A Relação Médico-Paciente na Obra Hipocrática: Medicina ... · Resumo: A origem da medicina...

15
1 A Relação Médico-Paciente na Obra Hipocrática: Medicina Antiga; Ares, Líquidos e Locais; Epidemia I e III; Preceitos. 1 The Medical-Patient Relationship in the Hippocratic Works: Ancient Medicine; Airs, Waters, and Places; Epidemy I and III; Precepts. La Relación Médico-Paciente en la Obra Hipocrática: La Medicina Antigua; Aires, Aguas y Lugares; Epidemia I y III; Preceptos. Kaio Cezar Gomes PESSIM 2 Hélio ANGOTTI-NETO 3 Abstract: The origin of Ocidental Medicine occurs in Ancient Greece with the Hippocratic School, when the technical and ethical principles for healthcare that still endure were created. Our objective is to correlate Hippocratic original excerpts on medical ethics with contemporary professional and ethic parameters, showing the link between the origin of western medicine and its contemporary practice. The material of this work derives from the first volume of Hippocratic writings form the Loeb Classical Library, published by Harvard, and compared with Spanish and Portuguese translations together with the original Greek excerpts. The original excerpts from the Hippocratic writings were selected according to the relation observed with medical-patient relationship and contemporary aspects professionalism. The Hippocratic work, here exposed, shows professional and ethical aspects that remain valid and comprehensible according to contemporary parameters observed in medical practice, which can be seen in ethical works like the Medical Code of Ethics, from the Federal Council of Medicine, in Brazil. Resumo: A origem da medicina ocidental dá-se na antiga Grécia com a escola hipocrática, quando foram formulados os princípios técnicos e éticos básicos da prática médica que perdurou até a época contemporânea. Nosso objetivo é correlacionar trechos originais da obra hipocrática a preceitos éticos e profissionais contemporâneos, demonstrando a ligação entre a origem da medicina ocidental e sua prática contemporânea. O trabalho parte da seleção dos livros hipocráticos contidos no primeiro volume dedicado a Hipócrates da 1 Artigo apresentado no IV Seminário UNESC de Humanidades Médicas. 2 Acadêmico do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo. E-Mail: [email protected] 3 Médico, Professor e Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo. E-Mail: [email protected]

Transcript of A Relação Médico-Paciente na Obra Hipocrática: Medicina ... · Resumo: A origem da medicina...

  • 1

    A Relao Mdico-Paciente na Obra Hipocrtica: Medicina Antiga;

    Ares, Lquidos e Locais; Epidemia I e III; Preceitos.1 The Medical-Patient Relationship in the Hippocratic Works: Ancient

    Medicine; Airs, Waters, and Places; Epidemy I and III; Precepts. La Relacin Mdico-Paciente en la Obra Hipocrtica: La Medicina

    Antigua; Aires, Aguas y Lugares; Epidemia I y III; Preceptos. Kaio Cezar Gomes PESSIM2

    Hlio ANGOTTI-NETO3

    Abstract: The origin of Ocidental Medicine occurs in Ancient Greece with the Hippocratic School, when the technical and ethical principles for healthcare that still endure were created. Our objective is to correlate Hippocratic original excerpts on medical ethics with contemporary professional and ethic parameters, showing the link between the origin of western medicine and its contemporary practice. The material of this work derives from the first volume of Hippocratic writings form the Loeb Classical Library, published by Harvard, and compared with Spanish and Portuguese translations together with the original Greek excerpts. The original excerpts from the Hippocratic writings were selected according to the relation observed with medical-patient relationship and contemporary aspects professionalism. The Hippocratic work, here exposed, shows professional and ethical aspects that remain valid and comprehensible according to contemporary parameters observed in medical practice, which can be seen in ethical works like the Medical Code of Ethics, from the Federal Council of Medicine, in Brazil. Resumo: A origem da medicina ocidental d-se na antiga Grcia com a escola hipocrtica, quando foram formulados os princpios tcnicos e ticos bsicos da prtica mdica que perdurou at a poca contempornea. Nosso objetivo correlacionar trechos originais da obra hipocrtica a preceitos ticos e profissionais contemporneos, demonstrando a ligao entre a origem da medicina ocidental e sua prtica contempornea. O trabalho parte da seleo dos livros hipocrticos contidos no primeiro volume dedicado a Hipcrates da

