EDGAR ALLAN POE – Detalhes, sombras e reflexos .... 3... · urbana e natural). A sua...
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EDGAR ALLAN POE – Detalhes, sombras e reflexos – afinidades estéticas e subversões
iconográficas
[Jorge Molder, Francesca Woodman e Janaina Tschäpe]
Maria de Fátima Lambert Prof. Coordenadora – InED/ Escola Superior de Educação. Politécnico do Porto
“By a route obscure and lonely,
Haunted by ill angels only,
Where an Eidolon, named NIGHT,
On a black throne reigns upright,
I have reached these lands but newly
From an ultimate dim Thule –
From a wild weird clime that lieth, sublime,
Out of SPACE – out of TIME.” (Poe, 1884, pp. 87/88)
Marginalia poderia ser um subtítulo conveniente para esta comunicação. Segundo se
lê nos termos introdutórios a essa publicação: “…são escritos com a distância suficiente, a fim
que o espírito do leitor seja descarregado de um pensamento, seja este ligeiro, naïf ou trivial,
todavia, um pensamento e não algo que pudesse sê-lo, com o auxílio do tempo e de
circunstâncias mais favoráveis.” (Poe, 2007, p.8)
Edgar A.Poe assinala a incapacidade de qualquer leitor (no relativo à respectiva
“velocidade” do acto de ler), se procedesse a uma leitura em voz alta - quanto diminuição
significativa da extensão e quantidade do seu acto; consciencializando, por oposição, a
amplitude de recepção do “lido” (espécie de “vécu”), quando “lemos para nós
próprios”…Poder-se-ia transpor esta argumentação no relacionável às artes visuais: ou seja, a
diferença incontornável entre o que seja olhar as fotografias em acto directo e em acto
intermediado (publicadas em uma qualquer edição impressa ou olhadas no ecrã de um
computador…e salvaguardas as diferenças entre estes dois últimos actos).
Na leitura dos poemas de E.A.P. seleccionei excertos que considerei elucidativos – no
respeitante aos artistas actuais, cujas iconografias lhes associei quase por intuição (quanto por
cúmplice reflexão): Jorge Molder, Francesca Woodman e Janaina Tschäpe.
Na leitura de seus textos de ensaio e de recorte filosófico e estético, centrei-me em
fragmentos de Marginalia, Eureka e Filosofia da Composição. Igualmente, estes me guiaram
na subsistência e caminho cumprido em obras específicas dos artistas acima citados. A
viagem E.A.P. incorporou ambas vertentes: poética e ensaística; esta, mais intensamente no
início, devendo ser ouvida/lida como uma aproximação à dei continuidade – em termos
curatoriais – considerando as variantes e endereçamentos ricos a que permitem aceder.
Analisando os seus poemas, ao mesmo tempo que me debrucei sobre as iconografias de
Molder, Woodman e Tschäpe, apercebi-me de que as reflexões de E.A. Poe se reflectiam
mutuamente…por assim o afirmar, uma espécie de ressonância em “duplo sentido”.
Seleccionei aquelas imagens fotográficas e videográficas – fixas e em movimento, nas quais
mais se evidenciam os tópicos que entendi como denominadores comuns, aquelas que quase
se exigiam logo após as ter confrontado nos inícios da minha pesquisa. Assim, se instaurou
uma plataforma de reflexão, interpretações e transfigurações possíveis quanto intermináveis
(quase).
No panorama literário português é incontornável a tradução empreendida por
Fernando Pessoa de alguns dos poemas e contos de Poe, quanto no séc. XIX, o fora a acção
de Baudelaire em França. A ênfase das traduções incidia, direccionando fortemente as
premissas efabulatórias que tenderam à maior divulgação e mediaticidade (popularização
equivalendo mesmo a uma desvalorização/banalização) estereotipada da obra de Poe – a
configuração de um imaginário “excêntrico”, sobrecarregado e inusitado (até então). Entenda-
se a sua obra de valência mais directamente “gótica”, agindo como impulso, que muito tem
sido abordado, antecipando criações que se converteram em estereótipos recorrentes: a
idiossincrasia manifesta nos contos intensificou-se pelo recurso que a cinematografia – nos
seus primórdios – lhe procurou.
