INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

172
INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE DO MINHO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO FILOSOFIA 2000 SENTIMENTALISMO FILOSÓFICO: A NOÇÃO DE COMUNIDADE NO PENSAMENTO DE C. S. PEIRCE ALEXANDRA MARIA LAFAIA MACHADO ABRANCHES

Transcript of INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

Page 1: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

FILOSOFIA

2000

SENTIMENTALISMO FILOSÓFICO:

A NOÇÃO DE COMUNIDADE NO PENSAMENTO DE

C. S. PEIRCE

ALEXANDRA MARIA LAFAIA MACHADO ABRANCHES

Page 2: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

2

“(...) yet the most balsamic of all the sweets of sweet philosophy is the lesson that

personal existence is an illusion and a practical joke (...) the truth that neither selves

nor neighbourselves were anything more than vicinities; while the love they would

not entertain was the essence of every scent.” (C.P. 4.68, 1893)

Page 3: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

3

ÍNDICE

INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 5

CAPÍTULO I - A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE : REALISMO,

ANTI-PSICOLOGISMO, ANTI-INTUICIONISMO. ...................................................................... 13

1. INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 13

2.ANTI-INTUICIONISMO: O PENSAMENTO COMO INTERPRETAÇÃO. ........................ 20

2.1. O PRIMEIRO ARTIGO: “QUESTÕES ACERCA DE CERTAS FACULDADES

ATRIBUÍDAS AO HOMEM” (C.P. 5.213-263; W2 .193-211)..................................................... 20

2.2. O SEGUNDO ARTIGO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO

INCAPACIDADES. (C.P.5.264-317; W2.211-242) ................................................................... 36

2.3. O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA

LÓGICA: OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES

(C.P.5.318-357; W2.242-272) ....................................................................................................... 48

3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE BERKELEY”

(C.P.8.7-38) ....................................................................................................................................... 56

4.CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 61

CAPÍTULO II - A TEORIA DO INQUÉRITO. ............................................................................... 65

1.INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 65

2. A DIMENSÃO NORMATIVA DO MÉTODO CIENTÍFICO ................................................ 68

3. A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO. ..................................... 81

4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE. ........................... 90

5.CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 95

Page 4: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

4

CAPÍTULO III - TEORIA E PRÁTICA, RAZÃO E INSTINTO .................................................. 97

1.INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 97

2.TEORIA E PRÁTICA ................................................................................................................... 98

3.UMA TEORIA DO INSTINTO ................................................................................................. 111

4.PEIRCE E HUME :INSTINTO, RAZÃO E HÁBITO. ............................................................ 121

5. A TEORIA DA HIPÓTESE ....................................................................................................... 133

5.CONCLUSÃO: SENSO COMUM CRÍTICO .......................................................................... 143

CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 152

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 158

Primária .......................................................................................................................................... 158

Secundária ...................................................................................................................................... 159

a) artigos ..................................................................................................................................... 159

b) obras........................................................................................................................................ 165

Page 5: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

5

INTRODUÇÃO

Charles Sanders Peirce é um autor de difícil acesso. Muita desta dificuldade tem a

ver com a forma da sua obra, um conjunto vasto, e ainda não totalmente publicado,

de artigos, entradas de dicionário, recensões de livros, cartas, planos de obras,

versando os mais variados assuntos filosóficos e científicos1. Esta dispersão é, no

entanto, o trabalho de um autor que se vê a si próprio como um filósofo sistemático,

assumindo a intenção arquitectónica definida por Kant na Crítica da Razão Pura2.

Assim, uma outra dificuldade resulta da publicação em oito volumes3 de apenas uma

parte desta produção, onde os editores “sistematizaram” os textos de Peirce,

dividindo-os, muitas vezes truncando e desmembrando, em tópicos que permitissem

visualizar essa intenção sistemática, mas esquecendo a cronologia dos textos4. E esta

1 Para uma articulação entre este carácter da obra de Peirce e a sua biografia, ver Brent, J.,

Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University Press, 1993.

2 No seu estudo já clássico sobre Peirce, Murray G. Murphey reconstrói quatro diferentes

sistemas resultantes da evolução do pensamento de Peirce. Murphey, M.G., The

Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993. 3 The Collected Papers of C.S. Peirce, vols. 1-6, Harsthorne, C. e Weiss, P., eds.,

Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1931-1935, vols. 7-8, Burks, A., ed.,

Cambridge Mass, Harvard University Press, 1958. Neste trabalho será adoptada a forma

convencional de citação das obras de Peirce: número do volume,ponto, número do

parágrafo; ex. C.P.5.278. A tradução das citações é da responsabilidade da autora. 4 Encontra-se em publicação uma edição cronológica dos textos de Peirce, a que será feita

referência, e da qual acaba de publicar-se o sexto volume. Writings of Charles S. Peirce,

vols.1,2,4 e 5, Kloesel C.J.W. ed., Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press,

vol.1-1982, vol.2 – 1984, vol.4 –1986, vol.5-1993. Esta edição será citada de forma

Page 6: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

6

é relevante até porque Peirce é um autor em constante auto-revisão e que, como diz

Murphey, “preserva a terminologia e o esboço formal geral das doutrinas mesmo

quando o seu conteúdo sofreu uma modificação radical.”5. Ainda assim, isto é, apesar

da consensual dificuldade de acesso, Peirce é um autor a quem se tem atribuído

importância tanto em áreas específicas, enquanto promotor de uma teoria semiótica

ou de avanços significativos no domínio da lógica, como no quadro geral da filosofia

contemporânea, sendo reconhecido não apenas como um dos maiores filósofos

americanos6, mas principalmente como o fundador daquele que parece ser o

contributo americano original para esta, o pragmatismo7.

O pragmatismo de Peirce caracteriza-se por ter o conhecimento científico no

centro das suas preocupações, especificamente no que diz respeito a questões

metodológicas. A própria filosofia é exortada a seguir o modelo das ciências, o que

nos poderia fazer antecipar um Peirce positivista, reconduzindo todas as áreas do

saber humano a uma matriz de racionalidade esvaziada de metafísica. Mas também

na sua preocupação com a ciência Peirce exibe a sua influência kantiana; o próprio

termo “pragmatismo” tê-lo-á Peirce ido buscar a Kant, que intitula a sua última obra

semelhante à utilizada para os Collected Papers: número do volume, ponto, número da

página (já que nesta edição não se verifica uma divisão do texto em parágrafos numerados);

ex. W.3.120. 5 Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993, p.3.

6 Cf.Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.

Cf. também Dancy, J. E Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell,

1992. 7 O que não impede o neo-pragmático Rorty, que prefere William James, de o ver como um

“mau pai”, insuficiente, metafísico. Cf. Rorty, R., Conséquences du Pragmatisme, Paris,

Éditions du Seuil, 1993.Para um esclarecimento deste ponto, veja-se a distinção entre

pragmatismo revisionista e revolucionário apresentada por Susan Haack em Dancy, J. E

Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1992, pp.351-356.

Page 7: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

7

Antropologia do Ponto de Vista Pragmático8. Aqui, o termo adjectiva um campo de

estudo que visa o carácter orientado para fins do comportamento humano, ou a

análise de como se realiza no homem “a apropriação da natureza pela liberdade.”9

Tratar-se-ia de resolver a questão da unidade da filosofia ou de encontrar um ponto

de passagem entre a filosofia teórica e a filosofia prática, a filosofia da natureza e a

da liberdade10

. Este tema da continuidade entre diferentes âmbitos da racionalidade

humana permite chamar a atenção para uma outra continuidade, histórica, do

pragmatismo americano, o de Peirce em particular, com a tradição filosófica

europeia. Os estudos sobre o contexto intelectual do nascimento da pragmatismo

testemunham suficientemente essa continuidade11

, e ela é tanto mais evidente em

Peirce quanto ele foi um estudioso atento das grandes figuras do pensamento

filosófico ocidental, dos clássicos gregos aos modernos, passando pelos escolásticos

medievais. Assim, se de alguma coisa o pragmatismo não pode ser acusado é de

ignorância histórica, ao mesmo tempo que não pode pretender atribuir-se a si próprio

uma originalidade nativa absoluta12

.

Nesta medida, percebemos melhor a relevância das propostas de Peirce se o virmos

como tentando pensar um problema da filosofia moderna, tal como se apresenta em

8 Kant, I., Antropologie du Point de Vue Pragmatique, Flammarion, Paris, 1993.

9ibid., prefácio p.7

10 ibid. prefácio p.6

11 Cf. Faerna, A.M., Introducción a la Teoria Pragmatista del Conocimiento, Madrid, Siglo

XXI, 1996. E também Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,

Cambridge, Hackett, 1993. Ou ainda Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism,

Bloomington, Indiana University Press, 1986. 12

Esta inscrição na tradição ocidental é, aliás, explicitamente reconhecida pelos autores

pragmatistas, tanto por Peirce, que discute directamente autores dessa tradição, como por

William James, que dá o seguinte subtítulo ao seu ensaio Pragmatism : “A new name for

Page 8: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

8

Descartes, na tradição empirista britânica e em Kant, o problema da relação entre

uma concepção de racionalidade que vê o conhecimento autêntico como

conhecimento do universal e necessário, e os desafios epistemológicos colocados

pela moderna ciência da natureza, que exige justificar a sua relação com a

experiência e a sua plausibilidade cognitiva. O fundacionalismo cartesiano torna o

empreendimento cognitivo dependente da concepção de uma divindade benévola e

deixa como legado problemático a questão da relação entre res cogitans e res

extensa. Locke e Hume contestam o racionalismo inatista de Descartes à custa da

confiança no alcance da razão humana. A síntese kantiana pretende restaurar essa

confiança através da estratégia transcendental, cujo resultado é a partição do mundo

em fenoménico e numénico e, estranhamente – já que a intenção era salvar a ideia de

objectividade -, a preparação para o assalto relativista à racionalidade. Contra esta

“prorrogação” do cepticismo que a filosofia transcendental de certo modo representa,

Peirce afirma o seu optimismo gnoseológico e epistemológico transformando a

atitude naturalista do empirismo à luz do criticismo kantiano e da sua noção de

experiência como resultado de actos interpretativos do sujeito13

.

A originalidade de Peirce, e do pragmatismo, consiste em ter cortado com uma

concepção representacionalista do conhecimento, deste como uma relação especular

some old ways of thinking”. James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York,

1995. 13

Cf. Faerna, A.M., Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, Madrid, Siglo

XXI de Espanã Editores, S.A., 1996. Peirce recusa de Kant o transcendentalismo mas aceita

o criticismo.

Page 9: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

9

entre a mente e o mundo, comum aos autores que vêm sendo mencionados14

, e em

levar mais longe a actividade do sujeito na relação cognitiva. Ou seja, o

conhecimento é visto por Peirce como uma forma de acção e não como contraposto à

acção: a teoria é uma prática e, como qualquer prática, realiza-se em função de uma

finalidade, envolve uma motivação e escolhe o método mais eficaz para se realizar.

Esta perspectiva é tanto mais significativa quanto ela permite pensar uma outra

questão moderna: a da relação entre racionalidade teórica e racionalidade prática.

Neste campo, mesmo Kant, que tentou superar o racionalismo e o empirismo quanto

ao conhecimento, não realiza a síntese entre as duas tradições modernas, o

racionalismo e o sentimentalismo empirista, e opta claramente por uma ética

racionalista: o Imperativo Categórico é o teste formal de um agente plenamente

racional que elimina da sua motivação qualquer referência ao sentimento, ao desejo,

ao bem-estar, à felicidade. O sentimentalismo15

, por seu lado, recusa à razão e a tudo

o que é do âmbito cognitivo o acesso a factos éticos imperativos, e naturaliza a ética

radicando a motivação na vontade e na projecção de inclinações passionais,

identificando a aprovação moral com emoções e não com juízos. Hume representa

esta tradição ao defender no campo da ética uma espécie de “educação sentimental”

que nos permita compartilhar ou reprovar determinadas preferências16

, não havendo

14

Kant, apesar de introduzir uma perspectiva que atribui ao sujeito uma actividade de

interpetação, apresenta-o como transcendental, como sendo uma estrutura racional

universal, a priori e definitiva. 15

Nem só o empirismo britânico, no entanto, pode ser inscrito nas hostes sentimentalistas.

Curiosamente, outra via traz consigo implicações semelhantes, a via filosofico-teológica que

discute o papel da razão em relação à fé. Pascal e a sua aposta representam uma recusa do

racionalismo tão veemente como o naturalismo humeano. 16

Encontramos um exemplo desta posição de Hume na seguinte passagem de um dos seus

ensaios, sobre as virtudes civilizadoras da literatura : “But perhaps I have gone too far in

Page 10: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

10

maneira de demonstrar se são racionais ou irracionais. Restringida à descrição

daquilo que é, a razão não pode prescrever aquilo que deve ser sem abusar dos seus

poderes17

. A especificidade de Peirce quanto a este ponto consistirá na preservação

das exigências normativas presentes em Kant, sem aceitar o racionalismo deste. Isto

consegue-o através da integração de uma dimensão de temporalidade associada ao

conceito de evolução.

A importância do tempo manifesta-se num conceito central para a compreensão

da epistemologia “finalizada” ou teleológica de Peirce: o conceito de comunidade.

Ainda que possa ter começado por ser apenas uma expressão do convencionalismo

da sua época, acaba por integrar plenamente a teoria da realidade e da verdade

daquele autor, contribuindo para uma redefinição não dualista de racionalidade18

.

Assim, o primeiro capítulo deste trabalho tenta mostrar o modo como este conceito

de comunidade surge para superar uma concepção fundacionalista da actividade

cognitiva, intimamente ligada a uma determinada concepção do sujeito gnoseológico

e de consequências cépticas. A estratégia moderna iniciada com Descartes coloca, de

facto, o cepticismo no centro das questões epistemológicas, ao pôr em causa a

saying that a cultivated taste for the polite arts extinguishes the passions, and renders us

indifferent to those objects, which are so fondly pursued by the rest of mankind. On farther

reflection, I find, that it rather improves our sensibility for all the tender and agreeable

passions; at the same time that it renders the mind incapable of the rougher and more

boisterous emotions.

Ingenuas didicisse fideliter artes,

Emollit mores, nec sinit esse feros.”.Hume,D. Essays – Moral, Political

and Literary, Indianapolis, Liberty Fund, 1985, p.6. 17

Trata-se do problema conhecido como a falácia naturalista. 18

Isto é, uma superação do golfo entre racionalidade teórica e racionalidade prática pela

afirmação da dependência da Lógica em relação à Ética. Esta dependência é normativa, e

não deve confundir-se com a questão das relações entre teoria ou investigação e prática ou

conduta empírica.

Page 11: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

11

justificação do conhecimento. É uma estratégia que redunda no naturalismo de

Hume, onde a justificação cede o passo à descrição e a epistemologia se torna um

capítulo da psicologia; e no transcendentalismo de Kant, que nos deixa com o

problema da descontinuidade entre natureza e liberdade e do estatuto cognitivo da

metafísica. A resposta de Peirce a Descartes, Hume e Kant consistirá, em grande

medida, na alteração do quadro epistemológico individualista comum a estes autores,

e na introdução do conceito de comunidade, que permite também pôr em causa o

egoísmo como base de uma racionalidade prática naturalizada. Logo, um dos

resultados desta alteração será a articulação entre Lógica e Ética, expressa sob a

forma de sentimentos exigidos por uma actividade cognitiva válida.

O segundo capítulo deste trabalho aborda a adopção, por Peirce, de um tom

biologista na sua descrição da actividade lógica como uma forma de comportamento

adaptativo. Mais do que uma concessão ao naturalismo humeano, este ponto de vista

exibe uma reflexão sobre o evolucionismo onde se tenta preservar o carácter

normativo da investigação. A tentativa de mostrar a superioridade do método

científico recupera as teorias da verdade e da realidade desenvolvidas nos textos

apresentados no primeiro capítulo, tornando mais claro o estatuto epistemológico do

conceito de comunidade e impedindo uma sua interpretação nominalista ou empírica,

como manifesta a utilização da máxima pragmática. Para este efeito, concorre a

reafirmação do pano de fundo sentimental da lógica, como exercício deliberado de

uma razão hipotética orientada para fins.

Finalmente, o terceiro capítulo pretende apresentar o esforço de Peirce para evitar

a redução da actividade cognitiva, e das suas motivações, às exigências imediatistas

Page 12: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

12

da prática, sendo que a recondução da racionalidade à categoria da acção visa antes

exibir o seu carácter normativo e não a sua utilidade. Ou ainda, trata-se de esclarecer

a ideia de sentimentalismo filosófico afirmada por Peirce, e que parece representar a

sua específica integração do evolucionismo como estratégia de justificação da

actividade cognitiva, o seu “empirismo normativo”.

Page 13: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

13

CAPÍTULO I - A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE :

REALISMO, ANTI-PSICOLOGISMO, ANTI-INTUICIONISMO.

1. INTRODUÇÃO

Há três temas persistentes e articulados entre si nos escritos de Peirce que

envolvem a questão da comunidade, tanto na sua vertente epistemológica, como nas

suas implicações éticas. São eles, em primeiro lugar, a opção pelo realismo e

consequente crítica das posições nominalistas19

. Em segundo lugar, a recusa da

redução da lógica à psicologia20

, como pretendia o associacionismo empirista e a

lógica de Mill. E, finalmente, a posição anti-fundacionalista em epistemologia, 21

que

se manifesta na crítica da intuição como faculdade cognitiva privilegiada.

19

cf. Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,

1986, pp.186-200, onde se descreve a progressão de Peirce do nominalismo em direcção ao

realismo. Esta progressão ilustra, afinal, o carácter procedimental - que resulta em

afirmações substantivas - da filosofia peirceana. 20

Sobre a questão da naturalização cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985, p.2;

e também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981,

p.222. 21

Como correcção dos impasses do transcendentalismo kantiano, de que é exemplo a cisão

númeno / coisa em si, na superação dos extremismos cépticos ou dogmáticos.

Page 14: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

14

Quanto ao primeiro tema, podemos dizer que Peirce recupera o debate entre

nominalistas e realistas fazendo dele o problema da ciência, da metafísica, da

ontologia e da lógica modernas, em suma, o terreno onde se decide a sustentabilidade

do edifício do saber humano. Na disputa medieval entre nominalistas e realistas, o

que está em causa é o estatuto dos universais, daquelas partes do nosso discurso

sobre o mundo que não pretendem referir-se a coisas individuais concretas mas

atribuem a estas uma comunidade através da predicação, da inclusão de indivíduos

em classes. Trata-se de saber se os géneros e espécies se limitam a ser entidades

fabricadas pelo discurso e que usamos para falar mais comodamente acerca da

realidade, uma “estenografia conceptual” 22

, sendo que as únicas entidades reais são

os indivíduos, ou se, pelo contrário, têm uma existência e podem ser ditos reais,

independentemente do nosso discurso acerca deles ; ou ainda, trata-se de determinar

se há realmente algo em comum entre duas coisas que partilham o mesmo predicado.

Peirce descreve as posições face ao problema da seguinte forma num texto de 186623

:

“Os realistas acreditavam que existe realmente humanidade no homem, animalidade

nos animais e assim por diante; enquanto os nominalistas defendiam que a

humanidade, a animalidade e termos semelhantes, são apenas palavras que indicam a

aplicabilidade a homens, animais, etc., das suas designações de classe.”24

. O

problema dos universais é crucial quando se pretende, como é o caso de Peirce, dar

conta da actividade cognitiva e, mais especificamente, da sua forma científica. É que

22

James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York, 1995, p.22. 23

Trata-se aqui de uma descrição de um momento na história da lógica e não ainda de uma

tomada de posição sobre o assunto.

Page 15: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

15

uma tomada de posição quanto ao conhecimento e à ciência acaba por envolver o

estatuto das propriedades e relações que atribuimos às coisas do mundo acerca das

quais alegamos ou pretendemos obter conhecimento; isto é, põe a questão de decidir

se as categorias com as quais operamos são descobertas e têm realidade ou são de

alguma forma inventadas e impostas como estratégias apenas subjectivas, sem

realidade para além daquela de uma ficção linguística ou resultado de uma abstracção

mental. É, afinal, todo o empreendimento científico que está em causa, ou melhor, as

leis que a ciência pretende serem as leis do real são reais ou não? Como evitar que o

facto de o conhecimento ser nosso nos faça cair no cepticismo ou então num

idealismo de tipo absoluto, de qualquer modo sempre formas do subjectivismo

moderno inaugurado por Descartes? Como respeitar a articulação entre a observação

do mundo externo e a elaboração de hipóteses explicativas sem reduzir aquele a uma

mera construção mental remetendo para uma coisa-em-si inacessível? O nosso

pensamento diz ou não respeito a objectos reais? Convicto de que as intenções da

ciência são as melhores e os seus resultados fiáveis; tendo estudado intensamente a

Crítica da Razão Pura de Kant em busca de uma objectividade para além da

subjectividade transcendental; tendo desde os seus primeiros textos de relevo tratado

da lógica da ciência, incluindo o problema da indução, que depende de uma tomada

de posição quanto à questão dos universais, e das categorias, Peirce acabou por, ao

estudar os lógicos medievais, entender que tudo estava em jogo nesta decisão

filosófica : nominalismo versus realismo. O autor não irá optar pelo realismo

24

“Realists believed that there is really humanity in man, animality in animals, and so forth;

while the Nominalists held that humanity, animality and such terms, are merely words

indicating the applicability to men, animals, etc., of their class appelations.” (W1.360)

Page 16: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

16

extremo de Platão25

, que afirma a realidade dos universais ante rem e reduz as nossas

percepções de coisas individuais a uma ilusão dos sentidos; mas também recusa o

extremo nominalista do flattus voci , que consiste em considerar ilusória a imposição

de universalidade levada a cabo pelo nosso conhecimento discursivo. O seu

optimismo epistemológico levá-lo-á a considerar a resposta de Duns Escoto, um

realismo separado do nominalismo “pela espessura de um cabelo”26

, como a mais

aceitável. Segundo Escoto, existe uma “distinção formal” entre a existência

individual e a essência universal, que consiste numa distinção mental, como queriam

os nominalistas, mas com uma base factual. Assim, os universais são de algum modo

reais e não simples abstracções. Não existe apenas uma “distinção lógica” entre

indivíduos e classes. Mas também não existe uma “distinção real”, in re , como

pretendem os defensores de um realismo extremo. A generalidade que as leis da

ciência expressam faz parte da nossa experiência das coisas sob a forma de hábitos

ou disposições que compõem o sentido dos predicados.

As teses nominalistas que Peirce irá consistentemente recusar são, assim, que a

realidade seja composta exclusivamente por existentes individuais27

; que,

consequentemente, as leis e termos expressando generalidade consistam

simplesmente em ficções intelectuais, por mais úteis que sejam; a consequente

25

Mais do que substâncias, ou predicados essencializados, interessam-lhe relações ou leis:

“general principles are really operative in nature” (C.P.5.101). Cf. Almeder, R., The

Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.160-183. E também

Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993,

pp.126ss. 26

C.P.8.12 27

O progressivo realismo de Peirce irá aceitar finalmente a realidade dos indivíduos; numa

fase adiantada da sua filosofia, procede a um desenvolvimento da sua categoria da

Secondness ligado à noção de haecceitas.

Page 17: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

17

concepção de uma discrepância fundamental entre o nosso discurso, que emprega

termos universais e descreve os “indivíduos” através de leis, e a realidade, com base

na oposição entre o individual e o geral e seus diferentes estatutos ontológicos28

.

O que nos traz ao segundo tema referido no início, o anti-psicologismo quanto à

lógica. O nominalismo parece ter como consequência uma naturalização da lógica

que consiste em vê-la como uma parte da psicologia, descrevendo o modo como de

facto pensamos, isto é, como a partir da experiência do individual criamos aquela

ilusão de universalidade e necessidade que caracterizam o discurso, e que nos leva a

falar em termos de leis, com estatuto meramente convencional, contingente,

subjectivo. Segundo o próprio Peirce29

, o século XIX tentou fazer da psicologia a

chave para a filosofia, submetendo as questões de validade lógica à factualidade de

operações mentais empíricas. Toda a investigação lógica e metodológica em Peirce

conduz, pelo contrário, a uma concepção daquela como independente dos sujeitos

empíricos e da sua diversidade psicológica : a lógica não é uma descrição do modo

como de facto pensamos mas sim a disciplina das regras segundo as quais devemos

pensar30

, sendo que este nós é normativo também, corresponde àquilo que Peirce

designa como “inteligência científica” e não é exclusivo dos humanos e da sua

configuração fisiológica, não depende do facto de termos um cérebro31

. A visão anti-

psicologista da lógica, a sua normatividade, liga-se estreitamente àquele aspecto do

28

De que a distinção kantiana entre fenómeno e númeno será um exemplo e que presume

que a cognição é um efeito de uma realidade incognoscível que de algum modo afecta o

sujeito.

29

Cf. C.P. 8.167 30

Cf. C.P. 2.7 31

Cf. C.P. 4.550. E cf. Fann,K.T., Peirce’s Theory of Abduction, The Hague, Martinus

Nijhoff, 1970, p.38ss, sobre a lógica como ciência normativa.

Page 18: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

18

pensamento de Peirce que mais o celebrizou, a semiótica. É que a lógica “formalista”

32 opera não com actos e faculdades mentais pressupostos mas com aquilo que é

directamente observável: os produtos do pensamento expressos na linguagem, em

proposições e argumentos, isto é, com signos e a sua operatividade específica. A

opção é, então, pela lógica como teoria geral dos signos e das leis da sua

transformação, pelo que o que há a ter em conta, enquanto é a lógica o método

subjacente à actividade cognitiva, são os aspectos externalizáveis, partilháveis e

susceptíveis de controlo deliberado. A psicologia não é capaz de fornecer a

justificação teórica das leis da lógica e qualquer naturalismo neste sentido é recusado

por Peirce33

.

A posição realista e o estatuto da lógica sustentam-se, finalmente, na recusa de

uma pretensão epistemológica comum a racionalistas e empiristas, aquela que diz

respeito a uma faculdade de intuição especial permitindo o acesso a um momento

inicial, fundador, do processo cognitivo, seja ele a apreensão imediata de ideias ou de

dados dos sentidos, funcionando como premissas últimas numa dedução conducente

a um conhecimento absolutamente certo. O que equivale a afirmar uma relação

imediata, de justificação problemática, entre o sujeito e o mundo, traduzida no

32

cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge, 1985, p.15ss. 33

A falar de naturalismo em Peirce, e penso que em certa medida poderemos fazê-lo, este

resulta do empirismo de Peirce, que é um empirismo com uma epistemologia transformada :

não fundacionalista, não nominalista, não individualista. Cf. H. Putnam in Peirce, C.S.,

Reasoning and the Logic of Things, Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard

University Presss, 1992, p.79, acerca da metafísica revisível de Peirce; cf. também C.J.

Dougherty, “C.S. Peirce’s Critique of Psychologism” in Caws, P., ed., Two Centuries of

Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.86-93. Cf. ainda Almeder, R.,

The Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980; e Ayer, A.J., The

Origins of Pragmatism, London, Macmillan, 1968. E também, mais uma vez, Skagestad,P.,

The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, p.222.

Page 19: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

19

discurso e exterior a ele, autorizando-o, ao mesmo tempo que o torna suspeito na sua

função de instância mediadora: a intuição implica uma tomada de posição

nominalista na medida em que subordina as generalizações discursivas a uma relação

entre indivíduos. Em Peirce, tratar-se-á de levar a sério o carácter mediador do

discurso, e assim compreender em que consiste a sua natureza representativa: o

pensamento é uma actividade de interpretação de signos e não um receptáculo de

materiais heterogéneos; essa actividade é o objecto de estudo da lógica, que se

preocupa com as condições da sua validade; pensar consiste, sempre e

inevitavelmente, em fazer inferências e pensar correctamente é fazer inferências

válidas. Aquilo que Peirce nos fornece, e que começa a ser visto como um contributo

pertinente para questões da actual Filosofia da Mente34

, é uma nova visão do mental,

compatível com uma epistemologia falibilista e com instâncias normativas que

preservam as pretensões metafísicas da filosofia sem a dissociar definitivamente da

ciência.

O que se fará em seguida é apresentar um conjunto de três textos de Peirce de

finais da década de 6035

do século XIX, onde realismo, anti-psicologismo e anti-

34

Cf. E.J. Crombie, “Peirce on our Knowledge of Mind: a Neglected Third Approach” in

Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.

77-85; e também Chauviré,C., Peirce et la Signification, Paris, PUF, 1995. E ainda

Tiercelin,C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993. 35

Estes textos de 1868 foram publicados no Journal of Speculative Philosophy, a primeira

publicação americana regular consagrada a questões técnicas da filosofia. Segundo Max

Fisch, num artigo intitulado “Peirce’s progress from nominalism to realism” e já referido,

constituem o primeiro passo de Peirce em direcção ao realismo, a partir de uma posição

anterior declaradamente nominalista, cuja afirmação terá levado o realista e hegeliano W.T.

Harris, editor da revista, a desafiar Peirce a explicar a validade das leis da lógica. Fisch,M.,

Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986, pp.186-

200.

Page 20: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

20

intuicionismo conduzem a um quadro epistemológico de onde se destaca a noção de

comunidade. Faz todo o sentido ver estes três artigos como um tríptico onde, para

enfrentar a questão da possibilidade do conhecimento, Peirce propõe uma concepção

da mente e da realidade em alternativa àquilo a que chama o “espírito do

cartesianismo”36

. Assim, o tratamento da questão da validade das leis da lógica e,

especificamente, o problema da indução, é preparado pela crítica da intuição levada a

cabo no primeiro artigo, e pelo desenvolvimento da concepção da actividade mental

vista como inferência levado a cabo no segundo, acompanhado por uma redefinição

da concepção de realidade. O resultado destes três artigos contém a afirmação da

comunidade como essencial para o processo cognitivo e estabelece a dependência da

lógica em relação à ética.

2.ANTI-INTUICIONISMO: O PENSAMENTO COMO INTERPRETAÇÃO.

2.1. O PRIMEIRO ARTIGO: “QUESTÕES ACERCA DE CERTAS

FACULDADES ATRIBUÍDAS AO HOMEM” (C.P. 5.213-263; W2 .193-211)37

Vários autores38

têm chamado a atenção para a forma escolástica deste texto: são

definidas sete questões e apresentados argumentos positivos e negativos quanto a

36

C.P. 5.264. 37

Este texto, cujo título no original inglês é “Questions Concerning certain Faculties

claimed for Man”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla: QFM.

Page 21: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

21

cada uma delas. Não será certamente apenas uma curiosidade estilística esta adopção

de um esquema argumentativo que parte de um exame de respostas disponíveis para

uma questão e não de uma suspensão do juízo típica da metodologia cartesiana. Ela

indica desde logo que é com estes materiais - razões, argumentos, provas, crenças,

hipóteses - que a razão lida; e que, assim, a hipótese cartesiana é uma entre outras e

tem que ser provada - e que é e que tem de ser este o seu ponto de partida. Esta é

aliás uma prática cuja enunciação clara e justificação serão objecto do artigo

seguinte. Assim, à questão genérica “como funciona a mente?”, Peirce responde

subdividindo-a em sete questões acerca de “faculdades atribuídas ao homem”, isto é,

definindo problemas manejáveis face aos factos e teorias disponíveis, e seguindo

como preceito metodológico a Navalha de Ockham. No caso presente, trata-se de

determinar a admissibilidade de cada hipótese colocada a propósito de cada questão,

com base na sua pertinência e necessidade explicativa: se os factos podem ser

explicados sem recurso a uma dada hipótese e se esta até aumenta a obscuridade de

uma questão postulando entidades ou capacidades misteriosas, então não precisamos

dessa hipótese, ela não serve o seu propósito explicativo - não explica e aumenta o

número de coisas a explicar - e acaba por remeter para uma qualquer

inexplicabilidade : um apriorismo, um fundamento axiomático, uma autoridade, um

limite à possibilidade de inquérito.

38

Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.

Cf. também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press,

1981.

Page 22: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

22

A primeira das sete questões, ou a primeira hipótese a verificar, diz respeito a uma

faculdade fundamental no quadro da psicologia e da epistemologia cartesianas39

:

trata-se de saber se, perante a hipótese de uma faculdade intuitiva, somos capazes de

reconhecer intuitivamente que uma dada cognição é uma intuição, isto é, um

conhecimento não mediado por uma cognição prévia. A forma como a questão é

colocada é significativa. Ela revela o ponto de vista de Peirce quanto ao

funcionamento mental afastando-o de uma problemática simplesmente psicológica e

aproximando-o de uma outra, lógica e epistemológica. Assim, a questão é formulada

em termos cognitivos: “Se, pela simples contemplação de uma cognição,

indepedentemente de qualquer conhecimento anterior e sem raciocínio a partir de

signos, nos é possível ajuizar correctamente se tal cognição foi determinada por uma

cognição prévia ou se se refere imediatamente ao seu objecto.”40

. A intuição é

definida como “ uma cognição não determinda por uma cognição prévia do mesmo

objecto e, consequntemente, determinada por algo exterior à consciência” ou ainda,

“uma premissa que não é, ela própria, uma conclusão”41

. Trata-se, então, de saber

que tipo de relação existe entre mente e mundo e à qual damos o nome de

39

Mas não só. Como já tem sido referido, tanto a tradição racionalista como a tradição

empirista modernas são aqui postas em causa. Segundo Murphey, muitos dos escritos de

Peirce deste período podem ser vistos como respostas directas a Hume e a todo o empirismo

britânico, que afinal partilha com o racionalismo uma concepção do mental e uma

concepção de realidade cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,

Cambridge, Hackett, 1993. Também Hookway,C., Peirce, London, Routledge, 1992. 40

“Whether by the simple contemplation of a cognition, independently of any previous

knowledge and without reasoning from signs, we are enabled rightly to judge whether that

cognition has been determined by a previous cognition or whether it refers immediately to

its object.” C.P. 5.213; W 2.193. 41

“a cognition not determined by a previous cognition of the same object, and therefore so

determined by something out of consciousness”; “a premiss not itself a conclusion” (C.P.

5.213; W 2.193).

Page 23: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

23

conhecimento, ou qual o fundamento das nossas representações. Como diz Claudine

Tiercelin, “aquí, e menos a intuição como faculdade que está em causa, que a

pretensa necessidade de recorrer a ela para fundar a ciência.”42

Ou seja, racionalistas

e empiristas reclamam uma faculdade fundadora, a intuição, postulando a

necessidade de um momento da cadeia cognitiva em que há um contacto imediato

com o objecto da cognição e onde uma operação cognitiva especial, não discursiva,

não da natureza de um argumento, fornece o ponto de apoio da discursividade, seja

ele uma ideia da razão ou os dados dos sentidos.43

A questão começa então ,

reflexivamente, por ser aquela que diz respeito à própria possibilidade de determinar

o carácter intuitivo de uma intuição. Isto é, trata-se de saber se o tipo de

determinação de uma cognição, imediatamente por um “objecto transcendental”

(intuição) ou mediatamente por uma outra cognição (conhecimento discursivo ou

inferência) é dado também na ou faz parte da cognição em causa, se estão

invariavelmente ligadas e são dissociáveis apenas no pensamento, de modo a

podermos sempre distinguir uma intuição de uma não-intuição. Se for o caso que o

tipo de determinação faz parte da cognição, então estaremos perante uma faculdade

ou poder intuitivo de distinguir uma intuição de outra cognição e fica provada a

42

Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993, p.13. 43

J. Chenu faz notar que há um sentido, a que podemos chamar fenomenológico, da

capacidade de intuição que Peirce aceita, como se pode ver no parágrafo seguinte,: “Every

cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself.” (C.P. 5.214; W2.194)

Assim, os dois sentidos em que se pode compreender a capacidade de intuição e que estão

presentes na filosofia escolástica, em Sto Anselmo por exemplo, estariam também presentes

em Peirce.cf. também C.P.5.213 n1. Peirce, Textes Anti-Cartésiens, trad. e int. Joseph

Chenu, Paris, Aubier, 1984, pp.92-93.

