A volta de Sherlock Holmes - A volta... · Ronald Adair era um aficcionado das cartas ... Era...

13
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges A volta de Sherlock Holmes Arthur Conan Doyle

Transcript of A volta de Sherlock Holmes - A volta... · Ronald Adair era um aficcionado das cartas ... Era...

Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges

A volta de Sherlock Holmes

Arthur Conan Doyle

Título original: The Return of Sherlock Holmes

Copyright desta edição © 2016:Jorge Zahar Editor Ltda.

rua Marquês de S. Vicente 99 – 1o | 22451-041 Rio de Janeiro, rj tel (21) 2529-4750 | fax (21) 2529-4787

[email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Revisão: Nina Lua, Carolina SampaioProjeto gráfico: Carolina Falcão

Capa: Rafael Nobre/Babilonia Cultura EditorialImagem da capa: © Richard Nowitz/Getty Images

cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Doyle, Arthur Conan, Sir, 1859-1930D784v A volta de Sherlock Holmes/Arthur Conan Doyle; tradução

Maria Luiza X. de A. Borges. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

il. (Clássicos Zahar; Bolso de luxo)

Tradução de: The return of Sherlock Holmesisbn 978-85-378-1526-7

1. Ficção inglesa. i. Borges, Maria Luiza X. de A. ii. Título. iii. Série.

cdd: 82315-28879 cdu: 821.111-3

7

Apresentação

Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) foi médico e escritor. Sua obra contempla gêneros tão diversos quanto a ficção científica, as novelas históricas, a poesia e a não ficção. Sem dúvida, po-rém, seu maior reconhecimento vem dos contos e romances do detetive Sherlock Holmes e seu fiel parceiro e amigo, o dr. Watson.

Os contos nunca deixaram de ser reimpressos desde que o primeiro deles foi publicado, em 1891, e os romances foram traduzidos para quase todos os idiomas. Centenas de atores encarnaram a dupla nos palcos, no rádio e nas telas; revis-tas e livros sobre o detetive são lançados todo ano; fã-clubes reúnem-se com regularidade. Infinitamente imitado, paro-diado e citado, Holmes já foi identificado como uma das três personalidades mais conhecidas do mundo ocidental, ao lado de Mickey Mouse e do Papai Noel.

Os treze contos que compõem A volta de Sherlock Holmes foram publicados entre outubro de 1903 e dezembro de 1904 pela Strand Magazine, periódico britânico que levou os casos e a figura de Holmes ao conhecimento do grande público. Sua primeira edição americana em livro foi lançada em fevereiro de 1905 por McClure, Philips & Co, com tiragem superior a 28 mil exemplares e ilustrações de Charles Raymond Mcau-ley. Já a primeira edição britânica foi publicada em março do

8

A volta de Sherlock Holmes

mesmo ano por George Newnes Ltd., com tiragem de 15 mil exemplares e ilustrações de Sidney Paget.

Analisando os recursos literários de Conan Doyle, temos uma narrativa que casa perfeitamente diálogo, descrição, ca-racterização e timing. A modéstia aparente de sua linguagem oculta um profundo reconhecimento da complexidade hu-mana. E repare-se como o autor é hábil em colocar o leitor en-tre seus dois grandes protagonistas, “a meio caminho”, como diz John le Carré: Holmes é genial, e o leitor nunca o alcançará (e talvez nem queira); mas nem por isso deve desanimar, pois é mais perspicaz que o dr. Watson…

A presente edição traz o texto integral e mais de 40 ilus-trações originais, incluindo as de Sidney Paget, o clássico ilustrador das histórias do grande detetive de Baker Street.

9

i. A casa vazia

Foi na primavera de 1894 que Londres inteira ficou em al-voroço, e a alta sociedade consternada, com o assassinato do Honourable Ronald Adair em circunstâncias extremamente inusitadas e inexplicáveis. O público já tomara conheci-mento dos detalhes do crime revelados na investigação poli-cial; muita coisa, porém, foi suprimida naquela ocasião, pois as razões para a acusação pareciam tão esmagadoramente fortes que não foi necessário apresentar todos os fatos. So-mente agora, passados quase dez anos, tenho permissão para fornecer os elos que faltavam para compor a totalidade da-quela notável cadeia. O crime foi interessante em si mesmo, mas para mim esse interesse não foi nada comparado às suas incríveis consequências, que me valeram o maior choque e surpresa que experimentei em minha aventurosa vida. Mesmo agora, após esse longo intervalo, percebo-me emo-cionado ao pensar nisso e sinto mais uma vez aquela súbita onda de alegria, assombro e incredulidade que submergiu por completo a minha mente. Que me seja permitido dizer, àqueles que mostraram algum interesse nos vislumbres que dei vez por outra dos pensamentos e ações de um homem extraordinário, que não devem me culpar se não partilhei com eles meu conhecimento, pois eu teria considerado de meu mais elementar dever fazê-lo, não estivesse impedido

