundo Peirce, no “consentimento católico que constitui a verdade”130
.
Uma outra consequência é que, segundo Peirce, esta teoria da realidade favorece
a crença em realidades externas, isto se entendermos por “externo” não o em-si
absolutamente estranho à mente e assim incognoscível, mas “aquilo que é
independente do fenómeno que está imediatamente presente, ou seja, de como
podemos pensar ou sentir.”131
. Isto impede, desde logo, que a insistência no carácter
comunitário da investigação e na comunidade ideal como “lugar” onde a opinião
verdadeira será finalmente alcançada e a realidade conhecida, seja entendida como
uma opção por uma teoria da verdade como consenso com implicações precisamente
nominalistas ou convencionalistas, como a única forma de verdade disponível dado o
carácter em última análise incognoscível da realidade vista como um em si. A
verdade como consenso funciona em Peirce porque se baseia numa teoria da verdade
como correspondência: há uma convergência entre investigadores porque o
conhecimento se aproxima cada vez mais do seu objecto.
Esta teoria, que identifica então o real com o objecto de uma opinião verdadeira,
é realista no sentido em que, enquanto juízo, a opinião verdadeira contém
necessariamente concepções gerais: “consequentemente, uma coisa geral é tão real
como uma coisa concreta.”132
Vejamos como o próprio Peirce descreve a sua teoria
130
C.P.8.13. 131
C.P.8.13. 132
C.P.8.14.
60
da realidade: “Esta teoria implica um fenomenalismo. Mas é o fenomenalismo de
Kant e não o de Hume. De facto, aquilo a que Kant chama o seu passo copernicano
consistiu precisamente na passagem da perspectiva noinalista para a perspectiva
realista acerca da realidade. A essência da sua filosofia estava em considerar o
objecto real como sendo determinado pela mente. Isto não é mais do que considerar
cada concepção e intuição que necessariamente entra na experiência de um objecto, e
que não seja transitória e acidental, como tendo validade objectiva. Em suma,
consistiu em considerar a realidade como o produto normal da acção mental e não
como a causa incognoscível dela.”133
.
O texto termina com uma breve consideração acerca da importância do debate
entre nominalista e realistas para a ciência e filosofia contemporâneas. Ou ainda, são
enunciadas as consequências éticas de uma concepção da ciência e da filosofia em
espírito nominalista. Peirce associa ao nominalismo certas doutrinas “com uma
tendência moral degradante (...) , sensacionismo, fenomenalismo, individualismo e
materialismo”, e é preciso enfrentar a questão da aceptabilidade destas consequências
dado que a ciência procura a verdade, e que o que é verdadeiro “é bom acreditar e
mau rejeitar”: como perceber que seja a própria ciência a sugerir aquelas posições?
133
“This theory involves a phenomenalism. But it is the phenomenalism of Kant, and not
that of Hume. Indeed, what Kant called his Copernican step was precisely the passage from
the nominalistic to the realistic view of reality. It was the essence of his philosophy to
regard the real object as determined by the mind. That was nothing else than to consider
every conception and intuition which enters necessarily into the experience of an object, and
which is not transitory and accidental, as having objective validity. In short, it was to regard
the reality as the normal product of mental action, and not as the incognizable cause of it.”
(C.P.8.15). Esta identificação da teoria da realidade de Peirce com o fenomenalismo de Kant
deve ser completada com a recusa da distinção entre fenómeno e númeno. Cf. C.P.8.13,
onde Peirce diz explicitamente que a sua teoria da realidade é “instantly fatal to the idea of a
thing in itself – a thing existing independent of all relation to the mind’s conception of it.”
61
A convicção de Peirce é que a ciência “tal como existe é certamente muito menos
nominalista do que os nominalistas pensam que ela é”, tal como os homens são
menos guiados pelo interesse egoísta do que parece. A demonstração do carácter
realista da ciência exigiria investigação árdua em matemática: “a questão do realismo
e do nominalismo tem as suas raízes nas especificidades técnicas da lógica.” Mas as
suas implicações ultrapassam o domínio da pura investigação, são de ordem “vital”,
ética: “A questão de saber se o genus homo tem alguma existência para além dos
indivíduos, é a questão de saber se existe algo com mais dignidade, valor e
importância do que a felicidade individual, as aspirações individuais e a vida
individual. Se os homens têm ou não alguma coisa em comum, de modo a que a
comunidade possa ser considerada um fim em si mesma, e, se for esse o caso, qual é
o valor relativo dos dois factores, é a questão prática mais fundamental no que
respeita a qualquer instituição pública cuja constituição está em nosso poder
influenciar.”134
É uma questão que diz respeito ou afecta a relação entre o indivíduo e
a comunidade e entre indivíduos.
4.CONCLUSÃO
134
“The question whether the genus homo has any existence except as individuals, is the
question whether there is anything of any more dignity, worth, and importance than
individual happiness, individual aspirations, and individual life. Whether men really have
anything in common, so that the community is to be considered as an end in itself, and if so,
what the relative value of the two factors is, is the most fundamental practical question in
regard to every public institution the constitution of which we have it in our power to
influence.” (C.P.8.38).
62
A redefinição da noção de realidade e de actividade mental levada a cabo nos
textos até aqui apresentados conduz à exigência de uma comunidade de
investigadores na medida em que repousa na assunção fundamental segundo a qual o
conhecimento, essa relação entre a mente e a realidade, envolve necessariamente
tempo e, consequentemente, recebe uma das características da temporalidade, o seu
carácter assimétrico, e é assim capaz de crescimento. O terceiro artigo de 1868
identifica especificamente a base da validade das leis da lógica com a possibilidade
indefinida desse crescimento, e a noção de comunidade está assim ligada à
necessidade de um inquérito que se prolonga indefinidamente, dado que a
temporalidade do sujeito individual não coincide com essa necessidade. A
comunidade parece então surgir, em primeiro lugar, como um agregado sucessivo de
mentes, suprindo as exigências temporais do inquérito: é necessária dada a finitude
dos indivíduos. Mas, e este é um aspecto decisivo, a relevância epistemológica da
noção de comunidade ultrapassa esta circunstância empírica, esta desproporção entre
o indivíduo e a espécie, e não se esgota num problema quantitativo. Dito de outro
modo, a comunidade não é simplesmente uma versão alargada do sujeito
transcendental; antes a própria subjectividade gnoseológica é concebida à imagem de
uma comunidade: a verdade de uma qualquer teoria não se funda nunca numa certeza
individual, ainda que o indivíduo fosse imortal e capaz de levar a cabo
indefinidamente a investigação, mas na possibilidade de confirmação partilhada, na
avaliação pública dessa mesma teoria, na sua pertinência explicativa face à
experiência representada pela possiblidade de convergência entre todos aqueles que
63
investigam135
. A noção de comunidade é, assim, tanto mais importante quanto se
mostrou a implausibilidade da intuição sem se cair num cepticismo radical: nela está
contido o optimismo gnoseológico de Peirce, que prescinde da postura
fundacionalista e adopta uma atitude falibilista. A convergência serve, então, para
dissipar a suspeita de uma distorção da realidade como resultado da aplicação de um
processo inferencial cujo contacto com essa mesma realidade não esteja garantido
absolutamente, por uma intuição das premissas ou pelo efeito de uma harmonia pré-
estabelecida postulada. O facto de a investigação ser um assunto comunitário
permite, pelo menos, superar o perigo das ilusões individuais e, ainda que subsista a
possibilidade de uma ilusão sistemática afectando toda a espécie humana, então a
definição de realidade avançada por Peirce resolve esta dificuldade: se todos vierem a
concordar com esta ilusão como sendo aquilo que querem dizer quando dizem
“realidade”, então é isto que se deve entender como sendo a realidade, o objecto da
opinião sustentada pela comunidade dadas suficientes condições de investigação,
falível mas aperfeiçoável no longo prazo136
. Também de assinalar é a posição de
Peirce face ao indivíduo no processo de conhecimento. Ele é identificado como o
lugar do erro e da ignorância, mas uma vez que o pensamento é considerado como
tendo um carácter autocorrectivo, essa negatividade associada ao indivíduo é
redimível. O erro não é, aliás, para Peirce, um absoluto, como terá ficado
estabelecido no tratamento dado à questão das falácias.
135
Esta função da noção de comunidade será aliás desenvolvida e esclarecida a propósito da
descrição dos diferentes modos de fixação de crença nos textos de 1878, e que serão objecto
do próximo capítulo deste trabalho. 136
Cf. C.P.5.352.
64
Entretanto, Peirce, como sublinha Esposito137
, começa a procurar uma
garantia mais forte de que a comunidade esteja em contacto com a realidade, ou seja,
de que o empreendimento cognitivo seja plausível apesar da sua dependência em
relação a uma temporalidade indefinida e da sua garantia apenas estatística. É
precisamente a este propósito que Peirce irá integrar na sua epistemologia uma
perspectiva biologista do conhecimento, contendo a noção de evolução, o que faz
tanto mais sentido quanto nestes primeiros textos o pensamento foi descrito como
uma forma de acção, um comportamento, tendo como característica nuclear o seu
carácter temporal. Por outro lado, a perspectiva evolucionista permitirá avançar com
uma concepção teleológica da comunidade de investigação, fortalecendo-se a
esperança no empreendimento cognitivo com a assunção de uma continuidade entre a
vida orgânica e a vida mental cujo resultado será uma naturalização não reducionista
das normas, ou a explicação da emergência da dimensão normativa da realidade.
137
Esposito, J.L., Evolutionary Metaphysics, Athens Ohio, Ohio University Press, 1980,
p.120-121.
65
CAPÍTULO II - A TEORIA DO INQUÉRITO.
1.INTRODUÇÃO
Nos anos de 1877 e 1878, Peirce publica na revista Popular Science Monthly um
conjunto de artigos sob o titulo genérico “Illustrations of the Logic of Science”,
“Ilustrações da Lógica da Ciência”,onde se costumam localizar as primeiras
afirmações expressas do seu pragmatismo138
. Ainda que considerado por autores
como Richard Rorty como continuando ligado a uma tradição representacionalista,
que privilegia a epistemologia e pretende “encontrar sentidos absolutos para palavras
como realidade e verdade”139
, Peirce é geralmente reconhecido como um dos
fundadores desta corrente e ter-lhe-á até dado o nome, inspirando-se na linguagem
138
Terá sido William James o primeiro a utilizar este termo publicamente, numa conferência
intitulada “Philosophical Conceptions and Practical Results”, dada na Universidade da
Califórnia em 1898, onde atribui a Peirce a sua autoria. O levantamento e a investigação
dos textos disponíveis de Peirce da época referida por James como sendo a da fundação do
pragmatismo de facto não revelam o uso do termo seja onde for. E não de todo no texto que
James explicitamente indica, “How to make our ideas clear” de 1878. Parece ser só a partir
da referência de James que Peirce, até talvez por questões de visibilidade pública e como
oportunidade para reequilibrar as suas finanças, começa a utilizar o termo, esclarecendo-o,
explorando e afinando as suas consequências.
139
Cf. Murphy, J., O Pragmatismo – de Peirce a Davidson, Porto, Asa, 1993,p.10. Para
Rorty, os pragmatistas mais genuínos no âmbito do pragmatismo clássico são William
James, amigo de Peirce, e John Dewey, que foi seu aluno.
66
kantiana140
. Tê-lo-ia utilizado nas sessões do Clube Metafísico141
em 1871 ou 1872,
num escrito entretanto perdido142
. Para Peirce, este termo não tem o carácter
psicológico que parece ter para James, nem refere um critério de eficácia: trata-se
antes de um método para esclarecer os conceitos nos quais a experiência é
organizada e compreendida. Contra o empirismo radical de James, a pura
experiência, Peirce irá apresentar o pragmatismo como uma máxima lógica, uma
parte fundamental da sua análise da lógica da descoberta. E, libertando-a de uma
aplicação empírica, torna-a normativa.
A teoria do inquérito apresentada nestes textos preserva os resultados atingidos
nos textos de 1868 : o anti-intuicionismo, a negação da introspecção e do
incognoscível, a teoria do pensamento-signo, a teoria da verdade e da realidade são
integrados numa descrição da dinâmica concreta da investigação como passagem da
dúvida à crença. Tendo sido, pois, estabelecida a possibilidade dos juízos sintéticos,
140
cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993,
p.177 141
O Clube Metafísico era uma associação formada por Peirce e um conjunto de jovens
intelectuais e investigadores, entre os quais também William James, que se juntavam com
alguma regularidade para apresentar comunicações dando conta das suas leituras e estudos
em diversos domínios, do Direito à Biologia, passando pela Psicologia e pela Lógica. E, a
propósito, note-se que, paradoxalmente, é num clube metafísico que nasce o pragmatismo,
hoje para nós a posição anti-metafísica por excelência. Esta perplexidade já fora, aliás,
experimentada pelos alunos de Peirce, como Christine Ladd-Franklin : “In fact, so devious
and unpredictable was his course that he once, to the delight of his students, proposed at the
end of his lecture, that we should form (for greater freedom of discussion) a metaphysical
club, though he had begun the lecture by defining metaphysics to be the ‘science of unclear
thinking”. Brent, J., Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University
Press, 1993, pp.128-129. 142
Entretanto, perante divergências com o seu amigo James quanto ao entendimento que
cada um deles faz do termo e da entidade conceptual que lhe terá dado origem, a famosa
“máxima pragmática”, Peirce vê-se obrigado a inventar um novo termo, pragmaticismo,
segundo ele “suficientemente feio para estar a salvo de raptores” (C.P.5.414). James, por
exemplo, faz redundar o pragmatismo e a máxima pragmática num individualismo de cariz
67
inporta agora determinar o modo mais adequado para que a actividade cognitiva
possa atingir a sua finalidade : que método assegura que no longo prazo as
inferências dos humanos se aproximam da verdade e permitem o conhecimento da
realidade? Qual a melhor forma para pôr em funcionamento a actividade mental dada
a sua finalidade cognitiva? Ao mesmo tempo, esta abordagem dos métodos como
acções segundo critérios permite reforçar a pertinência do conceito de comunidade.
É reconhecido o tom abertamente biologista destes textos, com a sua teoria do
inquérito como uma luta para superar a insatisfação da dúvida e atingir a estabilidade
da crença. Mas este facto não irá conduzir a uma naturalização reducionista da
lógica, já que, pelo contrário, se irá estabelecer, ou reafirmar, a dependência da lógica
em relação à ética, e não à psicologia. Assim, se é possível utilizar o termo
naturalização em relação a Peirce, este entender-se-á específicamente como a
tentativa de estabelecer continuidades não reducionistas entre o plano dos factos e o
plano das normas, para o que será de extrema importância a noção de evolução. É
neste sentido que se pode compreender a máxima pragmática, como afirmação desse
carácter normativo da epistemologia de Peirce, na medida em que ela será
apresentada como uma regra lógica e não como uma estratégia de redução do sentido
a uma enunciação factual. A relação entre lógica e ética sairá, finalmente, reforçada
da posição anti-individualista desenvolvida no terceiro dos textos aqui em questão,
onde ainda se consolida aquilo que podemos já começar a designar como o
sentimentalismo típico de Peirce, que envolve simultaneamente uma concepção
psicologista - e para Peirce o conhecimento não pode fundar-se numa crença que não tem
outra base para além da resolução e convicção de uma mente individual.
68
evolucionista e uma concepção normativa tanto de uma como de outra destas
disciplinas.
2. A DIMENSÃO NORMATIVA DO MÉTODO CIENTÍFICO
No primeiro dos dois textos de 1878 , “A Fixação da Crença”(C.P. 5.358-
387)143
, encontramos uma das mais celebrizadas afirmações de Peirce, aquela
segundo a qual “cada passo importante em ciência é uma lição de lógica”144
. Isto é o
mesmo que dizer que a ciência, enquanto projecto de investigação da espécie
humana, ou na sua história, evolui ou mede o seu sucesso na medida em que domina,
aperfeiçoa, toma consciência da sua vertente metodológica, ou do modo como
realiza, válida e eficazmente, inferências explicativas da experiência, deliberadas e
auto-controladas. A questão da lógica e do método - e não o fundamento -, é ,assim,
o ponto principal da epistemologia de Peirce, e as razões para isto encontram-se
desde logo nas conclusões do ataque à epistemologia cartesiana e empirista levado a
cabo nos textos de 1868, e na teoria da realidade desenvolvida no texto de 1871 . Ao
mesmo tempo que a correcção das inferências ou o método é uma questão central,
não ficamos, segundo Peirce, presos numa restrição de tipo transcendental, numa
oposição entre aquilo que é conhecimento para nós e o que seria o conhecimento das
coisas tal como são independentemente do nosso conhecimento delas. Isto é, o
143
O título original deste artigo é “The Fixation of Belief”. 144
C.P. 5.363.
69
método não nos afasta, como um filtro, da realidade em si, antes o método é o que
nos permitirá eventualmente atingir o real, enquanto a correcção do raciocínio não
depende de qualquer sentimento subjectivo de necessidade, mas do facto de que, de
premissas verdadeiras, decorre uma conclusão verdadeira: “a questão da validade é
smplesmente uma questão de facto e não de pensamento (...) a conclusão verdadeira
continuaria a ser verdadeira ainda que não tivéssemos qualquer impulso para aceitá-
la; e a conclusão falsa continuaria a ser falsa, embora não fossemos capaze de resistir
à tendência para acreditar nela.”145
. A lógica não se limita, pois, a descrever o modo
como a mente funciona, mas antes tem como objectivo apresentar as regras segundo
as quais a mente deve funcionar para lá das tendências subjectivas: é uma forma de
auto-controle, é normativa. Assim, passamos daquilo que já sabemos para aquilo que
ainda não sabemos pela acção de um “hábito da mente” que pode ser descrito como
um princípio condutor da inferência146
, e uma recensão dos mais importantes destes
princípios é inestimável quando se trata, não de resolver questões práticas ou
rotineiras, mas do aumento justificado do conhecimento, ou da passagem de um
estado de dúvida para um estado de crença.
As considerações de Peirce acerca da dúvida como momento importante da
investigação começam já nos textos de 1868 e são um dos pontos que o afastam da
epistemologia cartesiana. Aqui, o binómio dúvida / crença vai receber uma
interpretação biologista que, apesar de usos nominalistas como o de William James,
conduzindo à satisfação como critério de verdade e validade, marca a integração do
145
“(…)the question of validity is purely one of fact and not of thinking (...) the true
conclusion would remain true if we had no impulse to accept it; and the false one would
remain false, though we could not resist the tendency to believe in it.” (C.P. 5.365)
70
evolucionismo na epistemologia e esclarece a posição simultaneamente falibilista e
realista de Peirce. A crença distingue-se da dúvida pela sensação que está associada a
cada uma delas; por uma “diferença prática” que consiste na presença de um hábito
que determina as nossas acções no caso da crença e sua ausência no caso da
dúvida147
; e, finalmente, por uma diferença nos “efeitos positivos” sobre nós, ou no
modo como nos dispõe em relação ao inquérito, como instala ou não a necessidade
de procurar explicações e aumentar o conhecimento disponível: a crença é um estado
de paz, de calma, em que os hábitos guiam a acção, enquanto que a dúvida é um
estado “desconfortável e insatisfeito”148
do qual queremos sair para reencontrar o
conforto da crença. O inquérito é, precisamente, “uma luta para atingir um estado de
crença” causada pela “irritação da dúvida”149
e o seu único fim é “estabilizar a
opinião”150
. A actividade cognitiva é, assim, representada como uma actividade
adaptativa, e o melhor método para a levar a cabo será aquele que, em competição
com outros, melhor promover a adaptação do investigador ao meio. O índice dessa
adaptação é a estabilidade das crenças. Numa descrição deste tipo, então, afirmar que
o objectivo é, não simplesmente atingir a crença mas a crença verdadeira, torna-se
desnecessário: pensamos que cada uma das nossas crenças é verdadeira, ou não faria
sequer sentido dizer que temos uma crença151
. Uma das vantagens desta descrição de
146
C.P.5.367. 147
E aqui encontramos a definição de crença de Alexander Bain, aprendida no Clube
Metafísico. Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge,
Hackett, 1993, pp160-163 148
C.P. 5.370-373. 149
C.P. 5.374. 150
C.P.5.375. 151
As dificuldades na interpretação desta passagem para uma teoria da verdade têm em
grande parte a ver com a possibilidade de se admitir aqui uma interpretação jamesiana do
71
inquérito é, segundo Peirce, que ela afasta “várias concepções vagas e erróneas de
prova”152
. Desde logo, evita as ilusões e a esterilidade associadas às “dúvidas de
papel”, à dúvida metódica de tipo cartesiano, segundo a qual é preciso começar por
duvidar de tudo: este é um tema já referido em QFM e cujo efeito mais perverso é
conservar, e até fortalecer, o que se pretendeu pôr em dúvida. Por outro lado, retira à
filosofia o seu compromisso fundacionalista e a subserviência ao modelo da dedução,
uma vez que não se exige, o que seria fútil, começar com “proposições
absolutamente indubitáveis” mas apenas com “proposições livres de toda a dúvida
de facto”153
. Finalmente, é o próprio sentido da investigação, que assenta na
possibilidade de aumentar o conhecimento e que é a causa movente da acção mental,
que se identifica com essa passagem de uma dúvida real a uma crença estável.