Page 24: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

24

hipótese de uma faculdade intuitiva ou de um contacto imediato como base do nosso

conhecimento dos “objectos transcendentais”.

Que provas temos então desta faculdade ? Qual a evidência da intuição? “Parece

que sentimos tê-la.”44

. Mas recorrer ao testemunho de uma sensação ou sentimento é

circular ou remete até para uma regressão infinita: “será este sentimento infalível? E

será este juízo acerca dela infalível, e assim por diante, ad infinitum?”45

. Se este

sentimento, esta “fé”, fosse tudo o que é necessário, qualquer investigação do que

quer que fosse - enquanto é uma busca de provas - seria desnecessária. Um homem

completamente satisfeito com os seus “sentimentos” seria “impermeável à verdade” e

à prova de prova46

. Aliás, esta sensação ou convicção individual é desmentida tanto

pela história como pela psicologia. Aquilo que uma observação do nosso passado

intelectual nos mostra é uma enorme dissensão quanto ao que é considerado

intuitivo, e até quanto a qual possa ser a fonte de autoridade da intuição. E o que nos

impede de esperar uma denúncia da autoridade moderna - a consciência individual

cartesiana - semelhante à que derrubou a autoridade medieval - os textos de certos

autores? “E se a nossa autoridade interna tivesse o mesmo destino, na história das

opiniões, que aquela autoridade externa?”47

. E da psicologia Peirce apresenta

exemplos que permitem colocar genuinamente em dúvida o carácter intuitivo de

44

C.P.5.214 ; W2.194. 45

C.P. 5.214; W2 p.194. 46

Este é um tema importante e que será retomada em pleno no texto de 1878 “The Fixation

of Belief” (C.P.5.358-387 ; W3.242-257). 47

“Now what if our internal authority should meet the same fate, in the history of opinions,

as that external authority has met ?” (C.P. 5.215; W2 p.195) A questão da autoridade, tal

como é tratada aqui, antecipa a questão da comunidade : esta, mais do que uma autoridade

absoluta, deve colaborar com o outro requisito do método científico, a verificação

experimental.

Page 25: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

25

qualquer cognição, contra todos os “sentimentos” individuais. Ou, se quisermos,

aquilo que suscita dúvidas segundo Peirce é aquilo que resiste à dúvida segundo

Descartes. O testemunho das pessoas em situações complexas mostra que é difícil

distinguir o que se viu daquilo que se inferiu : “a nossa única garantia, em casos

difíceis, está em alguns signos dos quais podemos inferir que um dado facto deve ter

sido visto ou deve ter sido inferido”48

. Isto é, é a própria possibilidade da ilusão (o

exemplo envolve as nossas percepções de truques de magia) e do erro que está em

causa e que mostra a dificuldade em admitir uma faculdade intuitiva. O caso dos

sonhos adensa esta dificuldade: a nossa recolecção deles é simultaneamente uma

recomposição. Os sonhos, aliás, parecem fornecer o exemplo da distinção entre o que

é e o que não é determinado por cognições prévias, distinguindo-se assim da

experiência. Mas as diferenças entre sonhos e experiências reais não são decisivas,

são quando muito uma questão de grau, mas não, como parece ser o caso para

Hume49

, de tal modo determinadas que permitam uma identificação inequívoca, e “é

frequente acontecer que um sonho é tão nítido que a memória dele é confundida com

a memória de um acontecimento real.”50

. As crianças, cujos poderes perceptivos são

os mesmos de um adulto, e que poderiam permitir uma avaliação mais “pura” das

nossas faculdades mentais, são também incapazes de distinguir entre intuições e

cognições determinadas por outras cognições. Mesmo no domínio de experiências

mais simples, como é o caso da percepção, não somos capazes de proceder com

48

“(…)our only security in difficult cases is in some signs from which we can infer that a

given fact must have been seen or must have been inferred.” (C.P. 5.216; W2 p.196) 49

Cf. Hume,D., A Treatise Of Human Nature, Penguin ,London, 1985, p.49.

Page 26: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

26

facilidade a uma distinção, como terá ficado demonstrado por Berkeley a propósito

da terceira dimensão do espaço, cuja percepção resulta de uma inferência e não é

intuitiva : “Tínhamos estado a contemplar o objecto desde a criação do homem, mas

esta descoberta só foi feita quando começámos a raciocinar sobre ele.”51

A percepção

é um processo de interpretação que envolve uma série de inferências inconscientes

que permitem preencher descontinuidades empíricas do dado, como é exemplificado

no texto pelo caso do ponto cego da retina. Começa a desenhar-se o cerne da

substituição peirceana do quadro mental cartesiano: da contemplação, relação

estática entre dois pólos, para o raciocínio, que é um tipo de acção que permite uma

abordagem do mental em termos de operações - e não de faculdades, receptivas ou

não; como um processo e não como uma substância exigindo metáforas espaciais,

lugares onde diferentes coisas acontecem. E repare-se também que este exemplo

fortalece ou insiste na insuficiência do sentimento subjectivo, desmontável quando

começamos a pensar racionalmente, e de qualquer autoridade histórica

momentânea.52

50

“(…)not unfrequently a dream is so vivid that the memory of it is mistaken for the

memory of an actual occurrence.” (C.P. 5.217; W2 p.196) 51

“We had been contemplating the object since the very creation of man, but this discovery

was not made until we began to reason about it.” (C.P. 5.219; W2 p.197). 52

Este é, aliás, um tema central na teoria da verdade de Peirce : o seu carácter complexo

combina as concepções de verdade como adequação e verdade como coerência ao erigir

como critérios a experiência e o consenso comunitário. Cf H.S. Thayer , “Peirce on Truth”

in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980,

pp.63-76. O apelo ao sentimento em Peirce nunca cai no individualismo, no subjectivismo

ou no irracionalismo, porque o sentimento é controlável/criticável pela razão; e porque é

uma característica da espécie e não do indivíduo : é nisto que consiste o Senso-Comum

Crítico que Peirce irá enunciar mais tarde.

Page 27: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

27

A própria fisiologia da percepção e a análise das sensações fornecem razões para

duvidar de uma faculdade de intuição, isto é, não a exigem como hipótese

explicativa. Temos então “uma variedade de factos, os quais podemos

expedientemente explicar com base na suposição segundo a qual não temos qualquer

faculdade intuitiva de distinguir entre cognições intuitivas e mediatas.”; e há, assim,

“razões fortes para não acreditar na existência desta faculdade”53

. Se retirarmos as

consequências disto, teremos ainda mais fortes razões para recusar uma tal

faculdade54

.

Será que pelo menos a experiência “interna” nos fornece provas a favor da

intuição? A segunda das sete questões postas neste texto investiga a possibilidade de

uma auto-consciência intuitiva, isto é, pretende saber se tomamos conhecimento de

nós próprios através de uma intuição, imediatamente, e não em resultado de uma

inferência a partir de cognições prévias; sendo que essa auto-consciência é a auto-

consciência privada de cada um e não o eu abstracto (o sujeito epistemológico ou a

síntese kantiana da apercepção). Ou ainda, como é que eu sei que eu - o meu eu -

existo ? Terei acesso imediato ao meu eu privado? A resposta, negativa, à questão

anterior, deixou-nos com a impossibilidade de distinguir intuitivamente uma intuição

de outra cognição. Logo, não é de todo evidente que tenhamos acesso intuitivo à

auto-consciência: isto tem que ser determinado a partir de provas. Conseguimos

53

C.P.5.224; W2.200. 54

Repare-se que este é o procedimento hipotético-dedutivo-indutivo que, para Peirce,

equivale ao funcionamento mental e, simultaneamente, à metodologia da investigação

científica e se “resume” na máxima pragmática formulada mais tarde (no artigo “How to

Make Our Ideas Clear”, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.5.388-410; W3.257-

276): trata-se retirar consequências de uma hipótese para saber o que significa - isto é,

determinar a sua validade enquanto hipótese.

Page 28: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

28

provar ou demonstrar o conhecimento do eu privado sem recurso à hipótese de uma

faculdade de intuição especial? Peirce escolhe aquilo a que podemos chamar uma via

genética para explicar a tomada de consciência do eu próprio, ou a forma como

chegamos a saber que somos um eu55

. A auto-consciência parece desde logo ser

posterior ao “poder de pensamento”, como atesta a utilização tardia da palavra “eu”

nas crianças, e o facto destas pensarem “objectivamente”, isto é, as experiências são

tratadas não em termos de faculdades do sujeito (“eu ouço um som”), mas antes em

termos de comportamento e atributos dos objectos (“o sino toca”). A relação entre a

criança e os objectos exteriores é mediada pelo corpo e não por uma auto-

consciência; os estados de consciência são indistintos das disposições “objectivas”

dos corpos externos e do corpo próprio. Mesmo a aprendizagem da linguagem é um

processo exteriorizado: vai-se estabelecendo uma conexão habitual entre sons e

factos - através de experiências, copiando o que se verifica na observação -

wittgensteineanamente e contra a versão augustiniana da linguagem como

“rotulagem”, os contextos de aprendizagem, o uso, o “treino” explicam a aquisição

da linguagem sem dar lugar a significados misteriosos ou entidades e causas mentais

subjacentes às palavras. Assim, invertendo a posição cartesiana, o eu próprio é um

produto do pensamento, não é prioritário em relação a este e não serve, pois, como

instância de confirmação ou autoridade. Há que apresentar outras instâncias de

validação.

A aquisição da linguagem permite a descoberta do testemunho dos outros como

fonte dos factos, mais forte do que os próprios factos, ou antes, do que o testemunho

55

C.P: 5.227-235; W2.201-203.

Page 29: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

29

individual do próprio: a experiência própria confirma a experiência dos outros

criando expectativas credíveis quanto a esta - e cria também a consciência de que a

experiência própria é insuficiente, incompleta ou falsa : “Assim, ele toma

consciência da ignorância, e é necessário supor um eu próprio a que esta ignorãncia

possa pertencer”56

; isto é, faz-se um juízo de atribuição perante uma característica

do mundo que se experimentou - mas, primeiro “está” o mundo e os outros, só depois

o eu. A possibilidade do erro, da discrepância entre a expectativa própria e o

testemunho dos outros, sugere a necessidade de uma hipótese quanto à existência de

um eu que é falível - é necessária para a explicação do erro, de uma anomalia

observada. O eu não é o resultado de uma intuição, um dado ou uma substância

captável por si própria, mas sim uma hipótese, uma teoria com fins explicativos. Esta

génese do eu próprio, externalista e inferencial, põe por terra o acesso intuitivo

representado pelo cogito ergo sum cartesiano - aquilo que resta quando todo o

exterior é suspenso pela dúvida metódica. Também a auto-consciência intuitiva não

encontra plausibilidade : pode facilmente ser o resultado de uma inferência, o que

introduz na concepção do eu uma dimensão de temporalidade, evolucionista, capaz

de melhoramento; e semiótica, em constante actividade de interpretação.

Será que pelo menos temos acesso intuitivo aos elementos subjectivos dos

diferentes tipos de cognição? Será que a intuição do elemento subjectivo (aquilo a

que hoje se chama atitudes proposicionais - o carácter de uma cognição: crença,

desejo, sonho, imaginação, concepção, etc.) de uma cognição acompanha cada

56

“Thus he becomes aware of ignorance, and it is necessary to suppose a self in which this

ignorance can inhere.” (C.P. 5.233; W2 .202)

Page 30: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

30

cognição e é dado imediatamente, conhecido intuitivamente ? Não temos que fazer

qualquer inferência para saber de que tipo de cognição se trata? Parece que se não

tivessemos este poder de discriminar intuitivamente os elementos subjectivos das

cognições, nunca conseguiriamos distinguir entre ver e imaginar, entre aquilo que

sonhamos e aquilo que realmente experimentamos, entre uma crença e uma

concepção. Mas, mais uma vez, será que precisamos da hipótese de uma faculdade

especial para chegar a fazer todas estas distinções? A diferença entre modos de

consciência respeitantes à actividade dos sentidos e da imaginação é inferida a partir

da diferença entre os objectos imediatos da consciência, assim como a crença se

distingue da concepção seja pelo sentimento de convicção que acompanha a primeira

e não a segunda, seja pela observação de factos externos, do comportamento de quem

acredita, isto de acordo com a definição de crença que Peirce recebe e aceita de

Alexander Bain : a crença é uma disposição para agir, a crença afecta visivelmente o

comportamento, é um “juízo com base no qual um indivíduo irá agir”57

. É, de

qualquer modo, sempre suficiente uma explicação inferencial dessa distinção, sem

necessidade de postular faculdades adicionais ou formas especiais de intuição. O

funcionamento da mente é sempre o mesmo: a inferência.

Da negação da possibilidade de reconhecer intuitivamente, em geral, uma

intuição, na resposta à primeira questão, seguiu-se a negação de intuições

particulares: do eu e de elementos subjectivos da cognição.

Se até agora se tratou de mostrar que não existe um procedimento mental

privilegiado mas que encontramos sempre raciocínio onde acreditávamos ou

57

“(…) a judgement from which a man shall act(..)” (C.P. 5.242; W2.205).

Page 31: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

31

sentíamos haver contacto directo com a realidade, trata-se agora, na quarta questão,

de saber se a distinção entre o conhecimento que temos do chamado mundo interior e

do mundo exterior é logica e epistemologicamente relevante, isto é, se há uma

metodologia privilegiada, um modo de acesso diferente ao mental e aos seus

fenómenos, se temos um poder de introspecção.

Como no caso das questões anteriores, Peirce começa por avaliar a resposta

afirmativa: parece que a introspecção é possível e adequada ao conhecimento dos

“fenómenos mentais” ou dos “factos internos”, isto é, da psique entendida como uma

res separada. Ainda que não intuídos, parecem estar num determinado lugar - o teatro

cartesiano, segundo a expressão do filósofo americano Daniel Dennett - que não

necessita de excursos pelo exterior para ser conhecido. As emoções, por exemplo,

parecem dizer respeito apenas à mente, e fornecer um ponto de partida para um

conhecimento acerca dela independente de qualquer referência a coisas exteriores. O

apelo à intuição, já foi visto, não serve para justificar ou demonstrar a existência

deste “modo de consciência”. Logo, a única forma de proceder a uma demonstração

será, como até aqui, verificando se os factos - o nosso conhecimento de uma emoção,

de um “facto mental” como contraposto a um “facto físico” - podem ou não ser

explicados sem a sua postulação. Ora, aquilo que a reflexão mostra é que as emoções

são predicações e que quando um homem diz “estou zangado”, isto é a consequência

de uma circunstância em que algo num objecto determina esse estado emocional e é

assim um equivalente de “esta coisa é vil, abominável, etc.”. “Qualquer emoção é

Page 32: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

32

uma predicação acerca de algum objecto(...)”58

. Também a volição, “o sentido do

querer”, pode ser explicada sem recurso a uma faculdade misteriosa de introspecção,

isto é, pode ser inferida a partir do conhecimento de factos externos. Assim, mais do

que “voltado para dentro”, o eu orienta-se para o exterior e é nesta interacção que

surgem e fazem sentido os seus “estados” : exprimem relações com referentes

externos. A intencionalidade, e não uma qualquer substancialidade, é a característica

específica dos “factos mentais”. Deste modo, não há métodos psicológicos distintos,

excepcionais: “A única maneira de investigar uma questão psicológica é através de

uma inferência a partir de factos externos.”59

).

A quinta questão é a seguinte: podemos pensar sem signos ? Ou seja, haverá uma

causa mental “interna” suposta sob a exteriorização dela numa linguagem ? Aqueles

que pretendem responder afirmativamente dizem simplesmente que o pensamento

deve preceder qualquer signo, que este é apenas o revestimento público de um

pensamento privado a-linguístico, completamente mental. Não existindo um poder de

introspecção, temos que proceder a uma argumentação a partir de factos externos, e

estes só nos mostram pensamento em signos: uma vez que todo o pensamento é

mediação, como foi estabelecido na resposta à primeira questão, qualquer

pensamento dado é, por definição, uma interpretação de um pensamento anterior, ou

qualquer premissa é uma conclusão a partir de premissas prévias. “O único

58

C.P. 5.247; W2.206. Também a este propósito, Peirce inverte Hume: para este, juízos

qualitativos são projecções emocionais; para Peirce, as emoções são inferências. 59

C.P. 5.249; W2.207. Repare-se na importância deste aspecto para a recusa da

psicologizacão da lógica: estudar uma questão psicológica exige fazer inferências; a lógica

estuda as inferências e a sua forma correcta ou a sua validade; logo, a psicologia como

ciência especial depende da lógica como ciência dos métodos.

Page 33: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

33

pensamento que pode, então, ser conhecido, é pensamento em signos”60

. O facto de

não explicitarmos completamente todos os passos de um raciocínio quando o

expressamos não significa que algum passo misterioso e não exteriorizável - isto é,

uma causa mental que não é um signo mas que é significada por ele - tenha ocorrido,

mas apenas que há falta de distinção.

O facto de todo o pensamento ter o carácter de um signo implica que todo o

pensamento determina um outro, o que equivale a dizer que o pensamento não é um

acto instantâneo mas um fluxo contínuo de signos que determinam outros signos, ou

seja, tem uma dimensão temporal. É precisamente esta característica que conduz a

uma concepção do conhecimento como uma actividade falível, um processo sem

garantias absolutas fornecidas por um fundamento intuitivo.

Quanto aos signos, e esta será a questão número seis, podem eles ter algum

significado se, por definição, forem signos de algo absolutamente incognoscível? Ou

seja, há alguma realidade que o eu possa não vir a conhecer de algum modo, que seja

absolutamente inacessível ao conhecimento?61

Mais uma vez, Peirce começa pela

resposta afirmativa : as proposições universais e as proposições hipotéticas, uma vez

que se referem àquilo que está fora da experiência presente ou possível, parecem

60

C.P.5.251; W2.207. 61

Esta questão é central na medida em que se trata aqui de não abdicar de uma posição

realista, e assim cair no nominalismo, pelo facto de termos como hipótese explicativa da

acção mental o seu carácter inferencial, ou seja, semiótico. A linguagem não torna o

conhecimento numa questão de convenção, não é um filtro entre o sujeito e uma realidade

finalmente inacessível. Peirce tem aqui que demarcar-se da tradição nominalista, tanto mais

quanto esta dá uma grande importância à linguagem como é exemplo o caso de Locke, que

terá até sido o primeiro a usar o termo semiose.

Page 34: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

34

significar objectos incognoscíveis62

. Subjacente à resposta de Peirce está, segundo

Corrington63

, a opção por um idealismo objectivo e a consequente crença de que o

mundo é real e é parte de alguma experiência : “A cognoscibilidade e o ser são não

apenas metafisicamente o mesmo, mas são termos sinónimos.”64

. Ser é ser objecto de

alguma experiência. Para estabelecer isto, a estratégia de Peirce consiste em mostrar

que a ideia de incognoscível é auto-contraditória65

e que o prefixo de negação é

sincategoremático. Assim, até estruturas infinitas são de alguma forma cognoscíveis,

experienciáveis, não directa e plenamente mas através de indução, isto é,

inferencialmente. As proposições universais e hipotéticas são cognoscíveis, ainda que

indirectamente. Mas isto é, afinal, o que caracteriza o processo de conhecimento,

dada a implausibilidade da intuição: ele é sempre um acto de mediação66

. Também

Esposito vê nestes artigos a confirmação do idealismo de Peirce, que é consequência

da rejeição do fundacionalismo cartesiano67

e que permite esclarecer a relação entre

inferência probabilística e realidade, ou seja, a questão da validade das leis da lógica

ou da possibilidade do conhecimento sintético.

62

Poderia, a este propósito, pôr-se a questão do saber se as condições de possibilidade do

conhecimento podem, pors ua vez, ser conhecidas, visto serem os limites da actividade

cognitiva. De alguma forma, a teoria social da lógica e o sentimentalismo como condição de

possibilidade da lógica, que serão abordados neste trabalho, aparecerão como resposta a este

paradoxo: recusa do incognoscível/ conhecer condições de possibilidade. 63

Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce - Philosopher, Semiotician and Ecstatic

Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers, inc., 1993,p.83. 64

C.P. 5. 257; W2.208. 65

cf. C.P.5.257 66

cf. C.P.5.284: o pensamento é isomorfo do tempo na medida em que é um processo

contínuo e um processo de crescimento. Cf. Esposito,J.L., Evolutionary Metaphysics,

Athens Ohio, Ohio University Press, 1980, p.119.

67

cf. C.P.5.310

Page 35: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

35

A sétima e última questão pode ser vista como o fechamento de um círculo. É

que se o texto começa com uma questão acerca da possibilidade de reconhecer

intuitivamente uma intuição definindo esta como conhecimento imediato, isto é, não

determinado por outra cognição mas pelo objecto (como acontece para os empiristas

no caso da afecção sensorial ou para os racionalistas no caso de certas ideias), ou

como uma premissa que não é por sua vez uma conclusão, a sétima questão põe

directamente em causa a intuição em geral : “Se existe alguma cognição não

determinada por uma cognição prévia.”68

Terá havido um primeiro momento na série das cognições ou o nosso estado

cognitivo em qualquer momento é completamente determinado, de acordo com leis

lógicas, pelo nosso estado cognitivo em qualquer momento anterior? Como

responder a esta alternativa quando parece haver tantas provas a favor de um

primeiro momento na série das cognições, isto é, de uma intuição fundadora? Bom,

desde logo aplicando as conclusões das questões anteriores que mostraram, em geral

e para casos particulares, que “é impossível saber intuitivamente que uma dada

cognição não é determinada por uma cognição anterior.”69

, isto é, não distinguimos

intuitivamente uma intuição de uma cognição mediata. É, afinal, a presunção de uma

intuição ou de uma faculdade intuitiva (e a imagem do conhecimento como contacto

imediato e assegurado entre a coisa-mente e a coisa-mundo ) que levanta este

problema - e este desaparece juntamente com a presunção de um conhecimento

68

“Whether there is any cognition not determined by a previous cognition”. (C.P. 5.260;

W2.209)

69

C.P. 5.260; W2.209.

Page 36: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

36

intuitivo: deixa de ser o problema. Assim, uma das conclusões deste ataque à

intuição, será exactamente o abandono da concepção individualista, internalista,

autosuficiente e imediatista do conhecimento, que acompanha os vários

fundacionalismos gerados por Descartes, e a sua substituição por um outro conceito

epistemológico significativamente diferente, o de comunidade, adequado à

insistência no carácter temporal ou processual do pensamento, e ao qual se chega

examinando “algumas consequências de quatro incapacidades”.

2.2. O SEGUNDO ARTIGO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO

INCAPACIDADES. (C.P.5.264-317; W2.211-242)70

O ataque ao eu substancialista levado a cabo no artigo anterior sob a forma da

sua invalidação como hipótese explicativa dos “factos internos” e da cognição faz-

nos desembocar em pleno “espírito do cartesianismo”71

, cujas características, em

oposição à filosofia escolástica que o antecedeu, são, segundo Peirce, as seguintes: a

dúvida universal como ponto de partida da filosofia; a consciência individual como

teste último da certeza; um fio argumentativo único como estratégia de

fundamentação e justificação, frequentemente dependente de “premissas

inconspícuas”; e, finalmente, ter como resultado tornar as coisas absolutamente

inexplicáveis. Peirce defende exactamente o contrário destas quatro pretensões e isto

70

Este texto, cujo título original é “Some Consequences of Four Incapacities”, será a partir

de agora identificado com a seguinte sigla : CFI. 71

C.P. 5.264; W2.211

Page 37: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

37

em nome das exigências da ciência e da lógica modernas72

. Assim, à dúvida

metódica cartesiana opõe a dúvida real, aquela que surge de facto num determinado

contexto problemático, e que tanto pode ocorrer na investigação científica como na

experiência quotidiana. O que se passa, segundo Peirce, é que nunca estamos

realmente num estado de descrença total, nem conseguimos dispensar “com uma

máxima”73

todos os preconceitos que constituem, afinal, o nosso ponto de vista, a

nossa posição na relação cognitiva com o mundo ; o cepticismo radical é auto-ilusão.

A dúvida será, em Peirce, resgatada das suas implicações cépticas e integrada

positivamente no método; deixa de ser contraditória ou estéril, passa a produzir

resultados substantivos em vez de condenar a filosofia ao formalismo74

. Também a

certeza individual é um “fundamento” pernicioso. Aliás, já o artigo anterior chamara

a atenção para os problemas do sentimento subjectivo e para a forma como a

confirmação de expectativas e da nossa própria identidade depende do testemunho

dos outros: o conhecimento é um assunto comunitário e a certeza decorre do acordo

sobre uma teoria posta à prova por todos aqueles que investigam.. A filosofia

deveria, pois, “imitar as ciências de sucesso nos seus métodos”75

e recorrer a

múltiplos e variados argumentos: um feixe ou cabo é sempre mais forte do que um

único elo. Finalmente, presumir uma inexplicabilidade na base dos fenómenos que se

72

C.P.5.265 73

C.P. 5.265; W2.212 74

cf. Browning, D., “The Limits of the Practical in Peirce’s View of Philosophical Inquiry”

in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /

Providence, Berg, 1994, pp.15-29, onde se discutem as ambiguidades da cocepção de dúvida

em Peirce.

Este tema é retomado na famosa metáfora do pântano, de 1898, onde Peirce reafirma o

seu anti-fundacionalismo : não há um ponto de vista privilegiado e neutro sobre a totalidade,

estamos sempre já in media res e na posse de algum conhecimento provisório.

Page 38: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

38

pretende explicar é perfeitamente injustificado, dado que o objectivo é, precisamente,

explicar; é uma forma arbitrária, autoritária de travar o processo de investigação, é

uma estabilização artificial.

Como de algum modo aquelas características do cartesianismo se justificam à luz

de uma determinada teoria acerca da mente e do conhecimento, a sua refutação e a

aceitação concomitante destas contra-propostas ficará estabelecida se continuarmos o

processo de demolição desta mesma teoria da mente e do conhecimento. O primeiro

dos três artigos aqui em causa, ao responder às sete questões acerca de faculdades

reivindicadas para o homem permitira-nos identificar quatro incapacidades : 1) não

temos poder de introspecção; 2) não temos poder de intuição; 3) não temos o poder

de pensar sem signos; 4) não temos concepção do absolutamente incognoscível.

Agora, trata-se de sujeitar a teste estas quatro hipóteses, de retirar consequências

delas para delimitar uma alternativa consistente à res cogitans cartesiana e ao

nominalismo típico de toda a filosofia moderna.

A primeira proposição implica abandonar a “via” da auto-consciência como modo

de acesso cognitivo ao mundo externo (e interno). A descrição da acção mental terá,

mais uma vez, o estatuto de uma hipótese que deve ser levada até às suas últimas

consequências: “Por outras palavras, devemos, tanto quanto for possível sem

hipóteses adicionais, reduzir todos os tipos de acção mental a um tipo geral.”76

.

Afastado o conhecimento imediato, a intuição, resta o conhecimento mediato ou

discursivo, a inferência; e é esta então a hipótese em causa acerca do funcionamento

75

C.P.5.265; W2.213. 76

C.P. 5.266; W 2.214.

Page 39: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

39

mental: “(...) devemos, tanto quanto possível, sem qualquer outra suposição a não ser

que a mente raciocina, reduzir toda a acção mental à fórmula do raciocínio válido.”77

As duas primeiras proposições permitem, então, identificar toda a actividade mental

com o raciocínio válido e com a recensão das suas formas possíveis : pensar é inferir

dedutiva, indutiva ou hipoteticamente, “ou então ele raciocínio válido combina

duas ou mais destas características.”78

Dedução, indução e hipótese79

são três

espécies diferentes de raciocínio válido, mas integram um mesmo género, partilham

uma forma geral80

, e esgotam toda a descrição possível da actividade mental de uma

forma que não é perturbada sequer pela possibilidade do erro, pelos raciocínios

falaciosos81

.

A terceira proposição afirma que não podemos pensar sem signos; isto é, que a

actividade mental, ou inferência, envolve a presença na consciência de uma

representação - seja ela um sentimento, uma imagem ou uma concepção - que

funciona sempre como um signo. Trata-se, como diz Thompson82

, de especificar a

natureza dos acontecimentos que ocorrem no processo mental. Este signo é,

simultaneamente, “uma manifestação fenoménica de nós próprios” e “um fenómeno

77

C.P. 5.267; W 2.214. 78

C.P. 5.276; W 2.217. 79

Tanto a indução como a hipótese são “reduções da multiplicidade à unidade” - cf.

C.P.5.275 para a indução e C.P.5.276 para a hipótese – logo, são formas de síntese, para

usar o termo kantiano, ou de obtenção de conhecimento. 80

C.P. 5.279. 81

C.P. 5.280-282. Até as falácias se conformam à fórmula da inferência válida. Não há erros

absolutos. Segundo Hookway, trata-se de racionalizar a irracionalidade ; a caridade é

constitutiva da compreensão dos outros. cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge,

1985,p.32. 82

Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,

University of Chicago Press, 1953, p.42.

Page 40: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

40

de algo fora de nós”83

e constitui assim o mental propriamente ditto. Este é, então,

dinâmico, ou implica, como tinha já sido afirmado no artigo anterior, temporalidade,

tal como se pode compreender a partir da descrição que Peirce faz da noção de signo:

“Ora, um signo tem, enquanto tal, três referências: 1º, é um signo em relação a algum

pensamento que o interpreta; 2º, é um signo em relação a algum objecto do qual é um

equivalente nesse pensamento; 3º, é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que o

põe em relação com o seu objecto.”84

O primeiro correlato estabelece a acção mental

como um fluxo ininterrupto de acordo com a lei de associação de ideias : um

pensamento-signo (“thought-sign”) é sempre interpretado ou traduzido num outro

subsequente, o que desde logo decorre da nossa incapacidade para a intuição. O

pensamento é um processo contínuo no tempo e a única interrupção concebível é

“que todo o pensamento tenha um fim abrupto e definitivo com a morte.”85

O

segundo correlato, “a coisa externa real”, é referido pela mediação de um pensamento

anterior, que o denota, uma vez que cada pensamento é determinado por um

pensamento anterior e não directamente - intuitivamente - por um “objecto

transcendental”. E, finalmente, o terceiro correlato é o próprio pensamento, tal como

é pensado no pensamento subsequente para o qual é um signo. Assim, ainda que

possamos considerar duas outras propriedades dos signos, de grande importância

para a teoria da cognição, designadamente as qualidades materiais do signo e a sua

aplicação puramente demonstrativa, a função representativa do signo não está nem

83

C.P. 5.283; W 2.223 84

“Now, a sign has, as such, three references : 1st, it is a sign to some thought which

interprets it ; 2d, it is a sign for some object to which in that thought it is equivalent; 3d, it is

a sign, in some respect or quality, which brings it into connection with its object.” ( C.P.

5.283; W 2.223).

Page 41: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

41

num nem noutro destes aspectos mas antes consiste naquilo que um signo é para um

pensamento : não em si próprio ou na sua relação real com o seu objecto. O signo é,

pois, irredutivelmente triádico86

. O carácter-signo de todo o pensamento, a sua

interpretabilidade indefinida, tem como corolário a constatação de que o sentido de

um pensamento é algo de virtual, nunca completamente determinado87

, dado que um

pensamento não é um objecto, uma coisa, mas um acontecimento, um acto da

mente88

que envolve tempo e cujo sentido depende da relação com pensamentos

subsequentes. A psicologia associacionista equivoca-se ao descrever o fluxo de

pensamento como uma sucessão de imagens entendidas como representações

singulares absolutamente determinadas, como se a sensação fosse uma cópia fiel de

objectos dados com todos os seus detalhes, esquecendo que cada sentido é “um

mecanismo de abstracção”89

e que afinal “a associação de ideias consiste nisto, que

um juízo dá origem a outro juízo, do qual é o signo. Ora isto não é mais nem menos

do que inferência.”90

A quarta proposição faz intervir um elemento central da alternativa proposta por

Peirce à mente cartesiana e empirista: a noção de comunidade. O que ela afirma,

então, é que o absolutamente incognoscível é absolutamente inconcebível. Esta é

uma discussão que tanto se dirige a Descartes como à coisa-em-si kantiana. Postular

85

C.P. 5.284; W 2.224 86

A relação semântica, de representação, de um signo com aquilo que ele significa, depende

do nosso uso ou compreensão dele como um signo dessa coisa: e ainda que um signo possa

não ser interpretado de facto, só é signo por ser capaz de ser interpretado ou compreendido

num certo modo. É signo de algo para alguém, envolve sempre três termos. Cf.Hookway,

C.,Peirce, London, Routledge, 1985,pp.32-33. 87

C.P. 5.289; W 2.227 88

C.P. 5.288. 89

C.P. 5.306

Page 42: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

42

algo como real, existente, mas inacessível ao conhecimento não faz sentido fora do

quadro cartesiano do conhecimento como intuição. Dada a descrição do pensamento

como processo, estamos em qualquer momento de posse de certas cognições

resultando de uma “série infinita de induções e hipóteses”91

e essas cognições são de

dois tipos : “as verdadeiras e as falsas, ou cognições cujos objectos são reais e

aquelas cujos objectos não são reais”92

. A própria noção de real decorre de uma

inferência feita a partir da nossa capacidade de auto-correcção : “É uma concepção

que devemos ter tido pela primeira vez quando descobrimos que havia algo de não

real, uma ilusão; ou seja, quando nos corrigimos a nós próprios pela primeira vez.”93

O facto da auto-correcção implica, por sua vez, uma distinção entre “um ens relativo

a determinações internas privadas, às negações que pertencem à idiossincrasia” e

“um ens tal que subsistiria no longo prazo”, ou seja, o contraste entre a experiência

individual e um ideal de estabilidade, uma extensão do modo como tinha sido

descrita a origem da hipótese do eu a propósito da refutação de um acesso

privilegiado a uma auto consciência. Dito de outro modo, é o resultado de uma

inferência e é aquilo em que “mais cedo ou mais tarde, a informação e o raciocínio

finalmente resultariam, e que, consequentemente, é independente das variações

90

C.P. 5.307. 91

C.P. 5.311 92

C.P. 5.311. O sentido do termo “real” está, assim, estreitamente ligado ao sentido de

termo “verdadeiro”, implicam-se mutuamente, sendo que a pretensão à verdade é

simultaneamente uma pretensão ou afirmação da possibilidade do conhecimento do real.

Trata-se aqui do “realismo escolástico” de Peirce, expresso mais adiante no texto, onde

Peirce afirma que não conhece realidade mais profunda que o objecto de uma representação

verdadeira. 93

C.P. 5.311; W 2.239.

Page 43: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

43

individuais”94

. Esta estabilidade em que resultaria “finalmente” a informação e o

raciocínio é o ponto de vista que permite avaliar os “fracassos” individuais pontuais -

e já não simplesmente o testemunho dos outros. Há que evitar cair em critérios

utilitaristas quanto ao valor lógico e epistemológico dos conhecimentos. Ou seja,

surge aqui já uma distinção entre o plano da experiência e o plano do ideal que

conduz a nossa abordagem dessa experiência e que é a finalidade última do inquérito

- tema que irá ser insistentemente abordado e desenvolvido a partir daqui em

direcção a uma concepção normativa da lógica, a uma articulação entre lógica e ética,

ao tema da diferença entre teoria e prática - e que tem uma expressão clara na

problemática da descontinuidade entre os métodos de fixação da crença que irá ser

objecto do próximo capítulo deste trabalho. Assim, a concepção de real exige a

noção de uma comunidade sem limites definidos e capaz de um aumento definido de

conhecimento ou de progredir em direcção à estabilidade no longo prazo95

e

substituindo o sujeito cartesiano auto-contido e auto-suficiente: o indivíduo não

fornece garantias suficientes de estabilidade. A noção de incognoscibilidade é posta

em causa dada a admissão de que a verdade e a realidade são aquilo que seria

descoberto se o inquérito continuasse suficientemente, no longo prazo. Esta admissão

depende, por sua vez, de uma interpretação estatística da indução que será defendida

no artigo seguinte.