    1 Artigo apresentado no IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas. 2 Acadmico do Curso de Medicina do Centro Universitrio do Esprito Santo. E-Mail: [email protected] 3 Mdico, Professor e Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitrio do Esprito Santo. E-Mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    2

    Biblioteca de Clssicos Loeb, publicada pela editora da Universidade de Harvard, comparada com tradues espanholas e portuguesas junto com a forma grega original. Os trechos originais das obras hipocrticas foram selecionados conforme relao com os temas desejados, a saber: Relao Mdico-Paciente e Profissionalismo. A obra hipocrtica, exemplificada por alguns livros aqui pesquisados, demonstra aspectos profissionais de carter tico ainda vlidos e compreensveis em acordo com parmetros observveis na prtica contempornea e em obras como o Cdigo de tica Mdica brasileiro. Keywords: Hippocrates Medical-Patient Relationship Ancient Medicine Precepts Epidemy Air, Water and Places. Palabras chave: Hipcrates Relao Mdico-Paciente Medicina Antiga Preceitos Epidemia Ares, Lquidos e Locais.

    RECEBIDO: 01.09.2016 APROVADO: 18.10.2016

    *** I. Introduo A origem da medicina ocidental d-se na antiga Grcia com a escola hipocrtica, quando foram formulados princpios tcnicos e ticos bsicos da prtica mdica que perdurou at a poca contempornea. No Brasil, e em todo o mundo, so muitos os crticos da medicina hipocrtica, sendo os seus defensores considerados paternalistas e com uma conduta incompatvel com a atualidade. Entretanto, muito pouco se pesquisa sobre os escritos hipocrticos originais, e preconceitos infundados podem ser tomados por verdade sem que se busque nos textos originais e se reflita sobre o pensamento hipocrtico, a realidade contempornea ao autor e as implicaes ticas e morais que o seu pensamento compartilha com a boa prtica mdica na atualidade. O mtodo deste trabalho inclui a pesquisa dos textos originais e a comparao com preceitos atuais de excelncia tica e profissional da prtica mdica que constam em documentos oficiais ligados tica Mdica, pesquisa e educao. Atravs da leitura dos textos hipocrticos e do conhecimento da sociedade grega clssica, obtm-se a melhor fonte de informaes. Pode-se observar a forma como o pensamento hipocrtico exerceu influncia sobre a medicina grega antiga, assim como o esforo retrico que influenciou os

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    3

    mdicos posteriores de acordo com a sua viso da melhor prtica mdica e sua hierarquia de virtudes, prticas e valores. II. Medicina Antiga

    Qualquer pessoa que coloque isso [mtodos e descobertas feitas ao longo do tempo] de lado e rejeite todos esses meios, tentando conduzir uma pesquisa de qualquer outra forma ou por meios diferentes, e afirme que descobriu alguma coisa, ser vtima de engano.4

    Na prtica atual da medicina o mdico constantemente bombardeado por novidades, sejam descobertas cientficas, sejam novas modalidades teraputicas. Essas informaes se propagam em grande velocidade, chegando ao mdico por meio de revistas, noticirios ou dvidas dos pacientes. Entretanto, o bom mdico deve possuir os meios adequados para refletir sobre essas informaes e guiar a sua boa prtica sem se influenciar pela moda de pensamento, pautando-se em evidncias. Assim como nos tempos hipocrticos, deve o mdico sempre estar atualizado e conhecer as bases tcnicas e cientficas de sua base profissional. Tambm cabe

    4 II. , ,

    , ,

    .

    , , ,

    ,

    , .

