Geografizando o Mundo Dos Sentidos

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107 Terr@Plural, Ponta Grossa, v.8, n.1, p. 107-124, jan/jun. 2014. DOI: 10.5212/TerraPlural.v.8i1.0006 “Geografizando” o mundo dos sentidos dos jovens da Igreja Assembleia de Deus “Geografizando” el mundo de los sentidos de los Jóvenes de la Iglesia Asamblea de Diós Geographying’ the world of the senses of youth in the Assembly of God Church Dalvani Fernandes [email protected] Instituto Federal do Paraná Resumo: A Geografia, engajada no campo das Ciências Humanas, há longos anos vem construindo um arcabouço teórico que nos auxilia a refletir sobre a complexidade do espaço social. No entanto, o pensamento geográfico é ainda pouco explorado na compreensão de fenômenos como a religião e a juventude. É a respeito dessa articulação teórica que o presente trabalho procura contribuir, na intenção de apresentar uma “geografização” do mundo dos sentidos. Para esse desafio utilizamos a filosofia das Formas Simbólicas de Cassirer, procurando, a partir dela, entender a religião enquanto formadora de sentido para a realidade da juventude evangélica. Utilizamos a metodologia de observação participante, envolvendo-nos no mundo linguístico construído pelo discurso da Igreja Evangélica Pentecostal Assembleia de Deus, na cidade de Guarapuava, PR. Partindo do material empírico, obtido nas observações, procuramos identificar quais espacialidades são produzidas, a partir do discurso religioso, nas vidas desses jovens. Palavras-Chave: Epistemologia. Religião. Juventude. Formas Simbólicas. Espacialidades. Resumen: La Geografía se configura como disciplina del área de las Ciencias Humanas y en el largo de los años viene construyendo una estructura teórica que nos ayuda a reflexionar sobre la complejidad del espacio social. Todavía, el pensamiento geográfico ha poco explotado la comprensión del fenómeno religión y juventud. Intentando contribuir para la comprensión de la articulación las referidas dimensiones, este trabajo busca teorizar sobre la “geografización” del mundo de los sentidos. Para ese desafío utilizamos la filosofía de las Formas Simbólicas de Cassirer. Buscando a partir de ello, comprender la religión en la formación de un sentido para la realidad de la juventud evangélica. Utilizamos el método de observación participante envolviéndonos en el mundo lingüístico construido por el discurso de la Iglesia Evangélica Pentecostal Asemblea de Dios, en la ciudad de Guarapuava, PR. Partiendo del lo empírico, obtenido, buscamos la identificación de las espacialidades que están siendo producidas desde el discurso religioso, en la vida de esos jóvenes. Palabras-clave: Epistemología. Religion. Juventud. Formas Simbólicas. Espacialidades.

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Artigo que trata dos resultados de uma pesquisa em Geografia Humana com a temática: Juventudes e Igreja Assembléia de Deus.

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    DOI: 10.5212/TerraPlural.v.8i1.0006

    Geografizando o mundo dos sentidos dos jovens da Igreja Assembleia de Deus

    Geografizando el mundo de los sentidos de los Jvenes de la Iglesia Asamblea de Dis

    Geographying the world of the senses of youth in the Assembly of God Church

    Dalvani Fernandes

    [email protected] Federal do Paran

    Resumo: A Geografia, engajada no campo das Cincias Humanas, h longos anos vem construindo um arcabouo terico que nos auxilia a refletir sobre a complexidade do espao social. No entanto, o pensamento geogrfico ainda pouco explorado na compreenso de fenmenos como a religio e a juventude. a respeito dessa articulao terica que o presente trabalho procura contribuir, na inteno de apresentar uma geografizao do mundo dos sentidos. Para esse desafio utilizamos a filosofia das Formas Simblicas de Cassirer, procurando, a partir dela, entender a religio enquanto formadora de sentido para a realidade da juventude evanglica. Utilizamos a metodologia de observao participante, envolvendo-nos no mundo lingustico construdo pelo discurso da Igreja Evanglica Pentecostal Assembleia de Deus, na cidade de Guarapuava, PR. Partindo do material emprico, obtido nas observaes, procuramos identificar quais espacialidades so produzidas, a partir do discurso religioso, nas vidas desses jovens.

    Palavras-Chave: Epistemologia. Religio. Juventude. Formas Simblicas. Espacialidades.

    Resumen: La Geografa se configura como disciplina del rea de las Ciencias Humanas y en el largo de los aos viene construyendo una estructura terica que nos ayuda a reflexionar sobre la complejidad del espacio social. Todava, el pensamiento geogrfico ha poco explotado la comprensin del fenmeno religin y juventud. Intentando contribuir para la comprensin de la articulacin las referidas dimensiones, este trabajo busca teorizar sobre la geografizacin del mundo de los sentidos. Para ese desafo utilizamos la filosofa de las Formas Simblicas de Cassirer. Buscando a partir de ello, comprender la religin en la formacin de un sentido para la realidad de la juventud evanglica. Utilizamos el mtodo de observacin participante envolvindonos en el mundo lingstico construido por el discurso de la Iglesia Evanglica Pentecostal Asemblea de Dios, en la ciudad de Guarapuava, PR. Partiendo del lo emprico, obtenido, buscamos la identificacin de las espacialidades que estn siendo producidas desde el discurso religioso, en la vida de esos jvenes.

    Palabras-clave: Epistemologa. Religion. Juventud. Formas Simblicas. Espacialidades.

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    Abstract: Over many years the area of geography that is engaged with human sciences has been building a theoretical framework that helps to reflect on the complexity of social space. However, geographical thought is still under- explored to interpret phenomena such as religion and youth. This paper seeks to contribute to this discussion by presenting a geographying of the world of the senses. For this challenge we use Cassirers philosophy of symbolic forms to understand religion as forming sense for the reality of evangelical youth. We use the methodology of participant observation and we engage in the linguistic world constructed by the discourse of the Assembly of God, Evangelical Pentecostal Church, in Guarapuava,PR. Based on empirical data obtained in the observations, we seek to identify which spatialities are produced from the religious discourse in the lives of these young people.

