Can Guil Hem

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  • Georges Canguilhem

    FILOSOFIA

    Escritos sobre a

    Medicina Traduo:

    Vera Avellar Ribei ro

    Reviso Tcnica: Manoel Barros da Mona

    Prefcio: Armand Zaloszyc

    ~~ FORENSE

    UNIVERSITRIA

  • Georges Canguilhem

    FILOSOFIA

    Escritos sobre a

    Medicina Traduo:

    Vera Avellar Ribei ro

    Reviso Tcnica: Manoel Barros da Mona

    Prefcio: Armand Zaloszyc

    ~~ FORENSE

    UNIVERSITRIA

  • l' edio- 2005

    I!) ltiJI\'Ti~/,j t\s referncia~ de p1imcira puulic;1:,o de .:ada um do~ rcxiOS

    figur;un no incio do volume.

    PUF, I ?89. 4" etliilo. ~001. l'"m o texto "As doen~s ~ablcs. 19

  • l' edio- 2005

    I!) ltiJI\'Ti~/,j t\s referncia~ de p1imcira puulic;1:,o de .:ada um do~ rcxiOS

    figur;un no incio do volume.

    PUF, I ?89. 4" etliilo. ~001. l'"m o texto "As doen~s ~ablcs. 19

  • Prefcio

    Um certo disparate sempre me pareceu ser um trao da com-posio dos livros publicados por Georgcs Canguilhem. Com exceo de suas duas teses, uma sobre O normal e o patol6gico c a outra sobre La formation clu concept de rflexe (ambas publicadas pela PUF), ele, sem dvida, procedeu essencialmente por meio de artigos publicados aqui e ali, os quais reunia em uma seleo, de tempos em tempos, para fazer deles um volume: assim obti-vemos seus tudes d'ltistoire et de pllosophie des sciences, ou La connaissance de la vic, ou ainda Idologie et rationalir dans l'ltiswire eles sciences de la vie (todos atualmente editados por Vrin). Penso, todavia, que, mais alm do que aparece fulguran-te como um mtodo- de trabalho, de transmisso-, uma ori-entao que nos dada.

    Quem sabe era assim que ele pretendia nos apresentar este novo objcco de saber inventado por ele, com novos contornos, expanses imprevistas? Por um outro aspecto, no estaria neste homem, neste ensinante de um rigor contnuo, a marca da inci-dncia de uma lgica que valoritava a inconsistncia do grande Todo? Encontrarei facilmente um outro sinal disso no fato de ele ter dirigido, em 1970, de maneira bastante inesperada, um colquio do CNRS sobre "A matematizao das doutrinas in-formes".

  • Prefcio

    Um certo disparate sempre me pareceu ser um trao da com-posio dos livros publicados por Georgcs Canguilhem. Com exceo de suas duas teses, uma sobre O normal e o patol6gico c a outra sobre La formation clu concept de rflexe (ambas publicadas pela PUF), ele, sem dvida, procedeu essencialmente por meio de artigos publicados aqui e ali, os quais reunia em uma seleo, de tempos em tempos, para fazer deles um volume: assim obti-vemos seus tudes d'ltistoire et de pllosophie des sciences, ou La connaissance de la vic, ou ainda Idologie et rationalir dans l'ltiswire eles sciences de la vie (todos atualmente editados por Vrin). Penso, todavia, que, mais alm do que aparece fulguran-te como um mtodo- de trabalho, de transmisso-, uma ori-entao que nos dada.

    Quem sabe era assim que ele pretendia nos apresentar este novo objcco de saber inventado por ele, com novos contornos, expanses imprevistas? Por um outro aspecto, no estaria neste homem, neste ensinante de um rigor contnuo, a marca da inci-dncia de uma lgica que valoritava a inconsistncia do grande Todo? Encontrarei facilmente um outro sinal disso no fato de ele ter dirigido, em 1970, de maneira bastante inesperada, um colquio do CNRS sobre "A matematizao das doutrinas in-formes".

  • 8 Ocorges Cangulhem

    O sabor to particular das obras de Georges Canguilhcm proviria, assim, do enlaamento entre uma orientao, um ri-gor, uma erudio, uma exatido, no seio de uma aparente dis-perso- contida, verdade, na disciplina da histria e da epis-temologia das cincias da vida: ele, porm, modela seu domnio e seus limites muito mais do que se submete a ela. Disseminao seria, ento, a palavra exata.

    A presente coletnea no exceo a essa regra que julgo perceber no cuidado de Georges Canguilhem, no sentido de sempre questionar a regra por meio da exceo mltipla. A coe-rncia disso manifesta: trata-se de histria e de filosofia da medicina e ter-se-, com os cinco textos que podem ser lidos neste livro, junto aos trs outros que figuram sob a rubrica "me-dicina", na ltima edio dos tudes ... , a totalidade dos escritos de Georges Canguilhem sobre a medicina- pelo menos se con-fiarmos na bibliografia crtica muito bem informada de Camille Umogcs 1 -, reservando-se a fronteira sempre incerta com os es tudos de fisiologia e, no que conceme reflexo sobre o sujeito doente - que verdadeiramente o carter especfico dos escri-tos aqui reunidos-, excetuando-se breves observaes conclu-sivas feitas no colquio mundial "Biologia e futuro do homem", em Paris, em 1976, sob o ttulo "Qualidade da vida, dignidade da morte". Tal a unidade deste livro, e, agora, deixamos ao lei-tor o cuidado de ver como ele se dissemina.

    Armand Zaloszyc

    1Camille Lmoges, "A criticai biblography", in A vital ratianalist, selected tvri tngs from GeMges CanguiUtem (Franois Delaporte ed.), Nova Iorque, Zone Books, 1994. p. 385-454.

    Nota sobre a procedncia dos textos

    Os textos deste livro so feitos de escritos entregues por Georges Canguilhem para publicaes por vezes confiden ciais, com freqncia desaparecidas nos dias de hoje, difcil-mente acessveis, e at mesmo no encontrveis. Por essa ra-zo, pareceu-nos justificado faz-las reaparecer. A escolha do que figuraria neste volume foi efetuada no decorrer de discusses amigveis, em perfeito acordo com Bernard Can guilhem.

    Com exceo de dois deles, provvel que Georges Cangu-lhem no tenha relido esses textos antes da publicao: so conferncias por d e pronunciadas cujos textos ele remetia s pessoas que lhe haviam solicitado (n~ 1, 3, 5); outros so textos destinados diretamente composio escrita (ni!! 2, 4). Os arti gos comportam nol:'as ou ento uma bibliografia geral; as confe-rncias quase sempre no trazem notas, mas, ao l-las, verifi-ca-se que elas certamente se apresentam, em todos os seus as-pectos, como escritos de Georges Canguilhem. Um ponto par tcular conceme apenas ao texto n!! 5, visivelmente publicado sem ter sido relido por ele. evidente que ele no o teria deixa-do, se tivesse podido revis-lo, com a disposio tipogrfica in i cial, em breves pargrafos de uma ou duas frases, ele que se em-penhava,, como confidenciou, em "expressar-se por meio de massas discursivas bem ordenadas". A apresentao menos

  • 8 Ocorges Cangulhem

    O sabor to particular das obras de Georges Canguilhcm proviria, assim, do enlaamento entre uma orientao, um ri-gor, uma erudio, uma exatido, no seio de uma aparente dis-perso- contida, verdade, na disciplina da histria e da epis-temologia das cincias da vida: ele, porm, modela seu domnio e seus limites muito mais do que se submete a ela. Disseminao seria, ento, a palavra exata.

    A presente coletnea no exceo a essa regra que julgo perceber no cuidado de Georges Canguilhem, no sentido de sempre questionar a regra por meio da exceo mltipla. A coe-rncia disso manifesta: trata-se de histria e de filosofia da medicina e ter-se-, com os cinco textos que podem ser lidos neste livro, junto aos trs outros que figuram sob a rubrica "me-dicina", na ltima edio dos tudes ... , a totalidade dos escritos de Georges Canguilhem sobre a medicina- pelo menos se con-fiarmos na bibliografia crtica muito bem informada de Camille Umogcs 1 -, reservando-se a fronteira sempre incerta com os es tudos de fisiologia e, no que conceme reflexo sobre o sujeito doente - que verdadeiramente o carter especfico dos escri-tos aqui reunidos-, excetuando-se breves observaes conclu-sivas feitas no colquio mundial "Biologia e futuro do homem", em Paris, em 1976, sob o ttulo "Qualidade da vida, dignidade da morte". Tal a unidade deste livro, e, agora, deixamos ao lei-tor o cuidado de ver como ele se dissemina.

    Armand Zaloszyc

    1Camille Lmoges, "A criticai biblography", in A vital ratianalist, selected tvri tngs from GeMges CanguiUtem (Franois Delaporte ed.), Nova Iorque, Zone Books, 1994. p. 385-454.

    Nota sobre a procedncia dos textos

    Os textos deste livro so feitos de escritos entregues por Georges Canguilhem para publicaes por vezes confiden ciais, com freqncia desaparecidas nos dias de hoje, difcil-mente acessveis, e at mesmo no encontrveis. Por essa ra-zo, pareceu-nos justificado faz-las reaparecer. A escolha do que figuraria neste volume foi efetuada no decorrer de discusses amigveis, em perfeito acordo com Bernard Can guilhem.

    Com exceo de dois deles, provvel que Georges Cangu-lhem no tenha relido esses textos antes da publicao: so conferncias por d e pronunciadas cujos textos ele remetia s pessoas que lhe haviam solicitado (n~ 1, 3, 5); outros so textos destinados diretamente composio escrita (ni!! 2, 4). Os arti gos comportam nol:'as ou ento uma bibliografia geral; as confe-rncias quase sempre no trazem notas, mas, ao l-las, verifi-ca-se que elas certamente se apresentam, em todos os seus as-pectos, como escritos de Georges Canguilhem. Um ponto par tcular conceme apenas ao texto n!! 5, visivelmente publicado sem ter sido relido por ele. evidente que ele no o teria deixa-do, se tivesse podido revis-lo, com a disposio tipogrfica in i cial, em breves pargrafos de uma ou duas frases, ele que se em-penhava,, como confidenciou, em "expressar-se por meio de massas discursivas bem ordenadas". A apresentao menos

  • 10 Georges Canguilhem

    "explodida" que aqui proponho vai nessa direo, mas ela me peculiar.

    A Z.

    Fontes

    l. "A idia de n

  • 10 Georges Canguilhem

    "explodida" que aqui proponho vai nessa direo, mas ela me peculiar.

    A Z.

    Fontes

    l. "A idia de n

  • 12 Georges Canguilhem

    inventor dos conceitos de esrenia e astenia , acreditava poder resumir em duas palavras o imperativo da atividade mdica: " preciso estimular ou debilitar. Inao, nunca. No confiem na fora da natureza." Era a conseqncia necessria de uma certa concepo do corpo vivo: "A vida um estado forado [ ... ]. N o somos nada por ns mesmos e estamos inteiramente subordinados s potncias externas" (lmenls de mdecine, 1780). Para corpo inerte, medicina ativa.

    Inversamente, a conscincia dos limites do poder da medici-na acompanha toda concepo do corpo vivo que lhe atribui, seja qual for a sua forma, uma capacidade espontnea de con-servao de sua estrutura e de regulao de suas funes. Caso o organismo tenha, por ele prprio, seus poderes de defesa, con-fiar nele , pelo menos provisoriamente, um imperativo hipot-tico de prudncia e de habilidade ao mesmo tempo. Para corpo

    dinmic~, medicina expectante. O gnio mdico seria uma pa-cincia. E necessrio, ainda, que o doente consinta na longani-midade. Bordeu o viu muito bem e disse: "Este mtodo de ex-pecrao tem algo de frio ou de austero, ao qual a vivacidade dos doentes e dos assistentes deve se acomodar pouco. Alm disso, os expectadores sempre formaram um pequeno conjunto en tre os mdicos, sobretudo junto aos povos naturalmente vi-vos, impacientes c receosos'' (Recllerches sur l'histoire de la mcle-cine, 1768).