Em termos de contextualização, assinale-se que a obra de Poe privilegia (é sustentada) a
expansão do imaginário, não somente por recurso a uma escrita imputável à imaginação,
quanto alimentada por metáforas, alegorias e convencionalismos adstritos a um vocabulário
enfaticamente visual, onde se destacam as transfigurações. As transfigurações
consubstanciam-se em morfologias humanas, animais e de vertente paisagística (arquitectural,
urbana e natural). A sua representação por vezes assume proporções de uma certa
convencionalização artístico/literária, detectável através de tópicos de externalidade –
facilitando a recepção estética), tanto quanto propugna os domínios fantasmáticos do self.
Numa cumplicidade que poderia entender-se de paradoxal, o autor americano afirmou a sua
anterioridade científica, filosófica e estética (1848) quanto:
à sistematização da psicanálise freudiana (1898);
à explanação de conteúdos fenomenológicos (iniciados por Husserl e expandidos em
distintas especificidades, destacando-se, Gaston Bachelard e Merleau-Ponty;
à formulação de uma estética simbolista (finais séc. XIX).
Relembrem-se os antecedentes quer filosóficos, quer psicológicos propugnados pelo
pensamento grego que E.A.Poe recupera e reinventa, em argumentações de foro cosmológico
e quando recorre – em moldes de escrita – à tipologia privilegiada por Platão, travestindo-o no
Diálogo Eiros and Charmion ou no Colloque of Monos and Una …
Atenda-se, também, aos antecedentes estéticos e artísticos na historiografia ocidental no
respeitante à tradição onírica, ao predomínio de um imaginário híbrido – Jeronimus Bosch…
(salvaguardado e/ou enfatizado em alguns autores, assim cumprindo superior missão
cristianizadora).
A proposta de leitura cruzada, entre os 3 artistas contemporâneos por referência a Poe,
centra-se na explanação de excertos de poemas, por referência a imagens seleccionadas na
iconografia de cada um dos três artistas visuais em causa. Ainda, a inserção de excertos de
Marginalia, onde se encontram enunciados princípios, conceitos e ideias articuláveis,
subjacentes, relacionáveis aos mencionados conteúdos iconográficos – devidamente inscritos
nas correspondentes tendências estéticas propugnadas: Jorge Molder, Francesca Woodman e
Janaina Tschäpe.
Um dos denominadores comuns entre os 3 autores é a recorrência, ascendendo à
compulsividade, no tocante ao “auto-retrato”, salvaguardando embora as diferenças estéticas e
artísticas de sua assunção. O auto-retrato é gerido entre a fisicalidade [e transcendência]
(Molder), a evanescência (Woodman) e a corporalidade presentificada [no caso de algumas
das séries, a transfiguração] (Tschäpe]. Todas estas acepções remetem, a meu ver, para os
conteúdos semânticos apreendidos na poética de Poe, quanto nos anteriormente anunciados
excertos de âmbito filosófico e estético em sua prosa. Saliente-se, ainda, a concordância aos
estereótipos (visuais) configurados em protagonistas e nos ambientes que aglutinam os
enredos dos contos mais divulgados…
1. Jorge Molder:
Sob signo de sombras, silhuetas e ocultações, Molder concretizou através do recurso a
diferentes estratégias visuais as motivações identitárias que revelam o questionamento
ontológico mais determinante na caracterização/fundamentação da sua obra de fotografia.
Em Desconhecimento Imediato (2005), à semelhança do que se pode constatar em Pequeno
Mundo impõe-se a “dissolução”, a “desmaterialização” simuladas do corpo, assumindo a
fisicalidade uma justificação para uma suposta anulação, em prol da metaforização, através da
constituição de uma retórica visual, porventura desconcertante. Em termos metonímicos, o
rosto cumpre essa decisão, numa sequencialidade oscilando entre a pseudorrevelação e
soluções ônticas de seu paradoxo.
Jorge Molder. Desconhecimento Imediato, 2005
Fig.1 - Jorge Molder – Desconhecimento Imediato, 2009
“Há certas qualidades…tais compósitas
Com uma dupla vida, a que assiste
Uma entidade gémea que consiste
Em luz e em matéria, sombra e sólido.