    Keywords: Epistemology. Religion. Youth. Symbolic form. Spatialities.

    INTRODUO

    O presente trabalho trata da relao entre Geografia, juventude e religio. Dentre as muitas possibilidades de interpretar o fenmeno religioso, escolhemos a perspectiva da religio enquanto fornecedora de sentido para a vida, um meio de organizar o mundo plasmando a realidade de significado. Parte-se do suposto que, desde que nos conhece-mos e nos encontramos no mundo, passamos a desenvolver os atos de conhecer e de dar sentido realidade. (BERGER; LUCKMANN, 1997).

    Para Cassirer (2001), toda cultura linguagem, por essa razo: Religio, Mito, Arte e Cincia so consideradas Formas Simblicas, que no seu sentido cultural se equivalem, pois cada uma possui sua maneira especfica de objetivar o mundo. Eis o caminho terico que trilhamos para a compreenso do fenmeno religioso.

    O ato de dar sentido ao mundo explicado poeticamente por Rubem Alves. Da mesma forma que os animais lanam para o mundo a ordem interiorizada em seus or-ganismos (a aranha, a teia; a abelha, a colmeia), o ser humano exterioriza suas redes simblico-religiosas em forma de melodias que se expandem sobre o universo inteiro. Assim, vo aos confins do tempo e aos confins do espao, na esperana de que cus e ter-ra sejam portadores de seus valores. O que est em jogo a ordem. (ALVES, 1981, p. 26). O ser humano tem necessidade de viver em um mundo que faa sentido, o seu mundo. Sendo assim, o homo religiosus procura dar sentido realidade atravs de representaes e smbolos religiosos que ordenem o caos em que vive.

    Concordando com a tese de que aqueles que habitam um mundo ordenado e carre-gado de sentido gozam de um senso de ordem interna integrao, unidade, direo e sentem-se efetivamente mais fortes para viver, teremos ento diante de ns a efetividade e o poder dos smbolos (SILVA; GIL FILHO, 2009). Nesse vis, a obra de Cassirer oferece algumas contribuies para a Geografia da Religio, possibilitando a articulao de con-ceitos, como: Formas Simblicas, espacializao e espacialidades. Entendemos por es-pacialidade uma dimenso no fenmeno que se espacializa, no sendo necessariamente uma manifestao material; est ligada a uma viso de mundo constituda a partir de um

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    discurso. As espacialidades so constitudas a partir dos sentidos com que o sujeito plas-ma sua realidade, geografizar esse mundo dos sentidos mergulhar em um universo fenomenolgico buscando a compreenso da lgica da organizao do real lgica essa que se d atravs das Formas Simblicas.

    O fenmeno religioso ultrapassa o espao material, constituindo outros espaos religiosos (espacialidades), por meio da sociabilidade juvenil. Nesse sentido, nossa pro-posta explorar dois importantes elementos que necessitam de aprofundamento no cam-po da Geografia: a religio e as juventudes. A relao entre religio, espao e juventudes abre um campo de abordagem amplo e diversificado. Acreditamos que uma das con-tribuies desse trabalho esteja na considerao da sociabilidade envolvida na vivncia da f no cotidiano dos jovens, possibilitando, assim, a compreenso do espao de forma dinmica e para alm da materialidade simples e evidente.

    Entendemos que nesse ponto que podemos contribuir com uma discusso episte-molgica, pois estamos diante de uma Geografia que se prope a olhar para os sujeitos e compreender seus mundos simblicos, o que tentaremos discutir aqui, ainda que de manei-ra incipiente, propondo uma geografizao dos sentidos a partir da filosofia cassireriana.

    Para tanto, colaremos em tela os resultados de nossa pesquisa de mestrado, defen-dida em fevereiro de 2012, na qual nos propusemos a compreender os sentidos gerados pelo mundo simblico (Forma Simblica Religio) na vida de jovens que frequentam/frequentaram a Igreja Evanglica Pentecostal Assembleia de Deus, em Guarapuava, PR (FERNANDES, 2012).

    RELIGIO UMA FORMA SIMBLICA

    O estudo das Formas Simblicas em Cassirer vem sendo apropriado pela Geogra-fia da Religio (GIL FILHO, 2007; 2008; 2009; 2010; 2011), na busca de uma construo da teoria do Homem frente ao fenmeno religioso; considerando-se que, para Cassirer (2005), o ser humano interpretado como um ser symbolicum, que no vive somente no mundo dos fatos, mas, antes, em um mundo simblico.

    Sendo assim, pensamos o espao atravs da atuao das Formas Simblicas, con-ceito que pode ser entendido como: energia do esprito, em que um contedo espiritu-al do significado est vinculado a um signo sensvel concreto, atribudo interiormente (CASSIRER, 2001). Em outras palavras, so os aparatos artificiais da nossa conscincia (esprito lingustico) que projetam o conhecimento sobre o mundo, conformando (dando sentido a) a realidade.

    O conceito de Forma Simblica pode ser utilizado na tarefa de espacializao da religio. Para Cassirer, somos homens simblicos em nossa forma de pensar, atravs da linguagem construmos um mundo de smbolos um mundo cultural nesse mundo artificial no qual o Homem vive. Existem vrios mundos que so conformados a partir de diferentes perspectivas, assim temos as Formas Simblicas: Mito, Arte, Religio, Cincia, entre outros (CASSIRER, 2005). A Geografia, partindo do espao da cultura,

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    analisa os espaos de ao formados por essas Formas Simblicas; da surge a possibilidade de anlise do espao de ao do mundo jovem, formado a partir da Forma Simblica Religio. (FERNANDES, 2011).

    Para Cassirer, o ser humano, vivendo em um sistema simblico, no vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimenso da realidade (2005, p. 48). No se encontra mais em um universo fsico, agora vive em um universo simblico, num mundo cultural construdo pela Linguagem, Mito, Arte, Cincia e Religio.

    APRESENTANDO A PESQUISA

    De janeiro a abril de 2011, participamos dos cultos na Assembleia de Deus (ADD), no seu templo sede, localizado no centro da cidade de Guarapuava, estado do Paran. No podemos afirmar que essa realidade seja a mesma em outros contextos, o que apre-sentamos diz respeito a esse espao-tempo.

