Ernest b agel ciência natureza e objetivo

7
ERNEST NAGEL Profe Dr. Colângelo Fundamentos Naturais da Geografia Texto / n_ Cópias Ciência: Natureza e Objetivo ERNEST NAGEL, que está presentemente na Columbia Universittf {onde é ':john Dewcy Professor of Fhihsophu"), nasceu cm Novc- mestc, Checoslováquia, em 1901. Foi para os Estados Unidos cm 1911, estudando no Collc^c of the Cittf of New VorJt e na Co- lumb;a Vniversitu. O Dr. Nagel pertence ao corpo docente desta universidade, desde 1931. Presidiu a Association for Symbolic Logíc c a Amer-can Philosophícai Association. É mem- bro da Association for íhc Advanccment of Science c vice-presidente do Institute for the Unity of Science. Desde 1940 é editor do Journal of Philosophv. Recebeu, cm duas ocasices, as "Gu&Renneim fellowships". Au- tor c co-autor de numerosos trabalhos de Fi- losofia. G, TERALMENTE, o Homem não dá atenção às técni- cas de que se vale para solucionar problemas, a não ser que os métodos habituais venham t revelar-se insatisfatórios face a questões novas. Na história da Ciência, pelo menos, preocupa- ção maior com problemas de ordem metodológica emerge, fre- quentemente, do fato de formas costumeiras de análise mos- trarem-se inadequadas ou de apresentarem imperfeições os mo- dos tradicionais de apreciar a evidência e de interpretar as con- clusões da investigação. Nos dias atuais, tão fortemente mar- cados pelas comoções sociais, não surpreende, portanto, que os cientistas e filósofos profissionais estejam obrigados a dar grande atenção à lógica da Gência e ao significado amplo das conquistas científicas. A literatura contemporânea acerca da filosofia da Ciência é, basicamente, uma resposta crítica a algumas das difi- culdades intelectuais criadas pelos recentes desenvolvimentos cien- tíficos. Há, em verdade, três aspectos da Ciência atual que nos con- vidam a séria reflexão e nos auxiliam a definir-lhe a natureza e os objetivos; tenciono abordar superficialmente cada um desses aspectos, embora reconhecendo que as limitações de espaço tor- nam impossível tratar adequadamente indá que de um só. 1. Talvez o traço mais saliente da Ciência c, por cer- to, o que mais comumente se realça seja o de que permite

Transcript of Ernest b agel ciência natureza e objetivo

ERNEST NAGEL

Profe Dr. ColângeloFundamentos Naturais da Geografia

Texto / n_ Cópias

Ciência:

Natureza e Objetivo

ERNEST NAGEL, que está presentementena Columbia Universittf {onde é ':john DewcyProfessor of Fhihsophu"), nasceu cm Novc-mestc, Checoslováquia, em 1901. Foi paraos Estados Unidos cm 1911, estudando noCollc^c of the Cittf of New VorJt e na Co-lumb;a Vniversitu. O Dr. Nagel pertence aocorpo docente desta universidade, desde 1931.Presidiu a Association for Symbolic Logíc c aAmer-can Philosophícai Association. É mem-bro da Association for íhc Advanccment ofScience c vice-presidente do Institute for theUnity of Science. Desde 1940 é editor doJournal of Philosophv. Recebeu, cm duasocasices, as "Gu&Renneim fellowships". Au-tor c co-autor de numerosos trabalhos de Fi-losofia.

G,TERALMENTE, o Homem não dá atenção às técni-cas de que se vale para solucionar problemas, a não ser que osmétodos habituais venham t revelar-se insatisfatórios face aquestões novas. Na história da Ciência, pelo menos, preocupa-ção maior com problemas de ordem metodológica emerge, fre-quentemente, do fato de formas costumeiras de análise mos-trarem-se inadequadas ou de apresentarem imperfeições os mo-dos tradicionais de apreciar a evidência e de interpretar as con-clusões da investigação. Nos dias atuais, tão fortemente mar-cados pelas comoções sociais, não surpreende, portanto, que oscientistas e filósofos profissionais estejam obrigados a dar grandeatenção à lógica da Gência e ao significado amplo das conquistascientíficas. A literatura contemporânea acerca da filosofia daCiência é, basicamente, uma resposta crítica a algumas das difi-culdades intelectuais criadas pelos recentes desenvolvimentos cien-tíficos.

