IMAGENS FEMININAS NA LITERATURA (CONLID artigo completo).pdf
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IMAGENS FEMININAS NA LITERATURA – UMA ANÁLISE DO PAPEL DA ESPOSA
E DA DONA DE CASA NA POESIA DE ANNE SEXTON
Isabela Christina do Nascimento SOUSA1
ABSTRACT: Literature holds to archetypes and stereotypes and human beings have been represented
through them since the beginning of the time. When it comes to women, the images of wife, mother, sex
object, madwoman, idealized woman, among others, fill texts whichever they are poetry, prose, letters,
biographies or any other genre. These concepts are reflections of images standardized by groups that
many times concern to an excessively simplified idea and hides prejudice. In this paper I intend to show
briefly some of the main images of women in literature, in particular the images of the housewife and
wife, based on the ideas of Mary Anne Ferguson in her book Images of Woman in Literature. We are
going to look through two poems by the American writer Anne Sexton, Housewife and Ghosts both of
them from the book All My Pretty Ones (1962), and throughout their analysis explicate how she
demythologize and rebuilt the traditional idea of marriage and the relationship between the members of a
family.
KEY-WORDS: Woman. Literature. Images.
1. Introdução
Por muito tempo a mulher foi negligenciada em várias áreas da arte e do conhecimento,
inclusive da literatura. Teóricos e críticos se indagaram a cerca da existência de uma tradição
literária feminina propriamente dita e por que os considerados cânones não incluíam mulheres. A
exemplo da sociedade, dentro dos textos literários, prosa ou poesia, a mulher vestiu sempre as
mesmas fantasias, atuou sempre os mesmos papéis, impedindo que tomassem consciência de si e
que pudessem construir seu próprio senso de self. Dona de casa, empregada doméstica, mãe,
esposa e outras representações femininas mostram os ideais que a cultura mistificou como ideais
femininos, fazendo com que uma mulher, quando se desviasse destes, fosse estereotipada com
imagens negativas como as da louca e da bruxa. Discorreremos aqui sobre as principais
representações da mulher dentro do texto literário, examinando as funções dos estereótipos
femininos, assim como as ideologias que se escondem atrás destes sendo ele prosa ou poesia,
dividiremos essas imagens em dois grupos distintos, o primeiro explorando aquelas imagens que
seguem a risca as regras ditadas pela sociedade onde a mulher é passiva, submissa e isolada
dentro do ambiente doméstico, são estas: a mãe, a esposa, a dona-de-casa etc. O segundo grupo
1. Graduada em licenciatura em letras – língua inglesa e suas respectivas literaturas pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
trata-se daquelas que não aceitam, ou que por algum motivo externo não se enquadram nos
padrões estipulados culturalmente do que seria uma mulher, são estas: a bruxa, a louca, a
empregada doméstica, entre outras. Partiremos então para as análises de dois poemas da escritora
norte-americana Anne Sexton, Housewife e Ghots¸ que tratam da dona-de-casa/esposa e sua
relação com o mundo doméstico e familiar.
