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Histórias que se cruzam

na Kantuta

Luana de Freitas GarciaAdriana Rodrigues Domingues

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HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM NA KANTUTA

Projeto de intervenção de Psicologia Comunitária do cursode Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Supervisão: Adriana Rodrigues Domingues 

Entrevistas e transcriação: Luana de Freitas Garcia

Revisão: Adriana Rodrigues Domingues, Felix Claúdio MedonçaAchumiri, Flaubert Castro Arela, Franz Mijail SanabriaGalván, Lucia Ireyo Raimundo, Miguel Ángel Saavedra Aguilar,Verônica Quispe Yujra

Desenho da capa: Nathalia Ju Hyun Jin

Imagens: Flaubert Castro Arela e Luana de Freitas Garcia

São Paulo2015

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SUMÁRIO OUVIR E RECONTAR HISTÓRIASAdriana Rodrigues Domingues e Luana de Freitas Garcia.........5

SÃO PAULO É O RETRATO DO MUNDO

Felix Claúdio Medonça Achumiri ..................................................... 7

PALAVRAS QUE SAEM COMO FACAS 

Flaubert Castro Arela ..................................................................... 17

UMA OUTRA IMAGEM DO BRASIL 

Franz Mijail Sanabria Galván ......................................................... 29

AQUI É TUDO MUITO LONGE! 

Lucia Ireyo Raimundo ..................................................................... 37

LIVRE ATÉ DE SI MESMO 

Miguel Ángel Saavedra Aguilar .................................................... 45

AH É? TEM QUE FAZER? 

Verônica Quispe Yujra ..................................................................... 59 

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OUVIR E RECONTAR HISTÓRIAS

Este livreto conta as histórias de seis imigrantes, cincobolivianos e um peruano, que atualmente vivem em São Paulo. Narraos percursos feitos por eles até chegarem ao Brasil e também relatacomo se deu o contato e a inserção no novo país.

O título Histórias que se cruzam na Kantuta foi escolhido emreferência à praça Kantuta, local frequentado por todos essesnarradores. A praça é um ponto de encontro de imigrantes,bolivianos em sua maioria, e é onde ocorre uma feira gastronômica,

todos os domingos, em uma tentativa de preservar viva a identidadecultural destes que vêm ao Brasil em busca de trabalho e melhorescondições de vida. Kantuta é o nome de uma flor tipicamenteboliviana e suas cores – verde, amarelo e vermelho - colorem tambéma bandeira da Bolívia.

Na Praça Kantuta também se localiza a tenda do Projeto Sí,

Yo Puedo! , ligação existente entre os narradores e Luana, ouvinte

atenta que registrou e transcriou estas histórias. O Projeto Sí, Yo

Puedo!  foi idealizado por Verônica Quispe Yujra, atual coordenadora,e foi colocado em prática em 2012, quando ela passou a fornecerinformações sobre trabalho, educação e saúde aos imigrantes quecirculavam pela praça e precisavam acessar os serviços e políticaspúblicas de nosso país. Para a coordenadora, a democratização

dessas informações é direcionada, especialmente, para os imigrantesque não possuem um sentimento de pertecimento à sociedadebrasileira e, por isso, não se percebem como cidadãos que têmdireito ao estudo, ao trabalho e à tudo que a nossa cultura oferece.

O projeto também firmou uma parceria com a UniversidadePresbiteriana Mackenzie, de modo que estudantes de Psicologia doúltimo ano passaram a realizar seus estágios de Psicologia

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Comunitária junto a ele. A equipe de trabalho que foi se formandopercebeu, a partir dos atendimentos realizados com a populaçãoimigrante, que o idioma era uma grande barreira para que estativesse acesso a maiores oportunidades, em especial, no campo daeducação e do trabalho. Foi assim que o projeto passou a oferecerum curso de Português básico, com duração de três meses, e queperdura até hoje.

O Projeto Sí, Yo Puedo! , mais do que informações e aulas deLíngua Portuguesa, busca promover a cidadania dos imigrantes. Alémdisso, serve de mediador na construção de laços comunitários entre

aqueles que são atendidos e os voluntários, que podem ser pessoasque se simpatizam com a causa dos imigrantes ou até mesmo que jáforam atendidos neste local.

As histórias aqui narradas compõem a execução de umprojeto de História Oral, e faz parte da proposta de intervenção doestágio em Psicologia Comunitária, supervisionado pela professoraAdriana Rodrigues Domingues. O objetivo deste projeto foi resgataras experiências e as memórias dos imigrantes que se disponiblizarama relatar os caminhos que percorreram como emigrantes eimigrantes, desde o momento em que decidiram deixar seus lares,famílias e amigos, para se enraizarem em outras terras.

Recontar suas histórias aqui é uma forma de dar visibilidadeàs dificuldades de se inserir em uma terra estrangeira, mas também

às contribuições que trouxeram à nossa cultura. Agradecemos atodos que colaboraram com a produção deste livreto e esperamosque os leitores se sintam inspirados pelas histórias aqui desveladas.

Adriana Rodrigues DominguesLuana de Freitas Garcia

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SÃO PAULO É O RETRATO DO MUNDOFelix Claúdio Medonça Achumiri 

Me chamo Felix Claúdio Medonça Achumiri e sou de 1971.Faço parte da comunidade boliviana e morava em La Paz. A primeiravez que vim ao Brasil foi com um amigo, para visitar. Tinha um irmão

aqui e fiquei um mês, depois voltei de novo para a Bolívia. No meupaís, eu tinha boas oportunidades. Lá eu gostava de estudareletrônica, fui DJ e locutor de uma rádio. Fazia isso todos os dias etinha entrada para me sustentar. Tinha uma equipe de som, mas nãodeu certo, porque meu parceiro foi para a Argentina atrás demelhores oportunidades. Fazia edição de vídeo para casamentos,

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formaturas e para aniversários de quinze anos. Até que cheguei aquie tudo foi diferente.

Hoje estou aqui por uma vida melhor. Já conheci o sistema

daqui, sei como é. Moro sozinho e agora estou trabalhando comomodelista em uma empresa de costura. Vim para cá há mais ou menosquatorze anos.

Uma semana atrás chegaram minha mãe, minha irmã e meucunhado. Vieram só para me visitar. Não acreditei! Minha mãe morana Bolívia e veio porque tinha saudades de mim. Eu não ligava para

minha família há muito tempo, fazia uns quatro anos, fiquei muitoafastado. Queria que tivessem ficado por mais tempo para que eupudesse mostrar as coisas bonitas que São Paulo tem, mas não deutempo, tive que acompanhá-los ao terminal e fiquei triste com adespedida.

Vim para o Brasil, pois queria conhecer pessoas diferentes,

saber como eram os brasileiros. Tem gente aqui de todo lugar domundo. São Paulo é resumo de todas as raças. É um retrato domundo. Queria ter ido para os Estados Unidos, mas não deu certo.Ficou mais difícil entrar lá depois do ataque às Torres Gêmeas.

Estou tentando mudar para caminhos diferentes do dacostura. Costura é a primeira entrada que todo mundo faz quandochega aqui. Passa primeiro por essa fase. A pessoa tem a facilidadede não pagar o quarto e tem comida. Isso é uma herança doscoreanos. E acaba acontecendo aquelas coisas de exploração.Atualmente, as pessoas estão se tornando mais conscientes graças aessas políticas que estão voltadas para imigrantes.

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Aqui a prática da exploração tem mais liberdade, porqueestá escondida em uma casa, tudo é fechado. Aqui o pessoal fala:“Na minha casa não entra ninguém de fora e eu posso fazer o que euquero na minha casa”. As pessoas pensam desse jeito e fazem aexploração dentro de uma casa. E quem está fora acha que é só umafamília que está morando ali. Mas não é assim! Isso vai sedescobrindo ao longo do tempo, por alguém que foge ou denuncia. Eusaí desse tipo de trabalho, pois tentei fazer o melhor de mim, masnão gostei. Eu gosto de trabalhar em qualquer coisa, mas eu nãogostei do que eu fazia, pois a dona falava que eu estava demorando,

todavia, eu sou perfeccionista, gosto de fazer bem. Então, tive quesair de lá para fazer o que eu gosto. Agora estou trabalhando comcarteira assinada, que é melhor, mas sair do ciclo da costura é muitodifícil.

No Brasil há facilidades com relação aos estudos. Escuteipor aí que imigrantes podem fazer faculdade. Penso em continuar a

estudar aqui, no curso que fazia lá, de engenharia eletrônica. Só quetrabalho o dia inteiro e não é possível estudar no mesmo horário. Eutrabalho das nove da manhã às sete da noite e folgo aos sábados edomingos. Já nas oficinas dos nossos compatriotas cada um éindependente, porque tem que trabalhar por produção, por isso,alguns trabalham sábado e domingo. Se não trabalham final desemana, os donos não dão comida nesses dias, pois eles não estãotrabalhando. Cada oficina adota um esquema, faz sua própria leiinterna. Para mim, existem dois tipos de empresa, aquela que adota ocapitalismo extremo, que quer tudo, sem sentimento, e aquela que éhumanista e vê que os trabalhadores precisam estar bem paraproduzir, com boa saúde. Na humanista, os trabalhadores são maiscuidados pela empresa.

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Aqui em São Paulo, gosto de ir aos museus e visitar lugaresque não conheço em bairros que estão mais longe do centro. Gostode passear sozinho no tempo livre. Convido amigos, mas eles nãogostam de fazer esses passeios para lugares mais longes, porquegastam mais. A maioria fica fechado em casa por medo da rua, ficamassistindo tv e filmes. Alguns saem no sábado à noite para baladassó de bolivianos e eu não gosto muito disso. Eu prefiro conhecerlugares diferentes, gosto de conhecer outras culturas. Sempre vouao bairro da Liberdade saber sobre os eventos que eles fazem. Eles já estão há mais de cem anos aqui e mantêm a cultura, inclusive seus

filhos. Com bolivianos é diferente, os filhos nascem aqui e já nãoquerem saber da cultura de lá. Aqui os bolivianos que trabalham nasoficinas não têm tempo de passar a cultura para seus filhos, poiscomeçam a trabalhar às sete da manhã e às onze da noite aindaestão trabalhando. Que horas podem brincar e falar com os filhos?Por isso, os filhos têm poucos conhecimentos de lá.

Na escola, eu era bom aluno. Os melhores entravam nafaculdade, só que não deu certo para mim, tive que trancar porquestões financeiras. Fui trabalhar e não deu certo. Engenharia temtrês lemas: estudar, estudar e seguir estudando. Não dá paratrabalhar. Era um curso de período integral. Aí comecei a fazercoisas diferentes, trabalhava com equipe de som, como DJ. A granaque eu tinha era pouca e, às vezes, não dava para almoçar. Quandovocê deixa de comer e segue estudando, você fica diferente. Não ébom! Se você está estudando tem que comer bem. Naquele tempo, euera bem otimista, queria ser engenheiro eletrônico! Mas, euprecisava de dinheiro para ir até a universidade e para comer. Então,deixei de estudar e só trabalhei lá. O tempo passava e eu só pensavaem continuar meus estudos.

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Antes de ter vindo para cá, queria ter aprendido português.Mas o jeito de falar é semelhante, então me adptei. Eu falavadevagar e os brasileiros também, para que pudéssemos nosentender. Nunca fui tímido, então aprendi aos poucos. Eu queriatrabalhar com telemarketing, pois tem trabalho de meio período ealgumas vantagens, contudo é necessário falar potuguês fluente.

Lá, eu morava tranquilo, tinha um monte de amigos, estudavae mexia com música. Assim passava o tempo! Fazia alguns cursos eajudava minha mãe em casa. Depois que cheguei aqui, esqueci todo

mundo, pois perdi telefones e endereços. Além disso, a maioria daspessoas que eu conhecia também viajou para outros países. O únicoproblema lá é que eu não estava estudando mais, estava fazendobicos e trabalhava em uma rádio, que colocava só as músicas domomento. Surgiu um projeto de abrir uma discoteca aqui no Brasil eeu deixei tudo de lado. Aqui sofri muito no começo. Eu pensei quequando chegasse aqui, ia fazer algo extraordinário, mas já tinha algo

parecido aqui e fizemos algo só para o público boliviano. Fazíamos umtipo de música que não gostávamos, também não ganhava bem. Então,tive que entrar na costura forçosamente. Muita gente não queria meensinar a costurar, porque diziam que não tinham tempo, poistrabalhavam e ganhavam por minuto e não dava para perder tempo.Sendo assim, agradeço a quem me ensinou. É difícil encontrar alguémdisposto a te ajudar.

O que não gostei do Brasil foi a surpresa que tive com asfavelas e com a facilidade para se portar armas também. Todavia, euvejo aqui a facilidade que os brasileiros têm para estudar, temformação de graça. Lá também tem universidade de graça, mas é

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limitado a quem passa no exame, se você não passa na pública, temque pagar seus estudos. E se não tem como pagar, não estuda.