10

A volta de Sherlock Holmes

por uma proibição taxativa de seus próprios lábios, a qual só foi suspensa no dia 3 do mês passado.

Pode-se imaginar que minha estreita intimidade com Sher-lock Holmes havia despertado em mim profundo interesse pelo crime, e que após o desaparecimento de Holmes nunca deixei de ler com atenção os vários problemas que se apresen-taram perante o público; mais de uma vez, cheguei mesmo a tentar, para minha própria satisfação, empregar seus méto-dos na solução desses casos, embora com medíocre sucesso. Nenhum, contudo, atraiu-me tanto quanto essa tragédia de Ronald Adair. Ao ler as provas apresentadas no inquérito, que conduziram a um veredicto de assassinato premeditado por parte de pessoa ou pessoas desconhecidas, compreendi com mais clareza que nunca a perda que a comunidade sofrera com a morte de Sherlock Holmes. Certos pontos naquele es-tranho caso, eu tinha certeza, o teriam atraído de maneira especial, e os esforços da polícia teriam sido suplementados, ou mais provavelmente antecipados, pela observação treinada e a mente alerta do primeiro agente criminal da Europa. O dia inteiro, enquanto fazia minha ronda, revirei o caso em minha mente, sem encontrar uma explicação sequer que me parecesse adequada. Correndo o risco de chover no molhado, vou recapitular os fatos tais como eram do conhecimento do público quando da conclusão do inquérito.

O Honourable Ronald Adair era o segundo filho do conde de Maynooth, na época governador de uma das colônias aus-tralianas. A condessa retornara da Austrália para se submeter a uma operação de catarata e estava morando com o filho

11

A casa vazia

Ronald e a filha Hilda em Park Lane, nº 427. O jovem frequen-tava a melhor sociedade e, até onde se sabe, não tinha inimi-gos nem vícios particulares. Havia sido noivo de Miss Edith Woodley, de Carstairs, mas o noivado fora rompido por mútuo consentimento alguns meses antes e não havia sinal de que algum sentimento profundo subsistisse. Quanto ao resto, o rapaz levava a vida num círculo estreito e convencional, pois seus hábitos eram tranquilos e sua natureza, pouco emotiva. No entanto, esse sereno jovem aristocrata é que foi surpreen-dido pela morte, da mais estranha e inesperada forma, entre as dez horas e as onze e vinte da noite de 30 de março de 1894.

Ronald Adair era um aficcionado das cartas – jogava regu-larmente, mas nunca fazia apostas que o pudessem prejudi-car. Era membro dos clubes de baralho Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Foi mostrado que no dia de sua morte, depois do jantar, havia jogado um rubber de whist neste último clube. Jogara ali também à tarde. Os testemunhos dos que haviam jogado com ele – Mr. Murray, Sir John Hardy e o co-ronel Moran – mostraram que o jogo fora whist e que as car-tas haviam se distribuído de maneira bastante equilibrada. Adair talvez tivesse perdido umas cinco libras, não mais. Era dono de uma fortuna considerável, e uma perda como essa não o poderia ter afetado de maneira alguma. Havia jogado praticamente todos os dias, num clube ou noutro, mas era um jogador cauteloso e geralmente deixava a mesa como vencedor. Os testemunhos revelaram que algumas semanas antes, em parceria com o coronel Moran, ele havia de fato ganhado numa noite nada menos que 420 libras de Godfrey

12

A volta de Sherlock Holmes

Milder e Lord Balmoral. Esta era sua história recente, tal como revelada no inquérito.