2. Imagens Femininas
2.1. Imagens tradicionais
As principais representações femininas encontradas são aquelas de caráter mais
tradicional como a mãe, a esposa e a dona de casa. A mulher está tão ligada a estes papéis que a
palavra “mulher” é, na língua portuguesa, sinônimo de esposa, assim como no inglês e em muitas
outras línguas similares, como aponta Ferguson (1991, p. 19) o antigo significado da palavra wife
(esposa) era mulher, ou seja, um termo geral que denominava alguém do sexo feminino. Apesar
do termo “feminino” ser associado a termos pejorativos como fraqueza, passividade e
dependência, os traços característicos femininos são, não só esperados, mas admirados na grande
maioria das esposas de toda a história (FERGUSON, 1991, p. 20), as mulheres que ficam de fora
deste padrão são compreendidas de maneira negativa. “Mulheres são admiradas não por suas
próprias características individuais, mas por aquelas apropriadas para o papel de esposa.2”
(FERGUSON, 1991, p.20)
A imagem da mãe carrega consigo o dever de cuidar do marido e dos filhos. Depois da
Segunda Guerra Mundial o mundo não mais precisava de mulheres trabalhando em fábricas, logo
educadores, o governo, a mídia em sua maior parte quase como com uma lavagem cerebral
coletiva passaram a desencorajar a busca de emprego fora do espaço doméstico pelas mulheres,
“Um resultado desse foco intenso no papel das mulheres como instigadoras da moral em homens
e crianças, e como guardiãs da virtude nacional, era a pressão nas mulheres para não trair tudo
isso procurando emprego fora de casa”3 (GILL, 2008, p. 27). A figura da mãe está fortemente
ligada à mitologia:
As características da mãe podem ser localizadas na criação de mitos que existem
em todas as culturas para explicar nossa presença no mundo (nosso início) assim
como nosso conhecimento acerca da morte (nosso fim). As imagens de bem e
mal incorporadas na Grande Mãe, uma imagem muito difundida, refletem não só
2. Women are admired not for their own individual characteristics but for those appropriate to the role of wife.
3. A corollary of this intense focus on the role of women as instigators of morality in children and men, and as
guardians of national virtue, was pressure on women not to betray all this by seeking employment outside
home.
nosso amor pela doadora de vida, mas também nosso medo da inescapável morte
que o presente traz com ele4. (FERGUSON, 1991, p. 93)
Coelho (1999, p. 125) fala em consciência do feminino em dimensões míticas, apontando
na obra A Madona, de Natália Correia, um imaginário feminino que tenta redescobrir o mundo
ctônico da Grande Mãe, o mundo uniforme e sombrio das profundezas da terra, oposto ao o do
Pai, mundo apolíneo, superior, ordenado e nítido em suas formas de existência e poder. Apesar de
toda expressão carregada por essa figura, Wilshire (1997, p. 118) aponta que todo o poder da
Grande Mãe era derivado, não da autoridade adquirida sobre os outros, e sim da natureza.
Barreira (1985, p. 525) em seu estudo sobre a imagem da mulher na literatura portuguesa,
identifica a mãe como um ser incólume ao fluxo da sensualidade e da paixão, residindo em seu
interior a plena obscuridade da deliberada ausência do desejo.
A dona de casa pode vir usando várias máscaras, entre elas as mais comuns “anjo do lar”
ou “fada do lar”, que são dois termos que possuem a mesma conotação, ser prisioneiro dos
afazeres domésticos. Barreira (1985, p. 522 e 524) caracteriza a “fada do lar” como mulher-
objeto, plenitude de vazios e de ausências, a mulher a qual não cabe o sentido opinativo, a
dúvida, o manuseamento do verbo, dona apenas da submissão e de uma pose discreta. Essa
mulher que desde a infância é condicionada através dos pais e brinquedos a assumir todos os
cuidados dos filhos, marido e casa quase que mecanicamente, tem sua vida reduzida ao mundo
interior de seu lar, lembrando antes uma escrava de que uma fada. O termo dona-de-casa não
condiz com a verdade, já que essa figura raramente pode ser considerada “dona” de sua casa,
quando muitas vezes é a voz masculina que impera no interior do aposento, em inglês o termo é
“housewife”, ou seja, esposa do lar, o que implica uma ligação sagrada entre mulher e casa. Essas
três diferentes representações que a mulher pode assumir na literatura, como espelho social, se
mesclam e se confundem, mas carregam consigo os mesmos traços de alienação.