A questão fundamental do inquérito é, então, como conduzi-lo, como passar da
dúvida à crença, e como fazê-lo de modo a que a crença atingida seja o mais estável
possível. O resto do texto dedicar-se-á, pois, a recensear diferentes métodos de
“fixação de crença”, e a determinar as suas vantagens e desvantagens no que diz
respeito à finalidade do inquérito154
.
pragmatismo, onde a verdade é uma questão de satisfação individual. Mas o modo como o
primeiro método de fixação de crença, onde precisamente se põe em causa a suficiência da
satisfação subjectiva, é avaliado deve desde logo impedir esta interpretação. Antes, parece-
nos mais correcto interpretar esta passagem como a afirmação da finalidade, ainda que
apenas ilusoria ou insatisfatoriamente atingida, de qualquer estado cognitivo e de qualquer
crença, que parece ser exactamente a verdade. Mais uma vez, trata-se de chamar a atenção
para a descrição do conhecimento como uma actividade finalizada, logo necessariamente
contendo dimensões normativas. E trata-se também já de uma aplicação da máxima
pragmática ao esclarecimento de conceitos. Para um discussão desta questão, cf. Hookway,
C., Peirce, London, Routledge, 1985 p.44 152
C.P. 5.375. 153
C.P. 5.376. 154
Quanto ao critério de escolha dos métodos, Murphey considera que não existe nenhum e
a lista é arbirária ou casual: cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,
72
O primeiro dos métodos apresentados, o método da tenacidade, consiste numa
fidelidade absoluta às crenças que se possui, evitando qualquer perturbação: “Quando
uma avestruz enterra a sua cabeça na areia à aproximação do perigo, é bem provável
que escolha a solução mais feliz. Esconde o perigo e diz então calmamente que não
há perigo; e, se se sente perfeitamente segura de que não há qualquer perigo, porque
há-de levantar a sua cabeça para ver?”155
. Este é um método estritamente individual e
que, do ponto de vista da simples satisfação, é altamente vantajoso. Mas as suas
desvantagens são suficientemente fortes para o afastar como o melhor candidato à
estabilização eficaz de crenças. Desde logo, “o impulso social está contra ele.”156
.
Este seria um método para solipsistas, mas a tenacidade individual encontrará
necessariamente discordância no pensamento e sentimento dos outros: este “impulso
social”157
, como tendência para admitir a possibilidade de as crenças dos outros
serem tão boas ou melhores do que as próprias, instala uma dúvida que atinge não
apenas a crença e o seu conteúdo mas o próprio método da sua fixação, na medida
em que põe o problema de uma estabilidade que não seja estritamente individual mas
que permita afastar diferenças e estabelecer concordância. O problema torna-se no de
Cambridge, Hackett, 1993, p164; já Hookway defende que cada um dos métodos significa
um aspecto da hipótese da realidade: cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985,
p.46; e Thompson relaciona-o com as quatro incapacidades identificadas nos textos de 1868:
cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,
University of Chicago Press, 1953, pp.75-76. 155
“When an ostrich buries its head in the sand as danger approaches, it very likely takes the
happiest course. It hides the danger, and then calmly says there is no danger; and, if it feels
perfectly sure there is none, why should it raise its head to see?” (C.P.5.377) 156
C.P.5.378. 157
“This idea that there are non-rational social forces which impel us to rationality was a
central idea in the social philosophy of the Scottish moralists of the eighteenth century,
above all of Hume and Smith. The epistemological aplication of this idea (…) was first
made by Peirce(…)” Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University
Press, 1981, p.33.
73
fixar a crença “não apenas no indivíduo, mas na comunidade.”158
. E para a questão
particular da validade, passar de premissas verdadeiras para conclusões verdadeiras
ou aumentar o conhecimento, esta exigência de um método que abranja todos e não
que funcione apenas para um indivíduo, é crucial. Talvez faça sentido, então, reforçar
o pólo da comunidade e instituir um modo oposto ao anterior: em vez da tenacidade
individual, a autoridade pública. O método da autoridade159
tem vantagens em
relação ao método da tenacidade porque, desde logo, proporciona um sucesso muito
maior e grandioso, enquanto realização colectiva. Mas é um método que, por ser
excessivamente colectivista, reduz os indivíduos a uma condição de escravos
intelectuais160
. E, mais ainda, também ele não satisfaz plenamente a exigência do
inquérito, que é a fixação estável de crenças. Há sempre a possibilidade de alguns
indivíduos conseguirem elevar-se acima dessa condição de escravidão intelectual
promovida pelo método da autoridade, e provocar fendas suficientes no grande
edifício colectivo para mostrar a fragilidade das suas fundações161
, permitindo que a
dúvida se instale. Assim, nem o voluntarismo nem a autoridade arbitrária funcionam
e também neste caso a dúvida acaba por afectar o próprio método.
Há, no entanto, um terceiro método que parece superar as desvantagens dos
anteriores, na medida em que usa o critério daquilo que é agradável à razão, e não a
pura autoridade, sem se circunscrever à razão individual mas admitindo que os
158
“C.P.5.378. Mesmo nesta versão empírica, repara-se já na importância da dimensão
comunitária ou intersubjectiva na validação ou invalidação das opiniões individuais; este é
um tema que retoma a explicação genética do eu apresentada nos textos de 1868. 159
C.P.5.380 160
C.P.5.380 161
cf. Também C.P. 5.386 onde, a propósito das vantagens do método de autoridade, há
considerações acerca das massas e do conformisimo.
74
homens desenvolvam gradualmente as suas crenças “conversando em conjunto e
considerando as questões em diferentes perspectivas”162
. A este Peirce chama
método a priori e diz que, ainda que superior aos anteriores, na medida em que
impõe constrangimentos normativos à fixação de crenças como a coerência ou a
consistência, torna o inquérito semelhante ao desenvolvimento do gosto. E, como tal,
falha, como os outros falharam, devido ao seu inevitável relativismo. Chegará um
momento de dúvida acerca da determinação das crenças alcançadas por este método :
“Para satisfazer as nossas dúvidas, então, é necessário encontrar um método através
do qual as nossas crenças possam ser determinadas não por algo humano, mas antes
por uma permanência externa – por algo sobre o qual o nosso pensamento não tenha
qualquer efeito.”163
O que significa dizer que o critério intersubjectivo não é
suficiente, dado que ele arrisca revestir um carácter meramente contingente,
convencional, nominalista. E, tal como os outros, não apresenta garantias de
estabilidade no longo prazo. A insuficiência destes três primeiros métodos terá a ver
com aquilo que é, afinal, comum a todos eles: a relevância dada, na relação
cognitiva, ao pólo subjectivo, seja individual, seja colectivamente. E aquilo que,
precisamente, é distintivo do método científico, é um apelo ao realismo: a garantia da
estabilidade de uma crença está na sua coincidência com uma realidade externa
acessível ao conhecimento humano sob a forma de leis, de tal modo que “a conclusão
final de cada homem será a mesma.”164
.
162
C.P.5.382. 163
“To satisfy our doubts, therefore, it is necessary that a method should be found by which
our beliefs may be determined by nothing human, but by some external permanency - by
something upon which our thinking has no effect.” (C.P.5.384) 164
C.P.5.384.
75
A defesa da superioridade do método científico começa, então, com a afirmação
da sua “hipótese fundamental”: “Há Coisas Reais, cujas características são totalmente
independentes das nossas opiniões acerca delas; esses Reais afectam os nossos
sentidos segundo leis regulares e, embora as nossas sensações sejam tão diferentes
quanto as nossas relações com os objectos, tirando partido das leis da percepção
podemos determinar através do raciocínio como as coisas são real e verdadeiramente;
e qualquer homem, se tiver suficiente experiência e se raciocinar suficientemente
acerca dela, será conduzido à única conclusão Verdadeira. A nova concepção aqui
envolvida é a de Realidade.”165
Esta é uma hipótese que permite dar conta de um
constrangimento externo sobre as nossas crenças que as torna resistentes à dúvida
instalada pelo “impulso social” e manifesta no inevitável relativismo e impasse a que
conduzem os três primeiros métodos. O facto de Peirce começar a sua defesa do
método da ciência com uma hipótese é significativo: ele não poderia começar com
afirmações absolutas ou fundamentos últimos dada a sua rejeição da possibilidade
destes nos textos de 1868 que se mantém na sua descrição do inquérito como
passagem da dúvida à crença. Assim, a hipótese é o ponto de partida provisório e
testável que, segundo Peirce, dá conta do nosso estado cognitivo actual e constitui a
única possibilidade de começar e prosseguir o inquérito, isto é, de superar o impasse
céptico a que as posições fundacionalistas conduzem. Como sugere Anderson, “O
projecto de Peirce não é provar demonstrativamente que o raciocínio sintético é
165
“There are Real Things, whose characters are entirely independent of our opinions about
them; those Reals affect our senses according to regular laws, and, though our sensations are
as different as are our relations to the objects, yet, by taking advantage of the laws of
perception, we can ascertain by reasoning how things really and truly are; and any man, if he
76
válido, mas sim mostrar como poderia funcionar se fosse considerado efectivo”166
. A
resposta que Peirce dá a uma objecção possível de que se apercebe, a da circularidade
implicada no uso de uma ontologia para fundar uma epistemologia – fazer depender a
validade do método científico da hipótese da realidade – é esclarecedora deste
procedimento falibilista, daquilo a que o mesmo Anderson chama uma “abdução
transcendental”167
em curso neste texto. Peirce não opta por identificar um
fundamento, estabelecendo a partir daí uma cadeia dedutiva necessária. Antes
fornece um conjunto de razões, à primeira vista heteróclitas, mas que decorrem
daquilo que insistentemente é afirmado acerca da actividade cognitiva: esta não
começa a partir do zero ou no vazio; é um processo em que, do conhecimento
disponível, passamos para conhecimento novo; e um exame dos factos acerca deste
processo é o que nos permite colocar a própria questão da sua possibilidade e avançar
com uma hipótese explicativa.
Peirce divide a sua resposta em quatro momentos : em primeiro lugar, “se a
investigação não pode ser considerada como capaz de provar que há coisas Reais,
pelo menos não conduz à conclusão contrária.”168
; isto é, o método e a sua hipótese
não se põem necessariamente a si próprios em causa. “Nenhumas dúvidas acerca do
método, então, surgem necessariamente da sua prática, como acontece com todos os
outros.”169
Isto esclarece-se com a segunda razão, que tem a ver com a própria
natureza da dúvida. O sentimento de insatisfação associado a esta é, exactamente,
have sufficient experience and he reason enough about it, will be led to the one True
conclusion. The new conception here involved is that of Reality.” (C.P.5.384). 166
Anderson, D., Strands of System, Indiana, Purdue University Press, 1995, p.109. 167
id., p.112. 168
C.P.5.384.
77
consistente com a hipótese que suporta o método científico, segundo a qual existem
coisas reais. Isto porque a insatisfação que motiva qualquer inquérito , quando uma
crença é desafiada por uma crença concorrente incompatível, contém uma “ vaga
concessão de que há uma coisa individual que a proposição deve representar”170
.
Enquanto que os outros métodos criam um impasse na medida em que a dúvida os
atinge também, esta hipótese e o método sustentado por ela mantêm-se pelo simples
facto de existir dúvida: a hipótese da realidade é mesmo a condição da própria
dúvida. “Esta é, pois, uma hipótese que qualquer mente admite”171
e o impulso social
não a põe em causa. Este ponto é reforçado pela terceira razão avançada: “toda a
gente usa o método científico a propósito de muitas coisas”172
. E, finalmente, uma
razão pragmática, ligada aos efeitos do método, é apresentada: “a investigação
científica teve os mais espantosos triunfos no que diz respeito ao estabelecimento das
opiniões.”173
Estas são, para Peirce, as razões para que não haja qualquer “dúvida
viva” acerca do método ou da hipótese que o sustenta – e sem uma “dúvida viva”
estamos num estado de “indubitabilidade prática” que nos permite prosseguir, até ao
momento em que uma “dúvida viva” se instale.
Para além desta primeira superioridade, a sua isenção em relação à dúvida, o
método científico distingue-se ainda por ser o único com carácter normativo : “este é
o único dos quatro métodos que fornece uma distinção entre o certo e o errado”174
e é
assim o único que leva a sério a questão lógica, a questão da validade, e para o qual o
169
C.P.5.384. 170
C.P.5.384. 171
C.P.5.384. 172
C.P.5.384. 173
C.P.5.384.
78
critério não é uma estrita eficácia prática ou a satisfação subjectiva, mas a verdade.
Para o método da tenacidade, tudo é necessário desde que afirmado como tal. O
método da autoridade tem como único critério “aquilo que o Estado pensa”. No
método a priori seguimos as inclinações da razão sem qualquer outro
constrangimento. Já com o método científico as exigências são mais elevadas: “o
teste para determinar se estou realmente a seguir o método não é um apelo imediato
aos meus sentimentos e propósitos, mas, pelo contrário, implica ele próprio a
aplicação do método.”175
Esta irrupção no texto da questão da verdade, depois de ter sido descartada como
trivial, é, no mínimo, desconcertante. Segundo Skagestad176
, estamos perante um
abandono tácito da perspectiva psico-biológica inicialmente introduzida por Peirce,
onde se tratava de seleccionar o método mais eficaz na fixação da crença; assim, “A
Fixação da Crença” conteria simultaneamente “uma história causal, evolucionista
acerca da ascensão e queda dos três métodos pré-científicos, e uma história
normativa acerca da superioridade do método científico”. Ou seja, Peirce não põe já,
a propósito do método científico, a questão da eficácia adaptativa; antes baseia a sua
superioridade na capacidade que este método tem de corrigir as suas próprias
conclusões aproximando-nos assim gradualmente da verdade. Esta surge já não como
o equivalente de uma convicção psicológica, sendo por isso fútil distingui-la do
conceito de crença, mas como um ideal normativo do inquérito. A perspectiva
174
C.P.5.385. 175
C.P.5.385.
176
Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981 pp35-
41.
79
psicológica dá lugar à normativa a partir do momento em que se exige não
simplesmente estabilidade, mas estabilidade no longo prazo , o que implica, como
diz ainda Skagestad, que “no curto prazo, então, não devemos ter qualquer esperança
numa crença estável e devemos estar prontos a aceitar qualquer quantidade de dúvida
e incertiza como meios para uma estabilidade de longo prazo.” 177
A superioridade
do método científico não é, afinal, adaptativa, mas antes normativa178
. E talvez
aquilo que o texto pretenda esclarecer, mais do que uma eventual radicação
biológica da investigação científica, seja o conteúdo do termo “verdade” : “Ao longo
dos seus escritos, Peirce insiste em que nós não podemos especificar o objectivo ds
nossos inquéritos simplemente como ‘a verdade’, Em 1877, ele chama a atenção para
isto ao afirmar que, com efeito, quando acreditamos em alguma coisa, acreditamos
que é verdadeira. O conselho ‘acredita apenas naquilo que penses ser verdadeiro’ é
vazio; e o conselho ‘acredita apenas no que for verdadeiro’ não pode ser seguido. Ao
especificar o objectivo que controla os nossos inquéritos, Peirce quer uma noção que
seja suficientemente substantiva para fornecer um critério que possa ser usado para
seleccionar crenças ou para seleccionar princípios condutores. A elucidação de
‘realidade’ fornecerá uma noção que cumpre esta condição.”179
177
Id., p.40. 178
cf. Id.,p.41, sobre a insuficiência do evolucionismo darwinista para Peirce. 179
“Throughout his writings, Peirce insists that we cannot specify the aim of our inquiries
simply as ‘the truth’. In 1877 he makes this point by noting, in effect, that whatever we
believe, we believe to be true. The advice ‘believe only what you think to be true’ is empty;
and the advice ‘believe only what is true’ cannot be followed. In specifying the aim that
controls our inquiries, Peirce wants a notion that is sufficiently substantive to provide a
criterion to be used in selecting beliefs or selecting guiding principles. The elucidation of
‘reality’ will provide a notion that meets this condition.” Hookway, C., Peirce,London,
Routledge, 1985, p.44—45.
80
Este “salto normativo” na argumentação de Peirce parece confirmar-se quando,
no final do texto, Peirce retoma uma apreciação dos vários métodos, desta vez
chamando a atenção para as vantagens dos três primeiros sobre o método científico.
O método a priori “distingue-se pelas suas conclusões confortáveis.”180
e manifesta
uma inclinação natural – de alguma forma prolongada nos escritos posteriores de
Peirce sob a forma do Musement181
. O método da autoridade garante que a paz e a
estabilidade social “governarão sempre a massa da humanidade”182
. A sua coerção é
externa e interna e conduz até à sugestão de uma leitura “esotérica” da história das
ideias: “Assim, os maiores benfeitores intelectuais da humanidade nunca se
atreveram, nem se atrevem agora, a enunciar a totalidade do seu pensamento; e assim
uma sombra de dúvida prima facie cai sobre cada proposição considerada essencial
para a segurança da sociedade”183
. Mas, dos três, aquele que Peirce mais admira é o
método da tenacidade, pela sua “força, simplicidade e rectidão”184
, isto é, como
manifestação pura de auto-controlo.
Esta revisão das vantagens de cada método serve para chamar a atenção para a
decisão por cada um deles e o seu critério : a finalidade. Aquilo que se deseja é fixar
crenças; os três métodos não científicos permitem essa fixação, mas apenas no curto
prazo ; para uma fixação mais estável, exige-se não a simples eficácia ou satisfação,
mas que as opiniões coincidam com os factos. Ora, este é o ideal ou finalidade do
180
C.P.5.386. 181
Uma forma de actividade mental abordada principalmente no texto “A Neglected
Argument for the Reality of God” (C.P.6.452-493) 182
C.P.5.386. 183
“Thus the greatest intelectual benefactors of mankind have never dared, and dare not
now, to utter the whole of their thought; and thus a shade of prima facie doubt is cast upon
every proposition which is considered essential to the security of society” (C.P.5.386).
81
método científico, porque é o único que permite este resultado, ou cujo pressuposto
básico é a possibilidade dele. Este pressuposto que é a hipótese realista é
acompanhado de um compromisso moral, visto implicar o abandono do ponto de
vista da satisfação imediata e a adopção do ideal da verdade no longo prazo.
3. A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO.
O texto seguinte desta série, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.
5.388- 410)185
, afronta dois problemas fundamentais e intimamente ligados : o
problema da definição e o da sua pertinência cognitiva. Ou, dito de outro modo,
como ver nas nossas ideias acerca das coisas reflexos de uma actividade de
conhecimento bem orientada. Ou ainda, qual é a lógica da descoberta que nos
permite obter conhecimento. Desde logo, pois, a discussão da definição será instalada
numa teoria do conhecimento ou das condições da operatividade cognitiva e numa
epistemologia, ou discurso acerca das condições de validação de um conhecimento
que se pretende científico, que foram sendo estabelecidas nos textos anteriores
apresentados.
Não é por acaso que a discussão da clareza das nossas ideias começa com uma
referência directa aos critérios cartesianos da clareza e distinção. Descartes, a
filosofia do cogito e a metodologia da dúvida são, também neste texto, o alvo a
abater. O pragmatismo ergue-se fundamentalmente, como já foi visto, contra uma
184
C.P.5.386. 185
O título original deste artigo é “How to Make Our Ideas Clear”.
82
filosofia fundada num sujeito auto-contido e auto-suficiente, com capacidades
assombrosas de introspecção e acesso privilegiado e intuitivo ao mundo através de
uma observação de ideias dadas no espaço mental interior. Este individualismo
metodológico reflecte-se nos defeitos dos critérios da clareza e distinção. Uma ideia
clara, de acordo com o que foi estabelecido por Descartes, define-se como uma ideia
que é de tal modo apreendida que será reconhecida onde quer que deparemos com ela
e de tal forma que não se confunde com nenhuma outra. Isto implicaria uma tal
decisão e fortaleza de espírito, uma inteligência de tal modo capaz de se elevar acima
de qualquer ambiguidade, “um prodígio de força e clareza intelectual muito difícil de
encontrar neste mundo.”186
E, mais ainda, este é afinal um critério que apenas
descreve um sentimento de familiaridade com uma ideia : ser capaz de a reconhecer
sem hesitação, não merece o nome de clareza, já que não é senão um sentimento
subjectivo de domínio que não oferece garantias de sustentação. Podemos muito bem
estar completamente enganados ao mesmo tempo que nos sentimos completamente
seguros.
Este é um critério que, porque particular, individual, subjectivo, não nos garante
nada; não oferece meios para a sua validação. E tanto assim é que um segundo
critério lhe é acrescentado como suplementação. Para além de clara, uma boa ideia,
uma na qual a nossa actividade mental possa encontrar um bom fundamento, deve ser
distinta. Isto significa que uma ideia não deve conter nada que não seja claro. Atingir
a distinção de uma ideia consiste, assim, em analisar os seus conteúdos e dar dela
uma definição precisa em termos abstractos. Estes critérios remetem um para o outro
186
C.P.5.389.
83
e deixam-nos num plano de análise lógica abstracta187
que não autoriza qualquer
desenvolvimento. É preciso formular um método para atingir uma clareza de
pensamento mais perfeita, que dê conta do problema do aumento do conhecimento.
Segundo Peirce, Descartes, empenhado como estava em afastar a autoridade
escolástica e substitui-la, enquanto fundamento e ponto de partida seguro, pela mente
humana, não reflectiu sobre a distinção entre uma ideia parecer clara e sê-lo
efectivamente. O novo e mais perfeito método de esclarecimento de ideias deve
permitir proceder a esta distinção e abandonar o terreno da pura subjectividade.
Também Leibniz terá reproduzido este carácter acrítico da evidência cartesiana,
esquecendo-se de que “aceitar proposições que nos parecem ser perfeitamente
evidentes é algo que, seja lógico ou não, não conseguimos evitar fazer.”188
É com
ideias claras que podemos garantir a vitalidade do pensamento e estabelecer as
condições para a obtenção de conhecimento. O problema basilar destes critérios de
definição, para além da sua insuficiência em termos de garantia de validade é, então,
a sua desadequação em relação à actividade mental entendida como descoberta : “a
maquinaria da mente é capaz apenas de transformar conhecimento, mas nunca de lhe
dar origem, a não ser que seja alimentado com factos da observação.”189
Os critérios
cartesianos remetem-nos, quando muito, para uma prática analítica que não responde
à necessidade de justificação do aumento do conhecimento: “Não se consegue
187
Para além de alimentar confusões como as que enredaram a ontologia clássica sintetizada
por Wolf e já denunciadas por Kant na Crítica da Razão Pura a propósito do argumento
ontológico.
