As Varias Histórias Da Antropologia2004_in_this_context

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Artiga de Matiza Peirano sobre as histórias da Antropologia

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    ANTROPOLOGIAS, I HISTRIAS, EXPERINCIAS

    I

    l H~S I ! 1,-

    Fernanda Aras Peixoto Heloisa Pontes

    Lilia Moritz Schwarcz Organizadoras

  • 2004, Fernanda Aras Pejxoto, Heloisa Pontes, Lilia Moritz Schwarcz 2004, Editora UFMG

    Este livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizao escrita do Editor

    A636 Antropologias, histrias, experincias I Fernanda Aras Peixoto, Heloisa Pontes, Lilia Moritz Schwarcz (organizadoras). - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2004.

    22.5 p. (Humanitas)

    Inclui referncias. ISBN, 85-7041-443-9

    1. Antropologia. 2. Etnologia. I. Peixoto, Fernanda Aras. II. Pontes, Heloisa. IIL Schwarcz, Lilia Moritz.

    coo, 572 cou, 572.1

    Ficha catalogrfica elaborada pela CCQC- Central de Controle de QuaHdade da Catalogao da Biblioteca Universitria - UFMG

    EDITORAO DE TEXTO: Ana Maria de Moraes PROJETO GRFICO: Glria Campos - Mang FORMATAO: Cssio Ribeiro CAPA: Montagem de Cssio Ribeiro IMAGEM DA CAPA: Desenho de Marcelo Kraiser PRODUAO GRFICA: Warren M. Santos

    EDITORA UFMG Av. Antnio Carlos, 6627 - Ala direita da Biblioteca Central - Trreo Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG Tel (31) 3499-4650 Fax (31) 3499-4768 www.editora.ufmg.br [email protected]

  • M A R Z A p E R A N O

    ,,lN THI~ CONHXr' A~ VRIA~ Hl~lRIA~ DA ANlRO~OlOGIA*

    Em primeiro lugar, quero agradecer a Fernanda Peixoto, Helosa Pontes e Lilia Schwarcz o convite para participar do Seminrio "Antropologia da Antropologia: Desafios e Perspec-tivas", na Universidade de So Paulo. O tema sensibiliza-me por vrias razes, talvez a mais evidente, a semelhana de nomes- o ttulo do se1ninrio aproxima-se ao da minha tese de Doutorado, defendida h mais Je duas dcadas. Assim, penso que as organizadoras correram um risco ao me chamar para esse debate, porque ser inevitvel mencionar uma parte importante da minha formao e o contexto no qual ela se deu. Minha exposio dividida em trs partes: na primeira, procuro recuperar o que significava um trabalho Je "antro-pologia da antropologia" no final dos anos 1970; na segunda, desenvolvo uma reflexo sobre pelo menos dois tipos de histrias na antropologia; na terceira, fao um alerta sobre a indistino entre histria e teoria por meio de um exemplo ela literatura antropolgica.

    I

    A antropologia da antropologia: o caso brasileiro foi uma tese que apresentei nos Estados Unidos em 19HO, resultado ele uma preocupao basicamente clurkheimiana- inquirir a

  • cincia da mesma forma como se havia pesquisado a reli-gio. Indagar como esse "sistema de crenas" vivido e repro-duzido era parte do projeto. Ao perceber que cientistas sociais partilhavam alguns valores centrais e objetivos de relativa similitude, uma srie de perguntas surgiram: que valores eram esses? Quem eram essas pessoas que se tornaram antroplogos? Qual a eficcia do seu conhecimento? Como se reproduziam socialmente? E, principalmente, como eram reconhecidos? Como em Mauss, toda magia depende da apro-vao social que a legitima.

    O projeto era, assim, bastante ortodoxo ao se inspirar em autores clssicos. Seguindo as pistas do reconhecimento social, definiam-se tambm o perodo a ser pesquisado e os atares envolvidos. Foi no ps-1930 que as cincias sociais-sob o rtulo amplo de sociologia - foram vistas como rele-vantes para o desenvolvimento do pas e institucionalizadas como saber acadmico. Isto aconteceu em So Paulo, especial-mente na USP, mas tambm na Escola Livre de Sociologia e Poltica. Alcanada a legitimidade, ao longo das dcadas seguintes, um processo gradual de desmembramento, brico-lagem e individualizao acabou por distinguir a sociologia da antropologia, da cincia poltica, da histria.

    Se a orientao era maussiana, a organizao ensastica da tese seguia o roteiro de Bastide, que propunha o ataque a um fenmeno de vrios ngulos. Nesse sentido, um dos captulos focaliza a carreira de Florestan Fernandes - dos Tupinamb pesquisa sobre o negro, depois revoluo burguesa - e, ao revelar tenses e dilemas de um cientista social que forjou intelectual e institucionalmente a sociologia, indica padres que perduram at o presente. Outro captulo discute a antropologia ps-1960 que, pela combinao entre objeto (grupos indgenas) e teoria (a sociologia dialtica de Florestan), possibilita a Roberto Cardoso de Oliveira cunhar a noo de frico intertnica, que fundamenta o projeto de uma "sociologia do Brasil indgena". A partir de ento, a absoro do tema do campesinato - a populao regional que entra no cantata - foi apenas um desdobramento. Final-mente, um ltimo captulo revela como a antropologia nem sempre feita por antroplogos. Tendo como objeto de investigao a formao da literatura brasileira, Antonio

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  • Candido 0964) desvenda o processo pelo qual ela se torna um projeto nacional. Em contraste, dcadas depois, Roberto DaMatta (1980) escolhe manifestaes populares- o carnaval e outros rituais cotidianos - para examinar "o que faz o brasil, Brasil", Ambos os autores, um socilogo, outro antro-plogo, examinam aspectos de uma ideologia que se pretende, ou se quer, nacional. Um dilogo com a proposta de Norbert Elias - de que no sculo XX a compreenso dos aspectos ideolgicos das teorias sociolgicas precisa levar em consi-derao ideais nacionais - perpassa toda a tese, em con-fronto com a sugesto de Louis Dumont, de que a antropologia s se desenvolve em contextos individualistas modernos (ver Peirano, 1981).