Cindido é o Silêncio: mar e cais,
Corpo e alma. Um vive solitário
Em campo raso, e faz-se temerário
Mercê de humanos ecos, rituais
E indulgências…seu nome é “Nunca mais”. (Poe, 2009, O.C., p.143)
No rosto, o olhar destaca-se, quer pela sua opacidade, pelo ocultamento absoluto ou
parcial, quer pela translucidez de onde parece submergir. O olhar interpela pelo espanto, pela
ameaça latente, pela dilaceração, promovendo emoções, desígnios que cativam o corpo
próprio, organizando numa perspectiva de incidência quase aérea (construtivista, dir-se-ia…)
O olhar residindo no rosto é suportado por um busto “invertido” ou cativado no reflexo sub-
camuflado com esgar…O desdobramento do rosto plasmado na 3ª imagem da sequência,
cativa a densidade de um doppelganger que atravessa a sua estética autoidentitária em estado
puro de ficção.
Fig.2. Jorge Molder - CD, 1998
Todos os enunciados visuais centrados nesse olhar, que promotor da acuidade do auto-
retrato, correspondem, em toda a sua expansão mítico-simbólica, a tópicos qualificativos
(estereótipos) banalizados na narrativa e na poesia de Poe, como acima se assinalou,
conformada num imaginário romanticista que preanuncia o “ultra-romantismo”, o
“decadentismo”, tanto quanto o “simbolismo” – tanto quanto o designado por “goticismo”.
Em derradeira instância atinge um estádio quase extremo de máscara mortuária como em
Pinocchio (2009). A fotografia regista o molde de gesso do rosto próprio, uma espécie de
doppelganger, como antes se assinalou. Igualmente as mãos são presentificadas em moldes,
também à semelhança de certa tradição de cativação para a eternidade do indivíduo humano e
pessoal…Assim, através deste (auto)retrato-máscara, se consumam as distintas acepções do
rosto nas suas imagens fotográficas. As máscaras significam, quiçá, a “perda do rosto”
(individuado para o holista ou vice-versa?), numa acepção antropológica, para agregação de
um dividendo ontológico (?), quase ascendendo a “teleologização”?
Num outro direcionamento cúmplice, analisando as inúmeras e rigorosas Séries de
Molder, o corpo próprio torna-se objecto de culto, de pregnância: Linha do tempo (2000) e
Curtas metragens (2000). Vê-se a identidade em fuga (de e) no tempo (ocorrem as
argumentações enriquecedoras de Sto. Agostinho nas Confissões e de Bergson em Matière et
Mémoire). Identidade em fuga no tempo é visibilizada, provando que é possível cumprir a
complementaridade da noção que Poe, precisamente, assinalava como incompleta: o tempo
apenas entendido - que “se dá”/”se torna” - enquanto súmula, sucessão de eventos. O tempo é
consignado, por externalização na sucessão de corpo(s) do mesmo, em movimentos que
supostamente definiriam (à semelhança) o espaço – na sua amplitude e configuração de área.
Jorge.Molder.“curtas.metragens.linha.tempo”.2000
Fig. 3 Linha do tempo, 2000
“Linha do tempo
Um homem procura esboçar uma ombreira de porta. Não é bem um desenho aquilo que vai fazendo, é mais
como se quisesse tornar precisa uma indicação urgente da qual poderia depender a sua sobrevivência, ou
apenas uma memória. Não deixa transparecer qualquer atitude desesperada, mas antes alguma coisa entre a
concentração e o devaneio. Percorre alguns locais certamente ligados ao seu passado.
Outro homem percorre incessantemente uma casa como se procurasse alguma coisa, alguma coisa que está
mais dentro dele do que na casa, que se percebe já não ser habitada.” (Jorge Molder)
O corpo próprio do artista discorre nos corredores de uma casa, alertando-nos para os
valores simbólicos, arquetípicos de que Poe soube povoar as suas criações: casa como
cenário, casa como substância, casa como conceito…; casa onde a sombra, onde a silhueta de
Jorge Molder vagueia.
“…Ser minha fala a música de um sonho.
E enquanto não vier brusco ruído
Quebrar o teu deleite adormecido,
Nossas mentes e almas…Ó, Senhor!...
Em tudo se hão de unir, meu grande amor.” (Poe, 2009, O.C., p.209)
“Cheguei a casa…já não era a minha
Casa, sumiu-se tudo o que continha,
Saí, franqueei o musgoso umbral,
E ainda que o fizesse de mansinho.