A noção de realidade é, assim, o resultado de um processo de investigação e

não um dado ou uma qualquer transcendência, exterior ao discurso. Pelo contrário,

94

C.P. 5.311; W 2.239.

Page 44: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

44

em Peirce o real é “aquilo que é representado numa representação verdadeira”96

e

esta é uma descrição que corresponde a uma posição realista: “Consequentemente,

aquilo que é pensado nestas cognições é real, tal como realmente é. Não há, então,

nada que nos impeça de conhecer as coisas externas tal como realmente são, e é

muito provável que assim aconteça em inúmeros casos,embora não possamos ter a

certeza absoluta de que o fazemos em algum caso especial.”97

. Uma aplicação desta

noção de real a um objecto específico como a mente mostra, e isto em função da

investigação levada a cabo neste e no artigo anterior, que a realidade da mente

consiste em realizar inferências ou “a mente é um signo que se desenvolve segundo

as leis da inferência”; e que “a palavra ou signo que o homem usa é o próprio

homem”98

. Esta parece, então, ser uma definição anti-individualista de homem:

enquanto signo, não é uma entidade estática ou definitiva e absolutamente

determinada, mas o seu sentido depende de interpretação num outro signo. Aquilo

que uma coisa é, é aquilo que finalmente será conhecida como sendo num estado

ideal de informação completa, “de modo que a realidade depende da decisão última

da comunidade”99

. Todo o pensamento que se dá num determinado momento,

embora aparentemente actual, é afinal apenas pensamento em potência, dependente

do pensamento futuro da comunidade. A pedra de toque da verdade e da realidade

95

“And so those two series of cognition – the real and the unreal – consist of those which, at

a time sufficiently future, the community will always continue to re-affirm; and of those

which, under the same conditions, will ever after be denied.” (C.P. 5.311). 96

C.P. 5.312 97

“Consequently, that which is thought in these cognitions is the real, as it really is. There is

nothing, then, to prevent our knowing outward things as they really are, and it is most likely

that we do thus know them in numberless cases, although we can never be absolutely certain

of doing so in any special case.” (C.P. 5.311) 98

C.P. 5.313.

Page 45: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

45

deixou definitivamente de ser um momento inicial, uma qualquer fundação, do

inquérito (estamos sempre já no processo - somos lançados no meio dos

acontecimentos), para ser a finalidade que o orienta, um estado futuro esperado e

regulador, um ideal. Assim, qualquer momento do percurso é relativizado - falível -

em função dessa finalidade, o que equivale a dizer que nenhum momento está

absolutamente fundado mas depende do aumento do conhecimento ou da progressão

do inquérito. Também o homem individual, tal como qualquer cognição particular, é

apenas negação.

O contexto de emergência do tema da comunidade é, directamente,

epistemológico. Ele começa a definir-se ainda na discussão da primeira questão das

QFM, quando se chama a atenção para a insuficiência de uma autoridade interna,

individual, para se decidir do carácter intuitivo de uma cognição100

; e atinge um

ponto decisivo na resposta à segunda questão, acerca da existência ou não de uma

auto-consciência intuitiva. Assim, podemos encontrar já aqui os dois critérios de

validação do conhecimento, ou da admissibilidade das hipóteses, que, combinados,

virão a constituir o núcleo normativo da noção de comunidade, definindo a sua

função epistemológica 101

: a auto-consciência é uma hipótese, o resultado de uma

inferência validada pela experiência ou tendo em vista explicar os factos, por um

lado, e, por outro, pelo testemunho dos outros, que confirma ou não a experiência

individual. A falta de autoridade do ponto de vista individual é ainda maior se

99

C.P. 5.316. 100

C.P. 5.214-15; W.2.194-5 101

Com consequências para a teoria peirceana de verdade, que não é já uma teoria da

verdade como adequação, sem ser ainda completamente uma teoria coerentista. Cf Thayer,

Page 46: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

46

considerarmos a resposta à terceira questão posta no primeiro artigo, ou a terceira

incapacidade identificada no segundo, isto é, o facto de que todo o pensamento é um

signo , ou, que não podemos pensar sem signos. A linguagem, enquanto dimensão

incontornável numa teoria do conhecimento, implica uma concepção da

racionalidade como um conjunto de operações externalizáveis e submetidas a regras,

coincidindo com a concepção anti-psicologista da lógica em Peirce, como disciplina

cujo objecto de estudo são os produtos do pensamento tal como se manifestam em

proposições e argumentos.

Mas é a propósito da definição de real, no âmbito da discussão de uma quarta

incapacidade humana - a de conceber o incognoscível - que é explicitamente

introduzida a comunidade, acompanhando uma afirmação anti-fundacionalista

decorrente da incapacidade para a intuição : o real não é dado, é inferido como

hipótese explicativa de certos factos, do erro; e falibilista: não havendo uma recepção

imediata de qualquer parcela de realidade que funcione como fundamento, antes

sendo esta uma concepção que resulta de uma inferência na medida em que se

pretende dar conta de factos da experiência, a garantia da validade do conhecimento

dependerá da confirmação experimental possível e do acordo comunitário, do

testemunho dos outros num dado momento. Ou, se quisermos, a garantia é o

método102

de investigação com o qual abordamos a experiência partindo de uma

dúvida real, propondo hipóteses explicativas, verificando essas hipóteses e

“Peirce on Truth” ” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil

Blackwell, 1980, pp.63-76. 102

Daí a necessidade de: 1) validar as leis da lógica; 2) afirmar a superioridade do método

científico.

Page 47: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

47

respeitando as regras de inferência, assegurando desse modo a convergência

representada pela noção de comunidade.

É importante salientar, finalmente, o modo como as posições anti-

individualistas, anti-fundacionalistas e falibilistas afirmadas até aqui por Peirce são

componentes fundamentais do seu realismo: é que, se a sua definição de real no

segundo artigo como dependente da decisão final a comunidade pode fazer pensar

num convencionalismo afinal nominalista, é preciso considerar, em primeiro lugar,

que o que está em causa é a insuficiência do indivíduo no que respeita à exigência de

inteligibilidade que comanda o inquérito103

; em segundo lugar, que os resultados,

falíveis e aproximativos, do inquérito não são simplesmente uma versão humana e

abreviada do modo como as coisas realmente são, mas que, para Peirce, o

conhecimento é literalmente possível e suficientemente justificável. Desde logo,

então, o passo seguinte será justificar o modo de funcionamento da razão humana no

processo cognitivo, que foi nestes dois artigos identificado com a inferência.

103

“The individual man, since his separate existence is manifested only by ignorance and

error, so far as he is anything apart from his fellows, and from what he and they are to be, is

only a negation. This is man,

...proud man,

Most ignorant of what he’s most assured,

His glassy essence.” C.P.5.317

Page 48: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

48

2.3. O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA

LÓGICA: OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES

(C.P.5.318-357; W2.242-272)104

Este terceiro artigo, estabelecida uma teoria semiótica da mente e afirmada uma

posição realista no anterior, pretende explicar a validade das leis da lógica,

especialmente no caso dos raciocínios prováveis. Trata-se de saber como é possível

passar de um conhecimento do passado para um conhecimento do futuro, da parte

para o todo, como é possível conhecer o que não foi experimentado105

. Isto é,

recusado um modelo do mental que exige um momento fundador inicial, um contacto

directo com a realidade que se erige como critério de certeza, mas aceitando-se ainda

assim a possibilidade do conhecimento e do conhecimento verdadeiro acerca do real,

como se justifica esta última? A “faculdade” de conhecer pode até encontrar uma

explicação biológica, empírica: a sobrevivência da espécie atestaria simplesmente a

sua existência. Mas o problema agora é explicar a sua possibilidade a partir da sua

constatação (tal como Kant fizera com a ciência newtoniana na Crítica da Razão

Pura), dado que não podemos contar com qualquer intuição intelectual como

explicação e fundamento. “O que poderá permitir à mente conhecer coisas físicas que

104

Este artigo, cujo título original é “Grounds of Validity of the Laws of Logic – Further

Consequences of Four Incapacities”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla:

GVL. 105

“How magical is it that by examining a part of a class we can know what is true of the

whole class, and by study of the past we can know the future; in short, that we can know

what we have not experienced!” C.P.5.341.

Page 49: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

49

não a influenciam fisicamente e que ela não influencia?”106

Esta é uma questão que

equivale àquela acerca da possibilidade da indução e da hipótese, isto é, das

inferências prováveis. E é uma questão tanto mais importante quanto não se deixa

resolver por qualquer presunção de regularidade na natureza.: “É verdade que as leis

especiais e as regularidades são inúmeras; mas ninguém considera as irregularidades,

que são infinitamente mais frequentes. Qualquer facto verdadeiro acerca de qualquer

coisa particular no universo está relacionado com qualquer facto verdadeiro acerca de

qualquer outra coisa. Mas a imensa maioria destas relações são fortuitas e irregulares.

Um homem na China comprou uma vaca três dias e cinco minutos depois de um

natural da Gronelândia ter espirrado. Estará esta circunstância abstracta relacionada

com qualquer tipo de regularidade?”107

Ainda que houvesse alguma ordem na

natureza (como “proporção”) e ainda que ela pudesse ser conhecida, isto não

explicaria o aumento do conhecimento, serviria apenas como base para a dedução

enquanto princípio geral108

. O nosso conhecimento não é simplesmente o espelho de

uma suposta “ordem das coisas” mas o resultado de um processo cuja validade é o

que está aqui em causa. E, mais ainda, a questão da validade ficaria comprometida se

a sua base fosse uma qualquer correspondência com uma ordem das coisas, isto

porque se tornaria relativa a essa mesma ordem das coisas, “dependente de uma

106

“What could enable the mind to know physical things which do not physically influence

it and which it does not influence?” (C.P. 5.342; W 2.264). 107

“It is true that the special laws and regularities are innumerable; but nobody thinks of the

irregularities, which are infinitely more frequent. Every fact true of any one thing in the

universe is related to every fact true of every other. But the immense majority of these

relations are fortuitous and irregular. A man in China bought a cow three days and five

minutes after a Greenlander has sneezed. Is that abstract circumstance connected with any

regularity whatever?” (C.P. 5.344). 108

C.P. 5.344.

Page 50: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

50

constituição particular do universo”109

e o que importa é justificá-la de modo a operar

na passagem daquilo que conhecemos para aquilo que ainda não conhecemos.

“Assim, parece que somos conduzidos a este ponto. Por um lado, nenhuma

determinação das coisas, nenhum facto, pode ter como resultado a validade dos

argumentos de probabilidade; nem, por outro lado, podem tais argumentos ser

reduzidos a uma forma correcta, sejam os factos o que forem. Isto parece-se bastante

com a redução ao absurdo da validade de um tal raciocínio; e um paradoxo da maior

dificuldade apresenta-se como solução.”110

. Este é, então, o problema do aumento

justificado do conhecimento, ou do raciocínio sintético, e é “a fechadura na porta da

filosofia”111

. A resposta a esta questão, e aquilo de que a validade das inferências

prováveis depende, está na noção de no longo prazo - ou, se quisermos, depende da

direcção da investigação, do facto de se partir de um estado fragmentário tendo em

vista um estado completo, da parte para o todo, tem a ver com aquele estado de

informação completa que é a finalidade da investigação. “Qualquer inferência

provável, seja ela uma indução ou uma hipótese, é uma inferência que vai das partes

para o todo. É, pois, essencialmente semelhante à inferência estatística. Se, de um

saco de feijões pretos e brancos, tirarmos algumas mãos cheias, podemos, a partir

desta amostra, fazer um juízo aproximado acerca da proporção de feijões pretos e

brancos em relação à totalidade. Isto é semelhante ao que se passa na indução. Agora

109

C.P.5.345. 110

“Thus we seem to be driven to this point. On the one hand, no determination of things, no

fact, can result in the validity of probable argument; nor, on the other hand, is such argument

reducible to that form which holds good, however the facts may be. This seems very much

like a reduction to absurdity of the validity of such reasoning; and a paradox of the greatest

difficulty is presented for solution.” (C.P.5.347) 111

C.P.5.348; W2.268.

Page 51: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

51

sabemos de que depende a validade desta inferência. Depende do facto de que, no

longo prazo, qualquer um dos feijões seria retirado tão frequentemente como

qualquer outro.”112

Ou, como diz Hookway, a estratégia de Peirce consiste em

argumentar que, de acordo com a noção de realidade apresentada, a inferência por

amostra, como relação parte/todo, como é o caso da indução e da hipótese, cumprem

um critério defensável de correcção lógica. Isto tem como consequência o carácter

aproximativo da indução113

. Por um lado, então, a validade da indução depende da

noção de realidade tal como fora apresentada no artigo anterior. Mas, por outro, põe-

se também a questão de saber porque é que os homens não estão sempre condenados

a fazer quelas induções que são altamente enganadoras, visto que o longo prazo não

se verifica aqui e agora, isto é, não fornece um suporte para a validade de curto prazo

da indução. Este é um tema desenvolvido com a teoria da hipótese ou abdução, que

será apresentada num capítulo posterior deste trabalho, mas que recebe já aqui uma

resposta significativa: “A resposta a esta questão pode ser colocada de uma forma

geral e abstracta, ou detalhada e especial. Se os homens não fossem capazes de

aprender através da indução, deveria ser porque, regra geral, quando fizeram essa

indução, a ordem das coisas (tal como elas aparecem na experiência), sofreria então

uma revolução. É exactamente nisto que consistiria a irrealidade de um tal universo;

nomeadamente, em que a ordem do universo dependeria da quantidade de

112

“All probable inference, whether induction or hypothesis, is inference from the parts to

the whole. It is essentially the same, therefore, as statistical inference. Out of a bag of black

and white beans I take a few handfuls, and from this sample I can judge approximately the

proportions of black and white in the whole. This is identical with induction. Now we know

upon what the validity of this inference depends. It depends upon the fact that in the long

run, any one bean would be taken out as often as any other.” (C.P.5.349). 113

C.P.5.350

Page 52: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

52

conhecimento que os homens tivesem dele. Mas esta regra geral poderia ser ela

própria descoberta através da indução; e deveria então ser uma lei desse universo

que, quando fosse descoberta uma lei, ela deixaria de operar. Mas esta segunda lei

seria ela própria passível de ser descoberta. E assim, num tal universo, não poderia

haver nada que não pudesse mais tarde ou mais cedo ser conhecido; e teria uma

ordem passível de ser descoberta por um curso suficientemente longo de raciocínio.

Mas isto é contrário à hipótese, logo, essa hipótese é absurda. Esta é a resposta

particular. Mas também podemos dizer,em geral, que se não existe nada que seja real,

então, uma vez que cada questão supõe que algo existe – já que afirma a sua própria

urgência – supõe apenas que apenas existe uma ilusão. Mas até a existência de uma

ilusão é uma realidade; pois uma ilusão ou afecta todos os homens ou não afecta. No

primeiro caso, é uma realidade segundo a nossa teoria da realidade; no segundo caso,

é independente dos estados mentais de quaisquer indivíduos excepto daqueles a

quem de facto afecta. Assim, a resposta à questão ‘Porque é o que quer que seja

real?’ é esta: a questão significa,’supondo que existe o que quer que seja, porque é

que algo qualquer é real?’ A resposta é que essa mesma existência é a realidade por

definição.”114

114

“The answer to this question may be put into a general and abstract, or a special detailed

form. If men were not to be able to learn from induction, it must be because as a general

rule, when they had made an induction, the order of things (as they appear in experience),

would then undergo a revolution. Just herein would the unreality of such a universe consist;

namely, that the order of the universe should depend on how much men should know of it.

But this general rule would be capable of being itself discovered by induction; and so it

must be a law of such a universe, that when this was discovered it would cease to operate.

But this second law would itself be capable of discovery. And so in such a universe there

would be nothing which would not sooner or later be known; and it would have an order

capable of discovery by a sufficiently long course of reasoning. But this is contrary to the

hypothesis, and therefore that hypothesis is absurd. This is the particular answer. But we

Page 53: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

53

Esta identificação do longo prazo e do estado ideal de informação completa como

aquilo de que depende a validade da indução ou do raciocínio sintético, tem

implicações éticas. Prosseguindo a posição anti-individualista dos artigos anteriores,

associa à lógica certas “virtudes” e “sentimentos” que irão compor a sua

normatividade específica e que desembocarão mais tarde na teoria do auto-controle

deliberado, do instinto e do sentimentalismo filosófico. Dada a definição de realidade

como o acordo final de todos os homens, ou como o objecto da opinião que a

comunidade para sempre afirmará, e sendo que uma indução válida é aquela que se

aproxima, no longo prazo, deste estado, nenhuma inferência individual está alguma

vez absolutamente fundada, mas apenas relativa e provisoriamente. Daqui se segue

“que a lógica requer estritamente, antes de tudo o resto, que nenhum facto

determinado, nada do que possa acontecer ao eu próprio de um indivíduo, possa ser

de maior importância para ele do que tudo o resto. Aquele que não sacrificasse a sua

própria alma para salvar o mundo todo, seria ilógico em todas as suas inferências,

colectivamente. Assim, o princípio social está intrinsecamente enraizado na

lógica.”115

Ou seja, o interesse individual sobreposto ao carácter indefinidamente

may also say, in general, that if nothing real exists, then, since every question supposes that

something exists – for it maintains its own urgency – it supposes only an illusion to exist.

But the existence even of an illusion is a reality; for an illusion affects all men, or it does

not. In the former case, it is a reality according to our theory of reality; in the latter case, it is

independent of the state of mind of any individuals except those whom it happens to affect.

So, the answer to the question, Why is anything real? Is this: That question means,

‘supposing anything to exist, why is something real?’ The answer is, that that very existence

is reality by definition.” (C.P.5.352).

115

“(…)that logic rigidly requires, before all else, that no determinate fact, nothing which

can happen to a man’s self, should be of more consequence to him than everything else. He

who would not sacrifice his own soul to save the whole world, is illogical in all his

inferences, collectively. So the social principle is rooted intrinsically in logic.” (C.P.5.354).

Page 54: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

54

aproximativo do conhecimento humano contraria aquilo sobre que repousa a validade

das inferências sintéticas. Logo, a lógica parece requerer uma virtude de auto-

sacrifício cujo “poder servirá para redimir a logicalidade de todos os homens”116

,

confirmada pelos factos, apesar de a opinião corrente afirmar que os homens só agem

tendo em vista o seu próprio prazer e a satisfação imediata. Num único parágrafo,

Peirce põe em causa a tendência moderna para descrever a racionalidade como um

cálculo de utilidades ao serviço da preservação ou satisfação individual,

acrescentando assim à recusa da soberania epistemológica do sujeito uma descrição

moral da lógica como necessariamente altruista, ou, se quisermos, denuncia o

caracter ilógico de uma concepção “egoísta” ou individualista do conhecimento. Só

sendo anti-utilitarista se preserva a “logicalidade”. A marca da “logicalidade” de um

indivíduo é a sua capacidade para ultrapassar o ponto de vista individual,

reconhecendo “a necessidade lógica de uma completa identificação dos interesses

próprios de cada um com os interesses da comunidade”117

, tendo assim uma base

para a validade das suas inferências cujo sinal maior é que “assim, considera como

válidas as suas próprias inferências apenas na medida em que elas seriam aceites por

aquele homem”118

. O que pode ser interpretado como a aplicação ao domínio da

lógica da exigência de universalidade representada pelo imperativo categórico

kantiano no domínio da prática. Encontramos a razão pura e a razão prática kantianas

unidas 119

numa concepção da lógica que exige como pressuposto da sua

116

C.P. 5.355. 117

C.P. 5.356. 118

C.P. 5.356. 119

cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,

University of Chicago Press, 1953, p.62.

Page 55: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

55

racionalidade a esperança (hope) do sucesso, o que significa aqui a esperança num

estado ideal de completa informação na posse de uma comunidade ideal de

investigação. Isto é, para além de uma evidência da posição francamente optimista de

Peirce, a afirmação de que a condição última de possibilidade do conhecimento, dado

o seu carácter discursivo, inferencial e falível, não é estritamente racional, é um

sentimento - é uma atitude moral, o que é reconhecido pelo próprio Peirce em

C.P.5.357. De algum modo, a concepção de identidade pessoal contida nestes

primeiros textos, como algo móvel e construído ao longo do tempo, capaz de

aperfeiçoamento por interacção com os outros e o mundo exterior, exige um ponto de

vista teleológico que se manifesta na noção de auto-controlo deliberado - e é nisto

que consiste usar um método - que por sua vez exige um ideal, uma expectativa

motivadora e um padrão.

Parece seguro dizer-se que o pensamento subsequente de Peirce será dedicado a

abrir esta porta, a desenvolver a “teoria social da lógica”120

que, no final deste texto,

é, apenas, esboçada. Mais uma vez, o tema da comunidade ressurge como condição

de possibilidade da validade das inferências e do aumento do conhecimento, e

sustentando as noções de realidade e verdade. E, ainda contra o cartesianismo, a

certeza absoluta num fundamento inicial é substituida por um outro “sentimento”

exigido pela lógica: “o único pressuposto sobre o qual podemos agir racionalmente é

a esperança no sucesso.”121

Tal como no plano teórico a racionalidade de um

procedimento depende da sua orientação para um estado futuro, ou seja, a

120

Esta expressão não é do próprio Peirce, mas sim dos editores dos Collected Papers, que a

usam para intitular uma das secções em que dividiram este texto. 121

C.P. 5.357; W 2.272.

Page 56: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

56

justificação encontra-se na finalidade e não no fundamento, também no plano prático

a motivação tem a ver com a consideração daquilo que transcende o sujeito e a sua

situação actual, é uma finalidade e não uma causa eficiente.

3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE

BERKELEY” (C.P.8.7-38)122

Segundo Max Fisch123

, neste texto Peirce dá o seu segundo passo decisivo em

direcção ao realismo. A necessidade de afirmar o realismo e que a ciência é realista

está, evidentemente, ligada à questão da objectividade: afinal, uma teoria da

cognição hipotética, falibilista e semiótica como a apresentada, sem a base intuitiva

do dado como fundamento, requer uma teoria da realidade que a afaste do

convencionalismo, do subjectivismo ou do idealismo absoluto. A afirmação segundo

a qual o real é o resultado do processo de conhecimento não deve confundir-se com

aquela segundo a qual a realidade é uma ficção subjectiva, social ou histórica.

O pretexto deste artigo é uma edição das obras completas de Berkeley e nele

Peirce oferece-nos uma apreciação de todo um modo de fazer filosofia que é o da

tradição britânica, com a sua tendência para o nominalismo. Esta tradição, empirista,

122

Publicado na North American Review em 1871, com o título original “Fraser’s Edition of

the Works of George Berkeley”. Cf. Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce -

Philosopher, Semiotician and Ecstatic Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers,

inc., 1993. p.33. 123

Fisch,M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,

1986.

Page 57: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

57

e a sua psicologia associacionista, era já visada nos textos anti-cartesianos de 1868. E

também já nestes a teoria da cognição era a base para uma teoria da realidade que,

fundamentalmente, recusava a existência de uma realidade incognoscível e afirmava

que o real é o objecto de uma opinião verdadeira resultando no longo prazo da

investigação levada a cabo por uma comunidade “destinada” a encontrá-la. Neste

texto, Peirce traça a linhagem da filosofia empirista britânica situando na metafísica

medieval, principalmente na controvérsia em torno dos universais, a origem daquilo

a que chama as “fortes tendências nominalistas”124

dos filósofos britânicos. A

controvérsia consiste, segundo Peirce, na seguinte questão : Os universais são reais?.

Para compreender que problema está aqui em causa, há que esclarecer o que se

entende por “real”. O critério que permite distinguir “ficções” ou “sonhos” de

“realidades” é o seguinte : “Os primeiros são aqueles que existem apenas na medida

em que tu ou eu ou qualquer homem os imagina; as últimas são aquelas que têm uma

existência independente da tua mente ou da de qualquer número de pessoas. O real é

aquilo que não é o que quer que aconteça pensarmos que seja, mas que não é

afectado por aquilo que possamos pensar acerca dele.”125

Obtém-se assim a seguinte

descrição: “A questão é, então, se homem, cavalo e outras designações de classes

naturais, correspondem a algo que todos os homens, ou cavalos, têm realmente em

comum, independentemente do nosso pensamento, ou se estas classes são

124

C.P.8.10 125

“The former are those which exist only inasmuch as you or I or some man imagines

them; the latter are those which have an existence independent of your mind or that of any

number of persons. The real is that which is not whatever we happen to think it, but is

unaffected by what we may think of it.” (C.P.8.12). Já nos textos de 1868 é esta a concepção

de real assumida por Peirce.

Page 58: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

58

constituidas simplesmente com base numa semelhança no modo como as nossas

mentes são afectadas pelos objectos individuais que não têm neles mesmos qualquer

semelhança ou relação.”126

Ora, esta definição de realidade como “algo exterior” e,

consequentemente, a questão dos universais, admite dois “pontos de vista muito

distantes”, o nominalista, para o qual o real é uma coisa fora da mente que influencia

directamente a sensação e através desta o pensamento; e o realista, para o qual o real

é o objecto da opinião final, eliminados gradualmente os erros, arbitrariedades,

acidentes, limitações de uma investigação individual, empírica, dados a informação e

o tempo suficiente, tendendo a opinião humana universalmente no longo prazo para

uma forma definida que é a verdade. Como consequência desta concepção de

realidade, temos a recusa de coisas em si, não relativas “à concepção que a mente

tem delas”127

, e incognoscíveis, de que as sensações seriam efeitos; e a concepção

das aparências dos sentidos como sinais das realidades concebidas como “númenos,

ou concepções inteligíveis que são os produtos finais da acção mental desencadeada

pela sensação”128

, atestando o carácter lógico, inferencial da acção mental tal como

tinha sido descrito nos textos de 1868 em oposição ao intuicionismo cartesiano. A

realidade, enquanto objecto da “opinião verdadeira”, é o resultado de uma

investigação em relação à qual “a matéria da sensação é completamente acidental”129

.

126

“The question, therefore, is whether man, horse, and other names of natural classes,

correspond with anything which all men, or all horses, really have in common, independent

of our thought, or whether these classes are constituted simply by a likeness in the way in

which our minds are affected by individual objects which have in themselves no

resemblance or relationship whatsoever.” (C.P.8.12). 127

C.P.8.13. 128

C.P.8.13. 129

C.P.8.13.

Page 59: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

59

A afecção sensorial propriamente dita não é relevante no que respeita ao conteúdo

cognitivo da experiência, à informação a tratar logicamente, sendo que outras mentes

com aparelhos sensoriais completamente distintos dos humanos participariam

também, segundo Peirce, no “consentimento católico que constitui a verdade”130

.

Uma outra consequência é que, segundo Peirce, esta teoria da realidade favorece

a crença em realidades externas, isto se entendermos por “externo” não o em-si

absolutamente estranho à mente e assim incognoscível, mas “aquilo que é

independente do fenómeno que está imediatamente presente, ou seja, de como

podemos pensar ou sentir.”131

. Isto impede, desde logo, que a insistência no carácter

comunitário da investigação e na comunidade ideal como “lugar” onde a opinião

verdadeira será finalmente alcançada e a realidade conhecida, seja entendida como

uma opção por uma teoria da verdade como consenso com implicações precisamente

nominalistas ou convencionalistas, como a única forma de verdade disponível dado o

carácter em última análise incognoscível da realidade vista como um em si. A

verdade como consenso funciona em Peirce porque se baseia numa teoria da verdade

como correspondência: há uma convergência entre investigadores porque o

conhecimento se aproxima cada vez mais do seu objecto.

Esta teoria, que identifica então o real com o objecto de uma opinião verdadeira,

é realista no sentido em que, enquanto juízo, a opinião verdadeira contém

necessariamente concepções gerais: “consequentemente, uma coisa geral é tão real

como uma coisa concreta.”132

Vejamos como o próprio Peirce descreve a sua teoria

130

C.P.8.13. 131

C.P.8.13. 132

C.P.8.14.

Page 60: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

60

da realidade: “Esta teoria implica um fenomenalismo. Mas é o fenomenalismo de

Kant e não o de Hume. De facto, aquilo a que Kant chama o seu passo copernicano

consistiu precisamente na passagem da perspectiva noinalista para a perspectiva

realista acerca da realidade. A essência da sua filosofia estava em considerar o

objecto real como sendo determinado pela mente. Isto não é mais do que considerar

cada concepção e intuição que necessariamente entra na experiência de um objecto, e

que não seja transitória e acidental, como tendo validade objectiva. Em suma,

consistiu em considerar a realidade como o produto normal da acção mental e não

como a causa incognoscível dela.”133

.

O texto termina com uma breve consideração acerca da importância do debate

entre nominalista e realistas para a ciência e filosofia contemporâneas. Ou ainda, são

enunciadas as consequências éticas de uma concepção da ciência e da filosofia em

espírito nominalista. Peirce associa ao nominalismo certas doutrinas “com uma

tendência moral degradante (...) , sensacionismo, fenomenalismo, individualismo e

materialismo”, e é preciso enfrentar a questão da aceptabilidade destas consequências

dado que a ciência procura a verdade, e que o que é verdadeiro “é bom acreditar e

mau rejeitar”: como perceber que seja a própria ciência a sugerir aquelas posições?

133

“This theory involves a phenomenalism. But it is the phenomenalism of Kant, and not

that of Hume. Indeed, what Kant called his Copernican step was precisely the passage from

the nominalistic to the realistic view of reality. It was the essence of his philosophy to

regard the real object as determined by the mind. That was nothing else than to consider

every conception and intuition which enters necessarily into the experience of an object, and

which is not transitory and accidental, as having objective validity. In short, it was to regard

the reality as the normal product of mental action, and not as the incognizable cause of it.”

(C.P.8.15). Esta identificação da teoria da realidade de Peirce com o fenomenalismo de Kant

deve ser completada com a recusa da distinção entre fenómeno e númeno. Cf. C.P.8.13,

onde Peirce diz explicitamente que a sua teoria da realidade é “instantly fatal to the idea of a

thing in itself – a thing existing independent of all relation to the mind’s conception of it.”

Page 61: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

61

A convicção de Peirce é que a ciência “tal como existe é certamente muito menos

nominalista do que os nominalistas pensam que ela é”, tal como os homens são

menos guiados pelo interesse egoísta do que parece. A demonstração do carácter

realista da ciência exigiria investigação árdua em matemática: “a questão do realismo

e do nominalismo tem as suas raízes nas especificidades técnicas da lógica.” Mas as

suas implicações ultrapassam o domínio da pura investigação, são de ordem “vital”,

ética: “A questão de saber se o genus homo tem alguma existência para além dos

indivíduos, é a questão de saber se existe algo com mais dignidade, valor e

importância do que a felicidade individual, as aspirações individuais e a vida

individual. Se os homens têm ou não alguma coisa em comum, de modo a que a

comunidade possa ser considerada um fim em si mesma, e, se for esse o caso, qual é

o valor relativo dos dois factores, é a questão prática mais fundamental no que

respeita a qualquer instituição pública cuja constituição está em nosso poder

influenciar.”134

É uma questão que diz respeito ou afecta a relação entre o indivíduo e

a comunidade e entre indivíduos.

4.CONCLUSÃO

134

“The question whether the genus homo has any existence except as individuals, is the

question whether there is anything of any more dignity, worth, and importance than

individual happiness, individual aspirations, and individual life. Whether men really have

anything in common, so that the community is to be considered as an end in itself, and if so,

what the relative value of the two factors is, is the most fundamental practical question in

regard to every public institution the constitution of which we have it in our power to

influence.” (C.P.8.38).

Page 62: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

62

A redefinição da noção de realidade e de actividade mental levada a cabo nos

textos até aqui apresentados conduz à exigência de uma comunidade de

investigadores na medida em que repousa na assunção fundamental segundo a qual o

conhecimento, essa relação entre a mente e a realidade, envolve necessariamente

tempo e, consequentemente, recebe uma das características da temporalidade, o seu

carácter assimétrico, e é assim capaz de crescimento. O terceiro artigo de 1868

identifica especificamente a base da validade das leis da lógica com a possibilidade

indefinida desse crescimento, e a noção de comunidade está assim ligada à

necessidade de um inquérito que se prolonga indefinidamente, dado que a

temporalidade do sujeito individual não coincide com essa necessidade. A

comunidade parece então surgir, em primeiro lugar, como um agregado sucessivo de

mentes, suprindo as exigências temporais do inquérito: é necessária dada a finitude

dos indivíduos. Mas, e este é um aspecto decisivo, a relevância epistemológica da

noção de comunidade ultrapassa esta circunstância empírica, esta desproporção entre

o indivíduo e a espécie, e não se esgota num problema quantitativo. Dito de outro

modo, a comunidade não é simplesmente uma versão alargada do sujeito

transcendental; antes a própria subjectividade gnoseológica é concebida à imagem de

uma comunidade: a verdade de uma qualquer teoria não se funda nunca numa certeza

individual, ainda que o indivíduo fosse imortal e capaz de levar a cabo

indefinidamente a investigação, mas na possibilidade de confirmação partilhada, na

avaliação pública dessa mesma teoria, na sua pertinência explicativa face à

experiência representada pela possiblidade de convergência entre todos aqueles que

Page 63: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

63

investigam135

. A noção de comunidade é, assim, tanto mais importante quanto se

mostrou a implausibilidade da intuição sem se cair num cepticismo radical: nela está

contido o optimismo gnoseológico de Peirce, que prescinde da postura

fundacionalista e adopta uma atitude falibilista. A convergência serve, então, para

dissipar a suspeita de uma distorção da realidade como resultado da aplicação de um

processo inferencial cujo contacto com essa mesma realidade não esteja garantido

absolutamente, por uma intuição das premissas ou pelo efeito de uma harmonia pré-

estabelecida postulada. O facto de a investigação ser um assunto comunitário

permite, pelo menos, superar o perigo das ilusões individuais e, ainda que subsista a

possibilidade de uma ilusão sistemática afectando toda a espécie humana, então a

definição de realidade avançada por Peirce resolve esta dificuldade: se todos vierem a

concordar com esta ilusão como sendo aquilo que querem dizer quando dizem

“realidade”, então é isto que se deve entender como sendo a realidade, o objecto da

opinião sustentada pela comunidade dadas suficientes condições de investigação,

falível mas aperfeiçoável no longo prazo136

. Também de assinalar é a posição de

Peirce face ao indivíduo no processo de conhecimento. Ele é identificado como o

lugar do erro e da ignorância, mas uma vez que o pensamento é considerado como

tendo um carácter autocorrectivo, essa negatividade associada ao indivíduo é

redimível. O erro não é, aliás, para Peirce, um absoluto, como terá ficado

estabelecido no tratamento dado à questão das falácias.

135

Esta função da noção de comunidade será aliás desenvolvida e esclarecida a propósito da

descrição dos diferentes modos de fixação de crença nos textos de 1878, e que serão objecto

do próximo capítulo deste trabalho. 136

Cf. C.P.5.352.

Page 64: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

64

Entretanto, Peirce, como sublinha Esposito137

, começa a procurar uma

garantia mais forte de que a comunidade esteja em contacto com a realidade, ou seja,

de que o empreendimento cognitivo seja plausível apesar da sua dependência em

relação a uma temporalidade indefinida e da sua garantia apenas estatística. É

precisamente a este propósito que Peirce irá integrar na sua epistemologia uma

perspectiva biologista do conhecimento, contendo a noção de evolução, o que faz

tanto mais sentido quanto nestes primeiros textos o pensamento foi descrito como

uma forma de acção, um comportamento, tendo como característica nuclear o seu

carácter temporal. Por outro lado, a perspectiva evolucionista permitirá avançar com

uma concepção teleológica da comunidade de investigação, fortalecendo-se a

esperança no empreendimento cognitivo com a assunção de uma continuidade entre a

vida orgânica e a vida mental cujo resultado será uma naturalização não reducionista

das normas, ou a explicação da emergência da dimensão normativa da realidade.