    Nem todos os doentes tratados se curam. Alguns doentes se curam sem mdico. Hipcrates, que relata essas observaes em seu tratado Da arte, tambm aquele que tem a responsabi I idade ou, em seu lugar, a glria legendria de haver introduzi-do o conceito de natureza no pensamento mdico. "As nature-zas so os mdicos das doenas" (Epidemias, VI) . Por mdico

    Escritos sohrc a m~dicioa 13

    deve-se en tender uma atividade, imanente ao organismo, de compensao dos deficits, de restabelecimento do equilbrio rompido, de retificao de postura na deteco d:! desvio. Essa atividade no uma cincia infusa." A natureza encontra por si mesma as vias e os meios, no pela inteligncia: tais so o piscar os olhos, os ofcios desempenhados pela lngua e as outras aes desse gnero; a natureza, sem instruo e sem saber, faz o que convm."

    A analogia entre a arte do mdico e a natureza curativa no esclarece a natureza pela arte, mas a arte pela natureza. A arte mdica deve observar, escutar a natureza. Aqui, observar e ou vir obedecer. Galeno, que atribuiu a Hipcrates os conceitos dos quais podemos apenas dizer que so hipocrMicos, reto mou-os por sua conta e ensinou, ele tambm, que a natureza a primeira conservadora da sade, porque ela a primeira forma-dora do organismo. Devemos lembrar, tod

  • 12 Georges Canguilhem

    inventor dos conceitos de esrenia e astenia , acreditava poder resumir em duas palavras o imperativo da atividade mdica: " preciso estimular ou debilitar. Inao, nunca. No confiem na fora da natureza." Era a conseqncia necessria de uma certa concepo do corpo vivo: "A vida um estado forado [ ... ]. N o somos nada por ns mesmos e estamos inteiramente subordinados s potncias externas" (lmenls de mdecine, 1780). Para corpo inerte, medicina ativa.

    Inversamente, a conscincia dos limites do poder da medici-na acompanha toda concepo do corpo vivo que lhe atribui, seja qual for a sua forma, uma capacidade espontnea de con-servao de sua estrutura e de regulao de suas funes. Caso o organismo tenha, por ele prprio, seus poderes de defesa, con-fiar nele , pelo menos provisoriamente, um imperativo hipot-tico de prudncia e de habilidade ao mesmo tempo. Para corpo

    dinmic~, medicina expectante. O gnio mdico seria uma pa-cincia. E necessrio, ainda, que o doente consinta na longani-midade. Bordeu o viu muito bem e disse: "Este mtodo de ex-pecrao tem algo de frio ou de austero, ao qual a vivacidade dos doentes e dos assistentes deve se acomodar pouco. Alm disso, os expectadores sempre formaram um pequeno conjunto en tre os mdicos, sobretudo junto aos povos naturalmente vi-vos, impacientes c receosos'' (Recllerches sur l'histoire de la mcle-cine, 1768).

    Nem todos os doentes tratados se curam. Alguns doentes se curam sem mdico. Hipcrates, que relata essas observaes em seu tratado Da arte, tambm aquele que tem a responsabi I idade ou, em seu lugar, a glria legendria de haver introduzi-do o conceito de natureza no pensamento mdico. "As nature-zas so os mdicos das doenas" (Epidemias, VI) . Por mdico

    Escritos sohrc a m~dicioa 13

    deve-se en tender uma atividade, imanente ao organismo, de compensao dos deficits, de restabelecimento do equilbrio rompido, de retificao de postura na deteco d:! desvio. Essa atividade no uma cincia infusa." A natureza encontra por si mesma as vias e os meios, no pela inteligncia: tais so o piscar os olhos, os ofcios desempenhados pela lngua e as outras aes desse gnero; a natureza, sem instruo e sem saber, faz o que convm."

    A analogia entre a arte do mdico e a natureza curativa no esclarece a natureza pela arte, mas a arte pela natureza. A arte mdica deve observar, escutar a natureza. Aqui, observar e ou vir obedecer. Galeno, que atribuiu a Hipcrates os conceitos dos quais podemos apenas dizer que so hipocrMicos, reto mou-os por sua conta e ensinou, ele tambm, que a natureza a primeira conservadora da sade, porque ela a primeira forma-dora do organismo. Devemos lembrar, tod

  • 14 G~orges Can){ulht:m

    de sua histria. fcil imaginar qual impresso uma doutrina mdica, tal como o hipocratismo, pode produzir no esp(rico de quem s conhece o nome de Hipcrates pelo famoso juramen-to, rito final doravantc esvaziado de seu sentido. Pior ainda se, por acaso, projetando retroativamente no passado os princpios tericos e os preceit~ tcnicos do ensino mdico de hoje, se pretendesse jlllgar Hipcrates, como se a vazante do curso da histria transparecesse a montante. Notemos, sem animosida~ de, que at mesmo um mestre como douard Rist, que no ig-norava a histria, s soube tratar da medicina hipocrtica, em sua Histoire critique de !a mdecine dans l'Antiquir, sob a forma de um requsitrio. Aparentemcnre, essa espcie de ingratido no deixa de ter fu ndamento. Como Franois Dagognet o mos-trou em la mison et les rcmede.l,1 a medicina contempornea, muito longe de vigiar ou de estimular, sistematicamente, as rea-es de autodefesa do organjsmo, com freqncia se esfora em

    moder~las, e talvez mesmo em reprimi-las, em deter, por exemplo, reaes humorais desproporcionaLc; em relao agressividade que a:; suscita . Por vezes a teraputica colabora, inclusive, com o prprio mal, refora o que ela deveria enfra~ quecer, multiplica o que deveria reduzir, a fim de converter em instrumento do bem a exaltao provocada por uma afeco espontnea. o caso de algumas pnicas imunolgicas que contam com a intensidade do processo infeccioso para facilitar, por meio da secreo de substncias pro teolticas, a ao das bactrias. No nos parece, ento, que a medicina contempor, nea lana por terra as prescries hipocrticas e s reconhece a existncia de uma natureza curativa das doenas por temer e, por conseguinte, para entravar suas iniciativas? que a patolo, gia contempornea aprendeu a reconhecer a existncia de rea~

    1Pmis, PUF, 1964, Col. "Galien".

    Escrros sobn: a medicina 15

    es orgnicas paradoxais a um hipocratismo de estrita obe, ?i.nci~: H erros de rplca ou de exposio. Ocorre que, a algo msigmficante, a natureza responde com um paroxismo. Assim na alergia, na anafilaxia. Por vezes, dizer que o remdio natu-ral pior do que o mal ainda pouco, ele o prprio mal. Po-rm, se examinarmos bem as tcnicas mdicas de defesa contra essa autodefesa desmedida, no seria possvel tornar a dar um sentido ao conceito de natureza?

    No que concerne s defesas orgnicas naturais, a medicina de hoje exerce uma pn1tica de dvida provisria. A dvida no inci-de sobre o fato da reao, mas sobre a pertinncia inicial e sua su-ficincia definitiva. E, no entanto, essa dvida no suspende a deciso de intervir; pelo comrrio, da a precipita. que essa d-vida fundamentada no conhecimento do papel desempenhado pelo sistema neurovegetativo, no que se nomeou situaes pato-gnicas, independentes da natureza dos agentes patgenos. Ora, a ao sobre o sistema vegetativo, seja qual for seu mecanismo

    i~direto . a complexidade dos desvios, notadamente pela ini.hi

  • 14 G~orges Can){ulht:m

    de sua histria. fcil imaginar qual impresso uma doutrina mdica, tal como o hipocratismo, pode produzir no esp(rico de quem s conhece o nome de Hipcrates pelo famoso juramen-to, rito final doravantc esvaziado de seu sentido. Pior ainda se, por acaso, projetando retroativamente no passado os princpios tericos e os preceit~ tcnicos do ensino mdico de hoje, se pretendesse jlllgar Hipcrates, como se a vazante do curso da histria transparecesse a montante. Notemos, sem animosida~ de, que at mesmo um mestre como douard Rist, que no ig-norava a histria, s soube tratar da medicina hipocrtica, em sua Histoire critique de !a mdecine dans l'Antiquir, sob a forma de um requsitrio. Aparentemcnre, essa espcie de ingratido no deixa de ter fu ndamento. Como Franois Dagognet o mos-trou em la mison et les rcmede.l,1 a medicina contempornea, muito longe de vigiar ou de estimular, sistematicamente, as rea-es de autodefesa do organjsmo, com freqncia se esfora em

    moder~las, e talvez mesmo em reprimi-las, em deter, por exemplo, reaes humorais desproporcionaLc; em relao agressividade que a:; suscita . Por vezes a teraputica colabora, inclusive, com o prprio mal, refora o que ela deveria enfra~ quecer, multiplica o que deveria reduzir, a fim de converter em instrumento do bem a exaltao provocada por uma afeco espontnea. o caso de algumas pnicas imunolgicas que contam com a intensidade do processo infeccioso para facilitar, por meio da secreo de substncias pro teolticas, a ao das bactrias. No nos parece, ento, que a medicina contempor, nea lana por terra as prescries hipocrticas e s reconhece a existncia de uma natureza curativa das doenas por temer e, por conseguinte, para entravar suas iniciativas? que a patolo, gia contempornea aprendeu a reconhecer a existncia de rea~

    1Pmis, PUF, 1964, Col. "Galien".

    Escrros sobn: a medicina 15

    es orgnicas paradoxais a um hipocratismo de estrita obe, ?i.nci~: H erros de rplca ou de exposio. Ocorre que, a algo msigmficante, a natureza responde com um paroxismo. Assim na alergia, na anafilaxia. Por vezes, dizer que o remdio natu-ral pior do que o mal ainda pouco, ele o prprio mal. Po-rm, se examinarmos bem as tcnicas mdicas de defesa contra essa autodefesa desmedida, no seria possvel tornar a dar um sentido ao conceito de natureza?

    No que concerne s defesas orgnicas naturais, a medicina de hoje exerce uma pn1tica de dvida provisria. A dvida no inci-de sobre o fato da reao, mas sobre a pertinncia inicial e sua su-ficincia definitiva. E, no entanto, essa dvida no suspende a deciso de intervir; pelo comrrio, da a precipita. que essa d-vida fundamentada no conhecimento do papel desempenhado pelo sistema neurovegetativo, no que se nomeou situaes pato-gnicas, independentes da natureza dos agentes patgenos. Ora, a ao sobre o sistema vegetativo, seja qual for seu mecanismo

    i~direto . a complexidade dos desvios, notadamente pela ini.hi

  • 16 Georges Cmguilhem

    macopia erudita, seus remdios podem ser mmbm, segundo o caso, a durao e a dose. venenos. Em suma, uma medicina no hipocrtica no uma medicina anri-hipocrtica, ranto quanto uma geometria no euclidiana no uma geometria antieucli-diana. O poder curativo da narureza no negado pelo trata, mcnco que o g(wcrna integrando~o; ele situado em seu nvel ou, mais ex::l tamente, d e compreendido em seus limites. O hpo-cmrismo constatava que as foras da natureza so limitadas. o que v;:~lt!u medicina expectante ser qualificada por Asclepad~s de meditao sobre a morte. A medicina no h.ipocrcica pode recuar suas fronteiras derivando essas foras. Awalmentc, a ig-norncia consistiria em IICO pedir natun::za o que no da natu-reza. A arte mdica a dialtica da natureza.