Na noite do crime, Adair voltou do clube exatamente às dez horas. Sua mãe e sua irmã haviam saído para visitar um parente. A criada declarou que o ouviu entrar na sala da frente no terceiro andar, que geralmente usava como sua sala de es-tar. Ela havia acendido a lareira, e, como esta fumegava, abrira a janela. Não se ouviu nenhum som saído daquele cômodo até onze e vinte, hora em que Lady Maynooth e a filha voltaram. Desejando dar boa-noite ao filho, ela tentou entrar na sala. Mas a porta estava trancada por dentro e suas batidas e gritos não tiveram resposta. Conseguiu-se ajuda e arrombou-se a porta. O infeliz rapaz foi encontrado caído no chão junto à mesa. Sua cabeça fora horrivelmente mutilada por uma bala dundum, mas nenhuma arma de qualquer tipo foi encontrada no aposento. Sobre a mesa viam-se duas notas de dez libras e mais dez libras e dezessete xelins em moedas de prata e de ouro, arrumadas em pequenas pilhas de valor variado. Havia também alguns números numa folha de papel, com os nomes de alguns amigos dos clubes ao lado, a partir do que se con-jecturou que, antes de morrer, o jovem tentava avaliar suas perdas ou ganhos no carteado.

Um exame minucioso das circunstâncias só serviu para tornar o caso mais complexo. Em primeiro lugar, não se con-seguiu entender por que o rapaz teria trancado a porta por dentro. Havia a possibilidade de que o assassino tivesse feito isso e depois escapado pela janela. Mas esta ficava a pelo me-nos seis metros do jardim e bem acima de um canteiro de

13

A casa vazia

açafrões em plena floração. Nem as flores nem a terra mos-travam qualquer sinal de terem sido incomodadas, nem havia quaisquer marcas na estreita faixa de grama que separava a casa da rua. Ao que tudo indicava, portanto, fora o próprio jovem quem trancara a porta. Mas como viera a morrer? Nin-guém poderia ter subido até a janela sem deixar rastros. Na hipótese de que um homem tivesse atirado através da janela, teria sido um tiro extraordinário para ser capaz de infligir um ferimento tão fatal. Por outro lado, Park Lane é uma via pública movimentada e há um ponto de carros de aluguel a menos de noventa metros da casa. Ninguém ouvira o disparo. Lá estava, no entanto, o homem morto, e lá estava a bala de re-vólver que explodira, como fazem balas com ogiva de chumbo, infligindo assim um ferimento que devia ter causado morte instantânea. Essas eram as circunstâncias do Mistério de Park Lane. A complicá-las ainda mais havia a total ausência de motivo, pois, como eu disse, não se conhecia um só inimigo do jovem Adair e não se fizera nenhuma tentativa de tirar o dinheiro ou outros objetos de valor da sala.

Revirei esses fatos na minha mente o dia inteiro na tenta-tiva de chegar a uma teoria capaz de conciliá-los e encontrar aquela linha de menor resistência que, nas palavras do meu pobre amigo, era o ponto de partida de toda investigação. Confesso que fiz pouco progresso. À tarde, perambulei pelo Parque e por volta das seis horas encontrei-me na esquina de Oxford Street com Park Lane. Um grupo de vadios na calçada, todos com os olhos fixos numa mesma janela, me fez voltar o olhar para a casa que eu fora ver. Um homem alto e magro,

14

A volta de Sherlock Holmes

com óculos escuros, que segundo minhas fortes suspeitas devia ser um detetive à paisana, expunha uma teoria de sua própria lavra, enquanto os demais se agrupavam à sua volta para ouvir. Aproximei-me dele o mais que pude, mas como suas observações me pareceram absurdas, voltei a me afastar, desgostoso. Ao fazê-lo, esbarrei num ancião deformado que estava atrás de mim e derrubei vários livros que ele carregava. Lembro-me de que, ao apanhá-los, observei o título de um deles, The Origin of Tree Worship, e tive a impressão de que o sujeito devia ser algum pobre bibliófilo que, por ofício ou hobby, colecionava volumes obscuros. Tentei me desculpar pelo acidente, mas ficou claro que aqueles livros que eu tão desafortunadamente maltratara eram objetos muito preciosos aos olhos do dono. Com um rosnado de irritação, ele deu meia- volta e vi suas costas encurvadas e suas costeletas brancas desaparecerem em meio à multidão.