188
C.P.5.392. 189
C.P.5.392.
84
aprender nada de novo através da análise de definições.”190
E, ainda que sirvam à
necessidade de ordem que um bom funcionamento mental exige, estes critérios
manifestam graus inferiores de clareza. Há que exigir, e legitimamente, da lógica um
meio de atingir um terceiro grau de clareza das nossas ideias que dê conta de um
funcionamento correcto do pensamento na sua actividade de descoberta. Uma lógica
que dê conta do crescimento do conhecimento
Para fornecer o critério para um terceiro grau de clareza, Peirce retoma a
descrição da actividade mental desenvolvida no artigo anterior: “a acção do
pensamento é excitada pela irritação da dúvida e cessa quando se atinge a crença; de
modo que a produção de crença é a única função do pensamento.”191
Dúvida e crença
são estádios da actividade mental que se caracterizam, respectivamente, por uma
hesitação ou indecisão surgida numa dada circunstância, e por uma resolução do
problema que essa circunstância levantou e que nos permite saber como agir. De
facto, e esta é uma das bases do pragmatismo, a noção de crença define-se como
“aquilo a partir do qual um homem está preparado para agir.” Aquilo a que
assistimos através da escolha desta terminologia é à recusa do modelo grego e
cartesiano do pensamento como visão espacial (o olho da mente) e da específica
construção cartesiana da consciência como um lugar, uma zona espacial (o recinto
interior mental onde as ideias aparecem e são vistas) e a sua substituição por imagens
ligadas à acção. Reforça-se deste modo a descrição externalista e compartilhável da
actividade mental que nos afasta do terreno movediço da introspecção.
190
C.P.5.392. 191
C.P.5.394.
85
A crença como ponto de chegada da actividade mental, e seu ponto de partida
também, dada a sua aplicação, tem três características :1) é algo de que temos
consciência 2) acalma a irritação da dúvida 3) implica o estabelecimento na nossa
natureza de uma regra de acção ou hábito. Desta descrição decorre a primeira
formulação do critério do terceiro grau de clareza: “A essência da crença é o
estabelecimento de um hábito; e crenças diferentes distinguem-se pelos diferentes
modos de acção a que dão origem.”192
Passa-se, assim, de critérios baseados nas
características internas de um conceito para um critério baseado na observação das
suas consequências.
Enquanto estabelecendo um hábito, a crença instala procedimentos inferenciais,
caracteriza-se por ser uma base de expectativas. Ter uma ideia equivale à enunciação
de um conjunto de condicionais expressáveis pela fórmula “se...então”. Espera-se
que, dadas certas condições, se sigam certas consequências. A observação destas
previsões condicionais é o que permite distinguir crenças aparentemente iguais e
identificar crenças aparentemente diferentes.
Daí, a segunda formulação do critério : “Para desenvolver o seu significado
temos , então, apenas que determinar que hábitos produz, já que aquilo que uma
coisa significa é simplesmente o hábito que ela implica. (…) Assim, chegamos àquilo
que é tangível e concebivelmente prático, como raíz de qualquer distinção real de
pensamento(…); e qualquer distinção de significado, por mais subtil que seja,
192
“The essence of belief is the establishment of a habit; and different beliefs are
distinguished by the different modes of action to which they give rise.” (C.P.5.398)
86
consiste simplesmente numa possível distinção na prática.”193
O conteúdo das nossas
ideias equivale, assim, ao hábito que delas decorre, e o hábito é uma disposição para
agir, não apenas sob circunstâncias prováveis, mas sob todas as circunstâncias
possíveis. Não há qualquer restrição a uma observação de facto, sendo que o critério
contempla condicionais contrafactuais.
Uma ideia deve ser verificável para poder vir a ter um sentido determinado;
qualquer outro critério incorre num risco de confusão linguística ou de certeza
puramente subjectiva: “A nossa ideia seja do que for é a nossa ideia dos seus efeitos
sensíveis; e se imaginamos que temos outra, enganamo-nos a nós mesmos e
confundimos uma simples sensação que acompanha o pensamento com uma parte do
próprio pensamento.”194
Os “efeitos sensíveis” de uma concepção, o que nelas é
“tangível e concebivelmente prático” instalam-nos num ambiente discursivo cuja
exigência é a da verificação experimental pública e compartilhável. A máxima
pragmática propriamente dita enuncia-se, assim, da seguinte forma : “Consideremos
que efeitos, que possam concebivelmente ter consequências práticas, concebemos
que o objecto da nossa concepção tem, então, a nossa concepção desses efeitos é a
totalidade da nossa concepção do objecto.”195
Esta é uma máxima que, dado o seu
193
“To develop its meaning we have, therefore, simply to determine what habit it produces,
for what a thing means is simply the habit it involves. (…) Thus we come down to what is
tangible and conceivably practical, as the root of every real distinction of thought(…); and
there is no distinction of meaning so fine as to consist in anything but a possible difference
of practice.” (C.P.5.400) 194
“Our idea of anything is our idea of its sensible effects; and if we fancy we have any
other we deceive ourselves and mistake a mere sensation accompanying the thought for a
part of the thought itself.” (C.P.5.401) 195
“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings,we conceive the
object of our conception to have, then, our conception of these effects is the whole of our
conception of the object.” (C.P.5.402)
87
funcionamento externalista, parece dissolver um problema persistente na teoria da
definição e irritante para a questão do sentido: a dualidade essência/acidente. A
“fenomenalização” pragmatista recusa identificar a definição/sentido de uma coisa
com uma essência qualitativa, não mediada, apreendida intuitivamente e da qual
decorreria a explicação do comportamento dessa coisa como derivado, acidental,
contingente, circunstancial. A essa concepção isolacionista do sentido, Peirce opõe
uma concepção relacional, exteriorizada, que não ignora as mediações linguísticas
entre sujeito e objecto e faz depender da nossa observação, de facto ou concebível,
do seu comportamento e dos seus efeitos sobre o nosso, uma sua definição196
. Nem
temos outro modo de fazer sentido que não seja estabelecer um regime de
equivalências deste tipo.
Vejamos como funciona a máxima pragmática em relação a um dos exemplos
apresentados por Peirce no texto, e que é um desenvolvimento ou reafirmação da sua
teoria da realidade e do seu realismo. Este exemplo é, para além disto, interessante
na medida em que permite aferir o funcionamento da máxima relativamente a um
conceito suficientemente vasto e metafisicamente conotado para que não sejamos
tentados a vê-la como a afirmação de um experimentalismo banal de aplicação curta
a objectos físicos ou propriedades sujeitáveis a medição instrumental. A máxima
serve para esclarecer “palavras difíceis” para além de uma evidência subjectiva, deve
poder alcançar conceitos abstractos como o conceito de “realidade”.
196
O que certamente se relaciona com a exclusividade concedida classicamente à forma
proposicional ‘s é p’ ,denunciada por Peirce e que o levou a fundar um ramo vital da lógica
contemporânea, a lógica dos relativos.
88
Peirce começa por sujeitar o conceito aos graus de clareza expostos. Para o
critério de familiaridade, o conceito de realidade é o mais claro. “Qualquer criança o
usa com perfeita confiança, nunca sequer sonhando que não o compreende.”197
Já o
segundo grau de clareza parece ser menos evidente. Como dar uma definição
abstracta de “realidade”? Ainda assim, poderíamos alcançá-la contrapondo as ideias
de “realidade” e “ficção” e chegar a uma definição como “aquilo cujas características
são independentes do que seja quem for possa pnsar que elas são.”198
Apliquemos a
regra do terceiro grau de clareza e verifiquemos se podemos aperfeiçoar a clareza
desta ideia. Como qualquer outra qualidade, a realidade deverá consistir nos efeitos
sensíveis peculiares que as coisas ditas reais produzem. O único efeito que as coisas
reais têm é causar crença, já que todas as sensações que elas excitam emergem na
consciência sob a forma de crenças. A questão é, pois, saber como é que a crença
verdadeira (ou crença no real) se distingue da crença falsa (ou crença na ficção). As
ideias de verdade e falsidade pertencem exclusivamente ao método experimental de
estabelecer opinião ou crença. Existe, assim, uma associação entre real e verdadeiro,
o primeiro dizendo respeito ao objecto da crença e o segundo à própria crença. Se um
dos “resultados sensíveis”, dos efeitos práticos do real é o carácter verdadeiro da
crença, dada a determinação do que significa ser verdadeiro teremos uma
determinação do que significa ser real. A investigação científica, que é um dos
métodos de obtenção e fixação da crença, é o método através do qual as nossas
crenças não são determinadas por nada de humano, mas por uma permanência
197
C.P.5.405. 198
C.P.5.405.
89
externa, por algo sobre o qual o nosso pensamento não tem qualquer efeito. O critério
desta exterioridade, aquilo que faz com que não se confunda com a mera alucinação
individual, é o seu carácter partilhado e público, comunitário. O progresso da
investigação, porque é sobre o real, força os investigadores a uma só e mesma
conclusão. “A opinião que está destinada a ser finalmente objecto de acordo por parte
de todos aqueles que investigam, é aquilo que queremos dizer com a verdade, e o
objecto representado nesta opinião verdadeira é o real.”199
O resultado da
investigação levada suficientemente longe, independentemente de opiniões
individuais é o que queremos dizer quando dizemos “real” e “verdadeiro”.
É necessário chamar a atenção para o facto de que Peirce não difere,
idealisticamente, o real para um momento futuro e produzido, nem faz depender a
realidade do nosso conhecimento dela e do seu transporte numa crença verdadeira.
Na medida em que agem sobre nós e nos constrangem, as coisas são reais, mas o que
delas se nos dá é necessariamente mediado em crenças, em estados mentais que
determinam o nosso modo de acção futuro e que são corrigíveis, aperfeiçoáveis pela
subsequente interacção com as coisas que levanta novas dúvidas e suscita novas
crenças. Das coisas não apreendemos intuitivamente uma essência mas formamos
discursivamente interpretações. Assim, a máxima pragmática articula-se com a
teoria semiótica de Peirce segundo a qual o pensamento é actividade sígnica, um
processo ilimitado de interpretação: o sentido é virtual e a sua determinação completa
encontra-se no futuro, quando nos for dado ter uma opinião verdadeira.
199
“The opinion which is fated to be ultimately agreed to by all who investigate, is what we
mean by the truth, and the object represented in this true opinion is the real.” (C.P.5.407) O
termo “comunidade” éaqui substituído pela expressão “todos aqueles que investigam”.
90
4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE.
Num terceiro artigo desta série, intitulado “The Doctrine of Chances”
(C.P.5.645-668), Peirce discute a questão da probabilidade, das inferências prováveis
– aquelas que resultam no aumento do conhecimento. Interessa-nos aquela parte do
texto que os editores dos Collected Papers intitularam “Three Logical Sentiments”
(C.P.2.652-655), três sentimentos lógicos, porque nela Peirce regressa ao tema da
“comunidade ilimitada”200
; porque nele se antecipam razões para a cisão entre teoria
e prática que será objecto do próximo capítulo; e, finalmente, porque aqui se
estabelece mais uma vez uma relação entre lógica e ética que redundará na concepção
da ética como ciência normativa, na questão do auto-controlo racional e no senso-
comum crítico.
O texto começa por esclarecer o sentido de “probabilidade”. Esta é uma ideia
que essencialmente pertence a um tipo de inferência que se repete indefinidamente
sendo que o “facto real” que lhe corresponde, como tinha sido estabelecido em
C.P.2.650, é que um dado modo de inferência por vezes mostra ter sucesso e outras
vezes não, e isto num ratio em última instância fixo. Assim sendo, só faz sentido
falar de probabilidade em relação a um conjunto indefinido de casos e não em
relação a um caso único ou individual: este é ou verdadeiro ou falso. É verdade que a
consideração da probabilidade pode orientar a decisão empírica, efectiva, a propósito
200
C.P. 2.654.
91
de um único caso, como o exemplo dos baralhos de cartas mostra201
. Mas este
exemplo mostra também que essa decisão racional não acarreta qualquer tipo de
necessidade e que a razão é não tem qualquer valor no que diz respeito aos casos
isolados.
Em que medida é que podemos, então, contar com a ideia de probabilidade? A
partir de certo número de casos começa a desenhar-se uma proporção no número de
sucessos e falhanços e a probabilidade de um modo de argumento fora definida, em
C.P.2.650, como “a proporção dos casos em que traz consigo a verdade”. O problema
está em que o número de inferências prováveis que um indivíduo faz em toda a sua
vida é finito “e ele não pode ter a certeza absoluta de que o resultado médio irá estar
de acordo com as probabilidades”202
. Assim, no caso de uma colecção de inferências
prováveis finitas, estamos na mesma circunstância que perante uma inferência
isolada: sem uma certeza de que não irá falhar. A mortalidade dos indivíduos faz
com que o número das suas inferências seja finito e, consequentemente, que o seu
resultado médio seja incerto. Como, então, confiar na razão e na sua capacidade
inferencial se a ideia de probabilidade se reduzir à incerteza? “Parece que somos
levados a isto; que a logicalidade inexoravelmente exige que os nossos interesses não
sejam limitados. Eles não devem limitar-se ao nosso próprio destino mas devem
abarcar toda a comunidade. E esta comunidade, por sua vez, não deve ser limitada,
mas deve estender-se a todas as raças de seres com os quais possamos entrar numa
201
C.P.2.652. 202
C.P.2.653.
92
relação intelectual imediata ou mediata.”203
Se a ideia de probabilidade envolve uma
série indefinida de inferências, ela implica a possibilidade indefinida de realizar
inferências, só satisfeita com um sujeito ele próprio indefinido ou ilimitado que deve
alcançar, ainda que de forma vaga, “para além desta época geológica, para além de
quaisquer limites”. O ponto de vista individual é insuficiente para determinar o
resultado das inferências prováveis e é neste sentido ilógico, na medida em que não
permite fazer sentido da ideia de probabilidade e derrota qualquer posssibilidade de
justificação da indução. A logicalidade implica, assim, o “sacrifício” do ponto de
vista individual, do caso isolado, do interesse egoísta associado à existência finita
dos indivíduos. “Quem não sacrifique a sua própria alma para salvar o mundo é,
tanto quanto me parece, ilógico em todas as suas inferências, colectivamente. A
lógica está enraizada no princípio social.”204
A superação do egoísmo é um dos
requisitos essenciais da lógica e Peirce estende esta incompatibilidade entre lógica e
egoísmo até à rejeição do egoísmo como traço antropológico central, à maneira
hobbesiana, fundando uma teoria da moralidade e da decisão. Para isso, mostra-se
como a prossecução dos desejos de cada um é diferente do egoísmo. As aparentes
manifestações de egoísmo e de possessividade envolvem uma componente
“expansiva”, uma preocupação que ultrapassa o imediato, a saber, ou uma
identificação com interesses colectivos, ou uma preocupação com o futuro distante.
203
“It seems to me that we are driven to this, that logicality inexorably requires that our
interests shall not be limited. They must not stop at our own fate, but must embrace the
whole community. This community, again, must not be limited, but must extend to all races
of beings with whom we can come into immediate or mediate intellectual relation.”
(C.P.2.654)
93
A base antropológica da logicalidade não é um qualquer extremismo heróico de auto-
sacrifício, mas algo de bastante mais corrente e atestado: “que ele seja capaz de
reconhecer a possibilidade, seja capaz de perceber que só são lógicas as inferências
do homem que o tiver, e deve consequentemente ver as suas próprias como válidas
apenas na medida em que seriam aceites pelo nosso herói. Na medida em que ele
referir as suas inferências a esse padrão, ele conseguirá identificar-se com uma tal
mente.”205
É a realidade desta possibilidade que “torna a logicalidade
suficientemente atingível”.
O requisito da lógica é, então, “uma identificação concebível dos interesses de
cada um com aqueles de uma comunidade ilimitada”, um sentimento que, dada a
impossibilidade de provar, contra ou a favor, que a espécie humana, “ou qualquer
raça intelectual”, existirá para sempre, é por Peirce identificado com a “esperança ou
desejo calmo e alegre”, de que a comunidade possa durar para lá de qualquer data
assinalável.
Assim, são três os sentimentos indispensáveis como requisitos da lógica:
“interesse numa comunidade indefinida, reconhecimento da possibilidade deste se
tornar no interesse supremo, e esperança na continuação ilimitada da actividade
intelectual.”206
O primeiro aliás, o “sentimento social”, era já o que estava em causa
na discussão dos métodos de fixação de crença (impulso social). E estes três
204
“He who would not sacrifice his own soul to save the whole world is, as it seems to me,
illogical in all his inferences, collectively. Logic is rooted in the social principle.”
(C.P.2.654) 205
“(…)that he should recognize the possibility of it, should perceive that only that man’s
inferences who has it are really logical, and should consequently regard his own as being
only so far valid as they would be accepted by the hero. So far as he thus refers his
inferences to that standard, he becomes identified with such a mind” (C.P.2.654).
94
sentimentos lógicos são aproximados por Peirce aos dotes espirituais afirmados pela
religião cristã: Fé, Esperança e Caridade.
O texto termina, então, tornando mais explícito o requisito último da lógica que
já tinha sido afirmado em 1868: a esperança. Trata-se de um facto irracional,
emocional, sentimental, sem razões contra ou a favor, uma pré-condição que, do
ponto de vista cognitivo, parece levantar um paradoxo, porquanto o realismo de
Peirce recusa qualquer incognoscível e aqui se afirma como pré-condição do
inquérito a continuação infinita e indefinida dele – o que não é cognoscível207
.
Para ter confiança na eficácia da indução, temos que supor um número de
inferências indefinidamente grande, que só pode ser levado a cabo por uma
comunidade sem limites. Quando se baseia na lógica, o indivíduo baseia-se em algo
que transcende a sua individualidade e se radica na ideia de uma comunidade
indefinida que continuará para sempre a investigar a realidade : é esta a base ética da
lógica. Fumagalli208
fala até de uma “redução social” da lógica: através de uma
argumentação que parte de premissas probabilísticas, conclui-se que o único modo de
fazer escolhas verdadeiramente razoáveis é pôr como sujeito de interesse a
comunidade e não o indivíduo. A investigação intelectual só faz sentido do ponto de
vista ou na perspectiva de uma comunidade indefinida de investigadores. O indivíduo
não tem garantias do sucesso da sua investigação e um empenhamento racional
individualista estaria necessariamente sujeito à eventualidade do falhanço. Seria, em
206
C.P.2.655. 207
cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles S. Peirce, Chicago, University
of Chicago Press, 1963, p.90-91.
208
Fumagalli, A., Il Reale nel Linguaggio, Milão, Pub. Universitá Cattolica, 1995, p.125.
95
última análise, praticamente inútil. O critério da convergência ou acordo da
comunidade actual de investigadores pode ser entendido como modelo ou como
manifestação empírica desta exigência comunitária normativa.
5.CONCLUSÃO
A escolha da perspectiva biológica para abordar o conhecimento científico,
fazendo dele uma das actividades de inquérito através das quais um organismo tenta
superar a insatisfação da dúvida e fixar uma crença, adaptando-se assim ao seu
ambiente, apresenta-se afinal em Peirce mais como uma problematização ou
qualificação da atitude naturalista em filosofia, do que como uma sua aceitação
justificada pelo evolucionismo. Que o método científico retire a sua superioridade do
seu carácter normativo e não da sua eficácia adaptativa, apesar de admitida a
possibilidade de ser o resultado de uma evolução orientada pela necessidade de
adaptação, é uma questão que exige uma reflexão sobre as relações entre a teoria e a
prática ou, se quisermos, sobre o valor epistemológico da utilidade deste tipo de
conhecimento. O anti-instrumentalismo da concepção de ciência em Peirce será
abordado no capítulo seguinte deste trabalho, mas o que foi dito neste permite desde
já evitar qualquer incompatibilidade entre uma concepção anti-instrumentalista da
ciência e o pragmatismo peirceano. Tal como este se expressa na máxima pragmática
proposta no artigo “Como Tornar as Nossas Ideias Claras”, permite aliás considerar
96
que, a haver instrumentalidade, esta se dá exactamente a direcção inversa: é a acção
que é instrumental para o conhecimento e não o conhecimento para a acção.
Assim, a relação entre lógica e ética mais uma vez afirmada no terceiro texto
da série abordada neste capítulo, não significa uma submissão da teoria à prática.
Antes decorre de uma concepção de racionalidade não fundacionalista, que opera
com probabilidades e não com certezas. O falibilismo evita o cepticismo apelando
para sentimentos que permitem sustentar razoavelmente a persistência na aplicação
do método científico, mas não demonstram inequivocamente a sua eficácia: o
optimismo epistemológico é uma esperança. Este apelo exige, por sua vez, a recusa
do individualismo em epistemologia – como aliás no domínio da acção moral se
apela ao altruísmo como motivação -, isto é, exige a noção de comunidade. Aquilo
que falta esclarecer é o modo como este apelo ao sentimento supera o naturalismo de
posições sentimentalistas como a de David Hume, e o seu consequentemente
cepticismo.