    ***

    No sem propsito que o nome de Loewi tenha sido manti, do no esboo histrico de uma revoluo em pacologia, e prefe-rido a tantos outros, como os de Reillyou de Selyc. Os trabalhos de Loewi foram retomados e prolongados, em Harvard, por Cannon e sua escola. Foi Cannon quem ampliou o interesse pc-las pesquisas fisiolgicas sobre o sistema nervoso autnomo, de-monstrando seu papel na regulao homeosttica de funes biolgicas fundamentais: circulao. respirao, termogncse. Foi Cannon que, depois de Claude Bernard, apresentou o con-junto ~Qs funes de regulao como "uma interpretao mo dema da vis medicatrix natural", interpretao geradora de oti, misu10 quanto cooperao entre o m.dico e a natureza, mas em um sentido dt:: relao de modo que "a prpria natureza co-labore com os remdios que ele (o mdico) prescreve".2

    2La sagesse du corps (rrnd. (r. de T!.e wisdom of rl1e bod-y, 1932), P;ris, 1946, p. 194-195.

    Escritos sobre a medicina 17

    Compreende-se que a partir do momento em que a cincia fisiolgica permitiu ao mdico poder contar com a existncia de mecanismos protetores da estabilidade orgnica, os mdicos puderam cessar de invocar a Natureza como a providncia da Vida. Mas compreende,se tambm por que essa interpretao, at aquele momento, embora freqentemente contestada co-mo metafsica por muitos espritos positivos, pde, de modo in-cessante e junto a espritos no menos vigorosos, aucorizar,se, tanto em teoria quanto em prtica, da observao atenta e fiel de algumas reaes e peiforrnances do organismo em estado de doena. Se o organismo humano compreende dispositivos de segurana contra os riscos em suas relaes com seu meio, o que haveria de surpreendente se esses dispositivos funcionassem, e o que haveria de insensato se homens, doentes ou mdicos ad, mirassem seus efeitos manifestos?

    A reviso dos temas e das reses inspirados pela confiana prtica -na falta de lucidez terica -no poder curativo da na-tureza exigiria a referncia a uma literatura mdico-filosfica considervel, cuja melhor apresentao oferecida pela obra de Max Neuburger, Die Lehre tJOn der Heilkraft der Natur im Wandel der ~iten ( 1926). Sob o ttulo Le mdecin de soi-mme, a Sra. Evelyne Aziza-Shuster estudou, recentemente, em uma rese de doutorado de terceiro ciclo, 3 a parte dessa literatura que conccrne ao que se poderia chamar 41a prescrio de Tibrio''. Tcito, Suetnio, Plnio, o Velho, c Plutarco transmitiram posteridade o exemplo e a exortao do imperador Tibrio: passada a idade de 30 anos, todo homem deve poder ser seu prprio mdico. Depois dos 30 anos, quer dizer, depois que um nmero suficiente de experincias em matria de alimentao,

    3 A ~er publicada pela PUF, Col. .. Galien w.

  • 16 Georges Cmguilhem

    macopia erudita, seus remdios podem ser mmbm, segundo o caso, a durao e a dose. venenos. Em suma, uma medicina no hipocrtica no uma medicina anri-hipocrtica, ranto quanto uma geometria no euclidiana no uma geometria antieucli-diana. O poder curativo da narureza no negado pelo trata, mcnco que o g(wcrna integrando~o; ele situado em seu nvel ou, mais ex::l tamente, d e compreendido em seus limites. O hpo-cmrismo constatava que as foras da natureza so limitadas. o que v;:~lt!u medicina expectante ser qualificada por Asclepad~s de meditao sobre a morte. A medicina no h.ipocrcica pode recuar suas fronteiras derivando essas foras. Awalmentc, a ig-norncia consistiria em IICO pedir natun::za o que no da natu-reza. A arte mdica a dialtica da natureza.

    ***

    No sem propsito que o nome de Loewi tenha sido manti, do no esboo histrico de uma revoluo em pacologia, e prefe-rido a tantos outros, como os de Reillyou de Selyc. Os trabalhos de Loewi foram retomados e prolongados, em Harvard, por Cannon e sua escola. Foi Cannon quem ampliou o interesse pc-las pesquisas fisiolgicas sobre o sistema nervoso autnomo, de-monstrando seu papel na regulao homeosttica de funes biolgicas fundamentais: circulao. respirao, termogncse. Foi Cannon que, depois de Claude Bernard, apresentou o con-junto ~Qs funes de regulao como "uma interpretao mo dema da vis medicatrix natural", interpretao geradora de oti, misu10 quanto cooperao entre o m.dico e a natureza, mas em um sentido dt:: relao de modo que "a prpria natureza co-labore com os remdios que ele (o mdico) prescreve".2

    2La sagesse du corps (rrnd. (r. de T!.e wisdom of rl1e bod-y, 1932), P;ris, 1946, p. 194-195.

    Escritos sobre a medicina 17

    Compreende-se que a partir do momento em que a cincia fisiolgica permitiu ao mdico poder contar com a existncia de mecanismos protetores da estabilidade orgnica, os mdicos puderam cessar de invocar a Natureza como a providncia da Vida. Mas compreende,se tambm por que essa interpretao, at aquele momento, embora freqentemente contestada co-mo metafsica por muitos espritos positivos, pde, de modo in-cessante e junto a espritos no menos vigorosos, aucorizar,se, tanto em teoria quanto em prtica, da observao atenta e fiel de algumas reaes e peiforrnances do organismo em estado de doena. Se o organismo humano compreende dispositivos de segurana contra os riscos em suas relaes com seu meio, o que haveria de surpreendente se esses dispositivos funcionassem, e o que haveria de insensato se homens, doentes ou mdicos ad, mirassem seus efeitos manifestos?

    A reviso dos temas e das reses inspirados pela confiana prtica -na falta de lucidez terica -no poder curativo da na-tureza exigiria a referncia a uma literatura mdico-filosfica considervel, cuja melhor apresentao oferecida pela obra de Max Neuburger, Die Lehre tJOn der Heilkraft der Natur im Wandel der ~iten ( 1926). Sob o ttulo Le mdecin de soi-mme, a Sra. Evelyne Aziza-Shuster estudou, recentemente, em uma rese de doutorado de terceiro ciclo, 3 a parte dessa literatura que conccrne ao que se poderia chamar 41a prescrio de Tibrio''. Tcito, Suetnio, Plnio, o Velho, c Plutarco transmitiram posteridade o exemplo e a exortao do imperador Tibrio: passada a idade de 30 anos, todo homem deve poder ser seu prprio mdico. Depois dos 30 anos, quer dizer, depois que um nmero suficiente de experincias em matria de alimentao,

    3 A ~er publicada pela PUF, Col. .. Galien w.

  • 18 Georges Canguilhem

    lgiene e modos de vida permitiu ao juzo individual fazer a se parao entre, por um lado, os efeitos das escolhas instintivas, c portanto naturais, de satisfaes timas e, por outro, as conse qndas da submisso dcil s regras de uma arte mal funda-mentada ou interessada em enganar. Quem se surpreenderia com o fato de Montaigne se referir a Tibrio para autorizar-se a seguir apenas seus apetites, na sade e na doena, e para fazer ceder "amplamente toda concluso mdica" a seu prazer? Mas quando Descartes, depois de se haver vangloriado por fundar uma medicina infalvel sobre uma cincia do corpo vivo, e to solidamente demonstrada quanto a mecnica, prope a Bur man, como regra da sade, o discernimento instintivo do til e do nocivo prprio aos animais, a confiana no poder reconheci do Natureza de se restabelecer a partir de um estado que ela "conhece bem melhor do que um mdico que s v o lado de fora", que sustentao dada tese do Mdico de si mesmo! De nosso conhecimento, a primeira obra que levou esse ttulo foi a do cirurgio Jean Devaux (1649- 1 729), Le mdecin de soi-mme ou !'are de conserver la sanc par l'instinct (Leyde, 1682). Diatribe de cirurgio contra os mdicos, a obra tambm justificativa anticarcesiana do naturismo cartesiano, manifestamente igno-rado por Devaux. Ele quer demonstrar que o homem tem ins tinto como todo animal e que o instinto no animal no um mecanismo, mas um conhecimento por imagens. Se a obra do ingls John Archer (morto em 1684), Every man, his own docror (1673) precedeu de Devaux, ela, contudo, no pertence ao gnero demonstrativo, foi o escrito publicitrio de um charla-to renomado. Na realidade, a literatura mdica de inspirao na turista permaneceu, permanece e permanecer, sem dvida por muito tempo ainda, dividida entre duas intenes ou duas motivaes: reao sincera de compensao quando das crises

    Escritos sobre a medicina 19

    da teraputica, utilizao astuciosa do desarvoramcnto dos doentes para a venda de qualquer electurio de Orvieto, mes mo que sob a forma de impresso.

    No sculo XVIII, foi sob o ttulo De medicina sine medico (1707), ou sob De autocratia naturae (1696), que Georges Ernesr Srahl parabenizou-se pelo feliz contraste enrre a propen so doena e a raridade das doenas em um organismo conde-nado a uma corrupo rpida por sua composio qumica, sob o efeito de uma natureza pronta a restabelecer a economia ani mal, graas espontaneidade do movimento tnico vital. Mas foi sob o ttulo De medico sui ipsius que o rival de Stahl em Hallc, Frdric Hoffman, esmerou-se em apresentar sua teoria meca nicista do corpo vivo como o suporte racional de uma prtica fiel aos princpios hipocrticos. Foi ainda sob o ttulo Medicus sui ipsius ( 1768) que Uneu exps, mais explicitamente que mui tos outros depois de Galeno, os princpios de uma conduta da vida regulada pelo uso das seis coisas no naturais, instrumen-tos da sade, bases da higiene. V-se, ento, que os maiores no-mes da medicina e da histria natural no sculo XVIII no hesi-taram em sustentar, com sua autoridade, uma tese progressiva-mente condenada, pelo recuo do ceticismo ou do niilismo tera putico, a sobreviver nas publicaes de contestao, de char-latanice ou de vulgarizao retrgrada.

    No sculo XIX, as obras que portam o mesmo ttulo so obras de medicina domstica, de medicina popular, de inteno fi-lantrpica: Manuais de sade, Amigos da sade, Conservado res da sade, Reguladores da sade, Medicinas sem mdico, Mdicos sem medicina etc. A tese anteriormente citada da Sra. AzizaShuster estabeleceu um quadro sistemtico dessas obras, na falta de seu recenseamento exaustivo.

  • 18 Georges Canguilhem

    lgiene e modos de vida permitiu ao juzo individual fazer a se parao entre, por um lado, os efeitos das escolhas instintivas, c portanto naturais, de satisfaes timas e, por outro, as conse qndas da submisso dcil s regras de uma arte mal funda-mentada ou interessada em enganar. Quem se surpreenderia com o fato de Montaigne se referir a Tibrio para autorizar-se a seguir apenas seus apetites, na sade e na doena, e para fazer ceder "amplamente toda concluso mdica" a seu prazer? Mas quando Descartes, depois de se haver vangloriado por fundar uma medicina infalvel sobre uma cincia do corpo vivo, e to solidamente demonstrada quanto a mecnica, prope a Bur man, como regra da sade, o discernimento instintivo do til e do nocivo prprio aos animais, a confiana no poder reconheci do Natureza de se restabelecer a partir de um estado que ela "conhece bem melhor do que um mdico que s v o lado de fora", que sustentao dada tese do Mdico de si mesmo! De nosso conhecimento, a primeira obra que levou esse ttulo foi a do cirurgio Jean Devaux (1649- 1 729), Le mdecin de soi-mme ou !'are de conserver la sanc par l'instinct (Leyde, 1682). Diatribe de cirurgio contra os mdicos, a obra tambm justificativa anticarcesiana do naturismo cartesiano, manifestamente igno-rado por Devaux. Ele quer demonstrar que o homem tem ins tinto como todo animal e que o instinto no animal no um mecanismo, mas um conhecimento por imagens. Se a obra do ingls John Archer (morto em 1684), Every man, his own docror (1673) precedeu de Devaux, ela, contudo, no pertence ao gnero demonstrativo, foi o escrito publicitrio de um charla-to renomado. Na realidade, a literatura mdica de inspirao na turista permaneceu, permanece e permanecer, sem dvida por muito tempo ainda, dividida entre duas intenes ou duas motivaes: reao sincera de compensao quando das crises

    Escritos sobre a medicina 19

    da teraputica, utilizao astuciosa do desarvoramcnto dos doentes para a venda de qualquer electurio de Orvieto, mes mo que sob a forma de impresso.