Uma voz se elevou do patamar
De alguém que antes cruzara o meu caminho…
Nem no Inferno, oh!, havia de encontrar,
Lá no seu leito fundo tão ardente,
Mais mansa alma…tristeza mais dolente.” (Poe, 2009, O.C., pp. 57-58)
A deambulação , neste caso é mais um deslocamento intencionalizado, que não
necessariamente cumpre todos os requisitos da mais frequente aceção de flânerie. Remete
para a afirmatividade das imagens psíquicas que Poe já soube diferenciar das imagens mentais
reunidas, talvez, sob a entrega das imagens memória…No espaço arquitectónico exerce-se a
quase dissolução do corpo – O Pequeno Mundo (2001). A casa apropria-se do protagonista.
Essa acção é consequência do processo deambulatório que propicia uma pertença quase
indistinta a nível percepcional (e ontológica) entre um (protagonista/corpo) e outra
(casa/arquitectura): paredes, corredores, portas... absorvem o ser pessoal na assunção
celebrada sobre o seu “invólucro”, esse “eu-pele” que Didier Anzieu soube designar.
2. Francesca Woodman:
Fig. 4 Francesca Woodman Fig. 5 Self-Deceit 5 (Roma).77-78
A arquitetura assume um protagonismo notório na escrita do autor americano,
albergando sentimentos e emoções que o entendimento “estratégico” procura conciliar. As
descrições directas ou intermediais do espaço urbano ou rural direccionam o desenvolvimento
das acções que as personagens são conduzidas a cumprir. Esta nota tipicamente romântica
encontra paralelismo na encenação fotográfica que Francesca Woodman legou.
Prematuramente desaparecida, ficou uma obra singular, eivada de uma assunção identitária
sui generis que assegura a intemporalidade da figura/personalidade do artista enquanto
perseguido pelo paradoxo de si mesmo. Em finais da década de 70, Woodman revela-se,
através de imbricadas construções visuais, de intrínseca valência performática.
“Tua alma solitária se verá
Sombria, meditando num jazigo…
Ninguém, da multidão, perscrutará
Esse instante em que estás a sós contigo.
Guarda silêncio nessa solidão,
Que não é um exílio – pois então
Os espíritos dos mortos, que de frente
Viste quando viviam, novamente
Na morte te rodeiam…seus desejos
Vêm obscurecer-te: oh, sê silente!
A noite, embora clara, há de cerrar-se,
E o olhar dos astros não há de inclinar-se
Dos seus tronos no alto, celestiais…”
(Poe, 2009, O.C., p. 65)
Fig. 6 Untitled. Boulder. Colorado.1972.75
A artista-persona enreda-se em cenários naturais, trabalhados por recurso a trucagens,
montagens e demais procedimentos técnicos, assimilando-se e enfatizando a sua presença. De
forma equívoca, a sua figura submerge entre arvoredos, ocultada sobre tecidos ou mais,
recorrentemente, dissolve-se em paredes internas à casa. Numa fotografia emblemática o seu
corpo (que é mais um vestígio do que uma afirmação) atravessa uma lápide – atravessando
reinos inconciliáveis…aparentemente. Woodman movimenta-se entre mundos: diurno e
nocturno, consciência e inconsciência, vida e morte…Se atendendo à nomenclatura
cinematográfica de André Gide em Orpheu, Woodman vive na Zone…Esse espaço onde a
memória garante que se vivifica sempre e sempre, onde a realidade é a crença ansiada, onde a
ilusão domina e confunde…espécie de caverna platónica…
Em House #4, a figura feminina atravessa-se entre a parede e o umbral de uma lareira,
evocando um elemento primordial ausente – o fogo. Numa assunção simbólica complexa e
potencializadora de intensa dualidade, o plano inclinado acentua a dramática prisão. O corpo
tende sempre para uma dissolução visual, contrariando a impenetrabilidade dos materiais.