    . But medicine has long had all its means to hand, and has discovered both a principle and a method, through which the discoveries made during a long period are many and excellent, while full discovery will be made, if the inquirer be competent, conduct his researches with knowledge of the discoveries already made, and make them his startingpoint. But anyone who, casting aside and rejecting all these means, attempts to conduct research in any other way or after another fashion, and asserts that he has found out anything, is and has been the victim of deception. His assertion is impossible; the causes of its impossibility I will endeavour to expound by a statement and exposition of what the art is. HIPPOCRATES. Ancient Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath. Precepts. Nutriment. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library 147. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923, p. 14-15.

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    4

    ao mdico contemporneo, conforme princpio fundamental expresso no Cdigo de tica Mdica,

    (...) aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso cientfico em benefcio do paciente.5

    O conceito atual de educao permanente, presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Graduao em Medicina, tambm preconiza, desde o primeiro ano do curso de medicina, o mesmo preceito que a orientao de Hipcrates.

    Aprender com autonomia e com a percepo da necessidade da educao continuada, a partir da mediao dos professores e profissionais do Sistema nico de Sade, desde o primeiro ano do curso.6

    Alm disso, nas normas para pesquisa cientfica no Brasil, necessrio que o pesquisador trabalhe baseado no que h de mais atual no campo da cincia, e utilizando um mtodo cientfico rigoroso e evitando agir com nvel intolervel de incerteza.

    III.2 - As pesquisas, em qualquer rea do conhecimento envolvendo seres humanos, devero observar as seguintes exigncias: a) ser adequada aos princpios cientficos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas; b) estar fundamentada em fatos cientficos, experimentao prvia e/ou pressupostos adequados rea especfica da pesquisa;7

    Ainda na obra Medicina Antiga l-se que:

    5 NEVES, Nedy. A Medicina para alm das norma: Reflexes sobre o novo Cdigo de tica Mdica. Braslia: Conselho Federal de Medicina, 2010, p.260. 6 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DO CURSO DE GRADUAO EM MEDICINA, Ministrio da Educao, Braslia, 2014, p. 3. 7 MINISTRIO DA SADE / CONSELHO NACIONAL DE SADE. RESOLUO N 466, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012. Internet, http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

    http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    5

    particularmente necessrio, na minha opinio, para o que discute esta arte, falar de coisas familiares s pessoas comuns. Pois o assunto de discusso simplesmente e somente os sofrimentos dessas mesmas pessoas comuns. Para que aprendam sozinhos como os seus prprios sofrimentos surgem e cessam, e as razes pelas quais eles pioram ou melhoram, no uma tarefa fcil para pessoas comuns. Porm, quando estas coisas so reveladas e demostradas por outros, tornam-se de mais simples compreenso.8

    Hipcrates demostra que, para o bom relacionamento mdico-paciente, fundamental que o mdico esteja apto a conversar em linguagem familiar, isto , inteligvel, e que o doente possa compreender seu estado de sade. Inferimos que o uso de termos tcnicos, embora demostre conhecimento terico da parte do mdico, seja problemtico no tocante capacidade comunicativa com o paciente. Este trecho ressalta a disposio em promover o aprendizado do paciente mediante efetiva comunicao. Hoje, considerada obrigatria a comunicao com o paciente em linguagem acessvel, para que o mesmo possa exercer sua autonomia de forma eficaz, o que um importante princpio biotico contemporneo.9

    8 .

    .

    . ,

    ,

    , .

    . But it is particularly necessary, in my opinion, for one who discusses this art to discuss things familiar to ordinary folk. For the subject of inquiry and discussion is simply and solely the sufferings of these same ordinary folk when they are sick or in pain. Now to learn by themselves how their own sufferings come about and cease, and the reasons why they get worse or better, is not an easy task for ordinary folk; but when these things have been discovered and are set forth by another, it is simple. HIPPOCRATES. Op. cit., p. 14-17. 9 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics 7th edition. New York; Oxford: Oxford University Press, 2013; BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princpios de tica Biomdica 2 edio. So Paulo: Loyola, 2011.