    No sculo XVIII, foi sob o ttulo De medicina sine medico (1707), ou sob De autocratia naturae (1696), que Georges Ernesr Srahl parabenizou-se pelo feliz contraste enrre a propen so doena e a raridade das doenas em um organismo conde-nado a uma corrupo rpida por sua composio qumica, sob o efeito de uma natureza pronta a restabelecer a economia ani mal, graas espontaneidade do movimento tnico vital. Mas foi sob o ttulo De medico sui ipsius que o rival de Stahl em Hallc, Frdric Hoffman, esmerou-se em apresentar sua teoria meca nicista do corpo vivo como o suporte racional de uma prtica fiel aos princpios hipocrticos. Foi ainda sob o ttulo Medicus sui ipsius ( 1768) que Uneu exps, mais explicitamente que mui tos outros depois de Galeno, os princpios de uma conduta da vida regulada pelo uso das seis coisas no naturais, instrumen-tos da sade, bases da higiene. V-se, ento, que os maiores no-mes da medicina e da histria natural no sculo XVIII no hesi-taram em sustentar, com sua autoridade, uma tese progressiva-mente condenada, pelo recuo do ceticismo ou do niilismo tera putico, a sobreviver nas publicaes de contestao, de char-latanice ou de vulgarizao retrgrada.

    No sculo XIX, as obras que portam o mesmo ttulo so obras de medicina domstica, de medicina popular, de inteno fi-lantrpica: Manuais de sade, Amigos da sade, Conservado res da sade, Reguladores da sade, Medicinas sem mdico, Mdicos sem medicina etc. A tese anteriormente citada da Sra. AzizaShuster estabeleceu um quadro sistemtico dessas obras, na falta de seu recenseamento exaustivo.

  • 20 Georgcs Canguilhem

    O que obrigou o tema da natureza curativa a se refugiar na literatura popular foi, na conjuno da anatomopatologia e das novas tcnicas de explorao clnica (percusso e auscul~ rao), a descoberra dos fenmenos de silncio espontneo da natureza pelos mdicos austracos e franceses do sculo XIX nascente. A nova clnica em Viena e em Paris, nos primeiros anos de 1800, constata que a natureza s fala se for bem inter~ rogada.

    A partir do momento que a medicina fundamenta seu diag~ nstco no mais na observao de sintomas espontneos, mas no exame de sinais provocados, as relaes do mdico e do do~ ente com a natureza se vem perturbadas. Por no poder fazer ele prprio a diferena entre os sinais e os sintomas, o doente levado a achar natural qualquer conduta que se regule exclusi~ vamente pelos sintomas. Mas porque doravante ele sabe que no deve aceitar da natureza tudo o que ela diz e da maneira como o diz, sem sua arrede obrig~la a se expressar, o mdico levado a desconfiar no somente do que ela diz, mas tambm do que ela faz. Se em sua tese deagrg, em 1857, De l'expectarionen mdecine, Charcot sutiliza - a fim de conservar algum crdito ao na turismo e ao humorismo- milc Littr, fiel ao ensino positi~ vis ~a que fundamenta a ao na cincia, ele retoma a palavra de Tibrio apenas para refut-la, e lembra ao doente a obrigao de recorrer, sem se fiar em seu prprio sentido, ao homem capaz de saber o que ele mesmo ignora, ou seja, ao mdico. No se tra~ ta mais de suplantar a medicina pela higiene. Nada de higiene sem mdico ("De l'hygine", in Mdecine et mdecins, 1872).

    Escritos sobre a medicina 21

    A fisiologia justificou algumas intuies da antiga medicina na turista mediante a descoberta progressiva de mecanismos de

    auro~regulao e de estabilizao orgnicos, cuja explicao hoje buscada em modelos de reao ativa, em outras palavras, de feedback.

    Simultaneameme, a teraputica das doenas infecciosas, na poca de Pasceur, de Koch e de seus alunos, legitimou a atribui~ o - at ento sem provas, e talvez mesmo sem argumentos -de um poder de defesa antitxico inato ao organismo. Ora, compreender ultrapassar. A recuperao dirigida da imuniza o espontnea pelas tcnicas imunolgicas tem como efeito excitar a rplica curativa no por meio de um logro, mas de um mal menor, um mal benevolente, que leva o organismo a reagir de modo mais rpido do que ele costuma faz-lo, visando a pas sar frente de um mal mais grave, iminente. Cada vez mais, e de modo melhor, possvel transformar um organismo animal em produtor permanente de remdios naturais cessveis.

    Roux, von Behring, Ehrlich, trs grandes artesos da domes ticao de uma natureza curativa "selvagem". Pela engenhosi~ da de de Ehrlich, a quimioterapia contempornea nasceu do es tudo sistemtico dos modos de reao celulares, desconccrtan~ tes por sua parcialidade, no sentido de que a produo espont nea de anticorpos, recuperada nas tcnicas da vacinao e da seroterapia, no era mais observvel no caso dos protozorios.

    A medicina contempornea no pode melhor reverenciar Hipcrates seno cessando de se prevalecer dele; ela no pode melhor celebrar a preciso aproximada de sua concepo do or~ ganismo seno recusando sua prtica de observao e de expec, tao. No prudente esperar que a natureza se declare quan do verificamos que, para conhecer suas fomes, preciso mobili

  • 20 Georgcs Canguilhem

    O que obrigou o tema da natureza curativa a se refugiar na literatura popular foi, na conjuno da anatomopatologia e das novas tcnicas de explorao clnica (percusso e auscul~ rao), a descoberra dos fenmenos de silncio espontneo da natureza pelos mdicos austracos e franceses do sculo XIX nascente. A nova clnica em Viena e em Paris, nos primeiros anos de 1800, constata que a natureza s fala se for bem inter~ rogada.

    A partir do momento que a medicina fundamenta seu diag~ nstco no mais na observao de sintomas espontneos, mas no exame de sinais provocados, as relaes do mdico e do do~ ente com a natureza se vem perturbadas. Por no poder fazer ele prprio a diferena entre os sinais e os sintomas, o doente levado a achar natural qualquer conduta que se regule exclusi~ vamente pelos sintomas. Mas porque doravante ele sabe que no deve aceitar da natureza tudo o que ela diz e da maneira como o diz, sem sua arrede obrig~la a se expressar, o mdico levado a desconfiar no somente do que ela diz, mas tambm do que ela faz. Se em sua tese deagrg, em 1857, De l'expectarionen mdecine, Charcot sutiliza - a fim de conservar algum crdito ao na turismo e ao humorismo- milc Littr, fiel ao ensino positi~ vis ~a que fundamenta a ao na cincia, ele retoma a palavra de Tibrio apenas para refut-la, e lembra ao doente a obrigao de recorrer, sem se fiar em seu prprio sentido, ao homem capaz de saber o que ele mesmo ignora, ou seja, ao mdico. No se tra~ ta mais de suplantar a medicina pela higiene. Nada de higiene sem mdico ("De l'hygine", in Mdecine et mdecins, 1872).

    Escritos sobre a medicina 21

    A fisiologia justificou algumas intuies da antiga medicina na turista mediante a descoberta progressiva de mecanismos de

    auro~regulao e de estabilizao orgnicos, cuja explicao hoje buscada em modelos de reao ativa, em outras palavras, de feedback.

    Simultaneameme, a teraputica das doenas infecciosas, na poca de Pasceur, de Koch e de seus alunos, legitimou a atribui~ o - at ento sem provas, e talvez mesmo sem argumentos -de um poder de defesa antitxico inato ao organismo. Ora, compreender ultrapassar. A recuperao dirigida da imuniza o espontnea pelas tcnicas imunolgicas tem como efeito excitar a rplica curativa no por meio de um logro, mas de um mal menor, um mal benevolente, que leva o organismo a reagir de modo mais rpido do que ele costuma faz-lo, visando a pas sar frente de um mal mais grave, iminente. Cada vez mais, e de modo melhor, possvel transformar um organismo animal em produtor permanente de remdios naturais cessveis.

    Roux, von Behring, Ehrlich, trs grandes artesos da domes ticao de uma natureza curativa "selvagem". Pela engenhosi~ da de de Ehrlich, a quimioterapia contempornea nasceu do es tudo sistemtico dos modos de reao celulares, desconccrtan~ tes por sua parcialidade, no sentido de que a produo espont nea de anticorpos, recuperada nas tcnicas da vacinao e da seroterapia, no era mais observvel no caso dos protozorios.

    A medicina contempornea no pode melhor reverenciar Hipcrates seno cessando de se prevalecer dele; ela no pode melhor celebrar a preciso aproximada de sua concepo do or~ ganismo seno recusando sua prtica de observao e de expec, tao. No prudente esperar que a natureza se declare quan do verificamos que, para conhecer suas fomes, preciso mobili

  • 22 Georges C;~ngu ilhem

    z,las por meio do alerta. Agir ativar, tanto para revelarquan~ to para remediar.

    Ento, possvel, mesmo na era da farmacodinmica indus, trial, do imperialismo do laboratrio de biologia, do tratamento eletrnico da informao diagnstica, continuar a falar da na-tureza para designar o fato inicial da existncia de sistemas au, to,reguladorcs vivos, cuja diPmica est inscrita em um cdigo gentico. Deve-se, a rigor, tolerar que, para os doentes, a con, fiana no poder da natureza possa afetar a forma do pcnsamen to mtico. Mito de origem, mito da anterioridade da vida sobre a cultura. Pode,sc fazer psicanlise e reencontrar o rosto da Me na figura daNa tu reza. Pouco importa, c pelo contrrio. At no, va ordem, a ordem biolgica primordial em relao ordem tecnolgica. Inclusive, foi um psicanalista heterodoxo, Georg Groddeck, quem elaborou os primeiros conceitos do que se deveria chamar medicina psicossomtica, ao desenvolver o en, sino naturista de Schweninger, mdico pessoal de Bismarck. Groddeck in titulou Nruamecu o livro que lhe dedicou em 1913: NAcu.ra SAnat, MEdicus CUrat.

    As doenas

    No comeo dos Essas sur la pcnture, Didcrot escreve: "A na-tureza no faz nada de incorreto. Toda forma bela ou feia tem sua causa; e, de todos os seres que existem, no h um que no seja como deve ser." Podemos imaginar "Ensaios sobre a m~dicina", cujo comeo seria assim: "A natureza no faz nada de ar, bitrrio. T amo a doena quanto a sade tm suas causas, e de todos os seres vivos no h um cujo estado no seja o que deve ser." Esse gnero de prlogo no poderia concernir a todas as populaes em todos os tempos. Durante sculos e em muitos lugares, a doena foi considerada como uma possesso por um ser "maligno", sobre qual apenas um taumarurgo poderia triunfar, ou como uma punio infligida por um poder sobrena-tural a um desviante ou impuro. Sem precisar buscar exemplos no Extremo Oriente, podemos lembrar que no Antigo Testa-mento (Levfrico, captulos 13 e 14) a lepra era considerada e re-jeitada como uma impureza e os leprosos, expulsos das comuni-dades. Na Grcia, as primeiras formas de tratamenro e de tera-putica so de ord~m religiosa. Asclpio, flho de Apolo, o deus curador do qual os sacerdotes so os executantes. Nos templos de Asdpio, os pacientes eram recebidos, examinados e tratados segundo ricos dos quais a serpente e o galo permane-ceram p~ricipantes simblic

  • 22 Georges C;~ngu ilhem

    z,las por meio do alerta. Agir ativar, tanto para revelarquan~ to para remediar.