    Mais duas palavras. Embora o Brasil fosse o caso privile-giado, o projeto era mais ambicioso e tinha como pretenso colocar a prpria disciplina prova. Seguindo a boa tradi-o, o caso francs e o germnico (e, em menor grau na poca, o indiano) proviam o vis comparativo. Sobre o ttulo da tese, na poca, considerei-o pouco inspirado, tendo sido vencida pela falta de imaginao do fim da redao. Naquele momento, uma "antropologia da antropologia" era algo, no mnimo, obscuro.

    O CONTEXTO GERAL E AS OPES

    No final dos anos 1970, uma certa inquietao sobre o papel da antropologia e dos antroplogos germinava nos Estados Unidos. Eram os primeiros indcios do sentimento de culpa colonial que, na dcada seguinte, passou a assolar a academia norte-americana. Nesse quadro geral, duas possi-bilidades de pesquisa afiguraram-se no meu horizonte: uma tinha um vnculo direto com o mal-estar do centro e se concre-tizava na idia de inverter o olhar antropolgico. Isto , origi-nria da periferia, o caminho seria o de tornar os Estados Unidos o objeto de investigao. Muitos colegas brasileiros seguiram esta linha na poca. Contudo, no me sensibilizei com a idia, considerando que este era um problema alheio. A outra possibilidade veio de David Maybury-Lewis, meu orientador, que sugeriu uma pesquisa sobre as organizaes

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  • duais na Etipia. Fiquei lisonjeada com o convite; aceit-lo significava uma insero no debate ainda recente no campo estruturalista. A deciso foi difcil, porque a proposta era desafiadora. Mas no final tambm respondi negativamente, tanto porque no me sentia parte dessa linhagem quanto porque no via condies de continu-la no Brasil. 1

    Foi ento que George Stocking, ]r. foi passar um semestre em Harvard. Era 1977. Stocking j tinha notoriedade como historiador da antropologia e suas aulas fascinavam tanto por um passado que ele desvendava para ns quanto por sua erudio e refinamento intelectual. Foi nas suas aulas que fiz a pergunta fatdica que me conduziria tese que, enfim, es-crevi: se os etngrafos alemes que foram Amrica do Nor-te deixaram l um Franz Boas, por que no tnhamos um le-gado equivalente dos etnlogos que vieram ao Brasil dentro do mesmo projeto? Por que nossas linhagens raramente re-montam aos etngrafos alemes do final do sculo XIX (exce-to Baldus e Schaden, por exemplo)? Por que, afinal, o estilo etnogrfico de longa durao no "pegou" no Brasil como nos Estados Unidos? (Uma verso contempornea da mesma pergunta nos levaria a inquirir por que aqui algumas verten-tes no vingam e outras pegam demais, tornando-se moda obrigatria.) E ainda: por que, em determinados momentos, crticos literrios ou socilogos fizeram to ou melhor antro-pologia do que os antroplogos? Justamente porque planeja-va encontrar as respostas nas idias e valores mais amplos (ou, melhor, na cosmologia - no caso, poltica) de diferen-tes contextos sociais, imaginei estar fazendo "uma antropolo-gia da antropologia".

    Stocking no se entusiasmou de incio. Reagindo a um "tri-al paper" que lhe entreguei, sugeriu que eu pesquisasse a histria institucional da USP, por exemplo. Minha proposta lhe parecia muito pouco ortodoxa. Um par de anos depois, enviei o rascunho da tese para Chicago e me senti gratificada por "a antropologia da antropologia" no o ter desagradado. Fiquei devendo o estudo sobre a USP.

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    ; '

  • II

    At os anos 1960, a histria da antropologia era relatada apenas pelos prprios etnlogos, e somente no final de suas carreiras. A trajetria bem-sucedida dos autores e o fato de serem contemporneos dos eventos e publicaes davam credibilidade e legitimidade s narrativas. S para mencionar alguns exemplos: seis anos antes de morrer, Alfred Haddon (1855-1940) publicou o livro History ofAnthropology (London: Watts & Co.); a primeira edio de The History of Ethnolo-gical 7beory, de Robert Lowie (1883-1957), de 1937, quando o autor j era reconhecido; Developments in the Field of Anthropology in tbe Twentieth Century, de Clyde Kluckhohn (1905-1960), data de 1955.2 Outras indicaes: Andr Singer editou A History of Anthropological Tbought, de Evans-Pritchard (1902-1973), depois da morte do autor (New York: Hasic Books, 1981); no meio do sculo XX, foram publicados estudos e biografias de antroplogos "clssicos": este o exemplo Goldschmidt 0959) sobre Hoas.