Outra representação feminina é a da mulher idealizada. Mulheres foram adoradas em
muitas religiões e sistemas políticos, a rainha, a deusa, a santa, são figuras que despertam
sentimentos de amor, respeito e temor, mesmo as que não possuíam postos elevados como uma
rainha ou a imortalidade como Atena, mas que compartilhavam com alguma característica
considerada divina, muitas vezes sendo esta a beleza descomunal. “Durante a maior parte da
história humana, mulheres foram vistas como misteriosas por causa da mestruação e a capacidade
de gerar crianças; elas também eram compreendidas como sobre-humanas se elas fossem
extraordinariamente bonitas” (FERGUSON, 1991, p. 205). Em novelas de cavalaria as mulheres
eram recompensas pelos feitos grandiosos dos cavaleiros, já no romantismo elas eram idealizadas
a ponto de serem consideradas inalcançáveis, quase sempre carregavam os mesmos atributos, a
beleza exuberante e a virgindade. Grande parte dessa exaltação teve início com oculto à Virgem
4. The characteristics of the mother can be traced to the creation myths that exist in all cultures to explain both
our presence in the world (our beginning) and our knowledge of death (our ending). The images of good
and evil embodied in the Great Mother, a very widespread image, reflect not only our love for the giver of
life but also our fear of the inescapable death that the gift brings with it.
Maria, mas já nas mitologias mais antigas elas apareciam em formas de deusas imponentes,
bondosas e/ou impiedosas.
2.2. Imagens transgressoras
Os personagens do sexo feminino que não se enquadram nos ideias pretendidos a elas
pela sociedade patriarcal em que vivem são estereotipadas como loucas, bruxas ou criadas. Nem
sempre a mulher escolhe não seguir o padrão, às vezes algo a impede, por exemplo, quando não
consegue um casamento ou por ser estéril. Mulheres solteiras por muito tempo não foram bem
vistas, até hoje a sociedade mostra certa resistência na aceitação de mulheres que escolhem viver
sem um companheiro do sexo masculino, ou que não tem filhos, seja por não poderem ou
simplesmente por não quererem.
O poder do ideal esposa-mãe e sua não disponibilidade como objeto sexual faz
das mulheres sem homens alvo da ridicularizarão que esconde o medo de que a
liberdade das mulheres possa custar aos homens o que eles acreditam ser
benefício por direito deles como pais, maridos, e amantes. Esse medo cresce
claro, com o conhecimento de que as mulheres agora podem ser livres do
inevitável processo de gravidez que sempre foi o resultado da união
heterossexual; se mais e mais as mulheres deixam de serem forçadas à
dependência, o ideal esposa-mãe está ameaçado5. (FERGUSON, 1991, p. 339)
Depois de certa idade à mulher solteira só resta o papel de doméstica, sem voz, sem vez,
que vive apenas para zelar pelas crianças e pela casa de seu chefe ou de algum parente, já que não
pode estruturar sua própria família. A louca é uma personagem totalmente, ou quase totalmente,
desprovida de razão, insensata. Desde os tempos mais remotos, a mulher era considerada um ser
irracional, passional e selvagem, que precisava do homem para domesticá-la, a louca representa
essa mulher sem o homem domesticador. E por sua vez a mulher estéril não pode cumprir com
sua função biológica primordial, dar a luz. Selden, Widdowson e Brooker (2005, p. 121)
explicam que os principais argumentos utilizados para manter as mulheres em “seu lugar” são
baseados em uma ameaça biológica, e que essa atitude vem de muito tempo atrás como mostra o
provérbio latino “Tota mulier in utero” (Mulheres não são nada a não ser útero).
Uma das figuras mais arquétipas usada para representar a mulher é a da bruxa. Zordan
(2005, p. 331) explica que as feiticeiras foram torturadas e queimadas para sinalizar os perigos de
5. The power of wife-mother ideal and their nonavailability as sex objects makes women without men the
target of ridicule that hides a fear that women’s freedom will cost men what they believe are their rightful
perquisites as fathers, husbands, and lovers. The fear is augmented, of course, by knowledge, that women
can now be free from the inevitable childbearing that had always been the result of heterosexual unions; if
more and more women are not forced into dependency, the wife-mother ideal is threatened.