137

Esposito, J.L., Evolutionary Metaphysics, Athens Ohio, Ohio University Press, 1980,

p.120-121.

Page 65: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

65

CAPÍTULO II - A TEORIA DO INQUÉRITO.

1.INTRODUÇÃO

Nos anos de 1877 e 1878, Peirce publica na revista Popular Science Monthly um

conjunto de artigos sob o titulo genérico “Illustrations of the Logic of Science”,

“Ilustrações da Lógica da Ciência”,onde se costumam localizar as primeiras

afirmações expressas do seu pragmatismo138

. Ainda que considerado por autores

como Richard Rorty como continuando ligado a uma tradição representacionalista,

que privilegia a epistemologia e pretende “encontrar sentidos absolutos para palavras

como realidade e verdade”139

, Peirce é geralmente reconhecido como um dos

fundadores desta corrente e ter-lhe-á até dado o nome, inspirando-se na linguagem

138

Terá sido William James o primeiro a utilizar este termo publicamente, numa conferência

intitulada “Philosophical Conceptions and Practical Results”, dada na Universidade da

Califórnia em 1898, onde atribui a Peirce a sua autoria. O levantamento e a investigação

dos textos disponíveis de Peirce da época referida por James como sendo a da fundação do

pragmatismo de facto não revelam o uso do termo seja onde for. E não de todo no texto que

James explicitamente indica, “How to make our ideas clear” de 1878. Parece ser só a partir

da referência de James que Peirce, até talvez por questões de visibilidade pública e como

oportunidade para reequilibrar as suas finanças, começa a utilizar o termo, esclarecendo-o,

explorando e afinando as suas consequências.

139

Cf. Murphy, J., O Pragmatismo – de Peirce a Davidson, Porto, Asa, 1993,p.10. Para

Rorty, os pragmatistas mais genuínos no âmbito do pragmatismo clássico são William

James, amigo de Peirce, e John Dewey, que foi seu aluno.

Page 66: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

66

kantiana140

. Tê-lo-ia utilizado nas sessões do Clube Metafísico141

em 1871 ou 1872,

num escrito entretanto perdido142

. Para Peirce, este termo não tem o carácter

psicológico que parece ter para James, nem refere um critério de eficácia: trata-se

antes de um método para esclarecer os conceitos nos quais a experiência é

organizada e compreendida. Contra o empirismo radical de James, a pura

experiência, Peirce irá apresentar o pragmatismo como uma máxima lógica, uma

parte fundamental da sua análise da lógica da descoberta. E, libertando-a de uma

aplicação empírica, torna-a normativa.

A teoria do inquérito apresentada nestes textos preserva os resultados atingidos

nos textos de 1868 : o anti-intuicionismo, a negação da introspecção e do

incognoscível, a teoria do pensamento-signo, a teoria da verdade e da realidade são

integrados numa descrição da dinâmica concreta da investigação como passagem da

dúvida à crença. Tendo sido, pois, estabelecida a possibilidade dos juízos sintéticos,

140

cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993,

p.177 141

O Clube Metafísico era uma associação formada por Peirce e um conjunto de jovens

intelectuais e investigadores, entre os quais também William James, que se juntavam com

alguma regularidade para apresentar comunicações dando conta das suas leituras e estudos

em diversos domínios, do Direito à Biologia, passando pela Psicologia e pela Lógica. E, a

propósito, note-se que, paradoxalmente, é num clube metafísico que nasce o pragmatismo,

hoje para nós a posição anti-metafísica por excelência. Esta perplexidade já fora, aliás,

experimentada pelos alunos de Peirce, como Christine Ladd-Franklin : “In fact, so devious

and unpredictable was his course that he once, to the delight of his students, proposed at the

end of his lecture, that we should form (for greater freedom of discussion) a metaphysical

club, though he had begun the lecture by defining metaphysics to be the ‘science of unclear

thinking”. Brent, J., Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University

Press, 1993, pp.128-129. 142

Entretanto, perante divergências com o seu amigo James quanto ao entendimento que

cada um deles faz do termo e da entidade conceptual que lhe terá dado origem, a famosa

“máxima pragmática”, Peirce vê-se obrigado a inventar um novo termo, pragmaticismo,

segundo ele “suficientemente feio para estar a salvo de raptores” (C.P.5.414). James, por

exemplo, faz redundar o pragmatismo e a máxima pragmática num individualismo de cariz

Page 67: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

67

inporta agora determinar o modo mais adequado para que a actividade cognitiva

possa atingir a sua finalidade : que método assegura que no longo prazo as

inferências dos humanos se aproximam da verdade e permitem o conhecimento da

realidade? Qual a melhor forma para pôr em funcionamento a actividade mental dada

a sua finalidade cognitiva? Ao mesmo tempo, esta abordagem dos métodos como

acções segundo critérios permite reforçar a pertinência do conceito de comunidade.

É reconhecido o tom abertamente biologista destes textos, com a sua teoria do

inquérito como uma luta para superar a insatisfação da dúvida e atingir a estabilidade

da crença. Mas este facto não irá conduzir a uma naturalização reducionista da

lógica, já que, pelo contrário, se irá estabelecer, ou reafirmar, a dependência da lógica

em relação à ética, e não à psicologia. Assim, se é possível utilizar o termo

naturalização em relação a Peirce, este entender-se-á específicamente como a

tentativa de estabelecer continuidades não reducionistas entre o plano dos factos e o

plano das normas, para o que será de extrema importância a noção de evolução. É

neste sentido que se pode compreender a máxima pragmática, como afirmação desse

carácter normativo da epistemologia de Peirce, na medida em que ela será

apresentada como uma regra lógica e não como uma estratégia de redução do sentido

a uma enunciação factual. A relação entre lógica e ética sairá, finalmente, reforçada

da posição anti-individualista desenvolvida no terceiro dos textos aqui em questão,

onde ainda se consolida aquilo que podemos já começar a designar como o

sentimentalismo típico de Peirce, que envolve simultaneamente uma concepção

psicologista - e para Peirce o conhecimento não pode fundar-se numa crença que não tem

outra base para além da resolução e convicção de uma mente individual.

Page 68: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

68

evolucionista e uma concepção normativa tanto de uma como de outra destas

disciplinas.

2. A DIMENSÃO NORMATIVA DO MÉTODO CIENTÍFICO

No primeiro dos dois textos de 1878 , “A Fixação da Crença”(C.P. 5.358-

387)143

, encontramos uma das mais celebrizadas afirmações de Peirce, aquela

segundo a qual “cada passo importante em ciência é uma lição de lógica”144

. Isto é o

mesmo que dizer que a ciência, enquanto projecto de investigação da espécie

humana, ou na sua história, evolui ou mede o seu sucesso na medida em que domina,

aperfeiçoa, toma consciência da sua vertente metodológica, ou do modo como

realiza, válida e eficazmente, inferências explicativas da experiência, deliberadas e

auto-controladas. A questão da lógica e do método - e não o fundamento -, é ,assim,

o ponto principal da epistemologia de Peirce, e as razões para isto encontram-se

desde logo nas conclusões do ataque à epistemologia cartesiana e empirista levado a

cabo nos textos de 1868, e na teoria da realidade desenvolvida no texto de 1871 . Ao

mesmo tempo que a correcção das inferências ou o método é uma questão central,

não ficamos, segundo Peirce, presos numa restrição de tipo transcendental, numa

oposição entre aquilo que é conhecimento para nós e o que seria o conhecimento das

coisas tal como são independentemente do nosso conhecimento delas. Isto é, o

143

O título original deste artigo é “The Fixation of Belief”. 144

C.P. 5.363.

Page 69: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

69

método não nos afasta, como um filtro, da realidade em si, antes o método é o que

nos permitirá eventualmente atingir o real, enquanto a correcção do raciocínio não

depende de qualquer sentimento subjectivo de necessidade, mas do facto de que, de

premissas verdadeiras, decorre uma conclusão verdadeira: “a questão da validade é

smplesmente uma questão de facto e não de pensamento (...) a conclusão verdadeira

continuaria a ser verdadeira ainda que não tivéssemos qualquer impulso para aceitá-

la; e a conclusão falsa continuaria a ser falsa, embora não fossemos capaze de resistir

à tendência para acreditar nela.”145

. A lógica não se limita, pois, a descrever o modo

como a mente funciona, mas antes tem como objectivo apresentar as regras segundo

as quais a mente deve funcionar para lá das tendências subjectivas: é uma forma de

auto-controle, é normativa. Assim, passamos daquilo que já sabemos para aquilo que

ainda não sabemos pela acção de um “hábito da mente” que pode ser descrito como

um princípio condutor da inferência146

, e uma recensão dos mais importantes destes

princípios é inestimável quando se trata, não de resolver questões práticas ou

rotineiras, mas do aumento justificado do conhecimento, ou da passagem de um

estado de dúvida para um estado de crença.

As considerações de Peirce acerca da dúvida como momento importante da

investigação começam já nos textos de 1868 e são um dos pontos que o afastam da

epistemologia cartesiana. Aqui, o binómio dúvida / crença vai receber uma

interpretação biologista que, apesar de usos nominalistas como o de William James,

conduzindo à satisfação como critério de verdade e validade, marca a integração do

145

“(…)the question of validity is purely one of fact and not of thinking (...) the true

conclusion would remain true if we had no impulse to accept it; and the false one would

remain false, though we could not resist the tendency to believe in it.” (C.P. 5.365)

Page 70: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

70

evolucionismo na epistemologia e esclarece a posição simultaneamente falibilista e

realista de Peirce. A crença distingue-se da dúvida pela sensação que está associada a

cada uma delas; por uma “diferença prática” que consiste na presença de um hábito

que determina as nossas acções no caso da crença e sua ausência no caso da

dúvida147

; e, finalmente, por uma diferença nos “efeitos positivos” sobre nós, ou no

modo como nos dispõe em relação ao inquérito, como instala ou não a necessidade

de procurar explicações e aumentar o conhecimento disponível: a crença é um estado

de paz, de calma, em que os hábitos guiam a acção, enquanto que a dúvida é um

estado “desconfortável e insatisfeito”148

do qual queremos sair para reencontrar o

conforto da crença. O inquérito é, precisamente, “uma luta para atingir um estado de

crença” causada pela “irritação da dúvida”149

e o seu único fim é “estabilizar a

opinião”150

. A actividade cognitiva é, assim, representada como uma actividade

adaptativa, e o melhor método para a levar a cabo será aquele que, em competição

com outros, melhor promover a adaptação do investigador ao meio. O índice dessa

adaptação é a estabilidade das crenças. Numa descrição deste tipo, então, afirmar que

o objectivo é, não simplesmente atingir a crença mas a crença verdadeira, torna-se

desnecessário: pensamos que cada uma das nossas crenças é verdadeira, ou não faria

sequer sentido dizer que temos uma crença151

. Uma das vantagens desta descrição de

146

C.P.5.367. 147

E aqui encontramos a definição de crença de Alexander Bain, aprendida no Clube

Metafísico. Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge,

Hackett, 1993, pp160-163 148

C.P. 5.370-373. 149

C.P. 5.374. 150

C.P.5.375. 151

As dificuldades na interpretação desta passagem para uma teoria da verdade têm em

grande parte a ver com a possibilidade de se admitir aqui uma interpretação jamesiana do

Page 71: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

71

inquérito é, segundo Peirce, que ela afasta “várias concepções vagas e erróneas de

prova”152

. Desde logo, evita as ilusões e a esterilidade associadas às “dúvidas de

papel”, à dúvida metódica de tipo cartesiano, segundo a qual é preciso começar por

duvidar de tudo: este é um tema já referido em QFM e cujo efeito mais perverso é

conservar, e até fortalecer, o que se pretendeu pôr em dúvida. Por outro lado, retira à

filosofia o seu compromisso fundacionalista e a subserviência ao modelo da dedução,

uma vez que não se exige, o que seria fútil, começar com “proposições

absolutamente indubitáveis” mas apenas com “proposições livres de toda a dúvida

de facto”153

. Finalmente, é o próprio sentido da investigação, que assenta na

possibilidade de aumentar o conhecimento e que é a causa movente da acção mental,

que se identifica com essa passagem de uma dúvida real a uma crença estável.

A questão fundamental do inquérito é, então, como conduzi-lo, como passar da

dúvida à crença, e como fazê-lo de modo a que a crença atingida seja o mais estável

possível. O resto do texto dedicar-se-á, pois, a recensear diferentes métodos de

“fixação de crença”, e a determinar as suas vantagens e desvantagens no que diz

respeito à finalidade do inquérito154

.

pragmatismo, onde a verdade é uma questão de satisfação individual. Mas o modo como o

primeiro método de fixação de crença, onde precisamente se põe em causa a suficiência da

satisfação subjectiva, é avaliado deve desde logo impedir esta interpretação. Antes, parece-

nos mais correcto interpretar esta passagem como a afirmação da finalidade, ainda que

apenas ilusoria ou insatisfatoriamente atingida, de qualquer estado cognitivo e de qualquer

crença, que parece ser exactamente a verdade. Mais uma vez, trata-se de chamar a atenção

para a descrição do conhecimento como uma actividade finalizada, logo necessariamente

contendo dimensões normativas. E trata-se também já de uma aplicação da máxima

pragmática ao esclarecimento de conceitos. Para um discussão desta questão, cf. Hookway,

C., Peirce, London, Routledge, 1985 p.44 152

C.P. 5.375. 153

C.P. 5.376. 154

Quanto ao critério de escolha dos métodos, Murphey considera que não existe nenhum e

a lista é arbirária ou casual: cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,

Page 72: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

72

O primeiro dos métodos apresentados, o método da tenacidade, consiste numa

fidelidade absoluta às crenças que se possui, evitando qualquer perturbação: “Quando

uma avestruz enterra a sua cabeça na areia à aproximação do perigo, é bem provável

que escolha a solução mais feliz. Esconde o perigo e diz então calmamente que não

há perigo; e, se se sente perfeitamente segura de que não há qualquer perigo, porque

há-de levantar a sua cabeça para ver?”155

. Este é um método estritamente individual e

que, do ponto de vista da simples satisfação, é altamente vantajoso. Mas as suas

desvantagens são suficientemente fortes para o afastar como o melhor candidato à

estabilização eficaz de crenças. Desde logo, “o impulso social está contra ele.”156

.

Este seria um método para solipsistas, mas a tenacidade individual encontrará

necessariamente discordância no pensamento e sentimento dos outros: este “impulso

social”157

, como tendência para admitir a possibilidade de as crenças dos outros

serem tão boas ou melhores do que as próprias, instala uma dúvida que atinge não

apenas a crença e o seu conteúdo mas o próprio método da sua fixação, na medida

em que põe o problema de uma estabilidade que não seja estritamente individual mas

que permita afastar diferenças e estabelecer concordância. O problema torna-se no de

Cambridge, Hackett, 1993, p164; já Hookway defende que cada um dos métodos significa

um aspecto da hipótese da realidade: cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985,

p.46; e Thompson relaciona-o com as quatro incapacidades identificadas nos textos de 1868:

cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,

University of Chicago Press, 1953, pp.75-76. 155

“When an ostrich buries its head in the sand as danger approaches, it very likely takes the

happiest course. It hides the danger, and then calmly says there is no danger; and, if it feels

perfectly sure there is none, why should it raise its head to see?” (C.P.5.377) 156

C.P.5.378. 157

“This idea that there are non-rational social forces which impel us to rationality was a

central idea in the social philosophy of the Scottish moralists of the eighteenth century,

above all of Hume and Smith. The epistemological aplication of this idea (…) was first

made by Peirce(…)” Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University

Press, 1981, p.33.

Page 73: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

73

fixar a crença “não apenas no indivíduo, mas na comunidade.”158

. E para a questão

particular da validade, passar de premissas verdadeiras para conclusões verdadeiras

ou aumentar o conhecimento, esta exigência de um método que abranja todos e não

que funcione apenas para um indivíduo, é crucial. Talvez faça sentido, então, reforçar

o pólo da comunidade e instituir um modo oposto ao anterior: em vez da tenacidade

individual, a autoridade pública. O método da autoridade159

tem vantagens em

relação ao método da tenacidade porque, desde logo, proporciona um sucesso muito

maior e grandioso, enquanto realização colectiva. Mas é um método que, por ser

excessivamente colectivista, reduz os indivíduos a uma condição de escravos

intelectuais160

. E, mais ainda, também ele não satisfaz plenamente a exigência do

inquérito, que é a fixação estável de crenças. Há sempre a possibilidade de alguns

indivíduos conseguirem elevar-se acima dessa condição de escravidão intelectual

promovida pelo método da autoridade, e provocar fendas suficientes no grande

edifício colectivo para mostrar a fragilidade das suas fundações161

, permitindo que a

dúvida se instale. Assim, nem o voluntarismo nem a autoridade arbitrária funcionam

e também neste caso a dúvida acaba por afectar o próprio método.

Há, no entanto, um terceiro método que parece superar as desvantagens dos

anteriores, na medida em que usa o critério daquilo que é agradável à razão, e não a

pura autoridade, sem se circunscrever à razão individual mas admitindo que os

158

“C.P.5.378. Mesmo nesta versão empírica, repara-se já na importância da dimensão

comunitária ou intersubjectiva na validação ou invalidação das opiniões individuais; este é

um tema que retoma a explicação genética do eu apresentada nos textos de 1868. 159

C.P.5.380 160

C.P.5.380 161

cf. Também C.P. 5.386 onde, a propósito das vantagens do método de autoridade, há

considerações acerca das massas e do conformisimo.

Page 74: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

74

homens desenvolvam gradualmente as suas crenças “conversando em conjunto e

considerando as questões em diferentes perspectivas”162

. A este Peirce chama

método a priori e diz que, ainda que superior aos anteriores, na medida em que

impõe constrangimentos normativos à fixação de crenças como a coerência ou a

consistência, torna o inquérito semelhante ao desenvolvimento do gosto. E, como tal,

falha, como os outros falharam, devido ao seu inevitável relativismo. Chegará um

momento de dúvida acerca da determinação das crenças alcançadas por este método :

“Para satisfazer as nossas dúvidas, então, é necessário encontrar um método através

do qual as nossas crenças possam ser determinadas não por algo humano, mas antes

por uma permanência externa – por algo sobre o qual o nosso pensamento não tenha

qualquer efeito.”163

O que significa dizer que o critério intersubjectivo não é

suficiente, dado que ele arrisca revestir um carácter meramente contingente,

convencional, nominalista. E, tal como os outros, não apresenta garantias de

estabilidade no longo prazo. A insuficiência destes três primeiros métodos terá a ver

com aquilo que é, afinal, comum a todos eles: a relevância dada, na relação

cognitiva, ao pólo subjectivo, seja individual, seja colectivamente. E aquilo que,

precisamente, é distintivo do método científico, é um apelo ao realismo: a garantia da

estabilidade de uma crença está na sua coincidência com uma realidade externa

acessível ao conhecimento humano sob a forma de leis, de tal modo que “a conclusão

final de cada homem será a mesma.”164

.

162

C.P.5.382. 163

“To satisfy our doubts, therefore, it is necessary that a method should be found by which

our beliefs may be determined by nothing human, but by some external permanency - by

something upon which our thinking has no effect.” (C.P.5.384) 164

C.P.5.384.

Page 75: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

75

A defesa da superioridade do método científico começa, então, com a afirmação

da sua “hipótese fundamental”: “Há Coisas Reais, cujas características são totalmente

independentes das nossas opiniões acerca delas; esses Reais afectam os nossos

sentidos segundo leis regulares e, embora as nossas sensações sejam tão diferentes

quanto as nossas relações com os objectos, tirando partido das leis da percepção

podemos determinar através do raciocínio como as coisas são real e verdadeiramente;

e qualquer homem, se tiver suficiente experiência e se raciocinar suficientemente

acerca dela, será conduzido à única conclusão Verdadeira. A nova concepção aqui

envolvida é a de Realidade.”165

Esta é uma hipótese que permite dar conta de um

constrangimento externo sobre as nossas crenças que as torna resistentes à dúvida

instalada pelo “impulso social” e manifesta no inevitável relativismo e impasse a que

conduzem os três primeiros métodos. O facto de Peirce começar a sua defesa do

método da ciência com uma hipótese é significativo: ele não poderia começar com

afirmações absolutas ou fundamentos últimos dada a sua rejeição da possibilidade

destes nos textos de 1868 que se mantém na sua descrição do inquérito como

passagem da dúvida à crença. Assim, a hipótese é o ponto de partida provisório e

testável que, segundo Peirce, dá conta do nosso estado cognitivo actual e constitui a

única possibilidade de começar e prosseguir o inquérito, isto é, de superar o impasse

céptico a que as posições fundacionalistas conduzem. Como sugere Anderson, “O

projecto de Peirce não é provar demonstrativamente que o raciocínio sintético é

165

“There are Real Things, whose characters are entirely independent of our opinions about

them; those Reals affect our senses according to regular laws, and, though our sensations are

as different as are our relations to the objects, yet, by taking advantage of the laws of

perception, we can ascertain by reasoning how things really and truly are; and any man, if he

Page 76: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

76

válido, mas sim mostrar como poderia funcionar se fosse considerado efectivo”166

. A

resposta que Peirce dá a uma objecção possível de que se apercebe, a da circularidade

implicada no uso de uma ontologia para fundar uma epistemologia – fazer depender a

validade do método científico da hipótese da realidade – é esclarecedora deste

procedimento falibilista, daquilo a que o mesmo Anderson chama uma “abdução

transcendental”167

em curso neste texto. Peirce não opta por identificar um

fundamento, estabelecendo a partir daí uma cadeia dedutiva necessária. Antes

fornece um conjunto de razões, à primeira vista heteróclitas, mas que decorrem

daquilo que insistentemente é afirmado acerca da actividade cognitiva: esta não

começa a partir do zero ou no vazio; é um processo em que, do conhecimento

disponível, passamos para conhecimento novo; e um exame dos factos acerca deste

processo é o que nos permite colocar a própria questão da sua possibilidade e avançar

com uma hipótese explicativa.

Peirce divide a sua resposta em quatro momentos : em primeiro lugar, “se a

investigação não pode ser considerada como capaz de provar que há coisas Reais,

pelo menos não conduz à conclusão contrária.”168

; isto é, o método e a sua hipótese

não se põem necessariamente a si próprios em causa. “Nenhumas dúvidas acerca do

método, então, surgem necessariamente da sua prática, como acontece com todos os

outros.”169

Isto esclarece-se com a segunda razão, que tem a ver com a própria

natureza da dúvida. O sentimento de insatisfação associado a esta é, exactamente,

have sufficient experience and he reason enough about it, will be led to the one True

conclusion. The new conception here involved is that of Reality.” (C.P.5.384). 166

Anderson, D., Strands of System, Indiana, Purdue University Press, 1995, p.109. 167

id., p.112. 168

C.P.5.384.

Page 77: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

77

consistente com a hipótese que suporta o método científico, segundo a qual existem

coisas reais. Isto porque a insatisfação que motiva qualquer inquérito , quando uma

crença é desafiada por uma crença concorrente incompatível, contém uma “ vaga

concessão de que há uma coisa individual que a proposição deve representar”170

.

Enquanto que os outros métodos criam um impasse na medida em que a dúvida os

atinge também, esta hipótese e o método sustentado por ela mantêm-se pelo simples

facto de existir dúvida: a hipótese da realidade é mesmo a condição da própria

dúvida. “Esta é, pois, uma hipótese que qualquer mente admite”171

e o impulso social

não a põe em causa. Este ponto é reforçado pela terceira razão avançada: “toda a

gente usa o método científico a propósito de muitas coisas”172

. E, finalmente, uma

razão pragmática, ligada aos efeitos do método, é apresentada: “a investigação

científica teve os mais espantosos triunfos no que diz respeito ao estabelecimento das

opiniões.”173

Estas são, para Peirce, as razões para que não haja qualquer “dúvida

viva” acerca do método ou da hipótese que o sustenta – e sem uma “dúvida viva”

estamos num estado de “indubitabilidade prática” que nos permite prosseguir, até ao

momento em que uma “dúvida viva” se instale.

Para além desta primeira superioridade, a sua isenção em relação à dúvida, o

método científico distingue-se ainda por ser o único com carácter normativo : “este é

o único dos quatro métodos que fornece uma distinção entre o certo e o errado”174

e é

assim o único que leva a sério a questão lógica, a questão da validade, e para o qual o

169

C.P.5.384. 170

C.P.5.384. 171

C.P.5.384. 172

C.P.5.384. 173

C.P.5.384.

Page 78: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

78

critério não é uma estrita eficácia prática ou a satisfação subjectiva, mas a verdade.

Para o método da tenacidade, tudo é necessário desde que afirmado como tal. O

método da autoridade tem como único critério “aquilo que o Estado pensa”. No

método a priori seguimos as inclinações da razão sem qualquer outro

constrangimento. Já com o método científico as exigências são mais elevadas: “o

teste para determinar se estou realmente a seguir o método não é um apelo imediato

aos meus sentimentos e propósitos, mas, pelo contrário, implica ele próprio a

aplicação do método.”175

Esta irrupção no texto da questão da verdade, depois de ter sido descartada como

trivial, é, no mínimo, desconcertante. Segundo Skagestad176

, estamos perante um

abandono tácito da perspectiva psico-biológica inicialmente introduzida por Peirce,

onde se tratava de seleccionar o método mais eficaz na fixação da crença; assim, “A

Fixação da Crença” conteria simultaneamente “uma história causal, evolucionista

acerca da ascensão e queda dos três métodos pré-científicos, e uma história

normativa acerca da superioridade do método científico”. Ou seja, Peirce não põe já,

a propósito do método científico, a questão da eficácia adaptativa; antes baseia a sua

superioridade na capacidade que este método tem de corrigir as suas próprias

conclusões aproximando-nos assim gradualmente da verdade. Esta surge já não como

o equivalente de uma convicção psicológica, sendo por isso fútil distingui-la do

conceito de crença, mas como um ideal normativo do inquérito. A perspectiva

174

C.P.5.385. 175

C.P.5.385.

176

Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981 pp35-

41.

Page 79: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

79

psicológica dá lugar à normativa a partir do momento em que se exige não

simplesmente estabilidade, mas estabilidade no longo prazo , o que implica, como

diz ainda Skagestad, que “no curto prazo, então, não devemos ter qualquer esperança

numa crença estável e devemos estar prontos a aceitar qualquer quantidade de dúvida

e incertiza como meios para uma estabilidade de longo prazo.” 177

A superioridade

do método científico não é, afinal, adaptativa, mas antes normativa178

. E talvez

aquilo que o texto pretenda esclarecer, mais do que uma eventual radicação

biológica da investigação científica, seja o conteúdo do termo “verdade” : “Ao longo

dos seus escritos, Peirce insiste em que nós não podemos especificar o objectivo ds

nossos inquéritos simplemente como ‘a verdade’, Em 1877, ele chama a atenção para

isto ao afirmar que, com efeito, quando acreditamos em alguma coisa, acreditamos

que é verdadeira. O conselho ‘acredita apenas naquilo que penses ser verdadeiro’ é

vazio; e o conselho ‘acredita apenas no que for verdadeiro’ não pode ser seguido. Ao

especificar o objectivo que controla os nossos inquéritos, Peirce quer uma noção que

seja suficientemente substantiva para fornecer um critério que possa ser usado para

seleccionar crenças ou para seleccionar princípios condutores. A elucidação de

‘realidade’ fornecerá uma noção que cumpre esta condição.”179

177

Id., p.40. 178

cf. Id.,p.41, sobre a insuficiência do evolucionismo darwinista para Peirce. 179

“Throughout his writings, Peirce insists that we cannot specify the aim of our inquiries

simply as ‘the truth’. In 1877 he makes this point by noting, in effect, that whatever we

believe, we believe to be true. The advice ‘believe only what you think to be true’ is empty;

and the advice ‘believe only what is true’ cannot be followed. In specifying the aim that

controls our inquiries, Peirce wants a notion that is sufficiently substantive to provide a

criterion to be used in selecting beliefs or selecting guiding principles. The elucidation of

‘reality’ will provide a notion that meets this condition.” Hookway, C., Peirce,London,

Routledge, 1985, p.44—45.

Page 80: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

80

Este “salto normativo” na argumentação de Peirce parece confirmar-se quando,

no final do texto, Peirce retoma uma apreciação dos vários métodos, desta vez

chamando a atenção para as vantagens dos três primeiros sobre o método científico.

O método a priori “distingue-se pelas suas conclusões confortáveis.”180

e manifesta

uma inclinação natural – de alguma forma prolongada nos escritos posteriores de

Peirce sob a forma do Musement181

. O método da autoridade garante que a paz e a

estabilidade social “governarão sempre a massa da humanidade”182

. A sua coerção é

externa e interna e conduz até à sugestão de uma leitura “esotérica” da história das

ideias: “Assim, os maiores benfeitores intelectuais da humanidade nunca se

atreveram, nem se atrevem agora, a enunciar a totalidade do seu pensamento; e assim

uma sombra de dúvida prima facie cai sobre cada proposição considerada essencial

para a segurança da sociedade”183

. Mas, dos três, aquele que Peirce mais admira é o

método da tenacidade, pela sua “força, simplicidade e rectidão”184

, isto é, como

manifestação pura de auto-controlo.

Esta revisão das vantagens de cada método serve para chamar a atenção para a

decisão por cada um deles e o seu critério : a finalidade. Aquilo que se deseja é fixar

crenças; os três métodos não científicos permitem essa fixação, mas apenas no curto

prazo ; para uma fixação mais estável, exige-se não a simples eficácia ou satisfação,

mas que as opiniões coincidam com os factos. Ora, este é o ideal ou finalidade do

180

C.P.5.386. 181

Uma forma de actividade mental abordada principalmente no texto “A Neglected

Argument for the Reality of God” (C.P.6.452-493) 182

C.P.5.386. 183

“Thus the greatest intelectual benefactors of mankind have never dared, and dare not

now, to utter the whole of their thought; and thus a shade of prima facie doubt is cast upon

every proposition which is considered essential to the security of society” (C.P.5.386).

Page 81: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

81

método científico, porque é o único que permite este resultado, ou cujo pressuposto

básico é a possibilidade dele. Este pressuposto que é a hipótese realista é

acompanhado de um compromisso moral, visto implicar o abandono do ponto de

vista da satisfação imediata e a adopção do ideal da verdade no longo prazo.

3. A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO.

O texto seguinte desta série, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.

5.388- 410)185

, afronta dois problemas fundamentais e intimamente ligados : o

problema da definição e o da sua pertinência cognitiva. Ou, dito de outro modo,

como ver nas nossas ideias acerca das coisas reflexos de uma actividade de

conhecimento bem orientada. Ou ainda, qual é a lógica da descoberta que nos

permite obter conhecimento. Desde logo, pois, a discussão da definição será instalada

numa teoria do conhecimento ou das condições da operatividade cognitiva e numa

epistemologia, ou discurso acerca das condições de validação de um conhecimento

que se pretende científico, que foram sendo estabelecidas nos textos anteriores

apresentados.

Não é por acaso que a discussão da clareza das nossas ideias começa com uma

referência directa aos critérios cartesianos da clareza e distinção. Descartes, a

filosofia do cogito e a metodologia da dúvida são, também neste texto, o alvo a

abater. O pragmatismo ergue-se fundamentalmente, como já foi visto, contra uma

184

C.P.5.386. 185

O título original deste artigo é “How to Make Our Ideas Clear”.

Page 82: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

82

filosofia fundada num sujeito auto-contido e auto-suficiente, com capacidades

assombrosas de introspecção e acesso privilegiado e intuitivo ao mundo através de

uma observação de ideias dadas no espaço mental interior. Este individualismo

metodológico reflecte-se nos defeitos dos critérios da clareza e distinção. Uma ideia

clara, de acordo com o que foi estabelecido por Descartes, define-se como uma ideia

que é de tal modo apreendida que será reconhecida onde quer que deparemos com ela

e de tal forma que não se confunde com nenhuma outra. Isto implicaria uma tal

decisão e fortaleza de espírito, uma inteligência de tal modo capaz de se elevar acima

de qualquer ambiguidade, “um prodígio de força e clareza intelectual muito difícil de

encontrar neste mundo.”186

E, mais ainda, este é afinal um critério que apenas

descreve um sentimento de familiaridade com uma ideia : ser capaz de a reconhecer

sem hesitação, não merece o nome de clareza, já que não é senão um sentimento

subjectivo de domínio que não oferece garantias de sustentação. Podemos muito bem

estar completamente enganados ao mesmo tempo que nos sentimos completamente

seguros.

Este é um critério que, porque particular, individual, subjectivo, não nos garante

nada; não oferece meios para a sua validação. E tanto assim é que um segundo

critério lhe é acrescentado como suplementação. Para além de clara, uma boa ideia,

uma na qual a nossa actividade mental possa encontrar um bom fundamento, deve ser

distinta. Isto significa que uma ideia não deve conter nada que não seja claro. Atingir

a distinção de uma ideia consiste, assim, em analisar os seus conteúdos e dar dela

uma definição precisa em termos abstractos. Estes critérios remetem um para o outro

186

C.P.5.389.

Page 83: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

83

e deixam-nos num plano de análise lógica abstracta187

que não autoriza qualquer

desenvolvimento. É preciso formular um método para atingir uma clareza de

pensamento mais perfeita, que dê conta do problema do aumento do conhecimento.

Segundo Peirce, Descartes, empenhado como estava em afastar a autoridade

escolástica e substitui-la, enquanto fundamento e ponto de partida seguro, pela mente

humana, não reflectiu sobre a distinção entre uma ideia parecer clara e sê-lo

efectivamente. O novo e mais perfeito método de esclarecimento de ideias deve

permitir proceder a esta distinção e abandonar o terreno da pura subjectividade.

Também Leibniz terá reproduzido este carácter acrítico da evidência cartesiana,

esquecendo-se de que “aceitar proposições que nos parecem ser perfeitamente

evidentes é algo que, seja lógico ou não, não conseguimos evitar fazer.”188

É com

ideias claras que podemos garantir a vitalidade do pensamento e estabelecer as

condições para a obtenção de conhecimento. O problema basilar destes critérios de

definição, para além da sua insuficiência em termos de garantia de validade é, então,

a sua desadequação em relação à actividade mental entendida como descoberta : “a

maquinaria da mente é capaz apenas de transformar conhecimento, mas nunca de lhe

dar origem, a não ser que seja alimentado com factos da observação.”189

Os critérios

cartesianos remetem-nos, quando muito, para uma prática analítica que não responde

à necessidade de justificação do aumento do conhecimento: “Não se consegue

187

Para além de alimentar confusões como as que enredaram a ontologia clássica sintetizada

por Wolf e já denunciadas por Kant na Crítica da Razão Pura a propósito do argumento

ontológico.

188

C.P.5.392. 189

C.P.5.392.