    Ento, possvel, mesmo na era da farmacodinmica indus, trial, do imperialismo do laboratrio de biologia, do tratamento eletrnico da informao diagnstica, continuar a falar da na-tureza para designar o fato inicial da existncia de sistemas au, to,reguladorcs vivos, cuja diPmica est inscrita em um cdigo gentico. Deve-se, a rigor, tolerar que, para os doentes, a con, fiana no poder da natureza possa afetar a forma do pcnsamen to mtico. Mito de origem, mito da anterioridade da vida sobre a cultura. Pode,sc fazer psicanlise e reencontrar o rosto da Me na figura daNa tu reza. Pouco importa, c pelo contrrio. At no, va ordem, a ordem biolgica primordial em relao ordem tecnolgica. Inclusive, foi um psicanalista heterodoxo, Georg Groddeck, quem elaborou os primeiros conceitos do que se deveria chamar medicina psicossomtica, ao desenvolver o en, sino naturista de Schweninger, mdico pessoal de Bismarck. Groddeck in titulou Nruamecu o livro que lhe dedicou em 1913: NAcu.ra SAnat, MEdicus CUrat.

    As doenas

    No comeo dos Essas sur la pcnture, Didcrot escreve: "A na-tureza no faz nada de incorreto. Toda forma bela ou feia tem sua causa; e, de todos os seres que existem, no h um que no seja como deve ser." Podemos imaginar "Ensaios sobre a m~dicina", cujo comeo seria assim: "A natureza no faz nada de ar, bitrrio. T amo a doena quanto a sade tm suas causas, e de todos os seres vivos no h um cujo estado no seja o que deve ser." Esse gnero de prlogo no poderia concernir a todas as populaes em todos os tempos. Durante sculos e em muitos lugares, a doena foi considerada como uma possesso por um ser "maligno", sobre qual apenas um taumarurgo poderia triunfar, ou como uma punio infligida por um poder sobrena-tural a um desviante ou impuro. Sem precisar buscar exemplos no Extremo Oriente, podemos lembrar que no Antigo Testa-mento (Levfrico, captulos 13 e 14) a lepra era considerada e re-jeitada como uma impureza e os leprosos, expulsos das comuni-dades. Na Grcia, as primeiras formas de tratamenro e de tera-putica so de ord~m religiosa. Asclpio, flho de Apolo, o deus curador do qual os sacerdotes so os executantes. Nos templos de Asdpio, os pacientes eram recebidos, examinados e tratados segundo ricos dos quais a serpente e o galo permane-ceram p~ricipantes simblic

  • 24 Georges Canguilhem

    A justo ttulo, s se pode falar de medicina grega a partir do perodo hipocrtico, isto , a partir do momento em que se tra-tam tanto doenas quanto desordens corporais, a respeito das quais se pode sustentar um discurso comunicvel concernindo aos sintomas, suas causas supostas, se~ futuro provvel, assim como a conduta a ser observada para corrigir a desordem indi-cada por eles. Sempre se notou que essa medicina, cujos Aforis-mos de Hipcrates so, de algum modo, um brevirio, con-tempornea das primeiras pesquisas merecedoras do nome cincia e do progresso do pensamento filosfico. Um dilogo de Plato. Fedro, contm um elogio a Hipcrates cujo mtodo declarado conforme "justa rozo".

    Nem por 1sso admitir-se-

  • 24 Georges Canguilhem

    A justo ttulo, s se pode falar de medicina grega a partir do perodo hipocrtico, isto , a partir do momento em que se tra-tam tanto doenas quanto desordens corporais, a respeito das quais se pode sustentar um discurso comunicvel concernindo aos sintomas, suas causas supostas, se~ futuro provvel, assim como a conduta a ser observada para corrigir a desordem indi-cada por eles. Sempre se notou que essa medicina, cujos Aforis-mos de Hipcrates so, de algum modo, um brevirio, con-tempornea das primeiras pesquisas merecedoras do nome cincia e do progresso do pensamento filosfico. Um dilogo de Plato. Fedro, contm um elogio a Hipcrates cujo mtodo declarado conforme "justa rozo".

    Nem por 1sso admitir-se-

  • 26 Georges Canguilhem

    tpsia, no laboratrio de exames fsicos (tico, eltrico, radiol-gico, ultra-sonogrfico, ccogrfico) e qumicos ou bioqumicas.

    A relao cada vez mais estreita entre a medicina e a biologia permitiu distinguir entre 'lS doenas, graas a um conhecimen-to mais exato das leis de hereditariedade, as que so heredit rias, dependendo da constituio do genoma; as que so cong-nitas, dependendo das circunstncias da vida intra-uterina; as que so, propriamente falando, ocasionais, tanto por meio das relaes do indivduo com o meio ecolgico quanto com o gru-po social de vida. Pode ser o caso de acidentes individuais, co mo a pneumonia, ou coletivos, como a gripe ou o tifo, doenas consideradas infecciosas cujo nascimento, vida e morte foram estudados por Charles Nicolle. Sem dvida, essas doenas de-vem ser consideradas, na histria das sociedades e das civiliza-es, como fenmenos naturais caracterizados pela poca, lo-cais de aparecimento, de difuso e de extino. Mas, se, a partir do final do sculo XIX, conhecemos, por um lado, s,uas causas determinantes; micrbios, bacilos, vrus, e, por outro, seus agen-tes vetores: a pulga do rato para a peste, o mosquito Aedes aegy-pti para a febre amarela, o historiador dessas doenas no pode deixar de se interessar pelas razes de sua distribuio geogrfi-ca, pela forma das relaes sociais prprias s populaes afeta das. Em suma, no perodo contemporneo, a luta coletiva, por medida de higiene pblica, um dos determinantes do quadro dessas doenas, da maneira como elas evoluem, quanto a seus sintomas e seus cursos, sob o efeito dos meios da luta provocada por elas. Muito longe de ser excludo est o fato de que a prfica generalizada de vacinaes tem como conseqncia o apareci mento de variedades de micrbios mais resistences s vacinas. Esse apenas um dos aspectos de uma interveno de fim determinado, que faz da multiplicao e da eficcia crescente

    Escritos sobre a medicina 27

    dos atos mdicos e cirrgicos, nas sociedades industriais de alta tecnologia de proteo sanitr;a, um risco de multiplicao das fraquezas do sistema biolgico interno de resistncia s doenas.

    No h nada no meio ambiente do homew que seja inicial-mente natural, tomando-se cada vez mais factcio e artificial, que no possa ser considerado como fonte de perigos para tais ou tais homens, uma vez que o conceito de homem recobre com uma falsa aparncia de identidade especfica organismos indi-viduais, providos de diferentes poderes de resistncia s agrcs, ses por sua ascendncia. O que se nomeou erros inatos de me-tabolismo ou anomalias biolgicas hereditrias torna alguns in-divduos ou algumas populaes sensveis e receptivos a situa, es ou a objetos de nocividade paradoxal. Para o indivduo mediterrneo, privado de uma certa distase por seu patrim nio gentico, o fato de comer favas equivale a se envenenar. O mesmo deficit enzimtico, pelo contrrio, equivaleu a algumas populaes africanas um aumento de resistncia ao impaludis-mo. Doravante, h muitos casos nos quais, para se poder identi ficar uma doena, deve-se aprender a no buscar o acesso a ela passando pelo doente. Do ponto de vista de enzimologista, pos-svel perceber estados de doena real, embora latente c proviso-riamente tolerada, que so desconhecidos pelo clnico observa, dor de sinais espontneos ou provocados que aparecem na cs, cala do organismo ou do rgo.

    A eliminao progressiva da referncia s situaes vividas pelos doentes, no conhecimento das doenas, no apenas o efeito da colonizao da medicina pelas cincias fundamentais e aplicadas, a partir dos primeiros anos do sculo XIX; ela tambm um efeito da ateno interessada, em todos os sentidos do termo: que a partir da mesma poca as sociedades de tipo in-

  • 26 Georges Canguilhem

    tpsia, no laboratrio de exames fsicos (tico, eltrico, radiol-gico, ultra-sonogrfico, ccogrfico) e qumicos ou bioqumicas.

    A relao cada vez mais estreita entre a medicina e a biologia permitiu distinguir entre 'lS doenas, graas a um conhecimen-to mais exato das leis de hereditariedade, as que so heredit rias, dependendo da constituio do genoma; as que so cong-nitas, dependendo das circunstncias da vida intra-uterina; as que so, propriamente falando, ocasionais, tanto por meio das relaes do indivduo com o meio ecolgico quanto com o gru-po social de vida. Pode ser o caso de acidentes individuais, co mo a pneumonia, ou coletivos, como a gripe ou o tifo, doenas consideradas infecciosas cujo nascimento, vida e morte foram estudados por Charles Nicolle. Sem dvida, essas doenas de-vem ser consideradas, na histria das sociedades e das civiliza-es, como fenmenos naturais caracterizados pela poca, lo-cais de aparecimento, de difuso e de extino. Mas, se, a partir do final do sculo XIX, conhecemos, por um lado, s,uas causas determinantes; micrbios, bacilos, vrus, e, por outro, seus agen-tes vetores: a pulga do rato para a peste, o mosquito Aedes aegy-pti para a febre amarela, o historiador dessas doenas no pode deixar de se interessar pelas razes de sua distribuio geogrfi-ca, pela forma das relaes sociais prprias s populaes afeta das. Em suma, no perodo contemporneo, a luta coletiva, por medida de higiene pblica, um dos determinantes do quadro dessas doenas, da maneira como elas evoluem, quanto a seus sintomas e seus cursos, sob o efeito dos meios da luta provocada por elas. Muito longe de ser excludo est o fato de que a prfica generalizada de vacinaes tem como conseqncia o apareci mento de variedades de micrbios mais resistences s vacinas. Esse apenas um dos aspectos de uma interveno de fim determinado, que faz da multiplicao e da eficcia crescente

    Escritos sobre a medicina 27

    dos atos mdicos e cirrgicos, nas sociedades industriais de alta tecnologia de proteo sanitr;a, um risco de multiplicao das fraquezas do sistema biolgico interno de resistncia s doenas.

    No h nada no meio ambiente do homew que seja inicial-mente natural, tomando-se cada vez mais factcio e artificial, que no possa ser considerado como fonte de perigos para tais ou tais homens, uma vez que o conceito de homem recobre com uma falsa aparncia de identidade especfica organismos indi-viduais, providos de diferentes poderes de resistncia s agrcs, ses por sua ascendncia. O que se nomeou erros inatos de me-tabolismo ou anomalias biolgicas hereditrias torna alguns in-divduos ou algumas populaes sensveis e receptivos a situa, es ou a objetos de nocividade paradoxal. Para o indivduo mediterrneo, privado de uma certa distase por seu patrim nio gentico, o fato de comer favas equivale a se envenenar. O mesmo deficit enzimtico, pelo contrrio, equivaleu a algumas populaes africanas um aumento de resistncia ao impaludis-mo. Doravante, h muitos casos nos quais, para se poder identi ficar uma doena, deve-se aprender a no buscar o acesso a ela passando pelo doente. Do ponto de vista de enzimologista, pos-svel perceber estados de doena real, embora latente c proviso-riamente tolerada, que so desconhecidos pelo clnico observa, dor de sinais espontneos ou provocados que aparecem na cs, cala do organismo ou do rgo.