    O quadro muda com George Stocking. Em 1968, o histo-riador publica seu prneiro livro, Race, Culture, and Evolution. Essays in the History of Anthropology, que se tornou refe-rncia obrigatria j na dcada seguinte. A linha de trabalho inaugurada por ele se ampliou e, hoje, vrios pesquisadores se dedicam a examinar trajetrias e perodos histricos em diversos contextos. Alm dos volumes publicados na coleo dirigida por Stocking, "History of Anthropology" (HOA), a partir de 19H3, a melhor fonte para obter informaes sobre estudos contemporneos de histria da antropologia o HOA Newsletter, boletim editado pelo prprio Stocking desde 1973, que lista trabalhos em andamento, comentrios e recomen-daes. Apesar da grande produo que atualmente se verifica, at hoje nenhum historiador ultrapassou Stocking em termos de wna obra to relevante quanto contnua . .:.

    l\t!as autores nunca dotninam a apropriao que se faz do seu trabalho, e o uso dos escritos de Stocking no exceo. No Brasil, h um fenmeno especiahnente curioso: a histria da antropologia desenvolvida por Stocking freqentemente converte-se en1 teoria antropolgica. Isto , professores, tanto quanto alunos, no separam historiografia de teoria. Este

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  • um problema que traz conseqncias srias para a formao de novas geraes, j que estudantes evitam trilhar as mono-grafias clssicas em favor dos relatos interessantes de Stocking.

    necessrio, portanto, distinguir dois tipos de histrias da disciplina que, embora interligadas, ao terem objetivos diferenciados, desenvolvem estratgias especificas para recu-perar um autor do passado. Aproveito ento para refletir sobre duas delas: a primeira a histria da disciplina, no estilo propriamente historiogrfico que Stocking consagrou entre ns (e que inclui, como um subtipo, a antropologia da antropologia). A segunda a histria terica, uma histria interna . prtica da antropologia que indica a orientao e as questes centrais da disciplina, os refinamentos pelos quais passou e, no menos, os insigbts que, no tendo sido devidamente apreciados na poca em que foram divulgados, inspiram a renovao de perguntas tanto empricas quanto tericas.

    HISTRIA DA ANTROPOLOGIA OU "lN TIIIS CONTEXT ... "

    interessante que o prprio Stocking nunca teve dvidas a respeito das diferentes abordagens da histria e da teoria. ]amais se outorgando o papel de terico da antropologia, ele define sua orientao como a de um historiador e distingue duas perspectivas (Stocking 1968, cap. 1): uma, presentista; outra, historicista. A primeira normativa, pauta-se pela idia de progresso contnuo e focaliza a racionalidade do pensa-mento em um processo que leva ao presente. A opo de Stocking a segunda, a do compromisso de entender o pas-sado por si prprio (jor its own sake): a ele preocupa o pensar (mais do que o pensamento), a compreenso (e no julga-mentos de valor) e a plausibilidade (mais do que a racionali-dade). Interessa-lhe, assim, a abordagem que focaliza o con-texto, o processo, a emergncia, a viabilidade. dessa perspec-tiva que Stocking fala sobre a pouca sensibilidade das cincias sociais para o fato de que os predecessores, muitas vezes, fizeram perguntas e ofereceram respostas sobre problemas que permanecem relevantes at hoje.'

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  • Alguns anos depois, Stocking 0971) estabelece outra dis-tino: a vertente "tradicional" da historiografia, cujo principal objetivo classificar os cientistas do passado na medida em que anteciparam o estado presente da disciplina; e a da "nova historiografia das cincias", na qual se insere. Esta se localiza na interseo entre a histria, a epistemologia e as cincias, e seu questionamento maior recai sobre a opo entre (i) concentrar a ateno nas obras - isto , os problemas tericos e experimentais definidos por uma comunidade cientfica - e (ii) investigar a intluncia de fatores tecnolgicos, socioeco-nmicos, institucionais e polticos. Tambm nova historio-grafia interessa saber se existe um desenvolvimentQ contnuo do senso comum cincia, ou se a cincia deve ser vista como um aparecimento epistemolgico repentino de um perodo histrico especfico.

    Incluo uma lembrana do curso oferecido na graduao (ao qual vrios estudantes de ps-graduao assistamos): antes de cada aula, Stocking distribua uma folha de papel mimeografado para cada aluno, com uma pequena lista de cinco ou seis tpicos, uma bibliografia e vrios nomes desco-nhecidos, identificados pelas datas de nascimento e morte, e uma pequena indicao biogrfica. Estes eram os marcos de um mapa, o contexto; a trama que unia esses nomes, livros e personagens Stocking oferecia na aula. Nesse momento, evi-dncias histricas revelavam vnculos e redes sociais, heris se tornavam humanos, figuras apagadas surgiam em papis inesperados. Esta no era a histria de obras, mas a histria tle pessoas pensando. A esse respeito, Stocking um dia con-fessou em um seminrio da ps-graduao que, quando revia seus textos para publicao, lhe chamava especial ateno a quantidade de pargrafos que comeavam com a expresso "ln this context ... ". Essa recorrncia, que ele cor-rigia (mas que, embora domesticada, ainda est presente em seus escritos), corrobora um aspecto fundamental: os eventos, as personagens e as obras precisam estar sempre situados no contexto social e histrico da poca.

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  • HALLOWELL

    Mas aqui nos perguntamos: "in this context" no tambm uma expresso comum em textos etnogrficos? No estamos invariavelmente observando eventos, crenas, linguagens em contexto? Vale, ento, uma indicao sobre o perodo em que Stocking se formou como historiador na Universidade da Pensilvnia. Stocking teve em A. Irving Hallowell (1892-1974), antroplogo norte-americano da linhagem de Boas, o seu mentor na disciplina (Stocking, 2004). Foi Hallowell que, em 1965- antes, portanto, da primeira edio de Race, Culture, and Evolutlon - props que a histria da antropologia deveria ser "um problema antropolgico", influncia que Stocking (1976, 2004) reconhece como central no seu trabalho.'

    Para compreender a histria da antropologia, Hallowell (1965) defende que mais rentvel seguir o roteiro das per-guntas que a antropologia se faz do que acompanhar a disci-plina definida convencionalmente. Vendo a prpria histria como um problema antropolgico, ela no se reduz ao inte-resse at ento quase exclusivo pelos questionamentos insti-tucionalizados, mas o suplementa. Esta perspectiva tambm evita a possibilidade de isolar de forma arbitrria o desen-volvimento da antropologia de suas razes culturais. Para Hallowell, a histria da antropologia deve dirigir sua ateno para o contexto e para as circunstncias histricas nas quais surgiram questes hoje centrais.