Page 84: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

84

aprender nada de novo através da análise de definições.”190

E, ainda que sirvam à

necessidade de ordem que um bom funcionamento mental exige, estes critérios

manifestam graus inferiores de clareza. Há que exigir, e legitimamente, da lógica um

meio de atingir um terceiro grau de clareza das nossas ideias que dê conta de um

funcionamento correcto do pensamento na sua actividade de descoberta. Uma lógica

que dê conta do crescimento do conhecimento

Para fornecer o critério para um terceiro grau de clareza, Peirce retoma a

descrição da actividade mental desenvolvida no artigo anterior: “a acção do

pensamento é excitada pela irritação da dúvida e cessa quando se atinge a crença; de

modo que a produção de crença é a única função do pensamento.”191

Dúvida e crença

são estádios da actividade mental que se caracterizam, respectivamente, por uma

hesitação ou indecisão surgida numa dada circunstância, e por uma resolução do

problema que essa circunstância levantou e que nos permite saber como agir. De

facto, e esta é uma das bases do pragmatismo, a noção de crença define-se como

“aquilo a partir do qual um homem está preparado para agir.” Aquilo a que

assistimos através da escolha desta terminologia é à recusa do modelo grego e

cartesiano do pensamento como visão espacial (o olho da mente) e da específica

construção cartesiana da consciência como um lugar, uma zona espacial (o recinto

interior mental onde as ideias aparecem e são vistas) e a sua substituição por imagens

ligadas à acção. Reforça-se deste modo a descrição externalista e compartilhável da

actividade mental que nos afasta do terreno movediço da introspecção.

190

C.P.5.392. 191

C.P.5.394.

Page 85: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

85

A crença como ponto de chegada da actividade mental, e seu ponto de partida

também, dada a sua aplicação, tem três características :1) é algo de que temos

consciência 2) acalma a irritação da dúvida 3) implica o estabelecimento na nossa

natureza de uma regra de acção ou hábito. Desta descrição decorre a primeira

formulação do critério do terceiro grau de clareza: “A essência da crença é o

estabelecimento de um hábito; e crenças diferentes distinguem-se pelos diferentes

modos de acção a que dão origem.”192

Passa-se, assim, de critérios baseados nas

características internas de um conceito para um critério baseado na observação das

suas consequências.

Enquanto estabelecendo um hábito, a crença instala procedimentos inferenciais,

caracteriza-se por ser uma base de expectativas. Ter uma ideia equivale à enunciação

de um conjunto de condicionais expressáveis pela fórmula “se...então”. Espera-se

que, dadas certas condições, se sigam certas consequências. A observação destas

previsões condicionais é o que permite distinguir crenças aparentemente iguais e

identificar crenças aparentemente diferentes.

Daí, a segunda formulação do critério : “Para desenvolver o seu significado

temos , então, apenas que determinar que hábitos produz, já que aquilo que uma

coisa significa é simplesmente o hábito que ela implica. (…) Assim, chegamos àquilo

que é tangível e concebivelmente prático, como raíz de qualquer distinção real de

pensamento(…); e qualquer distinção de significado, por mais subtil que seja,

192

“The essence of belief is the establishment of a habit; and different beliefs are

distinguished by the different modes of action to which they give rise.” (C.P.5.398)

Page 86: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

86

consiste simplesmente numa possível distinção na prática.”193

O conteúdo das nossas

ideias equivale, assim, ao hábito que delas decorre, e o hábito é uma disposição para

agir, não apenas sob circunstâncias prováveis, mas sob todas as circunstâncias

possíveis. Não há qualquer restrição a uma observação de facto, sendo que o critério

contempla condicionais contrafactuais.

Uma ideia deve ser verificável para poder vir a ter um sentido determinado;

qualquer outro critério incorre num risco de confusão linguística ou de certeza

puramente subjectiva: “A nossa ideia seja do que for é a nossa ideia dos seus efeitos

sensíveis; e se imaginamos que temos outra, enganamo-nos a nós mesmos e

confundimos uma simples sensação que acompanha o pensamento com uma parte do

próprio pensamento.”194

Os “efeitos sensíveis” de uma concepção, o que nelas é

“tangível e concebivelmente prático” instalam-nos num ambiente discursivo cuja

exigência é a da verificação experimental pública e compartilhável. A máxima

pragmática propriamente dita enuncia-se, assim, da seguinte forma : “Consideremos

que efeitos, que possam concebivelmente ter consequências práticas, concebemos

que o objecto da nossa concepção tem, então, a nossa concepção desses efeitos é a

totalidade da nossa concepção do objecto.”195

Esta é uma máxima que, dado o seu

193

“To develop its meaning we have, therefore, simply to determine what habit it produces,

for what a thing means is simply the habit it involves. (…) Thus we come down to what is

tangible and conceivably practical, as the root of every real distinction of thought(…); and

there is no distinction of meaning so fine as to consist in anything but a possible difference

of practice.” (C.P.5.400) 194

“Our idea of anything is our idea of its sensible effects; and if we fancy we have any

other we deceive ourselves and mistake a mere sensation accompanying the thought for a

part of the thought itself.” (C.P.5.401) 195

“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings,we conceive the

object of our conception to have, then, our conception of these effects is the whole of our

conception of the object.” (C.P.5.402)

Page 87: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

87

funcionamento externalista, parece dissolver um problema persistente na teoria da

definição e irritante para a questão do sentido: a dualidade essência/acidente. A

“fenomenalização” pragmatista recusa identificar a definição/sentido de uma coisa

com uma essência qualitativa, não mediada, apreendida intuitivamente e da qual

decorreria a explicação do comportamento dessa coisa como derivado, acidental,

contingente, circunstancial. A essa concepção isolacionista do sentido, Peirce opõe

uma concepção relacional, exteriorizada, que não ignora as mediações linguísticas

entre sujeito e objecto e faz depender da nossa observação, de facto ou concebível,

do seu comportamento e dos seus efeitos sobre o nosso, uma sua definição196

. Nem

temos outro modo de fazer sentido que não seja estabelecer um regime de

equivalências deste tipo.

Vejamos como funciona a máxima pragmática em relação a um dos exemplos

apresentados por Peirce no texto, e que é um desenvolvimento ou reafirmação da sua

teoria da realidade e do seu realismo. Este exemplo é, para além disto, interessante

na medida em que permite aferir o funcionamento da máxima relativamente a um

conceito suficientemente vasto e metafisicamente conotado para que não sejamos

tentados a vê-la como a afirmação de um experimentalismo banal de aplicação curta

a objectos físicos ou propriedades sujeitáveis a medição instrumental. A máxima

serve para esclarecer “palavras difíceis” para além de uma evidência subjectiva, deve

poder alcançar conceitos abstractos como o conceito de “realidade”.

196

O que certamente se relaciona com a exclusividade concedida classicamente à forma

proposicional ‘s é p’ ,denunciada por Peirce e que o levou a fundar um ramo vital da lógica

contemporânea, a lógica dos relativos.

Page 88: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

88

Peirce começa por sujeitar o conceito aos graus de clareza expostos. Para o

critério de familiaridade, o conceito de realidade é o mais claro. “Qualquer criança o

usa com perfeita confiança, nunca sequer sonhando que não o compreende.”197

Já o

segundo grau de clareza parece ser menos evidente. Como dar uma definição

abstracta de “realidade”? Ainda assim, poderíamos alcançá-la contrapondo as ideias

de “realidade” e “ficção” e chegar a uma definição como “aquilo cujas características

são independentes do que seja quem for possa pnsar que elas são.”198

Apliquemos a

regra do terceiro grau de clareza e verifiquemos se podemos aperfeiçoar a clareza

desta ideia. Como qualquer outra qualidade, a realidade deverá consistir nos efeitos

sensíveis peculiares que as coisas ditas reais produzem. O único efeito que as coisas

reais têm é causar crença, já que todas as sensações que elas excitam emergem na

consciência sob a forma de crenças. A questão é, pois, saber como é que a crença

verdadeira (ou crença no real) se distingue da crença falsa (ou crença na ficção). As

ideias de verdade e falsidade pertencem exclusivamente ao método experimental de

estabelecer opinião ou crença. Existe, assim, uma associação entre real e verdadeiro,

o primeiro dizendo respeito ao objecto da crença e o segundo à própria crença. Se um

dos “resultados sensíveis”, dos efeitos práticos do real é o carácter verdadeiro da

crença, dada a determinação do que significa ser verdadeiro teremos uma

determinação do que significa ser real. A investigação científica, que é um dos

métodos de obtenção e fixação da crença, é o método através do qual as nossas

crenças não são determinadas por nada de humano, mas por uma permanência

197

C.P.5.405. 198

C.P.5.405.

Page 89: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

89

externa, por algo sobre o qual o nosso pensamento não tem qualquer efeito. O critério

desta exterioridade, aquilo que faz com que não se confunda com a mera alucinação

individual, é o seu carácter partilhado e público, comunitário. O progresso da

investigação, porque é sobre o real, força os investigadores a uma só e mesma

conclusão. “A opinião que está destinada a ser finalmente objecto de acordo por parte

de todos aqueles que investigam, é aquilo que queremos dizer com a verdade, e o

objecto representado nesta opinião verdadeira é o real.”199

O resultado da

investigação levada suficientemente longe, independentemente de opiniões

individuais é o que queremos dizer quando dizemos “real” e “verdadeiro”.

É necessário chamar a atenção para o facto de que Peirce não difere,

idealisticamente, o real para um momento futuro e produzido, nem faz depender a

realidade do nosso conhecimento dela e do seu transporte numa crença verdadeira.

Na medida em que agem sobre nós e nos constrangem, as coisas são reais, mas o que

delas se nos dá é necessariamente mediado em crenças, em estados mentais que

determinam o nosso modo de acção futuro e que são corrigíveis, aperfeiçoáveis pela

subsequente interacção com as coisas que levanta novas dúvidas e suscita novas

crenças. Das coisas não apreendemos intuitivamente uma essência mas formamos

discursivamente interpretações. Assim, a máxima pragmática articula-se com a

teoria semiótica de Peirce segundo a qual o pensamento é actividade sígnica, um

processo ilimitado de interpretação: o sentido é virtual e a sua determinação completa

encontra-se no futuro, quando nos for dado ter uma opinião verdadeira.

199

“The opinion which is fated to be ultimately agreed to by all who investigate, is what we

mean by the truth, and the object represented in this true opinion is the real.” (C.P.5.407) O

termo “comunidade” éaqui substituído pela expressão “todos aqueles que investigam”.

Page 90: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

90

4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE.

Num terceiro artigo desta série, intitulado “The Doctrine of Chances”

(C.P.5.645-668), Peirce discute a questão da probabilidade, das inferências prováveis

– aquelas que resultam no aumento do conhecimento. Interessa-nos aquela parte do

texto que os editores dos Collected Papers intitularam “Three Logical Sentiments”

(C.P.2.652-655), três sentimentos lógicos, porque nela Peirce regressa ao tema da

“comunidade ilimitada”200

; porque nele se antecipam razões para a cisão entre teoria

e prática que será objecto do próximo capítulo; e, finalmente, porque aqui se

estabelece mais uma vez uma relação entre lógica e ética que redundará na concepção

da ética como ciência normativa, na questão do auto-controlo racional e no senso-

comum crítico.

O texto começa por esclarecer o sentido de “probabilidade”. Esta é uma ideia

que essencialmente pertence a um tipo de inferência que se repete indefinidamente

sendo que o “facto real” que lhe corresponde, como tinha sido estabelecido em

C.P.2.650, é que um dado modo de inferência por vezes mostra ter sucesso e outras

vezes não, e isto num ratio em última instância fixo. Assim sendo, só faz sentido

falar de probabilidade em relação a um conjunto indefinido de casos e não em

relação a um caso único ou individual: este é ou verdadeiro ou falso. É verdade que a

consideração da probabilidade pode orientar a decisão empírica, efectiva, a propósito

200

C.P. 2.654.

Page 91: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

91

de um único caso, como o exemplo dos baralhos de cartas mostra201

. Mas este

exemplo mostra também que essa decisão racional não acarreta qualquer tipo de

necessidade e que a razão é não tem qualquer valor no que diz respeito aos casos

isolados.

Em que medida é que podemos, então, contar com a ideia de probabilidade? A

partir de certo número de casos começa a desenhar-se uma proporção no número de

sucessos e falhanços e a probabilidade de um modo de argumento fora definida, em

C.P.2.650, como “a proporção dos casos em que traz consigo a verdade”. O problema

está em que o número de inferências prováveis que um indivíduo faz em toda a sua

vida é finito “e ele não pode ter a certeza absoluta de que o resultado médio irá estar

de acordo com as probabilidades”202

. Assim, no caso de uma colecção de inferências

prováveis finitas, estamos na mesma circunstância que perante uma inferência

isolada: sem uma certeza de que não irá falhar. A mortalidade dos indivíduos faz

com que o número das suas inferências seja finito e, consequentemente, que o seu

resultado médio seja incerto. Como, então, confiar na razão e na sua capacidade

inferencial se a ideia de probabilidade se reduzir à incerteza? “Parece que somos

levados a isto; que a logicalidade inexoravelmente exige que os nossos interesses não

sejam limitados. Eles não devem limitar-se ao nosso próprio destino mas devem

abarcar toda a comunidade. E esta comunidade, por sua vez, não deve ser limitada,

mas deve estender-se a todas as raças de seres com os quais possamos entrar numa

201

C.P.2.652. 202

C.P.2.653.

Page 92: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

92

relação intelectual imediata ou mediata.”203

Se a ideia de probabilidade envolve uma

série indefinida de inferências, ela implica a possibilidade indefinida de realizar

inferências, só satisfeita com um sujeito ele próprio indefinido ou ilimitado que deve

alcançar, ainda que de forma vaga, “para além desta época geológica, para além de

quaisquer limites”. O ponto de vista individual é insuficiente para determinar o

resultado das inferências prováveis e é neste sentido ilógico, na medida em que não

permite fazer sentido da ideia de probabilidade e derrota qualquer posssibilidade de

justificação da indução. A logicalidade implica, assim, o “sacrifício” do ponto de

vista individual, do caso isolado, do interesse egoísta associado à existência finita

dos indivíduos. “Quem não sacrifique a sua própria alma para salvar o mundo é,

tanto quanto me parece, ilógico em todas as suas inferências, colectivamente. A

lógica está enraizada no princípio social.”204

A superação do egoísmo é um dos

requisitos essenciais da lógica e Peirce estende esta incompatibilidade entre lógica e

egoísmo até à rejeição do egoísmo como traço antropológico central, à maneira

hobbesiana, fundando uma teoria da moralidade e da decisão. Para isso, mostra-se

como a prossecução dos desejos de cada um é diferente do egoísmo. As aparentes

manifestações de egoísmo e de possessividade envolvem uma componente

“expansiva”, uma preocupação que ultrapassa o imediato, a saber, ou uma

identificação com interesses colectivos, ou uma preocupação com o futuro distante.

203

“It seems to me that we are driven to this, that logicality inexorably requires that our

interests shall not be limited. They must not stop at our own fate, but must embrace the

whole community. This community, again, must not be limited, but must extend to all races

of beings with whom we can come into immediate or mediate intellectual relation.”

(C.P.2.654)

Page 93: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

93

A base antropológica da logicalidade não é um qualquer extremismo heróico de auto-

sacrifício, mas algo de bastante mais corrente e atestado: “que ele seja capaz de

reconhecer a possibilidade, seja capaz de perceber que só são lógicas as inferências

do homem que o tiver, e deve consequentemente ver as suas próprias como válidas

apenas na medida em que seriam aceites pelo nosso herói. Na medida em que ele

referir as suas inferências a esse padrão, ele conseguirá identificar-se com uma tal

mente.”205

É a realidade desta possibilidade que “torna a logicalidade

suficientemente atingível”.

O requisito da lógica é, então, “uma identificação concebível dos interesses de

cada um com aqueles de uma comunidade ilimitada”, um sentimento que, dada a

impossibilidade de provar, contra ou a favor, que a espécie humana, “ou qualquer

raça intelectual”, existirá para sempre, é por Peirce identificado com a “esperança ou

desejo calmo e alegre”, de que a comunidade possa durar para lá de qualquer data

assinalável.

Assim, são três os sentimentos indispensáveis como requisitos da lógica:

“interesse numa comunidade indefinida, reconhecimento da possibilidade deste se

tornar no interesse supremo, e esperança na continuação ilimitada da actividade

intelectual.”206

O primeiro aliás, o “sentimento social”, era já o que estava em causa

na discussão dos métodos de fixação de crença (impulso social). E estes três

204

“He who would not sacrifice his own soul to save the whole world is, as it seems to me,

illogical in all his inferences, collectively. Logic is rooted in the social principle.”

(C.P.2.654) 205

“(…)that he should recognize the possibility of it, should perceive that only that man’s

inferences who has it are really logical, and should consequently regard his own as being

only so far valid as they would be accepted by the hero. So far as he thus refers his

inferences to that standard, he becomes identified with such a mind” (C.P.2.654).

Page 94: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

94

sentimentos lógicos são aproximados por Peirce aos dotes espirituais afirmados pela

religião cristã: Fé, Esperança e Caridade.

O texto termina, então, tornando mais explícito o requisito último da lógica que

já tinha sido afirmado em 1868: a esperança. Trata-se de um facto irracional,

emocional, sentimental, sem razões contra ou a favor, uma pré-condição que, do

ponto de vista cognitivo, parece levantar um paradoxo, porquanto o realismo de

Peirce recusa qualquer incognoscível e aqui se afirma como pré-condição do

inquérito a continuação infinita e indefinida dele – o que não é cognoscível207

.

Para ter confiança na eficácia da indução, temos que supor um número de

inferências indefinidamente grande, que só pode ser levado a cabo por uma

comunidade sem limites. Quando se baseia na lógica, o indivíduo baseia-se em algo

que transcende a sua individualidade e se radica na ideia de uma comunidade

indefinida que continuará para sempre a investigar a realidade : é esta a base ética da

lógica. Fumagalli208

fala até de uma “redução social” da lógica: através de uma

argumentação que parte de premissas probabilísticas, conclui-se que o único modo de

fazer escolhas verdadeiramente razoáveis é pôr como sujeito de interesse a

comunidade e não o indivíduo. A investigação intelectual só faz sentido do ponto de

vista ou na perspectiva de uma comunidade indefinida de investigadores. O indivíduo

não tem garantias do sucesso da sua investigação e um empenhamento racional

individualista estaria necessariamente sujeito à eventualidade do falhanço. Seria, em

206

C.P.2.655. 207

cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles S. Peirce, Chicago, University

of Chicago Press, 1963, p.90-91.

208

Fumagalli, A., Il Reale nel Linguaggio, Milão, Pub. Universitá Cattolica, 1995, p.125.

Page 95: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

95

última análise, praticamente inútil. O critério da convergência ou acordo da

comunidade actual de investigadores pode ser entendido como modelo ou como

manifestação empírica desta exigência comunitária normativa.

5.CONCLUSÃO

A escolha da perspectiva biológica para abordar o conhecimento científico,

fazendo dele uma das actividades de inquérito através das quais um organismo tenta

superar a insatisfação da dúvida e fixar uma crença, adaptando-se assim ao seu

ambiente, apresenta-se afinal em Peirce mais como uma problematização ou

qualificação da atitude naturalista em filosofia, do que como uma sua aceitação

justificada pelo evolucionismo. Que o método científico retire a sua superioridade do

seu carácter normativo e não da sua eficácia adaptativa, apesar de admitida a

possibilidade de ser o resultado de uma evolução orientada pela necessidade de

adaptação, é uma questão que exige uma reflexão sobre as relações entre a teoria e a

prática ou, se quisermos, sobre o valor epistemológico da utilidade deste tipo de

conhecimento. O anti-instrumentalismo da concepção de ciência em Peirce será

abordado no capítulo seguinte deste trabalho, mas o que foi dito neste permite desde

já evitar qualquer incompatibilidade entre uma concepção anti-instrumentalista da

ciência e o pragmatismo peirceano. Tal como este se expressa na máxima pragmática

proposta no artigo “Como Tornar as Nossas Ideias Claras”, permite aliás considerar

Page 96: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

96

que, a haver instrumentalidade, esta se dá exactamente a direcção inversa: é a acção

que é instrumental para o conhecimento e não o conhecimento para a acção.

Assim, a relação entre lógica e ética mais uma vez afirmada no terceiro texto

da série abordada neste capítulo, não significa uma submissão da teoria à prática.

Antes decorre de uma concepção de racionalidade não fundacionalista, que opera

com probabilidades e não com certezas. O falibilismo evita o cepticismo apelando

para sentimentos que permitem sustentar razoavelmente a persistência na aplicação

do método científico, mas não demonstram inequivocamente a sua eficácia: o

optimismo epistemológico é uma esperança. Este apelo exige, por sua vez, a recusa

do individualismo em epistemologia – como aliás no domínio da acção moral se

apela ao altruísmo como motivação -, isto é, exige a noção de comunidade. Aquilo

que falta esclarecer é o modo como este apelo ao sentimento supera o naturalismo de

posições sentimentalistas como a de David Hume, e o seu consequentemente

cepticismo.

Page 97: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

97

CAPÍTULO III - TEORIA E PRÁTICA, RAZÃO E INSTINTO

1.INTRODUÇÃO

Vinte anos depois da série “Ilustrações da Lógica da Ciência” publicada no

Popular Science Monthly, em Fevereiro de 1898, Peirce realiza uma série de

conferências em Cambridge, Massaschussets, a convite de William James209

e sob o

título genérico “Reasoning and the Logic of Things”, “O Raciocínio e a Lógica das

Coisas”210

. Publicadas integralmente pela primeira vez mais de 100 anos depois da

sua vinda a público, continuam o tema nuclear do pensamento de Peirce: uma teoria

do método científico. Mais especificamente, tratam um tema que tem a maior

importância se queremos compreender a estreita associação entre lógica e ética

envolvida na teoria social da lógica a que chegámos no final do capítulo anterior.

Trata-se do tema das relações entre teoria e prática, que permite esclarecer algumas

ambiguidades dos textos de 1877/78 acerca da crença e da verdade, e também algo

209

Para as circunstâncias deste convite cf. Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things,

Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, pp.8-37. 210

Abandonaremos os Collected Papers no que diz respeito a estes textos, porque aí

aparecem apenas partes truncadas da primeira das conferências no vol. 1 sob o título

“Vitally Important Topics” - cf. Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things, Ketner,

K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, pp.25-30. para a origem deste

Page 98: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

98

acerca do modo como Peirce terá integrado o evolucionismo no seu pensamento. Este

tema leva-nos naturalmente à teoria peirceana da hipótese, uma vez que o problema

da validade da indução, isto é, a justificação do método científico, encontra uma

resposta pela integração deste procedimento no processo de formulação e testagem

de hipóteses, e estas atestam o tipo de adaptação típico da espécie humana.

Pressuposta nesta concepção da hipótese está uma teoria das relações entre a razão e

o instinto, onde Peirce irá buscar razões para sustentar o seu optimismo

epistemológico, traduzido tanto no seu Senso-Comum Crítico, como no seu

Sentimentalismo Filosófico. Estes, por sua vez, deixam-nos a um passo da

arquitectónica peirceana, e da sua concepção de três ciências normativas

fundamentais, Estética, Ética e Lógica, afirmação final do realismo de Peirce e das

exigências do inquérito contidas no conceito de comunidade.

2.TEORIA E PRÁTICA

Os textos de 1878, apresentados no capítulo anterior, davam-nos uma descrição

da actividade cognitiva em termos de acção adaptativa e usavam expressões no

terreno cognitivo que comummente se associam à prática, como a noção de hábito e

os aspectos envolvidos na re-qualificação da dúvida: dúvida viva, dúvida real, por

oposição à dúvida de papel cartesiana. Continham também uma definição de crença

título - e também outros extractos em C.P. 6.1-5, 185-213, 214-221, 222-237, 7.468-517.

Usaremos então e edição “reconstruída” de Kenneth Laine Ketner.

Page 99: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

99

como hábito de acção, a partir da qual se chegou a uma consideração das virtudes do

método científico, que advêm de uma posição realista que incorpora o veredicto da

experiência. O método científico é o único dos métodos avaliados por Peirce que não

permite que a dúvida passe das conclusões para o próprio método e essa sua

resistência à dúvida decorre desde logo do facto de ser o único método que admite o

certo e o errado211

- “é possível tanto o mau como o bom raciocínio; e este facto é o

fundamento do lado prático da lógica.” Ainda, como foi dito, nestes textos faz-se

uma estreita associação entre lógica e ética, reforçada por uma nota de 1903

explicitamente afirmando uma analogia entre o auto-controlo racional e moral212

, ou

seja, o exercício do método científico exige virtudes éticas213

. E, finalmente, a

máxima pragmática e a sua insistência nas “consequências práticas” dos conceitos

reforça a ligação entre pensamento e acção típica das posições pragmatistas. A

questão que se põe, pois, é a de saber o que entender por estas articulações: se em

Peirce podemos de algum modo encontrar uma submissão da vida prática às

conclusões da vida teórica; ou se podemos contar com o método científico para a

conduta quotidiana, se de algum modo da ciência podemos esperar retirar uma

sabedoria ética; se a ciência funda a ética e é assim formativa, do ponto de vista do

individuo, ou se tem implicações na decisão política, do ponto de vista colectivo214

.

211

cf. C.P.5.385. 212

C.P. 5.376 n2. 213

cf. Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981,

p.188: “A ciência é o fruto do instinto temperado pela virtude.” 214

Esta é uma questâo tanto mais pertinente quanto a glorificação da ciência no século XIX

permitiu uma série de iniciativas públicas de moralidade duvidosa cf. A recensão que Peirce

faz de Karl Pearson contra as implicações do darwinismo social (C.P.8.132-156). Skagestad

nota, aliás, que mais do que contra os cépticos Peirce quer defender a ciência dos seus

Page 100: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

100

Se, de algum modo, o fosso kantiano entre Razão Pura e Razão Prática se resolve

simplesmente subordinando os imperativos morais às informações postas à

disposição pela ciência num dado momento.

A primeira das conferências de Cambridge intitula-se precisamente “Philosophy

and the Conduct of Life”, “A Filosofia e a Conduta da Vida” e enfrenta directamente

esta questão começando por descrever dois modos de conceber a relação entre teoria

e prática na investigação filosófica, ou também, de entender a finalidade da

investigação. Assim, “os gregos esperam que a filosofia afectasse a vida (..)

imediatamente na pessoa e na alma do próprio filósofo tornando-o diferente dos

homens vulgares nas suas perspectivas acerca da conduta correcta”215

. A esta

“tendência Helénica para misturar Filosofia e Prática”216

, Peirce opõe o modelo do

“homem científico” representado já por Aristóteles, um filósofo treinado “in the

dissecting-room” e que separou a ciência teórica, “que tem o conhecimento da teoria

como seu fim e objectivo último”217

, da Estética e da Moralidade. Um dos valores

que poderia autorizar esta relação entre a filosofia e a prática seria o da utilidade.

Afinal, a própria descrição do inquérito como uma luta para sair do estado de dúvida

e atingir a crença faz pensar no valor vital das actividades cognitivas, em que o

conhecimento responde a necessidades vitais e serve para enfrentar problemas

alegados amigos. Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University

Press, 1981, p.45. 215

“The Greeks expected philosophy to affect life (...) forthwith in the person and soul of

the philosopher himself rendering him different from ordinary men in his views of right

conduct.” (RLT p.106) 216

RLT p.107. 217

RLT p.107.

Page 101: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

101

práticos. Ora, ao assumir-se como “um aristotélico e um cientista a este respeito”218

e

ao celebrar a separação dos domínios, Peirce fá-lo precisamente começando com um

argumento que visa dissociar a investigação da utilidade: “Mas o verdadeiro

investigador em ciência deixa completamente de fora a questão da utilidade daquilo

que está a investigar”219

. Repare-se que a posição de Peirce não consiste em negar à

humanidade os benefícios imediatos da aplicação prática dos conhecimentos

científicos. Antes, o que está aqui em causa é saber, do ponto de vista da investigação

científica, que lugar têm as preocupações práticas e a utilidade. Assim, a preocupação

com a utilidade pode permitir fazer “muito pela vida humana”220

mas a mesma

preocupação do ponto de vista da investigação acarreta consequências negativas,

tanto no plano do desenvolvimento do inquérito - constituindo deste modo “um

obstáculo no caminho do inquérito”, o pecado filosófico - como no plano moral : “o

investigador que não se mantém distanciado de qualquer intenção quanto a fazer

aplicações práticas, não apenas obstruirá o avanço da ciência pura, mas, o que é

infinitamente pior, ele porá em perigo a sua própria integridade moral e a dos seus

leitores.”221

Isto é, a separação entre o regime da prática e o da teoria não acarreta

uma separação entre ética e investigação mas parece até reforçar a relação estreita

entre ambos. Há que ver, então, o que significa a cisão entre teoria e prática e as

diferentes exigências de ambas.

A primeira questão tratada é uma questão acerca da lógica, tanto mais

pertinente quanto enquanto ciência dos métodos lida com a validade da teoria, com

218

RLTp.107. 219

RLTp.107. 220

RLTp.107.

Page 102: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

102

aquilo precisamente que nos poderia fazer contar com ela para orientação da prática,

Poderíamos, assim, esperar dela garantias para uma boa relação entre teoria e prática.

Mas, desde logo, a aparência de importância vital de que a teoria do raciocínio se

reveste é desfeita por Peirce ao afirmar que, se considerarmos dois tipos de questões

práticas, “assuntos correntes” e “grandes crises”, nenhuma delas exige essa mesma

teoria, por mais absolutamente essencial que seja em metafísica. Na prática, aquilo

com que podemos contar não é nem a razão individual, impotente ou sem segurança

suficiente quando se trata de grandes decisões, nem uma teoria do raciocínio,

desnecessária no quotidiano, onde não é preciso conhecer as leis da inferência para

pensar. Aquilo com que podemos contar na prática é antes o sentimento ou o instinto.

As razões para isto não se prendem com qualquer cepticismo quanto aos poderes da

razão, como é o caso em Hume, para quem também as paixões ocupam um lugar

acima da razão na motivação da vontade222

, onde uma submissão da razão às paixões

se faz na linha de uma argumentação que visa pôr em causa a competência da razão

para dar conta da experiência e das suas supostas regularidades, afinal apenas hábitos

psicológicos projectados ou expectativas não justificadas. Antes em Peirce as

mesmas razões que validam as pretensões cognitivas ou que justificam a confiança

nas operações racionais, como a indução, impõem uma cisão entre o plano da decisão

prática, que diz respeito ao imediato e ao particular, e o plano do conhecimento

teórico das leis que estruturam a experiência, do real tal como será conhecido quando

representado numa opinião verdadeira, como resultado da investigação no longo

221

RLTp.107. 222

Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, Book II, Part 3, Sec.3

“On the Influencing Motives of the Will” – “a razão é escrava das paixões”.

Page 103: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

103

prazo. É a epistemologia não fundacionalista e falibilista de Peirce, cuja condição

central é a concepção de uma investigação que prossegue indefinidamente, que

coloca a ciência definitivamente no exterior da aplicação prática, seja recebendo

desta orientações, interesses ou valores, seja impondo-lhe modos de acção. A

argumentação epistemológica cruza-se com uma outra, que podemos designar como

derivando de uma antropologia evolucionista e que se prende com as relações entre a

razão e o instinto ou sentimento. A razão como “diferença específica” humana é uma

faculdade superficial quando comparada com o instinto: “São os instintos, os

sentimentos, que constituem a substância da alma. A cognição é apenas a sua

superfície, o seu ponto de contacto com aquilo que lhe é exterior.”223

A infalibilidade

prática é uma questão instintiva, como se passa já com os “animais inferiores”224

e

não uma questão de determinação inferencial absolutamente justificada ou fundada -

recorde-se que a certeza absoluta é, epistemologicamente, do ponto de vista da teoria,

um logro, uma ilusão individualista225

. Como suporte para esta posição, Peirce

apresenta a seguinte descrição e classificação do raciocínio: “Há três tipos de

raciocínio. O primeiro é necessário, mas presume apenas dar-nos informação acerca

da matéria das nossas hipóteses, e declara distintamente que, se queremos saber mais

223

“It is the instincts, the sentiments, that make the substance of the soul. Cognition is only

its surface, its locus of contact with what is external to it.” (RLT p.110). 224

cf.RLT pp110-111. 225

É, aliás, interessante ver como Peirce desloca a questâo do cepticismo para o plano da

individualidade, a desconfiança nos poderes da razão individual tem toda a razão de ser e a

sua ligação à prática é ainda mais suspeita. O problema é estender este, que é um problema

por assim dizer psicológico, e que parece assim autorizar teorizações como a freudiana, para

o plano da lógica, que estuda precisamente as condições de validade, ou a razão não iludida

/ auto-correctora. Assim, talvez também se possa dizer que o anti-psicologismo de Peirce

não é uma recusa da Psicologia, pelo contrário, trata-se de lhe dar condições de

Page 104: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

104

alguma coisa, temos que nos dirigir a outro lado. O segundo depende de

probabilidades. Os únicos casos em que pretende ser de algum valor são aqueles

onde temos uma quantidade infinita de riscos insignificantes, como numa companhia

de seguros. Onde quer que esteja em causa um interesse vital, ele diz claramente

‘Não me perguntem a mim’. O terceiro tipo de raciocínio experimenta aquilo de que

é capaz il lume naturale, que iluminou os passos de Galileu. Trata-se, de facto, de

um apelo ao instinto. Assim a razão, apesar de todas as suas belas roupagens, nas

crises vitais reduz-se à sua medula e pede o socorro do instinto”226

. Este apelo ao

instinto reveste-se muitas das vezes de uma aparência de racionalidade, ou consiste,

se quisermos, numa racionalização que se resume a um processo de auto-ilusão, pelo

que faz sentido introduzir na configuração antropológica uma dimensão inconsciente

que põe em causa a possibilidade de uma abordagem estritamente racionalista da

dimensão prática da existência humana227

. “A razão apela, então, ao sentimento

como última instância. O sentimento, por seu lado, sente-se a si próprio como sendo

possibilidade enquanto ciência, ou seja, fornecer-lhe um objecto e um método. Aliás, Peirce

foi também um investigador em Psicologia e um dos pioneiros da Psicologia experimental. 226

“Reasoning is of three kinds. The first is necessary, but it only professes to give us

information concerning the matter of our own hypotheses, and distinctly declares that if we

want to know anything else, we must go elsewhere. The second depends upon probabilities.

The only cases in which it pretends to be of value is where we have, like an insurance

company, an endless multitude of insignificant risks. Wherever a vital interest is at stake, it

clearly says ‘Don´t ask me.’ The third kind of reasoning tries what il lume naturale, which

lit the footsteps of Galileo, can do. It is really an appeal to instinct. Thus Reason, for all the

frills it wears, in vital crisis, comes down upon its marrow-bones to beg the succour of

instinct.” (RLT pp 110-111). 227

Podemos considerar esta noção de inconsciente como uma espécie de inconsciente

colectivo e não apenas instintivo no sentido biológico do termo : o instinto humano aprende

em Peirce. E também podemos sublinhar que este ponto reforça de algum modo a

preocupação em não identificar lógica (estudo do pensamento deliberado - não inconsciente)

e psicologia (estudo do modo como de facto pensamos, incluindo dimensões inconscientes

cf teoria peirceana da percepção e os seus estudos experimentais em psicologia).

Page 105: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

105

o homem. Esta é a minha simples apologia do sentimentalismo filosófico.”228

Assim,

a afirmação da cisão entre teoria e prática junta-se a uma denúncia do racionalismo

como intromissão indevida dos dois domínios que é um eco das críticas feitas ao

método a priori no texto de 1878 “A Fixação da Crença”.