    A eliminao progressiva da referncia s situaes vividas pelos doentes, no conhecimento das doenas, no apenas o efeito da colonizao da medicina pelas cincias fundamentais e aplicadas, a partir dos primeiros anos do sculo XIX; ela tambm um efeito da ateno interessada, em todos os sentidos do termo: que a partir da mesma poca as sociedades de tipo in-

  • 28 Georges Canguilhem

    dustrial concederam sade das populaes operrias, ou, para usar as palavras de alguns, ao componente humano das foras produtivas. A vigilncia e a melhoria das condies de vida fo ram o objeto de medidas e de regulamencos decididos pelo po der poltico solicitado c esclarecido pelos higienistas. Medicina e poltica, ento, se encontraram em uma nova abordagem das doenas, da qual temos uma ilustrao convincente na organi zao e nas prticas da hospitalizao. No decorrer do sculo XVlll, particularmente na Frana, na poca da Revoluo, houve um empenho em se substituir o hospcio, asilo de acolhi-mento e de conforto de doentes quase sempre abandonados, pelo hospital, espao de anlise e de vigilncia de doentes cata Jogados, construdo e governado para funcionar como "mqui-na de curar", segundo a expresso de T cnon. O tratamento hospitalar das doenas, em uma estrutura social regulamenta da, contribuiu para desindividualiz-las, ao mesmo tempo que a anlise cada vez mais artificial de suas condies de apareci mento extraiu sua realidade da representao clnica inicial.

    O corolrio desse desligamento terico foi a mutao sobre-vinda profisso mdica e ao modo de abordagem das doenas. O mdico terapeuta que exercia nas diversas partes da mediei na, atualmente chamado "clnico geral", viu declinar seu pres tgio e sua autoridade em benefcio dos mdicos especialistas, engenheiros de um organismo decomposto tal como uma ma-quinaria. Mdicos ainda pela funo, porm, doravante, no mais por corresponderem a uma imagem secular, uma vez que a consulta consiste na interrogao de bancos de dados de ordem semiolgica e etiolgica, por meio do computador, e que a for mulao de um diagnstico probabilista sustentada pela ava liao de informaes estatsticas. A esse respeito, deve-se ob-servar que o estudo das doenas do ponto de vista estatstico,

    Escritos sobre a medicina 29

    quanto a seu aparecimento, seu contexto social e sua evoluo, precisamente contemporneo da revoluo anatomoclnica nos hospitais austracos, ingleses e franceses no comeo do s-culo XIX. Em suma, no se pode recusar admitir a existncia de um componente de natureza social, portanto poltico, na in veno de prticas tericas atualmente eficazes para o conheci-mento das doenas.

    Deve a introduo de um ponto de vista sociopoltico na his-tria da medicina ser acantonada na pesquisa das causas de uma converso do saber e da conduta? No se deve igualmente reconhecer causalidades de ordem sociolgica no aparecimen-to e no curso das prprias doenas? Viram-se, recentemente, sindicalistas partidrios da autogesto denunciarem as doenas do capitalismo, o que significa ver na doena o indcio orgnico das relaes de classe nas sociedades capitalistas. Houve um tempo em que se falava de doenas da misria, ou seja, de ca-rncias nascidas de uma subnutrio responsvel pela avitami-nose, ocorridas em algumas camadas da populao. Com efeito, a primeira disciplina mdica que se ocupou desse tipo de ques-to foi a higiene. Na introduo a seus lments d'hygiene (1797), Tourtelle insiste sobre a incidncia patognica da den-sidade de populao nas aglomeraes modernas. Na Inglater ra, assim como na Frana, na primeira tera parte do sculo XIX, procedeu-se a enqutes sobre a sade dos operrios nos di versos ramos da indstria. Villerm publicou, em 1840, um c-lebre T ableau de l'tat physique etmoral des ouvriers employs dans les fabriques de coton, de laine et de soie. Na Frana, durante o s-culo XIX, os Tratados de higiene industrial eram numerosos. Todavia, seja qual for a importncia que se deve reconhecer ao modo de vjdaligado s condies de trabalho na multiplicao das situaes patolgicas, por exemplo no fato do esgotamento

  • 28 Georges Canguilhem

    dustrial concederam sade das populaes operrias, ou, para usar as palavras de alguns, ao componente humano das foras produtivas. A vigilncia e a melhoria das condies de vida fo ram o objeto de medidas e de regulamencos decididos pelo po der poltico solicitado c esclarecido pelos higienistas. Medicina e poltica, ento, se encontraram em uma nova abordagem das doenas, da qual temos uma ilustrao convincente na organi zao e nas prticas da hospitalizao. No decorrer do sculo XVlll, particularmente na Frana, na poca da Revoluo, houve um empenho em se substituir o hospcio, asilo de acolhi-mento e de conforto de doentes quase sempre abandonados, pelo hospital, espao de anlise e de vigilncia de doentes cata Jogados, construdo e governado para funcionar como "mqui-na de curar", segundo a expresso de T cnon. O tratamento hospitalar das doenas, em uma estrutura social regulamenta da, contribuiu para desindividualiz-las, ao mesmo tempo que a anlise cada vez mais artificial de suas condies de apareci mento extraiu sua realidade da representao clnica inicial.

    O corolrio desse desligamento terico foi a mutao sobre-vinda profisso mdica e ao modo de abordagem das doenas. O mdico terapeuta que exercia nas diversas partes da mediei na, atualmente chamado "clnico geral", viu declinar seu pres tgio e sua autoridade em benefcio dos mdicos especialistas, engenheiros de um organismo decomposto tal como uma ma-quinaria. Mdicos ainda pela funo, porm, doravante, no mais por corresponderem a uma imagem secular, uma vez que a consulta consiste na interrogao de bancos de dados de ordem semiolgica e etiolgica, por meio do computador, e que a for mulao de um diagnstico probabilista sustentada pela ava liao de informaes estatsticas. A esse respeito, deve-se ob-servar que o estudo das doenas do ponto de vista estatstico,

    Escritos sobre a medicina 29

    quanto a seu aparecimento, seu contexto social e sua evoluo, precisamente contemporneo da revoluo anatomoclnica nos hospitais austracos, ingleses e franceses no comeo do s-culo XIX. Em suma, no se pode recusar admitir a existncia de um componente de natureza social, portanto poltico, na in veno de prticas tericas atualmente eficazes para o conheci-mento das doenas.

    Deve a introduo de um ponto de vista sociopoltico na his-tria da medicina ser acantonada na pesquisa das causas de uma converso do saber e da conduta? No se deve igualmente reconhecer causalidades de ordem sociolgica no aparecimen-to e no curso das prprias doenas? Viram-se, recentemente, sindicalistas partidrios da autogesto denunciarem as doenas do capitalismo, o que significa ver na doena o indcio orgnico das relaes de classe nas sociedades capitalistas. Houve um tempo em que se falava de doenas da misria, ou seja, de ca-rncias nascidas de uma subnutrio responsvel pela avitami-nose, ocorridas em algumas camadas da populao. Com efeito, a primeira disciplina mdica que se ocupou desse tipo de ques-to foi a higiene. Na introduo a seus lments d'hygiene (1797), Tourtelle insiste sobre a incidncia patognica da den-sidade de populao nas aglomeraes modernas. Na Inglater ra, assim como na Frana, na primeira tera parte do sculo XIX, procedeu-se a enqutes sobre a sade dos operrios nos di versos ramos da indstria. Villerm publicou, em 1840, um c-lebre T ableau de l'tat physique etmoral des ouvriers employs dans les fabriques de coton, de laine et de soie. Na Frana, durante o s-culo XIX, os Tratados de higiene industrial eram numerosos. Todavia, seja qual for a importncia que se deve reconhecer ao modo de vjdaligado s condies de trabalho na multiplicao das situaes patolgicas, por exemplo no fato do esgotamento

  • 30 Georges Canguilhem

    muscular ou da desrcgulao dos ritmos funcionais, abusivo confundir a gnese social das doenas com as prprias doenas. A lcera do estmago, a tuberculose pulmonar so doenas cujo quadro clnico ignora que elas possam ser o efeito de situa-es de dcsarvoramento individuais ou coletivas. Ainda que os trabalhos do relojoeiro ou os deveres do estudante sejam mais reveladores de defeitos da viso do que o trabalho do pastor, no se chegar a dizer que as doenas da vista so fatos sociais. No entanto, h casos nos quais o recenseamento e a avaliao dos fa rores da doena podem levar em considerao o status so-cial dos doentes e a representao que eles tm dela. Para utili-zar um vocabulrio posto em voga pelos trabalhos de Hans Selye, digamos que se pode inscrever entre as formas patgenas de stress, isto , de agresso no especfica, a percepo do indi-vduo quanto a seu nvel de insero em uma hierarquia de or-dem profissional ou cultural. O fato de viver a doena como uma degradao, como uma desvalorizao, e no apenas como sofrimento ou reduo de comportamento, deve ser considera-do como um dos componentes da prpria doena. Encontra-mo-nos, aqui, na fronteira nebulosa entre a medicina somtica e a medicina psicossomtica, ela prpria assediada pela psica~ nlise. Aqui o inconsciente est em questo, tal como as tcni-cas prprias para faz-lo falar a fim de saber lhe responder.

    Em uma perspectiva de psicologia mdica, bastante admira-da hoje em dia, podemos chegar a considerar a doena como a complacncia do doente, obscuramente pesquisada, em uma situao-refgio de vtima ou de condenado. Sem chegar a con-siderar essas reminiscncias de mitos como uma revanche da etnologia sobre a biologia nas explicaes das doenas, pode-se ver nisso o efeito longnquo de uma resistncia ao extremismo de teorias mdicas enfeudadas no pasteurismo, ou exaltadas,

    Escritos sobre a medicina J I

    mais recentemente, pelos sucessos da bioqumica molecular. preciso, contudo, reconhecer que os mtodos atuais de identifi-cao das doenas e da teraputica se devem mais aos sucessos

    d~ im~nolo~a do que s taumaturgias de inspirao psicosso-ctolg~ca. A Imunologia uma disciplina bioqumica base de experincia mdica. Sua caracterstica mais notvel a de ter fundado, no prprio nvel da escrutura molecular das clulas do organismo, a singularidade do doente, que o personalismo m-dico ou as propagandas de "franco-atiradores da medicina" ce-lebram por contraste com a essncia annima da doena. Essa con~epo d~ ~oen?a conservava alguns vestgios da antiga teona das espec1es rrwrbidas, elaborada no sculo XVII por Tho-mas Sydenham. A revoluo conceitual concernindo s doen-as foi o reconhecimento do que se pode nomear como sistema imunizador, ou seja, uma estrutura totalizadora das respostas s agresses de antgenos pela produo de anticorpos especficos. A colaborao, talvez ainda frgil, entre a clnica e 0 laborat-rio para a pesquisa imunolgica introduziu a referncia indivi-dualidade biolgica na representao da doena. oposio, por vezes viva no sculo XIX, entre a concepo mdica e a concepo cientffica da doena sucedeu uma esperana co-mum de encontrar, um dia, por meio da biologia molecular uma rplica eficaz a doenas atualmente carregadas de fanta: si as de aflio: cncer ou AIDS. Com efeiro, no se poderia dis-sociar ~ existncia e o movimento das doenas, das mutaes, sobrevmdos no status epistemolgico da medicina. O melhor exemplo disso a recente extino da varola, sob o efeito das medidas de vacinao preventiva deduzidas da bacterologia pasteuriana . No se pode tratar de doenas como se trata de f~nmenos meteorolgicos, ainda que, neste ltimo caso, a ati-vtdade do Homo faber na superfcie da terra repercuta sobre os climas.