Como meus planos de trabalhar aqui não deram certo, tive,

obrigatoriamente, que trabalhar no ramo da costura. Não gosteimuito e tentei mudar. Foi passando o tempo e agora sim, estou foradisso. Agora me sinto um pouco mais livre, melhor! Meu sonho para ofuturo é ter uma profissão fixa e trabalhar nessa profissão atécrescer nela, como todo mundo faz. Também, construir uma família eficar aqui no Brasil. Queria fazer viagens pelo Brasil, conhecer de

Norte a Sul.Quando falo do Brasil para outras pessoas, falo a verdade. A

verdade é que quando um brasileiro conhece um estrangeiro édesconfiado, mas se te conhece bem abre os braços para te ajudar.O brasileiro é alegre, a música é alegre. Lá na Bolívia tem muitadiscriminação, mesmo com a mudança do presidente, só que está

escondida, não está à vista. Aqui no Brasil também percebi umracismo, que é mais velado que na Bolívia. Entretanto, desde queestou aqui, pude entrar em qualquer lugar! Na Bolívia, te olhavam dospés à cabeça, se não gostavam, não deixavam entrar. Quando entreina universidade lá, não era fácil, a maioria era da classe média alta eeu era de classe média, além disso, tinha a diferença da cor da pele.Eles haviam passado por escolas de alto padrão, eram de famílias

que tinham dinheiro. Eu tentava procurar outros grupos que tinhammenos dinheiro. Quando eu cheguei aqui falei com todo mundo.Quando via um brasileiro de pele branca ficava meio desconfiado,pensando se ele ia me rejeitar ou ia falar alguma coisa como “saifora”, mas era o contrário. Por isso que gosto do Brasil. É diferente.O brasileiro é mais amistoso, amigo. Por isso que pessoas de todo o

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mundo vêm para cá e constroem uma cidade junto. O Brasil é feitode imigrantes.

Quem nasceu aqui é descedente de imigrantes. Primeiro

chegaram os portugueses e os espanhóis, depois os holandeses, osafricanos e aí vieram os italianos, os japoneses, os judeus, entreoutros. Nesses últimos tempos, chegaram os coreanos, depois osbolivianos que vieram trabalhar na área de costura. Os primeirosbolivianos que chegaram aqui não vieram para trabalhar em costura,os trabalhadores chegaram depois. Com o acordo de Livre Residência

do Mercosul ficou mais fácil e o mundo latino-americano chegou aqui.Acho que cheguei muito tarde no Brasil, penso que deveria

ter saído da Bolívia mais cedo. Teria tido mais oportunidades paraaprender mais coisas. Agora, se volto à Bolívia, venho de novo moraraqui, pois já estou acostumado, gosto daqui. Conheço o costume dosbrasileiros e o jeitinho deles. Gosto das festas, do carnaval. Uma

vez, fui a um desfile de escola de samba, falei com alguns daçarinose perguntei como podia participar, eles disseram que não tinharequisito. Eu fiquei muito alegre, queria participar, mas nunca deu.Certa vez, fui para a quadra comemorar com a Águia de Ouro eparticipei da festa até o amanhecer! Voltei para a casa e estavafeliz. Sempre vou aos eventos de imigrantes também. Gosto deconhecer os gostos e as comidas de várias culturas. Da Bolívia já

conheço tudo, por isso, gosto de sair e conhecer outros lados.

Quando vim para cá pela primeira vez, fiquei admirado com aquantidade de estradas que tinha no Brasil. Queria ficar, mais nãotinha a permissão para ficar aqui. Hoje estou morando no BomRetiro. É bom, só que o aluguel é caro. Mas aqui qualquer lugar écaro. E as condições também não são boas. Eu pago quatrocentos

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reias em um quartinho, que é muito pequeno, e o banheiro écompartilhado. Lá moram só bolivianos e paraguaios. Tem famílias etem pessoas sozinhas também. É mais fácil alugar, pois o responsávelpelo imóvel não pede alguns requisitos, como ter que fazer depósito.Eu gostaria de ter minha própria casa aqui, por isso estoutrabalhando. Quando você mora assim, como eu moro, está sujeito àsnormas dessa casa e não tem liberdade suficiente.

Eu tentei trabalhar no CAMI, mas me disseram que eravoluntariado, aí tive a ideia de procurar outras Ongs que faziam

trabalho ajudando as pessoas. Um amigo me falou do Projeto Si, YoPuedo! . Procurei o projeto, buscando por orientação profissional. Fuiconhecendo cada pessoa e me aproximei mais do projeto. Achoimportante que as pessoas saibam das coisas para que se tenha justiça. Uma vez sofri injustiça, quando trabalhava na oficina. Odono queria que eu fizesse de tudo, queria que eu fizesse outrostipos de atividade, como arrumar as luzes, consertar as máquinas e

aparelhos de televisão. Eu fui trabalhar lá só para fazer o ofício dacostura e ele falava: “Faça aquilo também!”. Eu fazia coisas pelasquais não era pago.

Da Bolívia, tem uma comida especial para mim, a salteña . Aspessoas gostam. É uma comida do lugar onde nasci. A salteña  só secome de manhã, é como um café da manhã e se faz com um

pouquinho de molho picante. Pode usar aquela pimenta que é chamadade dedo de moça aqui. Não tem salteña aqui igual à de lá. Quandocomo salteña , lembro da minha família. Meu pai sempre compravasalteña   para nós. Às vezes, quando nos preparávamos para o café,meu pai aparecia com uma caixa cheia de salteña  para toda a família.

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Todo mundo ficava alegre quando chegava esse momento. Ele faziaisso em datas especiais.

Quando vejo a salteña , recordo de lá, tenho saudade! Erámosquatro irmãos. Todos os meus irmãos moram na Bolívia e a maioriacasou. A gente se reunia em datas importantes. Faz três anos que eunão volto. Se eu ficar bem financeiramente, penso em dar uma

voltinha por lá. Eram momentos felizes, era um jeito de nosaproximarmos mais, um espaço para ideias, piadas. A salteña   étradição na cidade de La Paz, como o pão de queijo é aqui. Estiveprocurando aqui alguém que faça do jeito de lá, com o mesmo sabor etextura. Tem um, conheço! Mas só encontro ele no sábado e nodomingo.

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Originalmente, falavam que salteña era uma massa daArgentina, porque tem uma cidade lá que se chama Salta. Pareceque, décadas atrás, surgiu uma massa lá que se chamava salteña , porisso o nome, e alguém touxe para a cidade de La Paz. As pessoasgostaram e se tornou uma tradição. Tem sabor agridoce, usamfarinha de trigo, em cima tem gema de ovo para dar a cor e pordentro tem um caldo que pode estar misturado com ovo, frango,carne. Também tem salteña  para veganos.

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PALAVRAS QUE SAEM COMO FACASFlaubert Castro Arela 

Meu nome é Flaubert Castro Arela, tenho trinta anos, souperuano e adventista. Aqui no Brasil, eu já moro há quase cinco anos.

Eu cheguei no começo para estudar engenharia da computação naUniversidade Anhembi Morumbi, com uma meia bolsa de estudos queconsegui na Universidad César Vallejo do Peru. Só que quando eucheguei aqui, acabei perdendo a bolsa por descuido meu. Quandopercebi, já não tinha chances de ser aprovado no semestre, então,depois de três meses batalhando na faculdade, decidi sair e tive quetrabalhar. Deixei de lado a faculdade inteira! Mas, sempre, em meus

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pensamentos, queria continuar estudando. Fui procurar trabalho e nocomeço não achei. Não foi rápido achar trabalho. Por quê? Porque euera formado em técnico de informática, mas sou imigrante e comoeu estava indocumentado era difícil achar um trabalho para mim. Asempresas não confiavam em mim.

Algum tempo depois, comecei a trabalhar em vendas e paraser sincero, já trabalhei em um pouco de tudo aqui e lá no Peru. Aquitrabalhei como ajudante de pedreiro, comerciante, vendedor deplantas medicinais, cobrador de ônibus, guia turístico improvisado,programador em uma empresa de bordados, trabalhei em uma lojade roupas, em estamparia e em uma empresa de Helpdesk   comotécnico de apoio ao usuário de informática. Este foi meu últimotrabalho. Depois desses dois anos que estava sem buscar nada dosmeus estudos, procurei uma instituição para me atualizar sobreinformática. Para que eu continuasse a crescer na minha profissão.

Tinha que me atualizar e achei o SENAC, onde paguei para meatualizar. Depois, me lancei no mercado de novo para trabalhar.

Comecei a trabalhar e foi tudo tranquilo, só que quandocomecei a trabalhar, meu chefe era bom, legalzinho. Acho que todomundo passa por isso. Ele me aceitou. Eu estive trabalhando um anocom ele e ele passou a me manipular. Ele já não queria que eu

trabalhasse só oito horas. Pagava-me bem, mas para mim não dava.Passei a ficar até às dez da noite e cobria os horários dos outrosfuncionários que não chegavam. Todavia, por mais que ele meobrigasse eu não conseguia. Ele me tentava com dinheiro. Elepensava que quem tem dinheiro consegue e compra tudo. Às vezes,neste mundo cruel tem gente que se deixa manipular por dinheiro.

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Por conta da minha religião, eu não trabalho aos sábados, equando contei para meu chefe, ele não ficou contente com isso. Elecomeçou a ficar ressentido. Dizia coisas como: “Ah, você não quertrabalhar comigo? Te dei a oportunidade de trabalhar aqui” ou “Eute dei confiança para você dominar minha empresa”. Essa empresafoi a primeira que me registrou na carteira, até então eu sempretrabalhei como free lance , sem registro. E todas essas coisas, eleme jogou na cara. Ele disse que tinha me dado oportunidade detrabalhar nesse mercado e que nós, peruanos, bolivianos e

paraguaios, estávamos vindo para tirar o trabalho dos brasileiros.Ele me falou assim! Eu me senti péssimo quando ele falou isso. Eutinha vontade, não sei, de voltar para meu país. Mas, eu não queriavoltar. Em casa, pensei em pedir demissão.

Depois me reuni com meu chefe, que me propôs um acordo.Me disse que se eu não ia trabalhar no sábado, ele precisava de um

cara para trabalhar no domingo. “Bom, eu posso, mas uma vez pormês”, respondi. Pois aos domingos estava apoiando o projeto Sí, Yo

Puedo! e o CESPROM . Fui trabalhando aos domingos, até que chegouo ano passado e saí da firma, para sempre. A empresa mudou paraSão Miguel e meu chefe disse que se eu quisesse, podia pedir ascontas, pois ele não faria nenhum acordo. Então pedi. Quando fui noescritório, ele foi todo bonzinho e pediu desculpas pelas coisas queestava fazendo comigo. E me disse que se eu ficasse trabalhandocom ele, ia aumentar meu salário. Analisei e resolvei ficar, só que,nessa época, estava estudando Português no SENAC e cheguei trêsvezes atrasado no trabalho, pois não conseguia sair a tempo. No finaldo mês, ele não me pagou o valor do vale transporte.

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A maioria dos trabalhadores dele se arrumam faltando dezminutos para irem embora. Essas coisas eu não fazia. Um dia eu fui junto com eles trocar minha roupa, meu chefe viu e disse que euestava me juntando com aqueles rapazes. “Você é um cavalo! Não tárespeitando a confiança que te dei”, ele me disse. Não falei nada,mas depois, eu mesmo preparei minha carta de demissão, levei lá eele falou “Deixa aí!”. Uma vez que saí da firma, decidi não trabalharmais para ninguém! Porque em todas as firmas que eu trabalhei aquino Brasil, eu me senti muito, muito explorado, mas do que lá na minha

terra. Eu percebi que as empresas não fazem isso só comestrangeiro, fazem com aquelas pessoas que chegam do interior, daBahia, de Minas Gerais. Violam não só os direitos dos imigrantes,mas dos migrantes que veem do nordeste, por exemplo. Fiz um planona minha vida e me disse: “Vou trabalhar para mim, seja qual for orisco! E vou trabalhar na minha área”. Não é tão fácil serempreendedor, mas estou aí, com altos e baixos.

Quando cheguei, morava na casa da minha tia, ela tinha a suaempresa, era próspera. Tinha uma empresa de jeans do Peru. Àsvezes, ela trazia tecido cru. Depois, ela passou a confeccionar roupa.Ela ficou um ano com isso, mas o negócio não deu resultado. Depois,ela e sua família foram embora do Brasil, pois aqui, segundo ela, aeducação era ruim, porque os filhos dela não sabiam nada. Lá naminha terra, aos dez anos os meninos já conseguem lerperfeitamente e sabem toda a tabela de multiplicação. Aqui, eu deium texto para eles e seus colegas lerem e eles não conseguiram e opior é não sabiam a tabela de multiplicação. Na realidade, isso fezparte de uma pesquisa que realizei na Zona Leste, com estudantesque tinham entre dez e onze anos, eles respondiam algumas

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perguntas e ganhavam um prêmio. Logicamente, fazia a pesquisa comautorização dos pais.

Antes da minha tia ir embora, chegaram meus irmãos. Umchegou para fazer práticas em Engenharia Agropecuária aqui nointerior e o outro chegou para trabalhar, procurando novasoportunidades. Eu passei a morar com este irmão e abri um negóciocom ele, com ajuda da minha tia. Depois de um tempo, a mulher domeu irmão começou a dizer para ele que eu não fazia nada. Nossa!Quando escutei esse negócio me senti mal. Eu conversei um diasozinho com meu irmão e disse que não ia suportar essa humilhação.Disse que ia sair e procurar meu destino.