Recorrendo a adereços do imaginário pessoal, quanto do colectivo, para acentuar a pseudo-
ocultação da sua pessoa, extravasa o “gosto” pelo gótico – campas, emparedamento, espelho-
cego…voltando-se para dentro da parede como se de uma estrada de luz se tratara…
Fig. 7 House #4, Providence, Rhode Island, 1976 Fig. 8 From Angel Series, Roma,1977-1978
“…Não há palavras – aí, para meu desgosto! –
Que digam o encanto que é amar,
Nem poderia agora eu traçar
A beleza suprema desse rosto
Cujas linhas, em meu lembrar distante,
São sombras vagas pelo vento errante:
Assim também recordo já ter lido
Dispersas folhas do saber de outrora
Até que, para meu olho abstraído,
Cederam suas letras seu sentido
A fantasias cujo senso ignoro.” (Poe, 2009, O.C., p.53)
Francesca Woodman transportou no Poem about 14 hands high1, os reinos de fantasia
e de realidade, cujos intermediários são as mãos (também as luvas), a pele da pele numa
escrita de reverso. O corpo é apresentado em distintas acepções ôntico-visuais:
a) corpo envolto em papel – Then at that point I did not need to translate the notes; they went
directly to my hands.(Francesca Woodman – Providence – 1976, texto e fotografia);
b) corpo que olha a sua silhueta carbonizada – Providence/Rhode Island, 1976 (fotografia);
c) corpo enjaulado no aquário e no espelho – Space 2,1975-1978;
d) corpo diluído entre o papel de forrar a parede e a própria parede – almas, carbonizações…;
e) corpo desajustado de focagem com efectividade do espelho que reflecte paredes; moldura
de espelho com dissipação da pessoa (etérea), espécie de alma;
f) elevação do corpo como anjo na moldura, no umbral de uma porta que é transição de
mundos, passagem entre Eros e Thanatos; asas-lençol (sem corpo de anjo) cuja figura as
ladeia…poética da (não)matéria…
Fig. 9 From Angel series. Rome. 1977 Fig. 10 Untitled. Rome. 1977-78
“Um anjo habita o alto firmamento,
“Que tem no peito fibras de alaúde”;
Ninguém canta com tal arrombo e alento (…)” (Poe, 2009, O.C., p.111)
“Creio eu que os Anjos no Além,
Cantando uns com os outros, suspirosos,
Não acham, entre os termos carinhosos,
Palavra mais piedosa do que “Mãe”. (…)” (Poe, 2009, O.C., p.185)
1 Cf. Poem about 14 hands high:
“i am apprehensive. it is like when/ i played the piano. first i learned to/ read music and then at one point i/ no
longer needed to translate the notes:/ they went directly to my hands. After a/ while i stopped playing and when i
started again i found i could not/ play. i could not play by/ instinct and i had forgotten how
to read music.”
A coincidência trágica, entre os conteúdos iconográficos das suas fotografias e as
circunstâncias biográficas, converteu Woodman numa figura paradigmática, enfatizada em
inúmeros gender studies focados no seu caos particular. Cartografou a identidade pessoal num
(não)lugar onde a vida era morte e seu reverso. O corpo, porventura, um peso excessivo –
uma carga imaginária “patológica”, metáfora pungente – corporaliza-se no desejo de aparição,
circunstância e condição de uma transitoriedade deliberada, demarcando-se do tempo/duração
imposto e propugnando – em derradeira instância – o termo de vida que decidiu:
“Eu não fui, desde a infância
Como outros eram…não olhei
O que outros viam…não busquei
Na mesma fonte as minhas ânsias…
Não foi do mesmo poço que tirei
Minha amargura…meu coração
Não entoou, em coro, hinos de louvor…
E tudo o que eu amei, amei em solidão…” (Poe, 2009, O.C., p. 199)
3. Janaina Tschäpe:
Fig. 11 The Moat and the Moon. Ghost.2003
“…To give form and narrative to the trance of art making, to portray not a dream world, but the sensation of being in one
and to allow the viewer to temporarily embody the mind of the artist when everything is still at play is my main objective
through a indiscriminatingly ample repertoire of multi- media and multi-disciplinary attitudes.”- Janaina Tschäpe, 2004
Arquitetura, lugar e natureza são os tópicos que absorvem a auto-presentificação –
performatizada – de Janaina Tschäpe. Numa irradiação peculiar, onde luz e escuridão se
combinam, a obra da artista alemã, radicada no Brasil, alastra em Séries, cujas intensidade
dramática e poética quanto a axiologia estética, se encontram subsumidas nos reinos do
imaginário. O imaginário adquire proporções diferenciadas consoante os pressupostos
conceptuais que se concretizam em fotografias, vídeos ou pinturas: imaginário da matéria,
organizado em “mundos”, em “ambientes”, em cenografias dominadas por elementos
matriciais. Os lugares multiplicam-se, desdobram-se em consonância com a
personagem/autora que, prioritariamente, neles transita mais do que reside. Todavia a sua
presença pode determinar-se por uma recorrência de maior duração ou pela fugacidade que
deixa vestígios complexos e polissémicos. Assim, os lugares do seu imaginário(s) confirmam
a sua radicação nas “estruturas antropológicas”, seguindo Gilbert Durand. Todavia, não
somente o conceito de imaginário alimenta a produção da artista, quanto nalguns casos,
assume relevo o caminho do fantasmático; noutros destacam-se efabulações e ainda devaneios
por onde deambulam ou se fixam figuras mutantes e/ou transfiguradas – Blood Sea (2004),
Lacrima Corpus (2004) que se suspeita sejam a própria autora. Tschäpe converte-se em seres
híbridos versus corpo/fantasma – The Moat and the Moon (2003), zoomorfos Acqua Viva
(2003) ou ectoplasmáticos – After the Rain (2003), tanto quanto a sua persona/corpo se
coloca/estabelece, aderindo ao chão em 100 pequenas mortes – 100 Little Deaths.