97
CAPÍTULO III - TEORIA E PRÁTICA, RAZÃO E INSTINTO
1.INTRODUÇÃO
Vinte anos depois da série “Ilustrações da Lógica da Ciência” publicada no
Popular Science Monthly, em Fevereiro de 1898, Peirce realiza uma série de
conferências em Cambridge, Massaschussets, a convite de William James209
e sob o
título genérico “Reasoning and the Logic of Things”, “O Raciocínio e a Lógica das
Coisas”210
. Publicadas integralmente pela primeira vez mais de 100 anos depois da
sua vinda a público, continuam o tema nuclear do pensamento de Peirce: uma teoria
do método científico. Mais especificamente, tratam um tema que tem a maior
importância se queremos compreender a estreita associação entre lógica e ética
envolvida na teoria social da lógica a que chegámos no final do capítulo anterior.
Trata-se do tema das relações entre teoria e prática, que permite esclarecer algumas
ambiguidades dos textos de 1877/78 acerca da crença e da verdade, e também algo
209
Para as circunstâncias deste convite cf. Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things,
Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, pp.8-37. 210
Abandonaremos os Collected Papers no que diz respeito a estes textos, porque aí
aparecem apenas partes truncadas da primeira das conferências no vol. 1 sob o título
“Vitally Important Topics” - cf. Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things, Ketner,
K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, pp.25-30. para a origem deste
98
acerca do modo como Peirce terá integrado o evolucionismo no seu pensamento. Este
tema leva-nos naturalmente à teoria peirceana da hipótese, uma vez que o problema
da validade da indução, isto é, a justificação do método científico, encontra uma
resposta pela integração deste procedimento no processo de formulação e testagem
de hipóteses, e estas atestam o tipo de adaptação típico da espécie humana.
Pressuposta nesta concepção da hipótese está uma teoria das relações entre a razão e
o instinto, onde Peirce irá buscar razões para sustentar o seu optimismo
epistemológico, traduzido tanto no seu Senso-Comum Crítico, como no seu
Sentimentalismo Filosófico. Estes, por sua vez, deixam-nos a um passo da
arquitectónica peirceana, e da sua concepção de três ciências normativas
fundamentais, Estética, Ética e Lógica, afirmação final do realismo de Peirce e das
exigências do inquérito contidas no conceito de comunidade.
2.TEORIA E PRÁTICA
Os textos de 1878, apresentados no capítulo anterior, davam-nos uma descrição
da actividade cognitiva em termos de acção adaptativa e usavam expressões no
terreno cognitivo que comummente se associam à prática, como a noção de hábito e
os aspectos envolvidos na re-qualificação da dúvida: dúvida viva, dúvida real, por
oposição à dúvida de papel cartesiana. Continham também uma definição de crença
título - e também outros extractos em C.P. 6.1-5, 185-213, 214-221, 222-237, 7.468-517.
Usaremos então e edição “reconstruída” de Kenneth Laine Ketner.
99
como hábito de acção, a partir da qual se chegou a uma consideração das virtudes do
método científico, que advêm de uma posição realista que incorpora o veredicto da
experiência. O método científico é o único dos métodos avaliados por Peirce que não
permite que a dúvida passe das conclusões para o próprio método e essa sua
resistência à dúvida decorre desde logo do facto de ser o único método que admite o
certo e o errado211
- “é possível tanto o mau como o bom raciocínio; e este facto é o
fundamento do lado prático da lógica.” Ainda, como foi dito, nestes textos faz-se
uma estreita associação entre lógica e ética, reforçada por uma nota de 1903
explicitamente afirmando uma analogia entre o auto-controlo racional e moral212
, ou
seja, o exercício do método científico exige virtudes éticas213
. E, finalmente, a
máxima pragmática e a sua insistência nas “consequências práticas” dos conceitos
reforça a ligação entre pensamento e acção típica das posições pragmatistas. A
questão que se põe, pois, é a de saber o que entender por estas articulações: se em
Peirce podemos de algum modo encontrar uma submissão da vida prática às
conclusões da vida teórica; ou se podemos contar com o método científico para a
conduta quotidiana, se de algum modo da ciência podemos esperar retirar uma
sabedoria ética; se a ciência funda a ética e é assim formativa, do ponto de vista do
individuo, ou se tem implicações na decisão política, do ponto de vista colectivo214
.
211
cf. C.P.5.385. 212
C.P. 5.376 n2. 213
cf. Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981,
p.188: “A ciência é o fruto do instinto temperado pela virtude.” 214
Esta é uma questâo tanto mais pertinente quanto a glorificação da ciência no século XIX
permitiu uma série de iniciativas públicas de moralidade duvidosa cf. A recensão que Peirce
faz de Karl Pearson contra as implicações do darwinismo social (C.P.8.132-156). Skagestad
nota, aliás, que mais do que contra os cépticos Peirce quer defender a ciência dos seus
100
Se, de algum modo, o fosso kantiano entre Razão Pura e Razão Prática se resolve
simplesmente subordinando os imperativos morais às informações postas à
disposição pela ciência num dado momento.
A primeira das conferências de Cambridge intitula-se precisamente “Philosophy
and the Conduct of Life”, “A Filosofia e a Conduta da Vida” e enfrenta directamente
esta questão começando por descrever dois modos de conceber a relação entre teoria
e prática na investigação filosófica, ou também, de entender a finalidade da
investigação. Assim, “os gregos esperam que a filosofia afectasse a vida (..)
imediatamente na pessoa e na alma do próprio filósofo tornando-o diferente dos
homens vulgares nas suas perspectivas acerca da conduta correcta”215
. A esta
“tendência Helénica para misturar Filosofia e Prática”216
, Peirce opõe o modelo do
“homem científico” representado já por Aristóteles, um filósofo treinado “in the
dissecting-room” e que separou a ciência teórica, “que tem o conhecimento da teoria
como seu fim e objectivo último”217
, da Estética e da Moralidade. Um dos valores
que poderia autorizar esta relação entre a filosofia e a prática seria o da utilidade.
Afinal, a própria descrição do inquérito como uma luta para sair do estado de dúvida
e atingir a crença faz pensar no valor vital das actividades cognitivas, em que o
conhecimento responde a necessidades vitais e serve para enfrentar problemas
alegados amigos. Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University
Press, 1981, p.45. 215
“The Greeks expected philosophy to affect life (...) forthwith in the person and soul of
the philosopher himself rendering him different from ordinary men in his views of right
conduct.” (RLT p.106) 216
RLT p.107. 217
RLT p.107.
101
práticos. Ora, ao assumir-se como “um aristotélico e um cientista a este respeito”218
e
ao celebrar a separação dos domínios, Peirce fá-lo precisamente começando com um
argumento que visa dissociar a investigação da utilidade: “Mas o verdadeiro
investigador em ciência deixa completamente de fora a questão da utilidade daquilo
que está a investigar”219
. Repare-se que a posição de Peirce não consiste em negar à
humanidade os benefícios imediatos da aplicação prática dos conhecimentos
científicos. Antes, o que está aqui em causa é saber, do ponto de vista da investigação
científica, que lugar têm as preocupações práticas e a utilidade. Assim, a preocupação
com a utilidade pode permitir fazer “muito pela vida humana”220
mas a mesma
preocupação do ponto de vista da investigação acarreta consequências negativas,
tanto no plano do desenvolvimento do inquérito - constituindo deste modo “um
obstáculo no caminho do inquérito”, o pecado filosófico - como no plano moral : “o
investigador que não se mantém distanciado de qualquer intenção quanto a fazer
aplicações práticas, não apenas obstruirá o avanço da ciência pura, mas, o que é
infinitamente pior, ele porá em perigo a sua própria integridade moral e a dos seus
leitores.”221
Isto é, a separação entre o regime da prática e o da teoria não acarreta
uma separação entre ética e investigação mas parece até reforçar a relação estreita
entre ambos. Há que ver, então, o que significa a cisão entre teoria e prática e as
diferentes exigências de ambas.
A primeira questão tratada é uma questão acerca da lógica, tanto mais
pertinente quanto enquanto ciência dos métodos lida com a validade da teoria, com
218
RLTp.107. 219
RLTp.107. 220
RLTp.107.
102
aquilo precisamente que nos poderia fazer contar com ela para orientação da prática,
Poderíamos, assim, esperar dela garantias para uma boa relação entre teoria e prática.
Mas, desde logo, a aparência de importância vital de que a teoria do raciocínio se
reveste é desfeita por Peirce ao afirmar que, se considerarmos dois tipos de questões
práticas, “assuntos correntes” e “grandes crises”, nenhuma delas exige essa mesma
teoria, por mais absolutamente essencial que seja em metafísica. Na prática, aquilo
com que podemos contar não é nem a razão individual, impotente ou sem segurança
suficiente quando se trata de grandes decisões, nem uma teoria do raciocínio,
desnecessária no quotidiano, onde não é preciso conhecer as leis da inferência para
pensar. Aquilo com que podemos contar na prática é antes o sentimento ou o instinto.
As razões para isto não se prendem com qualquer cepticismo quanto aos poderes da
razão, como é o caso em Hume, para quem também as paixões ocupam um lugar
acima da razão na motivação da vontade222
, onde uma submissão da razão às paixões
se faz na linha de uma argumentação que visa pôr em causa a competência da razão
para dar conta da experiência e das suas supostas regularidades, afinal apenas hábitos
psicológicos projectados ou expectativas não justificadas. Antes em Peirce as
mesmas razões que validam as pretensões cognitivas ou que justificam a confiança
nas operações racionais, como a indução, impõem uma cisão entre o plano da decisão
prática, que diz respeito ao imediato e ao particular, e o plano do conhecimento
teórico das leis que estruturam a experiência, do real tal como será conhecido quando
representado numa opinião verdadeira, como resultado da investigação no longo
221
RLTp.107. 222
Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, Book II, Part 3, Sec.3
“On the Influencing Motives of the Will” – “a razão é escrava das paixões”.
103
prazo. É a epistemologia não fundacionalista e falibilista de Peirce, cuja condição
central é a concepção de uma investigação que prossegue indefinidamente, que
coloca a ciência definitivamente no exterior da aplicação prática, seja recebendo
desta orientações, interesses ou valores, seja impondo-lhe modos de acção. A
argumentação epistemológica cruza-se com uma outra, que podemos designar como
derivando de uma antropologia evolucionista e que se prende com as relações entre a
razão e o instinto ou sentimento. A razão como “diferença específica” humana é uma
faculdade superficial quando comparada com o instinto: “São os instintos, os
sentimentos, que constituem a substância da alma. A cognição é apenas a sua
superfície, o seu ponto de contacto com aquilo que lhe é exterior.”223
A infalibilidade
prática é uma questão instintiva, como se passa já com os “animais inferiores”224
e
não uma questão de determinação inferencial absolutamente justificada ou fundada -
recorde-se que a certeza absoluta é, epistemologicamente, do ponto de vista da teoria,
um logro, uma ilusão individualista225
. Como suporte para esta posição, Peirce
apresenta a seguinte descrição e classificação do raciocínio: “Há três tipos de
raciocínio. O primeiro é necessário, mas presume apenas dar-nos informação acerca
da matéria das nossas hipóteses, e declara distintamente que, se queremos saber mais
223
“It is the instincts, the sentiments, that make the substance of the soul. Cognition is only
its surface, its locus of contact with what is external to it.” (RLT p.110). 224
cf.RLT pp110-111. 225
É, aliás, interessante ver como Peirce desloca a questâo do cepticismo para o plano da
individualidade, a desconfiança nos poderes da razão individual tem toda a razão de ser e a
sua ligação à prática é ainda mais suspeita. O problema é estender este, que é um problema
por assim dizer psicológico, e que parece assim autorizar teorizações como a freudiana, para
o plano da lógica, que estuda precisamente as condições de validade, ou a razão não iludida
/ auto-correctora. Assim, talvez também se possa dizer que o anti-psicologismo de Peirce
não é uma recusa da Psicologia, pelo contrário, trata-se de lhe dar condições de
104
alguma coisa, temos que nos dirigir a outro lado. O segundo depende de
probabilidades. Os únicos casos em que pretende ser de algum valor são aqueles
onde temos uma quantidade infinita de riscos insignificantes, como numa companhia
de seguros. Onde quer que esteja em causa um interesse vital, ele diz claramente
‘Não me perguntem a mim’. O terceiro tipo de raciocínio experimenta aquilo de que
é capaz il lume naturale, que iluminou os passos de Galileu. Trata-se, de facto, de
um apelo ao instinto. Assim a razão, apesar de todas as suas belas roupagens, nas
crises vitais reduz-se à sua medula e pede o socorro do instinto”226
. Este apelo ao
instinto reveste-se muitas das vezes de uma aparência de racionalidade, ou consiste,
se quisermos, numa racionalização que se resume a um processo de auto-ilusão, pelo
que faz sentido introduzir na configuração antropológica uma dimensão inconsciente
que põe em causa a possibilidade de uma abordagem estritamente racionalista da
dimensão prática da existência humana227
. “A razão apela, então, ao sentimento
como última instância. O sentimento, por seu lado, sente-se a si próprio como sendo
possibilidade enquanto ciência, ou seja, fornecer-lhe um objecto e um método. Aliás, Peirce
foi também um investigador em Psicologia e um dos pioneiros da Psicologia experimental. 226
“Reasoning is of three kinds. The first is necessary, but it only professes to give us
information concerning the matter of our own hypotheses, and distinctly declares that if we
want to know anything else, we must go elsewhere. The second depends upon probabilities.
The only cases in which it pretends to be of value is where we have, like an insurance
company, an endless multitude of insignificant risks. Wherever a vital interest is at stake, it
clearly says ‘Don´t ask me.’ The third kind of reasoning tries what il lume naturale, which
lit the footsteps of Galileo, can do. It is really an appeal to instinct. Thus Reason, for all the
frills it wears, in vital crisis, comes down upon its marrow-bones to beg the succour of
instinct.” (RLT pp 110-111). 227
Podemos considerar esta noção de inconsciente como uma espécie de inconsciente
colectivo e não apenas instintivo no sentido biológico do termo : o instinto humano aprende
em Peirce. E também podemos sublinhar que este ponto reforça de algum modo a
preocupação em não identificar lógica (estudo do pensamento deliberado - não inconsciente)
e psicologia (estudo do modo como de facto pensamos, incluindo dimensões inconscientes
cf teoria peirceana da percepção e os seus estudos experimentais em psicologia).
105
o homem. Esta é a minha simples apologia do sentimentalismo filosófico.”228
Assim,
a afirmação da cisão entre teoria e prática junta-se a uma denúncia do racionalismo
como intromissão indevida dos dois domínios que é um eco das críticas feitas ao
método a priori no texto de 1878 “A Fixação da Crença”.
No domínio da prática, então, a razão submete-se ao sentimento e “o
sentimentalismo implica o conservadorismo”229
O que esta posição significa não é
uma recusa total da mudança enquanto tal – “e é da essência do conservadorismo
recusar levar qualquer princípio prático aos seus limites extremos – incluindo o
próprio princípio do conservadorismo”230
-, mas daquele tipo de mudança súbita231
e
individual232
que distancia o indivíduo da sua comunidade: não por acaso, o próprio
texto abandona neste parágrafo em que se descreve o conservadorismo que convém à
prática o sujeito “eu” para adoptar o “nós”. É que as regras vigentes numa dada
comunidade empírica são “uma indução instintiva ou sentimental que sumaria a
experiência de toda a nossa raça.”233
Não são simplesmente naturais ou inatas, mas
também não são estritamente convencionais. Têm uma dimensão cognitiva,
incorporam uma continuidade de experiência irredutível à experiência individual e
ainda que não plena e absolutamente infalíveis e justificadas do ponto de vista da
228
“Reason, then, appeals to sentiment in the last resort. Sentiment on its side feels itself to
be the man. That is my simple apology for philosofical sentimentalism.” (RLT p.111) 229
RLT p.111. 230
RLT p.111. 231
As palavras que caracterizam uma prática indevidamente orientada pelos “dictates of
reason”, por uma “philosophy of religion” ou “philosophy of ethics” - “sudden acceptance”,
“precipitally change”, “hastily practise” – indicam todas a urgência imediatista da prática,
em contraste com a teoria cujo regime temporal é o longo termo. 232
Esta posição é já atacada na crítica do método da tenacidade efectuada no artigo “A
Fixação da Crença”. 233
RLT p.110.
106
teoria, são “practicamente infalíveis para o indivíduo”234
. Não são dadas a priori
como verdades de razão. Logo, não é a razão - mas sim a experiência
sentimentalmente codificada - que funda a moralidade: esta é um resultado da
experiência. Na ciência temos uma versão idealizada dos procedimentos racionais,
conscientemente tratando a questão da validade, uma razão auto-controlada235
. A
diferença é que as exigências da prática dizem respeito ao aqui e agora e há que tratar
as crenças disponíveis como absolutas236
. Fundamentalmente, razão e experiência
interagem do mesmo modo, porque se trata sempre de crenças com conteúdo
cognitivo, de conhecimento - mas o estatuto difere consoante o “interesse” em causa,
a finalidade, é teórica ou prática. Há continuidade, tal como há possibilidade de
“troca” entre o plano do sentimento e o da razão. O que não há é uma hierarquia, e o
tipo de interacção entre os dois domínios não é autoritário.
Tal como a teoria não pode fornecer à prática directivas revolucionárias - o que
não é sensato - assim também a prática o mais que pode fazer é fornecer sugestões à
teoria. Mas “eu não concederia ao sentimento ou instinto qualquer peso em questões
teóricas”237
. As sugestões do instinto ou sentimento submetidas às exigências do
inquérito racional deixam de usufruir da sua infalibilidade, que é estritamente prática,
de tal modo que o investigador está pronto “a deitá-las pela borda fora ao mínimo
aviso da experiência”238
. E aqui encontramos explicitamente a distinção entre crença
como categoria da prática, definida como “a adopção de uma proposição como uma
234
Este é o único tipo de infalibilidade admitido por Peirce, aliás, e repare-se que é para o
indivíduo apenas. 235
Para Peirce, já a percepção funciona à imagem da inferência. 236
cf. Diferenças entre crenças práticas e teóricas já enunciadas em “A Fixação da Crença”. 237
RLT p.112.
107
possessão definitiva” ou “a crença efectiva como disposição para agir de acordo com
uma proposição em momentos de crise vital”239
e as proposições que a ciência aceita:
“a lista na sua totalidade é provisória(..) Não há, pois, qualquer proposição em
ciência que corresponda à concepção de crença”240
. Assim, “nada é vital para a
ciência, e nada pode ser”241
. Ao carácter absoluto e infalível da crença no domínio
da acção contrapõe-se o carácter hipotético, falível e provisório dos conhecimentos
actuais da ciência. A acção é uma irrupção momentânea e contingente, particular no
tempo (empírico) enquanto que a ciência lida com o crescimento contínuo do
conhecimento, e todos os momentos de paragem aguardam confirmação futura na
opinião verdadeira. Desfaz-se aqui a ambiguidade que o uso anterior do termo
“crença” e das expressões como “prático” poderia ter causado; ou, se quisermos
também, a noção de experiência e, consequentemente, de “prática”, em ciência não é
a noção de experiência vital dos indivíduos e comunidades empíricas242
.
Se, então, a razão é muito menos vital do que o instinto no domínio da
prática, se apenas tem um papel instrumental em pequenos assuntos insignificantes,
também a prática e a sua exigência de utilidade, sendo um “ponto de vista estreito”243
não devem interferir no domínio da teoria. À moralidade interessada da prática
contrapõe-se a ética desinteressada da investigação, que consiste no conjunto de
virtudes envolvidas no exercício do método científico. E a filosofia é uma das
238
RLT p.112. 239
RLT p.112. 240
RLT p.112. 241
RLT p.112. 242
Pode, aliás, ver-se nesta cisão a tomada de consciência da impotência da razão em
fornecer uma Ética à imagem da ciência.cf Williams,B., Morality, Cambridge, Cambridge
University Press, 1993, pp.55-61.
108
ciências exigindo essa moralidade específica que a afasta das preocupações da
prática.
Na classificação das ciências com que o texto prossegue244
, Peirce exclui a
Ética do âmbito da filosofia, pelo seu carácter demasiadamente específico e concreto
enquanto ciência “do fim e objectivo da vida”. Só mais tarde, enquanto ciência
normativa, será integrada, juntamente com a Lógica e a Estética, na arquitectónica
proposta por Peirce, agora como ciência dos fins da razão, isto é, operada já a cisão
entre teoria e prática e explicitada a necessidade de uma ética no domínio da teoria.
Não se irá tratar, assim, apenas de uma mudança de lugar na arquitectónica, mas de
duas noções diferentes de ética, uma para a ciência outra para a vida. A função
normativa é, neste momento, atribuida apenas à lógica – “a metafísica deve guiar-se
em todos os seus passos pela teoria da lógica”245
- e esta é por sua vez guiada pela
matemática, a ciência que “estuda exclusivamente hipóteses”246
. A razão pela qual a
classificação das ciências surge neste momento prende-se com a necessidade de
mostrar que os interesses da prática não devem interferir com a teoria, e vice-versa, e
surge para reforçar o repúdio de uma imagem da filosofia como consolação
existencial ou guia para a conduta humana, a imagem helénica descrita no início do
texto. A filosofia não deve, como segundo Peirce, Hegel e outros no seu século
fizeram abundantemente, ser posta à parte das outras ciências “como se lhe fose
estranha e quase hostil”247
. Isto apenas mostra um desconhecimento acerca do que
243
RLT p.113. 244
RLT pp.114-117. 245
RLTp.116. 246
RLT p.114. 247
RLT p.117.
109
são as ciências, consequência de uma educação em “seminários teológicos”, e tem
como implicação grave o descrédito da metafísica como “uma coisa ociosa,
subjectiva e ilógica”. A posição de Peirce é, pelo contrário, que apenas a ciência é
capaz de salvar a metafísica.