  • 30 Georges Canguilhem

    muscular ou da desrcgulao dos ritmos funcionais, abusivo confundir a gnese social das doenas com as prprias doenas. A lcera do estmago, a tuberculose pulmonar so doenas cujo quadro clnico ignora que elas possam ser o efeito de situa-es de dcsarvoramento individuais ou coletivas. Ainda que os trabalhos do relojoeiro ou os deveres do estudante sejam mais reveladores de defeitos da viso do que o trabalho do pastor, no se chegar a dizer que as doenas da vista so fatos sociais. No entanto, h casos nos quais o recenseamento e a avaliao dos fa rores da doena podem levar em considerao o status so-cial dos doentes e a representao que eles tm dela. Para utili-zar um vocabulrio posto em voga pelos trabalhos de Hans Selye, digamos que se pode inscrever entre as formas patgenas de stress, isto , de agresso no especfica, a percepo do indi-vduo quanto a seu nvel de insero em uma hierarquia de or-dem profissional ou cultural. O fato de viver a doena como uma degradao, como uma desvalorizao, e no apenas como sofrimento ou reduo de comportamento, deve ser considera-do como um dos componentes da prpria doena. Encontra-mo-nos, aqui, na fronteira nebulosa entre a medicina somtica e a medicina psicossomtica, ela prpria assediada pela psica~ nlise. Aqui o inconsciente est em questo, tal como as tcni-cas prprias para faz-lo falar a fim de saber lhe responder.

    Em uma perspectiva de psicologia mdica, bastante admira-da hoje em dia, podemos chegar a considerar a doena como a complacncia do doente, obscuramente pesquisada, em uma situao-refgio de vtima ou de condenado. Sem chegar a con-siderar essas reminiscncias de mitos como uma revanche da etnologia sobre a biologia nas explicaes das doenas, pode-se ver nisso o efeito longnquo de uma resistncia ao extremismo de teorias mdicas enfeudadas no pasteurismo, ou exaltadas,

    Escritos sobre a medicina J I

    mais recentemente, pelos sucessos da bioqumica molecular. preciso, contudo, reconhecer que os mtodos atuais de identifi-cao das doenas e da teraputica se devem mais aos sucessos

    d~ im~nolo~a do que s taumaturgias de inspirao psicosso-ctolg~ca. A Imunologia uma disciplina bioqumica base de experincia mdica. Sua caracterstica mais notvel a de ter fundado, no prprio nvel da escrutura molecular das clulas do organismo, a singularidade do doente, que o personalismo m-dico ou as propagandas de "franco-atiradores da medicina" ce-lebram por contraste com a essncia annima da doena. Essa con~epo d~ ~oen?a conservava alguns vestgios da antiga teona das espec1es rrwrbidas, elaborada no sculo XVII por Tho-mas Sydenham. A revoluo conceitual concernindo s doen-as foi o reconhecimento do que se pode nomear como sistema imunizador, ou seja, uma estrutura totalizadora das respostas s agresses de antgenos pela produo de anticorpos especficos. A colaborao, talvez ainda frgil, entre a clnica e 0 laborat-rio para a pesquisa imunolgica introduziu a referncia indivi-dualidade biolgica na representao da doena. oposio, por vezes viva no sculo XIX, entre a concepo mdica e a concepo cientffica da doena sucedeu uma esperana co-mum de encontrar, um dia, por meio da biologia molecular uma rplica eficaz a doenas atualmente carregadas de fanta: si as de aflio: cncer ou AIDS. Com efeiro, no se poderia dis-sociar ~ existncia e o movimento das doenas, das mutaes, sobrevmdos no status epistemolgico da medicina. O melhor exemplo disso a recente extino da varola, sob o efeito das medidas de vacinao preventiva deduzidas da bacterologia pasteuriana . No se pode tratar de doenas como se trata de f~nmenos meteorolgicos, ainda que, neste ltimo caso, a ati-vtdade do Homo faber na superfcie da terra repercuta sobre os climas.

  • 32 Oeorges Canguilhem

    Seja qual for o interesse de um estudo das doenas quanto a suas variedades, sua histria e sua sada, ele no poderia eclip saro interesse de tentativas de compreenso do papel e do sen-tido da doena na experincia humana. As doenas so crises do crescimento em direo forma c estrutura adultas do r go, crises da maturao das funes de autoconservao inter-na e de adaptao s solicitaes externas. Elas so tambm cri ses no esforo empreendido para nivelar um modelo na ordem das atividades escolhidas ou impostas e, no melhor dos casos, para defender valores ou razes de viver. As doenas so um preo a ser pago, eventualmente, por homens, feitos, vivos, sem t-lo pedido, e que devem aprender que tendem necessaria mente, desde seu primeiro dia, para um final a um s tempo im-previsvel c inelutvel. Esse final pode ser precipitado por doen-as brutais, ou ento apenas responsveis por uma diminuio da capacidade de resistncia a outras doenas. Inversamente, algumas doenas podem, depois de curadas, conferir ao orga-nismo um poder de oposio a outras. Assim, envelhecer, du-rar, quando no indene, pelo menos resistente, pode ser tam-bm o benefcio de ter estado doente.

    A existncia da doena como fato biolgico universal, e sin gularmente no homem como prova existencial, suscita uma in terrogao at hoje sem resposta convincente relativa preca-riedade das estruturas orgnicas. Para falar com propriedade, na-da do que vivo acabado. Quer se chame ou no evoluo, ou alguma explicao que se d a esse respeito, a sucesso histrica de organismos , a partir do que se nomeia hoje evoluo qumi-ca pr-bitica, uma sucesso de pretendentes impotentes a se tornarem seres vivos diferentes de viveis, isto , aptos a viver, mas sem garantia de consegui-lo por completo. A morte est na vida, a doena o signo disso. Com freqncia, a meditao so-

    Escriros sobre a medicina 33

    bre a experincia da doena, propriamente dita mortifica me, foi expressa em poemas mais pungentes do que sermes. Mas coube a um mdico particularmente sensvel ao sofrimento de viver do outro, ele prprio acometido pelo cncer, alcanar, na simplici-dade, a profundeza do pattico. Em cartas endereadas a Lou Andras-Salom, Frcud escreveu: "Eu bem suportei todas as rea-lidades repugnantes, mas aceito mal as possibilidades, no admi to esta existncia sob ameaa de feriado." E, em outra ocasio: "Uma carapaa de insensibilidade me envolve lentamente. Cons-tato isso sem me queixar. tambm uma sada natural, um modo de comear a me tomar inorgnico." Entre a revolta excitada pela idia de dar feriado vida e a aceitao resignada do retomo ao inorgnico, a doena fez seu trabalho. Trabalho, de acordo com a etimologia, tormento e tortura. Tortura sofrimento in tligido para obter revelao. As doenas so os instrumentos da vida por meio dos quais o ser vivo, quando se trata do homem, se v obrigado a se reconhecer mortal.

    Referncias

    ACKERNECHT, E. H. History andgeography of the most important di-seases. Nova Iorque: Hafuer, 1965.

    DAGOGNET, F. Philasophie de l'im~e, cap. 3: "Pour une l stcorc de la mdecine". Paris: Vrin, 1984. Le nombre et le lieu, cap. 4: "Au-topsie et tableau". Paris: Yrin, 1984.

    FOUCAUL T, M. O nascimento da clnica. 6. ed. Rio de Janeiro: Fo-rense Universitria, 2004.

    GRM EK, M. O. us maladies l'aube de la civilisatian occidentale. Paris: Payot, 1983.

  • 32 Oeorges Canguilhem

    Seja qual for o interesse de um estudo das doenas quanto a suas variedades, sua histria e sua sada, ele no poderia eclip saro interesse de tentativas de compreenso do papel e do sen-tido da doena na experincia humana. As doenas so crises do crescimento em direo forma c estrutura adultas do r go, crises da maturao das funes de autoconservao inter-na e de adaptao s solicitaes externas. Elas so tambm cri ses no esforo empreendido para nivelar um modelo na ordem das atividades escolhidas ou impostas e, no melhor dos casos, para defender valores ou razes de viver. As doenas so um preo a ser pago, eventualmente, por homens, feitos, vivos, sem t-lo pedido, e que devem aprender que tendem necessaria mente, desde seu primeiro dia, para um final a um s tempo im-previsvel c inelutvel. Esse final pode ser precipitado por doen-as brutais, ou ento apenas responsveis por uma diminuio da capacidade de resistncia a outras doenas. Inversamente, algumas doenas podem, depois de curadas, conferir ao orga-nismo um poder de oposio a outras. Assim, envelhecer, du-rar, quando no indene, pelo menos resistente, pode ser tam-bm o benefcio de ter estado doente.

    A existncia da doena como fato biolgico universal, e sin gularmente no homem como prova existencial, suscita uma in terrogao at hoje sem resposta convincente relativa preca-riedade das estruturas orgnicas. Para falar com propriedade, na-da do que vivo acabado. Quer se chame ou no evoluo, ou alguma explicao que se d a esse respeito, a sucesso histrica de organismos , a partir do que se nomeia hoje evoluo qumi-ca pr-bitica, uma sucesso de pretendentes impotentes a se tornarem seres vivos diferentes de viveis, isto , aptos a viver, mas sem garantia de consegui-lo por completo. A morte est na vida, a doena o signo disso. Com freqncia, a meditao so-

    Escriros sobre a medicina 33

    bre a experincia da doena, propriamente dita mortifica me, foi expressa em poemas mais pungentes do que sermes. Mas coube a um mdico particularmente sensvel ao sofrimento de viver do outro, ele prprio acometido pelo cncer, alcanar, na simplici-dade, a profundeza do pattico. Em cartas endereadas a Lou Andras-Salom, Frcud escreveu: "Eu bem suportei todas as rea-lidades repugnantes, mas aceito mal as possibilidades, no admi to esta existncia sob ameaa de feriado." E, em outra ocasio: "Uma carapaa de insensibilidade me envolve lentamente. Cons-tato isso sem me queixar. tambm uma sada natural, um modo de comear a me tomar inorgnico." Entre a revolta excitada pela idia de dar feriado vida e a aceitao resignada do retomo ao inorgnico, a doena fez seu trabalho. Trabalho, de acordo com a etimologia, tormento e tortura. Tortura sofrimento in tligido para obter revelao. As doenas so os instrumentos da vida por meio dos quais o ser vivo, quando se trata do homem, se v obrigado a se reconhecer mortal.

    Referncias

    ACKERNECHT, E. H. History andgeography of the most important di-seases. Nova Iorque: Hafuer, 1965.

    DAGOGNET, F. Philasophie de l'im~e, cap. 3: "Pour une l stcorc de la mdecine". Paris: Vrin, 1984. Le nombre et le lieu, cap. 4: "Au-topsie et tableau". Paris: Yrin, 1984.

    FOUCAUL T, M. O nascimento da clnica. 6. ed. Rio de Janeiro: Fo-rense Universitria, 2004.

    GRM EK, M. O. us maladies l'aube de la civilisatian occidentale. Paris: Payot, 1983.

  • 34 Georges Canguilhem

    NICOLLE, Ch. Naissance, vie et mort des maladies nfectieuses. Paris: F. Alcan, 1930.

    SEYLE, H. u srress de la vie. Le problime de l'adaptacion. 2. ed. Paris: GallimarJ, 1975.

    A sade: conceito vulgar e questo filosfica

    "Quem de ns no falava do que saudvel e do que noci-vo antes da chegada de Hipcrates?" assim que Epteto, em suas Conversaes (11, 17), fundamenta uma reivindicao de pertinncia popular sobre a existncia de uma noo, a priori, do saudvel e da sade, cuja aplicao aos objetos e aos com, portamentos considerada, por outro lado, incerta. Se admitis, semos, por nossa vez, que uma definio da sade possvel, sem referncia a qualquer saber explcito, onde buscaramos seu fundamento?