Fig. 12 100 Little Deaths, Sarraceno, 2000 Fig. 13 100 Little Deaths, Rocha's House, 2000
“Pela noite, a cada instante…
Tais eternas viandantes…
E toldam a luz estelar
Com o sopro dos rostos pálidos.
À meia-noite lunar,
Uma, entre todas nublosa,
(Que, feitos os testes válidos
Se sagrou a mais airosa)
Mergulha…mais e mais fundo…
E o seu centro se emaranha
Na crista duma montanha,
E o seu bojo, tão rotundo,
Se dissolve em véus perlados
Sobre casas…povoados,
Onde quer que possam estar…
Sobre as matas, sobre o mar…
Sobre os espíritos alados…
Sobre os seres estremunhados…
E os soterra totalmente
Num labirinto fulgente…” (Poe, 2009, O.C., p.103)
Nesta série, desenvolvida entre 1998 e 2002, a sua presentificação possui algo de
“sagrado” (quase religioso) ao estender-se no solo – terra, água…- evocando despojamento,
aceitação e, sobretudo absoluto domínio e conhecimento de si. Na assunção do
antropomórfico, explora o perigo, o horror e o medo – nas suas dimensões fantasmática e real
– do artista perante a falha, a ausência. O corpo jacente é um tema frequente na iconografia
ocidental, conotado com motivações e contextos religiosos e teológicos. Aqui, o corpo
jacente, ventre em terra convoca o mito da fertilidade, realidade simbólica da mulher. A
heterogeneidade de lugares recebe esse corpo jacente, em espaços interiores e exteriores,
percorrendo uma diversidade de geografias, devidamente nominadas. O corpo é uma espécie
de espelho de um Atlas, subjacente o conhecimento do mundo e estimulando a viagem ao
além-mundo.
Fig. 14 100 Little Deaths, Mana.2002 Fig. 15 100 Little Deaths, Antiparos, 1998
“Em visões do breu nocturno e incerto
Sonhei com o prazer de outrora…
Mas um sonho desperto, pela aurora,
Deixou-me o coração deserto.
Que faz senão sonhar sempre acordado
Aquele que olha de soslaio
As coisas em redor, e com um raio
Apontado para o passado?” (Poe, 2009, O.C., p. 73)
“Mas quando a Noite o seu sudário
Deitava em tal lugar, e em tudo à volta,
E o vento misterioso andava à solta…
E o vento em canto murmurava…
Ah…era então que eu despertava
Para o terror do lago solitário. (…)
No veneno da onda havia dolo,
E em seu vórtice um esquife apropriado
A quem buscava o consolo
De um espírito, erguendo transviado,
Em seu imaginário isolado,
Um Éden no sombrio e torvo lago.” (Poe, 2009, O.C., p. 78)
Os excertos de paisagem natural (ou intervencionada pelo humano) acolhem a
celebração de Tschäpe, em estradas sinuosas que se distendem, em plataformas de vegetação,
dirigindo-se quase em espiral para o conhecimento autognósico: orla da praia; águas paradas
de um rio ou lago; áreas de terra batida e arvoredo; berma de estrada ou ponte; vales
cavados…
A quietude da figura, como que descida ou pousada, não possui peso, nem é gerida
pela gravidade. O seu hieratismo é antes uma suspensão colocada e decidida a sua demora, a
sua delonga. Uma figura única confere-nos a noção de espaço, comprovando-se quanto Poe
tinha razão ao aperceber-se que mais do que o acumulo de objectos e coisas poderiam definir
uma área, torná-la mensurável – em termos perceptivos…
Fig. 16 100 Little Deaths, Frac Champagne-Ardenne, 2001
Em 100 Little Deaths, Tschäpe encena situações, proporciona enredos, estimula o
nosso imaginário particular a enredar-se com os estereótipos do mistério, mais do que do
hermético ou esotérico. Tampouco confere o primado ao mítico e as simbologias que impõe
são bastante conclusivas, contrariamente ao que mais frequente as caracteriza. Ao escolher-se
a si mesma como protagonista que atravessa cartografias, assinala lugares efectivos por onde
passa ou fixa. Como se referiu, os lugares são denominados, ao contrário de outros lugares
presentes em diversas Séries da artista, que se assumem como “terra-de-ninguém” ou não-
lugares quase…
Janaina Tschäpe é a personagem, a protagonista, a figura única de seus “tableaux
presque vivants”. Segura, estabiliza, quase exerce um tempo levitado que transpõe a noção de
sucessão pois radica num tempo sem cronometria objectiva…apenas experiencial – quer da
parte da artista, quer por parte dos receptores (do público). A natureza, na sua dimensão
cosmogónica, acolhe tempo e espaço, transcendendo-os e prometendo-lhes transcendência.