No domínio da prática, então, a razão submete-se ao sentimento e “o

sentimentalismo implica o conservadorismo”229

O que esta posição significa não é

uma recusa total da mudança enquanto tal – “e é da essência do conservadorismo

recusar levar qualquer princípio prático aos seus limites extremos – incluindo o

próprio princípio do conservadorismo”230

-, mas daquele tipo de mudança súbita231

e

individual232

que distancia o indivíduo da sua comunidade: não por acaso, o próprio

texto abandona neste parágrafo em que se descreve o conservadorismo que convém à

prática o sujeito “eu” para adoptar o “nós”. É que as regras vigentes numa dada

comunidade empírica são “uma indução instintiva ou sentimental que sumaria a

experiência de toda a nossa raça.”233

Não são simplesmente naturais ou inatas, mas

também não são estritamente convencionais. Têm uma dimensão cognitiva,

incorporam uma continuidade de experiência irredutível à experiência individual e

ainda que não plena e absolutamente infalíveis e justificadas do ponto de vista da

228

“Reason, then, appeals to sentiment in the last resort. Sentiment on its side feels itself to

be the man. That is my simple apology for philosofical sentimentalism.” (RLT p.111) 229

RLT p.111. 230

RLT p.111. 231

As palavras que caracterizam uma prática indevidamente orientada pelos “dictates of

reason”, por uma “philosophy of religion” ou “philosophy of ethics” - “sudden acceptance”,

“precipitally change”, “hastily practise” – indicam todas a urgência imediatista da prática,

em contraste com a teoria cujo regime temporal é o longo termo. 232

Esta posição é já atacada na crítica do método da tenacidade efectuada no artigo “A

Fixação da Crença”. 233

RLT p.110.

Page 106: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

106

teoria, são “practicamente infalíveis para o indivíduo”234

. Não são dadas a priori

como verdades de razão. Logo, não é a razão - mas sim a experiência

sentimentalmente codificada - que funda a moralidade: esta é um resultado da

experiência. Na ciência temos uma versão idealizada dos procedimentos racionais,

conscientemente tratando a questão da validade, uma razão auto-controlada235

. A

diferença é que as exigências da prática dizem respeito ao aqui e agora e há que tratar

as crenças disponíveis como absolutas236

. Fundamentalmente, razão e experiência

interagem do mesmo modo, porque se trata sempre de crenças com conteúdo

cognitivo, de conhecimento - mas o estatuto difere consoante o “interesse” em causa,

a finalidade, é teórica ou prática. Há continuidade, tal como há possibilidade de

“troca” entre o plano do sentimento e o da razão. O que não há é uma hierarquia, e o

tipo de interacção entre os dois domínios não é autoritário.

Tal como a teoria não pode fornecer à prática directivas revolucionárias - o que

não é sensato - assim também a prática o mais que pode fazer é fornecer sugestões à

teoria. Mas “eu não concederia ao sentimento ou instinto qualquer peso em questões

teóricas”237

. As sugestões do instinto ou sentimento submetidas às exigências do

inquérito racional deixam de usufruir da sua infalibilidade, que é estritamente prática,

de tal modo que o investigador está pronto “a deitá-las pela borda fora ao mínimo

aviso da experiência”238

. E aqui encontramos explicitamente a distinção entre crença

como categoria da prática, definida como “a adopção de uma proposição como uma

234

Este é o único tipo de infalibilidade admitido por Peirce, aliás, e repare-se que é para o

indivíduo apenas. 235

Para Peirce, já a percepção funciona à imagem da inferência. 236

cf. Diferenças entre crenças práticas e teóricas já enunciadas em “A Fixação da Crença”. 237

RLT p.112.

Page 107: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

107

possessão definitiva” ou “a crença efectiva como disposição para agir de acordo com

uma proposição em momentos de crise vital”239

e as proposições que a ciência aceita:

“a lista na sua totalidade é provisória(..) Não há, pois, qualquer proposição em

ciência que corresponda à concepção de crença”240

. Assim, “nada é vital para a

ciência, e nada pode ser”241

. Ao carácter absoluto e infalível da crença no domínio

da acção contrapõe-se o carácter hipotético, falível e provisório dos conhecimentos

actuais da ciência. A acção é uma irrupção momentânea e contingente, particular no

tempo (empírico) enquanto que a ciência lida com o crescimento contínuo do

conhecimento, e todos os momentos de paragem aguardam confirmação futura na

opinião verdadeira. Desfaz-se aqui a ambiguidade que o uso anterior do termo

“crença” e das expressões como “prático” poderia ter causado; ou, se quisermos

também, a noção de experiência e, consequentemente, de “prática”, em ciência não é

a noção de experiência vital dos indivíduos e comunidades empíricas242

.

Se, então, a razão é muito menos vital do que o instinto no domínio da

prática, se apenas tem um papel instrumental em pequenos assuntos insignificantes,

também a prática e a sua exigência de utilidade, sendo um “ponto de vista estreito”243

não devem interferir no domínio da teoria. À moralidade interessada da prática

contrapõe-se a ética desinteressada da investigação, que consiste no conjunto de

virtudes envolvidas no exercício do método científico. E a filosofia é uma das

238

RLT p.112. 239

RLT p.112. 240

RLT p.112. 241

RLT p.112. 242

Pode, aliás, ver-se nesta cisão a tomada de consciência da impotência da razão em

fornecer uma Ética à imagem da ciência.cf Williams,B., Morality, Cambridge, Cambridge

University Press, 1993, pp.55-61.

Page 108: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

108

ciências exigindo essa moralidade específica que a afasta das preocupações da

prática.

Na classificação das ciências com que o texto prossegue244

, Peirce exclui a

Ética do âmbito da filosofia, pelo seu carácter demasiadamente específico e concreto

enquanto ciência “do fim e objectivo da vida”. Só mais tarde, enquanto ciência

normativa, será integrada, juntamente com a Lógica e a Estética, na arquitectónica

proposta por Peirce, agora como ciência dos fins da razão, isto é, operada já a cisão

entre teoria e prática e explicitada a necessidade de uma ética no domínio da teoria.

Não se irá tratar, assim, apenas de uma mudança de lugar na arquitectónica, mas de

duas noções diferentes de ética, uma para a ciência outra para a vida. A função

normativa é, neste momento, atribuida apenas à lógica – “a metafísica deve guiar-se

em todos os seus passos pela teoria da lógica”245

- e esta é por sua vez guiada pela

matemática, a ciência que “estuda exclusivamente hipóteses”246

. A razão pela qual a

classificação das ciências surge neste momento prende-se com a necessidade de

mostrar que os interesses da prática não devem interferir com a teoria, e vice-versa, e

surge para reforçar o repúdio de uma imagem da filosofia como consolação

existencial ou guia para a conduta humana, a imagem helénica descrita no início do

texto. A filosofia não deve, como segundo Peirce, Hegel e outros no seu século

fizeram abundantemente, ser posta à parte das outras ciências “como se lhe fose

estranha e quase hostil”247

. Isto apenas mostra um desconhecimento acerca do que

243

RLT p.113. 244

RLT pp.114-117. 245

RLTp.116. 246

RLT p.114. 247

RLT p.117.

Page 109: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

109

são as ciências, consequência de uma educação em “seminários teológicos”, e tem

como implicação grave o descrédito da metafísica como “uma coisa ociosa,

subjectiva e ilógica”. A posição de Peirce é, pelo contrário, que apenas a ciência é

capaz de salvar a metafísica.

O argumento central para separar a teoria das influências da prática encontra-se

na resposta à questão “Qual é o resultado geral de todas estas ciências, a que é que

todas elas chegam?”248

, ou seja, resolve-se pela questão da finalidade249

, numa

aplicação da máxima pragmática ao conceito “ciência” ou à hipótese “teoria”. Uma

observação da história das ciências mostra como “proposição geral” que cada ciência

se desenvolve em direcção a uma ciência mais abstracta, “mais elevada na nossa

escala”. A ordem das ciências exposta na classificação feita imediatamente antes no

texto é uma ordem não estritamente formal, uma arrumação simplesmente

convencional ou com critérios exteriores; antes tem de substantivo o carácter

orgânico das relações entre os vários níveis : cada um cresce, desenvolve-se, tende

para o seguinte como seu fim. É precisamente este evolucionismo teleológico que

esclarece o sentido da dimensão reguladora, normativa no pensamento de Peirce.

Desde as artes, passando pelas ciências descritivas, classificatórias, nomológicas, até

à Lógica que por sua vez “parece destinada a converter-se cada vez mais em

matemática”250

, todas as ciências convergem para esse centro que é a ciência das

puras hipóteses. A finalidade da teoria é tornar-se puramente teórica, mas este é um

movimento que lhe diz estritamente respeito, em nenhum momento do texto

248

RLT p.117. 249

cf. O preceito bíblico “conhece-se a árvore pelos seus frutos” como inspiração da

máxima pragmática. O critério para o maior grau de clareza é a finalidade.

Page 110: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

110

encontramos qualquer tentativa de reduzir todas as dimensões, teórica e prática, a

esta. Pelo contrário, encontramos um cuidado em marcar as devidas distâncias entre

os dois planos: Platão não fez justiça “a todos aqueles que vivem vidas simples, e

que nem sequer pensam em filosofia”251

ao identificar a influência moral que faz o

valor da filosofia com o conhecimento das ideias puras enquanto fim último da vida.

Mas também o interesse prático, por mais vital e útil que seja, não retira o

predomínio do teórico no domínio do conhecimento: a utilidade não esgota a

finalidade, tal como os veados e árvores que comemos e queimamos têm “fins

próprios, não relacionados com o meu estômago ou pele individual”252

. O ponto de

vista da utilidade é o ponto de vista individual, egoísta e imediato.

Ora, aquilo que é típico da investigação mais pura, as matemáticas, é

precisamente a supremacia da convergência sobre o ponto de vista individual. “O que

constatamos é que homens que trabalham em áreas tão remotas entre si como os

campos de África estão distantes do Klondike, reproduzem as mesmas formas de

hipótese nova”253

. E convergência em direcção a quê? “O fim que a Pura Matemática

persegue é a descoberta daquele mundo potencial real.”254

Resta saber que relações podem existir entre sentimento e razão, depois de

afirmada a sua separação. Ambos têm um carácter cognitivo: também o instinto é

uma capacidade de “desenvolvimento e crescimento” e não um mecanismo rígido a

priori, mas o ritmo dessa aprendizagem e crescimento é muito lento. A fonte da

250

RLT p.120. 251

RLT p.119. 252

RLT p.119. 253

RLT p.120. 254

RLT p.121.

Page 111: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

111

aprendizagem é, tal como para a razão, a experiência (“externa” e “interna”) e dá-se

através da instrumentalidade da cognição: “As partes mais profundas da alma só

podem ser atingidas através da sua superfície.”255

Há uma influência da teoria sobre a

prática mas ela não é imediata, antes se faz por “percolação lenta e gradual”256

.

3.UMA TEORIA DO INSTINTO

Da primeira conferência de Cambridge podia pensar-se que desenha dois

campos opostos e mutuamente exclusivos, uma dificuldade a enfrentar num pensador

da continuidade como Peirce, tal como era já estranha afinal a passagem dos métodos

de fixação da crença pré-científicos para o método científico. As restantes

conferências, no entanto, irão permitir detectar as articulações entre razão e

sentimento, conhecimento científico e instinto, que diluem a sua oposição sem porem

em causa a sua diferença, mostrando exactamente a sua continuidade, e que talvez

ajudem a compreender o estatuto das noções normativas e reguladoras em Peirce.

Para elucidar estas questões teremos, também, que fazer uma prospecção em outros

escritos de Peirce, abandonando uma abordagem sistemática e cronológica dos seus

textos.

A quarta conferência desta série de Cambridge de 1898, intitulada “The First

Rule Of Logic”, “A Primeira Regra da Lógica”, começa com a afirmação de “uma

255

RLTp.121-122. 256

RLTp.122.

Page 112: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

112

das mais espantosas características do raciocínio, e um dos mais importantes

filosofemas da doutrina da ciência (...) que o raciocínio tende a corrigir-se a si

próprio.”257

Esta característica da autocorrectividade, bastante óbvia no que respeita à

indução, aplica-se também aos outros dois tipos de inferência, a dedução e a

retrodução ou hipótese, na medida em que todo o raciocínio envolve observação e

experiência258

, “o elemento imposto na história das nossas vidas (..) de que somos

constrangidos a tomar consciência através de uma força oculta qu reside num objecto

que contemplamos”259

, em consistência com a concepção peirceana de realidade e

verdade. Deste “poder vital de auto-correcção e crescimento” decorre a condição

essencial para descobrir a verdade, “que é um desejo vigoroso e activo de descobrir a

verdade”260

. A este “desejo sincero”, que motiva a actividade de investigação que se

auto-corrige em direcção à verdade “fnalmente”, “com o tempo”, “se a experiência

pudesse continuar tempo suficiente” e que acaba por se impor a todos os outros

desejos, chama Peirce “the Will to Learn”261

, a Vontade de Descobrir. Mas esta não é

simplesmente aqui um dispositivo retórico. Antes, ela irá permitir entroncar a

actividade racional de investigação ou inquérito naquilo a que autores como

Thompson chamam a “natureza humana” ou estabelecer uma relação de continuidade

entre as condições existenciais e biológicas do investigador e a sua actividade de

257

RLT p.163. Sobre a autocorrectividade cf Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science,

Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1987, cap.1; Davis, W.H., Peirce’s

Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972.cap.3.b.1; e Skagestad,P., The Road of

Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, Cap.6a. 258

Cf RLT pp.169-170. 259

RLT p.170. 260

RLT p.170.

Page 113: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

113

investigação. Retomando, enfim, a teoria do inquérito como passagem da dúvida à

crença que tinha sido esboçada nos textos de 1878. Assim também “A primeira coisa

que a Vontade de Descobrir pressupõe é uma insatisfação com o estado presente da

nossa opinião.”262

Curiosamente, a esta insatisfação não é dado aqui um qualquer

cunho biologista, antes ela é tratada ou resulta numa oposição de atitudes

irreconciliáveis que retoma os preceitos socráticos ou as análisas kantianas : a

oposição entre ensinar e aprender263

. O homem que ensina é aquele “plenamente

imbuída da importância vital e da verdade absoluta daquilo que tem de transmitir”,

enquanto que aquele que quer aprender “deve estar penetrado por um sentido do

carácter insatisfatório a condição presente do seu conhecimento”264

. Aquela, a atitude

dogmática, é estéril, enquanto que esta é a única capaz de estimular realmente a

investigação e de “infectar o outros com a mesma doença aparente [uma febre de

descobrir que consome a alma ]”265

, ou seja, é expansiva. Mas esta insatisfação com

o conhecimento presente não é a do céptico, daí que a oposição estabelecida por

Peirce não seja entre cépticos e dogmáticos266

, mas entre os dogmáticos e aqueles

261

Certamente até por referência polemizante à “Will to Believe” de William James, tema e

título de uma obra deste publicada em 1897 e que exprime o pragmatismo do qual Peirce se

demarca. 262

The first thing that the Will to Learn supposes is a dissatisfaction with one´s present state

of opinion.” (RLT p.170-1). 263

No contexto de uma crítica à universidade americana. 264

RLT p.171. 265

RLT p.171. 266

Para Peirce talvez possamos dizer que o verdadeiro “inimigo” é, afinal, o dogmatismo,

até porque o cepticismo é uma forma do dogmatismo. Mesmo o ataque à dúvida cartesiana

como uma forma de dar uso metodológico a um cepticismo radical é mais um ataque ao

dogmatismo acrítico que resulta de uma metodologia extremista. Peirce parece até antes não

levar realmente a sério as posições cépticas, num apelo a uma atitude de razoabilidade ou

bom senso: ninguém é realmente céptico, é uma impossibilidade prática desde logo, mas

também teórica. Presumir ou afirmar a impossibilidade do conhecimento é um absurdo, uma

contradição. O cepticismo, afinal, desde que controlado e integrado metodologicamente, é

Page 114: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

114

que investigam: estes não põem em causa o edifício do saber humano no seu

conjunto atacando, por exemplo, o seu suposto fundamento – como poderiam sequer

fazer isto sem se anularem enquanto investigadores ? A sua é uma insatisfação com o

conhecimento existente, o que significa que têm que o tomar em consideração ou que

são guiados pela grande regra da lógica que consiste nisto: “ara que uma indução

seja válida, ela deve ter origem numa dúvida definida ou pelo menos numa

interrogação; e o que é uma tal interrogação senão, primeiro, uma impressão de que

não conhecemos alguma coisa, segundo, um desejo de conhecê-la, e terceiro, um

esforço – que implica uma disposição para trabalhar – para vermos o que pode

realmente ser a verdade. Se esta interrogação te inspira, então certamente examinarás

as instâncias; enquanto que se ela não te inspirar, não lhes prestarás atenção.”267

O

que equivale a dizer que a dúvida que motiva a investigação é uma dúvida viva ou

dúvida real e não uma “dúvida fictícia”; a única que pode realmente contribuir para

“a mais rápida elevação do homem àquela condição de animal racional de que ele é a

forma embriónica”.268

É que o edifício da ciência construído até aqui, ou o

indispensável. Aliás, o senso comum crítico evidencia uma mistura destas duas posições em

relação ao cepticismo. Talvez até a apreciação que Peirce faz de Hume indique também isto:

apesar de achar que ele defende posições exactamante contrárias às suas, aprecia-o

suficientemente para ser até surpreendente a sua proximidade, como veremos na secção

seguinte. 267

“(…)an induction to be valid must be prompted by a definite doubt or at least an

interrogation; and what is such an interrogation but 1st, a sense that we do not know

something, 2nd, a desire to know it, and 3rd, an effort, - implying a willingness to labor, -

for the sake of seeing how the truth may really be. If that interrogation inspires you, you will

be sure to examine the instances; while if it does not, you will pass them by without

attention.” (RLT p.171-2). 268

RLT p.172. Finalidade, realização de uma potência: os factos são passíveis de

desenvolvimento; são um movimento em direcção a, uma possibilidade de, uma disposição

para; envolvem sempre, pois, uma referência a uma qualquer instância normativa, o ideal

para que se dirigem. Nisto e expressa o empirismo de Peirce, que quer ser fiel ao espírito

Page 115: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

115

conhecimento humano é ainda “uma colecção de pedras recolhidas por uma criança

na praia – o vasto oceano do Ser ainda aí inexplorado.”269

A nossa ciência é

superficial e o seu âmbito é estreito, e isto desde logo, segundo Peirce, devido

precisamente à sua origem no instinto ou devido ao facto de ser um desenvolvimento

do conhecimento natural representado pelo instinto. A origem instintiva do

conhecimento explica o tipo de relações entre fenómenos que são para os humanos

significativas, relações dinâmicas como desenvolvimento dos intintos relacionados

com a necessidade de nutrição que forneceram a todos os animais algum

conhecimento virtual de espaço e de força e fez deles físicos aplicados; e relações

sociais como desenvolvimento dos instintos relacionados com a reprodução sexual e

que forneceram a todos os animais que se nos assemelham uma compreensão virtual

das mentes de outros animais do seu tipo, pelo que são psicólogos aplicados

No quinto dos seis textos de 1878 que constituem as “Ilustrations of the logic of

science”, intitulado “The Order of Nature”270

, “A Orem da Natureza”, um problema

levantado pela indução, o facto de que “há certas induções que apresentam uma

aproximação à universalidade de tal modo extraordinária que, mesmo supondo que

não são estritamente verdades universais, não podemos simplesmente pensar que são

resultado do puro acaso”271

, é tratado nos termos da biologia evolucionista: a

“adaptação” entre a mente humana e o mundo, por sua vez explicada como resultado

empirista sem sucumbir às suas consequências pessimistas – e tenta fazê-lo através uma

mistura de kantismo regulador, platonismo das formas eternas, e realismo medievalista. 269

RLT p.172. 270

C.P. 6.395-427 271

“(…)there are certain of our inductions which present an aproach to universality so

extraordinary that, even if we are to suppose that they are not strictly universal truths, we

cannot possibly think that they have been reached purely by accident.” (C.P. 6.416)

Page 116: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

116

da "selecção natural"272

, explica a naturalidade com que certas concepções, como as

de espaço, tempo e força, surgem na mente humana, como aliás surgem já na mente

animal273

. Estas concepções surgem como estratégias de sobrevivência

suficientemente vantajosas para serem seleccionadas; e a ciência parece estar então

em continuidade com esta concepção estratégica. Mas Peirce tem algumas reservas

quanto a esta hipótese evolucionista, concluindo o parágrafo com a admissão de que

“não parece ser suficiente para dar conta da extraordinária precisão com que estas

concepções se aplicam aos fenómenos da natureza, e é provável que haja aqui ainda

algum segredo por descobrir.”274

De qualquer modo, encontramos este tema

evolucionista, da continuidade entre estratégias vitais seleccionadas e conhecimento

científico, nos textos posteriores de Peirce, inclusive nas conferências de Cambridge.

Mas ainda antes, num texto da “Grand Logic” de 1893, intitulado “Association”275

, a

propósito da questão das verdades psicológicas necessárias para a lógica, Peirce

elabora esta continuidade articulando-a com a questão da indubitabilidade prática.

Assim, em C.P.7.421, afirma a existência de uma psicologia natural, em parte

instintiva, em parte resultado da experiência, e que ainda que possa conter muitos

erros, isto é, a sua eficácia não é garantia da sua verdade, tem uma autoridade prática:

seria ocioso duvidar da sua verdade prática, e esta verdade prática deve sem dúvida

ser referida à sua eficácia enquanto estratégia adaptativa. Já num outro texto, este de

272

cf. C.P. 6.417-418. 273

C.P. 6.416. 274

C.P.6.418. 275

C.P. 7.388-467.

Page 117: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

117

1883, “A Theory of Probable Inference”276

, é explicitamente afirmado que “todo o

conhecimento humano, até aos mais elevados vôos da ciência, não é senão o

desenvolvimento dos nossos instintos animais inatos”277

e esta importante verdade

completa a proposição bem estabelecida segundo a qual “todo o conhecimento se

baseia na experiência, e a ciência só avança através das verificações experimentais

das teorias”278

e funciona como guia para os indivíduos no vasto e desorganizado

repertório de factos que constitui a natureza, ao conceder-lhes “aptidões especiais

para conjecturar correctamente.”279

De tal modo, que “até agora o homem não

conseguiu atingir qualquer conhecimento que não seja, num sentido lato, ou

mecânico ou antropológico na sua natureza, e pode razoavelmente presumir-se que

nunca o conseguirá”.280

Para além de antropologicamente condicionado ou antropomórfico – regressando

à quarta conferência – e assim limitado no seu alcance, o nosso conhecimento é

incerto e inexacto. Mas esta incerteza, que decorre da epistemologia falibilista,

limita-se ao domínio da teoria ou da ciência. Assim, “quando digo que uma

inferência retrodutiva não é de todo uma questão de crença, encontro esta

dificuldade, que há certas inferências que, consideradas cientificamente, são sem

dúvida hipóteses, mas que, do ponto de vista da prática, são perfeitamente certas.”281

276

Aparece a público em 1883, numa obra colectiva editada por Peirce com trabalhos dos

seus alunos de Lógica em Johns Hopkins; pretende ser incluido na obra projectada de 1893

“Search for a Method”. 277

C.P. 2.754. 278

C.P. 2.754. 279

C.P. 2.753. 280

C.P. 2.753.

281

RLT p.176.

Page 118: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

118

Mais uma vez, há que examinar as diferentes exigências da teoria e da prática. Tendo

como finalidade aprender a lição que o universo tem para lhe ensinar, a ciência

procede indutivamente, isto é, simplesmente submete-se à força dos factos. Mas na

medida em que busca a explicação dos factos, a ciência não pode limitar-se a uma

enumeração ou registo deles: “É levada, em desespero, a recorrer à ajuda da sua

simpatia interna com a natureza, do seu instinto”282

Esta é uma afirmação bastante

mais enfática do que a que encontráramos na primeira conferência, onde o que se

dizia era simplesmente que “somos frequentemente levados em ciência a

experimentar as sugestões do instinto”283

. Aqui, o recurso ao instinto é apresentado

como uma necessidade, e justificado até em nome de uma simpatia interna com a

natureza. Mas a consequência deste recurso não é um fundamento absolutamente

seguro postulado, uma espécie de revelação natural imediata a que a razão se

submeteria. Antes ela é uma confirmação do falibilismo e surge neste momento do

texto uma das suas metáforas mais sugestivas : “Mas na medida em que o faz, o

chão sólido dos factos foge debaixo dos seus pés. Sente a partir desse momento que a

sua posição é apenas provisória. Deve então encontrar confirmações ou então mudar

o seu ponto de apoio. Mesmo que encontre confirmações, elas são apenas parciais.

Ainda não está assente na base firme dos factos. Caminha sobre um pântano, e pode

apenas dizer que, de momento, este chão parece firme. Aqui ficarei até que comece a

dar de si.”284

A metáfora do pântano exprime o carácter provisório do conhecimento

282

RLTp.176. 283

RLT p.112. 284

“But insofar as it does this, the solid ground of fact fails it. It feels from that moment that

its position is only provisional. It must then find confirmations or else shift its footing. Even

if it does find confirmations, they are only partial. It still is not standing upon the bedrock of

Page 119: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

119

mas também aquilo que lhe confere o seu dinamismo: quando o chão debaixo dos

nossos pés começa a falhar, somos obrigados a continuar em busca de um ponto de

apoio mais firme. Os factos são para a ciência aquilo que promete uma geografia

estável, os indicadores da natureza como algo “grande, e belo, e sagrado e eterno, e

real (...) o objecto da sua devoção e da sua aspiração.”285

O movimento da ciência

faz-se gradualmente em direcção a esse objecto global dado apenas em fragmentos,

os factos são os veículos da verdade eterna. A atitude da prática perante os factos é,

segundo Peirce, tudo menos reverencial: os factos , as forças arbitrárias com as quais

temos que contar e que temos de enfrentar, são os obstáculos que ela tem que

ultrapassar, o inimigo que está apostada em vencer. No plano da prática estamos em

pleno confronto, em plena luta pela sobrevivência, daí o seu carácter urgente, a sua

necessidade de algo em que se basear, a verdade de facto ou, pelo menos, uma

elevada probabilidade. Uma hipótese resistente torna-se rapidamente, para a prática,

um objecto de crença286

, justificando a disposição para arriscar bastante com base

numa proposição. Mas, para a ciência, as hipóteses, mesmo as mais resistentes,

mantêm-se aquilo que são, hipóteses, teorias explicativas sujeitas a confirmação, e

não questões de crença. O seu estatuto de verdades estabelecidas, como tinha já sido

afirmado na primeira conferência, equivale simplesmente a dizer que “são

fact. It is walking upon a bog, and can only say, this ground seems to hold for the present.

Here I will stay till it begins to give way.”(RLTp.176-177) 285

RLT p.177. 286

“As practice apprehends it, the conclusion no longer rests upon mere retroduction, it is

inductively supported. For a large sample has now been drawn from the entire collection of

occasions in which the theory comes into comparison with fact, and an overwhelming

proportion, in fact, all the cases that have presented themselves, have been found to bear

out the theory. And so, says Practice, I can safely presume that so it will be with the great

Page 120: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

120

proposições em relação às quais a economia do inquérito prescreve que, de momento,

cesse sobre elas a investigação.”287

Mas isto não introduz, segundo Peirce, qualquer ambiguidade na noção de

verdade. Antes apenas mostra que há dois tipos de sentido para a expressão “tomar

por verdadeiro”, duas atitudes perante a verdade, dois interesses ou duas finalidades:

“uma é o tomar por verdadeiro prático, o qual apenas tem direito ao nome de Crença,

enquanto o outro é aquela aceitação de uma proposição que na intenção da pura

ciência se mantém sempre provisória.”288

O primeiro tipo, sendo inevitável do ponto

de vista da prática, é definitivamente incompatível com a ciência, na medida em que

põe em causa ou condena a “Vontade de Descobrir”, a primeira e única grande regra

da razão: “para sermos capazes de descobrir temos que desejar descobrir e ao desejar

isto não ficarmos satisfeitos com aquilo que já nos inclinamos a pensar”289

; e cujo

corolário, “que merece por si mesmo ser inscrito em cada parede da cidade da

filosofia”290

, é “Não Bloquear a Via da Investigação”291

. Fazê-lo é, segundo Peirce,

a única ofensa imperdoável no raciocínio, o erro no seu sentido mais forte, a única

forma de impedir a operação da autocorrectividade do pensamento. Mas é isto que a

bulk of the cases in which I shall go upon the theory, especially as they will closely

resemble those which have been well tried.” (RLTp.176). 287

RLT p.178.

288

RLTp.178. 289

RLTp.178.Esta insistência no desejo será de inspiração platónica? O eros e a palavra eros

é explicitamente utilizada na primeira conferência. E exprime a recusa de Peirce em reduzir

a animação dos indivíduos à estrita auto conservação hobbesiana. E, curiosamente, é o

desejo que controla o instinto e o faz transfigurar em razão regulada por um ideal, em razão

teórica como autodeliberação. Da auto-conservação à autodeliberação assistimos ao

nascimento do moral a partir do fáctico, do dever ser a partir do ser . 290

RLT p.178. 291

“Do Not Block the Way of Inquiry” (RLT p.178).

Page 121: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

121

metafísica tem feito ao longo dos tempos292

; e é esta mais uma razão para que se

aproxime da ciência.

4.PEIRCE E HUME :INSTINTO, RAZÃO E HÁBITO.

Uma abordagem das relações entre Peirce e Hume daria por si só uma outra

dissertação, autónoma e longa. São explícitos por parte de Peirce os sinais de uma

marcada oposição, “tudo o que Hume atacou eu defendo”, e Hume seria o filósofo “a

cujo método de filosofar eu fui desde sempre talvez demasiado intensamente

avesso.”293

. Esta “aversão” pode descrever-se em dois pontos fundamentais: um

deles, aparentemente superficial, é que, segundo Peirce, “Hume era um homem de

letras, e uma das principais características do seu estilo filosófico é que ele

continuamente tentou adornar as ideias filosóficas numa fraseologia fresca e

292

Os quatro bloqueios são: 1) “absolute assertion” 2) “maintaining that this, that, and the

other never can be known” 3) “maintaining that this, that, or the otherelement of science is

basic, ultimate, independent of aught else and utterly inexplicable” 4) “the holding that this

or that law or truth has found its last and perfect formulation” (RLT pp.179-180).

293 C.P. 6.605. Ao mesmo tempo, as referências a Hume são geralmente acompanhadas de

observações senão lisonjeiras, pelo menos expressando admiração: “From Kant I was led to

the admiring study of Locke, Berkeley and Hume” (C.P. 1.506 – 1905); “Whatever work he

read he did not understand; yet in a confused and untenable form, he put forth ideas of his

own of considerable value.” (C.P. 7.171 –: 1901); “the argument which was stated with such

consumate skill by Hume” (ibid.); “Hume, whose cogtations led up to the recognition of

Association as the one law of mind, most judiciously remarks (…) That phrase ‘a gentle

force which commonly prevails’ describes the phenomenon to perfection.” (C.P. 7.390 –

1893); “Hume in his Dialogues Concerning Natural Religion justly points out(…)” (C.P.

6.494 – 1906); “As close a reasoner as Hume was(…)” (C.P. 6.542); “As if he were a

Hume” (C.P.8.244).

Page 122: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

122

moderna.”294

Esta inclinação literária de Hume custar-lhe-á, aos olhos de Peirce, o

ideal científico, que deve ser também o da filosofia. “Hume, que sacrificou a melhor

parte do seu sistema para tornar populares os seus Inquiries”295

não seria certamente

o ideal do filósofo para alguém que, como Peirce, sacrifica o estilo pela técnica, a

ponto de inventar uma proliferação de termos novos e indigestos. O segundo, já

referido no capítulo 1, tem a ver com o facto de Hume ser um dos exemplares mais

proeminentes do nominalismo típico da filosofia moderna a partir de Descartes:

“Descartes, Leibniz, Locke, Hume e Kant, os grandes marcos dahistória da filosofia,

foram todos nominalistas evidentes.” 296

Nesta medida, os textos anti-cartesianos de

Peirce são tanto contra Descartes como contra Hume e a tradição empirista britânica.

E são-no num sentido forte e não apenas derivado, na medida em que, como diz Peter

Skagestad “o ponto de partida para o cepticismo humeano não é outro senão o

fundacionalismo de Descartes, i. e., uma concepção do conhecimento como um

edifício que precisa de alicerces seguros.”297

São-no, assim, no sentido em que o

modelo cartesiano do conhecimento, a exigência epistemológica de um ponto de

partida absolutamente fundado, conduz directamente a um cepticismo extremo, tão

radical quanto radical – fundacionalista – é a pretensão a um conhecimento absoluto.

O falibilismo de Peirce, sustentado na crítica à intuição como faculdade cognitiva

especial suposta axiomaticamente por empiristas e racionalistas, envolve uma

294

“Hume was a literary man, and one of the characteristics of his philosophical style was

that he was continually endeavouring to clothe philosophical ideas in fresh and modern

phraseology.” (C.P. 6.541) 295

C.P. 6.513. 296

C.P. 4.50 (1893). Cf. também C.P. 4.33 e CFI: o ataque à sensação como intuição ou

“first impression of sense”. 297

Skagestad,P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press 1981, p.18.

Page 123: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

123

redescrição da actividade mental que se contrapõe também decididamente à

psicologia filosófica de Hume. Assim, as associações entre ideias são, para Peirce,

inferências298

,e a sua intenção nestes primeiros textos é, afirmadamente, reduzir

todas as formas de acção mental ao raciocínio válido. Isto converge com a intenção

de des-psicologizar a lógica, num processo curiosamente inverso àquele em que

redunda a concepção humeana da actividade mental, onde o psicológico se impõe ao

lógico, este sendo visto como uma extensão ilegítima daquele no que respeita ao

conhecimento sintético, ao domínio das questões de facto, e faz desembocar no

cepticismo. Aquilo que para Peirce está errado no modelo fundacionalista em geral e

particularmente em Hume, é precisamente a má compreensão do funcionamento do

raciocínio, e esta má compreensão manifesta-se em Hume na sua famosa distinção

entre “relações entre ideias” e “questões de facto”.

A “forquilha de Hume” (Hume´s fork) divide, então, as proposições segundo

um critério que consiste na possibilidade ou impossibilidade de conceber o contrário

daquilo que a proposição afirma, de negar a proposição sem envolver ou envolvendo

uma contradição. Uma proposição como “que três vezes cinco é igual à metade de

trinta”299

expressa relações entre ideias, pode “descobrir-se pela simples operação do

pensamento, sem dependência do que existe em alguma parte do universo”300

, é

“intuitiva ou demonstrativamente certa”. Já uma proposição como “que o sol não se

há-de levantar amanhã”301

, cuja negação não implica uma contradição e “é concebido

pela mente com a mesma facilidade e nitidez, como se fosse idêntico à realidade”, é

298

C.P.5.307. 299

Hume,D., Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985 p.31 300

ibid. p.31

Page 124: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

124

uma questão de facto e não deriva de raciocínios a priori mas antes “inteiramente da

experiência, ao descobrirmos que alguns objectos particulares se combinam

constantemente uns com os outros”302

. Esta distinção desemboca então naquela entre

conhecimento a priori e conhecimento a posteriori, e traça uma linha de demarcação

entre as ciências demonstrativas, como “a Geometria, a Álgebra e a Aritmética”303

,

onde a razão funciona num regime de autonomia, e as ciências de descoberta, aquelas

que pretendem aumentar o conhecimento acerca da experiência; e também na

distinção entre necessário e contingente. No caso de Hume, as primeiras não são

problemáticas do ponto de vista da validade304

, são “demonstrativa ou intuitivamente

certas”, a sua origem é a intuição e a demonstração, conservam “para sempre a sua

certeza e evidência”305

, representam e realizam o ideal do conhecimento absoluto. As

segundas “não são indagadas da mesma maneira, nem a nossa evidência da sua

verdade, por maior que seja, é de natureza semelhante à precedente”, a sua origem é a

observação e a inferência causal, pelo que levantam a questão de saber “qual é a

natureza da prova que nos assegura acerca de qualquer existência real e questão de

facto, para além do testemunho presente dos nossos sentidos ou dos registos da nossa

memória”, ou seja, o que nos permite passar da experiência passada ou presente para

uma antecipação da experiência futura a que possamos dar o nome de conhecimento,

301

ibid. p.32 302

ibid. p.33 303

ibid. p.31 304

A sua problematicidade tem antes a ver com o seu estatuto numa filosofia empirista , na

medida em que acabam por representar uma concessão ao racionalismo ou uma admissão de

inatismo; de qualquer modo, estabelecem um golfo entre razão e experiência que se revela

difícil de preencher, e que acaba por dar o mote a toda a filosofia moderna, com expressão

significativa na Crítica da Razão Pura de Kant. 305

Hume, D., Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985, p.31.