Quando minha tia estava indo, me deixou morar num quartodela e disse que quando eu pudesse pagava. Aí os irmãos da minha tiapassaram a falar mal de mim, dizendo que eu estava vivendo lá degraça. Hoje, longe dos meus familiares, aluguei um quarto e morotranquilo. Desde então, estou morando sozinho. No momento, estouem paz! Minha única preocupação agora é minha vida profissional.

Para mim, o mais importante são as pessoas que eu conheço eacho que vai ser assim sempre. Quando vejo os meninos na rua, jogando bola, com chinelo, roupa rasgada, camiseta, lembro de mim

mesmo. A primeira vez que cheguei aqui no Brasil fui jogar bola comuns amigos que conhecia. No final do jogo, fizemos outro caminhopara ir lanchar e passamos por uma favela. Eu pensei: “Nossa! OBrasil está catalogado como a quinta economia mundial, essas coisasnão deviam ter aqui”. Vi pessoas armadas e tudo. Logicamente, elescuidavam do bairro deles. Fiquei um pouco assustado. Parecia meubairro lá no Peru. Isso me fez lembrar de quando eu era moleque.

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Eu nasci no interior do Peru, em Puquio, no Departamento deAyacucho, mas quando eu tinha cinco anos fui adotado por umafamília e fui morar na cidade de Lima. Eu morei toda minha infânciae adolescência em Lima. Estudei lá, trabalhei e fiz meus passeios.Um sonho que eu tinha era conhecer quase todo o Peru, explorar meupaís, sua cultura, sua diversidade e as condições de vida das pessoase eu fiz! Demorei quase três meses para viajar o Peru por completo,visitei departamento   por departamento , cidade por cidade. Depoistive que voltar para estudar e trabalhar. Mas eu sempre pensei que

eu queria sair fora, não queria ficar no Peru, porque se eu ficasse noPeru seria como uma pessoa que fica presa um quarto. E quando umapessoa está trancada em um quarto não faz nada, se sente sozinho,com a mente nublada. A mesma coisa estaria acontecendo comigo seeu tivesse ficado no Peru. Então, eu saí do quarto do Peru para oexterior, para o Brasil. Agora pretendo explorar toda a AméricaLatina e se Deus me permitir a Europa.

Perto dos anos 90 acontecia muito terrorismo na cidadeonde eu nasci. Bom, o governo que deu esse nome a eles: terroristas!Para mim são grupos sociais com ideologias diferentes das dogoverno. É nisso que eu acredito. Acho que meu pai era parte deles,pois um dia, meu tio, brincando, disse que meu pai estava ali. Só queeu acho que eles nunca contariam a verdade para mim. Depois dessashistórias, queria saber como meu pai morreu. Foi assassinado! Meupai foi assassinado e eu não sabia até meus dezoito anos. Depois queele morreu, minha mãe sozinha não conseguia nos alimentar. Erámostrês irmãos. O mais novinho tinha meses. Eu era muito travesso,enchia a cabeça da minha mãe, por isso ela mandou eu morar com opadrinho de casamento dela. Eu fui morar com essa família, que

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atualmente eu considero meus pais. E foi assim que fui morar emLima.

Minha mãe biológica não queria que eu e meu irmãomigrássemos para outros lugares do mundo. Ela dizia: “Porque vocêsquerem sair, se vocês têm tudo aqui!”. Naquela época, quando eutinha dezenove anos, minha mãe já tinha uma posição econômica bemestabelecida, mas nós queríamos buscar nosso próprio caminho. Eladizia que se quiséssemos dinheiro, ela daria, se quiséssemos casa, elaarrumaria.

Meu foco sempre foram meus estudos, até hoje em dia meufoco é terminar minha formação como engenheiro da computação.Estou batalhando, dia após dia, atrás disso. Só que uma das minhasdificuldades é a economia. Eu queria retomar na mesma universidadeque estava, mas agora só pagando. Então, estou buscando outroscursos que sejam na mesma área, nem que sejam técnicos, assimposso me preparar. Meu foco foi estudar aqui no Brasil. Porém,depois que eu perdi a meia bolsa, tive que pensar como trabalharaqui.

Antes de vir para cá, passei por uma situação sentimental lá.Essa foi uma das causas, para esquecer esse envolvimento

sentimental, pelas quais abandonei aquela cidade e aquele país. Eutrabalhava numa multinacional, eu era chefe, só controlava. Um anodepois que estava trabalhando lá, conheci uma menina linda, meapaixonei. A princípio ela não queria namorar comigo porque tinha umpretendente que era espanhol. Eu competi com o espanhol. Decidiconquistar ela e consegui.

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Meses depois de começarmos o namoro, ela me traiu comaquele espanhol. O que eu mais queria era esquecê-la, ficar longedela, para não recair. Quando cheguei aqui, fiquei dois mesespensando nela, sentia saudades, queria pedir desculpas, não sei oporquê. Pouco a pouco fui me adaptando, conheci uma menina,comecei a sair com amigos. E assim superei as coisas e acabeificando aqui.

Eu imaginava encontrar aqui uma cidade limpa, sem nenhumtipo de discriminação, moderna! Sem delinquência, nada dessascoisas. Eu me imaginava em um bairro limpo e numa cidade limpadessas coisas. Mas não foi assim. Eu achei pior do que lá na minhacidade, sinceramente. Uma outra coisa é a educação nas escolaspúblicas, que eu qualifico como péssima. Essa foi a maior decepçãopara mim. Eu esperava uma educação bastante avançada. Na saúde,eu me deparei com médicos que não sabem nada. Por exemplo, eu

tenho gastrite, fui consultar um doutor e ele me entregou umcalmante.

A adaptação aqui foi difícil por causa daquele envolvimentoamoroso, não sabia se ficava ou se voltava. Outra coisa é que tinhammuitos pernilongos aqui, dia e noite, e eu não conseguia dormir. Eunão gostei disso, foi feio. Por causa disso foi difícil me adaptar, eles

não me deixavam dormir. No meu corpo inteiro começaram aaparecer bolinhas vermelhas e eu me assustei. Pensei: “Em que paíscheguei?”. Até que me recomendaram um mosquiteiro, aí eu dormiem paz. Fui lidando também com os problemas da minha linguagem nodia a dia e fui aprendendo português com as falas dos amigos e dosvizinhos. Fui aprendendo e depois me acostumei. Depois de um ano

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aqui, eu voltei para o Peru e já não me acostumei lá. Na minha cidadetem muita poeira, você quase não vê nada. Aqui em São Paulo issoacontece só quando chove. Eu já estava acostumando com o climadaqui, então voltei em duas semanas.

Eu vi muita facilidade nos estudos aqui, pois você podeestudar de graça com o apoio do governo. Lá se você faz vestibular enão consegue, já era pra você. Aqui, pelo menos, tem cursos noSENAC, SENAI e, além disso, tem o PRONATEC. Lá não tem isso.Você só estuda de graça se passar no vestibular. Lá tudo é cobrado,um curso de dança, por exemplo, você tem que pagar. Aqui tem maisprojetos sociais. Agora isso tá mudando um pouco lá. Acho que estãocopiando daqui!

Uma dificuldade que eu percebi aqui foram os meios detransporte. Foi minha dificuldade. Quando comecei a trabalhar fora,para me deslocar da minha casa para o meu trabalho, ou do meutrabalho para minha casa, era muito difícil. O ônibus demorava vinteminutos para passar. No final de semana era ainda pior, a genteficava esperando meia hora, uma hora. Em Lima, o meio detransporte é rápido, você chega no seu ponto e já tem três ônibuspassando e você só precisa decidir qual pegar. Eu decidia pegar oônibus mais bonito.

Outra dificuldade foi a discriminação, que acontece em todoo mundo, não só nesse Brasil. Eu fui mais um que sofreu com isso.Meu chefe me discriminava e uma vez eu respondi para ele. Dizemque desde moleque, sempre quando eu falava, as minhas falas saiamcomo uma faca. Quando discuti com meu chefe, ele se sentiu mal ao

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invés de eu me sentir mal. Só falei umas cinco palavras e derrubeiele. Nunca mais ele levantou a voz ou quis me dominar.

De modo geral, minhas maiores dificuldades foram otrânsito, o trabalho, o que falei do meu chefe, a discriminação e osmosquitos também, que no começo eu não sabia como combatê-los,agora sei! Têm muitas ferramentas para combater.

Lá no Peru, eu tinha um artesanato feito de barro que minhamãe fez pra mim. Era a imagem de um boi. Era uma recordação de

onde eu nasci. É a única cidade do mundo que tem esse tipo deartesanato, de toritos . Eu carregava esse objeto para todo lado. Naescola, eu fazia disciplinas de trabalhos manuais e tínhamos quecolocar nossos trabalhos em exposição. Ganhei duas vezes aexposição, levando toritos . Eu levava o torito  pra cá, pra lá, para aescola e para o trabalho.

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Quando criança, eu fazia artesanato e ajudava minha mãe. Eugostava de pintar e adornar. Colocávamos umas pedras que pareciamdiamantes, depois colocávamos no forno e ele ficava brilhando.Quando decidi vim para cá, meu padrasto perguntou se eu não ialevá-lo comigo, dizendo que meu companheiro iria chorar. Preferi nãotrazê-lo, mas depois pensei que devia ter trazido. Eu quis deixar lá edeixei. Ele falava que eu podia vendê-lo aqui.

Quando estava arrumando minha mala, também pensei emtrazer meu perfume, que eu gostava muito. Aqui acho que não tinha,encontrei depois, só que é caro, lá é barato. É fabricado lá. Minha tiadisse que eu não devia levá-lo, pois ia ficar no aeroporto. Arrumeiminhas malas e fiquei pensando que não sabia que tipo de perfumevendia no Brasil. A minha ex-namorada me acompanhou até oaeroporto e me deu um presente. Eu abri e era o perfume. O pacotecompleto da marca, a melhor marca de perfume de lá. Só que eu não

sabia como dizer que não podia levar. Aí comecei a passar em mimpara ficar com o cheiro no meu corpo. Ela perguntou porque euestava fazendo aquilo e disse que sentia muito, mas o presente iaficar com ela. Ela disse que ia jogar no lixo, mas não sei se eraverdade. O cheiro do perfume era bom, eu gosto dos amadeirados.Depois de um ano e meio voltei, fui com uma emoção, cheguei lá e nãotinha nada no vidro de perfume, não sei quem usou. Me disseram quetinha evaporado. A única solução foi a resignação. Para finalizar,gosto de um poema, intitulado “Recomeçar”,  do brasileiro PauloRoberto Gaefke, que diz assim:

"Não importa onde você parou,em que momento da vida você cansou,o que importa é que sempre é possível

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e necessário ‘Recomeçar’.

Recomeçar é dar uma nova

chance a si mesmo.É renovar as esperanças na vida

e o mais importante:acreditar em você de novo.” 

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UMA OUTRA IMAGEM DO BRASILFranz Mijail Sanabria Galván

Sou Franz Mijail Sanabria Galván, tenho vinte e quatro anose sou boliviano. Nasci na cidade de Potosí na Bolívia e me crieisozinho. Não conheci meu pai e quando eu tinha um ano, minha mãe

foi para a Argentina trabalhar. Meus avós que me criaram. Fuimorando de cidade em cidade. Mudei de Potosí para Sucre e deSucre para Cochabamba. Tudo por causa de estudo. Fiz EnsinoFundamental em Sucre, depois Ensino Médio em Cochabamba e volteia Sucre para estudar na universidade. Estou em São Paulo há trêsanos.

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Potosí é uma cidade fria, porque fica na Cordilheira dosAndes, faz fronteira com parte do Chile. O clima é frio e por ser umclima frio as pessoas também são assim. Não é tão amigável, é maisfechada. Saímos dessa cidade em busca de um melhor clima e de umcentro econômico, que naquele momento estava se desenvolvendo emSucre. Isso foi o que me contaram meus avós, pois saí de lá quandotinha dois anos. Em Sucre, fiquei até meus treze anos. Sucre é umacidade pequena, onde você chega a conhecer toda a cidade por sermuito pequena. O clima é temperado. Passei minha infância nos

parques de lá com meus primos.Em Cochabamba houve uma mudança, pois passei a viver com

meu tio. Meus avós ficaram em Sucre. Eu estava sozinho lá e pensoque foi uma etapa da minha vida em que tomei consciência de mimcomo pessoa. Fui me tornando mais independente. Foi a etapa quemais desfrutei, pois eu auto me governava. Mas também tinha

minhas restrições. Foi a melhor época!