Há, em verdade, três aspectos da Ciência atual que nos con-vidam a séria reflexão e nos auxiliam a definir-lhe a naturezae os objetivos; tenciono abordar superficialmente cada um dessesaspectos, embora reconhecendo que as limitações de espaço tor-nam impossível tratar adequadamente indá que de um só.

1. Talvez o traço mais saliente da Ciência — c, por cer-to, o que mais comumente se realça — seja o de que permite

l

,'• ~ i

controle prático da Natureza. Tornar-se-ia enfadonho realçaras grandes contribuições da investigação científica em prol dobem-estar humano ou mesmo aludir aos ramos principais daTecnologia, como por exemplo a Medicina, que tiraram proveitodos avanços da pesquisa fundamental, teórica e experimental.Baste assinalar que a Ciência aplicada transformou a face da Ter-ra e traçou os contornos da civilização ocidental contemporânea.

Sendo esses frutos tecnológicos da investigação científicaos que os homens sem treino científico ou interesses teóricos po-dem roais facilmente apreciar, o domínio sobre a Natureza, quemuitas vezes decorre da pesquisa fundamental, é a justificaçãoúltima da Ciência para a maioria das pessoas. Como a realiza-cio de investigações científicas demanda, hoje em dia, grandesinvestimentos, que dependem, largamente, de fundos públicos,muitos pesquisadores, quimdo descrevem a natureza da Ciênciaa auditórios de leigos, aos quais caberá, afinal, custear a maiorparte dos gastos necessários, tendem a acentuar, quase que ex-clusivamente, os benefício:; práticos a esperar de estudos básicos.

Embora, eu, nem par um momento, subestime a importân-cia da Ciência como fonte de recursos tecnológicos que, aperfei-çoados e disseminados, contribuem para a melhoria da vida hu-mana, creio, não obstante, que a concepção da Qência como algoque produz, incessantemente, novos meios de dominar a Natu-reza, tem sido sublinhada com demasiada ênfase, levando a es-quecer outros de seus asfxxtos. De modo algum se dá que aconquista de bens e vantagens de caráter prático seja o únicoou o principal motivo que incentiva o homem a entregar-se àInvestigação científica; e quando esse motivo se torna o prin-cipal, surge um quadro fortemente distorcido tanto dos objetivoscomplexos da Qência como de sua própria história.

Além disso, aquela ênfase pode levar a sociedade a encararde maneira perigosamente errónea o cientista, vendo-o como ho-mem miraculoso, capaz de resposta infalível para todas as ma-zelas humanas. Não se deve esquecer também a generalizadatendência de considerar a Ciência como responsável pela maneirabárbara por que, is vezes, são utilizadas as suas conquistas —imputação indubitavelmente injusta, que pode levar a despreza--Ia, mas que se torna plausível quando ela é identificada as suasconsequências tecnológicas

01

2. A Ciência assume outro aspecto quando concebida comoalgo que se propõe atingir conhecimento sistemático e seguro»de sorte que seus resultados possam ser tomados como conclu-sões certas a propósito de condições mais ou menos amplas euniformes sob as quais ocorrem os vários tipos de acontecimen-tos. Em verdade, segundo fórmula antiga e ainda aceitável, oobjetivo da Ciência é "preservar os fenómenos" — isto é, apre-sentar acontecimentos e processos como especificações de leis eteorias gerais que enunciam padrões invariáveis de relações entrecoisas. Perseguindo esse objetivo, a Ciência busca tornar inte-ligível o mundo; e sempre que o alcança, em alguma área de in-vestigação, satisfaz o anseio de saber e compreender que é, tal-vez, o Impulso mais poderoso a levar o boroem a empenhar-seem estudos metódicos. Sabe-se que é por ter colimado, de ma-.neíra usualmente bem sucedida, seus fins, que a atividade inicia-da na antiguidade grega e atualmente chamada "Ciência" tem-scmostrado fator importante no desenvolvimento da civilizaçãoliberal: serviu para eliminar crenças e práticas supersticiosas, paraafastar temores brotados da ignorância e para fornecer base in-telectual de avaliação de costumes herdados e de normas tradi-cionais de conduta.