O argumento central para separar a teoria das influências da prática encontra-se
na resposta à questão “Qual é o resultado geral de todas estas ciências, a que é que
todas elas chegam?”248
, ou seja, resolve-se pela questão da finalidade249
, numa
aplicação da máxima pragmática ao conceito “ciência” ou à hipótese “teoria”. Uma
observação da história das ciências mostra como “proposição geral” que cada ciência
se desenvolve em direcção a uma ciência mais abstracta, “mais elevada na nossa
escala”. A ordem das ciências exposta na classificação feita imediatamente antes no
texto é uma ordem não estritamente formal, uma arrumação simplesmente
convencional ou com critérios exteriores; antes tem de substantivo o carácter
orgânico das relações entre os vários níveis : cada um cresce, desenvolve-se, tende
para o seguinte como seu fim. É precisamente este evolucionismo teleológico que
esclarece o sentido da dimensão reguladora, normativa no pensamento de Peirce.
Desde as artes, passando pelas ciências descritivas, classificatórias, nomológicas, até
à Lógica que por sua vez “parece destinada a converter-se cada vez mais em
matemática”250
, todas as ciências convergem para esse centro que é a ciência das
puras hipóteses. A finalidade da teoria é tornar-se puramente teórica, mas este é um
movimento que lhe diz estritamente respeito, em nenhum momento do texto
248
RLT p.117. 249
cf. O preceito bíblico “conhece-se a árvore pelos seus frutos” como inspiração da
máxima pragmática. O critério para o maior grau de clareza é a finalidade.
110
encontramos qualquer tentativa de reduzir todas as dimensões, teórica e prática, a
esta. Pelo contrário, encontramos um cuidado em marcar as devidas distâncias entre
os dois planos: Platão não fez justiça “a todos aqueles que vivem vidas simples, e
que nem sequer pensam em filosofia”251
ao identificar a influência moral que faz o
valor da filosofia com o conhecimento das ideias puras enquanto fim último da vida.
Mas também o interesse prático, por mais vital e útil que seja, não retira o
predomínio do teórico no domínio do conhecimento: a utilidade não esgota a
finalidade, tal como os veados e árvores que comemos e queimamos têm “fins
próprios, não relacionados com o meu estômago ou pele individual”252
. O ponto de
vista da utilidade é o ponto de vista individual, egoísta e imediato.
Ora, aquilo que é típico da investigação mais pura, as matemáticas, é
precisamente a supremacia da convergência sobre o ponto de vista individual. “O que
constatamos é que homens que trabalham em áreas tão remotas entre si como os
campos de África estão distantes do Klondike, reproduzem as mesmas formas de
hipótese nova”253
. E convergência em direcção a quê? “O fim que a Pura Matemática
persegue é a descoberta daquele mundo potencial real.”254
Resta saber que relações podem existir entre sentimento e razão, depois de
afirmada a sua separação. Ambos têm um carácter cognitivo: também o instinto é
uma capacidade de “desenvolvimento e crescimento” e não um mecanismo rígido a
priori, mas o ritmo dessa aprendizagem e crescimento é muito lento. A fonte da
250
RLT p.120. 251
RLT p.119. 252
RLT p.119. 253
RLT p.120. 254
RLT p.121.
111
aprendizagem é, tal como para a razão, a experiência (“externa” e “interna”) e dá-se
através da instrumentalidade da cognição: “As partes mais profundas da alma só
podem ser atingidas através da sua superfície.”255
Há uma influência da teoria sobre a
prática mas ela não é imediata, antes se faz por “percolação lenta e gradual”256
.
3.UMA TEORIA DO INSTINTO
Da primeira conferência de Cambridge podia pensar-se que desenha dois
campos opostos e mutuamente exclusivos, uma dificuldade a enfrentar num pensador
da continuidade como Peirce, tal como era já estranha afinal a passagem dos métodos
de fixação da crença pré-científicos para o método científico. As restantes
conferências, no entanto, irão permitir detectar as articulações entre razão e
sentimento, conhecimento científico e instinto, que diluem a sua oposição sem porem
em causa a sua diferença, mostrando exactamente a sua continuidade, e que talvez
ajudem a compreender o estatuto das noções normativas e reguladoras em Peirce.
Para elucidar estas questões teremos, também, que fazer uma prospecção em outros
escritos de Peirce, abandonando uma abordagem sistemática e cronológica dos seus
textos.
A quarta conferência desta série de Cambridge de 1898, intitulada “The First
Rule Of Logic”, “A Primeira Regra da Lógica”, começa com a afirmação de “uma
255
RLTp.121-122. 256
RLTp.122.
112
das mais espantosas características do raciocínio, e um dos mais importantes
filosofemas da doutrina da ciência (...) que o raciocínio tende a corrigir-se a si
próprio.”257
Esta característica da autocorrectividade, bastante óbvia no que respeita à
indução, aplica-se também aos outros dois tipos de inferência, a dedução e a
retrodução ou hipótese, na medida em que todo o raciocínio envolve observação e
experiência258
, “o elemento imposto na história das nossas vidas (..) de que somos
constrangidos a tomar consciência através de uma força oculta qu reside num objecto
que contemplamos”259
, em consistência com a concepção peirceana de realidade e
verdade. Deste “poder vital de auto-correcção e crescimento” decorre a condição
essencial para descobrir a verdade, “que é um desejo vigoroso e activo de descobrir a
verdade”260
. A este “desejo sincero”, que motiva a actividade de investigação que se
auto-corrige em direcção à verdade “fnalmente”, “com o tempo”, “se a experiência
pudesse continuar tempo suficiente” e que acaba por se impor a todos os outros
desejos, chama Peirce “the Will to Learn”261
, a Vontade de Descobrir. Mas esta não é
simplesmente aqui um dispositivo retórico. Antes, ela irá permitir entroncar a
actividade racional de investigação ou inquérito naquilo a que autores como
Thompson chamam a “natureza humana” ou estabelecer uma relação de continuidade
entre as condições existenciais e biológicas do investigador e a sua actividade de
257
RLT p.163. Sobre a autocorrectividade cf Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science,
Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1987, cap.1; Davis, W.H., Peirce’s
Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972.cap.3.b.1; e Skagestad,P., The Road of
Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, Cap.6a. 258
Cf RLT pp.169-170. 259
RLT p.170. 260
RLT p.170.
113
investigação. Retomando, enfim, a teoria do inquérito como passagem da dúvida à
crença que tinha sido esboçada nos textos de 1878. Assim também “A primeira coisa
que a Vontade de Descobrir pressupõe é uma insatisfação com o estado presente da
nossa opinião.”262
Curiosamente, a esta insatisfação não é dado aqui um qualquer
cunho biologista, antes ela é tratada ou resulta numa oposição de atitudes
irreconciliáveis que retoma os preceitos socráticos ou as análisas kantianas : a
oposição entre ensinar e aprender263
. O homem que ensina é aquele “plenamente
imbuída da importância vital e da verdade absoluta daquilo que tem de transmitir”,
enquanto que aquele que quer aprender “deve estar penetrado por um sentido do
carácter insatisfatório a condição presente do seu conhecimento”264
. Aquela, a atitude
dogmática, é estéril, enquanto que esta é a única capaz de estimular realmente a
investigação e de “infectar o outros com a mesma doença aparente [uma febre de
descobrir que consome a alma ]”265
, ou seja, é expansiva. Mas esta insatisfação com
o conhecimento presente não é a do céptico, daí que a oposição estabelecida por
Peirce não seja entre cépticos e dogmáticos266
, mas entre os dogmáticos e aqueles
261
Certamente até por referência polemizante à “Will to Believe” de William James, tema e
título de uma obra deste publicada em 1897 e que exprime o pragmatismo do qual Peirce se
demarca. 262
The first thing that the Will to Learn supposes is a dissatisfaction with one´s present state
of opinion.” (RLT p.170-1). 263
No contexto de uma crítica à universidade americana. 264
RLT p.171. 265
RLT p.171. 266
Para Peirce talvez possamos dizer que o verdadeiro “inimigo” é, afinal, o dogmatismo,
até porque o cepticismo é uma forma do dogmatismo. Mesmo o ataque à dúvida cartesiana
como uma forma de dar uso metodológico a um cepticismo radical é mais um ataque ao
dogmatismo acrítico que resulta de uma metodologia extremista. Peirce parece até antes não
levar realmente a sério as posições cépticas, num apelo a uma atitude de razoabilidade ou
bom senso: ninguém é realmente céptico, é uma impossibilidade prática desde logo, mas
também teórica. Presumir ou afirmar a impossibilidade do conhecimento é um absurdo, uma
contradição. O cepticismo, afinal, desde que controlado e integrado metodologicamente, é
114
que investigam: estes não põem em causa o edifício do saber humano no seu
conjunto atacando, por exemplo, o seu suposto fundamento – como poderiam sequer
fazer isto sem se anularem enquanto investigadores ? A sua é uma insatisfação com o
conhecimento existente, o que significa que têm que o tomar em consideração ou que
são guiados pela grande regra da lógica que consiste nisto: “ara que uma indução
seja válida, ela deve ter origem numa dúvida definida ou pelo menos numa
interrogação; e o que é uma tal interrogação senão, primeiro, uma impressão de que
não conhecemos alguma coisa, segundo, um desejo de conhecê-la, e terceiro, um
esforço – que implica uma disposição para trabalhar – para vermos o que pode
realmente ser a verdade. Se esta interrogação te inspira, então certamente examinarás
as instâncias; enquanto que se ela não te inspirar, não lhes prestarás atenção.”267
O
que equivale a dizer que a dúvida que motiva a investigação é uma dúvida viva ou
dúvida real e não uma “dúvida fictícia”; a única que pode realmente contribuir para
“a mais rápida elevação do homem àquela condição de animal racional de que ele é a
forma embriónica”.268
É que o edifício da ciência construído até aqui, ou o
indispensável. Aliás, o senso comum crítico evidencia uma mistura destas duas posições em
relação ao cepticismo. Talvez até a apreciação que Peirce faz de Hume indique também isto:
apesar de achar que ele defende posições exactamante contrárias às suas, aprecia-o
suficientemente para ser até surpreendente a sua proximidade, como veremos na secção
seguinte. 267
“(…)an induction to be valid must be prompted by a definite doubt or at least an
interrogation; and what is such an interrogation but 1st, a sense that we do not know
something, 2nd, a desire to know it, and 3rd, an effort, - implying a willingness to labor, -
for the sake of seeing how the truth may really be. If that interrogation inspires you, you will
be sure to examine the instances; while if it does not, you will pass them by without
attention.” (RLT p.171-2). 268
RLT p.172. Finalidade, realização de uma potência: os factos são passíveis de
desenvolvimento; são um movimento em direcção a, uma possibilidade de, uma disposição
para; envolvem sempre, pois, uma referência a uma qualquer instância normativa, o ideal
para que se dirigem. Nisto e expressa o empirismo de Peirce, que quer ser fiel ao espírito
115
conhecimento humano é ainda “uma colecção de pedras recolhidas por uma criança
na praia – o vasto oceano do Ser ainda aí inexplorado.”269
A nossa ciência é
superficial e o seu âmbito é estreito, e isto desde logo, segundo Peirce, devido
precisamente à sua origem no instinto ou devido ao facto de ser um desenvolvimento
do conhecimento natural representado pelo instinto. A origem instintiva do
conhecimento explica o tipo de relações entre fenómenos que são para os humanos
significativas, relações dinâmicas como desenvolvimento dos intintos relacionados
com a necessidade de nutrição que forneceram a todos os animais algum
conhecimento virtual de espaço e de força e fez deles físicos aplicados; e relações
sociais como desenvolvimento dos instintos relacionados com a reprodução sexual e
que forneceram a todos os animais que se nos assemelham uma compreensão virtual
das mentes de outros animais do seu tipo, pelo que são psicólogos aplicados
No quinto dos seis textos de 1878 que constituem as “Ilustrations of the logic of
science”, intitulado “The Order of Nature”270
, “A Orem da Natureza”, um problema
levantado pela indução, o facto de que “há certas induções que apresentam uma
aproximação à universalidade de tal modo extraordinária que, mesmo supondo que
não são estritamente verdades universais, não podemos simplesmente pensar que são
resultado do puro acaso”271
, é tratado nos termos da biologia evolucionista: a
“adaptação” entre a mente humana e o mundo, por sua vez explicada como resultado
empirista sem sucumbir às suas consequências pessimistas – e tenta fazê-lo através uma
mistura de kantismo regulador, platonismo das formas eternas, e realismo medievalista. 269
RLT p.172. 270
C.P. 6.395-427 271
“(…)there are certain of our inductions which present an aproach to universality so
extraordinary that, even if we are to suppose that they are not strictly universal truths, we
cannot possibly think that they have been reached purely by accident.” (C.P. 6.416)
116
da "selecção natural"272
, explica a naturalidade com que certas concepções, como as
de espaço, tempo e força, surgem na mente humana, como aliás surgem já na mente
animal273
. Estas concepções surgem como estratégias de sobrevivência
suficientemente vantajosas para serem seleccionadas; e a ciência parece estar então
em continuidade com esta concepção estratégica. Mas Peirce tem algumas reservas
quanto a esta hipótese evolucionista, concluindo o parágrafo com a admissão de que
“não parece ser suficiente para dar conta da extraordinária precisão com que estas
concepções se aplicam aos fenómenos da natureza, e é provável que haja aqui ainda
algum segredo por descobrir.”274
De qualquer modo, encontramos este tema
evolucionista, da continuidade entre estratégias vitais seleccionadas e conhecimento
científico, nos textos posteriores de Peirce, inclusive nas conferências de Cambridge.
Mas ainda antes, num texto da “Grand Logic” de 1893, intitulado “Association”275
, a
propósito da questão das verdades psicológicas necessárias para a lógica, Peirce
elabora esta continuidade articulando-a com a questão da indubitabilidade prática.
Assim, em C.P.7.421, afirma a existência de uma psicologia natural, em parte
instintiva, em parte resultado da experiência, e que ainda que possa conter muitos
erros, isto é, a sua eficácia não é garantia da sua verdade, tem uma autoridade prática:
seria ocioso duvidar da sua verdade prática, e esta verdade prática deve sem dúvida
ser referida à sua eficácia enquanto estratégia adaptativa. Já num outro texto, este de
272
cf. C.P. 6.417-418. 273
C.P. 6.416. 274
C.P.6.418. 275
C.P. 7.388-467.
117
1883, “A Theory of Probable Inference”276
, é explicitamente afirmado que “todo o
conhecimento humano, até aos mais elevados vôos da ciência, não é senão o
desenvolvimento dos nossos instintos animais inatos”277
e esta importante verdade
completa a proposição bem estabelecida segundo a qual “todo o conhecimento se
baseia na experiência, e a ciência só avança através das verificações experimentais
das teorias”278
e funciona como guia para os indivíduos no vasto e desorganizado
repertório de factos que constitui a natureza, ao conceder-lhes “aptidões especiais
para conjecturar correctamente.”279
De tal modo, que “até agora o homem não
conseguiu atingir qualquer conhecimento que não seja, num sentido lato, ou
mecânico ou antropológico na sua natureza, e pode razoavelmente presumir-se que
nunca o conseguirá”.280
Para além de antropologicamente condicionado ou antropomórfico – regressando
à quarta conferência – e assim limitado no seu alcance, o nosso conhecimento é
incerto e inexacto. Mas esta incerteza, que decorre da epistemologia falibilista,
limita-se ao domínio da teoria ou da ciência. Assim, “quando digo que uma
inferência retrodutiva não é de todo uma questão de crença, encontro esta
dificuldade, que há certas inferências que, consideradas cientificamente, são sem
dúvida hipóteses, mas que, do ponto de vista da prática, são perfeitamente certas.”281
276
Aparece a público em 1883, numa obra colectiva editada por Peirce com trabalhos dos
seus alunos de Lógica em Johns Hopkins; pretende ser incluido na obra projectada de 1893
“Search for a Method”. 277
C.P. 2.754. 278
C.P. 2.754. 279
C.P. 2.753. 280
C.P. 2.753.
281
RLT p.176.
118
Mais uma vez, há que examinar as diferentes exigências da teoria e da prática. Tendo
como finalidade aprender a lição que o universo tem para lhe ensinar, a ciência
procede indutivamente, isto é, simplesmente submete-se à força dos factos. Mas na
medida em que busca a explicação dos factos, a ciência não pode limitar-se a uma
enumeração ou registo deles: “É levada, em desespero, a recorrer à ajuda da sua
simpatia interna com a natureza, do seu instinto”282
Esta é uma afirmação bastante
mais enfática do que a que encontráramos na primeira conferência, onde o que se
dizia era simplesmente que “somos frequentemente levados em ciência a
experimentar as sugestões do instinto”283
. Aqui, o recurso ao instinto é apresentado
como uma necessidade, e justificado até em nome de uma simpatia interna com a
natureza. Mas a consequência deste recurso não é um fundamento absolutamente
seguro postulado, uma espécie de revelação natural imediata a que a razão se
submeteria. Antes ela é uma confirmação do falibilismo e surge neste momento do
texto uma das suas metáforas mais sugestivas : “Mas na medida em que o faz, o
chão sólido dos factos foge debaixo dos seus pés. Sente a partir desse momento que a
sua posição é apenas provisória. Deve então encontrar confirmações ou então mudar
o seu ponto de apoio. Mesmo que encontre confirmações, elas são apenas parciais.
Ainda não está assente na base firme dos factos. Caminha sobre um pântano, e pode
apenas dizer que, de momento, este chão parece firme. Aqui ficarei até que comece a
dar de si.”284
A metáfora do pântano exprime o carácter provisório do conhecimento
282
RLTp.176. 283
RLT p.112. 284
“But insofar as it does this, the solid ground of fact fails it. It feels from that moment that
its position is only provisional. It must then find confirmations or else shift its footing. Even
if it does find confirmations, they are only partial. It still is not standing upon the bedrock of
119
mas também aquilo que lhe confere o seu dinamismo: quando o chão debaixo dos
nossos pés começa a falhar, somos obrigados a continuar em busca de um ponto de
apoio mais firme. Os factos são para a ciência aquilo que promete uma geografia
estável, os indicadores da natureza como algo “grande, e belo, e sagrado e eterno, e
real (...) o objecto da sua devoção e da sua aspiração.”285
O movimento da ciência
faz-se gradualmente em direcção a esse objecto global dado apenas em fragmentos,
os factos são os veículos da verdade eterna. A atitude da prática perante os factos é,
segundo Peirce, tudo menos reverencial: os factos , as forças arbitrárias com as quais
temos que contar e que temos de enfrentar, são os obstáculos que ela tem que
ultrapassar, o inimigo que está apostada em vencer. No plano da prática estamos em
pleno confronto, em plena luta pela sobrevivência, daí o seu carácter urgente, a sua
necessidade de algo em que se basear, a verdade de facto ou, pelo menos, uma
elevada probabilidade. Uma hipótese resistente torna-se rapidamente, para a prática,
um objecto de crença286
, justificando a disposição para arriscar bastante com base
numa proposição. Mas, para a ciência, as hipóteses, mesmo as mais resistentes,
mantêm-se aquilo que são, hipóteses, teorias explicativas sujeitas a confirmação, e
não questões de crença. O seu estatuto de verdades estabelecidas, como tinha já sido
afirmado na primeira conferência, equivale simplesmente a dizer que “são
fact. It is walking upon a bog, and can only say, this ground seems to hold for the present.
Here I will stay till it begins to give way.”(RLTp.176-177) 285
RLT p.177. 286
“As practice apprehends it, the conclusion no longer rests upon mere retroduction, it is
inductively supported. For a large sample has now been drawn from the entire collection of
occasions in which the theory comes into comparison with fact, and an overwhelming
proportion, in fact, all the cases that have presented themselves, have been found to bear
out the theory. And so, says Practice, I can safely presume that so it will be with the great
120
proposições em relação às quais a economia do inquérito prescreve que, de momento,
cesse sobre elas a investigação.”287
Mas isto não introduz, segundo Peirce, qualquer ambiguidade na noção de
verdade. Antes apenas mostra que há dois tipos de sentido para a expressão “tomar
por verdadeiro”, duas atitudes perante a verdade, dois interesses ou duas finalidades:
“uma é o tomar por verdadeiro prático, o qual apenas tem direito ao nome de Crença,
enquanto o outro é aquela aceitação de uma proposição que na intenção da pura
ciência se mantém sempre provisória.”288
O primeiro tipo, sendo inevitável do ponto
de vista da prática, é definitivamente incompatível com a ciência, na medida em que
põe em causa ou condena a “Vontade de Descobrir”, a primeira e única grande regra
da razão: “para sermos capazes de descobrir temos que desejar descobrir e ao desejar
isto não ficarmos satisfeitos com aquilo que já nos inclinamos a pensar”289
; e cujo
corolário, “que merece por si mesmo ser inscrito em cada parede da cidade da
filosofia”290
, é “Não Bloquear a Via da Investigação”291
. Fazê-lo é, segundo Peirce,
a única ofensa imperdoável no raciocínio, o erro no seu sentido mais forte, a única
forma de impedir a operação da autocorrectividade do pensamento. Mas é isto que a
bulk of the cases in which I shall go upon the theory, especially as they will closely
resemble those which have been well tried.” (RLTp.176). 287
RLT p.178.
288
RLTp.178. 289
RLTp.178.Esta insistência no desejo será de inspiração platónica? O eros e a palavra eros
é explicitamente utilizada na primeira conferência. E exprime a recusa de Peirce em reduzir
a animação dos indivíduos à estrita auto conservação hobbesiana. E, curiosamente, é o
desejo que controla o instinto e o faz transfigurar em razão regulada por um ideal, em razão
teórica como autodeliberação. Da auto-conservação à autodeliberação assistimos ao
nascimento do moral a partir do fáctico, do dever ser a partir do ser . 290
RLT p.178. 291
“Do Not Block the Way of Inquiry” (RLT p.178).
121
metafísica tem feito ao longo dos tempos292
; e é esta mais uma razão para que se
aproxime da ciência.