Estudei em uma universidade pública em Sucre e quandoterminei, estudei Inglês por dois anos, depois vim pra cá. Nainfância, eu era muito enfermito . Durante o inverno sempre adoecia,pois tinha doenças pulmonares, gripe e tosse. Isso me ajudou. Sevocê está doente, você valora mais sua saúde. Enquanto eu estava

doente, meu tio, que esteve na Rússia, me emprestava alguns livros eme fazia ler. Eu não tinha nenhum interesse, lia por ler. Depois eleme perguntava o que eu tinha conseguido entender dos textos e medizia que eu tinha que analisar as personagens, pois cada personagemtinha uma vida própria, que ia se desenvolvendo na obra. O conteúdopara um criança era muito complexo. Em todos os livros que li,

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sempre vi refletida uma parte de mim nas personagens. O modocomo viviam, agiam, pensavam. Quando voltou da Rússia, meu tio nostrouxe outra perspectiva da vida. E isso marcou a todos. Ele trouxea possibilidade de observar a vida de outra forma.

Durante a época universitária, trabalhei com meu professor.Ele era engenhero elétrico e eu estagiava na oficina dele, arrumandomotores. Trabalhei, aproximadamente, dois anos com ele. Eu fizgraduação em mecânica industrial, pois meu avô é mecânico, entãoquis seguir seus passos. Terminei o curso, mas não tive tempo detrabalhar nessa área. Mas penso que o tempo de estágio com meuprofessor foi suficiente. Foi nessa época que se apresentou aoportunidade de vir aqui. Tinha assistido um documentário, que nãoera sobre o Brasil, mas dizia que quanto mais experiências você tiverem sua vida, mais conhecimento você vai adquirir. Assim, quando seapresentou a oportunidade de vir, eu a tomei, pois quanto mais

experiências novas eu tiver, mais conhecimento. Esse, então, foi omotivo, não tanto o futuro econômico, porque não dou tantaimportância ao dinheiro. Falei do documentário para meu tio e eledisse que se eu quisesse podia vir ficar seis meses ou um ano comele, só para conhecer essa outra realidade que era o Brasil. Eurespondi: “Tá certo!”.

Na Bolívia, eu assisiti o filme Cidade de Deus . Por causadesse filme, eu tinha criado uma outra imagem do Brasil, achei quese você chegasse aqui, você morria. Outro que assisiti foi o de ummoleque que sequestrava um ônibus, Parada 184 .

Eu conheci a Projeto Sí, Yo Puedo!   quando fui perguntaracerca de uma documentação. Queria regularizar meu diploma para

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trabalhar na área que me formei. Cheguei a averiguar no consulado etinha que fazer muitos trâmites, muito burocráticos. Achei melhorestudar de novo.

Sempre mantenho contato com meus avós, já voltei trêsvezes à Bolivia desde que cheguei aqui. Quando volto, lá parecemuito diferente. A relação com meus parentes não mudou. A parteafetiva também não mudou nada. Mas as cidades mudaram muito.

Sinto falta da Bolívia, pois lá tenho mais Liberdade, talvez

por ser meu país e eu poder ir a qualquer lugar. Lá você pode entrarnas diversas comuidades. Mas aqui não. Quando cheguei aqui abarreira não foi o idioma. Eu me supreendi porque pensei que aqui aspessoas entendiam espanhol, pois como o Brasil está rodeado depaíses que falam espanhol, era como obrigação, não? O Brasil ficaisolado do resto. Todavia, fui me adaptando e foi mais fácil. Aleitura de textos e livros me ajudou bastante. Eu sabia que ia terdificuldade pela Língua, porque era diferente.

Antes de chegar aqui a imagem era outra. Achava que eu iater dificuldade com o idioma e passar por uma possível discriminaçãodas pessoas, mas quando cheguei aqui fui tudo ao contrário. A gentebrasileira é muito acolhedora. O português é similar ao espanhol,

então foi fácil enteder a língua. Antes de vir pra cá, meus amigosengenheiros também haviam dito que por causa do pré-sal tinhamuita oportunidade na minha área.

Minha família é uma família pequena. Meu avô tem setefilhos. Eu tenho seis tios. Também tenho uma irmã que já terminoumedicina. Eu vivi com meus avós porque naquela época meus tios

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eram adultos, estavam estudando ou morando em outras cidades emeus avós estavam sozinhos, então fiquei com eles. Ao criar-me commeus avós, consegui aprender o dialeto quechua. Aprendi muitascoisas lá com meus avós.

Hoje trabalho com costura. Trabalho para meu tio. Égracioso lembrar que, durante o colégio, eu tinha um círculo deamigos que gostava de rock. Eles pediam que meu tio, que eraalfaiate, fizesse calças pretas ou deixasse as calças pretas mais justas. Meu tio não queria fazer isso e foi aí que comecei a costurar.Costurava as calças dos meus amigos. E também ganhava algumdinheiro. Trabalhei com meu avô também, na área de mecânica,sempre o ajudei.

Quando decidi vim pra cá, estava em Sucre, a cidade ondeatualmente minha família mora. Eu já tinha falado com eles doismeses antes da minha viagem. Estavámos aguardando a data daviagem. Na última semana, consegui me despedir dos amigos eorganizar meus papéis. Eu não estava trabalhando naquele momento.Todo mundo concordou, só que minha mãe falou que eu teria quetrabalhar e ganhar experiência na minha área lá na Bolívia antes devir para o Brasil. Como eu já tinha falado com meu tio, que moravaaqui, foi mais fácil convencê-la de que eu iria estudar aqui.

Eu gostei da gente daqui, muito alegre, sempre trata debater papo, são amigáveis. Meus planos agora são passar novestibular da USP e fazer a faculdade de Letras. Me falaram que naUSP você tem a opção de estudar inglês, francês e russo. Possotrabalhar como intérprete ou tradutor. E posso conseguir empregonuma editora. Também quero realizar outros projetos que tenho com

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meus amigos na área de confecção de roupas. Eu e um grupo deamigos estamos pensando em mantar uma loja online   de venda deroupas. Cada amigo terá uma função, por exemplo, de cortador,desenhador, estilista, piloteiro e costureiro.

Antes de vir, preenchi no formulário que eu viria paraestudar. Se você vai como turista tem que comprar a passagem deida e de volta. Em outra modalidade só precisa da passagem de ida.Quando cheguei, tirei todos os documentos aqui. Foi fácil. Eu mesurpreendi! Porque a organização aqui quanto a entrega dedoumentação é certinha, você marca a data e eles entregam. Ébastante diferente lá da Bolívia. É complicado tirar a documentaçãolá. Quando tirei a documentação não tinha conhecimento dasinstituições que auxiliam os imigrantes, mas foi mais fácil pra mim,porque meu tio já tinha toda a documentação e me orientou. Eu meconsidero privilegiado, porque é muito mais fácil morar com uma

pessoa que você já conhece e que já está aqui há mais tempo.

Eu vim de ônibus. A viagem foi legal, durante o trajeto eutive a oportunidade, numa parada, de ter um primeiro contato comum brasileiro. Foi minha primeira experiência com a LínguaPortuguesa. Os ônibus que partem de lá chegam na estação BarraFunda. Essa estação é muito lotada e quando cheguei me surpreendi,

porque tinha muita, muita gente. Quando cheguei, meu tio estava meaguardando lá. Ele comprou os bilhetes do metrô e foi a primeira vezque eu passei por uma catraca e andei de metrô. Como eu tinha medode me perder em São Paulo, passei a tomar como ponto dereferência as estações de metrô, pois uma das primeira coisas queaprendi foi me locomover pelas linhas do metrô.

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Meu tio me falou de um centro, onde tinham eventosculturais, com ingresso gratuito ou que custava um real, comecei a iràs apresentações de música, de teatro e passei a frequentar aBiblioteca São Paulo. Aqui você tem muitas oportunidades, é sóaproveitar! Conhecer gente e fazer contatos ajuda muito. Nessestrês anos, eu consegui conhecer muita gente, aprender a língua etambém conhecer gente não só do Brasil, mas de outros países. Eucheguei a trabalhar como voluntário na Copa de 2014 e conheci muitagente! Trabalhei no credenciamento. Já fiz inscrição para trabalhar

no mundial da Rússia.No momento de fazer a mala, minha mãe não estava e eu

enchi a mala: uma metade com livros e a outra metade com roupas.No momento de pegar a mala, minha mãe perguntou o que eu estavalevando, porque estava muito pesada, e eu não disse nada pra ela,falei que eram só roupas. Quando chegamos na fronteira, ela revisou

as malas e encontrou os livros. Ela quase enloqueceu, perguntandoporque eu estava trazendo tantos livros. Mas eu precisava trazer. Eucostumo ler de vez em quando, porque cada livro tem seu significado.

Decidi trazer livros dos quais eu gosto muito, por exemplo,eu trouxe Dostoievski, pois gosto da literatura russa. Um autor queadmiro muito é Jorge Luis Borges. Outro autor é Frederico Garcia

Lorca, que morreu durante a guerra civil espanhola, foi assasinado.Ele era amigo de Salvador Dali. Trouxe também um livro de AlbertEinstein, que não é sobre o conteúdo matemático, mas sobre afilosofia da teoria da relatividade. Outro autor que é um gênio éAntón Chéjov. Tenho também um livro de Nietzsche, Humano,

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demasiado humano , que na verdade era de minha mãe. Ela liabastante quando morava na Argentina.

A maioria dos livros que tenho tem uma numeração, issosignifica que pertenceram a uma biblioteca. Lá em Sucre tinha umabiblioteca financiada por uma Ong espanhola, mas a bibliotecaquebrou e para pagar as contas de luz e água, eles tiveram quevender o acervo. E a gente coloborou! Consegui comprar alguns

livros. Foi dessa forma que obtive a maioria dos livros. Deixei muitoslivros lá, mas os que eu trouxe são dos autores que eu mais adimiro.

Muitos desses livros, cheguei a compartilhar com outraspessoas, não ficaram só comigo. Eu difundi entre meus primos,emprestei para eles. Alguns foram devolvidos, outros não. Empresteipara amigos também. Esses livros me lembram meus amigos,

familiares e pessoas próximas que conheci. As relações que tiveantes de vir para cá.

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AQUI É TUDO MUITO LONGE!Lucia Ireyo Raimundo 

Meu nome é Lucia Ireyo Raimundo, tenho cinquenta e cincoanos e sou de Bolívia. Hoje estou trabalhando de babá e estouaprendendo a fazer outras coisas que necessito fazer, como pintar,

costurar, tudo! Minha história é um pouquinho triste. Quando eu erapequena, minha mãe faleceu e as três irmãs ficaram sem mãe. Somostrês irmãs. Assim, aprendi na vida, sofri tanto, fui crescendo,crescendo. Estudei um pouco e parei. Meu pai não nos fazia estudar.Assim fui crescendo e apareceu um trabalho com uma senhora que éminha conhecida, fiz contrato com ela e vim aqui ao Brasil trabalhar,para cuidar de suas duas filhas. Estou há quatro anos aqui.

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Tive quatro filhos, que vivem em Bolívia. Deixei meus filhos evim sozinha pra cá. Uma esteve doente e faleceu. Ela tinha 31 anos.Complicou-se sua doença, era leucemia. Um vírus contagioso lhesubiu ao cérebro e ela não resistiu mais. Isso foi em 2014. Havia idopara a Bolívia e outra vez voltei ao Brasil para seguir trabalhando,com o coração partido, longe de minha família. Aqui tenho amizadesque me apoiam bastante. Meu filho mais velho quer que eu volte àBolívia para que a família fique toda junta. Vamos ver se sigo aqui ouvou regressar. Só Deus sabe o que vai passar. Sei que quero

continuar trabalhando.Estou um pouco triste, um pouco alegre, mas estou feliz. Fico

triste quando penso em minha filha que faleceu e já não estápresente. E alegre quando estou com minhas amizades. Quando nosreunimos e estamos em grupo fico um pouco alegre e me esqueço detudo. Mas vai passar, porque isso passa, embora não se possa

esquecer tão rápido.

Lá na Bolívia, eu trabalhava muito, tinha um negócio e vendiacachorro-quente, frango, batata, arroz e salada. Vendia de tardeaté uma da manhã. Depois, me levantava cedo para novamente ir àscompras. Eu gosto de cozinhar. O povo que me conhecia lá, me pediapara que eu preparasse almoço e janta. E assim vivi! Trabalhei

bastante, sem descansar. Aqui já descanso, quase não trabalhomuito. Descanso sábado e domingo. E durante a semana trabalhonormal, cuidando das meninas. Já trabalhei muito para ajudar osmeus filhos, pagar água, comida e luz. Quando separei do pai deles,ele não ajudou.

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Eu morava em Santa Cruz, mas nasci em outro lugar, emYacuiba. Como meu pai gostava de trabalhar indo de um lugar aoutro, saímos de nossa casa e fomos para outra cidade, onde faleceuminha mãe de parto. Eu tinha cinco anos. Fomos para Santa Cruz emeu pai permaneceu aí, trabalhando.

Antigamente, você não podia estar conversando com ummenino fora se não levava palmada, apanhava. Minha irmã teve quecasar aos treze anos, pois estava conversando com um menino dedezoito anos. Mas ela não dormiu com ele, porque era muito menina.A sogra da minha irmã cuidou dela e, depois, de nós, pois meu pai foiembora com outra mulher. Crescíamos e já não havia como comprarum livro ou um lápis para mim e para minha irmã, porque meu pai nãoaparecia e minha irmã não trabalhava. Não terminei a escola.Ficamos sem estudar quando eu tinha oito anos.