Seria, naturalmente, afrontar a evidência, negar que muitoantes do início da pesquisa sistemática os homens dispunham deconhecimentos razoavelmente aceitáveis acerca de muitas das ca-racterísticas do ambiente físico, biológico e social. Em verdade,ainda hoje, boa parte das informações de que necessitamos paraorientação normal de nossas vidas não é produto de investigaçãocientífica sistemática, mas é o que normalmente se chama conhe-cimento nascido do "bom senso".

Não obstante, esse tipo de conhecimento está sujeito anumerosas limitações saías, algumas das quais devem ser apon-tadas. Assim, as crenças baseadas no bom senso são, em geral,imprecisas, e, frequentes vezes, aproximam coisas e processosque diferem de maneira essencial; não raro, são incoerentes demodo que a preferência por uma de duas crenças incompatíveis,como base para a ação, é arbitrária; tendem a ser fragmentárias,em consequência do que as relações lógicas e substantivas entreenunciados independentes são, de hábito, ignoradas; são geral-mente aceitas com reduzida consciência do alcance de sua legíti-

14

l

ma aplicação; são, via de regra, mlopemente utititaristas, preocu-padas, em boa porção, com assuntos diretamente relacionados cominteresses práticos Imediatos e normalmente aplicáveis apenas aáreas de experiência rotineira; por fim, e acima de tudo, as cren-ças baseadas no bom senso desprezam possibilidades outras paraenfrentar problemas concretos, mantendo vigência por força daautoridade conferida por um costume que não se critica e que,portanto, não pode ser prontamente modificado de modo a tor-nar as crenças guias seguros para enfrentar situações novas.

Embora não se possa traçar Unha nítida entre as asserçõesbaseadas no bom senso e as conclusões da pesquisa cientifica —pois é* certo que toda investigação científica parte de crençase distinções oriundas do bom senso e, ao fim, a ele refere assuas descobertas — a Ciência tem como sinal distintivo o detentar deliberadamente alcançar resultados total ou parcialmen-te livres das limitações do í enso comum.

Conquanto a amplitude com que se alcançam tais conclu-sões varie nos diferentes íamos da Ciência, e conquanto sejaindubitavelmente maior nas ciências naturais, nenhum campo deinvestigação sistemática foi inteiramente mal sucedido nessa ten-tativa. Em geral, as conclusões da investigação científica sãoapoiadas por evidência mais adequada e apresentam melhoresrazões para serem consideradas conhecimento certo do que ascrenças baseadas no bom senso. Adiante direi alguma coisamais a esse respeito. De momento, contudo, desejo tornar cla-ro que embora as descobertas científicas sejam, costumeiramen-te, dignas de crédito, não são, em princípio, infalivelmente ver-dadeiros nem insuscetíveir de emenda os relatórios científicosacerca de específicas questões de fato ou as leis e teorias elabo-radas para indicar as condições invariáveis sob as quais os fenó-menos ocorrem.

Houve tempo em que se admitiu que para ser genuinamen-te científica, uma proposição deveria ser reconhecida como in-questionavelmente certa : absolutamente necessária. Toman-do a Geometria dedutiva como paradigma, esse modo de versustentava que à Ciência não basta simplesmente atestar quaissão os fatos, cabendo-lhe demonstrar que os fatos devem sercomo são e não poderiam ocorrer de outra maneira; mas, umavez que, para estabelecer demonstrativamente um enunciado, são

16

necessárias premissas que não podem ser demonstradas, essacorrente entendia que as premissas básicas de uma Ciência devemser suscetíveis de apreensão como nutoevidentes e necessaria-mente verdadeiras.

Essa concepção da natureza da Ciência era plausível, enquan-to a geometria euclidiana constituía o único exemplo de co-nhecimento sistematizado; continua a ser defendida por muitospensadores contemporâneos que admitem que "o universo é ra-cional" e, assim, "não pode haver resíduo de fatos irracionais(isto é, contingentemente verdadeiros) no conjunto da Ciência".Todavia, à luz da história da Ciência, tal concepção é insusten-tável. Com efeito, não há Ciência alguma cujos pressupostosbásicos relativos a questões de fato sejam realmente auto-evi-dentes e o progresso da investigação, em todos os ramos da Ciên-cia, revelou que princípios tidos como basilares em certa épocativeram de ser modificados ou substituídos para manter adequa-ção a fatos revelados por novas descobertas. A tese de que oschamados primeiros princípios da Ciência são passíveis de alte-ração é claramente ilustrada por desenvolvimentos atuais da Fí-sica, onde se tem procedido a revisões radicais em pressupostosteóricos que haviam sido considerados indubitáveis.