    Os objetivos da pesquisa foram: 1) compreender os sentidos que so gerados na construo da realidade da juventude evanglica atravs do discurso da Igreja Evang-lica Assembleia de Deus; 2) identificar as formas de ser jovem na Igreja em foco; 3) ob-servar quais espacialidades so construdas a partir da sociabilidade de uma juventude evanglica.

    Nossas observaes, matizadas pelo prisma do conceito de habitus (BOURDIEU, 1998), nos levaram a um resultado que elucida diferentes categorias da juventude evanglica.

    a) Jovem veterano: aquele que evanglico de bero, ou ento se converteu quando ainda era criana. A partir da experincia desse jovem construmos a ideia de espacia-lidade resignada, formada por uma entrega ao universo religioso, uma submisso sem questionamentos, que refora o discurso religioso para alm da espacialidade con-creta do templo. Uma espacialidade assim pensada pode ser expressa na busca desse jovem pelo sentimento de paz em sua vida, o que exige dele a manuteno constante de um religare que impe a submisso a Deus e s autoridades religiosas.

    b) Jovem desviado: jovem que foi batizado na Igreja e hoje est desviado (afastado) da comunidade religiosa, mas esporadicamente aparece nos cultos. Notamos que os conflitos existenciais vividos pelo jovem desviado podem ser expressos na ideia de espacialidade hbrida. O termo hbrido remete a uma mistura malevel, uma fuso en-tre dois elementos diferentes, neste caso o discurso religioso e a cultura juvenil re-presentada pela ideia de mundo1. Conforma, assim, uma relao social e espacial onde elementos mundanos e religiosos se encontram, e sua importncia tem pesos diferentes dependendo da situao em que o sujeito se encontra. uma espacialidade permevel, mais aberta a novas experincias. Ser um desviado da Igreja declarar independncia.

    1 Salientamos que a ideia de mundo, quando contraposta a Igreja/Religio, procura expressar tudo aquilo que a no--religio, o no-sagrado.

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    c) Jovem novo-convertido: aquele que se batizou h pouco tempo. O novo- convertido ainda no comunga da linguagem religiosa da sua nova comunidade, ele no enun-cia pensamentos. Ele canta sentimentos (ALVES, 2005, p. 85). Sua forma de ser nos leva a refletir sobre uma possvel espacialidade intermediria. Isto porque ela expressa uma passagem do aspecto mstico (carter mais expressivo, ligado s emoes) para o racional (carter mais representativo, ligado a uma determinada ordem lgica) da religio. Esse trajeto no linear, no entanto; para o jovem que est iniciando sua ca-minhada na Igreja, parece-nos que esse percurso bem demarcado entre a fronteira do sentir e do pensar.

    Partindo desses sujeitos realizamos nossa fenomenologia cassireriana, buscando uma hermenutica que revelasse os sentidos fornecidos pela religio para cada catego-ria da juventude evanglica, bem como identificar as espacialidades que se conformam a partir da apropriao do discurso religioso nesses trs diferentes modos de se viver a religio.

    Nesse contexto, entendemos que a abordagem etnogrfica, partindo das ideias de habitus religioso, representaes e Formas Simblicas, nos ajudaram a entender como a juventude evanglica se relaciona com o carter sagrado da religio. Em sntese, a pesqui-sa procurou compreender, a partir do discurso da Igreja, alguns dos mltiplos sentidos que permeiam a realidade da juventude evanglica pentecostal.

    METODOLOGIA

    Interagimos com a mocidade evanglica que l se congrega, participamos de seus cultos, reunies e encontros. Visitamos alguns jovens em suas casas, samos para lan-chonetes e, algumas vezes, ficamos durante as madrugadas conversando todos esses episdios facilitaram a relao entre pesquisador e pesquisado , e assim tivemos acesso a muitas histrias de vida e depoimentos que foram registrados em nossa pesquisa. Par-tindo da metodologia de observao participante, registramos em nosso dirio de campo quarenta encontros. Os encontros aconteciam na formalidade do culto da Igreja, a partir de l marcvamos de nos encontrar em outros lugares como praa, ruas e mesmo na casa dos jovens assembleianos. Dessas experincias extramos algumas anotaes para melhor ilustrar o pensamento assembleiano.

    Nossa pesquisa de campo se apoiou nos pressupostos qualitativos da observao participante. Conforme aponta Turra Neto (2004a), na Geografia essa metodologia pode ser uma ferramenta preciosa quando se tem no centro da anlise fenmenos culturais en-gendrados pelo ser humano. Participar do universo simblico de um determinado grupo permite que vejamos o sentido dos significados a partir da perspectiva dos que vivem e comungam daqueles smbolos. uma viso de dentro para fora da comunidade.

    Ldke e Andr (1986, p. 26), discutindo o uso da observao participante, afirmam que ela um mtodo que permite que o observador chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos, um importante alvo nas abordagens qualitativas. O observador como

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    participante, segundo as autoras, deve, desde o incio, revelar ao grupo pesquisado a sua identidade de pesquisador e os objetivos do seu estudo. Nessa posio, o pesquisador pode ter acesso a uma gama variada de informaes, at mesmo confidenciais, pedindo cooperao ao grupo. A pesquisa, nesse sentido, tecida a quatro mos, tanto pelo pesquisador como pelo seu sujeito-objeto. O pesquisador influencia o universo que observa, h uma troca de experincia gerada pelo convvio, por isso ele tambm influenciado.

    Fica ento uma questo no ar: os dados do trabalho de campo merecem confiabilidade? Baseado em Becker (1999), Turra Neto (2004b, p. 92) defende que a resposta sim por conta de dois fatores:

    1) as pessoas so obrigadas a agir tal como se o pesquisador no estivesse ali, pois esto submetidas s restries sociais. Assim, as pessoas tm papis no grupo a cum-prir e a obrigao com o grupo mais forte que a inibio na presena do observador;

    2) o(a) pesquisador(a) coleta muitos dados e passa longo tempo no campo, o suficien-te para testar vrias vezes suas concluses. Neste sentido, h mltiplas evidncias de que as concluses no esto baseadas em fatos efmeros.