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    6

    Nas normas de pesquisa cientfica do Brasil, o Conselho Nacional de Sade define tambm, por exemplo, que a comunicao com o paciente por meio do Termo de Consetimento Livre Esclarecido deve ser feita de forma acessvel.

    IV.1 - A etapa inicial do Processo de Consentimento Livre e Esclarecido a do esclarecimento ao convidado a participar da pesquisa, ocasio em que o pesquisador, ou pessoa por ele delegada e sob sua responsabilidade, dever: (...) b) prestar informaes em linguagem clara e acessvel, utilizando- se das estratgias mais apropriadas cultura, faixa etria, condio socioeconmica e autonomia dos convidados a participar da pesquisa.10

    Assim, observa-se desde a antiguidade, a preocupao na comunicao entre mdicos e leigos. O trecho tambm trata da educao em sade destinada ao paciente, quando ressalta a importncia de informar ao paciente sobre as causas, o prognstico, possveis tratamentos e fatores que podem piorar a condio de sade. O objetivo tornar o paciente apto a cuidar da prpria sade ou de colaborar ativamente com seu mdico. A educao do paciente em sade tem sua importncia ressaltada, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Graduao em Medicina no Brasil onde, junto com assistncia, educao e gesto em sade, a socializao do conhecimento integra o escopo de ao desejado em sociedade em relao ao mdico.

    Art. 19. A rea de Competncia de Educao em Sade estrutura-se em 3 (trs) aes-chave: I - Identificao de Necessidades de Aprendizagem Individual e Coletiva; II - Promoo da Construo e Socializao do Conhecimento; e

    10 MINISTRIO DA SADE / CONSELHO NACIONAL DE SADE. RESOLUO N 466, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012. Internet, http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

    http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    7

    III - Promoo do Pensamento Cientfico e Crtico e Apoio Produo de Novos Conhecimentos.11

    III. Ares, Lquidos e Locais

    (...) Conforme o tempo e as estaes do ano, ele ser capaz de dizer que epidemias vo atacar a cidade seja no vero ou no inverno, bem como aquelas doenas peculiares a certos indivduos que provavelmente adoecero por causa dessas mudanas climticas. (...) Atravs destas consideraes e aprendendo as estaes de antemo, ele [o mdico] ter pleno conhecimento de cada caso particular, sucesso em garantir a sade e maiores triunfos na prtica de sua arte.12

    11 MINISTRIO DA EDUCAO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO CMARA DE EDUCAO SUPERIOR. RESOLUO N 3, DE 20 DE JUNHO DE 2014. Internet, http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf 12 II. . ,

    , , , , ,

    ,

    ,

    ,

    ,

    .

    1 , ,

    .

    . , , ,

    , .

    26 . Using this evidence he must examine the several problems that arise. For if a physician know these things well, by preference all of them, but at any rate most, he will not, on arrival at a town with which he is unfamiliar, be ignorant of the local diseases, or of the nature of those that commonly prevail; so that he will not be at a loss in the treatment of diseases, or make blunders, as is likely to be the case if he have not this knowledge before he consider his several problems. As time and the year passes he will be able to tell what epidemic diseases will attack the city either in summer or in winter, as well as those peculiar to the individual which are likely to occur through change in mode of life. For knowing the changes of the seasons, and the risings and settings of the stars, with the circumstances of each of these phenomena, he will know beforehand the nature of the year that is coming. Through these considerations and by learning the times beforehand, he will have full knowledge of each particular case, will succeed best in securing health, and will achieve the greatest triumphs in the practice of his art. If it be thought that all this belongs to meteorology, he will find out,

    http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdfhttp://www.loebclassics.com/view/hippocrates_cos-airs_waters_places/1923/pb_LCL147.73.xml?result=1&rskey=tTt97X#note_LCL147_72_1