4.PEIRCE E HUME :INSTINTO, RAZÃO E HÁBITO.
Uma abordagem das relações entre Peirce e Hume daria por si só uma outra
dissertação, autónoma e longa. São explícitos por parte de Peirce os sinais de uma
marcada oposição, “tudo o que Hume atacou eu defendo”, e Hume seria o filósofo “a
cujo método de filosofar eu fui desde sempre talvez demasiado intensamente
avesso.”293
. Esta “aversão” pode descrever-se em dois pontos fundamentais: um
deles, aparentemente superficial, é que, segundo Peirce, “Hume era um homem de
letras, e uma das principais características do seu estilo filosófico é que ele
continuamente tentou adornar as ideias filosóficas numa fraseologia fresca e
292
Os quatro bloqueios são: 1) “absolute assertion” 2) “maintaining that this, that, and the
other never can be known” 3) “maintaining that this, that, or the otherelement of science is
basic, ultimate, independent of aught else and utterly inexplicable” 4) “the holding that this
or that law or truth has found its last and perfect formulation” (RLT pp.179-180).
293 C.P. 6.605. Ao mesmo tempo, as referências a Hume são geralmente acompanhadas de
observações senão lisonjeiras, pelo menos expressando admiração: “From Kant I was led to
the admiring study of Locke, Berkeley and Hume” (C.P. 1.506 – 1905); “Whatever work he
read he did not understand; yet in a confused and untenable form, he put forth ideas of his
own of considerable value.” (C.P. 7.171 –: 1901); “the argument which was stated with such
consumate skill by Hume” (ibid.); “Hume, whose cogtations led up to the recognition of
Association as the one law of mind, most judiciously remarks (…) That phrase ‘a gentle
force which commonly prevails’ describes the phenomenon to perfection.” (C.P. 7.390 –
1893); “Hume in his Dialogues Concerning Natural Religion justly points out(…)” (C.P.
6.494 – 1906); “As close a reasoner as Hume was(…)” (C.P. 6.542); “As if he were a
Hume” (C.P.8.244).
122
moderna.”294
Esta inclinação literária de Hume custar-lhe-á, aos olhos de Peirce, o
ideal científico, que deve ser também o da filosofia. “Hume, que sacrificou a melhor
parte do seu sistema para tornar populares os seus Inquiries”295
não seria certamente
o ideal do filósofo para alguém que, como Peirce, sacrifica o estilo pela técnica, a
ponto de inventar uma proliferação de termos novos e indigestos. O segundo, já
referido no capítulo 1, tem a ver com o facto de Hume ser um dos exemplares mais
proeminentes do nominalismo típico da filosofia moderna a partir de Descartes:
“Descartes, Leibniz, Locke, Hume e Kant, os grandes marcos dahistória da filosofia,
foram todos nominalistas evidentes.” 296
Nesta medida, os textos anti-cartesianos de
Peirce são tanto contra Descartes como contra Hume e a tradição empirista britânica.
E são-no num sentido forte e não apenas derivado, na medida em que, como diz Peter
Skagestad “o ponto de partida para o cepticismo humeano não é outro senão o
fundacionalismo de Descartes, i. e., uma concepção do conhecimento como um
edifício que precisa de alicerces seguros.”297
São-no, assim, no sentido em que o
modelo cartesiano do conhecimento, a exigência epistemológica de um ponto de
partida absolutamente fundado, conduz directamente a um cepticismo extremo, tão
radical quanto radical – fundacionalista – é a pretensão a um conhecimento absoluto.
O falibilismo de Peirce, sustentado na crítica à intuição como faculdade cognitiva
especial suposta axiomaticamente por empiristas e racionalistas, envolve uma
294
“Hume was a literary man, and one of the characteristics of his philosophical style was
that he was continually endeavouring to clothe philosophical ideas in fresh and modern
phraseology.” (C.P. 6.541) 295
C.P. 6.513. 296
C.P. 4.50 (1893). Cf. também C.P. 4.33 e CFI: o ataque à sensação como intuição ou
“first impression of sense”. 297
Skagestad,P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press 1981, p.18.
123
redescrição da actividade mental que se contrapõe também decididamente à
psicologia filosófica de Hume. Assim, as associações entre ideias são, para Peirce,
inferências298
,e a sua intenção nestes primeiros textos é, afirmadamente, reduzir
todas as formas de acção mental ao raciocínio válido. Isto converge com a intenção
de des-psicologizar a lógica, num processo curiosamente inverso àquele em que
redunda a concepção humeana da actividade mental, onde o psicológico se impõe ao
lógico, este sendo visto como uma extensão ilegítima daquele no que respeita ao
conhecimento sintético, ao domínio das questões de facto, e faz desembocar no
cepticismo. Aquilo que para Peirce está errado no modelo fundacionalista em geral e
particularmente em Hume, é precisamente a má compreensão do funcionamento do
raciocínio, e esta má compreensão manifesta-se em Hume na sua famosa distinção
entre “relações entre ideias” e “questões de facto”.
A “forquilha de Hume” (Hume´s fork) divide, então, as proposições segundo
um critério que consiste na possibilidade ou impossibilidade de conceber o contrário
daquilo que a proposição afirma, de negar a proposição sem envolver ou envolvendo
uma contradição. Uma proposição como “que três vezes cinco é igual à metade de
trinta”299
expressa relações entre ideias, pode “descobrir-se pela simples operação do
pensamento, sem dependência do que existe em alguma parte do universo”300
, é
“intuitiva ou demonstrativamente certa”. Já uma proposição como “que o sol não se
há-de levantar amanhã”301
, cuja negação não implica uma contradição e “é concebido
pela mente com a mesma facilidade e nitidez, como se fosse idêntico à realidade”, é
298
C.P.5.307. 299
Hume,D., Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985 p.31 300
ibid. p.31
124
uma questão de facto e não deriva de raciocínios a priori mas antes “inteiramente da
experiência, ao descobrirmos que alguns objectos particulares se combinam
constantemente uns com os outros”302
. Esta distinção desemboca então naquela entre
conhecimento a priori e conhecimento a posteriori, e traça uma linha de demarcação
entre as ciências demonstrativas, como “a Geometria, a Álgebra e a Aritmética”303
,
onde a razão funciona num regime de autonomia, e as ciências de descoberta, aquelas
que pretendem aumentar o conhecimento acerca da experiência; e também na
distinção entre necessário e contingente. No caso de Hume, as primeiras não são
problemáticas do ponto de vista da validade304
, são “demonstrativa ou intuitivamente
certas”, a sua origem é a intuição e a demonstração, conservam “para sempre a sua
certeza e evidência”305
, representam e realizam o ideal do conhecimento absoluto. As
segundas “não são indagadas da mesma maneira, nem a nossa evidência da sua
verdade, por maior que seja, é de natureza semelhante à precedente”, a sua origem é a
observação e a inferência causal, pelo que levantam a questão de saber “qual é a
natureza da prova que nos assegura acerca de qualquer existência real e questão de
facto, para além do testemunho presente dos nossos sentidos ou dos registos da nossa
memória”, ou seja, o que nos permite passar da experiência passada ou presente para
uma antecipação da experiência futura a que possamos dar o nome de conhecimento,
301
ibid. p.32 302
ibid. p.33 303
ibid. p.31 304
A sua problematicidade tem antes a ver com o seu estatuto numa filosofia empirista , na
medida em que acabam por representar uma concessão ao racionalismo ou uma admissão de
inatismo; de qualquer modo, estabelecem um golfo entre razão e experiência que se revela
difícil de preencher, e que acaba por dar o mote a toda a filosofia moderna, com expressão
significativa na Crítica da Razão Pura de Kant. 305
Hume, D., Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985, p.31.
125
o que nos permite passar da experiência dos casos para o conhecimento da lei que os
rege. Dito de outro modo, Hume identifica a indução como a operação lógica
fundamental no que respeita a questões de facto, tal como identificara a dedução
como operação lógica em acção relativamente a relações entre ideias, e coloca no
centro da problemática epistemológica a fundamentação da indução, essa operação
lógica com a qual pretendemos lidar com a experiência e retirar dela conhecimento
de carácter geral. Temos, assim, de um lado a dedução caracterizada pela certeza e,
do outro, a indução tornada problemática e, finalmente, injustificada, na medida em
que em Hume se considera ser a projecção indevida de um hábito. A indução é uma
operação lógica “deficiente” quando comparada com a dedução à luz da exigência de
certeza e põe em causa todo o conhecimento sintético, toda a pretensão de virmos a
descobrir as leis que regem os fenómenos306
. A esta divisão assimétrica entre
operações lógicas junta-se, em Hume, a rejeição daquela característica da acção
mental, e de todas as operações lógicas que a constituem – incluindo a dedução! –
que é central em Peirce e que é, de resto, o objecto da quarta conferência de
Cambridge, “The First Rule of Logic”: a auto-correctividade do pensamento. Para
Hume, e isso é claro no Treatise, não há qualquer aproximação à verdade, por mais
que persistamos na investigação, e a probabilidade é concebida estritamente no
sentido negativo de ausência de certeza absoluta. Todo o conhecimento que obtemos
da experiência é meramente provável, o processo que nos permite obter esse
conhecimento está sujeito ao erro, pelo que a probabilidade recai sobre o próprio
306
cf. Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.175, onde
distingue entre três tipos de evidência: conhecimento, provas, probabilidade.
126
juízo que afirma a probabilidade de algo e assim sucessivamente, “até que finalmente
não sobre nada da probabilidade original, ainda que tenhamos suposto ser muito
grande, e ainda que seja pequena a sua diminuição a cada nova incerteza.”307
.
A superação deste quadro por Peirce será objecto da secção seguinte deste
trabalho, onde se tratará a teoria da hipótese. O veredicto de Peirce quanto a Hume e
a sua concepção da lógica da investigação é que ele se enganou completamente
quanto à natureza da verdadeira lógica da abdução”308
. Mas se existe uma oposição
tão marcada, e uma rejeição tão veemente, de Peirce em relação a Hume, da sua
epistemologia e psicologia nominalistas de consequências cépticas, há um ponto,
aquele que nos ocupa neste momento, onde se aproximam, mas para se afastarem
logo a seguir, e esse ponto é o das relações entre razão e instinto. O próprio Peirce
reconhece esta coincidência de pontos de vista num texto de 1906: “A quarte parte do
primeiro livro do Tratado da Natureza Humana de Hume fornece argumentos fortes
a favor da correcção da minha perspectiva segundo a qual a razão é um mero
sucedâneo que usamos onde o instinto falha, ao mostrar a maneira intensamente
ridícula como um homem se pode enrolar em dúvidas de papel tolas quando decide
atirar o senso comum, i. e., o instinto, pela borda fora, e ser perfeitamente
racional.”309
A aproximação começa logo pela questão da continuidade entre o
307
“(…)till at last there remain nothing of the original probability, however great we may
suppose it to have been, and however small the diminution by every new uncertainty.”
Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.233. cf. Peirce C.P.
1.383. 308
C.P. 6.537. 309
“The fourth part of the first book of Hume´s Treatise of Human Nature affords strong
argument for the correctness of my view, that reason is a mere succedaneum to be used
where instinct is wanting, by exhibiting the intensely ridiculous way in which a man winds
127
homem e os restantes animais como entidades biológicas de comportamento
adaptativo. Na secção “Da Razão dos Animais” no livro I do Tratado da Natureza
Humana, Hume atribui ao homem e restantes animais igualmente capacidades
cognitivas. Esta comunidade racional é afirmada em virtude da “semelhança entre as
acções externas dos animais e aquelas que nós próprios praticamos, que nos leva a
julgar que as suas acções internas são igualmente semelhantes às nossas; e o mesmo
princípio de raciocínio levado um passo mais adiante far-nos-á concluir que, sendo
as nossas acções internas semelhantes umas às outras, as causas de que elas provêm
também devem ser semelhantes. Quando, pois, avançamos uma qualquer hipótese
para explicar uma operação mental comum aos homens e aos animais, devemos
aplicar a mesma hipótese a uns e outros; e como toda a hipótese verdadeira suportará
esta prova, do mesmo modo posso atrever-me a afirmar que nenhuma hipótese falsa
será alguma vez capaz de resistir-lhe.”310
Assim, as acções dos animais “afirmo que
têm origem num raciocínio que não é em si mesmo diferente, nem fundado em
princípios diferentes daqueles que ocorrem na natureza humana.”311
Tal como no
caso dos humanos, também os animais não percebem directamente conexões reais
entre objectos, mas inferem-nas a partir da experiência, e as suas generalizações são
himself up in silly paper doubts if he undertakes to throw common sense, i.e., instinct
overboard and be perfectly rational.” (C.P. 6.500) 310
“resemblance of the external actions of animals to those we ourselves perform, that we
judge their internal likewise to resemble ours; and the same principle of reasoning, carry’d
one step farther, will make us conclude that since our internal actions resemble each other,
the causes, from which they are deriv’d, must also be resembling. When any hypothesis,
therefore, is advanc’d to explain a mental operation, which is common to men and beasts,
we must apply the same hypothesis to both; and as every true hypothesis will abide this trial,
so I may venture to affirm, that no false one will ever be able to endure it.” Hume, D., A
Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.226.
128
também um efeito do costume ou hábito: à comunidade de razão associa-se uma
comunidade epistemológica. Logo, o que encontramos no procedimento cognitivo
animal sendo paralelo ao que encontramos no procedimento cognitivo humano,
Hume conclui esta sua secção invertendo o paralelismo com que havia começado: se
há razões para atribuir razão aos animais, há as mesmas razões para atribuir à razão
humana um carácter instintivo que reforça a continuidade entre ambos. Ou, não
estando a razão justificada nas suas relações com a experiência, será talvez afinal
mais sensato ver nas suas operações o reflexo de um instinto adaptativo que de
alguma forma a separa ainda mais das exigências demonstrativas, absolutas,
normativas da sua operatividade dedutiva. “Vendo bem, a razão não é mais do que
um instinto maravilhoso e ininteligível nas nossas almas, que nos conduz ao longo de
uma certa sucessão de ideias e lhes confere qualidades particulares, de acordo com
as suas situações e relações particulares.”312
A indução, ou propensão para fazer
induções, é, então, um instinto cognitivo partilhado por humanos e animais.
A posição de Hume consiste, então, em sublinhar que a razão não é senão
instinto, ou encontra a sua justificação numa propensão instintiva, e esta origem
biológica serve propósitos cépticos ao associar o valor provável dos juízos sobre
“questões de facto” a uma disposição fora do controlo racional. Ou, como diz Peirce,
“se alguma coisa ele prova é que o raciocínio enquanto tal é ipso facto e
311
“I assert they proceed from a reasoning, that is not in itself different, nor founded on
different principles, from that which appears in human nature.”ibid., p.227. 312
“To consider the matter aright, reason is nothing but a wonderful and unintelligible
instinct in our souls, which carries us along a certain train of ideas, and endows them with
particular qualities, according to their particular situations and relations.” ibid., p.228.
129
essencialmente ilógico, ‘ilegítimo’ e irracional”313
Esta é uma consequência
inescapável num quadro epistemológico dominado pela ideia de certeza absoluta ou
demonstração a partir de premissas absolutamente fundadas. É que a razão para
concluir da ilogicalidade das operações racionais “é que ou se trata de mau
raciocínio, ou está baseado em premissas duvidosas, ou então essas premissas não
foram completamente criticadas.”314
Ora, toda a argumentação de Peirce se constrói
precisamente em torno da concepção segundo a qual o fundacionalismo é, não apenas
um beco sem saída, uma estratégia paralizante, mas principalmente é uma estratégia
que não pode sequer ser levada a cabo. Retomando os termos em que o inquérito é
descrito, qualquer dúvida genuína surge no contexto de um corpo de crenças que
cede parcialmente numa dada situação originando uma frustração de expectativas. A
dúvida genuína surge desta experiência de frustração que supõe no organismo ou no
investigador um dado estado cognitivo, e “a partir do momento em que chegamos a
uma proposição que é perfeitamente satisfatória, de tal modo que não somos capazes
de ter em relação a ela a menor dúvida, este facto impede-nos de fazer qualquer
crítica genuína sobre ela.”315
A base do conhecimento é este carácter satisfatório,
esta infalibilidade prática que, do ponto de vista da teoria, é apenas provisionalidade.
O ponto central que separa Hume de Peirce é, aliás, sugestivamente descrito por este:
“De modo que o argumento de Hume conduzi-lo-ia a afirmar que raciocinar é
‘ilegítimo’ porque as suas premissas são perfeitamente satisfatórias não levantam
dúvidas genuínas . Ele confessa candidamente que elas são satisfatórias para ele
313
C.P. 6.500. 314
C.P. 6.500.
130
mesmo. Mas parece ficar insatisfeito consigo mesmo por estar satisfeito. É fácil ver,
no entanto, que ele dá a si próprio uma palmadinha nas costas, e está muito satisfeito
consigo mesmo por estar tão insatisfeito por estar satisfeito.”316
O instinto em Peirce atesta, assim, de alguma forma a origem do estado cognitivo
em que qualquer organismo se encontra e a partir do qual pode, em confronto com a
experiência e, no caso humano, sob vigilância do controlo racional deliberado, levar
a cabo inquéritos com resultado positivo. A própria actividade racional controlada ou
deliberada317
, acaba por encontrar justificação nesta sua origem biológica, e este é
mais um ponto que separa Hume e Peirce no que respeita às relações entre razão e
instinto. Em Hume, algumas operações consideradas racionais são afinal irracionais,
injustificadas porque instintivas; outras são justificadas porque estritamente
racionais. A forma como Peirce consegue uma avaliação oposta das relações entre
razão e instinto, onde o tom geral é que o instinto é já razão, e que então uma
separação estrita entre dedução e indução deixa de fazer sentido, passa por uma
reapreciação do mecanismo que, de algum modo, está no centro de todo o problema :
o hábito.
315
C.P.6.500. 316
“So that what Hume´s argument would lead him to is that reasoning is ‘illegitimate’
because it´s premisses are perfectly satisfactory não levantam dúvidas genuínas . He
candidly confesses that they are satisfactory to himself. But he seems to be dissatisfied with
himself for being satisfied. It is easy to see, however, that he pats himself on the back, and is
very well satisfied with himself for being so dissatisfied with being satisfied.” (C.P. 6.500)
317
Veja-se a distinção entre logica utens e logica docens em que Peirce insiste ao longo dos
seus textos: esta é uma forma consciente daquela; pensamos bem, podemos é não conhecer
as regras, este conhecimento é posterior à sua utilização, esta não depende daquele, mas
pode beneficiar com ele.
131
Em Hume, o hábito surge para explicar aquilo que a razão por si só não é
capaz de fazer, atingir concepções gerais a partir dos dados da experiência sensível,
isto no âmbito do seu projecto naturalista. Serve de alguma forma para marcar o
carácter “factual” das conjunções regulares, retirando-lhes o carácter normativo
associado às relações entre ideias. A lei no domínio do conhecimento empírico ou
sintético é uma generalização projectiva de base psicológica, um efeito do modo
como a mente humana não consegue deixar de funcionar, a manifestação, subjectiva,
de uma tendência instintiva cujo resultado são “ficções”, de que são exemplo a
identidade pessoal ou a ideia de causalidade. O hábito é, assim, uma simples
regularidade que, na medida em que ultrapassa as instâncias cuja observação lhe terá
dado origem, se torna problemática ou, pelo menos, é vista como irracional, como
algo em relação ao qual o organismo não tem escolha, não sendo uma questão de
raciocínio ou razões, logo também não sendo passível de aperfeiçoamento : é uma
pura tendência involuntária, um sentimento que, quando muito, fornece uma razão
para desconfiar da razão. Também para Peirce os princípios de inferência são
meramente hábitos. Mas o estatuto destes em Peirce é substancialmente diferente :
não são simples regularidades que se esgotam nas suas actualizações mas são
propriamente regras, têm carácter normativo, não se reduzem a uma simples
constatação factual318
. Esta dimensão torna-se evidente aquando da exposição da
teoria do inquérito como passagem da dúvida à crença. Um dos elementos da crença
é, precisamente, comportar o estabelecimento de uma “regra de acção, isto é, de um
318
Já nos textos de 1868 Peirce faz uma analogia entre hábito e lei geral; depois, no artigo
sobre a edição de Fraser das obras de Berkeley, tratado no primeiro capítulo deste trabalho,
132
hábito”e assim a função do pensamento é “produzir hábitos de acção”319
. Assim, o
hábito não tem como referência apenas a experiência passada, não é apenas o
resultado final de uma colecção de instâncias. Antes se estabelece no organismo
como uma lei ou regra geral que passa a governar a sua conduta futura, manifesta-se
como disposição para agir de um certo modo dadas certas circunstâncias. Enquanto
princípio condutor da acção, dá a esta um carácter lógico320
e não meramente
reactivo, constitui-se como um princípio de inferência que torna o comportamento
num assunto cognitivo, racional. Os hábitos são uma forma de controlo sobre a
experiência em continuidade com a metodologia da investigação científica, ou
constituem aquele estado cognitivo que pode gerar a necessidade do inquérito. Um
hábito estabelecido é uma crença, esta é um juízo com base no qual iremos agir e
pode traduzir-se num conjunto de proposições condicionais verificáveis, ou
estabelece condições de observação e resultados esperados, que constituem o seu
sentido. Por mais indutiva que seja a sua origem, os hábitos não são simplesmente
descritivos, são prescritivos, determinam a acção futura, definem possibilidades.