práticas e saberes à margem da igreja e de outras instituições dominantes na Idade Moderna. A
autora ainda afirma que a bruxa exprime conceitos legados pelo pensamento ocidental ao que se
entende por feminino. A imagem da bruxa foi carregada por muito tempo de sentido negativo,
povoou os contos de fadas como um ser de origens obscuras, quase sempre ligado ao diabo,
outras vezes seduzindo os homens com suas artes das trevas. O apelo dessa imagem foi tão
grande que durante a idade média muitas mulheres acabaram na fogueira sendo acusadas de
bruxaria. “Ambígua, a bruxa pode ser tanto a bela jovem sedutora (ainda sem marido e cheia de
pretendentes) como a horrenda anciã (viúva solitária), aparentada com a morte” (ZORDAN,
2005, p. 332). Heinrich Kramer e James Sprenger escreveram o livro que ganhou o status de
manual de reconhecimento, perseguição e punição de bruxas, The Malleus Maleficarum, também
conhecido como o “Martelo das feiticeiras”.
A bruxa pode ser examinada por outro aspecto, o da mulher independente. Uma mulher
que se rebela contra a ordem estabilizada de uma sociedade patriarcal tirana, ela tem cada vez
mais se tornado um símbolo de poder, que ganhou mais força principalmente com a chegada dos
movimentos feministas.
O uso da metáfora relacionada às bruxas por diferentes movimentos feministas,
como um símbolo de sua batalha contra a opressão das mulheres foi muito
significante no século vinte. A bruxa se tornou um símbolo positivo,
representando a redescoberta do poder e das possibilidades das mulheres, que os
homens tentaram suprimir perseguindo as bruxas6. (MAERTEN, 2000, p. 9)
De acordo com Pyburn (2003, p. 196) Todo esse poder e a autoridade que o mito traz
consigo, explica por que mesmo sabendo que corriam grandes riscos de acabarem torturadas e
assassinadas, muitas mulheres não só aceitavam o rótulo como o encorajavam seus vizinhos a
acreditarem que elas eram bruxas.
3. A Dona-de-Casa e A Esposa em Anne Sexton
Um dos temas frequentemente abordados na poética de Sexton é o da desmitificação da
figura da dona-de-casa dentro âmbito doméstico ao qual esta é presa. Em seu poema Ghosts, que
faz parte de All my Pretty Ones (1962), Anne trata de fazer uma reconstrução da imagem do
casamento, onde marido, mulher, e crianças não passam de “fantasmas”. Poema curto, dividido
em três estrofes, uma sextilha e duas septilhas. Sem padrão externo de rimas, o ritmo é dado pela
repetição de estruturas como em “Some ghosts are women (...). Not witches, but ghosts / Some
6. The overtaking of the metaphor related to witches by different feminist movements, as a symbol for their
struggle against the oppression of women, was very significant in the twentieth century. The witch became
a positive symbol, representing the rediscovery of the power and possibilities of women, that men had tried
to oppress by persecuting witches.
ghosts are children. Not angels, but ghosts”, ou de sons como o da consoante /s/ em “(...) moving
their useless arms / like forsaken servants”. Cada estrofe trata de uma parte específica da família,
respectivamente, a mulher (esposa e dona-de-casa), o homem (marido) e as crianças, usando
símiles e metáforas para dar características a estes.
GHOSTS
Some ghosts are women,
neither abstract nor pale,
their breasts as limp as killed fish.
Not witches, but ghosts
who come, moving their useless arms
like forsaken servants.
Not all ghosts are women,
I have seen others;
fat, white-bellied men,
wearing their genitals like old rags.
Not devils, but ghosts.
This one thumps barefoot, lurching
above my bed.
But that isn't all.
Some ghosts are children.