Não sucede, porém, que essas revisões de pressupostos bá-sicos possam ser corretamente interpretadas como sinais da "fa-lência" da Ciência moderna — tal como a têm frequentementecaracterizado pensadores presos à errónea noção do racionalismoclássico, segundo a qual a Ciência que não pode garantir seremsuas conclusões indiscutivelmente certas falhou em seu objetívode conduzir a conhecimento genuíno. E, mais ainda, essas re-visões não justificam um ceticismo global cora relação à possi-bilidade de obter conhecimento seguro acerca do mundo pormeio da pesquisa científica — ceticismo que, por sua vez, sur-ge a partir da insustentável hipótese de que, sendo todas as con-clusões da pesquisa científica passíveis, em tese, de correção,nenhuma conclusão é, verdadeiramente, um acréscimo estávelao corpo de conhecimento. Seja-me permitido citar um exem-plo que desmente essa última hipótese e que, ao mesmo tempo,mostra que, fornecendo explicações bem fundadas para os fenó-menos observados, a Gência atende ao perene anseio de conhe-cimento e compreensão sistemáticos.

17

fv-:":.

- r , '* i?• - • - : f-r*&

* • • *-̂ h

-J?.- • • ''* v í̂***^'-:;i;/"-ti** v?r

4-^^?^f /v-í' .-X^âa

f.- -í-.:?s?t-Vvi**1^F ̂ v^jsi ̂ »:-'K;.-:-Jfe&>:

Galileu assinalou que, aparentemente» há am limite supe-rior para o tamanho de animais tais como o homem e levantou* questio de saber se, • despeito do que se possa julgar, houvetempo em que homens de proporções gigantescas pisassem •face da Tetra. Mostrou ele, através de cuidadoso experimen-to, que a resistência de uma estrutura varia de acordo com suasecção transversal e admitiu, com fundadas razões, que a capaci-dade de os ossos animais suportarem forças de pressão tambémvaria proporcionalmente i área de suas secções transversais. Poroutro lado, o peso de um animal terrestre (que deve ser supor-tado pelos membros) é proporcional ao volume do mesmo ani-mal. Em consonância com isso, cabe dizer que a resistência dosossos animais é proporcional ao quadrado das dimensões linearesdo animal, enquanto o peso que esses ossos devem suportar é pro-porcional ao cubo tks dimensões lineares. Em consequência, hálimites definidos para o tamanho dos animais terrestres e, as-sim, gigantes com membros proporcionais aos dos homens co-muns não poderiam existi:-, pois tais criaturas sucumbiriam sobo próprio peso.

Investigações levadas a efeito nos três séculos seguintes re-finaram e tomaram mais precisa a conclusão de Galileu, e aspresunções em que ele a baseou, mas não chegaram a modifi-cá-la substancialmente. O "exemplo sustenta, pois, a tese deque, embora sejam passíveis de correçSo as descobertas cientí-ficas, o conteúdo da Ciência não é um fluxo instável de opiniões,mas, ao contrário, a Ciência pode alcançar êxito no seu propó-sito de fornecer explicações dignas de confiança, bem fundadase sistemáticas para numerosos fenómenos.

3. É tempo de considerar o terceiro aspecto que a Ciên-cia apresenta: seu método de investigação. Aspecto muitas ve-zes mal interpretado e sempre difícil de descrever com brevi-dade, mas que é, talvez, seu traço mais permanente e garantiaúltima do crédito que merecem as conclusões da investigaçãocientífica.

Afirmação frequente, subscrita, às vezes, por eminentesdentistas, é a de que "não há, como tal, um método científico*',mas apenas "a utilização livre e ampla da inteligência". Essaafirmação terá procedência, caso a expressão "método cientifico"seja considerada como equivalente a um conjunto de regras íi-

u

xás, aceitas de maneira geral e orientadas a proporcionar a des-coberta de soluções para qualquer problema. Não há dúvidade que a análise histórica do método científico leva a colocar ên-fase considerável, se não exclusiva, na tarefa de formular pre-ceitos para desvendar as causas ou efeitos dos fenómenos e paraelaborar leis e teorias a partir dos resultados da observação. En-tretanto, nenhuma das regras propostas para orientar descober-tas atinge o propósito visado; e a maioria dos estudiosos do as-sunto concorda em que pretender estabelecer tais regras é em-preendimento sem esperança.