    Hallowell vai mais longe: questes antropolgicas no so exclusivas dos tempos modernos. Se as procuramos em socie-dades no ocidentais, vamos encontr-las inseridas na orien-tao cognitiva desses povos, na sua cosmologia, de onde elas no teriam sido separadas, abstradas e articuladas como hoje entre ns. Dessa perspectiva, Hallowell abre espao para examinar no apenas a histria cronolgica, mas as condies para a emergncia de uma antropologia fora de seu campo institucional prprio. Isto , Hallowell permite-nos questionar quem so e como surgem antroplogos, em que sentido no especialistas podem fazer antropologia e como alguns questio-namentos se legitimam como antropolgicos - assim, nos levando de volta problemtica de uma antropologia da antropologia 6

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  • Hallowell representa, portanto, um elo fundamental na nossa discusso, unindo e diferenciando vrios tipos de reflexo. Por partes: JlriJnero est a convergncia que a proposta de Hallowell"'f:>ropicia entre a histria da antropo-logia e a antropologia da antropologia, graas inspirao comum que indicamos anterionnente. 7 Essa convergncia se d exceto por dois pontos principais: (i) enquanto a primeira focaliza o passado "como um outro lugar", segunda interessa questionar igualmente passado e presente, sempre em busca das condies que legitimem certas questes como antropol-gicas; e (ii) pela exigncia, na antropologia da antropologia, de uma orientao terica, ela prpria antropolgica, que fundamente a nvestigao- e que, no meu caso, encontrei em Durkheim e Mauss. 8 Segundo, como Hallowell tanto refletiu sobre a histria da antropologia quanto foi um pesqui-sador de campo, existe, para sorte nossa, uma certa permea-bilidade entre a historiografia de Stocking, a antropologia da antropologia e o que chamo de histria terica. Stocking comenta: '"The History of Anthropology as an Anthropological Problem' provides a model for an approach that is in the best sense both historical and anthropological" (1976: 19).

    Permeabilidade no identidade, no entanto. Nesta terceira abordagem, a distino mais clara, e a separao, mais impe-rativa. Vejamos.

    HISTRIA TERICA Em contraste com as abordagens da histria da antropo-

    logia e da antropologia da antropologia est a histria terica - termo que uso para indicar a combinao sui generis de histria + teoria -, que consiste em uma viso interna pr-tica da antropologia. a histria terica que informa e guia o refinamento e a expanso da antropologia a partir de pesquisas de campo nossas e de nossos predecessores. por meio da histria terica que vislumbramos as questes que marcaram o desenvolvimento de obras consideradas fun-dantes da disciplina, seu corpo cannico (ou mtico, para quem preferir). Quando procuramos formar alunos em teoria antropolgica pela leitura seqencial dos autores e pelo exame dos desdobramentos de questes consideradas relevantes,

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  • estamos colocando a combinao histria + teoria em ao. A histria terica trata assim do exame dos problemas que se tornaram pertinentes e merecedores de investigao, e dos dilogos que antroplogos empreenderam e que constituem um repertrio aberto e continuamente renovado de novas perguntas ou formulaes. O movimento final espiralado e dinmico, em que questes prvias adquirem nova vida, afastando-se de uma idia linear ou progressiva.

    Como alunos de antropologia no "aprendem", mas se "formam" em antropologia (Duarte 1995), parte importante da iniciao pela qual passam resulta na criao de linhagens de autores, individuais ou coletivas, produto de bricolagens de orientaes tericas especficas. Interna prtica da antro-pologia, a histria terica informa e guia seu refinamento, a parrir de pesquisas que, ao contestarem verdades do senso comum pela surpresa intrnseca prtica etnogrfica, tambm confrontam a prpria teoria acumulada e a corrigem, enri-quecem ou contestam. Essa "eterna juventude" da antropo-logia vem sendo desenvolvida desde que Malinowski esta-beleceu o kula como uma nova agncia no mundo ocidental, em contraste com as teorias ento vigentes sobre economia primitiva. No inesperado, portanto, que a revisitao aos clssicos seja uma prtica fundamental, da mesma forma que as monografias etnogrficas se tornam o capital mais signifi-cativo da disciplina. Teoricamente necessrias, mas tambm indispensveis por seu papel sociolgico de criar vnculos entre geraes, as monografias clssicas fornecem-nos um quadro de referncia intelectual, um legado terico, um mapa de questes relevantes e um repertrio de problemas pro-cura de soluo. Aqui, a promessa terica que suscitam mais significativa do que o contexto em que foram produzidas.

    Recapitulando. Stocking um autor merecidamente concei-tuado. Historiador sui generts - inspirando pelas aulas de Hallowell no perodo de sua formao, h dcadas atuando como professor de antropologia em Chicago -, ele mantm sua identidade como historiador por algumas razes que v como centrais: seu interesse mais pelo passado do que pelo presente e o fato de nunca ter vivido o rito de passagem da pesquisa de campo: "The historian's archive is not the ethnographer's field" (Stocking, 1992b: 13). Stocking tambm menciona o fato de no ter tido a formao de um antroplogo,

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  • mas sim de utn historiador- mesmo um historiador no tradi-cional do programa de American Civilization na Universidade da Pennsylvania. Como antroplogo, portanto, reconhece seu status de outsider, visto com certa suspeio pelos etnlogos legtimos (que temem transformar-se em nativos). Como histo-riador da cincia, tambm se considera marginal, j que a rea dominada em termos de prestgio pelas hard sciences. Mas se Stocking no um antroplogo/ etnlogo, seu alerta contra o anacronismo inestimvel - uma lo sempre ]cida, esclarecedora e equilibrada, especialmente quando ns antro-plogos passamos a considerar o passado como algo descar-tvel. Sua viso entre as perspectivas historicista e presentista preciosa: se o passado um outro lugar, ele sobrevive nas elaboraes e nos dilogos tericos contemporneos. Mas histria da antropologia no teoria, e teoria antropolgica no histria -confuso de abordagens internas e externas que freqentemente confundem mais do que esclarecem a formao dos alunos. 10

    III

    leituras historiogrficas (externas) e leituras tericas (internas) tm estilos e projetas diferentes. Para finalizar, volto ao nosso perene ponto de partida: Malinowski. Focalizo dois artigos interessados em discutir a transformao da pesquisa de campo em modelo legtimo da experincia antro-polgica. Seus autores so George Stocking, Jr. 0992b) e Edmund Leach 0957).