    Adotamos ainda como metodologia auxiliar a entrevista semi-estruturada, para a qual seis jovens (cinco homens e uma mulher) foram convidados a falar sua histria de vida e o envolvimento com a religio e a Igreja; desses dilogos trs foram escolhidos e trabalha-dos mais detalhadamente, cada um representando categorias diferentes dentro da Igreja. As entrevistas foram gravadas, sendo que cada jovem assinou um termo de consentimento. Alm dessas entrevistas, ouvimos trs adultos, representados pela figura do pastor presi-dente e pastor vice-presidente da Igreja e um membro que congrega nessa instituio h mais de vinte anos. A leitura de obras2 publicadas pela prpria Assembleia de Deus tam-bm fez parte de nossa metodologia e nos ajudou a compreender o discurso da Igreja.

    preciso dizer ainda que ouve outro desafio, aquele que surge no ps-campo. Como transpor a dimenso dialgica da pesquisa de campo para o texto? possvel conhecer a verdade dos fatos, ou simplesmente fazemos interpretaes sobre eles? Sendo interpreta-es, poderamos dizer que so limitadas e parciais e, por esse motivo, contestveis?

    Em busca de respostas, Turra Neto (2008, p. 373) argumenta que a existncia de um objeto no pode ser separada da trama lingustica que o descreve, em suas palavras: [...] aquilo que o discurso cientfico diz sobre determinado aspecto da realidade est envolvi-do no processo de produo desta prpria realidade, no s enquanto tal, mas tambm como objeto cientfico.

    O mesmo sentido assume o pensar de Cassirer (2006), segundo o qual passa des-percebido por todos ns o fato de que todo conhecer terico parte de um mundo j la-pidado pela linguagem, desta forma todo aquele que se dedica ao pensar convive com objetos exclusivamente ao modo como a linguagem lhos apresenta. Visto por esse vis,

    2 Focamos o material didtico da escola dominical: as revistas Lies Bblicas (2011a; 2011b); e em livros publicados pela prpria instituio atravs da CPAD Casa Publicadora da Assembleia de Deus.

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    toda a teoria lgica, que cria um conceito a partir de uma abstrao generalizadora, per-de sua serventia. Tal abstrao consiste na escolha de determinadas caractersticas, que j so de antemo dadas pela linguagem. Em outras palavras, seguindo esse raciocnio, um equvoco achar que teorias cientficas ou conceitos derivados descobrem a realidade. Erro tambm pensar que o real assim descrito uma entidade separada do sujeito que o escreveu.

    Entendendo dessa forma, que nossa proposta no explicar a realidade, colocamo-nos de uma maneira mais humilde perante a complexidade observada. Nossa inteno compreender, no sentido fenomenolgico3, como a realidade evanglica funciona, levando em considerao que a Forma Simblica Religio se encontra no mesmo nvel que a Cincia quando a questo dar sentido ao mundo.

    A Igreja ADD nos revela um universo construdo para ser partilhado. A religio socializa, e como toda base de socializao, ela oferece uma verdade. Socializar na reli-gio aprender e dividir a verdade que ela oferece (ALVES, [1979] 2005).

    Cassirer (2006) j nos lembra que antes de qualquer trabalho intelectual de conce-ber e compreender fenmenos necessrio transformar o mundo das impresses sens-veis em um mundo espiritual, um mundo de representaes e significaes. Nesse sen-tido que vemos nosso trabalho de campo como um esforo em compreender de que maneira o crente transforma o mundo das impresses em um mundo de representaes e significaes crists, atravs da doutrina pentecostal da Igreja em foco.

    RESULTADOS E DISCUSSO: APRESENTANDO A IGREJA ASSEMBLEIA DE DEUS E SUA JUVENTUDE

    Depois disso, acontecer que derramarei o meu Esprito

    sobre todo ser vivo: vossos filhos e vossas filhas profetizaro;

    vossos ancies tero sonhos,

    e vossos jovens tero vises

    (Joel, 3. 1)

    A epgrafe acima representa bem o limiar do mundo pentecostal assembleiano. Um mundo onde se vive uma relao com o sobrenatural, onde h milagres, dons e pro-fecias. Um mundo tecido por uma teia simblica cuja matria-prima provm do Livro Sagrado onde se encontram as palavras de Deus.

    A ADD est presente em toda a cidade de Guarapuava. O templo sede, foco de nossas observaes, localizado no centro, em frente ao 26 G.A.C. (Exrcito), tambm recebe jovens que moram em bairros prximos, como Santa Cruz, Batel e Bairro dos Es-tados, propiciando uma grande diversidade cultural juvenil.

    3 De acordo com Japiass e Marcondes (1996, p. 47), compreenso passa a ser definida com a fenomenologia como um mun-do de conhecimento predominantemente interpretativo, por oposio ao modo propriamente cientfico, que o da explica-o. Para os autores explicar remete a um modo de conhecimento analtico e discursivo procedendo por decomposi-es e reconstruo de conceitos. Compreender, por sua vez, um modo de conhecimento de ordem intuitiva e sinttica.

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    Convivi com essa juventude, ou para usar o vocabulrio assembleiano, com essa mo-cidade, de janeiro a abril de 2011, de maneira intensa, e nos outros meses do ano com visitas espordicas. A mocidade evanglica plural, constituda de homens e mulheres na faixa4 dos 14 aos 39 anos5, todos moram em Guarapuava, sendo que 68% em bairros prximos ao centro e 32% em residncias no centro; e 32% so jovens que tocam algum tipo de instru-mento musical. A maioria trabalha e/ou estuda (76%); dentre os que estudam, 40% cursa ou j cursou o ensino superior. Alguns so casados (32%), e a mdia de um filho por casal. Interessante observar que 40% dos jovens dizem ser evanglicos da Assembleia desde que nasceram; 40% afirmam que esto na Igreja h mais de trs anos; e 20% h menos de trs anos. D para notar que a Igreja trabalha pela manuteno de sua juventude.