De algum modo, a desqualificação do hábito como uma força irracional ou
sentimento constrangente prende-se com o lugar dado à indução como forma por
excelência do conhecimento sintético e com a visão pessimista das relações entre
razão e instinto. A teoria da hipótese em Peirce irá precisamente tentar ser uma
resposta a estas questões, uma tentativa de dispersar as desconfianças em relação à
razão que decorrem do seu pano de fundo sentimental.
a noção de hábito no sentido de Duns Escoto surge como solução para o estatuto dos
universais; finalmente, desemboca na teoria do sentido contida na máxima pragmática. 319
C.P. 5.400.
133
5. A TEORIA DA HIPÓTESE
Porque é que em Peirce as relações entre a razão e o instinto não nos devem
fazer desesperar da razão, nem lançam suspeitas sobre as suas pretensões ao
conhecimento? A resposta passa por uma reformulação da questão kantiana - como
são possíveis os juízos sintéticos a priori - e da sua solução transcendental para o
cepticismo de Hume. Já nos textos de 1868 Peirce a pusera do seguinte modo: “De
acordo com Kant, a questão central da filosofia é ‘Como são possíveis os juízos
sintéticos a priori? Mas antes disto está a questão de saber como são possíveis os
juízos sintéticos em geral e, ainda mais geralmente, como é sequer possível o
raciocínio sintético. Quando a resposta ao problema geral tiver sido dada, a resposta
particular será comparativamente simples. Esta é a fechadura da porta da
filosofia.”321
Esta “generalização” da questão central da filosofia tem consequências
imensas. Não é apenas o “universal e necessário” que está em causa, este é um caso
particular da possibilidade do conhecimento sintético em geral - todo ele, mais ou
menos “colado” à experiência ou à observação exige justificação. Nenhuma
presunção de contacto directo com os objectos vale, nenhuma pura recepção das
320
Cf. C.P.5.268: O fucionamento do organismo é análogo ao funcionamento do silogismo. 321
“According to Kant, the central question of philosophy is ‘How are synthetical
judgements a priori possible?’ But antecedently to this comes the question how synthetical
judgements in general, and still more generally, how synthetical reasoning is possible at all.
When the answer to the general problem has been obtained, the particular one will be
comparatively simple. This is the lock upon the door of philosophy.” (C.P. 5.348).
134
coisas pela mente é plausível. O erro comum de racionalistas e empiristas quanto às
operações básicas da actividade mental fora já detectado: a suposição de que há pelo
menos algum tipo de conhecimento, originário, fundante, certo, que resulta de uma
apreensão imediata dos objectos por uma faculdade cognitiva especial, a intuição.
Estas intuições primitivas que desencadeariam um processo cognitivo mais vasto
forneceriam o critério de certeza, seja “racionalisticamente” pela clareza e distinção
das ideias, seja “empiristicamente” pela recepção de impressões externas no aparelho
sensorial. À acusação de “nominalismo”, aliás, nem Kant escapa: “Kant era um
nominalista; embora a sua filosofia tivesse ficado mais compacta, mais consistente e
mais forte se o seu autor tivesse adoptado o realismo, o que certamente teria feito se
tivesse lido Escoto.”322
A crença segundo a qual se pode aceder a elementos simples
da realidade, últimos, inanalisáveis e por isso mesmo fundadores - a vontade de
encontrar um domínio de entidades e de particulares últimos, precisos, intuitivamente
acessíveis que permitam um contacto imediato com a realidade transcendente à
mente e aos seus produtos, as representações, fundando-os323
, não permite ultrapassar
o cepticismo de Hume. Como alternativa a esta descrição do mental em contacto
directo com o não mental através de faculdades misteriosas, Peirce propõe uma
descrição do pensamento como fluxo contínuo de inferências, como actividade
322
“Kant was a nominalist; although his philosophy would have been rendered compacter,
more consistent and stronger if its author had taken up realism, as he certainly would have
done if he had read Scotus.” (C.P. 1.19). 323
“But, in fact, a realist is simply one who knows no more recondite reality than that
which is represented in a true representation. Since, therefore, the word ‘man’ is true of
something, that which ‘man’ means is real. The nominalist must admit that man is truly
aplicable to something; but he believes that there is beneath this a thing in itself, an
incognizable reality. His is the metaphysical figment. Modern nominalists are mostly
135
ilimitada de interpretação. E a inferência básica em funcionamento no contínuo
mental é a abdução ou hipótese. A novidade na descrição da actividade mental que,
como diz Claudine Tiercelin, consiste em abandonar “o problema do fundamento e
da origem do conhecimento, mas certamente não o da sua justificação”324
, reside na
“integração” das inferências classicamente contrapostas, dedução e indução, num
terceiro tipo, a inferência abdutiva, compondo-se o quadro de funcionamento da
investigação, da “lógica da descoberta”. Assim, a dedução é vista, tradicionalmente,
como analítica, não produzindo nova informação; por seu lado, indução e abdução
originam conhecimento sintético, nova informação. Mas, e aqui reside a
originalidade de Peirce e a sua particular solução para o problema da indução, este
carácter sintético da indução, que tantos problemas de justificação levanta, é afinal,
por assim dizer, aparente: o simples inventário de factos não conduz, por si só, a um
conhecimento novo, a uma generalização, a não ser como resultado de uma hipótese
ou interpretação prévia acerca do todo de que os factos inventariados são uma
amostra. Por exemplo, a nossa crença na uniformidade da natureza, que suporta o
processo indutivo em geral e que parece ela própria ser o resultado de uma indução,
como resultado da generalização do “sempre foi assim” para o “é e será sempre
assim”, não é afinal atingida indutivamente; é, antes, uma hipótese, o resultado de
uma abdução: “(...) não há, afinal, nada senão a imaginação que possa alguma vez
dar-lhe um vislumbre da verdade. Ele pode pasmar estupidamente frente aos
fenómenos; mas na ausência da imaginação eles não se articularão de nenhuma
superficial men, who do not know, as the more thorough Roscellinus and Occam did, that a
reality which has no representation is one which has no relation or quality.” (C.P. 5.312) 324
Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions, Jacqueline Chambon, 1993. p.55.
136
maneira racional.”325
“A imaginação científica sonha com explicações e leis.”326
Em
rigor, a única inferência que realmente produz conhecimento novo, a única sintética
no verdadeiro sentido de termo, é a abdução. Raciocínio sintético e abdução são o
mesmo processo. A ciência não é um procedimento indutivo, ao contrário do que
pensava Hume.
Que tipo de inferência é, pois, a abdução ? “Hipótese é quando deparamos
com alguma circunstância muito curiosa, que seria explicada se suposéssemos que
ela é um caso de uma determinada regra geral, e com base nisto adoptaríamos essa
suposição.”327
A abdução como “a operação de adopção de uma hipótese
explanatória”328
tem a seguinte forma lógica :
“O facto surpreendente, C, é observado;
Mas se A fosse verdadeiro, C seria algo normal;
Logo, há razão para suspeitar que A é verdadeiro.”329
O segundo enunciado desta estrutura indica, então, que a possibilidade de
explicação depende do aparecimento de um “insight” criativo numa situação
325
“(...) there is nothing, after all, nothing but imagination that can ever supply him with an
inkling of the truth. He can stare stupidly at phenomena; but in the absence of imagination
they will not connect themselves together in any rational way.” (C.P. 1.46) 326
“The scientific imagination dreams of explanations and laws.” (C.P. 1.48) 327
“Hypothesis is when we find some very curious circumstance, which would be explained
by the supposition that it was a case of a certain general rule, and there upon adopt that
supposition.” (C.P. 2.624) 328
“the operation of adopting an explanatory hypothesis” (C.P. 5.189) 329
“The surprising fact, C, is observed;
But if A were true, C would be a matter of course,
Hence, there is reason to suspect that A is true.” (C.P. 5.189)
137
problemática330
, do aparecimento de uma hipótese plausível; o terceiro, que o
resultado da inferência abdutiva é da natureza da crença suportada por razões e não
da evidência absoluta e necessária. Sendo que o aumento do conhecimento depende
desta abordagem “criativa” dos factos ou, dito de outro modo, da sua interpretação
numa hipótese, o predomínio da análise e da dedução como modelos paradigmáticos
do funcionamento mental absolutamente fundado, perde a sua relevância cognitiva e
epistemológica. Antes esse predomínio é uma manifestação do nominalismo
repudiado por Peirce, dependente que está de uma misteriosa capacidade intuitiva de
acesso a “premissas últimas” – “uma premissa que não é ela própria uma
conclusão”331
- a partir das quais as conclusões decorreriam necessariamente. É uma
posiçao que assume a necessidade de fundamentos últimos e encara a hipótese como
um mal menor, um instrumento provisório, até obtermos confirmação inequívoca da
experiência; uma marca da impotência da nossa razão, que não consegue “ver” tudo
de uma vez. Ou abrimos deste modo as portas a um cepticismo como o de Hume, ou
damos à hipótese um estatuto mais nobre: é ela afinal a lógica de descoberta que
temos. Como diz Davis, “Hume provocou o extravio de gerações de filósofos por ter
ignorado completamente o lugar da hipótese no pensamento humano.”332
Se
explicarmos a indução à luz da hipótese e não em contraste com a dedução; mais
ainda, se virmos a indução como uma variante de dedução, uma espécie de dedução
probabilística, e circunscrevermos a dedução a um funcionamento estritamente
330
Cf. a descrição do inquérito como passagem da dúvida à crença e que o problemático é
aquilo que desafia uma regularidade esperada, um hábito - e não qualquer coisa: aquilo que
precisa de explicação é a lei. 331
“a premiss not itself a conclusion” (C.P.5.213) 332
Davis, W.H., Peirce’s Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972. p.34.
138
formal subordinado agora a um plano de investigação determinado pela hipótese,
então justificamos a possibilidade do raciocínio sintético em geral. O resultado é,
entre outras coisas, o abandono de um quadro em que ao conhecimento é exigida
certeza absoluta e necessária, por um outro onde todo o conhecimento é entendido
como provável, falível, revisível, aproximativo : “A aproximação deve ser o material
apartir do qual a nossa filosofia tem que ser construída.”333
Como se dá, então, a articulação entre os três tipos de inferência, de modo a
constituir-se uma estrutura genérica da lógica de descoberta para a actividade,
controlada, de produção de conhecimento novo? O que é o “método científico”334
?
“A indução é um argumento que parte de uma hipótese, resultante de uma abdução
prévia, e de previsões virtuais, retiradas por dedução, dos resultados de experiências
possíveis, e tendo realizado as experiências, conclui que a hipótese é verdadeira na
medida em que esas previsões são verificadas.”335
Assim, a conclusão de uma
indução é sempre uma hipótese previamente abduzida: a generalização é, primeiro,
sugerida por abdução (“se A fosse verdadeiro, C seria algo normal”), e confirmada,
333
“Approximation must be the fabric out of which our philosophy has to be built.” (C.P.
1.404)
334
Eis a estrutura taxonómica da metodologia da ciência segundo Peirce, sistematizada por
Rescher:
“inductive quantitative
methodology induction
of science
qualitative abduction (hypothesis formulation and selection)
induction
retroduction (hypothesis testing and elimination)”
Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame Press,
1987. p.41. 335
“Induction is an argument which sets out from a hypothesis, resulting from a previous
Abduction, and from virtual predictions, drawn by Deduction, of the results of possible
139
apenas, por indução. A generalização vai além dos factos observados, como qualquer
outra conjectura: “o progresso em ciência depende da observação dos factos
correctos por mentes dotadas de ideias apropriadas.”336
É evidente que a questão
que se põe neste momento é a de como determinar que estamos perante ideias
apropriadas ou, dito de outro modo, como saber que uma hipótese é uma boa
hipótese, e, desde logo, como seleccionar sequer uma hipótese do conjunto
inumerável das que podem surgir perante uma situação problemática? É que, como
diz Rescher, “a amostra conjectural é ilimitada, mas os recursos são escassos e a vida
é curta.”337
Este é um problema que é anterior àquele que, segundo Peirce, é
resolvido pela máxima pragmática338
, o da determinação do sentido de uma dada
hipótese. A máxima permite verificar se um conceito é ou não vazio e quais os seus
traços distintivos face a outros conceitos. Mas antes disto há que explicar como é que
a mente humana tem sucesso na formulação de hipóteses, como é que simplesmente
não se perde numa aplicação potencialmente infinita da máxima pragmática. Este é
um aspecto tanto mais importante, aliás, quanto participa das razões para
desconfiarmos dos processos hipotéticos como fantasiosos e, pior ainda, arbitrários.
Explicar a plausibilidade das hipóteses é, assim, crucial. É claro que, se encararmos o
conhecimento do ponto de vista da certeza e da dedução, e virmos a hipótese como
experiments, and having performed the experiments, concludes that the hypothesis is true in
the measure in which those predictions are verifiied.” (C.P. 2.96)cf. C.P.6.472 e 5.590-91 336
C.P. 6.604.
337
Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame
Press, 1987, p.42. 338
“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings, we conceive the
object of our conception to have. Then, our conception of these effects is the whole of our
conception of the object.” C.P. 5.402
140
um mal menor sempre deficiente, não concedemos a esta credibilidade - e menos
ainda à nossa capacidade de a seleccionar. O perigo é, claro está, ou confundirmos as
hipóteses que realmente fabricamos com conhecimento fundado e seguro dos
objectos que pretendem explicar, ou recusarmos qualquer posssibilidade de
conhecimento para além da observação hic et nunc, da afecção sensorial imediata
entendida intuitivamente. Se, pelo contrário, investigarmos a questão da selecção das
hipóteses encarando-as como sendo aquilo que fazemos quando pensamos, quando
conhecemos, até quando percepcionamos, somos levados a alterar a nossa concepção
especular da actividade mental. Segundo Peirce, há uma garantia racional para a
plausibilidade das hipóteses, para o poder de conjecturar correctamente339
que
caracteriza o conhecimento humano, e essa garantia é a evolução. A descrição
“biologista”, “fisiológica” quase do conhecimento que Peirce introduz nos artigos de
1878340
não é simplesmente retórica, como foi já dito. Ela instala o conhecimento
humano no quadro mais geral do comportamento vital, prolonga ou intensifica o
carácter semiótico, interpretativo do pensamento afirmado nos artigos de 1868,
atribuindo-lhe uma espécie de eficácia adaptativa. O tema das relações entre razão e
instinto encontra aqui o seu lugar. O homem tem, no domínio cognitivo, um
equivalente do instinto animal, que é este sentido de plausibilidade em relação ao
funcionamento da natureza e que lhe permite seleccionar boas hipóteses. “Em suma,
os instintos que conduzem à assimilação de comida e os instintos que conduzem à
reprodução devem desde o início ter implicado certas tendências para pensar com
339
C.P. 6.530. 340
“The Fixation of Belief” (C.P. 5.358-387) e “How to Make Our Ideas Clear” (C.P. 5.388-
410).
141
verdade acerca da física, por um lado, e acerca da psicologia, por outro. É de algum
modo mais do que uma mera figura de estilo dizer que a natureza fecunda a mente do
homem com ideias que, quando crescem, se assemelham ao seu pai, a natureza.”341
Essa selecção, claro, este sentido abdutivo com plausibilidade, não tem um carácter
de certeza absoluta: “é um acto de insight, embora um insight extremamente
falível.”342
Mas isto não lhe tira capacidade para ter eficácia no inquérito: “A
existência de um instinto natural para a verdade é, afinal, a âncora da ciência.”343
O
que acontece não é, à maneira de uma harmonia pré-estabelecida, a afirmação de uma
adequação necessária entre o mundo e as nossas ideias, não nos é dada qualquer
garantia de infalibilidade com base num pressuposto metafísico. Antes, realidade
física e realidade mental são co-naturais, participam ambas de um mesmo processo
de desenvolvimento que se exprime na experiência acumulada da espécie humana: é,
como diz Rescher, a adaptação evolutiva do homem que dá à mente humana uma
espécie de simpatia funcional pelos processos da natureza344
. “Aqueles instintos têm
alguma tendência para serem verdadeiros; porque foram formados sob a influência
daquelas mesmas leis que estávamos a investigar.”345
.
341
“In short, the instincts conducive to assimilation of food, and the instincts conducive to
reproduction, must have involved from the beginning certain tendencies to think truly about
physics, on the one hand, and about psychics, on the other. It is somehow more than a mere
figure of speech to say that nature fecundates the mind of man with ideas which, when those
ideas grow up, will resemble their father, Nature.” (C.P. 5.591). Cf. também C.P. 2.177, C.P.
6.496 e C.P. 8.223. 342
C.P. 5.181. 343
“C.P. 7.220. 344
Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame
Press, 1987, cap.3.
345
“Those instincts had some tendency to be true; because they have been formed
under the influence of the very laws that we were investigating.” (C.P. 7.508). Cf. também
C.P. 1.81; C.P. 5.522; C.P. 5.604; C.P. 6.476; C.P. 7.220.
142
E, afinal, a abdução mais fundamental é a própria hipótese segundo a qual
podemos ter sucesso nas nossas tentativas de explicar os fenómenos da natureza.
“Subjacente a todos estes princípios está uma abdução fundamental e primária, uma
hipótese que devemos acolher logo à partida, ainda que possa estar completamente
desprovida de suporte empírico. Essa hipótese diz que os factos em questão admitem
racionalização, e racionalização feita por nós.”346
Antes de qualquer evidência
empírica, a nossa confiança na abdução tem uma justificação radical: “Todas as
ideias da ciência são originadas através da abdução. A abdução consiste em estudar
os factos e conceber uma teoria para explicá-los. A sua única justificação é que se
queremos alguma vez compreender as coisas, tem de ser desta maneira.”347
A acção
mental obedeceria, em última instância, a um processo universal de organização
comum à natureza e ao espírito no quadro de uma hipótese cosmológica e que
equivale à tese da inteligibilidade do universo. A epistemologia encontra a ontologia,
mente e natureza operam da mesma forma, as leis do universo evoluem e nós
fazemos parte dessa evolução, a capacidade para tomar hábitos é comum aos homens
e ao mundo.
346
“Underlying all such principles there is a fundamental and primary abduction, a
hypothesis which we must embrace at the outset, however destitute of evidenciary support it
may be. That hypothesis is that the facts in hand admit of rationalization, and of
rationalization by us.” (C.P. 7.219). 347
“All the ideas of science come to it by the way of Abduction. Abduction consists in
studying facts and devising a theory to explain them. Its only justification is that if we are
ever to understand things at all, it must be in that way.” (C.P. 5.145).
143
5.CONCLUSÃO: SENSO COMUM CRÍTICO
Começamos este capítulo com a questão das relações entre teoria e prática,
abordada por Peirce em 1898 nas Conferências de Cambridge, tendo em vista
compreender as relações entre o empírico e o normativo dada a descrição do
inquérito como passagem da dúvida à crença e a diferença entre métodos de fixação
de crença, e a teoria da verdade envolvida fazendo apela à noção de comunidade. Os
esforços de Peirce na construção do seu quadro epistemológico anti-fundacionalista
leva-lo-ão, no princípio do século, à afirmação de uma posição que designa como
Senso Comum Crítico. De algum modo, esta é uma sistematização daquilo que se
vinha a constituir desde as críticas à dúvida cartesiana. De algum modo, a questão
que se põe é: como admitir o instinto e simultaneamente a possibilidade de aumentar
o conhecimento? Como é que o apelo ao instinto não reduz, como parece ser o caso
em Hume, as nossas expectativas cognitivas a uma força cega e incontrolável? Como
é que a ciência é um desenvolvimento do instinto? Fará sentido falar de um
“naturalismo normativo” ou de um “empirismo não nominalista”?
As perplexidades que esta designação pode levantar são reconhecidas e
discutidas pelo próprio Peirce: “Que significado esperam que eu atribua àquela
expressão, uma vez que Filosofia Crítica e Filosofia do Senso Comum, as duas
maneiras rivais e opostas de responder a Hume, se encontram numa guerra
144
mutuamente destrutiva, e sem pacificação possível.”348
Para os defensores do senso
comum, há crenças não criticáveis contra as quais a investigação esbarra e que têm
por isso que ser admitidas como verdadeiras. Já o filósofo crítico pretende
estabelecer cientificamente primeiros princípios e assim criticar quaisquer crenças,
por mais básicas que sejam.
Para esclarecer a sua expressão, Peirce apresenta uma lista de características
distintivas da sua “estirpe particular de filosofia do senso comum”349
. Em primeiro
lugar, o filósofo do senso comum crítico afirma que não apenas existem proposições
indubitáveis como existem também inferências indubitáveis. Ao abordar este ponto,
convém esclarecer o que entenderá Peirce por indubitável. O seu sentido não será o
cartesiano, uma evidência irresistível e auto-justificatória, uma certeza teórica
intuitiva, ou teríamos que acusar Peirce de inconsistência. Antes indubitável terá que
ter o sentido anunciado na crítica à dúvida cartesiana, na descrição do inquérito como
passagem da dúvida à crença e na distinção entre teoria e prática. Assim, terá que
significar aquela condição das crenças que não podem ser postas em causa, não por
qualquer fundamento absolutamente estabelecido, mas porque estão isentas daquela
dúvida actual, genuína, que não é exercida voluntariamente mas decorre de
condições, biológicas e sociais, que põem efectivamente em causa as expectativas de
um dado organismo ou indivíduo, que consiste na perturbação de um hábito. Estas
crenças indubitáveis compõem o conteúdo do chamado senso-comum, definido em
C.P. 1.129 como “aquelas ideias e crenças que a situação do homem absolutamente
348
“What meaning would you have me attach to that phrase, seeing that Critical Philosophy
and the Philosophy of Common Sense, the two rival and opposed ways of answering Hume,
are at internecine war, impacifiable.” (C.P.5.505)
145
lhe impõe.” São estas “crenças originárias” que funcionam como “premissas últimas”
dos nossos raciocínios. Mas este carácter “último” não é contraditório com o anti-
intuicionismo persistente de Peirce: como foi já dito, não têm carácter de certeza
absoluta e nem sequer a sua origem é atribuída a qualquer tipo de apriorismo : “todos
os argumentos a priori acerca de factos positivos são lixo”350
todos os indubitáveis
são empíricos. Assim, em C.P. 1.654, Peirce atribui ao senso-comum uma origem na
experiência tradicional da humanidade. Em síntese, indubitável é aquilo de que não
podemos duvidar num dado momento e não aquilo que é intrinsecamente
indubitável, ou ainda, “as proposições e inferências que o Senso Comum Crítico
afirma serem originais, no sentido em que não podemos ir além delas, são
indubitáveis no sentido de serem acríticas.”351
E é aquilo, então, com que os nossos
inquéritos têm que começar.