Tenho uma tia, por parte de mãe, que nos levou para morarcom ela. Passamos dois anos com minha tia e ela morreu de enfarto.E assim fui crescendo, comecei a trabalhar, me casei, não me casei,me juntei. Tão pouco fui feliz com esse homem, fracassei em meumatrimônio. Acabou tudo porque ele bebia muito. Depois de muitotempo voltei com ele e ia casar, mas ele não mudou e eu já nãoestava acostumada, então separei mesmo. Fui amadurecendo, criando

meus filhos e trabalhando. Meus filhos e meus netos são minha vida!

Gostaria de voltar a casar, necessito de um companheiropara conversar. Meus filhos não querem que eu case, que eu namore,que nada! Porque eles têm medo que o homem me bata ou que eusofra. Um brasileiro, quando eu morava em Curitiba, já tentou casarcomigo, mas eu não quis, pois tinha que trabalhar aqui. Toda a família

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dele era muito boa comigo, mas tenho que pensar bem para ter umarelação com alguém. Em todo lugar que íamos, havia um brasileiroenamorado  por mim. Todavia, eu não dava chance. Por fim, mudamospara São Paulo e aqui já não tenho namorados, só admiradores.

Quando cheguei da Bolívia fui direto para Curitiba, moreicinco meses lá, depois mudamos para Cuiabá. Sempre quis vim aoBrasil para trabalhar e gostei de ter vindo, porque sempre pensava:“Eu quero ir ao Brasil!”. Porém, quando cheguei, queria ir embora,pois eu não aguentava e chorava, porque já não estava acostumada acuidar de crianças. Eu chorava e dizia “Deus meu, o que fiz tantopara vir parar aqui?”. Todavia,  vim orientada por uma ministra,membro da Igreja Messiânica, que me disse que eu deveria ficar noBrasil e juntar dinheiro para garantir meu futuro. “Aguente o quevenha, mesmo que chore sangue, fique”, ela me dizia.

Quando decidi vim para o Brasil, minha vida lá na Bolíviaestava ruim. Estava sem dinheiro e meu negócio não dava retorno.Quando me falaram desse trabalho, aí eu vim. Choraram tanto pormim! E eu também chorei. Eu conhecia a tia da minha chefe, que meincentivou a vir para o Brasil acompanhar sua sobrinha. Eu vinha sópor um tempo, mas eles gostaram do meu trabalho e eu sou espertapara cozinhar, então fiquei.

Teve uma época que fui passar as férias na Bolívia e nãovoltei, fiquei lá por onze meses, trabalhando para mim, pois faço detudo relacionado a vender. Tinha minha família também. Fiquei lá,pois a mãe da minha chefe dizia que eu só ganhava dinheiro, semfazer nada, escutei e fiquei brava. Gosto que me falem de frente. Aminha chefe trouxe outra pessoa da Bolívia, mas essa pessoa brigava

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muito com as meninas, pelo que me disseram. Quando liguei para umadas meninas para desejar feliz aniversário, minha chefe perguntouse eu não queria voltar. E eu voltei, mas falei que ia embora outravez, que só ficaria três meses. Mas já estava tirando documento,então fiquei.

Não entendia muito bem o Português, falava, mas nãoentendia. Falava tudo errado. Fui sozinha tirar meus documentos. Fuicom medo, porque eles não me entendiam. Me disseram que eu deviair à Lapa. E eu falava para eles: “Por que você não fala espanhol?  Quase não entendo nada, explica devagar para mim!”. Tinha outroboliviano lá e foi ele quem explicou onde eu tinha que ir. Nãoentendia nada para tirar meu RNE. Não conhecia nada, era outroidioma e é muito difícil quando você entra e não sabe nada. Aprendientrando, assistindo tv, escutando rádio e fui aprendendo umpouquinho. Quando saía na rua me dava medo, tinha medo de que os

outros falassem comigo, porque eu não entendia nada e tão pouco eupodia perguntar algo. Eu ficava perdida, não sabia como caminhar.Não sabia falar, nem entendia. Agora entendo, porque fiz um curso.

Na Bolívia, meu sonho sempre foi o Brasil. Eu tentei vir trêsvezes com o grupo da Igreja Messiânica, mas meu marido, com quemcasei depois do meu primeiro marido, não queria. Quando vim, não

acreditei que estava no Brasil. Vim de ônibus. Gosto de viajar deônibus para desfrutar a paisagem. Eu não acreditava que era euquem estava entrando. Graças à Deus conheci várias partes doBrasil. Para mim fui um sonho. Com a minha chefe fui para o Rio deJaneiro e conheci o mar, fomos comer peixe e camarão. Nunca em

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minha vida tinha visto o mar, só nos filmes. Que lindo é quando o soladentra no mar! Foi o mar mais grande que conheci.

Daqui, eu gostei muito do suco de goiaba, nunca tinhatomado. Há coisas aqui que não aproveitamos lá. Há sucos de todosos tipos aqui. Lá só chupamos as frutas e não usamos para outrascoisas. O suco de acerola também é bom! Quase ninguém lá conheciaacerola. Não sabiam como preparar o suco e tão pouco sabiam o queera acerola. Aqui tem muitos tipos de sopa, como de folhas verdes.Aqui é diferente! Eu gostei das coisas aqui. É fácil de comer ascoisas, porque eu gosto de comer.

Aqui é tudo muito longe, muito cansativo. Para caminhar temque sair cedo. Só isso, mas você acostuma. Antes não acostumavacaminhar muito. Onde eu morava, eu caminhava meia quadra até ondeo ônibus passava. Não estava acostumada a caminhar tanto. Lá nuncatinha andado de elevador e escada rolante, andei aqui.

Santa Cruz antes era mato, mas agora está crescendobastante. As pessoas do interior estão indo para lá. Fui de Bolíviapara Curitiba, moramos em Juruena, no Mato Grosso, muito linda,muito bonita! Eu gostei. Perto de Curitiba fomos a um lugar que faziamuito frio, então mudamos para Campo Grande e ficamos lá quase um

ano. De campo Grande viemos para São Paulo e não gostava de SãoPaulo, porque era tudo difícil, caminhávamos muito. Eu falo para meufilho que a Bolívia é um paraíso! É tudo perto, não se caminha muito.

Sobre os brasileiros, eles nunca me molestaram, onde eu vousempre sou muito bem recebida, por mulheres, homens e crianças.

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Nunca tive problemas por ser boliviana, nunca me descriminaram.Aqui, e em todas as partes que morei, fui bem recebida.

Da Bolívia, tenho guardada uma caixinha cheia de bijuterias.Essa caixinha ganhei do meu filho quando fui de férias ao meu país,havia quatro brincos dentro, mas nela guardo outras bijuterias querecebi da gente de lá. Esse meu filho já veio aqui para o Brasil. Eudei a viagem de presente de aniversário para ele. Meu filho me deuesses brincos em um dia particular. Foi a primeira vez que eu recebium presente assim dele, acho que quis me dar por sentir carinho.Fiquei muito contente, porque esse menino é pouco carinhoso, não émuito apegado a mim. Ele é sério, tem o jeito dele. Sempre foi assim.Digo que ele é chato, não é atento com as pessoas, nem gentil. Sóuso os brincos em casa, não para sair, porque os fechos dos brincoscaem muito na rua. E não gosto de perder nada que me dão depresente, sou muito cuidadosa! Quando uso eles, lembro do meu

filho. Faz tempo que eu não coloco estes brincos, estavam bemguardados. Tudo que me regalam eu guardo com carinho.

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Quando vou à Bolívia, já não acostumo lá, como outrosalimentos e sinto dor de estômago. Lá o tempero é muito forte, temmuito azeite e sal. Mesmo assim, do que sinto mais falta é dacomida de lá. Sopa de frango caipira com mandioca, acompanhada deum arroz especial, me encanta comer. Aqui galinha caipira fica longe.Meus filhos estão com saudade de mim porque eu cozinho. Querem acomida que eu faço. Eles falam: “mãe você já não vai trabalhar !”.Para mim meus filhos não são adultos. Dizem que eu não deixo meusfilhos amadurecerem. Eu tenho medo de eles virem morar aqui, pois

outro dia mataram um boliviano. Assaltaram ele, queriam dinheiro ecomo não havia dinheiro, então o mataram. Tinha vinte e quatro anose fazia três meses que estava aqui. Lá é violento também. Eu tenhouma vizinha lá na Bolívia, que mataram seu filho, que vendia maconha.Lá é perigoso também. Só que lá matam e levam longe. Igual aqui!Matam e levam a outro lugar. Assim é.

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LIVRE ATÉ DE SI MESMOMiguel Ángel Saavedra Aguilar 

Meu nome é Miguel Ángel Saavedra Aguilar e só tenho trintae seis anos. Sou boliviano, e sim, sei costurar. Conheço o Brasil fazonze anos. Falo que conheço, porque não morei os dez anos contínuosaqui, pois voltei para a Bolívia, morei dois anos lá, depois voltei para

o Brasil por um ano, voltei para a Bolívia de novo e assim vai. Nasciem La Paz, mas nem sempre vivi em La Paz. Saí de casa aos doze anose fui morar em Beni, trabalhei como ajudante de caminhão e comeceia viajar, por isso conheço toda a Bolívia. A primeira vez que vim aoBrasil, tinha vinte e quatro anos. E penso que vir pra cá, talvez, eraminha última opção. E assim era para muitos de meus amigos. 

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Eu venho de uma família muito pobre, mas não foi esse o

motivo que me fez vir para o Brasil, pois quando eu decidi vir pra cáestava num momento muito crítico emocionalmente. Lá eu sobrevivia,mas a parte emocional foi decisiva. Foi uma série de acontecimentosque me trouxe para o Brasil. Eu lembro que minha situaçãoeconômica estava tão ruim, que eu vim com uma muda de roupa.Tinha posto na mochila um par de sapatos, dois pares de meia, minhacarteirinha de jornalista, duas camisas, uma calça, a passagem deSanta Cruz até Ciudad del Este e cinco bolivianos no bolso. Era essaminha situação.

Também trouxe comigo um artigo que me deram para ler,intitulado “Masculinidades en la cultura de la globalización ”. É umartigo sobre masculinidades. Era um texto que falava sobre começara ver a violência a partir dos homens. Enxergar a violência como algodos homens e não exclusivo das mulheres. Foi um dos primeirosdocumentos que recebi quando comecei a trabalhar com direitoshumanos, quem me deu isso foi a pessoa que me ensinoupraticamente a ler. Eu sabia ler, mas daquele jeito onde você nãoentende nada, só repete. Grande parte do caminho que sigo hoje sedeve a essa pessoa, que é um amigo. Ele fez o maior questionamento

que já recebi, perguntou O QUE EU QUERIA SER NA VIDA. Disseque eu queria ser locutor de uma rádio, só de música, e elequestionou POR QUE EU NÃO QUERIA SER UM LOCUTOR LÍDERDE OPINIÃO.

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Esse amigo é psicólogo agora. Foi quem me deu a primeirachance de trabalhar em outros espaços, onde muito além de utilizaras mãos, também utilizavam “o cérebro”. Lembro que eu trabalhavade Disk Jockey  numa discoteca e esse meu amigo me questionava edizia: “   ATE QUANDO VOCÊ VAI GANHAR SEU DINHERO COM

SUA GARGANTA? NÃO ACHA QUE É HORA DE GANHARDINHERO COM SEU CÉREBRO?”. Trabalhei com ele por muitotempo. Eu era seu secretário. Ele tinha secretário, não secretária.Então, essas folhas significam para mim o começo de um trabalho, ocomeço de uma vida. Quando tenho algum problema, mando email  praele ou ligo pelo chat   e trocamos opinião. Vim lendo o artigo no

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caminho para o Brasil para me lembrar de onde eu saí, pois essetexto é uma autorreflexão, é um questionamento sobre o que é serhomem.

Quando eu vim para o Brasil, eu não esperava encontrarnada, só queria fugir do meu país. Mas tinha uma visão do Brasil,achei que fosse um “Estados Unidos”, que tivesse só prédios emulher pelada na rua. Quando eu estava lá, víamos o carnaval doBrasil e lá, pelo menos onde eu morava, erámos muito conservadores,acho que porque lá é frio. Vim pelo Paraguai e a primeira coisa que vifoi favela, aí me assustei e questionei: “Cadê o Brasil que mecontaram?”. 

Quando cheguei aqui, tinham poucos bolivianos. Já tinha noBrás, onde sempre teve. E a festa dos bolivianos era numa ruapequena, que era a Rua do Glicério. No ano seguinte, começou a crisena Argentina e muita gente boliviana que morava lá veio para oBrasil. Com mais pessoas, vieram as rádios comunitárias, as festasmaiores e a mão de obra ficou mais barata. Foi nesse momento quepude perceber que tinham muitas coisas erradas, por exemplo, oslugares que “ajudavam” os migrantes começaram a cobrar, lembromuito bem de um anúncio que tinha: “APORTE VOLUNTÁRIO POR20 REAIS”. Se você coloca um preço, não é voluntário!