    H vrios grupos dentro do conjunto de jovens que frequentam a Igreja. Existem aqueles que esto ligados msica (na maioria, homens) e aqueles ligados dana (na maioria, mulheres). Tambm h o grupo de lderes dos jovens, formado por jovens mais velhos. Alm da clara diviso entre os sexos, homens de um lado e mulheres de outro. Fora isso, possvel encontrar pequenos grupos de interesse como amizade, paqueras, estudo, trabalho, etc. Uma grande galera de amigos, conhecidos, e gente nova que vai se agregando aos poucos, dando os contornos de uma espacialidade social que se vive entre os muros da Igreja.

    As redes sociais aparecem ligadas a essa espacialidade, que est diretamente vin-culada sociabilidade juvenil religiosa. A partir dos amigos, novas conexes so poss-veis, e novos convites para conhecerem outras Igrejas ou viverem experincias fora delas so feitos. Apesar de o discurso religioso defender uma vivncia de comunidade entre iguais, a escolha das redes de sociabilidade individual e subjetiva. Carrano (2002) nos lembra que podemos encontrar redes mltiplas quando o sujeito estabelece vrios vnculos (caso do jovem desviado); e redes simples, aquelas que se caracterizam por um nico vn-culo dominante (caso do jovem veterano).

    Para os jovens que esto, como eles mesmos dizem, firmes na f participantes de uma rede simples existem ocupaes autoimpostas em seu tempo livre para que efe-tuem uma sociabilidade dentro da Igreja. Estas ocupaes no so, necessariamente, re-lativas ao lazer. Ocupam boa parte do tempo livre com atividades como: msica e dana (ensaios para o grupo de louvor), teatro, estudos bblicos, viglias, entre outras. Tais ati-vidades, conforme observou Carrano (2002, p.79), no so destitudas de ludicidade, pois a perspectiva da diverso est presente na prpria forma de proposio das atividades.

    A msica, a dana, os cultos temticos (culto anos 60, por exemplo) atuam como elementos importantes no processo de coeso e motivao do grupo de jovens da Igreja. Esses espaos tambm cumprem com o papel de propiciar ambientes de diverso dentro da Igreja, pois assim h menos chances de os jovens procurarem espaos mundanos

    4 Essas informaes foram coletadas com aplicao de 25 questionrios no qual foram levantadas questes para saber idade, ocupao, estado civil, escolaridade, endereo e trabalho.

    5 As idades mais avanadas, 32 para mulher e 39 para homem, dizem respeito aos casais da Igreja responsveis pela liderana dos jovens. Entendemos que como eles esto sempre presentes do grupo, tambm fazem parte da mocidade evanglica. Optamos por no delimitar a juventude pela idade, pois entendemos que a condio juvenil vivida no seio da Igreja no delimitada pela faixa etria.

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    para esse tipo de satisfao. Dessa forma, observamos um paradoxo, pois nota-se que h uma abertura de espao dentro da Igreja para o jovem, abertura essa que se torna neces-sria justamente para o jovem no fugir.

    A GEOGRAFIZAO DOS SENTIDOS DA JUVENTUDE EVANGLICA

    Aps a imerso cultural no universo da Igreja, procuramos ento organizar nossas reflexes, buscando possveis interpretaes para o universo juvenil evanglico. Da sur-giu a necessidade de uma geografizao dos sentidos dessa juventude, isto , a busca por uma compreenso de cunho espacial para a ao da Forma Simblica Religio. Aceitando o desafio, encontramos um terreno estvel no conceito de habitus6 para construirmos nos-sa interpretao da juventude assembleiana.

    Para isso elaboramos trs categorias ideais, focadas na experincia pessoal dos jo-vens com o sagrado.

    Diante desse quadro procuramos entrevistar jovens que representassem cada uma das categorias. A entrevista na verdade foi uma conversa gravada, durante a qual os jo-vens contaram suas histrias de vida, suas dificuldades, sonhos e desejos.

    O VETERANO

    Categoria criada observando-se a interao dos jovens dentro da comunidade religiosa. A espacialidade expressa pelo veterano, como aprofundaremos mais tarde, revela uma identidade assembleiana interiorizada, partindo de uma relao emocional profunda com o sagrado, construda ao longo de um processo scio-histrico. Tive a impresso que alguns jovens dizem viver em plena harmonia com o discurso expresso pela ADD, de tal modo que o discurso marca seus corpos, molda seu estilo de vestir e recheia seu vocabulrio com palavras utilizadas em cultos. At mesmo sonhos e projetos de vida se espacializam na vida desses jovens partindo das referncias propostas pela

    6 O conceito de habitus (BOURDIEU, 1998) nos ajudou em campo a observar as diferenas que os jovens apresentam dentro da comunidade religiosa. Apesar de haver um habitus religioso comum a todos os crentes (orao, estudo da Bblia, participa-o nos cultos, uso de roupas discretas), h variaes que se apresentam de maneiras diversas. Dessas variantes recortamos trs grupos que mais nos chamaram ateno, os quais so analisados no trabalho.

    Juventude Evanglica da Assembleia de DeusVeteranos Novos-convertidos Desviados

    Esse grupo formado por jovens que nasceram em bero evanglico, ou ento, so membros h mais de 10

    anos. J incorporaram o discurso e a identidade evanglica.

    Grupo formado pelos jovens que h menos de 1 ano participam da comunidade evanglica. Em geral eram catlicas e se converteram ao

    protestantismo pentecostal.

    Seriam os jovens que j estiveram ligados a comunidade evanglica, e por algum motivo hoje esto no mundo, podendo voltar a qualquer momento

    para Igreja.

    Quadro 01 Categorias Ideais Da Juventude Evanglica

    Org: FERNANDES, D. 2011.

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    Dalvani FernanDes

    Figura 01 Jovem veterano

    Org: FERNANDES, D. 2011

    Igreja. O estilo de vida do jovem veterano convida-nos ideia de uma espacialidade do ethos, ou seja, a maneira como o espao conformado pela vivncia desse jovem permeada por uma cultura, um habitus e uma tica pentecostal que d sentido ao seu mundo.