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    8

    Um preceito atual bsico para a Medicina de Famlia e Comunidade do Brasil encontrado no livro Ares, guas e Lugares quando o autor ensina aos seus aprendizes que o mdico deve ter como base a territorialidade, sendo essenciais os conhecimentos do ambiente e o perfil epidemiolgico dos indivduos que habitam no local de trabalho do mdico. Considerava-se, e ainda se considera esse conhecimento fundamental para o sucesso da arte mdica. Demonstra-se que o mdico no deve se prender apenas realidade do consultrio ou limitar-se ao conhecimento terico. O mdico no pode ignorar as peculiaridades locais, mas deve conhecer a fundo a realidade da sua comunidade e atuar de forma positiva atravs do conhecimento epidemiolgico, prevenindo e promovendo a sade. Tal concepo vai ao encontro dos princpios expressos no Cdigo de tica Mdica, que fomentam aes de deteco e preveno nos fatores ambientais determinantes da sade individual e coletiva.

    O mdico comunicar s autoridades competentes quaisquer formas de deteriorao do ecossistema, prejudiciais sade e vida.13

    IV. Epidemias I-III

    O paciente, na viso de Hipcrates, chamado a ser um cooperador junto ao mdico, sendo fundamental um bom relacionamento mdico-paciente no combate s doenas. Sem o correto estabelecimento dessa relao, o sucesso teraputico torna-se difcil, pois sem a adeso e confiana do paciente, por melhor que seja o tratamento ou o conhecimento terico do mdico, os seus esforos podero ser incuos. L-se que O mdico um servo da arte. O paciente deve cooperar com o mdico no combate doena.14

    on second thoughts, that the contribution of astronomy to medicine is not a very small one but a very great one indeed. HIPPOCRATES. Op. cit., p. 72-73. 13 Cdigo de tica Mdica: Resoluo CFM n 1931, de 17 de setembro de 2009, p.34. 14 ,

    15 . HIPPOCRATES. Op. cit., p. 164-165.

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    9

    Uma viso bem diferente da realidade antiga dos escritos hipocrticos tem sido espalhada no ambiente acadmico da Biotica ao acusarem a medicina tradicional como essencialmente autoritria, evocando uma imagem falsa na qual o mdico assume sozinho toda a responsabilidade e autoridade no tratamento do paciente.15 V. Preceitos

    O seguinte texto ressalta a humildade do praticante da arte mdica subordinada ao grande objetivo da relao teraputica: No hesite em consultar a leigos, se parecer provvel que isso resulte em qualquer melhoria no tratamento.16 O mdico deve estar aberto a todas as informaes possveis visando sempre o bem do paciente. O autor da obra hipocrtica no considera o mdico como o nico detentor de conhecimento, e abre espao para a realizao de algo que hoje tido como indispensvel para a boa prtica mdica: a interdisciplinaridade. Tal disposio em reconhecer o valor do conhecimento alheio ressaltada pelo Ministrio da Educao, que orienta o mdico a respeitar o conhecimento prvio de seus pacientes e da comunidade.

    Identificao das necessidades de aprendizagem prprias, das pessoas sob seus cuidados e responsveis, dos cuidadores, dos familiares, da equipe multiprofissional de trabalho, de grupos sociais ou da

    15 SILVA, F. M.; NUNES, R. Caso belga de eutansia em crianas: soluo ou problema? Revista Biotica 23(3), 2015, p.475-484. 16 2,

    .

    , ,

    .

    . ,

    . ,

    .