Antes de vir, eu sabia que ia trabalhar doze horas por dia,comer e dormir no mesmo lugar, mas em algum momento da viagemcomecei a sonhar, pensei: “Vou trabalhar, conhecer outras pessoas,vou crescer lá!”. Mas, quando estava aqui há uma semana, já queriavoltar para meu país, pois nunca imaginei que era tão ruim trabalhardoze horas por dia, sem sair. É quase uma prisão. Não é nem um

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regime semiaberto, porque você não sai de lá. Se a minha situaçãoemocional estava difícil, estando fechado, as coisas pioravam. E opior é que naquela época você não ganhava nada. Era trabalhar parapagar, porque eu não sabia costurar e, mesmo que eu tivesse meuirmão aqui para me ensinar, não é tão simples assim, demora um bomtempo para você aprender a costurar.

Vir para este país foi minha última chance, mas no primeiroano que eu estava aqui, eu odiei o Brasil, eu amaldiçoei tanto o Brasil!Porque tive que trabalhar muitas horas por dia para ganhar pouco.Eu não gostei mesmo, e pensei: “Não! Eu vou embora!”. Voltei parameu país e de novo tive uma recaída emocional, então tive que tomaruma decisão, que foi retornar ao Brasil. Pensei que se costurar ia metirar de onde eu estava, iria costurar. Eu ganhava um pouco mais, aspessoas me valorizavam mais e já comecei a interagir com outraspessoas. As pessoas me chamavam para trabalhar com elas. Percebi

que meu trabalho estava melhorando. Aí comecei a estudar, comeceia procurar outras coisas.

No Brasil, tentei me integrar na comunidade dos migrantes,tentei entrar no círculo dos bolivianos, só que nunca consegui meintegrar por completo, talvez por minha rebeldia, sou uma pessoamuito rebelde. Então, voltei para meu país por mais dois anos. Aqui

tinha feito um curso de webdesing , não sabia nada, mas era maisvalorizado na Bolívia, me falavam: “Nossa! No Brasil? Vem trabalharcomigo!”. Só pelo fato de ter feito curso no Brasil. “Você falaPortuguês?”, me perguntavam. Eu não falava nada, mas respondia:“Falo, falo!”. Penso que se hoje eu volto pra Bolívia, com certezatenho um trabalho lá.

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Eu penso que conheço o quão difícil é a área da costura. Seique a costura não é opção como muitas pessoas acham, na verdade,você é empurrado para trabalhar nela. Hoje, por exemplo, estãovindo os haitianos, todo mundo fala deles, mas os bolivianos tambémestão chegando e em grande quantidade. Por que ninguém fala? Porque ninguém fala dos jovens que estão vindo? Eles também estãotrabalhando no mesmo regime análogo à escravidão. O boliviano évisto como trabalhador escravo e o haitiano é trabalhador pordireito. É muito complicado quando as pessoas, que dizem que

representam os migrantes, simplesmente os utilizam como bandeirapolítica, pois assim só fazem medidas paliativas, pois querem ficarbem com seus amigos. De tudo acontece nessas relações utilitárias.

Aqui não encontrei nenhuma facilidade quando cheguei pelaprimeira vez, pois não tinha documentos. Minha ideia foi sair na rua,achando que ia encontrar um serviço, achando que eu ia fazer alguma

coisa, mas não, ninguém te abre a porta. Caminhei, caminhei,caminhei. Bati portas, perguntei como alugava uma casa e medisseram que precisava ter documento e conta no banco. Como tinhaa carteirinha de jornalista da Bolívia, fui procurar trabalho como jornalista, mas a carteirinha não prestava aqui. Hoje é mais simples,aspas, porque você chega e tem mais facilidade de obter osdocumentos.

Quando precisei renovar a documentação no Brasil, pedilicença de um mês no trabalho, lá na Bolívia, para vir aqui eaproveitei para fazer umas entrevistas para uma matéria sobreestupros e abusos nas oficinas de costura. Nessa época, fiqueisabendo que tinha prostituição na Rua Coimbra! Só que agendaram

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meus documentos para seis meses depois. Pensei: “Fico ou volto?”.Liguei e disse no meu trabalho que ia ficar aqui. De volta ao país, fuiem um instituto de informática, do nada, e falei: “Quero dar aula!”.Pediram meu currículo, eu entreguei e me deram a oportunidade.Tive que dar aula, em português, para brasileiros e topei. Nasprimeiras três turmas que peguei para dar informática, eles pagarampara me ensinar português, porque eu perguntava mais pra eles, doque eles perguntavam pra mim. Nisso, percebi a necessidade de sefalar português, porque conseguia até falar, mas não me comunicar.

Agora consigo entender quando as pessoas fazem piadas e brincam,naquela época não conseguia entender.

Agora sou consultor, dou consultoria paramicroempreendedores, no campo das relações humanas, pois tenhoconhecimentos em comunicação e experiência na área, que adquiriquando trabalhei com um dos melhores psicólogos da Bolívia.

Também fiz cursos aqui de PNL, Coaching   Sistémico e Design  Thinking , o que me deu mais ferramentas ainda. Quando háproblemas com produtividade, então eles me ligam e eu vou lá tentarresolver problemas. Eu cobro por solucionar problemas. Não douconselhos, dou consultoria. Uma das coisas que eu mais gosto é mecomunicar com as pessoas e perguntar, vivo fazendo isso e cobro porfazer isso. É bem legal! Entrei no mercado dosmicroempreendedores quando fiz um curso de empreendedorismo noSEBRAE, que te dá muitas ferramentas, mas para quem estácomeçando não se aplica, porque a pessoa precisa de outrosconhecimentos e disciplinas, uma vez que entendo que o início paraum microempreendedor, na maioria das vezes, é a informalidade. Énesse sentido que vejo que não se aplica.

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Tenho um programa de rádio que se chama “Claveles, Rosas  yOtras Flores ”, em espanhol, que é uma cópia de um programa derádio que tínhamos lá na Bolívia, onde falávamos de direitoshumanos. Eu sempre trabalhei com direitos humanos, desde 1999. Éuma área que me identifico muito. E quando vim para o Brasil, meidentifiquei ainda mais por causa da discriminação no acesso aotrabalho e também pela desigualdade social que tem aqui. No início, oprograma era uma cópia, um programa chato que todo mundo ouvia,mas ninguém escutava. Então, fizemos um contato via skype  com um

amigo que mora na Argentina e do nada virou outro formato. Agora éum programa mais dinâmico, falo de tudo, desde educação atéfolclore. O foco é que as pessoas discutam seus problemas e emprimeira pessoa. Penso que é hora de acabar com o discursoperfeito, com o politicamente correto. Mesmo que a pessoa não sejaformada, não tenha um conhecimento além da sua experiência devida, acho importante ouvir as pessoas e parar de ser guru.

Em um primeiro momento procurei a Praça Kantuta paraministrar cursos lá, mas a direção da época disse: “Não!”. Fiqueimuito decepcionado, pois eles falavam que faziam as coisas, mas nãotinham a “cabeça aberta”. Depois conheci a Jobana Moia, que meindicou a Veronica e, assim, conheci o Projeto Sí, Yo Puedo!  e passeia ser voluntario lá. No projeto,  a cada final de turma,  temos asformaturas e numa formatura fizeram uma peça de teatro. Depoisnuma outra turma, não sabíamos o que fazer para a formatura, aíresolvi fazer uma apresentação em stand-up  e gostaram. O teatrofoi uma coisa que apareceu do nada em minha vida. Não sou umartista, mas um aprendiz. Penso muitas coisas e não tenho ondefalar. Gosto do teatro, porque posso falar o que eu quero, as pessoas

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podem concordar o discordar, podem me amar ou me odiar. O teatropra mim é um espaço criativo, onde sou eu mesmo. Tomara que aspessoas não se conformem nunca. Acho que a certeza de que estáfazendo a coisa certa é um problema. Penso que a dúvida e acuriosidade são as melhores coisas! E o segredo é não se fechar, nãopensar que porque sou assim, vou acabar assim. Gosto de um grafiteque diz: “Livre até de mim mesmo”. Não somos artistas, mas somos aarte.

Falando em preconceito, eu achava que não tinha, mas aquitem preconceito também, penso que eu nunca sofri preconceito.Tenho uma experiência muito legal com relação ao preconceito, umavez quando eu estive dando aulas, uma pessoa mudou de turmaporque eu era boliviano. Era o que eu pensava. A pessoa falou nadiretoria que ia trocar de turma, porque o professor parecia nãosaber o conteúdo. Eu falei para diretora que se eu não sabia, não

seria na primeira aula que me diriam que não sei. Eu achei que erapreconceito. Foi muito difícil pra mim. Eu entrei em depressão.Olhei-me no espelho e falei: “O que de diferente tenho?”. Masdepois, foi engraçado, levei um amigo boliviano lá na escola e ele mefalava que tinha uma amiga muito legal. “Ela me ajuda em tudo,entende o que eu falo”, ele me dizia. Na formatura, ele me convidoue me apresentou a amiga dele e era aquela menina que eu achava quetinha preconceito comigo. Foi um choque pra mim. Aí eu fiqueipensando: “Será que o preconceito estava nela ou em mim?”. Porquese ela fosse preconceituosa nunca teria virado amiga do meu amigo,mas ela o ajudava.

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Outra experiência que tive com relação ao preconceito, foiquando comecei a frequentar o Projeto Sí, Yo Puedo!. Passei a pegaro ônibus que ia para Edu Chaves, onde tinha muito boliviano, e foiquando percebi o preconceito que tinha de verdade. As pessoasmaltratavam os bolivianos dentro do ônibus. Antes eu não pegavaeste ônibus. Quando eu subia no ônibus, já começavam compiadinhas. Eu dava dez reais para o motorista e ele dizia que nãotinha troco, eu dizia que podia esperar e ele dizia que eu podiadescer. Eu ficava chateado e reclamava, pois eu estava pagando, e

ele insistia que não tinha troco e dizia que eu devia descer. Se eufosse brasileiro, ele não fazia isso. Aí eu descia do ônibus. Foiquando pude ver o preconceito de algumas pessoas. Eles falavam comos bolivianos coisas como: “Fica lá no fundão! Você tá fedendo!”.Coisas duras. “Tem que tomar banho!”, diziam.

Recentemente, morreu um amigo meu e disseram que

mataram ele porque boliviano costuma andar com dinheiro. Disseramque foi latrocínio. Mentira! Conheço meu amigo e ele nunca tevedinheiro, pegava o dinheiro que ganhava e mandava pra Bolívia. Nãose vestia bem, não tinha carro, nem uma bicicleta ou um tênis bom oucelular. Sempre questionei o discurso que muitas pessoas têmquando falam que o boliviano tem dinheiro guardado em casa, poispara mim as pessoas podem guardar o dinheiro onde quiserem. Aobrigação do Estado é dar segurança, não só para os bolivianos, maspara a população em geral. Este meu amigo morava num bairro daperiferia. A parte mais dura é ouvir que é “um caso excepcional”.Outro questionamento meu é entender por que, se os bolivianos “têmdinheiro em casa”, tem cada vez mais bolivianos morando nos bairrosda periferia. E pior ainda, desde quando a vítima é culpada?

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Possibilitaram-nos abrir contas em bancos, porque bolivianosguardam dinheiro em casa, mas, não podemos guardar dinheiro emcasa? Somos os responsáveis por sermos roubados? Eu tenho direitode guardar dinheiro onde eu quiser. Por que vão me obrigar areforçar um sistema ganancioso que é o banco. Colocam a culpa nasociedade e não acho que deva ser assim. Digo isso, pois ouço muitodizer: “É que eles guardam dinheiro em casa”. Outra, quantaspessoas precisam morrer? Tem que se tornar algo comum para quese faça alguma coisa? O discurso repetitivo não serve para os

migrantes, não queremos nada a mais, simplesmente queremos o quetodo ser humano quer, mas o Estado e as lideranças,lamentavelmente, não querem, pois muitos sobrevivem à custa dosmigrantes.

Acho que com relação à imigração, o maior problema não échegar ao Brasil, o problema é antes de você sair do seu país. O

Brasil tem seus problemas, mas acho que falta uma cultura demigração na Bolívia. Falta uma educação para o mundo. Você não épreparado para sair de lá. No meu país não tem uma cultura deemigração. Ouvi falar que no Uruguai tem uma cultura da migração,pois te preparam para sair do país, e isso pode se perceber quandoum estrangeiro chega aqui, a primeira coisa que ele faz é aprender oidioma. Porém, de onde eu venho, na minha região pelo menos, aspessoas vêm para cá pensando em ganhar dinheiro, então aceitamtudo. Boliviano é visto como mão de obra barata. Em muitos lugares,onde eu já fui, as pessoas querem me pagar menos e acho que omotivo é o fato de eu ser boliviano. Tem um preconceito muitogrande contra bolivianos no sentido profissional. Boliviano é igualcostura. Tudo bem que eu sei costurar, mas isso não me impede de

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aprender outras coisas. Acho que a mídia dirige muito a visão comrelação ao povo boliviano, boliviano profissional não é notícia,boliviano escravo é notícia. O mais triste é que na comunidade deimigrantes acontece a mesma coisa.