Not angels, but ghosts;
curling like pink tea cups
on any pillow, or kicking,
showing their innocent bottoms, wailing
for Lucifer.7
Na primeira estrofe a poetisa afirma que alguns fantasmas são mulheres que não são
abstratos ou pálidos, considerando a imagem tradicional do fantasma, o espírito de uma pessoa
morta, se pode afirmar que as criaturas descritas nessa primeira parte do poema são seres que
possuem somente a forma das mulheres que foram um dia. No terceiro verso Anne usa um símile
para ilustrar a morte do corpo dessas mulheres: “their breasts are limp as killed fish”, os seios
7. Fantasmas / Alguns fantasmas são mulheres / nem abstratas nem pálidas, / os seis flácidos feito peixe
morto. / Não bruxas, mas fantasmas / que chegam mexendo os braços inúteis / feito criados desamparados. /
Nem todos os fantasmas são mulheres, / já vi de outro tipo; / homens gordos, pelados, / exibindo os genitais
feito andrajos. / Não demônios, mas fantasmas, / Esse ai estrondeia os pés, escoiceando / sobre minha cama.
/ Mas isso não é tudo. / Alguns fantasmas são crianças. / Não anjos, mas fantasmas; / enrolados feito xícaras
cor-de-rosa / num travesseiro qualquer, ou esperneando, / mostrando as bundinhas inocentes, gemendo /
para Lúcifer. (Tradução: Renato Marques de Oliveira)
são “flácidos” como peixes mortos, incapazes de gerar vida ou prazer, um sinal de fraqueza. O
próximo verso traz o paralelo entre duas figuras sobrenaturais, bruxas e fantasmas. Ela afirma
que as criaturas que estão sendo descritas não são bruxas, mas sim fantasmas. Bruxas são donas
de si, seres que assustam por serem ligadas diretamente ao demônio e por seus poderes. Já os
fantasmas, não possuem poderes ou autonomia.
A seguir Sexton faz mais uma referência ao corpo, dessa vez aos “braços inúteis”,
montando mais uma parte da imagem extenuada dessas mulheres, que na verdade são fantasmas.
Em seguida a poetisa compara o movimento feito com os braços inúteis desses fantasmas ao feito
por “criados desamparados”, trazendo a ideia de resignação a esses fantasmas. A palavra
“servant” também pode ser traduzida como empregada doméstica. A dona de casa é geralmente
confinada ao lar, onde é incumbida de realizar os afazeres domésticos assim como as
empregadas, se diferenciando delas quando assumem o papel de esposa, geralmente empregadas
domésticas são associadas a mulheres solteiras. Apesar de serem, além de donas-de-casa,
esposas, os fantasmas de Anne Sexton são criaturas desamparadas, abandonadas. As estrofes
seguintes tratam do homem e das crianças, reforçando a imagem do casamento ilustrada no
poema.
A segunda estrofe segue com a descrição de outra categoria de fantasmas: “fat, White-
bellied, man,”. Mais uma vez Anne trabalha em cima de uma imagem grotesca do corpo, esses
homens gordos de barriga branca, vestem suas genitais como trapos. Pode-se apontar então um
trabalho de deserotização do sexo. Esses homens não são demônios, são fantasmas, apesar da
burlesca descrição desses seres, eles não são menos passivos, fracos, e resignados do que os da
primeira estrofe. No próximo momento há uma mudança no tom do poema, o eu lírico
inicialmente distante, de uma maneira sutil se insere no poema, quando a afirma “I have seen
others;” e que um desses fantasmas de barriga branca encontra-se deitado em sua cama, Oliveira
(2004, p. 268) chama a atenção para a violência sonora desses dois versos: “This one thumbs
barefoot, lurching / above my bed”. Nos últimos versos, uma terceira categoria de fantasma é
apresentada, as crianças, completando assim um retrato familiar, esposa, marido e filhos. Onde as
crianças não são anjos, mas fantasmas. Anne compara essas crianças a xícaras cor-de-rosa, ou
seja, um objeto que faz parte da casa, que pode servir apenas como adorno do ambiente
doméstico. O corpo das crianças aqui é representado por suas “bundinhas inocentes”, que
mostram a Lúcifer enquanto lamuriam quase como se fossem adornos, o que Oliveira (2004, p.