Que é, então, método científico? Devo esclarecer, preli-minarmente, que o vocábulo "método" não é sinónimo do vo-,cabulo "técnica". A técnica de mensuração de comprimentosde ondas luminosas por meio do cspectroscópio é patentementediversa da técnica de mensuração da velocidade de um impulsonervoso e ambas diferem das técnicas empregadas para deter-minação dos efeitos de um tipo de organização empresarial so-bre a produtividade. As técnicas, via de regra, variam de acor-do com o assunto de que se trata e podem alterar-se rapidamen-te com o progresso tecnológico. De outro lado, todas as ciên-cias empregam um método comum em suas investigações, namedida em que utilizam os mesmos princípios de avaliação daevidência; os mesmos cânones para julgar da adequação das ex-plicações propostas; e os mesmos critérios para selecionar umadentre várias hipóteses.

Em suma, método científico é a lógica geral, tácita ou ex-plicitamente empregada para apreciar os méritos de uma pes-quisa. Convém, portanto, imaginar o método da Ciência co-mo um conjunto de normas padrão que devem ser satisfeitas,caso se deseje que a pesquisa seja tida por adequadamente con-duzida e capaz de levar a conclusões merecedoras de adesão ra-cional. Pretendo, agora, examinar, ligeiramente, alguns ele-mentos do método científico assim entendido.

Comecemos lembrando que a Gência é uma instituição so-cial e que o cientista é membro de uma comunidade intelectualdedicada à perseguição da verdade, segundo padrões que evol-veram e se mostraram satisfatórios, ao longo de um contínuoprocesso de crítica. Muitos pensadores imaginaram que a ob-jetividade das conclusões alcançadas pela Ciência estaria asse-

19

k ..JÍCíÇSÍíS

RVí^rJÍSE > *"í<» J^-V^Kl- • «->• ..i" «*"-»«!«

V^tíáSS- - ' •*"- -T :^&£• --*i:,JCÍS

>.-*^"%Sfe-'-" í'««Sf . • -.< V^KíT^t . .'-'-í^íárfl-.V^V^

í̂ :̂ í

guradâ, se os cientistas deliberassem não aceitar qualquer pro-posição a respeito da qual pairasse sombra de dúvida ou quenão fosse transparentemente verdadeira. Os homens» raramen-te se dão conta de que há muito de hipotético no que têm porindubitável e, muitas vezes, acredium-se livres de compromis-sos intelectuais de qualquer espécie, quando, na verdade, estioendossando tacitamente muito de falso.

Embora a deliberação de adotar atitude crítica relativamen-te às presunções possa ter certo valor, a objetividade da Gên-cia não é consequência chia. Ao contrário, a objetividade de-ve-se a uma comunidade de pensadores, cada qual deles a cri-ticar severamente as afirmações dos demais. Nenhum cientistaé infalível e todos apresentam sua? peculiares deformações in-telectuais ou emocionais. As deformações raramente são asmeirn**; e «s ideia* que sobrevivem às críticas de numerososespíritos independentes revelam maior probabilidade de seremlegítimas do que as concepções tidas por válidas simplesmentepelo fato de parecerem auio-evidentes a um pensador isolado.

Seja-me permitido, a seguir, discorrer sobre a maneira po-pular, algumas vezes endossada por cientistas, de imaginar quea pesquisa científica deve principiar com a coleta de dados; osdados assim coligidos passariam por um crivo lógico, dai resul-tando formulação univocamente determinada de certa regula-ridade entre os acontecimentos estudados. A improcedênciadessa versão torna-se evidente quando constatamos que não éfácil precisar quais os fatos a coletar para resolver dado proble-ma, nem á fácil saber se é realmente fato aquilo que é apresen-tado como tal.