Às vezes, as pessoas acham que aprender o idioma é a últimacoisa a se fazer, mas é o contrário, aprender o idioma é a primeiracoisa a se fazer. O idioma é primeiro passo para a integração doimigrante. Na minha visão, olhamos o Brasil não como um lugar deoportunidades, mas um lugar onde se vai ganhar dinheiro. Se osimigrantes chegam e fazem parte da desigualdade é complicado parao próprio Estado, por isso acho que deveriam ter políticas voltadaspara formação do imigrante quanto ao idioma.

Hoje, eu acho que ter imigrado foi a melhor decisão quetomei. Sou muito grato ao Brasil, eu amo o Brasil por ter me dadouma segunda chance. Quando comecei a pensar que aqui eu tinha umaoportunidade, mudou toda minha vida. Se eu tiver que voltar acosturar, volto, mas vou continuar procurando outras coisas.Costurar virou mais uma ferramenta do que algo ruim pra mim. Aquiconheci muitas pessoas legais, tive oportunidades e penso que aindavou ter muitas oportunidades. Acho que vou viver fazendo ponteentre o Brasil e a Bolívia.

Algo com que não concordo, é que as pessoas te olhem comsuperioridade, que venham te ensinar, como se o boliviano nãosoubesse de nada. Ou talvez, eu me sinta inferior. Tenho muitadificuldade com o poder. Você diz que todo mundo é igual, mas narealidade não é assim. Como todo mundo pode ser igual, se nósimigrantes nos discriminamos entre nós? Sou uma pessoa, por

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exemplo, que não acha ruim a costura. Não sou contra a costura, soucontra o sistema que favorece a desigualdade social e, porconsequência, o trabalho análogo à escravidão. Não gosto de serpoliticamente correto, mas tudo bem. Falam da costura como se vocênão pudesse ser costureiro, mas se você é psicólogo, você pode serpsicólogo. Penso que o problema não são as horas de trabalho, pois sevocê trabalha numa multinacional, com certeza não vai trabalhar oitohoras, a pergunta é: Por que não falam deles? A questão principal é adesigualdade social. Ainda continuamos num sistema academista,

colocamos o “título” antes do ser humano. “Você não estudou, entãovocê não presta!”. Como se um “título” te fizesse uma pessoa melhor.Para mim, se for doutor ou morador de rua dá na mesma. Mesmo queas pessoas digam que não, elas chegam e te olham comsuperioridade. Os estudiosos vêm e ficam nos pesquisando, querendosaber sobre nossos problemas, acredito que são masoquistas e quegostam de ouvir histórias tristes, mas ao final acabam dizendo:

“Vocês, imigrantes, têm direitos”, “vocês têm que lutar pelos seusdireitos”. Eu penso que eles acham que somos muito tolos, mas nãosomos tão burros assim, sabemos que temos direitos. A questão épor que não exercemos nossos direitos. Será que este sistemahipócrita, onde os intelectuais da “pseudo-esquerda” são favorecidose gozam de lugares privilegiados, na verdade não prejudica o

exercício dos nossos direitos? Pois é muito cômodo questionarquando sua roupa é feita por mão de obra barata. Também acho umaperda de tempo, por exemplo, ter uma campanha para o voto, quandoem dez anos que conheço o Brasil, só no ano passado ouvi falar daconstituinte. É como se eu quisesse construir uma casa, mas nãotenho o terreno. A mesma coisa é o voto, você quer ter direito aovoto, mas sem ter uma constituinte. Precisa ter uma mudança na

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Constituição, já que esta impede a participação política dosimigrantes.

Hoje estamos discutindo o impeachment   da Dilma e hápessoas que querem que volte a ditadura. Os meios de comunicaçãovendem que a ditadura teve suas partes boas. Mas se ditadura voltaquem vai se ferrar são os pobres, não é o Faustão ou o Luciano Huck.Nós compramos o que a mídia nos vende. Continuamos assistindo aGlobo, continuamos rindo da desgraça dos outros. Não posso exercerminha liberdade se fico preso à televisão. Na internet , eu possoexercer melhor minha liberdade de escolha. Achei errado que quemvotou na Dilma não foi aos protestos, pois existe uma militânciacega, que não enxerga ou não quer enxergar os erros, não digo quedevam tirar a Dilma de lá, mas protestarem em busca de mudança.Você acaba votando pelo menos pior, é o que acontece na Bolíviatambém. A democracia é aquela democracia que outros países nos

ensinaram, mas porque temos que nos submeter a um modelo que foiimposto? Eu penso que as coisas aqui no Brasil estão mudando muito.A questão política está muito legal aqui hoje. Eu venho de um paísmuito politizado e acho que hoje estamos discutindo mais a política eisso é um avanço.

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AH É? TEM QUE FAZER?

Verônica Quispe Yujra 

Meu nome é Verônica Quispe Yujra, sou dentista, e estoucom trinta e cinco anos. Pertenço à comunidade boliviana e nasci nacidade de La Paz. Vim muito criança para cá, com quase oito anos.Acho que vim numa imigração parecida às demais, que é movida pelasquestões econômicas, mas com a diferença de que quem tomou adecisão de migrar, naquela época, foram meus pais. Meu pai veioprimeiro, em 1988 ou 1989, pouco depois da redemocratização doBrasil. E em 1992, a gente veio para cá junto com a minha mãe. Eulembro que foi uma viagem bem difícil. Como éramos três filhas,

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minha mãe e meu pai tentaram juntar o dinheiro que tinham, só quemeu pai tinha feito uma negociação aqui, que foi comprar meiaoficina de costura, então já tinha investido tudo. Uma lembrançabem forte que eu guardo dessa viagem é que na fronteira faltoudinheiro para uma passagem, pois não aceitaram que eu não pagasse.Então, eu me lembro dos meus pais tirando as alianças de casamentoe vendendo na fronteira mesmo para conseguirem comprar essapassagem.

Como meu pai já tinha estado aqui e acho que passado a piorfase dessa imigração, como trabalhador, como operário, quando agente chegou, até que a gente teve algumas regalias. A gente chegoue já tinha um teto. Ele tinha alugado um apartamento no Bom Retiro, já tinha umas duas ou três máquinas. Então foi só chegar e começara trabalhar! Ele já tinha alguns fornecedores na época e minha mãecomeçou a pôr ordem, no sentido de estruturar a cozinha,

estruturar a casa. E simplesmente começou a funcionar comoqualquer outra oficina, de chamar gente para trabalhar e morar junto. Enquanto isso, a gente foi sendo criado.

Quando chegamos, minha irmã mais velha já tinha 14 anos efoi a primeira das filhas a realmente sentar na máquina e trabalhar.Eu comecei a ter que aprender com tempo, mas sempre gostei mais

da parte de administração do que do trabalho com a própria costura,então ajudava mais nessa coisa de intermediação com as lojas, nahora de fechar as contas e fazer o cálculo do pagamento doscostureiros. E assim, foram se passando dez anos da nossa vida.

Meus pais tiveram, durante dez anos, oficina de costura,tiveram quase doze pessoas trabalhando e umas quinze máquinas.

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Mas, nesses dez anos, a única coisa que meus pais faziam era colocaro dinheiro para girar. Quando chegava o final do ano, a maioria doscostureiros viajava para Bolívia e meu pai tinha que pegar dinheiroemprestado e, às vezes, até vender máquinas para pagar as pessoas.Antigamente, os costureiros preferiam receber de uma única vezvários meses do que receber todo mês, porque aí ele ia embora comaquele total. Nessa época, era quando a gente passava mais fome,não tinha nenhum costureiro em casa. Minha mãe não tinha dinheiroe não se trabalhava esse mês. Pouco a pouco, meus pais perceberam

que lucro mesmo não estava tendo naquela oficina. Todo mundotrabalhava muito e nunca tinha dinheiro para gente. Eu brinco hojeem dia, que a oficina dos meus pais faliu porque eles nãoconseguiram explorar as pessoas, porque se a gente pensa nessarede de exploração que é montada, você só sobrevive se vocêrealmente explora. Depois de muitas brigas, minha mãe chegou àconclusão de entregar o apartamento e foi bem de supetão que ela

falou para meu pai que não queria mais.

Assim que a gente chegou, no primeiro ano, a gente ficou semestudar, porque tinha a questão do idioma. No ano seguinte, meu paiprocurou as escolas próximas lá no Bom Retiro para tentar nosmatricular, aí a gente viu como era difícil, naquela época, a questãoda matrícula de imigrantes sem documentação. Meu pai tinhadocumentação, mas acho que ele estava esperando fazer três anospara virar permanente, para depois fazer um processo chamadoreunião familiar, para que pudesse trazer seus filhos e sua mulherpara o país. Ele ficou esperando mais um ano e ficamos sem estudar.Quando passou um ano e a gente tentou estudar novamente, eletambém não podia tirar nossos documentos ainda, porque ele

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descobriu que era um dinheirão para cada um. Nós tivemos muitosorte, porque uma escolinha lá do Bom Retiro recebeu minha irmãmais nova e eu fui para segunda série, já tinha feito a segunda série,mas eles acharam melhor eu repetir. Só que para minha irmã maisvelha, que precisava de Ensino Médio, não teve jeito. Nenhumaescola permitia a matrícula dela e ela ficou mais um ano semestudar. Na verdade, nunca mais ela voltou a estudar, depois daquelaépoca ela voltou a estudar já adulta. E tudo em função da barreiracriada pela burocracia.

Por volta de 1994 saiu uma ratificação pelo ECA que diziaque o acesso à escola não podia ser negado, mas até então, muitagente sofreu com isso. Inclusive eu, acho que na sexta série, quandobaixou um decreto que todo mundo tinha que apresentar osdocumentos e eu e minha irmã não tínhamos documento, fomosretiradas da escola. Acho que coisas como essas que me fizeram

pensar em alguma forma de orientar as pessoas, para que situaçõescomo essa não se repetissem e por isso, hoje, nós temos o projetoSí, Yo Puedo! .

Da minha época da escola, tenho lembranças bem positivas.Sempre falo que sou de uma geração que não vivenciou o bulling ,bulling   não, a xenofobia. Bulling   todo mundo acaba sofrendo com

brincadeirinhas, essas coisas assim. Mas, xenofobia mesmo eu nãosofri. Na minha escola tinham alguns estudantes bolivianos e filhosde bolivianos e os alunos eram sempre solidários. Eu aprendiportuguês com os meus próprios amigos. Acho que acaba sendo maisdifícil hoje.

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Nessa de terem me barrado na sexta série, em meados dadécada de 1990, a gente tinha que pagar taxas diárias por estarmosaqui indocumentados, aí meus pais perceberam que era mais fácil agente sair do país e voltar para a Bolívia e fazer de conta queestávamos entrando de novo. Foi nesse ano que fizemos o primeiroretorno para a Bolívia. Passamos quinze dias lá, quando voltamos jádemos entrada no processo de regularização. E aí consegui obtermeu certificado da sexta série. Mas já tínhamos perdido outro ano eeu estava me achando muito velha para a série na qual eu estava.

Descobri que tinha supletivo e fui fazer supletivo aos quatorze anos.Acho que nessa época amadureci muito, pois eu tinha quatorze anose o mais novo da sala tinha vinte e seis anos. Foi quando percebi quemuita gente vai atrás de seus sonhos já com mais idade. Conhecigente da área da saúde. Nessa época me aproximei do instituto deformação chamado Dom Bosco. Lá encontrei amigos que meestimulavam a continuar os estudos.

Depois que meu pai faliu, a gente foi morar no Brás. Fomospara uma casa de dois cômodos e as máquinas ficavam empilhadas noquintal. Meu pai e minha mãe se olhavam e perguntavam: “E agora emque vamos trabalhar?”. Ele alugou um box no Brás e começou avender roupa. Minha mãe ficou sabendo que tinha um ponto deencontro de bolivianos, que era lá no Pari e viu a possibilidade devender comida lá. Nessa época descobri a escola técnica gratuita efiz a prova para o curso de enfermagem e passei. Muita coisa daminha vida foi por alguém que me falou, me deu orientação e meajudou. Meus pais já achavam uma grande façanha eu estar fazendocurso técnico e eles achavam que eu seria técnica de enfermagem eseríamos felizes para sempre!

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Quando eu estava terminando o técnico, todos os meusamigos começaram a falar que tínhamos que fazer cursinho paraentrar na faculdade. E eu: “Ah é! Tem que fazer?”.   Para mim erasempre: “Tem que fazer? Então tá”. Assim que me formei, conseguium trabalho e paguei um cursinho, mas sem noção do que eu queriafazer. Sempre falava para meus pais que depois de me formar eunão queria ninguém estranho circulando na minha casa, porque erapior que pensão. Na pensão você sabe que as pessoas estão depassagem, mas, na oficina, tinha gente que chegava a ser morador de

anos e de repente ia embora. Sempre falava para minha mãe que nãoqueria isso na minha vida. Acabei chegando na faculdade, fiz umapública, em São José do Campos. Me envolvi no movimento estudantile comecei a viajar muito para alguns congressos e eventos. Foiquando percebi que encontrava poucos de mim na universidade.Sempre acompanhava as listas de vestibulares e enxergavapouquíssimos sobrenomes espanhóis e ainda menos andinos. Me

perguntava porque esse pessoal não estava estudando. Esse foi umpensamento que desde a faculdade vinha me perseguindo. E chegueià conclusão que era por falta de informação. Por isso, desde afaculdade, eu alimentava a ideia de fazer um projeto que desseinformações para os jovens e, que assim como eu, tivessem acesso aoensino superior e outras formas de trabalho mais dignas.