    STOCKING SOBRE MALINOWSKI

    O texto de Stocking foi escrito no incio dos 1980s. Com o objetivo de esclarecer "a magia do etngrafo", o artigo focaliza a pesquisa de Malinowski no contexto do desenvolvimento do mtodo antropolgico desde a metade do sculo XIX. Com a mincia histrica e a erudio a que j nos acostumamos, Stocking percorre o caminho que vai de McLennan e Tylor aos missionrios e cientistas naturais, depois s expedies

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  • ao Estreito de Torres, os papis de Haddon e Spencer e as vrias verses de Notes and Queries at a mais famosa, a de 1912, com o trabalho clssico de Rivers. Stocking antecipa o roteiro: "Let us begin with the state of anthropological method before the culture hera carne upon the scence -for this, too, is part of the myth we seek to historicize" (1992: 17). Stocking quer "historicizar o mito" da pesquisa de campo inaugurada por Malinowski. No decorrer da fascinante histria exposta no artigo, Stocking revela-nos como o livro The Native Tribes of Central Australia, de Spencer & Gillen, publicado em 1899, j adotava um estilo reconhecidamente "moderno" de etnografia - antes de Malinowski, portanto. J Frazer, o prottipo do que consideramos um antroplogo de gabinete, avesso aos 'selvagens", muito estimulou a pesquisa de campo entre os mais jovens. Da "etnografia de varanda" aos suroeys, "pesquisa intensiva" de Radcliffe-Brown, ao "mtodo concreto" de Rivers, a idia do trabalho de campo (field-work) no estilo "moderno" j tinha uma dcada em 1914 - uma srie de antroplogos havia deixado as universidades inglesas para passar de um a dois anos no campo (Radcliffe-Brown, Diamond Jennes, Gunnar Landtman, Rafael Karsten, Barbara Freire-Marreco, Marie Czaplicka, John Layard). No pr-guerra, Seligman j dizia que a pesquisa de campo era para a antro-pologia "o que o sangue dos mrtires era para a igreja catlica" (apud Stocking, 1992b: 30).

    Stocking vai assim desconstruindo o mito com evidncias histricas. Alis, no mbito desse grupo de pesquisadores, Malinowski teria sido o ltimo a efetivamente ir a campo. E, no entanto, dele o crdito pela instituio obrigatria da pesquisa etnogrfica. Como isso foi possvel o que Stocking focaliza na segunda parte do artigo, em que mostra como "o Etngrafo" (expresso pinada de Os argonautas, com maiscula) no apenas seguiu o programa de Rivers, mas mudou o foco principal da investigao - do deck do navio ou da varanda da misso para o centro da aldeia - e, de maneira concomitante, modificou a concepo do papel do etngrafo: daquele que apenas investiga uma sociedade para o de observador participante na vida da aldeia-" Paralela-mente ao tipo de pesquisa, ocorre uma mudana na orientao terica, j que o objetivo da antropologia ultrapassa aquele de apenas revelar a histria da humanidade, como queria Rivers.

    llO

  • Neste ponto, as evidncias trazidas por Stocking e sua argu-mentao refutam a idia de que Malinowski seguiu uma pr-tica igua1itria (como depois os antroplogos norte-americanos tentaram reproduzir sem sucesso), inclusive porque a socie-dade trobriandesa era extremamente estratificada; de que Malinowski viajou em uma expedio kula- apenas o leitor atento conclui que ele no o fez; de que tambm foi apenas um observador participante - ao contrrio, por vezes um investigador fortemente interativo, Malinowski questionava crenas dadas, forava contradies, empurrava os nativos "contra a parede metafsica" (e era por eles colocado na mesma situao). o prprio Malinowski quem esclarece essa perspectiva, mas em Baloma (Malinowski 1916) e no em Os argonautas (1922). Stocking empenha-se, ento, na procura de uma explicao para o sucesso da receita malinowskiana de pesquisa. Fmto de um objetivo do autor ("como convencer meus leitores"), Stocking argumenta que a adoo de um estilo frazeriano, em que relao cena/ato Malinowski inclui a do autor/leitor, faz com que se pense at o presente (Stocking 1992b: 54) que o relato de Os argonautas uma seqncia de experincias vividas pelo autor.

    Como pice do artigo, Stocking indica como Malinowski construiu trs tipos de personagem em Os argonautas: os nativos (e a a questo sobre o significado de cham-los de niggers no seu dirio de campo volta tona), os que no entendiam os nativos (administradores, rnissionrios, comer-ciantes etc.) e, finalmente, o Etngrafo -concepo reforada nas fotos que mostram "a tenda do Etngrafo", colocadas estrategicamente no incio e no final do livro. Nesse momento, o tom do artigo muda de historiogrfico para evocativo ("Consi-dered in this Jight, Argonauts is itself a kind of euhemerist myth - divinizing, however, not its ostensible Trobriand heroes, but the European Jason who brings back the Golden Fleece of ethnographic knowledge"- cf. Stocking 1992b: 56). Malinowski havia criado o papel de heri para si prprio. Se este rnodelo pegou, se seu "carisma metodolgico" vingou, se e]e prprio se tornou o pesquisador arquetpico, a "magia do etngrafo" legitimou-se porque preenchia o vazio entre prescries metodolgicas e os objetivos vagamente defi-nidos do conhecimento etnogrfico. Stocking conclui com uma interpretao (antropolgica) derivada do prprio Malinowski:

    111

  • "And justas in primitive psychology myth funcioned 'especially where there is a sociological strain', in anthropological psycho-logy it functioned especially where there was an epistemolo-gical strain" (1992b: 59).