    ,

    . Do not hesitate to inquire of laymen, if thereby there seems likely to result any improvement in treatment. For so I think the whole art has been set forth, by observing some part of the final end in each of many particulars, and then combining all into a single whole. So one must pay attention to generalities in incidents, with help and quietness rather than with professions and the excuses that accompany ill-success. HIPPOCRATES. Op. cit., p. 314-315

    http://www.loebclassics.com/view/hippocrates_cos-precepts/1923/pb_LCL147.315.xml?result=1&rskey=aw51Fv#note_LCL147_314_2

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    10

    comunidade, a partir de uma situao significativa e respeitando o conhecimento prvio e o contexto sociocultural de cada um.17

    A disposio em aplicar prtica mdica os conhecimentos de diferentes grupos e ofcios pode ser observada como forte tendncia nos dias atuais como, por exemplo, na medicina integrativa, onde so reconhecidos diversos saberes e tcnicas oriundas da medicina alternativa e complementar.18 A valorizao da participao de leigos no tratamento e de suas observaes factuais pode contribuir tambm com uma terapia mais indvidualizada, isto , centrada no paciente.19 O seguinte trecho ecoa preocupaes bem atuais em relao aos conflitos de interesse e possibilidade de mercantilizao da medicina:

    (...) Se voc comear a consulta discutindo pagamentos, ou voc causar a impresso de que ir embora e deixar o paciente se nenhum acordo for alcanado, ou causar a impresso de que voc ser negligente com o paciente e no o tratar. (...) Portanto, no fique ansioso sobre acertar sua remunerao. Considero que essa preocupao poder ser prejudicial ao paciente aflito e, em especial, se a doena aguda. Pois a rapidez com que algumas doenas evoluem, no oferecendo oportunidade para voltar atrs, motiva o bom mdico a no procurar em primeiro lugar o lucro, mas sim, uma boa reputao. Portanto, melhor cobrar (exortar) um paciente que voc salvou do que extorquir dinheiro daqueles que esto s portas da morte.20

    17 MINISTRIO DA EDUCAO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO CMARA DE EDUCAO SUPERIOR. RESOLUO N 3, DE 20 DE JUNHO DE 2014. Internet, http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf 18 KLIGER, Benjamin; LEE, Roberta. Integrative Medicine: Principles for Practice. New York: McGraw-Hill Education, 2004. 19 STEWART, Moira; BROWN, Judith Belle; WESTON, W. Wayne; MCWHINNEY, Ian R.; MCWILLIAM, Carol L.; FREEMAN, Thomas R. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o mtodo clnico. So Paulo: ARTMED, 2010. 20

    , .

    ,

    http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    11

    Demonstra, desde a antiguidade, a preocupao do mdico em estabelecer uma hierarquia onde o bem do paciente ocupa lugar de destaque e gera, consequentemente, a percepo da honra do mdico envolvido na terapia. Esse preceito guarda harmonia com os princpios fundamentais do Cdigo de tica Mdica que estabelece como dever do mdico zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho tico da Medicina bem como pelo prestgio e bom conceito da profisso: IX - A Medicina no pode, em nenhuma circunstncia ou forma, ser exercida como comrcio.21 Em situaes de risco iminente vida do paciente, o mdico no deve submeter a sua prtica ao preo ou discusso do mesmo, exercendo virtudes como a beneficncia e a caridade e tendo como objetivo a sade e o bem estar do paciente.

    Exorto-vos a no serem cruis, mas que considerem cuidadosamente os recursos de cada paciente. Oferea, s vezes, seus servios mesmo sem receber algo em troca, lembrando-se de um bom ato prvio ou da gratificao do momento. E, se h oportunidade de servir aquele que estranho e encontra-se em dificuldades financeiras, oferea assistncia integral. Pois onde h filantropia, h tambm amor arte. Pois alguns pacientes, embora conscientes de que a sua condio de sade grave, recuperaro a sua sade

    , .

    . This piece of advice also will need our consideration, as it contributes somewhat to the whole. For should you begin by discussing fees, you will suggest to the patient either that you will go away and leave him if no agreement be reached, or that you will neglect him and not prescribe any immediate treatment. So one must not be anxious about fixing a fee. For I consider such a worry to be harmful to a troubled patient, particularly if the disease be acute. For the quickness of the disease, offering no opportunity for turning back, spurs on the good physician not to seek his profit but rather to lay hold on reputation. Therefore it is better to reproach a patient you have saved than to extort money from those who are at deaths door. HIPPOCRATES. Op. cit., p. 316-317. 21 NEVES, Nedy. Op. cit., p. 260.