    Os tipos ideais que foram apresentados revelam uma vivncia ligada diretamente ideologia pentecostal, ao aspecto mstico e sagrado dessa forma de vivncia da religio crist. No que concerne mstica, observamos, no caso do jovem veterano, uma relao em que se acredita que os dons do Esprito Santo so manifestados; nesse impulso h uma busca em desenvolv-los de modo a aplic-los em seu ministrio e se aprofundar em sua f. Criamos a figura abaixo com base no depoimento do jovem veterano.

    possvel perceber que a vida do jovem muda radicalmente, e que a famlia, prin-cipalmente seu pai, tem grande importncia nessa transio. A figura da seta acima linear, pois a inteno trazer a ideia da passagem do tempo, que dividido pelas idades do jovem. Tambm remete a um caminho reto, tendo em vista que o jovem, ao ter cons-cincia de sua religiosidade, optou por viv-la em uma igreja evanglica, mantendo-se nesse caminho at ento, sem desvios.

    O DESVIADO

    O sentido de desviado pode ser entendido pela Igreja de modo pejorativo, como sinnimo de apostasia. De acordo com Renovato (2007, p.16), uma das maneiras de se

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    Figura 02 Jovem Desviado

    Org: FERNANDES, D. 2011.

    observar a apostasia atravs dos manifestos comportamentos contrrios santidade requerida por Deus em sua palavra. O jovem desviado, pelo que foi observado, justa-mente esse que deixa de percorrer os caminhos doutrinrios e passa a adotar compor-tamentos contrrios santidade, conforme a doutrina que a Igreja ensina. Esse sujeito vive um desencontro/desencanto com o sagrado institucionalizado e, sendo ele at ento um membro da Igreja, essa ruptura ganha uma dimenso geogrfica em sua vida, novas espacialidades so conformadas de forma que sua religiosidade possa ser vivida, mesmo que desligada da instituio religiosa.

    O mapa mental que montamos (figura 02) para melhor compreender a trajetria de vida do jovem desviado um dos mais interessantes, pois podemos visualizar que o desvio do jovem um movimento cclico, ligado diretamente a seus anseios existenciais, e que se reflete diretamente no espao atravs de suas aes e opes pessoais. O cami-nho reto, da Igreja, se diferencia dos mltiplos caminhos do mundo, explicamos: o primeiro se refere a um conjunto de aes baseados em um ethos religioso fundamentado na interpretao oficial da Igreja sobre a Bblia; o segundo, as outras possibilidades que se abrem ao jovem estando fora da Igreja. Diferente da figura criada para o veterano, essa se pauta mais no espao do que no tempo. Esse jovem, apesar de escolher amigos, aes, espaos diferentes dos oferecidos pela religio, carrega em si o discurso da Igreja, fazen-do com que sua trajetria seja representada por idas e vindas da Igreja para o mundo e vice-versa.

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    Figura 03 Jovem Novo-Convertido

    Org: FERNANDES, D. 2011.

    O NOVO-CONVERTIDO

    Existe um trnsito religioso onde se observa um fluxo de jovens que visitam a con-gregao sede da Assembleia. Alguns visitantes so de outras congregaes da prpria ADD, de outras denominaes crists ou ento jovens que ainda no optaram por uma religio. Geralmente so convidados pelos jovens que ali j congregam. Fruto dessas vi-sitas ocorre de alguns/algumas jovens optarem por uma converso/re-converso. Nesse cenrio, a participao dos colegas conta muito, pois os convites para conhecer uma nova Igreja partem dos grupos de amigos, em geral da escola ou do trabalho. A espacialidade social, marcada pelas redes de sociabilidade dos/as jovens, surge como um mecanismo de evangelismo essencial para a renovao da membresia juvenil da Igreja.

    Para os jovens que buscam uma experincia espiritual, o culto pentecostal muito atraente. Um universo falado, cantado, lido, chorado, profetizado pelos assembleia-nos. Essa postura mstica, apresentada pelos relatos de milagres, valorizada ainda mais durante as oraes que trazem fala em lnguas estranhas, curas, exorcismos e louvores embebidos de alto teor emocional.

    Observamos que diante desse fascnio, o/a jovem que at ento no conhece o mundo pentecostal, coloca-se diante dessa realidade de duas formas: a) sente medo e evita o desconhecido; b) busca sentir essa experincia, podendo depois viver a doutrina pentecostal. Em nosso trabalho buscamos conhecer e aprofundar os sentidos dados realidade a partir do jovem que opta por mergulhar no invisvel, tornando-se assim um novo-convertido da Igreja Assembleia de Deus. A figura abaixo ilustra um breve trecho da trajetria desse jovem, at se encontrar com a ADD.

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    Utilizamos a cor verde porque entendemos que no houve no depoimento do jo-vem uma tenso Religio x mundo. O que aconteceu foi uma troca de posicionamento cristo. O novo convertido, que era disputado por outras profisses de f crists (Igreja Catlica, Igreja Adventista do Stimo Dia, Igreja Quadrangular), acabou optando por fi-car na ADD, por vrios motivos, entre eles os amigos e a possibilidade de receber os dons7 do Esprito Santo. A f do jovem novo-convertido parece ter aumentado quando ele foi surpreendido por uma profecia que afirmava que um dia ele estaria dividindo o plpito com o pastor.

    MOCIDADE EVANGLICA ASSEMBLEIANA: SUAS ESPACIALIDADES E SEUS MLTIPLOS SENTIDOS

    o pensamento simblico que supera a inrcia natural do Homem e lhe confere uma nova capacidade, a capacidade de reformular constantemente o seu universo

    humano.

    (CASSIRER, 2005, p.104)

    A capacidade de reformular o prprio universo humano est ligada nossa ca-pacidade de dar novos sentidos mesma realidade material atravs da ao simblica. Para Cassirer a realidade fsica parece recuar em proporo ao avano da atividade simblica do Homem (2005, p. 48). Mltiplos sentidos existem por trs de cada relato, de cada depoi-mento, de cada palavra. O que temos ao nosso alcance, partindo de um arcabouo terico balizado pela filosofia das Formas Simblicas, so interpretaes que valorizam a conforma-o do mundo a partir da ao da Forma Simblica Religio.