    LEACH SOBRE MALINOWSKI

    Leach no desconhece o papel carisrntico de Malinowski, nem o fato de que ele teve vrios antecessores na pesquisa de campo (inclusive Boas). Tambm no ignora que Malinowski refletia a sua poca, preso ortodoxia do sculo XIX. A ambi-gidade do termo "selvagem" um exemplo eloqente- ne-gando de forma enftica que os trobriandeses eram surviVals de um passado remoto, mesmo assim Malinowski precisava supor um desenvolvimento histrico de longa durao ("an age-long hlstorical deve/opmenf' - cf. Leach, 1957: 126) para justificar o estado de equilbrio das populaes estudadas pelos antroplogos. Leach tambm aponta as qualidades de profeta e a liderana carismtica de Malinowski, que se via como um missionrio, um inovador revolucionrio do mtodo da pesquisa de campo. Como fazem normalmente os revolu-cionrios, acrescenta, ele tendia a diminuir seus contempo-rneos mais conservadores e seus predecessores imediatos - uma gerao inteira de alunos foi formada acreditando que a antropologia social tinha seu comeo nas ilhas Trobriand em 1914.

    Se essas observaes so paralelas s de Stocking, elas no constituem o cerne do artigo em questo. Leach trata-as de forma circunstancial, reconhecendo o papel de Malinowski na histria da antropologia como dado. A questo central de Leach reside na percepo de que o estilo etnogrfico de MaHnowski no se resume a um artifcio retrico ou esttico, mas uma verdadeira inovao terica (nfase no original). Para Leach, Malinowski produziu uma transformao na antropologia, do estudo museolgico de objetos de povos diversos a uma investigao sociolgica de sistemas de ao 0957: 120). Reconhecendo que Malinowski representou um fenmeno paradoxal - "um empiricista terico fantico" -, duas caractersticas marcam o seu estilo: primeiro, o fim do informante profissional, e segundo, o pressuposto terico de

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  • que os dados da pesquisa coletados sob a observao do pesquisador devem fazer sentido, ajustando-se de alguma forma (de novo, a nfase de Leach). Malinowski , ento, um gnio estimulante ao falar dos trobriandeses, mas irreme-diavelmente datado quando quer explicitamente teorizar, como em A Scientific TbeoryofCulture(1944), alis, relembro, um livro pstumo." Um dos pontos centrais de Leach, por-tanto, reside em contradizer a auto-avaliao de Malinowski a respeito de diferentes momentos de sua obra - o melhor da teoria de Malinowski vive implicitamente nas suas mono-grafias, e no nos escritos que o autor julgou ''tericos". Para esclarecer esta incongruncia, Leach se pergunta que tipo de pragmatismo guiava o autor.

    nos filsofos norte-americanos William James e Charles Peirce que Leach encontra uma resposta, indicando que Malinowski adotou o primeiro mais do que o segundo. Como William James, ele suspeitava de qualquer abstrao que no fosse derivada ou referida a fatos diretamente observveis. (A opo alternativa de Peirce o levaria a considerar que idias e conhecimento, e sobretudo a vida inerente aos smbolos, so to reais quanto os indivduos que os utilizam.) A racio-nalidade dos selvagens e a proposta de que o homem primi-tivo distingue de maneira fundamental o fato da fico so argumentos implcitos em seus escritos, especialmente desen-volvidos em Coral Gardens and their Magic (1935). Isto , de um lado est o conhecimento de condies objetivas, de outro, o domnio das influncias inesperadas, adversas ou auspi-ciosas. Ele prprio no conseguia operar essa diviso bsica, j que nem sempre podia julgar onde o procedimento racional terminava e comeavam os mgicos e estticos (apud Leach, 1957: 128). Leach intervm aqui para sugerir que, em vez de afirmar que os primitivos eram to capazes quanto os europeus de distinguir entre trabalho e magia, o argumento teria tido mais impacto se Malinowski insistisse que os europeus so igualmente incapazes de uma separao precisa entre as duas categorias. (Esta se tornou uma tarefa que o prprio Leach incorporou nos seus ensaios dos anos 1960.)

    Um ponto a mais no dilogo que Leach mantm com Mali-nowski diz respeito linguagem. Leach considera Malinowski brilhante por ter enfatizado que o significado das palavras depende do contexto em que so enunciadas, revelando assim

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  • seu carter pragmtico. Por outro lado, por haver colocado tanta nfase no contexto, Malinowski teria desprezado o aspecto simblico da palavra dita e dos atos realizados -foi Mauss quem, com base na etnografia de Malinowski, concebeu o kula como simbolizando os aspectos ambiva-lentes da amizade e hostilidade que constituem os elementos da estrutura social. Os rituais kula "dizem coisas" que os trobriandeses no poderiam colocar em palavras. 13