Page 125: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

125

o que nos permite passar da experiência dos casos para o conhecimento da lei que os

rege. Dito de outro modo, Hume identifica a indução como a operação lógica

fundamental no que respeita a questões de facto, tal como identificara a dedução

como operação lógica em acção relativamente a relações entre ideias, e coloca no

centro da problemática epistemológica a fundamentação da indução, essa operação

lógica com a qual pretendemos lidar com a experiência e retirar dela conhecimento

de carácter geral. Temos, assim, de um lado a dedução caracterizada pela certeza e,

do outro, a indução tornada problemática e, finalmente, injustificada, na medida em

que em Hume se considera ser a projecção indevida de um hábito. A indução é uma

operação lógica “deficiente” quando comparada com a dedução à luz da exigência de

certeza e põe em causa todo o conhecimento sintético, toda a pretensão de virmos a

descobrir as leis que regem os fenómenos306

. A esta divisão assimétrica entre

operações lógicas junta-se, em Hume, a rejeição daquela característica da acção

mental, e de todas as operações lógicas que a constituem – incluindo a dedução! –

que é central em Peirce e que é, de resto, o objecto da quarta conferência de

Cambridge, “The First Rule of Logic”: a auto-correctividade do pensamento. Para

Hume, e isso é claro no Treatise, não há qualquer aproximação à verdade, por mais

que persistamos na investigação, e a probabilidade é concebida estritamente no

sentido negativo de ausência de certeza absoluta. Todo o conhecimento que obtemos

da experiência é meramente provável, o processo que nos permite obter esse

conhecimento está sujeito ao erro, pelo que a probabilidade recai sobre o próprio

306

cf. Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.175, onde

distingue entre três tipos de evidência: conhecimento, provas, probabilidade.

Page 126: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

126

juízo que afirma a probabilidade de algo e assim sucessivamente, “até que finalmente

não sobre nada da probabilidade original, ainda que tenhamos suposto ser muito

grande, e ainda que seja pequena a sua diminuição a cada nova incerteza.”307

.

A superação deste quadro por Peirce será objecto da secção seguinte deste

trabalho, onde se tratará a teoria da hipótese. O veredicto de Peirce quanto a Hume e

a sua concepção da lógica da investigação é que ele se enganou completamente

quanto à natureza da verdadeira lógica da abdução”308

. Mas se existe uma oposição

tão marcada, e uma rejeição tão veemente, de Peirce em relação a Hume, da sua

epistemologia e psicologia nominalistas de consequências cépticas, há um ponto,

aquele que nos ocupa neste momento, onde se aproximam, mas para se afastarem

logo a seguir, e esse ponto é o das relações entre razão e instinto. O próprio Peirce

reconhece esta coincidência de pontos de vista num texto de 1906: “A quarte parte do

primeiro livro do Tratado da Natureza Humana de Hume fornece argumentos fortes

a favor da correcção da minha perspectiva segundo a qual a razão é um mero

sucedâneo que usamos onde o instinto falha, ao mostrar a maneira intensamente

ridícula como um homem se pode enrolar em dúvidas de papel tolas quando decide

atirar o senso comum, i. e., o instinto, pela borda fora, e ser perfeitamente

racional.”309

A aproximação começa logo pela questão da continuidade entre o

307

“(…)till at last there remain nothing of the original probability, however great we may

suppose it to have been, and however small the diminution by every new uncertainty.”

Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.233. cf. Peirce C.P.

1.383. 308

C.P. 6.537. 309

“The fourth part of the first book of Hume´s Treatise of Human Nature affords strong

argument for the correctness of my view, that reason is a mere succedaneum to be used

where instinct is wanting, by exhibiting the intensely ridiculous way in which a man winds

Page 127: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

127

homem e os restantes animais como entidades biológicas de comportamento

adaptativo. Na secção “Da Razão dos Animais” no livro I do Tratado da Natureza

Humana, Hume atribui ao homem e restantes animais igualmente capacidades

cognitivas. Esta comunidade racional é afirmada em virtude da “semelhança entre as

acções externas dos animais e aquelas que nós próprios praticamos, que nos leva a

julgar que as suas acções internas são igualmente semelhantes às nossas; e o mesmo

princípio de raciocínio levado um passo mais adiante far-nos-á concluir que, sendo

as nossas acções internas semelhantes umas às outras, as causas de que elas provêm

também devem ser semelhantes. Quando, pois, avançamos uma qualquer hipótese

para explicar uma operação mental comum aos homens e aos animais, devemos

aplicar a mesma hipótese a uns e outros; e como toda a hipótese verdadeira suportará

esta prova, do mesmo modo posso atrever-me a afirmar que nenhuma hipótese falsa

será alguma vez capaz de resistir-lhe.”310

Assim, as acções dos animais “afirmo que

têm origem num raciocínio que não é em si mesmo diferente, nem fundado em

princípios diferentes daqueles que ocorrem na natureza humana.”311

Tal como no

caso dos humanos, também os animais não percebem directamente conexões reais

entre objectos, mas inferem-nas a partir da experiência, e as suas generalizações são

himself up in silly paper doubts if he undertakes to throw common sense, i.e., instinct

overboard and be perfectly rational.” (C.P. 6.500) 310

“resemblance of the external actions of animals to those we ourselves perform, that we

judge their internal likewise to resemble ours; and the same principle of reasoning, carry’d

one step farther, will make us conclude that since our internal actions resemble each other,

the causes, from which they are deriv’d, must also be resembling. When any hypothesis,

therefore, is advanc’d to explain a mental operation, which is common to men and beasts,

we must apply the same hypothesis to both; and as every true hypothesis will abide this trial,

so I may venture to affirm, that no false one will ever be able to endure it.” Hume, D., A

Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.226.

Page 128: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

128

também um efeito do costume ou hábito: à comunidade de razão associa-se uma

comunidade epistemológica. Logo, o que encontramos no procedimento cognitivo

animal sendo paralelo ao que encontramos no procedimento cognitivo humano,

Hume conclui esta sua secção invertendo o paralelismo com que havia começado: se

há razões para atribuir razão aos animais, há as mesmas razões para atribuir à razão

humana um carácter instintivo que reforça a continuidade entre ambos. Ou, não

estando a razão justificada nas suas relações com a experiência, será talvez afinal

mais sensato ver nas suas operações o reflexo de um instinto adaptativo que de

alguma forma a separa ainda mais das exigências demonstrativas, absolutas,

normativas da sua operatividade dedutiva. “Vendo bem, a razão não é mais do que

um instinto maravilhoso e ininteligível nas nossas almas, que nos conduz ao longo de

uma certa sucessão de ideias e lhes confere qualidades particulares, de acordo com

as suas situações e relações particulares.”312

A indução, ou propensão para fazer

induções, é, então, um instinto cognitivo partilhado por humanos e animais.

A posição de Hume consiste, então, em sublinhar que a razão não é senão

instinto, ou encontra a sua justificação numa propensão instintiva, e esta origem

biológica serve propósitos cépticos ao associar o valor provável dos juízos sobre

“questões de facto” a uma disposição fora do controlo racional. Ou, como diz Peirce,

“se alguma coisa ele prova é que o raciocínio enquanto tal é ipso facto e

311

“I assert they proceed from a reasoning, that is not in itself different, nor founded on

different principles, from that which appears in human nature.”ibid., p.227. 312

“To consider the matter aright, reason is nothing but a wonderful and unintelligible

instinct in our souls, which carries us along a certain train of ideas, and endows them with

particular qualities, according to their particular situations and relations.” ibid., p.228.

Page 129: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

129

essencialmente ilógico, ‘ilegítimo’ e irracional”313

Esta é uma consequência

inescapável num quadro epistemológico dominado pela ideia de certeza absoluta ou

demonstração a partir de premissas absolutamente fundadas. É que a razão para

concluir da ilogicalidade das operações racionais “é que ou se trata de mau

raciocínio, ou está baseado em premissas duvidosas, ou então essas premissas não

foram completamente criticadas.”314

Ora, toda a argumentação de Peirce se constrói

precisamente em torno da concepção segundo a qual o fundacionalismo é, não apenas

um beco sem saída, uma estratégia paralizante, mas principalmente é uma estratégia

que não pode sequer ser levada a cabo. Retomando os termos em que o inquérito é

descrito, qualquer dúvida genuína surge no contexto de um corpo de crenças que

cede parcialmente numa dada situação originando uma frustração de expectativas. A

dúvida genuína surge desta experiência de frustração que supõe no organismo ou no

investigador um dado estado cognitivo, e “a partir do momento em que chegamos a

uma proposição que é perfeitamente satisfatória, de tal modo que não somos capazes

de ter em relação a ela a menor dúvida, este facto impede-nos de fazer qualquer

crítica genuína sobre ela.”315

A base do conhecimento é este carácter satisfatório,

esta infalibilidade prática que, do ponto de vista da teoria, é apenas provisionalidade.

O ponto central que separa Hume de Peirce é, aliás, sugestivamente descrito por este:

“De modo que o argumento de Hume conduzi-lo-ia a afirmar que raciocinar é

‘ilegítimo’ porque as suas premissas são perfeitamente satisfatórias não levantam

dúvidas genuínas . Ele confessa candidamente que elas são satisfatórias para ele

313

C.P. 6.500. 314

C.P. 6.500.

Page 130: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

130

mesmo. Mas parece ficar insatisfeito consigo mesmo por estar satisfeito. É fácil ver,

no entanto, que ele dá a si próprio uma palmadinha nas costas, e está muito satisfeito

consigo mesmo por estar tão insatisfeito por estar satisfeito.”316

O instinto em Peirce atesta, assim, de alguma forma a origem do estado cognitivo

em que qualquer organismo se encontra e a partir do qual pode, em confronto com a

experiência e, no caso humano, sob vigilância do controlo racional deliberado, levar

a cabo inquéritos com resultado positivo. A própria actividade racional controlada ou

deliberada317

, acaba por encontrar justificação nesta sua origem biológica, e este é

mais um ponto que separa Hume e Peirce no que respeita às relações entre razão e

instinto. Em Hume, algumas operações consideradas racionais são afinal irracionais,

injustificadas porque instintivas; outras são justificadas porque estritamente

racionais. A forma como Peirce consegue uma avaliação oposta das relações entre

razão e instinto, onde o tom geral é que o instinto é já razão, e que então uma

separação estrita entre dedução e indução deixa de fazer sentido, passa por uma

reapreciação do mecanismo que, de algum modo, está no centro de todo o problema :

o hábito.

315

C.P.6.500. 316

“So that what Hume´s argument would lead him to is that reasoning is ‘illegitimate’

because it´s premisses are perfectly satisfactory não levantam dúvidas genuínas . He

candidly confesses that they are satisfactory to himself. But he seems to be dissatisfied with

himself for being satisfied. It is easy to see, however, that he pats himself on the back, and is

very well satisfied with himself for being so dissatisfied with being satisfied.” (C.P. 6.500)

317

Veja-se a distinção entre logica utens e logica docens em que Peirce insiste ao longo dos

seus textos: esta é uma forma consciente daquela; pensamos bem, podemos é não conhecer

as regras, este conhecimento é posterior à sua utilização, esta não depende daquele, mas

pode beneficiar com ele.

Page 131: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

131

Em Hume, o hábito surge para explicar aquilo que a razão por si só não é

capaz de fazer, atingir concepções gerais a partir dos dados da experiência sensível,

isto no âmbito do seu projecto naturalista. Serve de alguma forma para marcar o

carácter “factual” das conjunções regulares, retirando-lhes o carácter normativo

associado às relações entre ideias. A lei no domínio do conhecimento empírico ou

sintético é uma generalização projectiva de base psicológica, um efeito do modo

como a mente humana não consegue deixar de funcionar, a manifestação, subjectiva,

de uma tendência instintiva cujo resultado são “ficções”, de que são exemplo a

identidade pessoal ou a ideia de causalidade. O hábito é, assim, uma simples

regularidade que, na medida em que ultrapassa as instâncias cuja observação lhe terá

dado origem, se torna problemática ou, pelo menos, é vista como irracional, como

algo em relação ao qual o organismo não tem escolha, não sendo uma questão de

raciocínio ou razões, logo também não sendo passível de aperfeiçoamento : é uma

pura tendência involuntária, um sentimento que, quando muito, fornece uma razão

para desconfiar da razão. Também para Peirce os princípios de inferência são

meramente hábitos. Mas o estatuto destes em Peirce é substancialmente diferente :

não são simples regularidades que se esgotam nas suas actualizações mas são

propriamente regras, têm carácter normativo, não se reduzem a uma simples

constatação factual318

. Esta dimensão torna-se evidente aquando da exposição da

teoria do inquérito como passagem da dúvida à crença. Um dos elementos da crença

é, precisamente, comportar o estabelecimento de uma “regra de acção, isto é, de um

318

Já nos textos de 1868 Peirce faz uma analogia entre hábito e lei geral; depois, no artigo

sobre a edição de Fraser das obras de Berkeley, tratado no primeiro capítulo deste trabalho,

Page 132: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

132

hábito”e assim a função do pensamento é “produzir hábitos de acção”319

. Assim, o

hábito não tem como referência apenas a experiência passada, não é apenas o

resultado final de uma colecção de instâncias. Antes se estabelece no organismo

como uma lei ou regra geral que passa a governar a sua conduta futura, manifesta-se

como disposição para agir de um certo modo dadas certas circunstâncias. Enquanto

princípio condutor da acção, dá a esta um carácter lógico320

e não meramente

reactivo, constitui-se como um princípio de inferência que torna o comportamento

num assunto cognitivo, racional. Os hábitos são uma forma de controlo sobre a

experiência em continuidade com a metodologia da investigação científica, ou

constituem aquele estado cognitivo que pode gerar a necessidade do inquérito. Um

hábito estabelecido é uma crença, esta é um juízo com base no qual iremos agir e

pode traduzir-se num conjunto de proposições condicionais verificáveis, ou

estabelece condições de observação e resultados esperados, que constituem o seu

sentido. Por mais indutiva que seja a sua origem, os hábitos não são simplesmente

descritivos, são prescritivos, determinam a acção futura, definem possibilidades.

De algum modo, a desqualificação do hábito como uma força irracional ou

sentimento constrangente prende-se com o lugar dado à indução como forma por

excelência do conhecimento sintético e com a visão pessimista das relações entre

razão e instinto. A teoria da hipótese em Peirce irá precisamente tentar ser uma

resposta a estas questões, uma tentativa de dispersar as desconfianças em relação à

razão que decorrem do seu pano de fundo sentimental.

a noção de hábito no sentido de Duns Escoto surge como solução para o estatuto dos

universais; finalmente, desemboca na teoria do sentido contida na máxima pragmática. 319

C.P. 5.400.

Page 133: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

133

5. A TEORIA DA HIPÓTESE

Porque é que em Peirce as relações entre a razão e o instinto não nos devem

fazer desesperar da razão, nem lançam suspeitas sobre as suas pretensões ao

conhecimento? A resposta passa por uma reformulação da questão kantiana - como

são possíveis os juízos sintéticos a priori - e da sua solução transcendental para o

cepticismo de Hume. Já nos textos de 1868 Peirce a pusera do seguinte modo: “De

acordo com Kant, a questão central da filosofia é ‘Como são possíveis os juízos

sintéticos a priori? Mas antes disto está a questão de saber como são possíveis os

juízos sintéticos em geral e, ainda mais geralmente, como é sequer possível o

raciocínio sintético. Quando a resposta ao problema geral tiver sido dada, a resposta

particular será comparativamente simples. Esta é a fechadura da porta da

filosofia.”321

Esta “generalização” da questão central da filosofia tem consequências

imensas. Não é apenas o “universal e necessário” que está em causa, este é um caso

particular da possibilidade do conhecimento sintético em geral - todo ele, mais ou

menos “colado” à experiência ou à observação exige justificação. Nenhuma

presunção de contacto directo com os objectos vale, nenhuma pura recepção das

320

Cf. C.P.5.268: O fucionamento do organismo é análogo ao funcionamento do silogismo. 321

“According to Kant, the central question of philosophy is ‘How are synthetical

judgements a priori possible?’ But antecedently to this comes the question how synthetical

judgements in general, and still more generally, how synthetical reasoning is possible at all.

When the answer to the general problem has been obtained, the particular one will be

comparatively simple. This is the lock upon the door of philosophy.” (C.P. 5.348).

Page 134: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

134

coisas pela mente é plausível. O erro comum de racionalistas e empiristas quanto às

operações básicas da actividade mental fora já detectado: a suposição de que há pelo

menos algum tipo de conhecimento, originário, fundante, certo, que resulta de uma

apreensão imediata dos objectos por uma faculdade cognitiva especial, a intuição.

Estas intuições primitivas que desencadeariam um processo cognitivo mais vasto

forneceriam o critério de certeza, seja “racionalisticamente” pela clareza e distinção

das ideias, seja “empiristicamente” pela recepção de impressões externas no aparelho

sensorial. À acusação de “nominalismo”, aliás, nem Kant escapa: “Kant era um

nominalista; embora a sua filosofia tivesse ficado mais compacta, mais consistente e

mais forte se o seu autor tivesse adoptado o realismo, o que certamente teria feito se

tivesse lido Escoto.”322

A crença segundo a qual se pode aceder a elementos simples

da realidade, últimos, inanalisáveis e por isso mesmo fundadores - a vontade de

encontrar um domínio de entidades e de particulares últimos, precisos, intuitivamente

acessíveis que permitam um contacto imediato com a realidade transcendente à

mente e aos seus produtos, as representações, fundando-os323

, não permite ultrapassar

o cepticismo de Hume. Como alternativa a esta descrição do mental em contacto

directo com o não mental através de faculdades misteriosas, Peirce propõe uma

descrição do pensamento como fluxo contínuo de inferências, como actividade

322

“Kant was a nominalist; although his philosophy would have been rendered compacter,

more consistent and stronger if its author had taken up realism, as he certainly would have

done if he had read Scotus.” (C.P. 1.19). 323

“But, in fact, a realist is simply one who knows no more recondite reality than that

which is represented in a true representation. Since, therefore, the word ‘man’ is true of

something, that which ‘man’ means is real. The nominalist must admit that man is truly

aplicable to something; but he believes that there is beneath this a thing in itself, an

incognizable reality. His is the metaphysical figment. Modern nominalists are mostly

Page 135: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

135

ilimitada de interpretação. E a inferência básica em funcionamento no contínuo

mental é a abdução ou hipótese. A novidade na descrição da actividade mental que,

como diz Claudine Tiercelin, consiste em abandonar “o problema do fundamento e

da origem do conhecimento, mas certamente não o da sua justificação”324

, reside na

“integração” das inferências classicamente contrapostas, dedução e indução, num

terceiro tipo, a inferência abdutiva, compondo-se o quadro de funcionamento da

investigação, da “lógica da descoberta”. Assim, a dedução é vista, tradicionalmente,

como analítica, não produzindo nova informação; por seu lado, indução e abdução

originam conhecimento sintético, nova informação. Mas, e aqui reside a

originalidade de Peirce e a sua particular solução para o problema da indução, este

carácter sintético da indução, que tantos problemas de justificação levanta, é afinal,

por assim dizer, aparente: o simples inventário de factos não conduz, por si só, a um

conhecimento novo, a uma generalização, a não ser como resultado de uma hipótese

ou interpretação prévia acerca do todo de que os factos inventariados são uma

amostra. Por exemplo, a nossa crença na uniformidade da natureza, que suporta o

processo indutivo em geral e que parece ela própria ser o resultado de uma indução,

como resultado da generalização do “sempre foi assim” para o “é e será sempre

assim”, não é afinal atingida indutivamente; é, antes, uma hipótese, o resultado de

uma abdução: “(...) não há, afinal, nada senão a imaginação que possa alguma vez

dar-lhe um vislumbre da verdade. Ele pode pasmar estupidamente frente aos

fenómenos; mas na ausência da imaginação eles não se articularão de nenhuma

superficial men, who do not know, as the more thorough Roscellinus and Occam did, that a

reality which has no representation is one which has no relation or quality.” (C.P. 5.312) 324

Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions, Jacqueline Chambon, 1993. p.55.

Page 136: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

136

maneira racional.”325

“A imaginação científica sonha com explicações e leis.”326

Em

rigor, a única inferência que realmente produz conhecimento novo, a única sintética

no verdadeiro sentido de termo, é a abdução. Raciocínio sintético e abdução são o

mesmo processo. A ciência não é um procedimento indutivo, ao contrário do que

pensava Hume.

Que tipo de inferência é, pois, a abdução ? “Hipótese é quando deparamos

com alguma circunstância muito curiosa, que seria explicada se suposéssemos que

ela é um caso de uma determinada regra geral, e com base nisto adoptaríamos essa

suposição.”327

A abdução como “a operação de adopção de uma hipótese

explanatória”328

tem a seguinte forma lógica :

“O facto surpreendente, C, é observado;

Mas se A fosse verdadeiro, C seria algo normal;

Logo, há razão para suspeitar que A é verdadeiro.”329

O segundo enunciado desta estrutura indica, então, que a possibilidade de

explicação depende do aparecimento de um “insight” criativo numa situação

325

“(...) there is nothing, after all, nothing but imagination that can ever supply him with an

inkling of the truth. He can stare stupidly at phenomena; but in the absence of imagination

they will not connect themselves together in any rational way.” (C.P. 1.46) 326

“The scientific imagination dreams of explanations and laws.” (C.P. 1.48) 327

“Hypothesis is when we find some very curious circumstance, which would be explained

by the supposition that it was a case of a certain general rule, and there upon adopt that

supposition.” (C.P. 2.624) 328

“the operation of adopting an explanatory hypothesis” (C.P. 5.189) 329

“The surprising fact, C, is observed;

But if A were true, C would be a matter of course,

Hence, there is reason to suspect that A is true.” (C.P. 5.189)

Page 137: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

137

problemática330

, do aparecimento de uma hipótese plausível; o terceiro, que o

resultado da inferência abdutiva é da natureza da crença suportada por razões e não

da evidência absoluta e necessária. Sendo que o aumento do conhecimento depende

desta abordagem “criativa” dos factos ou, dito de outro modo, da sua interpretação

numa hipótese, o predomínio da análise e da dedução como modelos paradigmáticos

do funcionamento mental absolutamente fundado, perde a sua relevância cognitiva e

epistemológica. Antes esse predomínio é uma manifestação do nominalismo

repudiado por Peirce, dependente que está de uma misteriosa capacidade intuitiva de

acesso a “premissas últimas” – “uma premissa que não é ela própria uma

conclusão”331

- a partir das quais as conclusões decorreriam necessariamente. É uma

posiçao que assume a necessidade de fundamentos últimos e encara a hipótese como

um mal menor, um instrumento provisório, até obtermos confirmação inequívoca da

experiência; uma marca da impotência da nossa razão, que não consegue “ver” tudo

de uma vez. Ou abrimos deste modo as portas a um cepticismo como o de Hume, ou

damos à hipótese um estatuto mais nobre: é ela afinal a lógica de descoberta que

temos. Como diz Davis, “Hume provocou o extravio de gerações de filósofos por ter

ignorado completamente o lugar da hipótese no pensamento humano.”332

Se

explicarmos a indução à luz da hipótese e não em contraste com a dedução; mais

ainda, se virmos a indução como uma variante de dedução, uma espécie de dedução

probabilística, e circunscrevermos a dedução a um funcionamento estritamente

330

Cf. a descrição do inquérito como passagem da dúvida à crença e que o problemático é

aquilo que desafia uma regularidade esperada, um hábito - e não qualquer coisa: aquilo que

precisa de explicação é a lei. 331

“a premiss not itself a conclusion” (C.P.5.213) 332

Davis, W.H., Peirce’s Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972. p.34.

Page 138: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

138

formal subordinado agora a um plano de investigação determinado pela hipótese,

então justificamos a possibilidade do raciocínio sintético em geral. O resultado é,

entre outras coisas, o abandono de um quadro em que ao conhecimento é exigida

certeza absoluta e necessária, por um outro onde todo o conhecimento é entendido

como provável, falível, revisível, aproximativo : “A aproximação deve ser o material

apartir do qual a nossa filosofia tem que ser construída.”333

Como se dá, então, a articulação entre os três tipos de inferência, de modo a

constituir-se uma estrutura genérica da lógica de descoberta para a actividade,

controlada, de produção de conhecimento novo? O que é o “método científico”334

?

“A indução é um argumento que parte de uma hipótese, resultante de uma abdução

prévia, e de previsões virtuais, retiradas por dedução, dos resultados de experiências

possíveis, e tendo realizado as experiências, conclui que a hipótese é verdadeira na

medida em que esas previsões são verificadas.”335

Assim, a conclusão de uma

indução é sempre uma hipótese previamente abduzida: a generalização é, primeiro,

sugerida por abdução (“se A fosse verdadeiro, C seria algo normal”), e confirmada,

333

“Approximation must be the fabric out of which our philosophy has to be built.” (C.P.

1.404)

334

Eis a estrutura taxonómica da metodologia da ciência segundo Peirce, sistematizada por

Rescher:

“inductive quantitative

methodology induction

of science

qualitative abduction (hypothesis formulation and selection)

induction

retroduction (hypothesis testing and elimination)”

Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame Press,

1987. p.41. 335

“Induction is an argument which sets out from a hypothesis, resulting from a previous

Abduction, and from virtual predictions, drawn by Deduction, of the results of possible

Page 139: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

139

apenas, por indução. A generalização vai além dos factos observados, como qualquer

outra conjectura: “o progresso em ciência depende da observação dos factos

correctos por mentes dotadas de ideias apropriadas.”336

É evidente que a questão

que se põe neste momento é a de como determinar que estamos perante ideias

apropriadas ou, dito de outro modo, como saber que uma hipótese é uma boa

hipótese, e, desde logo, como seleccionar sequer uma hipótese do conjunto

inumerável das que podem surgir perante uma situação problemática? É que, como

diz Rescher, “a amostra conjectural é ilimitada, mas os recursos são escassos e a vida

é curta.”337

Este é um problema que é anterior àquele que, segundo Peirce, é

resolvido pela máxima pragmática338

, o da determinação do sentido de uma dada

hipótese. A máxima permite verificar se um conceito é ou não vazio e quais os seus

traços distintivos face a outros conceitos. Mas antes disto há que explicar como é que

a mente humana tem sucesso na formulação de hipóteses, como é que simplesmente

não se perde numa aplicação potencialmente infinita da máxima pragmática. Este é

um aspecto tanto mais importante, aliás, quanto participa das razões para

desconfiarmos dos processos hipotéticos como fantasiosos e, pior ainda, arbitrários.

Explicar a plausibilidade das hipóteses é, assim, crucial. É claro que, se encararmos o

conhecimento do ponto de vista da certeza e da dedução, e virmos a hipótese como

experiments, and having performed the experiments, concludes that the hypothesis is true in

the measure in which those predictions are verifiied.” (C.P. 2.96)cf. C.P.6.472 e 5.590-91 336

C.P. 6.604.

337

Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame

Press, 1987, p.42. 338

“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings, we conceive the

object of our conception to have. Then, our conception of these effects is the whole of our

conception of the object.” C.P. 5.402

Page 140: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

140

um mal menor sempre deficiente, não concedemos a esta credibilidade - e menos

ainda à nossa capacidade de a seleccionar. O perigo é, claro está, ou confundirmos as

hipóteses que realmente fabricamos com conhecimento fundado e seguro dos

objectos que pretendem explicar, ou recusarmos qualquer posssibilidade de

conhecimento para além da observação hic et nunc, da afecção sensorial imediata

entendida intuitivamente. Se, pelo contrário, investigarmos a questão da selecção das

hipóteses encarando-as como sendo aquilo que fazemos quando pensamos, quando

conhecemos, até quando percepcionamos, somos levados a alterar a nossa concepção

especular da actividade mental. Segundo Peirce, há uma garantia racional para a

plausibilidade das hipóteses, para o poder de conjecturar correctamente339

que

caracteriza o conhecimento humano, e essa garantia é a evolução. A descrição

“biologista”, “fisiológica” quase do conhecimento que Peirce introduz nos artigos de

1878340

não é simplesmente retórica, como foi já dito. Ela instala o conhecimento

humano no quadro mais geral do comportamento vital, prolonga ou intensifica o

carácter semiótico, interpretativo do pensamento afirmado nos artigos de 1868,

atribuindo-lhe uma espécie de eficácia adaptativa. O tema das relações entre razão e

instinto encontra aqui o seu lugar. O homem tem, no domínio cognitivo, um

equivalente do instinto animal, que é este sentido de plausibilidade em relação ao

funcionamento da natureza e que lhe permite seleccionar boas hipóteses. “Em suma,

os instintos que conduzem à assimilação de comida e os instintos que conduzem à

reprodução devem desde o início ter implicado certas tendências para pensar com

339

C.P. 6.530. 340

“The Fixation of Belief” (C.P. 5.358-387) e “How to Make Our Ideas Clear” (C.P. 5.388-

410).

Page 141: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

141

verdade acerca da física, por um lado, e acerca da psicologia, por outro. É de algum

modo mais do que uma mera figura de estilo dizer que a natureza fecunda a mente do

homem com ideias que, quando crescem, se assemelham ao seu pai, a natureza.”341

Essa selecção, claro, este sentido abdutivo com plausibilidade, não tem um carácter

de certeza absoluta: “é um acto de insight, embora um insight extremamente

falível.”342

Mas isto não lhe tira capacidade para ter eficácia no inquérito: “A

existência de um instinto natural para a verdade é, afinal, a âncora da ciência.”343

O

que acontece não é, à maneira de uma harmonia pré-estabelecida, a afirmação de uma

adequação necessária entre o mundo e as nossas ideias, não nos é dada qualquer

garantia de infalibilidade com base num pressuposto metafísico. Antes, realidade

física e realidade mental são co-naturais, participam ambas de um mesmo processo

de desenvolvimento que se exprime na experiência acumulada da espécie humana: é,

como diz Rescher, a adaptação evolutiva do homem que dá à mente humana uma

espécie de simpatia funcional pelos processos da natureza344

. “Aqueles instintos têm

alguma tendência para serem verdadeiros; porque foram formados sob a influência

daquelas mesmas leis que estávamos a investigar.”345

.

341

“In short, the instincts conducive to assimilation of food, and the instincts conducive to

reproduction, must have involved from the beginning certain tendencies to think truly about

physics, on the one hand, and about psychics, on the other. It is somehow more than a mere

figure of speech to say that nature fecundates the mind of man with ideas which, when those

ideas grow up, will resemble their father, Nature.” (C.P. 5.591). Cf. também C.P. 2.177, C.P.

6.496 e C.P. 8.223. 342

C.P. 5.181. 343

“C.P. 7.220. 344

Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame

Press, 1987, cap.3.

345

“Those instincts had some tendency to be true; because they have been formed

under the influence of the very laws that we were investigating.” (C.P. 7.508). Cf. também

C.P. 1.81; C.P. 5.522; C.P. 5.604; C.P. 6.476; C.P. 7.220.

Page 142: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

142

E, afinal, a abdução mais fundamental é a própria hipótese segundo a qual

podemos ter sucesso nas nossas tentativas de explicar os fenómenos da natureza.

“Subjacente a todos estes princípios está uma abdução fundamental e primária, uma

hipótese que devemos acolher logo à partida, ainda que possa estar completamente

desprovida de suporte empírico. Essa hipótese diz que os factos em questão admitem

racionalização, e racionalização feita por nós.”346

Antes de qualquer evidência

empírica, a nossa confiança na abdução tem uma justificação radical: “Todas as

ideias da ciência são originadas através da abdução. A abdução consiste em estudar

os factos e conceber uma teoria para explicá-los. A sua única justificação é que se

queremos alguma vez compreender as coisas, tem de ser desta maneira.”347

A acção

mental obedeceria, em última instância, a um processo universal de organização

comum à natureza e ao espírito no quadro de uma hipótese cosmológica e que

equivale à tese da inteligibilidade do universo. A epistemologia encontra a ontologia,

mente e natureza operam da mesma forma, as leis do universo evoluem e nós

fazemos parte dessa evolução, a capacidade para tomar hábitos é comum aos homens

e ao mundo.

346

“Underlying all such principles there is a fundamental and primary abduction, a

hypothesis which we must embrace at the outset, however destitute of evidenciary support it

may be. That hypothesis is that the facts in hand admit of rationalization, and of

rationalization by us.” (C.P. 7.219). 347

“All the ideas of science come to it by the way of Abduction. Abduction consists in

studying facts and devising a theory to explain them. Its only justification is that if we are

ever to understand things at all, it must be in that way.” (C.P. 5.145).

Page 143: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

143

5.CONCLUSÃO: SENSO COMUM CRÍTICO

Começamos este capítulo com a questão das relações entre teoria e prática,

abordada por Peirce em 1898 nas Conferências de Cambridge, tendo em vista

compreender as relações entre o empírico e o normativo dada a descrição do

inquérito como passagem da dúvida à crença e a diferença entre métodos de fixação

de crença, e a teoria da verdade envolvida fazendo apela à noção de comunidade. Os

esforços de Peirce na construção do seu quadro epistemológico anti-fundacionalista

leva-lo-ão, no princípio do século, à afirmação de uma posição que designa como

Senso Comum Crítico. De algum modo, esta é uma sistematização daquilo que se

vinha a constituir desde as críticas à dúvida cartesiana. De algum modo, a questão

que se põe é: como admitir o instinto e simultaneamente a possibilidade de aumentar

o conhecimento? Como é que o apelo ao instinto não reduz, como parece ser o caso

em Hume, as nossas expectativas cognitivas a uma força cega e incontrolável? Como

é que a ciência é um desenvolvimento do instinto? Fará sentido falar de um

“naturalismo normativo” ou de um “empirismo não nominalista”?

As perplexidades que esta designação pode levantar são reconhecidas e

discutidas pelo próprio Peirce: “Que significado esperam que eu atribua àquela

expressão, uma vez que Filosofia Crítica e Filosofia do Senso Comum, as duas

maneiras rivais e opostas de responder a Hume, se encontram numa guerra

Page 144: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

144

mutuamente destrutiva, e sem pacificação possível.”348

Para os defensores do senso

comum, há crenças não criticáveis contra as quais a investigação esbarra e que têm

por isso que ser admitidas como verdadeiras. Já o filósofo crítico pretende

estabelecer cientificamente primeiros princípios e assim criticar quaisquer crenças,

por mais básicas que sejam.