    No mundo do jovem veterano, o sentido da religio nos parece pairar sobre a ques-to da paz. Religio aparece em sua vida no sentido de religare, isto , religar o Homem a Deus. Nesse lao de unio ntima com o Deus nico, cabe ao ser humano servir e obede-cer vontade divina. Cria-se uma relao de dependncia com a figura do criador. Nessa posio, a ordem posta a paz mantida sob a condio de se aceitarem as regras, leis e mandamentos. Nessa perspectiva, para o jovem veterano, as leis no possuem um carter repressor, mas antes libertador, pois uma medida preventiva para que no haja possi-bilidade do mal/satans (drogas, brigas, violncia) voltar a fazer parte de sua vida, na qual agora impera o bem/Jesus (paz, amizades, msica). Essa constatao nos induz a pensarmos em uma espacialidade do pensamento religioso extremamente adaptado ideologia defendida pela Igreja.

    O novo-convertido, por sua vez, se mostra um jovem em transio, buscando entender em que mundo est pisando. Compreende as potencialidades da religio e afirma querer desenvolv-las a servio de Deus. um jovem marcado pela busca do

    7 Essa uma das principais caractersticas da Igreja Pentecostal, a crena nos dons do Esprito Santo. Os pentecostais defen-dem que os dons vo desde falar em lnguas estranhas (glossolalia), falar em lnguas que no conhecem (xenolalia), profeti-zar, interpretar sonhos, e at mesmo dom de cura para enfermidades que afligem o corpo.

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    invisvel, ele quer sentir e experienciar o transcendente, quer se entregar. Para esse jovem, em vez de religare, entendemos que o sentido de relegere (recolher-se, fazer uma nova escolha) bem aplicado para a compreenso de sua jornada pelo sagrado. No depoimento do jovem, observamos diferentes Igrejas Crists disputando a sua ateno. Ele experimentou algumas delas, at chegar na ADD e fazer sua opo pelo religare.

    Sua forma de ser nos leva a pensar em uma espacialidade intermediria, pois ela expressa uma passagem do aspecto mstico (carter mais expressivo, ligado as emoes) para o racional (carter mais representativo, ligado a uma determinada ordem lgica) da religio. Sendo assim, nos parece que essa espacialidade se configura a partir da conver-so do sujeito, permeada pela configurao de um novo habitus de carter religioso, a transformao no apenas temporal, ela ocorre gradativamente nas espacialidades do sujeito. O novo-convertido passa a ter diante de si o desafio de reconstruir sua realidade edificando-a sobre um slido campo simblico onde a religio se enraza. A solidez da ponte entre razo e emoo poder indicar a direo que o levar a um desvio ou apro-fundamento nesse mysterium fascinosum.

    O espao habitado pelo jovem veterano plasmado de sentido pela Forma Simb-lica Religio e manifesta uma realidade onde o importante viver em paz, com a famlia e consigo mesmo, ainda que para isso tenha que manter distncia do mundo considerado impuro e profano. um espao mentalmente delimitado (pela conscincia do jovem sob ao da Forma Simblica Religio), onde possvel estar livre, ou preso por vontade prpria. Podemos pensar, a partir da, que esse jovem vive uma espcie de espacialida-de resignada, formada por uma entrega ao universo religioso, uma submisso sem ques-tionamentos, que refora o discurso religioso para alm da espacialidade concreta do templo. Uma espacialidade assim pensada pode ser expressa na busca desse jovem pelo sentimento de paz em sua vida, que exige dele uma manuteno constante de um religare que impe a submisso a Deus e s autoridades religiosas. O mundo assim construdo no significa infelicidade, na sensao de paz e segurana oferecida pela religio que o jovem veterano se sente bem, conforme apontam suas palavras, estando com Deus voc tem aquela alegria, parece que no te falta nada. Deus como sendo o centro das coisas, voc tendo ele no teu corao, o resto por si s j se completa.8

    E o jovem desviado? O jovem desviado a expresso da rebeldia juvenil, do impul-so dos hormnios que inundam a juventude e tomam a frente das faculdades cognitivas do ser. Ser um desviado da Igreja declarar independncia. E, por isso mesmo, arcar com suas aes e consequncias. Em determinados momentos de sua vida, os ensinamentos aprendidos na Escola Dominical ficam em segundo plano. Os novos amigos e os novos espaos de sociabilidade vo abrindo caminho para o mundo e seus prazeres. Nesse instante onde a curiosidade fala mais alto que o raciocnio religioso, a Igreja perde o con-trole sobre o corpo9 dos moos e moas. Leis, tradies, mandamentos, tudo fica em um

    8 Trecho da entrevista cedida pelo jovem veterano no dia 28/04/2011.

    9 Uma escala em nvel do corpo nos permite pensarmos o controle do corpo atravs do discurso religioso relacionando ques-tes como aparncia, comportamento e adorao. 1) Nas roupas, ornamentaes e outros aspectos da aparncia como um meio para o religioso expressar a si mesmo e sua f. Funciona como fronteira que marca a alteridade em relao a outros

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    plano obscuro e esquecido, pelo menos at o momento da excitao passar, e o desviado perceber que o seu caminho talvez no seja aquele. E entender que a hora de pedir per-do e, mais uma vez, mergulhar na religio.

    A espacialidade criada pela participao na esfera das coisas mundanas se entre-laa com a espacialidade criada pela religio. Mesmo fazendo as coisas erradas e no merecendo, eu vou orar a Deus me arranje um trabalho e tal pra mim que eu estou precisando10, diz o jovem. Um duplo sentido parece imperar. Ao mesmo tempo em que h uma necessidade de estar apegado a Deus, exercendo sua religiosidade, existe certo prazer em manter-se no mundo, mesmo fazendo as coisas que so consideradas erradas pela tica evanglica. A distino entre certo e errado est ainda vinculada espacialida-de do ethos religioso.