Minha observação do nº 427 de Park Lane pouco contri-buiu para elucidar o problema em que eu estava interessado. A casa era separada da rua por uma mureta e uma grade, que não tinham no todo mais de um metro e meio de altura. Era muito fácil para qualquer um, portanto, entrar no jardim; a janela, contudo, era inteiramente inacessível, pois não havia nenhum cano d’água ou o que quer que fosse para ajudar o mais ágil dos homens a escalá-la. Mais intrigado que nunca, voltei sobre os meus passos para Kensington. Não fazia nem cinco minutos que estava em meu gabinete quando a criada entrou para dizer que alguém desejava me ver. Para meu pasmo, não era senão meu estranho colecionador de livros,

15

A casa vazia

com seu rosto murcho e esperto emergindo de uma moldura de cabelos brancos, e seus preciosos volumes, pelo menos uma dúzia deles, enfiados sob o braço direito.

“Está surpreso por me ver, senhor”, disse, numa voz estra-nha que mais parecia um grasnido.

Reconheci que estava. “Bem, tenho consciência, e quando por acaso o vi entrar

nesta casa, ao vir manquejando atrás do senhor, pensei com meus botões: vou entrar e fazer uma visita para esse gentil cavalheiro; vou lhe dizer que, se minhas maneiras foram um pouco ríspidas, foi sem intenção de magoá-lo e que lhe estou muito agradecido por apanhar meus livros.”

“Ora, não foi nada”, respondi. “Posso lhe perguntar como sabia quem eu era?”

“Bem, se não for muita liberdade, sou seu vizinho, pois te-nho minha lojinha na esquina de Church Street e estou muito feliz em vê-lo, com certeza. Talvez o senhor também seja um colecionador; aqui estão British Birds, Catulo e The Holy War – todos por uma pechincha. Com cinco volumes poderia encher exatamente aquela brecha na segunda prateleira. Dá impres-são de desarrumação, não acha?”

Virei a cabeça para olhar a estante atrás de mim. Quando a desvirei, Sherlock Holmes me sorria do outro lado da mesa do meu gabinete. Levantei-me, fitei-o durante alguns segun-dos em absoluto assombro, e em seguida parece que desmaiei pela primeira e última vez na minha vida. O que sei é que

16

A volta de Sherlock Holmes

uma névoa cinza girou diante dos meus olhos e quando ela se dissipou meu colarinho estava desabotoado e eu tinha nos lábios um ressaibo de conhaque. Holmes debruçava-se sobre minha cadeira, seu frasco na mão.

“Meu caro Watson”, disse a voz de que eu me lembrava tão bem, “devo-lhe mil desculpas. Não tinha ideia de que ficaria tão abalado.”

Agarrei-o pelo braço.

“Quando a desvirei, Sherlock Holmes me sorria do outro lado da mesa do meu gabinete.” [Sidney Paget, Strand Magazine, 1903]

17

A casa vazia

“Holmes!” exclamei. “É realmente você? É mesmo possível que esteja vivo? Que tenha conseguido escalar aquele abismo medonho?”

“Um momento”, atalhou-me. “Tem certeza de que está em condições de conversar? Você recebeu um grave choque com minha reaparição desnecessariamente dramática.”

“Estou bem, mas realmente, Holmes, mal posso acreditar no que vejo. Céus! Pensar que você – você, entre todos os homens – está aqui no meu gabinete!” Agarrei-o de novo pela manga e senti o braço fino, vigoroso, sob o tecido. “Bem, um espírito você certamente não é”, disse eu. “Meu caro amigo, estou ra-diante por vê-lo. Sente-se e conte-me como escapou com vida daquele abismo pavoroso.”

Ele se sentou diante de mim e acendeu um cigarro à sua maneira antiga, displicente. Vestia a sobrecasaca andrajosa do comerciante de livros, mas o resto desse indivíduo, cabelos brancos e livros velhos, amontoava-se sobre a mesa. Holmes parecia ainda mais magro e seus traços mais bem-definidos que nos velhos tempos, mas sua face aquilina exibia um branco fosco que me disse que não vinha levando uma vida saudável ultimamente.

“Estou feliz por poder me esticar, Watson”, disse ele. “Não é brincadeira um homem alto subtrair uns trinta centímetros de sua estatura durante horas a fio. Agora, meu caro compa-nheiro, no que diz respeito a explicações, temos, se posso pedir sua colaboração, uma longa e perigosa noite de trabalho à nossa frente. Talvez seja melhor que eu lhe faça um relato de toda a situação quando esse trabalho terminar.”