Aí, os territórios do imaginário ganhem um dimensionamento credível, pela força semântica
que exalam quanto o reverso, consequente da projeção ecfrástica dos fragmentos poéticos de
E.A.Poe.
Fig. 17 100 Little Deaths, (Arco Natural) 1998
“Vales sem fundo, infindas vagas,
Bosques vastos, onde cavas,
Cujas formas se sepultam
Nos orvalhos que as ocultam,
Montes eternos que avultam
Sobre oceanos sem costas;
Mares revoltos num tumulto
Contra os céus em fogo postos;
Lagos largos de águas extensas,
Águas quedas…mortas…densas…
Águas geladas pela neve
Onde ondula o lírio breve.” (Poe, 2009, O.C., p. 149)
Coda:
A diversidade estética da obra de Edgar Allan Poe tornaria infindável o enunciar de
aproximações, referências, afinidades visuais, suscetíveis de serem estabelecidas por relação
e/ou confronto: à poesia, contos e ficções, ensaios, escritos críticos e filosóficos – Marginalia,
Eureka, Power of Words, Colloque of Monos and Una, Dialogue Eirós and Charmion,
Philosophy of Composition, Philosophy of Furniture…
Um dos aspetos a salientar consiste no facto do texto literário ser definido em causa
relacional à força psíquica que exerce sobre o leitor, decorrendo da intensidade ab initio
vivenciada pelo próprio autor. Essa força psíquica confere-lhe, precisamente, uma singular
autonomia no campo da escrita, garantindo-lhe a consistência, a força prospectiva que se
espelha em cada acto de leitura – nomeadamente, pela veemência iconográfica que induz e
estimula em termos de recepção estética e poética.
Poe afirma a densidade do poema em si mesmo, per se…um poema é um poema, pré-
figurando o esteticismo fin-de-siècle que adviria por mão de outros autores. É na alma (campo
psíquico total) que se desencadeia a evidência do valor intrínseco do poético. A alma aspira a
ser invadida totalmente pela linguagem e o poema é-lhe apenas o lugar de potenciação
psíquica. O prazer poético vê-se agregado pela tristeza, pela tensão, pois é constituído de
alegrias estéticas, apenas vislumbradas, entrevistas, através do poema em si. O poema será
uma estrutura linguística onde a alma irradia, por entre rimas, palavras, frases,
consubstanciando a beleza e predispondo, com frequência, ao sublime. Atenda-se à
argumentação de Poe, quando refere que o “sentido poético” é “elevação”…, não antes
“estimulação da alma”, onde se reencontra. Eis os territórios do psíquico, cujos elementos
conceptuais analisa: alma, espírito, sopro…Alma é entendida como distinta do corpo, dele se
destacando, prestes a elevar-se em direcção à eternidade. Alma e espírito são dois modos que
associados ao sopro (enquanto hálito que, ao nível das vias respiratórias, implica mudanças,
trocas com o ar exterior) propiciam a junção do mental com o físico, do consciente ao
inconsciente. Como assinala Poe, respiramos inconscientemente, mesmo quando dormimos,
estando o sopro nos limites. A alma (através do sopro) toca o mais íntimo do íntimo, velando.