Para exemplificar, qjais os fatos que deveriam ser reu-nidos para pesquisa das causas da leucemia? É a lua maiorquando está próxima do lorizonte do que quando se encontrano zénite? Õ número de fatos que se poderia reunir é enormee seria impossível examiná-los todos; e o que se tem como fatopode não passar de uma ilusão. Faz-se claro, portanto, que osfatos devem ser selecion:idos segundo pressupostos que indi-quem os relevantes para a solução dê um dado problema; e asobservações devem ser realizadas segundo condições que se pre-suma excluírem a possibilidade de que relatórios do que se alegater sido observado incidam em erro grosseiro. Assim, qualquer

20

n

significativa coleta de fatos para fins de pesquisa é controladapor pressupostos de vários tipos, dependentes do cientista e não

, do assunto investigado. Como os fatos não são relevantes ou/irrelevantes por. si mesmos, o cientista está obrigado a adotari algumas hipóteses preliminares acerca de quais os fatos de in*Í terásse para o problema que enfrenta — a determinar, por exêrii-

pio, quais dentre os numerosos fatôres que podem estar pre-sentes, ligam-se causalmente ao fenómeno em exame — e até

A,rr? que essas hipóteses sejam alteradas são elas que orientam a in-vestigação.

_Ausentes essas hipóteses, a pesquisa é cega e sem objetivp.Não há, porém, regras para fazer surgirem hipóteses frutíferas;como Albert Einstein observou repetidamente, as hipóteses queconstituem as modernas teorias da Fisíca são "livres criaçõesda mente", cuja invenção e elaboração requerem dotes imagi-nativos análogos aos que permitem a criação artística.

Não obstante, ainda que se deva admitir que a imaginaçãocriadora tem um papel a desempenhar no campo da investigaçãocientífica, a Ciência não é poesia nem especulação; as hipóteseslevantadas durante a pesquisa, assim como outras explicaçõespropostas para certa^dasse de fenômenps, devem ser jubmetí-dasLA.teste. Em geral, este teste requer que se examine i com-patibilidade de uma hipótese (ou de suas consequências lógi-cas) simultaneamente com estados de coisas observáveis e comoutras hipóteses cuja concordância com fatos observados já tenhasido assentada.

Não cabe aqui uma pormenorizada análise da lógica empre-gada para submeter a teste as hipóteses; mas cabe referência,ainda que breve, à noção de\ controlada — que é(

talvez, de todos os elementos de uma lógica desse tipo, o maisimportante. Um exemplo simples deve ser bastante para indi-car a maneira como se caracterizam tais investigações. A cren-ça outrora multo comum de que banhos com água fria e sal-gada eram benéficos para os pacientes atacados de febres altasparece ter-se baseado em repetidas observações de que melhorasresultavam desse tratamento. Entretanto, independentementede indagar se a crença é ou não legítima — e na verdade nãoo é — a evidencia em que se baseava é insuficiente para sus-/tentá-la. Aparentemente, não ocorreu aos que aceitavam essa

21

'- '* /*!~" •í-v-yO'

IS"'. *>vf?--v3S. -•-.-!-.\i-j••'***2$

'- ' •í-ÍTfe

>;«H

t -

/'•s í̂• " <>?.?-vr>&-v

'/-.

coti r

; -'•'-''-£&&í->ST£r

i- *-fe£St- • • -••-•?<>

crença indagar se pacientes não submetidos ao mesmo tratamen-to poderiam mostrar melhoria semelhante. Em suma, a cren-ça n2o era o resultado de uma investigação controlada — ouseja, o curso da moléstia em pacientes submetidos ao tratamen-to não era comparado ao seu curso num grupo "de controle",constituído por pacientes que não o recebiam, de modo que nãohavia base racional para decidir se o tratamento produzia ai*gum efeito.

De maneira mais genJ, uma investigação é controlada so-mente se, criando alguma espécie de processo de eliminaçãotorna possível determinar os efeitos diferenciais de um fator quese considera relevante paca a ocorrência de dado fenómeno.São esses processos de eliminação, algumas vezes, mas não ne-cessariamente, experimentdmente viáveis; em muitos setorese em sua maioria, não o são, de modo que recursos analíticossutis e complicados devem ser, frequentemente, empregados pa-ra que se extraia da evidência existente a informação que se faznecessária e que tornará poisívettPácional tomada de posição acer-ca dos méritos de uma hipótese. De uma forma ou de outra, anoção de controle é elemento essencial da lógica do método ci-entífico — pois, via de regra, a confiança merecida pelos resul-tados científico» é função da multiplicidade e do rigor dos con-troles a que foram submetidos. /