168) diz fazer clara referência ao final do Fausto do Goethe.
Outro poema de All my Pretty Ones que trata da relação da mulher com a vida doméstica
é “Housewife”, como afirma Oliveira (2004, p. 270) o poema “(...) brinca com o mundo perpétuo
e fechado do ambiente doméstico e com o senso de isolamento e incomunicabilidade endêmica
do lar (...)”:
HOUSEWIFE
Some women marry houses.
It's another kind of skin; it has a heart,
a mouth, a liver and bowel movements.
The walls are permanent and pink.
See how she sits on her knees all day,
faithfully washing herself down.
Men enter by force, drawn back like Jonah
into their fleshy mothers.
A woman is her mother.
That's the main thing.8
O primeiro verso do poema brinca com o título, pois a palavra equivalente à dona-de-
casa em inglês, housewife, é uma junção de house = casa, com wife = esposa, ou seja, uma
mulher que se casa com seu lar, o poema então sugere que algumas mulheres ao se casarem o
fazem com seus lares, e não com seus maridos. A poetisa, afirma que é outro tipo de pele, ou
seja, casar-se implica assumir um novo papel, o da dona-de-casa. Sua nova pele, a casa, também
possui órgãos como coração, boca e fígado. As paredes são permanentes, o que reforça uma ideia
de isolamento, além disso, são rosa, que é a cor tomada como principal símbolo de feminilidade,
o que sugere o aprisionamento da mulher no mundo feminino, o mundo doméstico. No quinto
verso o eu lírico aponta alguém que fica de joelhos o dia todo, o estar de joelhos é um posição
que representa subordinação, ela se lava (mulher e casa se confundem) com lealdade (faithfully),
o que provoca dizer que deixar de se lavar, ou de prestar serviços a seu lar seria algum tipo de
traição, traição aos paradigmas sociais. A seguir, no sétimo verso, ela afirma que os homens
“entram à força”, o que também sugere passividade, e fraqueza da mulher que não pode impedir
que isso ocorra. No próximo verso a mulher/lar assume um terceiro papel, “mãe carnuda”, o que
insinua uma busca pela mãe por parte dos homens em suas esposas. Nos dois últimos versos, ao
afirmar que a mulher é sua mãe o poema cria uma ideia de circularidade, onde cada mulher
cresce, casa-se e torna-se mãe, em um contínuo perpétuo.
4. Considerações Finais
Assim como afirma Candido (2006, p. 39), os valores e ideologias encontram-se
intrinsecamente ligados ao conteúdo da obra, se examinarmos estes podemos encontrar nos
arquétipos e estereótipos dentro do texto, personagens construídos em cima de imagens
8. Dona de Casa / Algumas mulheres se casam com casas. / É um outro tipo de pele; tem coração, / boca,
fígado e movimentos intestinais. / As paredes são duradouras e cor-de-rosa. / Veja como ela passa o dia
todo ajoelhada, / lavando-se fervorosamente. / Os homens entram à força, tragados, como Jonas / para
dentro de suas mães carnudas. / A mulher é sua própria mãe. / Isso é o principal. (Tradução: Renato
Marques de Oliveira)
padronizadas, que expressão quase sempre ideias negativas. A mulher quase sempre é
representada pelas mesmas figuras, que são na maioria das vezes símbolos de passividade,
impotência e fragilidade, quando não são representadas por seres ligados ao mal, ou diretamente
ao demônio. Essas imagens femininas que se alastram através dos poemas de Anne Sexton,
aparecem de maneira a expor os fatores negativos que se escondem dentro dos ideais de
felicidade no casamento, na vida doméstica ou nos padrões femininos a serem seguidos, a poetisa
desconstrói perspicazmente esses ideais, nos proporcionando uma visão crítica acerca do tema
abordado. É necessário ter em mente que estes estereótipos existem por convenção cultural e
social e não como reflexo fiel da realidade, para enxergarmos valores que se escondem nas
entrelinhas do texto.
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