    O desviado tambm a expresso de uma nova forma de viver a religiosidade. Sua realidade parece estar plasmada de um duplo sentido, onde a ideia de mundo, como foi pintada pela Igreja, convive com a religio e seu discurso. Dessa relao surgem con-flitos e so gerenciados pelo sujeito que passa a vivenciar os dois universos simblicos: a religio e o mundo laico. Talvez ele esteja na transio entre um religioso e algum que acredita em Deus, mas no tem religio.

    Notamos que os conflitos existenciais vividos pelo jovem desviado podem ser ex-pressos na ideia de espacialidade hbrida. O termo hbrido remete a uma mistura ma-level, uma fuso entre dois elementos diferentes, neste caso o discurso religioso e a cultura juvenil representada pela ideia de mundo. Conforma, assim, uma relao social e espacial onde elementos mundanos e religiosos se encontram e sua importncia tem pesos diferentes dependendo da situao em que o sujeito se encontra. uma espaciali-dade permevel, mais aberta a novas experincias. A Forma Simblica Religio tem forte influncia na tica do sujeito e tambm se apresenta com seus imperativos mticos. Essa relao de manter-se em uma linha fronteiria entre universos simblicos distintos confi-guram um peso de mea culpa (acionado pela Forma Simblica Religio) que o sujeito aca-ba tendo que carregar, sendo esse o resultado de seus conflitos interiores. A espacialidade hbrida no algo desejado pela Igreja para os seus jovens, no entanto, esse ponto parece ser um problema que pesa mais para a religio, pois para o jovem desviado essa uma questo que ele busca negociar diretamente com Deus, ele independente para escolher seus prprios caminhos, assim indicam suas palavras: Deus est em primeiro plano na minha vida, uma hora ou outra eu volto, mas pelo menos agora eu vou curtir um pouco.

    grupos. 2) Tambm pode revelar uma busca pela pureza pessoal. Alm disso, 3) o corpo representa a mais imediata pre-ocupao com as observncias relacionadas a ortodoxia e ortopraxia (correes das deformidades do corpo [isso visvel pela busca da cura do corpo nos cultos pentecostais]). O controle do espao do corpo, fornece meios fundamentais de promover acordos com expectativas do grupo relativo a aderncia a leis religiosas ou o ethos de uma religio. Aspectos concernentes a adorao e expresso de f individual tambm convergem para escala do corpo uma vez que oraes, batis-mos, festas, para citar alguns exemplos, so manifestaes explicitas de interseces entre espao do corpo e crena. No podemos deixar de notar o uso de diferentes vestimentas relacionadas posio no culto, pois o uso especial de indumen-trias est ligado ao papel do corpo em rituais particulares. (STUMP, 2008, p. 240).

    10 Trecho da entrevista cedida pelo jovem desviado no dia 30/04/2011.

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    CONSIDERAES FINAIS

    Acreditamos que na procura dos sentidos da juventude encontramos mltiplas juventudes buscando um sentido para vida. O espao sagrado da Igreja Assembleia de Deus de Guarapuava (sede) se mostrou atraente para um pblico diverso, possivelmente pela sua localizao central e sua postura mais liberal em relao aos templos da periferia da cidade. O discurso assembleiano de carter pentecostal, por essa razo encontramos nos cultos um espao carregado de mstica e fervor emocional, ainda que nem sempre com uma base intelectual mais consolidada. Suas Escolas Bblicas e cursos teolgicos vi-sam preparar sua comunidade para estarem em unidade simblica, alm de forne-cerem o suporte racional para os fiis sustentarem sua f. Essa caracterstica da Igreja importante para entendermos os sentidos que so gerados pelo seu discurso, pois so nesses espaos de estudo onde o mundo assembleiano feito de palavras apresentado enquanto um discurso estruturado e estruturante.

    A religiosidade no trabalhada da mesma forma por todos os membros da mo-cidade, existem aqueles que privilegiam a espacialidade social (lazer, diverso), outros a espacialidade do ethos (segurana, proteo). Conhecemos jovens com histrias surpre-endentes, que atravs do sofrimento tornaram-se mais espiritualizados e com uma reli-giosidade mais desenvolvida. O convvio em grupo propicia que os/as diferentes jovens entrem em contato, se conheam e aprendam um com o outro os mistrios da religio. A convivncia uma estrada de mo dupla, da mesma forma que possibilita a manuteno da f, pode tambm levar aos desvios tanto por convites quanto por intrigas no grupo, algo comum quando se vive em sociedade.

    Temos ainda as espacialidades que foram pensadas a partir da vivncia de cada sujeito observado. Chegamos espacialidade resignada (veterano), intermediria (novo-convertido) e hbrida (desviado). Essas espacialidades dizem respeito ao mundo simblico que o sujeito habita, dependendo da posio dele dentro do universo religioso, uma dessas espacialidades acionada. O que mantm tudo conectado a partilha da linguagem expressa por uma viso de mundo conformada pela ao da Forma Simblica Religio.

    O que sugerimos, com a filosofia de Cassirer, que as Formas Simblicas atribuem novos sentidos para o mundo, dando a impresso para o sujeito que os vive que um novo espao foi construdo. Assim, a aplicao das verdades religiosas para a compreenso do mundo cria novos espaos e espacialidades, dando ao pesquisador a possibilidade de geografizar o mundo dos sentidos. Essa Geografia s possvel se levarmos em consi-derao que a articulao entre discurso religioso (universo simblico) e mundo emprico (universo dos fatos) feita atravs da ao das Formas Simblicas.

    Geografizar o mundo dos sentidos buscar uma Geografia que parte de dentro para fora do sujeito, pois o ser humano aqui entendido como um ser simblico. Isso, pois entendemos que a fenomenologia de Cassirer sua maior contribuio epistemolgica para a cincia geogrfica, uma leitura a partir dela sugere fazermos uma revoluo copernicana (KANT, 1994) na Geografia, isto , trocarmos do centro das anlises o

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    universo dos fatos pelo universo simblico do sujeito-objeto. Defendemos essa tese visto que entendemos que uma opo como essa cara e valiosa para aqueles que se propem a trabalhar com Geografia da Religio.

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    Dalvani FernanDes

    Recebido em 26-06-2014 Aceito para publicao em 31-07-2014

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