Gostaria, por fim, de fazer ligeiro comentário acerca do Apapel das distinções quantitativas e da mensuração no ampliaros objetivos da Ciência e no aumentar o grau de confiança adepositar nas conclusões por ela alcançadas. Embora haja im-portantes diferenças estruturais entre as várias determinaçõesquantitativas, todos os tipos de mensuração desempenham fun-ção tripla. A primeira é a de aumentar a precisão, reduzindoassim a fluidez, com que os fatos produzidos e as explicaçõespara eles propostas podem ser apresentados, de maneira que aforma de apresentação sejs, mais facilmente, submetida a teste.A segunda é a de tornar f*o$síveis discriminações mais minucio-sas dos traços dos vários assuntos, de modo que enunciados arespeito deles tenham condição de ser submetidos a controlesmais rigorosos. A terceira é a de permitir comparações maisgerais entre os diversos acontecimentos a fim de possibilitarque sejam formuladas, sistemática e acuradamente, as relações

22

W/rtiTtW

f V tf CA

entre as coisas. É, portanto, erróneo sustentar, como ocorremuitas vezes, que as chamadas ciências quantitativas, fazendoamplo uso da mensuração, ignoram, por isso mesmo, os aspec-tos qualitativos da realidade. Quão despida de base é essa po-siçSo, será evidenciado por um exemplo simples.

Os seres humanos estão capacitados a distinguir certo nú-mero de diferenças na temperatura dos objetos e termos taiscomo "quente", "morno", "tépido", "frio" e "gelado" corres-pondem a distinções reconhecidas. Mas essas diferenças nãoforam ignoradas ou negadas quando, no século XVII, se inven-tou o termómetro; ao contrário, a invenção desse instrumrntotraduziu o fato de que as variações de temperatura que eramexperimentadas, em relação a muitas substâncias, estavam liga-das a alterações dos volumes relativos dessas substâncias. Emconsequência, variações de volume podem ser utilizadas para in-dicar alterações no estado físico de um corpo, alterações que,em alguns casos, correspondem a diferenças de temperatura sen-tidas pelo homem. A par disso, é possível assinalar diferen-ças menores nas variações de volume do que nas alterações detemperatura, diretarnente percebidas; e há extremos de calore frio além da capacidade de discriminação dos seres humanos,embora, nesses extremos, possam ser ainda apontadas as alte-rações de volume. Por isso mesmo, cabe dizer que, usandouma escala termométrica, não somos levados a ignorar diferen-ças qualitativas: o uso da escala permite-nos assinalar diferen-ças de qualidade que, de outra forma, nos passariam desperce-bidas, habilitando-nos, ao mesmo tempo, a ordenar essas quali-dades de maneira clara e uniforme.

Concluirei com um sumário. A força básica, geradora daCiência, é o desejo de obter explanações simultaneamente sis-temáticas e controláveis pela evidência fatual. O fim especí-fico da Gência é, portanto, a descoberta e a formulação, emtermos gerais, das condições sob as quais ocorrem os diversostipos de acontecimento, servindo os enunciados generalizadosdessas condições determinantes como explicações dos fatos cor-respondentes. Esse objetivo só pode ser atingido identificandoou isolando certas propriedades do assunto estudado e estabe-lecendo quais os reiterados padrões de dependência que gover-nam a inter-rclação daquelas propriedades. Em razão disso,

23

-i

v~

fc-••»&*f* l ••&£&

'f"-J T-^felfcL ;ii?-;-:«L.3SE

Í*<£$*yLfe£«fc-.-á • ."*_->''' 'V-*

quando uma investigação alcança êxito, proposições que, atéentão, pareciam independentes, surgem como liga as umas asoutras de maneira determinada, em (anelo do lugar que vêma ocupar num sistema de explicações.

£ de importância primordial, entretanto, encarar esses sis-temas explicativos não como corpo de conclusões fixas e indu-bitáveis, mas como resultados não definitivos de um contínuoprocesso de investigação que envolve incessante uso de um par-ticular método intelectual de crítica. Esse método lógico é aglória específica da Ciência moderna e o alicerce espiritual detoda civilização genuinamente liberal. Nada pode substituí-lona tarefa de atingir conclusões fundadas acerca do mundo emque os homens vivem e do lugar que nele ocupam.

í'

f A •]} '

, l /U '-•)

f/1 P "

S/•

/A^- r ,'"/(*- ("; -

l / / • • ' •