    Seria inconveniente, em Estrasburgo, submeter ao exame dos senhores algumas reflexes sobre a sade sem lembrar a de-finio proposta, h meio sculo, por um clebre cirurgio, pro-fessor na Faculdade de Medicina, de 1925 a 1940: "A sade a vida no silncio dos rgos." Talvez tenha sido logo aps as conversaes mantidas entre colegas, no College de France, que Paul Valry respondeu a Ren Leriche escrevendo:" A sa-de o estado no qual as funes necessrias se realizam insensi, velmente ou com prazer" (Mauvaises penses et autres, 1942). Algum tempo antes, Charles Daremberg, em uma coletnea de artigos, La mdecine, histoire et doctrnes ( 1865), escrevera: "No estado de sade, no sentimos os movimentos da vida, todas as funes S!! realizam em silncio." Posterionnente a Leriche e a Valry, a assimilao da sade ao silncio foi feita por Henri

  • 34 Georges Canguilhem

    NICOLLE, Ch. Naissance, vie et mort des maladies nfectieuses. Paris: F. Alcan, 1930.

    SEYLE, H. u srress de la vie. Le problime de l'adaptacion. 2. ed. Paris: GallimarJ, 1975.

    A sade: conceito vulgar e questo filosfica

    "Quem de ns no falava do que saudvel e do que noci-vo antes da chegada de Hipcrates?" assim que Epteto, em suas Conversaes (11, 17), fundamenta uma reivindicao de pertinncia popular sobre a existncia de uma noo, a priori, do saudvel e da sade, cuja aplicao aos objetos e aos com, portamentos considerada, por outro lado, incerta. Se admitis, semos, por nossa vez, que uma definio da sade possvel, sem referncia a qualquer saber explcito, onde buscaramos seu fundamento?

    Seria inconveniente, em Estrasburgo, submeter ao exame dos senhores algumas reflexes sobre a sade sem lembrar a de-finio proposta, h meio sculo, por um clebre cirurgio, pro-fessor na Faculdade de Medicina, de 1925 a 1940: "A sade a vida no silncio dos rgos." Talvez tenha sido logo aps as conversaes mantidas entre colegas, no College de France, que Paul Valry respondeu a Ren Leriche escrevendo:" A sa-de o estado no qual as funes necessrias se realizam insensi, velmente ou com prazer" (Mauvaises penses et autres, 1942). Algum tempo antes, Charles Daremberg, em uma coletnea de artigos, La mdecine, histoire et doctrnes ( 1865), escrevera: "No estado de sade, no sentimos os movimentos da vida, todas as funes S!! realizam em silncio." Posterionnente a Leriche e a Valry, a assimilao da sade ao silncio foi feita por Henri

    Ana CludiaHighlight

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  • 36 Georges Canguilhem

    Michaux, mas estimada negativamente: "Como o corpo (seus rgos e suas funes) foi conhecido e desvelado sobretudo no pelas proezas dos fortes, mas pelos distrbios dos fracos, doen-tes, enfermos, feridos (a sade sendo silenciosa e fonte desta impresso imensamente errnea de que tudo evidente), so as perturbaes do esprito, seus disfuncionamentos que sero meus cnsinantes" (Les grandes preuves de l'esprit etles innombra-bles petites, 1966). Muito antes de todos eles, e talvez mais sutil-mente do que qualquer um deles, Diderot escrevera, em sua Lettre sur les sourds et muets l'usage de ceux qui entendt.'1U et qui parlem (1751): "Quando estamos bem, nenhuma parte do cor-po nos informa de sua existncia; se alguma delas nos adverte por meio da dor , com certeza, porque estamos mal; se for por meio do prazer, nem sempre certo que estejamos melhor."

    A sade um tema filosfico freqente na poca clssica e no sculo das Luzes, abordado quase sempre do mesmo modo, com referncia doena, cuja iseno quase sempre conside-rada como o equivalente da sade. Foi assim, por exemplo, que na T eodicia ( 171 O), Lcibniz, discutindo teses de Pierre Bayle sobre o bem e o mal, escrevera: "Consiste o bem fsico unica-mente no prazer? O Sr. Bayle parece concordar com isso; mas sou de opinio que ele consiste em um estado mediano, tal como o da sade. Estamos muito bem quando no temos ne nhum mal; um grau de ponderao nada rer da loucura''( 251). E, mais adiante, Leibniz acrescenta: "O Sr. Bayle gostaria de afastar a considerao da sade. Ele a compara aos corpos ra-refeitos que no se fazem sentir, como o ar, por e:>emplo; mas ele compara a dor aos corpos que tm muita densidade e que pesam muito com pouco volume. A prpria dor, todavia, faz conhecer a importncia da sade quando somos privados dela" ( 259).

    Escritos sobre a medicina 37

    Entre os filsofos que concederam maior ateno questo da sade, deve-se citar Kant. Fortalecendo-se com os sucessos e fracassos de sua arte de viver pessoal, dos quais Wasianski fez um longo relato na obra Emmanuel Kant dans ses demires annes (1804), Kant tratou da questo na terceira seo do Conflito das faculdades ( 1798). Quanto sade, diz ele, encon~

    tramo~ nos em condies embaraadoras: "Podemos nos sentir bem de sade, isto , julgar a partir do sentimento de bem estar vital, mas nunca se pode saber se estamos bem de sade [ ... ].A ausncia do sentimento (de estar doente) no permite ao homem expressar que est bem, a no ser dizendo que vai bem em aparncia." Essas observaes de Kant so importan-tes, apesar de sua aparente simplicidade, pelo fato de elas faze~ rem da sade um objero fora do campo do saber. Enrijeamos o enunciado kantiano: no h cincia da sade. Admitamo~ lo por ora. Sade no um conceito cientfico, um conceito vulgar. O que no quer dizer trivial, mas simplesmente co~ muro, ao alcance de todos.

    Encabeando essa srie de filsofos, Leibrz, Diderot, Kant, parece~ me que se deve inscrever Descartes. Sua concepo de sade importa mais ainda por ele ser o inventor de uma concep~ o mecanicista das funes orgnicas. Esse filsofo, mdico de si mesmo, associando sade e verdade em um elogio dos valores silenciosos, parece-me ter formulado uma questo at o mo~ mento mal percebida. Em uma carta a Chanut (31 de maro de 1649), ele escreve: "Ainda que a sade seja o maior de todos os nossos bens concernentes ao corpo, ele , contudo, aquele so-bre o qual fazemos o mnimo de reflexo e apreciamos menos. O conhecimento da verdade como a sade da alma: quando a possumos, no pensamos mais nela."

  • 36 Georges Canguilhem

    Michaux, mas estimada negativamente: "Como o corpo (seus rgos e suas funes) foi conhecido e desvelado sobretudo no pelas proezas dos fortes, mas pelos distrbios dos fracos, doen-tes, enfermos, feridos (a sade sendo silenciosa e fonte desta impresso imensamente errnea de que tudo evidente), so as perturbaes do esprito, seus disfuncionamentos que sero meus cnsinantes" (Les grandes preuves de l'esprit etles innombra-bles petites, 1966). Muito antes de todos eles, e talvez mais sutil-mente do que qualquer um deles, Diderot escrevera, em sua Lettre sur les sourds et muets l'usage de ceux qui entendt.'1U et qui parlem (1751): "Quando estamos bem, nenhuma parte do cor-po nos informa de sua existncia; se alguma delas nos adverte por meio da dor , com certeza, porque estamos mal; se for por meio do prazer, nem sempre certo que estejamos melhor."

    A sade um tema filosfico freqente na poca clssica e no sculo das Luzes, abordado quase sempre do mesmo modo, com referncia doena, cuja iseno quase sempre conside-rada como o equivalente da sade. Foi assim, por exemplo, que na T eodicia ( 171 O), Lcibniz, discutindo teses de Pierre Bayle sobre o bem e o mal, escrevera: "Consiste o bem fsico unica-mente no prazer? O Sr. Bayle parece concordar com isso; mas sou de opinio que ele consiste em um estado mediano, tal como o da sade. Estamos muito bem quando no temos ne nhum mal; um grau de ponderao nada rer da loucura''( 251). E, mais adiante, Leibniz acrescenta: "O Sr. Bayle gostaria de afastar a considerao da sade. Ele a compara aos corpos ra-refeitos que no se fazem sentir, como o ar, por e:>emplo; mas ele compara a dor aos corpos que tm muita densidade e que pesam muito com pouco volume. A prpria dor, todavia, faz conhecer a importncia da sade quando somos privados dela" ( 259).

    Escritos sobre a medicina 37

    Entre os filsofos que concederam maior ateno questo da sade, deve-se citar Kant. Fortalecendo-se com os sucessos e fracassos de sua arte de viver pessoal, dos quais Wasianski fez um longo relato na obra Emmanuel Kant dans ses demires annes (1804), Kant tratou da questo na terceira seo do Conflito das faculdades ( 1798). Quanto sade, diz ele, encon~

    tramo~ nos em condies embaraadoras: "Podemos nos sentir bem de sade, isto , julgar a partir do sentimento de bem estar vital, mas nunca se pode saber se estamos bem de sade [ ... ].A ausncia do sentimento (de estar doente) no permite ao homem expressar que est bem, a no ser dizendo que vai bem em aparncia." Essas observaes de Kant so importan-tes, apesar de sua aparente simplicidade, pelo fato de elas faze~ rem da sade um objero fora do campo do saber. Enrijeamos o enunciado kantiano: no h cincia da sade. Admitamo~ lo por ora. Sade no um conceito cientfico, um conceito vulgar. O que no quer dizer trivial, mas simplesmente co~ muro, ao alcance de todos.

    Encabeando essa srie de filsofos, Leibrz, Diderot, Kant, parece~ me que se deve inscrever Descartes. Sua concepo de sade importa mais ainda por ele ser o inventor de uma concep~ o mecanicista das funes orgnicas. Esse filsofo, mdico de si mesmo, associando sade e verdade em um elogio dos valores silenciosos, parece-me ter formulado uma questo at o mo~ mento mal percebida. Em uma carta a Chanut (31 de maro de 1649), ele escreve: "Ainda que a sade seja o maior de todos os nossos bens concernentes ao corpo, ele , contudo, aquele so-bre o qual fazemos o mnimo de reflexo e apreciamos menos. O conhecimento da verdade como a sade da alma: quando a possumos, no pensamos mais nela."

  • 38 Georges Canguilhem

    Como se explica o fato de nunca se ter pensado em inverter essa assimilao, nunca se ter perguntado se a sade no seria a verdade do corpo? A verdade no apenas um valor lgico, es pecfico do exerccio do juzo. H um outro sentido de verdade que no se tem necessidade de tomar emprestado de Heidcg ger. No Dictioonaire de la langue franaise de mile Uttr, o arti go "Verdade" comea assim: "Qualidade pela qual as coisas aparecem tais como so." VeTUS, verdadeiro, utilizado em la rim no sentido de real e de regular ou correto. Quanto a sanus, so, descende do grego, crcx;, e tambm provido de dois sen tidos: intacto ou bem conservado, c infalvel ou seguro. Disso decorre a expresso so e salvo. Em sua Hisroire des expressions populaire~ relatives I' anarorre, la physiologie et la mdecine ( 1892), Edouard Brissaud cita um provrbio que se pode consi dera r como um tipo de reconhecimento popular da aliana sa de-verdade: "To parvo quanto um atleta doente. Parvo, aqui, quer dizer a um s tempo estpido e enganado. A compleio atltica significa uma posse mxima dos meios fsicos, a conve-nincia das ambies s capacidades. Um atleta doente uma confisso de falsificao de seu corpo.

    Mas h um autor de lngua alem, mais sutil na escolha de suas referncias do que um colecionador de provrbios, que traz un: apoio inesperado ao que nomeio: uma tese espera de autor. E Friedrich Nierzsche. No fcil, depois de tantos co, mentadores, em especial Andler, Bertram, Jaspers, Lwith, determinar o sentido e o alcance dos inmeros t