Existem para Peirce duas grandes classes de proposições indubitáveis352
. Os
“juízos perceptivos” ou “factos perceptivos”353
que, em C.P. 5.515-16 são descritos
como estando completamente for a do nosso controlo e como sendo as primeiras
premissas em todos os nossos raciocínios”: “a crítica lógica não pode ir além dos
factos perceptivos, que são os primeiros juízos que fazemos no que respeita aos
perceptos.”354
. O carácter indubitável destes consiste no seguinte: “Entendo por juízo
349
C.P.5.505. 350
C.P. 2.137. 351
C.P. 5.440. 352
cf. C.P. 5.442. 353
Cf. a teoria da percepção apresentada em C.P. 7.615-636, especialmente C.P. 7.626 para
a diferença entre “percept” e “perceptual judgement”. 354
C.P. 7.198. Isto não é nenhuma concessão ao empirismo de Hume, para o qual a origem
do conhecimento está nas impressões dos sentidos. Trata-se de juízos e não de impressões,
contêm generalidade, e não são intuições, têm um carácter abdutivo.
146
perceptual um juízo que me é absolutamente imposto e isto através de um processo
que eu sou completamente incapaz de controlar e consequentemente incapaz de
criticar. Nem posso pretender certeza absoluta a respeito de qualquer questão de
facto.”355
O outro tipo de crenças indubitáveis ou acríticas são propriamente as do
senso comum, crenças que se impõem não a partir da experiência da percepção mas
da experiência social356
. A primeira característica do senso comum crítico afirma
que não apenas há proposições indubitáveis, mas também inferências indubitáveis ou
acríticas. Trata-se de “casos nos quais estamos conscientes de que uma crença foi
determinada por uma outra crença dada, mas não estamos conscientes de que isto
procede de acordo com qualquer princípio geral.”357
O que as distingue do raciocínio
propriamente dito, aquele susceptível de auto-controlo deliberado ou crítica, é esta
inconsciência do seu “princípio condutor”: também aqui, trata-se de não ser capaz de
recusar uma dada conclusão a partir de uma dada premissa, e a indubitabilidade
decorre deste constrangimento.
A segunda característica do Senso Comum Crítico é a afirmação de que seria
possível fazer uma lista das crenças originárias, dos indubitáveis sociais, e que essa
lista teria validade universal. Esta universalidade das proposições indubitáveis seria
compatível com a sua evolução358
, em consistência, aliás, com a sua origem na
experiência e não em qualquer tipo de apriorismo.
355
“All that I can mean by a perceptual judgement is a judgement absolutely forced upon my
acceptance, and that by a process which I am utterly unable to control and consequently am
unable to criticize. Nor can I pretend to absolute certainty about any matter of fact.” (C.P.
5.157). 356
Exs.: incesto( C.P. 5.445); ordem da natureza( C.P. 5.516). 357
C.P: 5.441. 358
cf. C.P. 5.444.
147
Em terceiro lugar, as crenças originárias são da natureza geral dos instintos.
Estes podem ser modificados num espaço de tempo muito curto, isto é, são passíveis
de correcção, o seu carácter indubitável não é o equivalente de uma programação
rígida e inflexível, como um mecanismo. Ou, “as crenças originais só se mantêm
indubitáveis na sua aplicação aos assuntos que se assemelham aos de um modo de
vida primitivo.”359
A dúvida genuína que pode levantar-se a uma proposição
indubitável instintiva “surge com a surpresa, que supõe alguma crença prévia, e as
surpresas surgem com um novo ambiente.”360
A história humana é uma história de
evolução, de gradual modificação de ambiente conducente a surpresas e dúvidas : a
ciência moderna, por exemplo, “colocou-nos num outro mundo; quase tanto como se
tivesse transportado a nossa raça para outro planeta.”361
Ela é um exemplo do
desenvolvimento de graus de auto-controlo que põe em causa a autoridade do instinto
: “Por outras palavras, nós ultrapassamos a aplicabilidade do instinto – não
completamente, não de qualquer maneira, mas nas nossas actividades mais
elevadas.”362
A indubitabilidade tem limites e, consequentemente, é limitada também
a jurisdição das crenças originárias.
Mas, segundo Peirce, a característica mais distintiva do seu Senso Comum
Crítico é o facto de serem os indubutáveis acríticos invariavelmente vagos. De algum
modo, esta é até uma condição da sua indubitabilidade, mas também da sua
corrigibilidade, dado que o resultado de tentar tornar precisa uma crença vaga
359
C.P.5.445. 360
C.P.5.512. 361
C.P. 5.513. 362
C.P. 5.511.
148
deduzindo dela um conjunto de consequências363
, pode ser torná-la duvidosa364
.
Ainda assim, há um certo resíduo vago não afectado (C.P. 5.507), não porque não se
tenha desenvolvido um esforço suficiente para determinar o resíduo, mas porque é
intrinsecamente vago, como é o caso, por exemplo, da nossa crença numa ordem na
natureza. O carácter vago de todas as crenças verdadeiramente indubitáveis é tratado
do ponto de vista da lógica e da semiótica, e o vago é definido como “aquilo a que o
princípio da contradição não se aplica. Pois nem é falso que um animal (num sentido
vago) é masculino, nem que um animal é feminino.”365
Este carácter vago pertence
por excelência à ordem da linguagem e da comunicação através de signos: “Nenhuma
comunicação de uma pessoa com outra pode ser inteiramente definida, i,e., não
vaga.”366
Na ordem das representações e da sua comunicação, na ordem da semiótica
que cobre afinal todo o campo da nossa actividade mental e social, “a precisão
absoluta é impossível. Muitas outras coisas devem ser vagas, porque nenhuma
interpretação particular de palavras se baseia exactamente na mesma experiência da
de uma outra pessoa.”367
E o que acontece nas nossas comunicações com outros
acontece igualmente nas nossas comunicações connosco próprios: “Nunca devemos
esquecer que o nosso pensamento decorre como um diálogo.”368
A este carácter vago
da linguagem acorre o suplemento do senso-comum dos seus utilizadores, aquele que
363
Aplicando-lhe a máxima pragmática. 364
cf. C.P. 5.507 365
C.P.5.505. 366
C.P. 5.506. 367
C.P. 5.506. 368
C.P. 5.506.
149
fala e aquele que interpreta, que permite um entendimento suficiente entre ambos,
apesar do carácter vago dos signos utilizados369
.
A quinta característica do Senso Comum Crítico consiste no facto de esta
posição atribuir um grande valor à dúvida genuína370
. Esta elevada estima pela
dúvida admite a invenção de “um plano para atingir a dúvida, elabora-o em detalhe e
depois põe o plano em prática, embora isto possa envolver um mês inteiro de
trabalho duro, e só depois de ter passado por este exame é que pronunciará uma
crença como indubitável.”371
A dúvida funciona, assim, como um teste feito às
proposições indubitáveis, mas está longe da atitude cartesiana, em Peirce sempre
associada à dúvida de papel. Por um lado porque o filósofo do senso comum crítico
admite a dubitabilidade de uma proposição indubitável, e que isso pode ser assim
com qualquer uma das suas crenças. Mas ele não pode de facto admitir que isso seja
assim com todas elas. Por outro lado porque, mais uma vez, o carácter indubitável de
uma proposição nada tem a ver com um certeza absoluta ou fundamento teórico,
nãoé uma questão de prova demonstrativa: “a negação enfática de que a crença
indubitável seja inferencial ou seja ‘aceite’. Simplesmente mantém-se inabalável
como sempre foi.”372
Tal como não duvidamos à nossa vontade, também não
acreditamos à nossa vontade. A dúvida é, de qualquer modo, um instrumento
precioso na investigação, uma expressão do “falibilismo contrito” que deve
369
cf. 5.446 n1: uma antecipação do princípio da caridade. 370
C.P. 5.451. 371
C.P. 5.451. 372
C.P. 5.514.
150
caracterizar o homem de ciência, e “o perigo científico não está em acreditar muito
pouco mas em acreditar demasiado.”373
Finalmente, o Senso Comum Crítico não é apenas senso comum mas justifica a
sua pretensão ao criticismo porque “sujeita quatro opiniões a uma crítica rigorosa: a
sua própria; a da escola escocesa; a daqueles que baseiam a sua lógica na metafísica
ou na psicologia ou em alguma outra ciência especial, a menos sustentável de todas
as opiniões filosóficas que têm alguma visibilidade; e a de Kant(...)”374
e porque não é
senão uma modificação do kantismo, ou kantismo sem a coisa em si incognoscível.
Desde logo, contra o filósofo crítico, o filósofo do senso comum crítico é aquele que
duvida não quando decide fazê-lo segundo o princípio geral de que nenhuma crença
ficará por criticar, mas inicia a sua investigação “se acontece que ele de facto duvida
da proposição.” (C.P. 5.524). Reconhece, enfim, que a dúvida não é uma capricho da
vontade, não podendo assim atingir radical e sistematicamente o estado cognitivo
total de um indivíduo ou espécie, e que “uma proposição da qual pudéssemos duvidar
à nossa vontade certamente não é uma crença. Pois a crença, enquanto dura, é um
hábito forte, e como tal, força o homem a acreditar até que alguma surpresa
interrompa o hábito. A ruptura de uma crença só pode ser devida a uma experiência
nova, seja externa ou interna. Agora, experiência que possamos convocar quando nos
apetece não seria experiência.”375
Esta concepção da experiência é aquilo que,
373
C.P. 5.517.
374
C.P.5.452. 375
“(…) a proposition that could be doubted at will is certainly not believed. For belief,
while it lasts, is a strong habit, and as such, forces the man to believe until some surprise
breaks up the habit. The breaking of a belief can only be due to some novel experience,
151
finalmente, marca a distância de Peirce em relação ao transcendentalismo kantiano,
que postula estruturas universais e necessárias inscritas de forma incondicionada, a
priori, no sujeito de conhecimento376
. A actividade interpretativa do sujeito na sua
relação com a experiência é antes, como diz Faerna, “el producto biológico, histórico
y cultural de una continuada relación práctica com el entorno”377
, o que a faz estar
inscrita tanto no mundo natural como no mundo social e público das comunidades
empíricas, este por sua vez o resultado da evolução própria da espécie humana. O
Senso-Comum Crítico de Peirce permite, assim, enraizar a noção epistemológica de
comunidade no percurso evolutivo da espécie, sem comprometer o seu carácter
normativo, a sua função reguladora: ela é, afinal, um elemento indispensável para a
actividade lógica cujas regras e exigências manifestam um estádio da evolução
humana. Em Peirce, a natureza produziu algo que não é já completamente natural.
whether external or internal. Now experience which could be summoned up at pleasure
would not be experience.” (C.P. 5.524) 376
O que permite evitar uma interpretação demasiado kantiana de Peirce tal como é feita por
Apel e Habermas.Cf. Apel, K.-O., Charles S. Peirce: From Pragmatism to Pragmaticism,
Amherst, University of Massachusetts Press, 1981. E também Habermas,J., Post-
Metaphysical Thinking, Cambridge, Polity Press, 1995.
377
Faerna, A.M., Introducción a la Teoria Pragmatista del Conocimiento, Madrid, Siglo
XXI, 1996, p.89.
152
CONCLUSÃO
Quando, nos seus artigos de 1868 ( “Questions Concerning certain Faculties
Claimed for Man”; “Some Consequences of Four Incapacities”; “Grounds of Validity
of the Laws of Logic”), Peirce confronta o “espírito do cartesianismo” (C.P. 5.264),
fá-lo para denunciar aquilo que, na tradição filosófica, racionalista como empirista,
constitui um impasse infrutífero e arrasta atrás de si todas as pretensões cognitivas
humanas : o problema do fundamento do conhecimento ou a identificação da tarefa
da filosofia com a descoberta de um ponto de partida seguro e radical a partir do qual
as diversas áreas do saber pudessem ser validadas. O esforço de constituição de uma
filosofia primeira, a priori, fornecendo simultaneamente uma garantia epistémica e
metafísica é afinal o que conduz directa e rapidamente ao cepticismo. Peirce propõe
um quadro de problematização modificado, mostrando que é possível abandonar a
procura da certeza absoluta e do ponto de partida radical sem cair num pessimismo
acerca do conhecimento, nem numa sua redução naturalista, isto é, sem abandonar
conceitos normativos como objectividade, verdade e realidade. Um dos parâmetros
desta modificação é o facto de Peirce ter adoptado um ponto de vista dinâmico acerca
do conhecimento : mais do que um conjunto de resultados, o conhecimento é um
processo de investigação norteado por um ideal, a verdade; é uma actividade humana
temporal e finalizada, capaz de gerar os seus próprios constrangimentos normativos.
Logo, mais do que saber “onde se funda”, aquilo que realmente importa é saber
153
“como funciona” e “para onde se dirige” o conhecimento. E, mais do que estabelecer
uma hierarquia entre os saberes, a filosofia tutelando as ciências, trata-se de tornar a
filosofia científica, o que equivale a torná-la numa ciência de descoberta, dada uma
visão não positivista da ciência. Curiosamente, as várias descrições da actividade
cientifica que encontramos nos textos de Peirce, aproximam-nos da definição
etimológica e canónica de filosofia como a procura e não a posse do saber, cuja
exigência máxima é a não interrupção.
A alternativa que Peirce propõe ao “fundacionalismo” epistemológico e,
consequentemente, a solução para o impasse entre dogmatismo e cepticismo, é o
falibilismo, que afirma tanto a impossibilidade da certeza absoluta como do
cepticismo total. A recusa de um fundamento não nos empurra necessariamente para
a recusa de todo o nosso conhecimento. O que é recusado é antes a possibilidade de
um ponto de vista absoluto sobre a totalidade do nosso conhecimento que permita ou
caucioná-lo totalmente ou rejeitá-lo completamente. Estamos sempre num qualquer
estado cognitivo que pode ser parcialmente revisto e corrigido, mas não
totalmente378
. Nem os cépticos nem os dogmáticos têm um ponto de vista e um modo
de acesso privilegiado que lhes permitam justificar as suas pretensões. Não podemos
“abandonar o barco”, abdicar de todo o conhecimento de que dispomos num dado
momento, fazer de conta que não temos as crenças que temos, e qualquer pretensão
contrária arrisca-se a ser uma auto-ilusão acrítica. O pragmatismo surge neste quadro
como “um método ao serviço da investigação filosófica”379
– “ um método de
378
Esta é uma posição que, na epistemologia contemporânea, recebe o nome de holismo (cf.
Metáfora do barco de Neurath retomada por Quine e Davidson). 379
C.P. 5.12.
154
relflexão que tem como finalidade tornar as nossas ideias claras”380
através da
aplicação da máxima pragmática.
O optimismo falibilista de Peirce envolve alguns aspectos que continuam
pertinentes na epistemologia contemporânea381
. Um deles é a noção de comunidade,
envolvida nas suas teorias da verdade e da realidade. Os artigos acima referidos
fazem entrar a questão e a noção da comunidade de várias maneiras, atestando do
carácter complexo dela ou das suas várias dimensões. A teoria do conhecimento de
Peirce enuncia-se em “quatro incapacidades” - 1) não temos poder de introspecção;
2) não temos poder de intuição; 3) não temos poder de pensar sem signos; 4) não
temos concepção do absolutamente incognoscível - que pressupõem uma dimensão
“comunitária” ao minarem o individualismo cartesiano. Nem a subjectividade é auto-
evidente e imediata mas tem um carácter hipotético, inferido a partir de uma
experiência de privação onde o testemunho dos outros é decisivo (uma teoria
“genética” do eu); nem o conhecimento se funda num contacto imediato entre um
sujeito e o mundo mas tem uma estrutura inferencial; essa estrutura inferencial
consiste no carácter semiótico da actividade mental, e a linguagem exige
intersubjectividade; é auto-contraditória uma concepção de algo absolutamente
incognoscível, como um esclarecimento da noção de real poderá mostrar. Esta serve
para distinguir cognições verdadeiras de ilusões, e a ilusão é o puramente privado, o
eu isolado é o lugar do erro. O real envolve, assim, a noção de um processo de
investigação que é público, onde um eu se confronta com testemunhos de outros, isto
380
C.P. 5.13n.
155
é, envolve a noção de uma comunidade de investigadores, e define-se como o objecto
da crença na qual o inquérito finalmente resultaria. A avaliação das crenças deixa de
ser um sentimento subjectivo de certeza e passa a ser a sua resistência a uma
exposição pública. A dualidade da noção e função da comunidade apresenta-se do
seguinte modo : ela intervém actualmente, enquanto explica até a constituição de
uma identidade pessoal, e enquanto contexto de utilização de signos, o que abre a
possibilidade de uma sua interpretação em termos de comunidade real, existente,
empírica; e surge enquanto conceito regulador: indefinida, ilimitada, lugar da
opinião verdadeira sobre o real.
Nos textos de 1877/8 ( “The Fixation of Belief” e “How to Make Our Ideas
Clear”) Peirce apresenta uma descrição do inquérito em tom “psicologista” e
“biologista” , como passagem da dúvida à crença. (C.P. 5.374). O conhecimento tem
como finalidade atingir uma crença estável, isto é, uma crença que resista a
perturbações geradoras de um estado irritante de dúvida. Peirce discute então, dada
esta definição do inquérito ou da actividade cognitiva, qual poderá ser o melhor
método para atingir uma crença estável, e opta pelo método da ciência. Mais uma
vez, a argumentação fará intervir a dimensão comunitária do conhecimento de
formas variadas, mas reforçando o duplo aspecto fundamental já identificado nos
textos anteriores : empírico e normativo. Uma apreciação dos métodos descritos por
Peirce permitirá verificar que a comunidade empírica, tal como o indivíduo isolado,
são mais “obstáculos epistemológicos” do que “condições de possibilidade” do
381
E até na recusa contemporânea da epistemologia, como é o caso de Rorty ou das
posições irracionalistas como as que se podem retirar de Kuhn ou as que são manifestas em
Feyerabend.
156
conhecimento porque não fornecem estabilidade : no método da tenacidade é o
indivíduo que “perde” no confronto com a comunidade; no método da autoridade é a
comunidade que falha no confronto com divergências por parte de indivíduos e com
outras comunidades; só o método científico o consegue, porque é normativo, isto é,
porque sujeita os seus produtos a uma avaliação em função de um ideal que é a
verdade e não simplesmente a eficácia ou a satisfação.A verdade, tendo como objecto
a realidade, não é determinada nem pelo indivíduo nem pela comunidade mas por
uma “permanência externa”, o que permite a esperança de atingir crenças estáveis no
longo prazo, isto é, a aproximação ao limite ideal da investigação.
A questão normativa em Peirce é tratada em termos das relações entre
Lógica e Ética: a caracterização do cientista envolve virtudes, auto-controle, dever-
ser. O carácter ideal da comunidade pode querer dizer não que irá, não se sabe bem
quando, existir uma comunidade de posse da verdade e que obtém finalmente um
consenso - assim como a verdade não é necessariamente um momento identificável,
“fixável”, da investigação, coincidindo com um corpo de conhecimentos
perfeitamente determinado -, mas que a actividade de conhecimento, ainda quando
levada a cabo individualmente, não depende de critérios individuais de certeza mas
exige comunicabilidade para verificação : a comunidade indefinida identificar-se-ia
com o próprio processo de investigação ou pelo menos com as exigências deste - de
algum modo isto pode ser o que é expresso por uma alternativa à expressão
“comunidade” que é “todos aqueles que investigam”382
e se nos lembrarmos que
382
C.P. 5.407.
157
mesmo a actividade mental individual tem um carácter não totalmente privativo383
e
que a personalidade não é algo completamente individual - “Uma pessoa não é
absolutamente um indivíduo.”384
Assim, a comunidade de todos os que investigam
não é nem actual nem diferida mas ideal, uma ideia reguladora. O estatuto deste ideal
regulador é, por sua vez, sentimental: exprime uma esperança alegre385
de
aproximação convergente à verdade e uma participação no aumento da razoabilidade
concreta. Mas que haja esta relação entre o normativo e o sentimental mostra em que
medida Peirce se afasta de uma tradição sentimentalista como a de Hume. Afinal, a
mesma base que serviu a este para pôr em causa a possibilidade do conhecimento, a
saber, as relações entre razão e sentimento, serve a Peirce para justificar um
optimismo epistemológico, sendo que a interpretação cognitiva da evolução humana
marca toda a diferença entre os dois autores.
A noção de comunidade irá desembocar, no âmbito da classificação
arquitectónica das ciências, na questão das ciências normativas, Estética, Ética e
Lógica. É uma noção que exprime afinal o carácter teleológico do pensamento como
um caso especial de conduta deliberada, isto é, “criticada”, de modo a adequar-se a
um ideal: “a finalidade última do pensamento é o a replicação indefinida de auto-
disciplina sobre auto-disciplina”386
, o que envolve a superação de um ponto de vista
individual, da certeza puramente subjectiva, e a assunção do carácter falível,
aproximativo, comunitário, público, da investigação.
383
Cf. C.P.4.6 - pensamento como diálogo. 384
C.P. 5.421. 385
C.P: 5.407. 386
C.P. 5.403n.
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