    No artigo de Leach, seus dilogos engajados com Mali-nowski fazem-no criticar, apontar equvocos e falhas, refutar interpretaes e reconhecer contribuies, algumas vezes nem imaginadas pelo prprio Malinowski. 14 desta perspectiva que, no final do mesmo, v na noo de "instituio" um legado para seus sucessores. Como conceito de mdio alcance - no to abstraio que parea apenas uma especulao verbal nem to concreto que impea uma comparao -, ele serviria como ponte entre o funcionalismo vulgar que predominou nos anos 30 e a anlise estrutural mais sofisticada de ento. Finalmente, Leach indaga se no foi justamente por que o prprio Malinowski devia tanto a seus predecessores que se ressentia de suas idias - um fenmeno que poderia estar se repetindo nos anos 1950 com o prprio Malinowski. 1'

    PARA CONCLUIR

    Ao justapor os dois textos, faz-se necessria uma palavra sobre as condies de produo de cada um: o artigo de Stocking (1992b) resultado de um novo olhar que o autor dirige histria da antropologia, marcada por uma ruptura que ele detecta depois da publicao dos dirios de Mali-nowski em 1967. 16 Em seus escritos mais recentes, Stocking passa a considerar os questionamentos ps-modernos sobre a autoridade etnogrfica, a criao de textos e a "potica e politica" da etnografia (Stocking, 1992b: 15). Leitores tam-bm reconhecemos um certo humor mordaz, prprio dos "ps-modernos", na nfase que Stocking d s metforas de Mali-nowski - por exemplo, o destaque da sua afirmao de que "se Rivers foi o Rider Haggard da antropologia, eu serei o Conrad" .17 Em contraste, o artigo de Leach publicado no contexto de uma discusso sobre a obra de Malinowski que,

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  • supostamente, homenageia o autor -, mas em tempos no muito favorveis a ele." Como Stocking, Leach aponta a personalidade proftica de Malinowski, mas este no seu interesse maior. Leach quer avaliar tanto a contribuio quanto as fraquezas da perspectiva de Malinowski, desvendar a inspi-rao de sua proposta, posicionar-se quanto a ela e reconhecer, tudo considerado, o legado terico de sua abordagem meto-dolgica. '9

    Em suma, se possivel ler o texto de Leach como um debate engajado com seu antecessor, de maneira diversa Stocking no se posiciona com relao a Malinowski: ele o v pensando, agindo e construindo a sua carreira. H, portanto, pelo menos dois personagens que respondem pelo nome de "Malinowski" - para Leach, ele o autor de um corpo de etnografias, o sujeito da teoria, e se mantm, portanto, vivo e presente como um interlocutor sempre fundamental; para Stocking ele o sujeito histrico, o Etngrafo, o pesquisador da primeira metade do sculo XX que marcou a antropologia, uma figura que se tornou um mito. Exite uma abordagem mais vlida? Que "Malinowski" escolher? A resposta simples, naturalmente - um texto ser esclarecedor na medida em que responder s indagaes que lhe so feitas. Tanto a histria da antropologia (externa) de Stocking quanto a his-tria terica (interna) de Leach nos auxiliam, convencem e nos servem de estimulo e/ou inspirao. Mas, em qualquer circunstncia, embora relacionadas, as duas abordagens no se confundem.

    NOTAS

    Agradeo a Wilson Trajano Filho as sugestes que me permitiram escla-recer muitas idias nebulosas da primeira verso c a Antondia Borges, as boas conversas que me instigaram a desenvolver alguns dos temas aqui focalizados. George Stocking leu a verso em ingls e fez vrias apreciaes e comentrios, tornando a elaborao final do artigo uma nova experincia de dilogo.

    1 Naquele momento, considerava-me relativamente em dia com a pesquisa de campo, a partir da investigao sobre a lgica dos tabus alimentares entre pescadores no Nordeste, que havia realizado para a Dissertao de Mestrado (cf. Peirano, 1975).

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  • 2 -Entre os antroplogos mais contemporneos, essa prtica pode ser vista em The Expansiw Moment. Antbropology ln Britain and Africa 1918-1970, publicado em 1995 por Jack Goody, no qual o antroplogo ref1ete sobre um perodo em que foi participante da histria que conta. A elaborao de livros de introduo antropologia no fina) de suas carreiras tem sido tambm comum (ver, por exemplo, Socta/Antbropology, de Leach, 1982). Finalmente, vrios artigos sobre reminiscncias autobiogrficas tm sido publicados por antroplogos renomados em Annual Review of Antbro-pology (por exemplo, Firth 1975, leach 1984, Srinivas 1997, Geertz 2002, Goodenough 2003). ~ De Stocking, ver, apenas a ttulo de ilustrao, seus estudos conhecidos

    sobre Franz Boas (Stocking, 1974a, b, c). 4 Stocking sugere que, ao suspender o critrio de valor em relao sua

    utilidade presente, paradoxalmente, essa abordagem pode tornar possvel julgamentos de mrito. ~ Ao receber a primeira verso do presente ensaio, George Stocking gentil-

    mente me enviou uma cpia de um artigo recm-publicado, em que discute a trajetria de Hallowell nos comextos cultural, disciplinar e pessoal. O artigo dedicado memria de Hallowell e, nos comentrios iniciais, Stocking menciona que Hallowell fez parte do seu comit de tese (Stocking, 2004)

    6 No de todo surpreendente, portanto, verificarmos que, se para Hallowell a histria da antropologia era ~um problema antropolgico" em 1965, poucas dcadas depois a antropologia podia autoquestionar-se, colocando-se ela prpria prova.