É a fronteira entre o interior e o exterior. Na tradição esotérica, o homem na sua tríplice
condição (corpo, alma, espírito) converge na imagem do carro atrelado + condutor +
carro/veículo…
Nas suas reflexões, à semelhança dos conteúdos poéticos, E.A. Poe aborda os
fenómenos que qualifica, denomina mais incisivamente de “psíquicos” do que de
“intelectuais”, estabelecendo-lhes a distinção (em termos epistemológicos). Menciona o que
se sabe serem as imagens hipnagógicas…as “impressões psíquicas” expondo que, por vezes,
estas se transferem para a memória, ficando assim disponíveis para a consciência…em toda a
sua densidade pulsional (diríamos). Em Marginalia (1849) reafirma o “psíquico” como
oposto a mental e em Princípio Poético, associa-o à alma. O valor do poema centrar-se-ia, na
capacidade e proporção de elevação e estimulação que, por necessidade psíquica, é efémera.
Os textos de E.A. Poe anunciam e corporalizam, já muito aprofundadamente mesmo nalguns
aspectos, uma tarefa de conquista gnosiológica, incidindo em territórios que então se
pressentiam mais do que estruturavam rigorosamente. Através de uma consciência pessoal, os
campos informulados e anónimos adquiriram, progressivamente, uma consistência reflexiva
inquestionável.
Em termos iconográficos a instituição do mundo estético estudado por Poe, reuniu
conhecimentos pluridisciplinares que seriam explorados posteriormente por diferentes
autores, como se sabe. A estética da vertigem, das bipolaridades, das oposicionalidades, as
dualidades…avançando para uma capacitação hermenêutica por parte do espectador/leitor.
No caso dos três artistas aqui propostos enquanto externalizando conceito e reflexões
constitutivas do pensamento e criação de E.A. Poe, mais se poderia estender, particularizando
detalhes essenciais e peculiaridades ínfimas. Concluindo, assinalo:
Fig. 18 Janaina Tschäpe - Nightmare, 2001, video, 3min52s
Janaina Tschäpe, em Nightmare, rende homenagem, sendo uma simulação de “filme
mudo”, onde as transfigurações do corpo e distorções da voz questionam os limites da vida,
morte, sonho e da ficção poética.
“Olhai! A morte ergueu seu alto trono
Numa estranha cidade ao abandono,
Lá longe, onde o Sol morre com langor,
E os bons e os maus, e os piores e os melhores,
Desfrutam nessa terra, o eterno sono.” (Poe, 2009, O.C., p. 115)
Francesca Woodman fez convergir, centrando em si, a dramática oposicionalidade que
se verifica na leitura do autor americano. A sedução, a volúpia da tragédia que possui a sua
mais intensa morfologia nas dissipações e assunções do eu.
Fig. 19 Francesca Woodman-Untitled New-York, 1979-80
“…Ser minha fala a música de um sonho.
“E enquanto não vier brusco ruído
Quebrar o teu deleite adormecido,
Nossas mentes e almas…” (Poe, 2009, O.C., p. 209)
Jorge Molder, considerando a sabedoria extrema de si, explora a obra visual como
poema metafísico, dominando as ambiguidades e afirmando as interpretações projectadas
pelos seus receptores.
“O meu trabalho tem a ver com o fingimento.”
“No fundo, talvez seja a questão que também me coloco a mim próprio: o branco será mais assustador que o negro?”
“O que me interessa são as transições e a carga afectiva.” - Jorge Molder
Fig. 20 Jorge Molder – Pinocchio, 2009
“Chamei-lhe Pinocchio porque tem a ver com dois temas: um, a progressão do estado da memória, da matéria e da morte. O
outro é o que significam os sentimentos [...]” - Jorge Molder
Ficam as palavras do autor e as imagens e pensamentos dos 3 artistas, num processo
que apenas agora se inicia.
Lista Bibliográfica
Poe, E. A. (2007). Marginalia, Paris. Éditions Allia
Poe, E. A. (1884). Poems and Essays. Leipzig. Bernhard Taucnhitz
Poe, E. A. (2004). Poética (Textos Filosóficos). Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian
Poe, E. A. (2009). Obra Poética (Completa. Lisboa. Tinta da China
Poe, E. A. (2010). The Complete Works of Edgar Alan Poe. Memphis Tennesse. General
Books
Poe, E. A. (2009). The Works of Edgar Allan Poe; vol. IX – Essays – Philosophy [Ed.Facs].
UK. Milton Keynes
Justin, H. (2009). Avec Poe jusqu’au bout de la prose. Paris. NRF/Gallimard