Um dia, em 2012, sentei lá na Praça da Kantuta e comecei afazer o atendimento, no sentido de orientar quem quisesse algumaorientação. O que fortalece é o fato de que algumas pessoas queremorientação, por isso que o projeto continua. Todo mundo achava queeu tinha feito universidade porque tinha me naturalizado, mas não!Não é preciso se naturalizar para estudar em universidade pública.

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Então, são essas informações que, às vezes, parecem óbvias pragente, mas que podem transformar a vida de algumas pessoas.

Na Bolívia, morávamos em um bairro pobre, em uma casarelativamente grande. Não tinha encanamento e para tomar banhotínhamos um poço, onde, às vezes, a gente pegava água. O banho láera todo um ritual. Como é um país frio, tinham lugares que vocêpagava para tomar uma chuveirada e a gente fazia isso uma vez pormês. Durante a semana, todas as crianças entravam numa baciagrande cheia de água e tomavam banho juntas. Lembro muito daausência da minha mãe, não do carinho, mas da presença física. Comoela trabalhava como vendedora de mercado público, de manhã ela iaem um mercado e de tarde em outro. Saía cinco da manhã e chegavameia-noite. Minha irmã mais velha que cuidava mais da gente. O diaque a gente via minha mãe era no sábado. Só que no sábado, elacomeçava a ver as coisas erradas que a gente tinha feito.

Lembro que perto da data de a gente vir para o Brasil, minhamãe estava passando por um momento ruim ou era uma ansiedade devir embora, ou a questão econômica, porque ela trabalhava,trabalhava e nunca tinha dinheiro. Tenho pouquíssimas lembrançasde momentos de lazer com a minha mãe lá na Bolívia. Nossa diversãoera ir à Igreja aos domingos. Tenho poucas lembranças do meu pai,

porque ele veio para cá quando eu tinha cinco anos. Depois de doisanos, foi que reencontrei meu pai aqui. O que sei sobre o porquê deleter vindo para o Brasil é o que minha mãe conta. Na época, tinha umsobrinho do meu pai que já morava aqui e trabalhava com costura ecomo meu pai era alfaiate foi chamado para trabalhar aqui. Adecisão foi muito mais da minha mãe do que do meu pai. Meu pai até

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que tava contente com a vidinha e com trabalhinho que ele tinha lá.Ele tinha sua própria alfaiataria. Naquela época tinha movimento,pois os homens usavam mais roupa social, não usavam jeans, porexemplo. Porém, o pagamento era pouco para cobrir o aluguel e levardinheiro para casa. Adorávamos meu pai, porque ele entregavaencomenda e comprava iogurte, que era luxo pra gente. Pra genteaquilo era uma coisa de outro mundo. Mas, quem comprava nossomaterial da escola e nossas roupas era minha mãe.

Quando meu pai fez um pé de meia no Brasil e estavapretendendo voltar, minha mãe colocou ele contra a parede e disseque iríamos para o Brasil. Minha mãe acreditava, e em vários lugaresdo mundo se acredita, que como você passa a noite do réveillon   écomo vai ser seu ano. E no último dia do ano minha mãe trabalhou atétarde e pediu que eu e minhas irmãs esperássemos ela com a carne – lá não comemos peru. Estávamos olhando em direção ao ponto de

ônibus e quando ela chegou, não desceu do ônibus, desceu de um táxicheia de mala. “De onde saíram essas malas?”, nos perguntávamos.Ela chegou, olhou pra gente e perguntou se estávamos prontas e nósnão entendemos nada. As malas estavam vazias e ela começou acolocar coisas de cozinha, panelas e pratos dentro. Colocava nossoscasacos em outra mala e olhava pra gente dizendo: “A gente vaiviajar pro Brasil, não falei para vocês?”. A gente começou a chorar enisso passou a meia-noite. Em fevereiro a gente veio para cá.

Eu não tenho recordação de que eu tivesse algumaexpectativa antes de vir para o Brasil, mas lembro que minha irmãmais velha, que já tinha quatorze anos, chorava e dizia que nãoqueria vir. Ela já tinha um ciclo de amizade, toda uma vida lá. Ela não

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sabia o que ia fazer aqui sem amigos. Já minha mãe, acho que elatinha certeza que aqui teria oportunidade de mobilidade social. Achoque a expectativa dela era trabalhar o mesmo tanto que trabalhavalá, mas que aqui ela conseguisse juntar dinheiro e fazer com que osfilhos estudassem mais que ela.

A gente notou muito abundância aqui. Lembro do nossodeslumbramento com relação ao tamanho das coisas no Brasil. Aqui oque se chamava de viela, lá era avenida! O tamanho das guloseimasque tinham para crianças, também nos impressionou. Tudo era empacote, tudo chocolate grande! Isso para gente era muito diferente.Parece que até hoje é, porque, esses dias, chegou a filha de umaamiga minha e ela ficou impressionada com o tamanho dos ovos depáscoa. Ela disse que lá o ovo de páscoa é do tamanho de um ovo degalinha. Lá tudo é pequeno. O iogurte também, lá não existia essacoisa de copo, era só no saquinho. A mesma coisa em relação ao óleo

e ao arroz. Lá você não comprava óleo por litro, você ia na vendinha ecomprava 250ml, você podia levar até seu próprio potinho paracolocar o óleo. Como não tinha dinheiro abundante, não tinha aquelacoisa da compra mensal, você ia comprando conforme o dinheiro iaentrando na casa e você ia precisando.

Uma dificuldade foi o idioma, se bem que eu não senti muito,

mas minha irmã mais velha e minha mãe sentiram. Minha mãe é deconversar muito na rua, de negociar! E aqui ela não podia fazer isso.Lembro que ela ficava triste. Outra barreira que a gente sentiu, foia dificuldade de não conseguir colocar minha irmã mais velha naescola. É uma coisa que meus pais levam até hoje como culpa, porquenaquela época ela deixou de estudar e parou. No ano passado que ela

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voltou, mas ela perdeu uns vinte anos, sendo que ela sempre foi boaaluna. Tanto que três anos depois que ela estava aqui, meu pai pensouem mandá-la de volta para que ela continuasse os estudos. E foiquando ela começou a namorar e se casou, aos dezoito anos. É umafrustração que meus pais têm.

Outra barreira, acho que era a questão de alugar casa. Oapartamento que morávamos aqui estava alugado no nome de umcoreano que tinha uma oficina lá antes. Nosso primeiro ano noapartamento foi ótimo, mas no segundo, a imobiliária descobriu quenão era mais o coreano que morava lá e quiseram renovar o contrato.Meu pai encontrou o fiador, só que o aluguel de oitocentos reais foipara dois mil. E ele acabou topando. A imobiliária aceitou fazer ocontrato com o documento provisório que ele tinha. Quando a gentepercebeu que dois era muito caro, meu pai passou a procurar umimóvel mais barato. Qual foi a surpresa? Nenhuma imobiliária

aceitava o documento provisório dele. A gente ficou preso naqueleapartamento, que era um elefante branco, e isso foi um dos fatoresque acabou levando a gente à falência, então tinha que trabalharmuito, muito para pagar o apartamento e os funcionários.

Agora minha vida tomou um rumo totalmente diferente!Meus sonhos pro futuro é ser, quem sabe, umas das primeiras

doutorandas de uma universidade pública daqui e lecionar em algumauniversidade. Além desse sonho pessoal, é conseguir ver que osserviços públicos, principalmente os de educação e saúdeconseguiram se adequar para receber pessoas de fora. Tenho umaamiga que chegou com os filhos. O filho dela tem sete anos, e ela foichamada na escola porque ele não conversa, só que a língua materna

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dele não é o português, então ele não vai conversar mesmo! Quetrabalho é feito para adaptar essa criança aqui? Não é feitonenhum, se joga a criança e ainda se cobra que ele se comporte comoas outras. Quando eu ver que as escolas estão preparadas paravalorizar a interculturalidade e que estão preocupadas emproporcionar um período de adaptação na própria escola para essascrianças, acho que vai tá bom!

Do ano passado para cá a gente pode dizer que existe umarede de assistência ao imigrante, porque até ano passado não existianada. Com a criação do CRAI, com a criação antes da Coordenaçãode Políticas para Imigrantes, que apesar de eu achar que tádesviando as atribuições, tá fazendo alguma coisa. E com a criaçãodo CIC Imigrante agora, eu consigo enxergar o mínimo de rede,lógico que falta articulação, mas já existe essa rede.

Agradeço meus pais pelas ideias de superação e de certezaque a gente poderia estudar. É uma coisa que vejo muito nos pais deimigrantes, podem ser podres de ricos ou os mais pobres de todos,sempre desejam que o filho estude. Poucos vão dizer que desejamque os filhos sejam ricos do nada ou que ganhem na loteria. Muitosvão desejar que a riqueza venha com a formação.

Quando eu era adolescente, ganhei um aguayo  da minha mãe,mas nunca utilizei. Nessa época, eu estava bem no conflito de atéque ponto ser imigrante é bom ou não. Se por um lado, tem a riquezade você conhecer outra cultura, por outro lado, na fase daadolescência é muito sofrido ser diferente. Então, tudo em você édiferente! O jeito que teus pais te tratam e as coisas que você podefazer são diferentes. Quando ganhei o aguayo , acho que nos meus

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quinze anos, eu achei horroroso! Pensei: “Meu! para que eu quero umnegócio desse?”. Até porque o aguayo  é utilizado lá na Bolívia prasmulheres carregarem coisas, é uma manta que serve como se fosseuma bolsa das mulheres andinas. As mulheres andinas não têm bolsa,elas têm um aguayo . Se precisar levar alguma coisa, elas abrem amanta, colocam a coisa no meio, enrolam e colocam nas costas,inclusive crianças. Eu achava isso horrível!

Tanto tempo passou depois que eu ganhei essa manta, que euredescobri o valor da minha cultura, redescobri um pouco do orgulhode ser de outro país e de como isso traz a história dos meus, detodo o sacrifício e de toda essa coragem de largar o seu país paratentar a vida em outro lugar. E eu fui descobrindo isso à medida quefui ficando adulta.

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Depois de me formar, acabei participando de um grupo dedança onde a gente discutia como a dança estava relacionada comhistória da Bolívia. Teve um ano em que fizemos uma AmostraCultural Boliviana na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Fiqueiencarregada da sala de audiovisual e tinha que procurardocumentários para exibição. Teve um documentário, AltiplanoBoliviano, que foi feito pelos olhos de um brasileiro que foi morar naBolívia e ele tentou fazer um resgate cultural de como a história delá e o desenvolvimento cultural em cima das danças folclóricas

influenciam a forma de ocupação das comunidades aqui a partir dasdanças, das festas e de tudo mais. Ele entrevistou uma historiadorade lá e ela falou do aguayo . Ela falou que antigamente quando nãoexistia a língua escrita, o aguayo  escrevia um pouco da história dascomunidades, então cada comunidade tinha uma cor, um formato, asfiguras. Quando os Incas invadiram essa região do AltiplanoBoliviano e encontraram a comunidade aimará, que é povo originário,

eles queimaram todos os aguayos   da região para tirar essa marcadeles. A historiadora fala que é como alguém chegasse hoje equeimasse uma biblioteca. Depois eles se reergueram e o aguayo  setornou útil.

Toda família na Bolívia tem um aguayo , todo casal, todamulher. Quando eu soube disso eu quase chorei. Então, o aguayo  queganhei da minha mãe tem muito o significado da redescoberta. Odocumentário que mencionei também fala do jeito dos andinos, quegeralmente são introvertidos, são calados, são muito na deles eentão você vê as mantas que eles fazem e são um arco-íris de cores,de alegria! É um tipo de linguagem! Hoje em dia, tenho muito orgulhode ter um. Minha mãe deu um para minha irmã mais velha, me deu um

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e acho que vai dar para minha irmã mais nova também, porque isso énormal, toda mulher tem que ter um aguayo . Eu brinco que o aguayo  é um dos artefatos de exportação que mais sucesso faz, mas que porrespeito, não se explora muito.

Uma amiga minha ficou abismada ao perceber o quanto oaguayo   remete a mulher e com o fato de as mulheres lá na Bolíviacarregarem suas compras, mesmo que o homem esteja ao lado,porque o homem não vai carregar nada no aguayo ! Você anda pelacidade lá e vê casais. As mulheres estão sempre com um aguayo  bemgrandão atrás e o homem sem nada. Acho que os aguayos   podiamservir de revolução, porque eu poderia utilizar meu aguayo  de outraforma, não só para carregar.

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