Para esclarecer a sua expressão, Peirce apresenta uma lista de características

distintivas da sua “estirpe particular de filosofia do senso comum”349

. Em primeiro

lugar, o filósofo do senso comum crítico afirma que não apenas existem proposições

indubitáveis como existem também inferências indubitáveis. Ao abordar este ponto,

convém esclarecer o que entenderá Peirce por indubitável. O seu sentido não será o

cartesiano, uma evidência irresistível e auto-justificatória, uma certeza teórica

intuitiva, ou teríamos que acusar Peirce de inconsistência. Antes indubitável terá que

ter o sentido anunciado na crítica à dúvida cartesiana, na descrição do inquérito como

passagem da dúvida à crença e na distinção entre teoria e prática. Assim, terá que

significar aquela condição das crenças que não podem ser postas em causa, não por

qualquer fundamento absolutamente estabelecido, mas porque estão isentas daquela

dúvida actual, genuína, que não é exercida voluntariamente mas decorre de

condições, biológicas e sociais, que põem efectivamente em causa as expectativas de

um dado organismo ou indivíduo, que consiste na perturbação de um hábito. Estas

crenças indubitáveis compõem o conteúdo do chamado senso-comum, definido em

C.P. 1.129 como “aquelas ideias e crenças que a situação do homem absolutamente

348

“What meaning would you have me attach to that phrase, seeing that Critical Philosophy

and the Philosophy of Common Sense, the two rival and opposed ways of answering Hume,

are at internecine war, impacifiable.” (C.P.5.505)

Page 145: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

145

lhe impõe.” São estas “crenças originárias” que funcionam como “premissas últimas”

dos nossos raciocínios. Mas este carácter “último” não é contraditório com o anti-

intuicionismo persistente de Peirce: como foi já dito, não têm carácter de certeza

absoluta e nem sequer a sua origem é atribuída a qualquer tipo de apriorismo : “todos

os argumentos a priori acerca de factos positivos são lixo”350

todos os indubitáveis

são empíricos. Assim, em C.P. 1.654, Peirce atribui ao senso-comum uma origem na

experiência tradicional da humanidade. Em síntese, indubitável é aquilo de que não

podemos duvidar num dado momento e não aquilo que é intrinsecamente

indubitável, ou ainda, “as proposições e inferências que o Senso Comum Crítico

afirma serem originais, no sentido em que não podemos ir além delas, são

indubitáveis no sentido de serem acríticas.”351

E é aquilo, então, com que os nossos

inquéritos têm que começar.

Existem para Peirce duas grandes classes de proposições indubitáveis352

. Os

“juízos perceptivos” ou “factos perceptivos”353

que, em C.P. 5.515-16 são descritos

como estando completamente for a do nosso controlo e como sendo as primeiras

premissas em todos os nossos raciocínios”: “a crítica lógica não pode ir além dos

factos perceptivos, que são os primeiros juízos que fazemos no que respeita aos

perceptos.”354

. O carácter indubitável destes consiste no seguinte: “Entendo por juízo

349

C.P.5.505. 350

C.P. 2.137. 351

C.P. 5.440. 352

cf. C.P. 5.442. 353

Cf. a teoria da percepção apresentada em C.P. 7.615-636, especialmente C.P. 7.626 para

a diferença entre “percept” e “perceptual judgement”. 354

C.P. 7.198. Isto não é nenhuma concessão ao empirismo de Hume, para o qual a origem

do conhecimento está nas impressões dos sentidos. Trata-se de juízos e não de impressões,

contêm generalidade, e não são intuições, têm um carácter abdutivo.

Page 146: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

146

perceptual um juízo que me é absolutamente imposto e isto através de um processo

que eu sou completamente incapaz de controlar e consequentemente incapaz de

criticar. Nem posso pretender certeza absoluta a respeito de qualquer questão de

facto.”355

O outro tipo de crenças indubitáveis ou acríticas são propriamente as do

senso comum, crenças que se impõem não a partir da experiência da percepção mas

da experiência social356

. A primeira característica do senso comum crítico afirma

que não apenas há proposições indubitáveis, mas também inferências indubitáveis ou

acríticas. Trata-se de “casos nos quais estamos conscientes de que uma crença foi

determinada por uma outra crença dada, mas não estamos conscientes de que isto

procede de acordo com qualquer princípio geral.”357

O que as distingue do raciocínio

propriamente dito, aquele susceptível de auto-controlo deliberado ou crítica, é esta

inconsciência do seu “princípio condutor”: também aqui, trata-se de não ser capaz de

recusar uma dada conclusão a partir de uma dada premissa, e a indubitabilidade

decorre deste constrangimento.

A segunda característica do Senso Comum Crítico é a afirmação de que seria

possível fazer uma lista das crenças originárias, dos indubitáveis sociais, e que essa

lista teria validade universal. Esta universalidade das proposições indubitáveis seria

compatível com a sua evolução358

, em consistência, aliás, com a sua origem na

experiência e não em qualquer tipo de apriorismo.

355

“All that I can mean by a perceptual judgement is a judgement absolutely forced upon my

acceptance, and that by a process which I am utterly unable to control and consequently am

unable to criticize. Nor can I pretend to absolute certainty about any matter of fact.” (C.P.

5.157). 356

Exs.: incesto( C.P. 5.445); ordem da natureza( C.P. 5.516). 357

C.P: 5.441. 358

cf. C.P. 5.444.

Page 147: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

147

Em terceiro lugar, as crenças originárias são da natureza geral dos instintos.

Estes podem ser modificados num espaço de tempo muito curto, isto é, são passíveis

de correcção, o seu carácter indubitável não é o equivalente de uma programação

rígida e inflexível, como um mecanismo. Ou, “as crenças originais só se mantêm

indubitáveis na sua aplicação aos assuntos que se assemelham aos de um modo de

vida primitivo.”359

A dúvida genuína que pode levantar-se a uma proposição

indubitável instintiva “surge com a surpresa, que supõe alguma crença prévia, e as

surpresas surgem com um novo ambiente.”360

A história humana é uma história de

evolução, de gradual modificação de ambiente conducente a surpresas e dúvidas : a

ciência moderna, por exemplo, “colocou-nos num outro mundo; quase tanto como se

tivesse transportado a nossa raça para outro planeta.”361

Ela é um exemplo do

desenvolvimento de graus de auto-controlo que põe em causa a autoridade do instinto

: “Por outras palavras, nós ultrapassamos a aplicabilidade do instinto – não

completamente, não de qualquer maneira, mas nas nossas actividades mais

elevadas.”362

A indubitabilidade tem limites e, consequentemente, é limitada também

a jurisdição das crenças originárias.

Mas, segundo Peirce, a característica mais distintiva do seu Senso Comum

Crítico é o facto de serem os indubutáveis acríticos invariavelmente vagos. De algum

modo, esta é até uma condição da sua indubitabilidade, mas também da sua

corrigibilidade, dado que o resultado de tentar tornar precisa uma crença vaga

359

C.P.5.445. 360

C.P.5.512. 361

C.P. 5.513. 362

C.P. 5.511.

Page 148: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

148

deduzindo dela um conjunto de consequências363

, pode ser torná-la duvidosa364

.

Ainda assim, há um certo resíduo vago não afectado (C.P. 5.507), não porque não se

tenha desenvolvido um esforço suficiente para determinar o resíduo, mas porque é

intrinsecamente vago, como é o caso, por exemplo, da nossa crença numa ordem na

natureza. O carácter vago de todas as crenças verdadeiramente indubitáveis é tratado

do ponto de vista da lógica e da semiótica, e o vago é definido como “aquilo a que o

princípio da contradição não se aplica. Pois nem é falso que um animal (num sentido

vago) é masculino, nem que um animal é feminino.”365

Este carácter vago pertence

por excelência à ordem da linguagem e da comunicação através de signos: “Nenhuma

comunicação de uma pessoa com outra pode ser inteiramente definida, i,e., não

vaga.”366

Na ordem das representações e da sua comunicação, na ordem da semiótica

que cobre afinal todo o campo da nossa actividade mental e social, “a precisão

absoluta é impossível. Muitas outras coisas devem ser vagas, porque nenhuma

interpretação particular de palavras se baseia exactamente na mesma experiência da

de uma outra pessoa.”367

E o que acontece nas nossas comunicações com outros

acontece igualmente nas nossas comunicações connosco próprios: “Nunca devemos

esquecer que o nosso pensamento decorre como um diálogo.”368

A este carácter vago

da linguagem acorre o suplemento do senso-comum dos seus utilizadores, aquele que

363

Aplicando-lhe a máxima pragmática. 364

cf. C.P. 5.507 365

C.P.5.505. 366

C.P. 5.506. 367

C.P. 5.506. 368

C.P. 5.506.

Page 149: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

149

fala e aquele que interpreta, que permite um entendimento suficiente entre ambos,

apesar do carácter vago dos signos utilizados369

.

A quinta característica do Senso Comum Crítico consiste no facto de esta

posição atribuir um grande valor à dúvida genuína370

. Esta elevada estima pela

dúvida admite a invenção de “um plano para atingir a dúvida, elabora-o em detalhe e

depois põe o plano em prática, embora isto possa envolver um mês inteiro de

trabalho duro, e só depois de ter passado por este exame é que pronunciará uma

crença como indubitável.”371

A dúvida funciona, assim, como um teste feito às

proposições indubitáveis, mas está longe da atitude cartesiana, em Peirce sempre

associada à dúvida de papel. Por um lado porque o filósofo do senso comum crítico

admite a dubitabilidade de uma proposição indubitável, e que isso pode ser assim

com qualquer uma das suas crenças. Mas ele não pode de facto admitir que isso seja

assim com todas elas. Por outro lado porque, mais uma vez, o carácter indubitável de

uma proposição nada tem a ver com um certeza absoluta ou fundamento teórico,

nãoé uma questão de prova demonstrativa: “a negação enfática de que a crença

indubitável seja inferencial ou seja ‘aceite’. Simplesmente mantém-se inabalável

como sempre foi.”372

Tal como não duvidamos à nossa vontade, também não

acreditamos à nossa vontade. A dúvida é, de qualquer modo, um instrumento

precioso na investigação, uma expressão do “falibilismo contrito” que deve

369

cf. 5.446 n1: uma antecipação do princípio da caridade. 370

C.P. 5.451. 371

C.P. 5.451. 372

C.P. 5.514.

Page 150: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

150

caracterizar o homem de ciência, e “o perigo científico não está em acreditar muito

pouco mas em acreditar demasiado.”373

Finalmente, o Senso Comum Crítico não é apenas senso comum mas justifica a

sua pretensão ao criticismo porque “sujeita quatro opiniões a uma crítica rigorosa: a

sua própria; a da escola escocesa; a daqueles que baseiam a sua lógica na metafísica

ou na psicologia ou em alguma outra ciência especial, a menos sustentável de todas

as opiniões filosóficas que têm alguma visibilidade; e a de Kant(...)”374

e porque não é

senão uma modificação do kantismo, ou kantismo sem a coisa em si incognoscível.

Desde logo, contra o filósofo crítico, o filósofo do senso comum crítico é aquele que

duvida não quando decide fazê-lo segundo o princípio geral de que nenhuma crença

ficará por criticar, mas inicia a sua investigação “se acontece que ele de facto duvida

da proposição.” (C.P. 5.524). Reconhece, enfim, que a dúvida não é uma capricho da

vontade, não podendo assim atingir radical e sistematicamente o estado cognitivo

total de um indivíduo ou espécie, e que “uma proposição da qual pudéssemos duvidar

à nossa vontade certamente não é uma crença. Pois a crença, enquanto dura, é um

hábito forte, e como tal, força o homem a acreditar até que alguma surpresa

interrompa o hábito. A ruptura de uma crença só pode ser devida a uma experiência

nova, seja externa ou interna. Agora, experiência que possamos convocar quando nos

apetece não seria experiência.”375

Esta concepção da experiência é aquilo que,

373

C.P. 5.517.

374

C.P.5.452. 375

“(…) a proposition that could be doubted at will is certainly not believed. For belief,

while it lasts, is a strong habit, and as such, forces the man to believe until some surprise

breaks up the habit. The breaking of a belief can only be due to some novel experience,

Page 151: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

151

finalmente, marca a distância de Peirce em relação ao transcendentalismo kantiano,

que postula estruturas universais e necessárias inscritas de forma incondicionada, a

priori, no sujeito de conhecimento376

. A actividade interpretativa do sujeito na sua

relação com a experiência é antes, como diz Faerna, “el producto biológico, histórico

y cultural de una continuada relación práctica com el entorno”377

, o que a faz estar

inscrita tanto no mundo natural como no mundo social e público das comunidades

empíricas, este por sua vez o resultado da evolução própria da espécie humana. O

Senso-Comum Crítico de Peirce permite, assim, enraizar a noção epistemológica de

comunidade no percurso evolutivo da espécie, sem comprometer o seu carácter

normativo, a sua função reguladora: ela é, afinal, um elemento indispensável para a

actividade lógica cujas regras e exigências manifestam um estádio da evolução

humana. Em Peirce, a natureza produziu algo que não é já completamente natural.

whether external or internal. Now experience which could be summoned up at pleasure

would not be experience.” (C.P. 5.524) 376

O que permite evitar uma interpretação demasiado kantiana de Peirce tal como é feita por

Apel e Habermas.Cf. Apel, K.-O., Charles S. Peirce: From Pragmatism to Pragmaticism,

Amherst, University of Massachusetts Press, 1981. E também Habermas,J., Post-

Metaphysical Thinking, Cambridge, Polity Press, 1995.

377

Faerna, A.M., Introducción a la Teoria Pragmatista del Conocimiento, Madrid, Siglo

XXI, 1996, p.89.

Page 152: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

152

CONCLUSÃO

Quando, nos seus artigos de 1868 ( “Questions Concerning certain Faculties

Claimed for Man”; “Some Consequences of Four Incapacities”; “Grounds of Validity

of the Laws of Logic”), Peirce confronta o “espírito do cartesianismo” (C.P. 5.264),

fá-lo para denunciar aquilo que, na tradição filosófica, racionalista como empirista,

constitui um impasse infrutífero e arrasta atrás de si todas as pretensões cognitivas

humanas : o problema do fundamento do conhecimento ou a identificação da tarefa

da filosofia com a descoberta de um ponto de partida seguro e radical a partir do qual

as diversas áreas do saber pudessem ser validadas. O esforço de constituição de uma

filosofia primeira, a priori, fornecendo simultaneamente uma garantia epistémica e

metafísica é afinal o que conduz directa e rapidamente ao cepticismo. Peirce propõe

um quadro de problematização modificado, mostrando que é possível abandonar a

procura da certeza absoluta e do ponto de partida radical sem cair num pessimismo

acerca do conhecimento, nem numa sua redução naturalista, isto é, sem abandonar

conceitos normativos como objectividade, verdade e realidade. Um dos parâmetros

desta modificação é o facto de Peirce ter adoptado um ponto de vista dinâmico acerca

do conhecimento : mais do que um conjunto de resultados, o conhecimento é um

processo de investigação norteado por um ideal, a verdade; é uma actividade humana

temporal e finalizada, capaz de gerar os seus próprios constrangimentos normativos.

Logo, mais do que saber “onde se funda”, aquilo que realmente importa é saber

Page 153: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

153

“como funciona” e “para onde se dirige” o conhecimento. E, mais do que estabelecer

uma hierarquia entre os saberes, a filosofia tutelando as ciências, trata-se de tornar a

filosofia científica, o que equivale a torná-la numa ciência de descoberta, dada uma

visão não positivista da ciência. Curiosamente, as várias descrições da actividade

cientifica que encontramos nos textos de Peirce, aproximam-nos da definição

etimológica e canónica de filosofia como a procura e não a posse do saber, cuja

exigência máxima é a não interrupção.

A alternativa que Peirce propõe ao “fundacionalismo” epistemológico e,

consequentemente, a solução para o impasse entre dogmatismo e cepticismo, é o

falibilismo, que afirma tanto a impossibilidade da certeza absoluta como do

cepticismo total. A recusa de um fundamento não nos empurra necessariamente para

a recusa de todo o nosso conhecimento. O que é recusado é antes a possibilidade de

um ponto de vista absoluto sobre a totalidade do nosso conhecimento que permita ou

caucioná-lo totalmente ou rejeitá-lo completamente. Estamos sempre num qualquer

estado cognitivo que pode ser parcialmente revisto e corrigido, mas não

totalmente378

. Nem os cépticos nem os dogmáticos têm um ponto de vista e um modo

de acesso privilegiado que lhes permitam justificar as suas pretensões. Não podemos

“abandonar o barco”, abdicar de todo o conhecimento de que dispomos num dado

momento, fazer de conta que não temos as crenças que temos, e qualquer pretensão

contrária arrisca-se a ser uma auto-ilusão acrítica. O pragmatismo surge neste quadro

como “um método ao serviço da investigação filosófica”379

– “ um método de

378

Esta é uma posição que, na epistemologia contemporânea, recebe o nome de holismo (cf.

Metáfora do barco de Neurath retomada por Quine e Davidson). 379

C.P. 5.12.

Page 154: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

154

relflexão que tem como finalidade tornar as nossas ideias claras”380

através da

aplicação da máxima pragmática.

O optimismo falibilista de Peirce envolve alguns aspectos que continuam

pertinentes na epistemologia contemporânea381

. Um deles é a noção de comunidade,

envolvida nas suas teorias da verdade e da realidade. Os artigos acima referidos

fazem entrar a questão e a noção da comunidade de várias maneiras, atestando do

carácter complexo dela ou das suas várias dimensões. A teoria do conhecimento de

Peirce enuncia-se em “quatro incapacidades” - 1) não temos poder de introspecção;

2) não temos poder de intuição; 3) não temos poder de pensar sem signos; 4) não

temos concepção do absolutamente incognoscível - que pressupõem uma dimensão

“comunitária” ao minarem o individualismo cartesiano. Nem a subjectividade é auto-

evidente e imediata mas tem um carácter hipotético, inferido a partir de uma

experiência de privação onde o testemunho dos outros é decisivo (uma teoria

“genética” do eu); nem o conhecimento se funda num contacto imediato entre um

sujeito e o mundo mas tem uma estrutura inferencial; essa estrutura inferencial

consiste no carácter semiótico da actividade mental, e a linguagem exige

intersubjectividade; é auto-contraditória uma concepção de algo absolutamente

incognoscível, como um esclarecimento da noção de real poderá mostrar. Esta serve

para distinguir cognições verdadeiras de ilusões, e a ilusão é o puramente privado, o

eu isolado é o lugar do erro. O real envolve, assim, a noção de um processo de

investigação que é público, onde um eu se confronta com testemunhos de outros, isto

380

C.P. 5.13n.

Page 155: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

155

é, envolve a noção de uma comunidade de investigadores, e define-se como o objecto

da crença na qual o inquérito finalmente resultaria. A avaliação das crenças deixa de

ser um sentimento subjectivo de certeza e passa a ser a sua resistência a uma

exposição pública. A dualidade da noção e função da comunidade apresenta-se do

seguinte modo : ela intervém actualmente, enquanto explica até a constituição de

uma identidade pessoal, e enquanto contexto de utilização de signos, o que abre a

possibilidade de uma sua interpretação em termos de comunidade real, existente,

empírica; e surge enquanto conceito regulador: indefinida, ilimitada, lugar da

opinião verdadeira sobre o real.

Nos textos de 1877/8 ( “The Fixation of Belief” e “How to Make Our Ideas

Clear”) Peirce apresenta uma descrição do inquérito em tom “psicologista” e

“biologista” , como passagem da dúvida à crença. (C.P. 5.374). O conhecimento tem

como finalidade atingir uma crença estável, isto é, uma crença que resista a

perturbações geradoras de um estado irritante de dúvida. Peirce discute então, dada

esta definição do inquérito ou da actividade cognitiva, qual poderá ser o melhor

método para atingir uma crença estável, e opta pelo método da ciência. Mais uma

vez, a argumentação fará intervir a dimensão comunitária do conhecimento de

formas variadas, mas reforçando o duplo aspecto fundamental já identificado nos

textos anteriores : empírico e normativo. Uma apreciação dos métodos descritos por

Peirce permitirá verificar que a comunidade empírica, tal como o indivíduo isolado,

são mais “obstáculos epistemológicos” do que “condições de possibilidade” do

381

E até na recusa contemporânea da epistemologia, como é o caso de Rorty ou das

posições irracionalistas como as que se podem retirar de Kuhn ou as que são manifestas em

Feyerabend.

Page 156: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

156

conhecimento porque não fornecem estabilidade : no método da tenacidade é o

indivíduo que “perde” no confronto com a comunidade; no método da autoridade é a

comunidade que falha no confronto com divergências por parte de indivíduos e com

outras comunidades; só o método científico o consegue, porque é normativo, isto é,

porque sujeita os seus produtos a uma avaliação em função de um ideal que é a

verdade e não simplesmente a eficácia ou a satisfação.A verdade, tendo como objecto

a realidade, não é determinada nem pelo indivíduo nem pela comunidade mas por

uma “permanência externa”, o que permite a esperança de atingir crenças estáveis no

longo prazo, isto é, a aproximação ao limite ideal da investigação.

A questão normativa em Peirce é tratada em termos das relações entre

Lógica e Ética: a caracterização do cientista envolve virtudes, auto-controle, dever-

ser. O carácter ideal da comunidade pode querer dizer não que irá, não se sabe bem

quando, existir uma comunidade de posse da verdade e que obtém finalmente um

consenso - assim como a verdade não é necessariamente um momento identificável,

“fixável”, da investigação, coincidindo com um corpo de conhecimentos

perfeitamente determinado -, mas que a actividade de conhecimento, ainda quando

levada a cabo individualmente, não depende de critérios individuais de certeza mas

exige comunicabilidade para verificação : a comunidade indefinida identificar-se-ia

com o próprio processo de investigação ou pelo menos com as exigências deste - de

algum modo isto pode ser o que é expresso por uma alternativa à expressão

“comunidade” que é “todos aqueles que investigam”382

e se nos lembrarmos que

382

C.P. 5.407.

Page 157: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

157

mesmo a actividade mental individual tem um carácter não totalmente privativo383

e

que a personalidade não é algo completamente individual - “Uma pessoa não é

absolutamente um indivíduo.”384

Assim, a comunidade de todos os que investigam

não é nem actual nem diferida mas ideal, uma ideia reguladora. O estatuto deste ideal

regulador é, por sua vez, sentimental: exprime uma esperança alegre385

de

aproximação convergente à verdade e uma participação no aumento da razoabilidade

concreta. Mas que haja esta relação entre o normativo e o sentimental mostra em que

medida Peirce se afasta de uma tradição sentimentalista como a de Hume. Afinal, a

mesma base que serviu a este para pôr em causa a possibilidade do conhecimento, a

saber, as relações entre razão e sentimento, serve a Peirce para justificar um

optimismo epistemológico, sendo que a interpretação cognitiva da evolução humana

marca toda a diferença entre os dois autores.

A noção de comunidade irá desembocar, no âmbito da classificação

arquitectónica das ciências, na questão das ciências normativas, Estética, Ética e

Lógica. É uma noção que exprime afinal o carácter teleológico do pensamento como

um caso especial de conduta deliberada, isto é, “criticada”, de modo a adequar-se a

um ideal: “a finalidade última do pensamento é o a replicação indefinida de auto-

disciplina sobre auto-disciplina”386

, o que envolve a superação de um ponto de vista

individual, da certeza puramente subjectiva, e a assunção do carácter falível,

aproximativo, comunitário, público, da investigação.

383

Cf. C.P.4.6 - pensamento como diálogo. 384

C.P. 5.421. 385

C.P: 5.407. 386

C.P. 5.403n.

Page 158: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

158

BIBLIOGRAFIA

Primária

The Collected Papers of C.S. Peirce, vols. 1-6, Harsthorne, C. e Weiss, P., eds.,

Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1931-1935, vols. 7-8, Burks, A., ed.,

Cambridge Mass, Harvard University Press, 1958.

Writings of Charles S. Peirce, vols.1,2,4 e 5, Kloesel C.J.W. ed., Bloomington and

Indianapolis, Indiana University Press, vol.1-1982, vol.2 – 1984, vol.4 –1986, vol.5-

1993.

Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things, Ketner, K.L., ed., Cambridge,

Mass., Harvard University Presss, 1992.

Peirce, Textes Anti-Cartésiens, trad. e int. Joseph Chenu, Paris, Aubier, 1984.

Peirce, C.S., El Hombre, Un Signo, trad. e int. José Vericat, Barcelona, Editorial

Crítica, 1988.

Peirce, C.S., Selected Philosophical Writings, vol.1, Houser,N. e Kloesel, C. ed.,

Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1992.

Page 159: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

159

Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things, Ketner, K,L, ed., Cambridge, Mass.,

Harvard University Press, 1992.

Peirce, C.S., Antologia Filosófica, Machuco, A. Ed., Lisboa, INCM, 1998.

Secundária

a) artigos

Balat, M., ‘L’actualité du Representamen chez Peirce’ in Travaux du Centre de

Recherches Semiologiques, Neuchâtel, CdRS, 1993, pp.173-187.

Brakel, J. Van “Peirce’s Limited Belief in Chance” in Moore, E.C. e Robin, R.S.

eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994,

pp.75-86.

Browning, D., “The Limits of the Practical in Peirce’s View of Philosophical

Inquiry” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to

Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.15-29.

Page 160: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

160

Capek, M., “C.S.Peirce’s Different Approaches to the Problem of Time” in Moore,

E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /

Providence, Berg, 1994, pp.67-74.

Carrilho, M.M., “Inovação, Abdução e Problema (Peirce e a problemática da

descoberta)” in G.I.F.E., Filosofia e Epistemologia IV, Lisboa, A Regra do Jogo,

1982, pp.165-178.

Chauviré, C., ‘La Fin du Mythe de l’intériorité ?’ in Critique, nº 455, Paris, éd.

Minuit, 1985, pp.402-405.

‘Le “Pragmatic-Turn” de C.S. Peirce’ in Critique, nº449, Paris, éd. Minuit,

1984, pp.797-813.

Clément, F., ‘Du Bon Usage de la Psychologie en Philosophie’, in Critique, nº599,

Paris, éd. Minuit, 1997, pp.

Cometti, J.-P., “Le Pragmatisme : de Peirce à Rorty” in Meyer, M., ed., La

Philosophie Anglo-Saxonne, Paris, PUF, 1994, pp.387-492.

Crombie, E.J., “Peirce on our Knowledge of Mind : a Neglected Third Approach” in

Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell,

1980, pp. 77-85.

Page 161: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

161

Deledalle, G., ‘Charles S. Peirce. Les Ruptures épistémologiques et les Nouveaux

Paradigmes’ in Travaux du Centre de Recherches Semiologiques, Neuchâtel, CdRS,

1993, pp.51-66.

Dougherty, C.J., “C.S. Peirce´s Critique of Psychologism” in Caws, P., ed., Two

Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.86-93.

Everaert-Desmedt, N., ‘La Pensée de la Ressemblance : l’oeuvre de Magritte, à la

lumière de Peirce’ in Travaux du Centre de Recherches Semiologiques, Neuchâtel,

CdRS, 1993, pp. 85-151.

Finkelstein, D., “The First Flash of the Big Bang: The Evolution of Evolution” in

Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /

Providence, Berg, 1994, pp.99-112.

Gasser, J., ‘Peirce le Logicien’, in Travaux du Centre de Recherches Semiologiques,

Neuchâtel, CdRS, 1993, pp.67-83.

Goyard-Fabre, S., “La Philosophie Morale et Politique : entre le Contractualisme et

l’Utilitarisme” in Meyer, M., ed., La Philosophie Anglo-Saxonne, Paris, PUF, 1994,

pp.35-164.

Page 162: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

162

Hanson, K. “Some Peircean Puzzles about the Self” in Moore, E.C. e Robin, R.S.

eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg,

1994,pp.237-246.

Heinzmann, G., ‘Inhaltslogik et theorematic reasoning’ in Travaux du Centre de

Recherches Semiologiques, Neuchâtel, CdRS, 1993, pp.35-49.

Jarka, H., “Toward a Renewed List : Peirce, Kant and A Priori Categories Today” in

Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /

Providence, Berg, 1994, pp.221-233.

Kolenda, K., “Firstness and Contingency” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From

Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.199-207.

Kruse, F.E., “Is Cosmic Evolution Semiosis?” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds.,

From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.87-

98.

Kuntz, P.G., “Doing Something for the Categories : The Cable of Categoreal

Methods and the Resulting Tree of Categories” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds.,

From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.177-

198.

Page 163: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

163

Machuco, A., “Continuidade, Indução e Arquitectónica em Charles Peirce” in

Análise nº7, Lisboa, Edições Salamandra, 1987.

Marques, A., “Categorias e Relação na Filosofia Primeira de Peirce” in G.I.F.E.,

Filosofia e Epistemologia IV, Lisboa, A Regra do Jogo, 1982, pp.83-102.

Masani, P.R., “Norbert Wiener : The Continuation of the Tradition of Leibniz, Vico

and Peirce” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to

Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.143-173.

Michon, C., “Vous reprendrez bien un peu de métaphysique ?” in Critique , Avril

1997, nº599, Paris, ed. Minuit, 1997, pp. 247-272.

Migotti, M., “Reconciling Realism and Pragmatism” in Moore, E.C. e Robin, R.S.

eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994,

pp.45-54.

Nagl, L., “The Ambivalent Status of Reality in K.O. Apel’s ‘Transcendental-

Pragmatic’ Reconstruction of Peirce’s Semiotic” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds.,

From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.55-

63.

Page 164: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

164

Reck, A.J., “Peirce’s Conception of Philosophy and its Place within His

Classification of the Sciences” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and

Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.115-131.

Robertson, J.S., “The Universal Peircean Categories in the English Inflectional

Morphemes -ing, -ed and -s” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and

Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.209-220.

Robin, R.S., “Metaphysical Reflections on Peirce on Chess” in Moore, E.C. e Robin,

R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg,

1994, pp.247-260.

Rosenthal, S.B., “Charles Peirce : Scientific Method and Worldly Pluralism” in

Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /

Providence, Berg, 1994, pp.133-142.

Réthoré, J., ‘Les Parties du Discours et la Catégorie de l’Object’ in Travaux du

Centre de Recherches Semiologiques, Neuchâtel, CdRS, 1993, pp.153-172.

Thayer, H.S., “Truth, Representation and the Real” in Moore, E.C. e Robin, R.S.

eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994,

pp.31-44.

Page 165: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

165

“Peirce on Truth” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in

America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.63-76.

Tiercelin C., ‘Un Pragmatisme Conséquent ?’ , in Critique, nº567-568, Paris, éd.

Minuit, 1994, pp.642-660.

’La Conception Peircienne de Rationalité Normative’ in Travaux du

Centre de Recherches Semiologiques, Neuchâtel, CdRS, 1993, pp.1-33.

b) obras

AAVV, Cruzeiro Semiótico, Janeiro de 1988., Porto, Imprensa Portuguesa, 1988.

AAVV, The Monist, vol.65 nº2,april 1982,

AAVV, Travaux du Centre de Recherches Semiologiques, Neuchâtel, CdRS, 1993.

Almeder, R.,The Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980.

Page 166: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

166

Apel, K.-O., Charles S. Peirce: From Pragmatism to Pragmaticism, Amherst,

University of Massachusetts Press, 1981.

Towards a Transformation of Philosophy, London, Routledge & Keegan

Paul Ltd., 1980.

Teoría de la Verdad y Ética del Discurso, Barcelona, Paidós, 1995.

Anderson, D., Strands of System, Indiana, Purdue University Press, 1995.

Arens, E., The Logic of Pragmatic Thinking - From Peirce to Habermas, New

Jersey, Humanities Press, 1994.

Ayer, A.J., The Origins of Pragmatism, London, Macmillan, 1968.

Blackburn, S., Ruling Passions, Oxford, Clarendon Press, 1998.

Bernstein, R.J., Beyond Objectivism and Relativism, Philadelphia, University of

Pennsylvania Press, 1983.

Brent, J., Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University Press,

1993.

Buchler, J., Charles Peirce’s Empiricism, New York, Octagon Books, 1966.

Page 167: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

167

Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell,

1980.

Chauviré, C., Peirce et la Signification, Paris, PUF, 1995.

Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce - Philosopher, Semiotician and

Ecstatic Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers, inc., 1993.

Dancy, J. E Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1992.

Davis, W.H., Peirce’s Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972.

Deledalle, G., La Philosophie Peut-elle Être Americaine ?, Paris, J. Grancher, 1995.

Théorie et Pratique du signe: Introduction à la Sémiotique de Charles

S. Peirce, Paris, Payot, 1979.

Leer a Peirce Hoy, Barcelona, Gedisa, 1996.

Diggins, J.P. , The Promise of Pragmatism, Chicago and London, The University of

Chicago Press, 1994.

Earman, J., (ed.), Inference, Explanation and Other Frustrations - Essays in the

Philosophy of Science, Berkeley, California University Press, 1992.

Page 168: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

168

Eco, U., Os Limites da Interpretação, Lisboa, Difel, 1992.

Eco, U., e Sebeok, T.A., eds., O Signo de Três, São Paulo, Editora Perspectiva, 1983.

Esposito, J.L., Evolutionary Metaphysics, Athens Ohio, Ohio University Press, 1980.

Everaert-Desmedt, N., Le processus Interprétatif - Introduction à la sémiotique de

Ch. S. Peirce, Liége, Pierre Mardaga éditeur, 1990.

Faerna, A.M., Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, Madrid, Siglo

XXI de Espanã Editores, S.A., 1996.

Fann, K.T., Peirce’s Theory of Abduction, The Hague, Martinus Nijhoff, 1970.

Fisch,M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,

1986.

Fumagalli, A., Il Reale nel Linguaggio, Milão, Pub. Universitá Cattolica, 1995.

Gallie, W.B., Peirce and Pragmatism, New York, Dover Publications, 1952.

G.I.F.E., Filosofia e Epistemologia - II, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979.

Page 169: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

169

Grayling, A.C., An Introduction to Philosophical Logic, London, Duckworth, 1990.

Habermas,J., Post-Metaphysical Thinking, Cambridge, Polity Press, 1995.

Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985.

Scepticism, London, Rouledge, 1990.

Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985.

Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985.

Essays – Moral, Political and Literary, Indianapolis, Liberty Fund, 1985.

James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York, 1995.

Kant, I., Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

Crítica da Razão Prática, Lisboa, Edições 70, 1989.

Antropologie du Point de Vue Pragmatique, Paris, Flammarion, 1993.

Larmore, C., The Morals of Modernity, Cambridge, Cambridge University Press,

1996.

MacIntyre, A., After Virtue, London, Duckworth, 1985.

Mackie, J.L., Hume’s Moral Theory, London, Routledge, 1980.

Page 170: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

170

Meyer, M., ed., La philosophie Anglo-Saxonne, Paris, PUF, 1994.

Moore, E.C., e Robin, R.S., eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford,

Berg, 1994.

Mounce, H.O., The Two Pragmatisms, London, Routledge, 1997.

Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett,

1993.

Murphy, J., O Pragmatismo - de Peirce a Davidson, Porto, ed. Asa, 1993.

Nozick, R., The Nature of Rationality, Princeton, New Jersey, Princeton University

Press, 1993.

Prasad, I., Philosophy and Common Sense - A study in the Philosophy of C.S. Peirce,

New Delhi, S.Chand & Company, 1983.

Proni, G., Introduzione a Peirce, Milano, Gruppo Editoriale Fabbri, 1990.

Putnam, H., Le Réalisme à Visage Humain,Paris, éditions du Seuil, 1994.

La Herencia del Pragmatismo, Barcelona, Paidós, 1997.

Page 171: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

171

El Pragmatismo, Barcelona, Gedisa, 1999.

Quine, W.V., La Poursuite de la Verité, Paris, Éditions du Seuil, 1993.

Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame

Press, 1987.

Pluralism, Oxford, Clarendon Press, 1993.

Rorty, R., A Filosofia e o Espelho da Natureza, Lisboa, D.Quixote, 19

Conséquences du Pragmatisme, Paris, Éditions du Seuil, 1993.

Rosenthal, S., Charles Peirce’s Pragmatic Pluralism, New York, State University of

New York Press, 1994.

Schiller, J.C.F., Escritos Sobre Estética, ed. Por J.M.Navarro Cordón, Madrid,

Tecnos, 1990.

Sebeok, T., Semiotics in the United States, Bloomington and Indianapolis, Indiana

University Press, 1991.

Sheriff, J.K., Charles Peirce’s Guess at the Riddle - Grounds for Human

Significance, Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1994.

Page 172: INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS …

172

Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981.

Skyrms, B., Pragmatics and Empiricism, New Haven and London, Yale University

Press, 1984.

Stroud, B., Hume, London, Routledge, 1977.

Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,

University of Chicago Press, 1953.

Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993.

C.S. Peirce et le Pragmatisme, Paris, PUF, 1993.