    7 Minhas primeiras leituras de Hallowell, naturalmente, foram realizadas nos cursos de Stocking.

    a Fao uma digresso para mencionar que a antropologia da antropologia dos anos 1970 teve um subproduto no que, na falta de melhor nome, chamo de "poltica da teoria". Explico. Ao procurar os valores que legiti-maram a antropologia no Brasil, identifiquei como um dado emprico a ubiqidade da ideologia de construo nacional como projeto de cientistas sociais. Mesmo que formulada de vrias maneiras, essa questo se infiltra em biografias, conduz a decises, estabelece carreiras acadmicas, informa escolhas disciplinares etc. A dimenso poltica era, e ainda , uma presena etnogrfica marcante. Mais tarde, ao pesquisar o caso indiano, encontrei um trao equivalente. Mas naquele caso, o dilogo era duplo: de um lado, com a ideologia nacional, de outro, com um projeto dvilizatrio que se definia em confronto com o Ocidente. Cf. Peirano, 1987. (Este projeto tem paralelo em Ahmad 0995), que parte de uma viso marxista da produo intelectual.) No devido tempo, constatei que nomear esses processos de

    nation-building~ ctviltzational-buildtng etc. era empobrecedor, como acontece sempre que usamos rtulos. Para no enrijecer os fenmenos, passei a adorar perguntas de natureza emprica. Por exemplo: o que publi-caes paralelas de autores da mesma gerao podem nos mostrar?, cf. Peirano, 1997) (Neste artigo, comparo livros publicados por Geertz, Madan, Rabinow e Veena Das.) Quando os centros metropolitanos se propem a desenvolver uma antropologia "at home", que sentdo esse

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  • projeto tem, por exemplo, no Brasil? (cf. Peirano, 1998) Estas so perguntas que identifico como relativas wpolftka da teoria".

    9 A antropologia da antropologia auxilia na investigao da historiografia e soma-se histria teri-ca quando indica, por exemplo, como debates na discip1ina esto fadados ao insucesso se no se leva em considerao a cosmologia poltico-terica de seus autores. (Ver, por exemplo, Peirano, 1987, que examina como o debate de vinte anos entre Dumont e Srinivas no poderia ter soluo harmnica pela viso civilizacional de Dumont e a nacional, de Srinivas.)

    10 Acrescento dois exemplos imediatos. O primeiro diz respeito a Charles Peirce. Para um antroplogo, suas lies sobre os signos icnkos, ind-xicos e simblicos independem do fato de ele ter sido considerado por seus pares um intelectual excntrico nos Estados Unidos do sculo XIX e nunca ter conseguido, parcialmente em vista disso, um posto acadmico. At que ponto as idias sobre a natureza dos signos nasceram do seu status de outstder continuar sendo uma incgnita que no nos cabe resolver (ver Borges, 2004, para um exemplo bem-sucedido de etnografia inspi-rada em Peirce.) Durkheim fornece-nos um segundo caso. No perturba nossa apropriao contnua de suas lies sobre a natureza da sociedade saber que o autor podia ter uma personalidade considerada questionvel -um autoprodamado guardio da verdade, com caractersticas domina-doras, e um adepto virtuoso do sistema de pa~ronagem (Lepenies, 1985). Heloisa Pontes argumenta, com muita propriedade, que investigar a posio da sociologia no sistema universitrio francs da poca ajuda-nos a alcanar um entendimento mais amplo das questes tericas substantivas enfrentadas por Durkheim e seus discpulos. No entanto, se essas questes so absolu-tamente fundamentais para uma histria da sociologia naquele contexto, a apreenso terica de Durkheim hoje independe dessa histria. (Para a perenidade da sua inspirao, ver Chaves, 2000.)

    11 Malinowski tambm usa maisculas para distinguir as abordagens prprias ao ~Ethnographer" e ao ~Philologist" em relao linguagem (Malinowski, 1930), o que pode sugerir uma conveno da poca, mais do que um artifcio retrico de sua parte.

    1 Sendo pstumo, inevitvel ento que nos perguntemos por que o

    prprio autor no o divulgou em vida. Mas, em 1957, tudo indica que o livro era levado mais a srio como wteoria" do que hoje.

    13 Ver Tambiah (1985), para reanlises do material etnogrfico trobriands em artigos que concretizam a proposta de Leach.

    14 o dilogo de Leach com Malinowski pode ser apreciado de outro ngulo nas suas reanlises do material rrobriands. Ver, por exemplo, Leach 0958, 1966).

    1' o prprio Leach confessa a seu respeito: "There was (. .. )a point in my

    anthropological development when Malinowski could do no wrong. ln the next phase, MaHnowski could do no right. Bu. with maturity I carne to see that there was merit on both sides" (d. contracapa de Leach, 2000).

    16 Ver Stocking (1974c), para uma excelente anlise dos momentos de frustrao Je MalinowskJ, quando ele escrevia em seu dirio, em oposio aos perfodos de pesquisa de campo produtiva, quando o deixava de lado.

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  • O tom do artigo favorvd a Malinowski: " ... [IJn the overall context of both his diary and his ethnography, one is perhaps justified in assuming lhat Malinowski's admitted1y ambivalent anel sometimes antipathetic feelings toward the Trobrianders were the basis for an interaction which, however emotionalJy complex, involved, in varying degrees, tolerance, sympathy, cmpathy and even idcntification" (1974c: 286).

    1 i Poderamos pensar que nesse artigo Stocking estaria se aventurando na seara da antropologia da antropologia, por meio da inspirao (terica) dos ps-modernos.

    18 A maioria dos artigos publicados cm Firth 0957) , no mnimo, ambiva-lente. No final dos anos 1950, a discusso dominante na antropologia no favorecia o tema da pesquisa de campo.

    19 O dilogo terico de antroplogos com predecessores, mesmo quando o objetivo biogrfico, pode ser exemplificado no volume de Tambiah (2002) sobre Leach. O autor esclarece sua posio diante do biografado: "My interactions with Leach, and my own understanding and interpretation of what he wrote and said are an integral part of the text. Leach speaks, writes, and narrates ~ but these representations are filtered, selected, arranged, and mediated by my own activity as narrator, commenrator, and friend. Tbroughout mucb of the text, Iam in dialogue wttb Leacb, wbo cannot speak back nouJ' (:xiv, nfases minhas).

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