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    12

    simplesmente atravs do seu contentamento com a bondade do mdico. (...)22

    Novamente, preconiza-se a boa prtica mdica em detrimento do ganho financeiro diante de pessoas necessitadas. Hipcrates sugere que o mdico seja caridoso e, como um servo da Medicina, oferea cuidados aos pacientes carentes. O efeito placebo do mdico tambm foi observado pelo autor hipocrtico, evidenciando a importncia do cuidado oferecido e da qualidade da relao mdico-paciente na melhora do doente, muitas vezes at mesmo independente das condutas tcnicas tomadas pelo profissional.23

    Se deixados a si mesmos, os pacientes afundar-se-o em sua condio dolorosa e partiro dessa vida aps desistir de lutar. Mas aquele que tomou o paciente pela mo, mostrando as descobertas da arte enquanto respeita a natureza sem buscar alter-la, ir afastar a depresso e a insegurana do momento. 24

    22 ,

    , .

    ,

    , .

    , , .

    , , ,

    . I urge you not to be too unkind, but to consider carefully your patients superabundance or means. Sometimes give your services for nothing, calling to mind a previous benefaction or present satisfaction. And if there be an opportunity of serving one who is a stranger in financial straits, give full assistance to all such. For where there is love of man, there is also love of the art. For some patients, though conscious that their condition is perilous, recover their health simply through their contentment with the goodness of the physician. And it is well to superintend the sick to make them well, to care for the healthy to keep them well, but also to care for ones own self, so as to observe what is seemly. HIPPOCRATES. Op. cit., p. 318-319. 23 BENEDETTI, Fabrizio. Placebo and the new physiology of the Doctor-Patient Relationship. Physiology Review, vol 93, 2013, p.1207-1246. 24 ,

    ,

    .

    . . .

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    13

    O momento em que o mdico perde a perspectiva de curar o paciente tambm tratado como um momento para a atividade mdica acontecer. O bom mdico deve estar preparado para atuar da melhor forma possvel nesses casos, proporcionando conforto e alvio ao paciente mesmo que a cura no seja uma opo. Tal prtica tem sido valorizada atualmente nos cuidados paliativos de qualidade e na prtica da ortotansia, alm do auxlio oferecido famlia no momento do luto. O Cdigo de tica Mdica prope que, nas situaes clnicas irreversveis e terminais, o mdico evitar a realizao de procedimentos diagnsticos e teraputicos desnecessrios e propiciar aos pacientes sob sua ateno todos os cuidados paliativos apropriados.

    XXII- Nas situaes clnicas irreversveis e terminais, o mdico evitar a realizao de procedimentos diagnsticos e teraputicos desnecessrios e propiciar aos pacientes sob sua ateno todos os cuidados

    paliativos apropriados.25

    Tambm se preconiza que o mdico no deve abandonar o paciente que j no tem esperanas de cura, permanecendo ao seu lado para prestar alvio, conforto e respeito at ao fim.26

    Nos casos de doena incurvel e terminal, deve o mdico oferecer todos os cuidados paliativos disponveis sem empreender aes diagnsticas ou teraputicas inteis ou obstinadas, levando sempre em

    , , ,

    . With all these things it will appear strong evidence for the reality of the art if a physician, while skilfully treating the patient, does not refrain from exhortations not to worry in mind in the eagerness to reach the hour of recovery. For we physicians take the lead in what is necessary for health. And if he be under orders the patient will not go far astray. For left to themselves patients sink through their painful condition, give up the struggle and depart this life. But he who has taken the sick man in hand, if he display the discoveries of the art, preserving nature, not trying to alter it, will sweep away the present depression or the distrust of the moment. HIPPOCRATES. Op. cit., p. 324-325. 25 NEVES, Nedy. Op. cit., p. 261. 26 Ibid., p. 266.

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    14

    considerao a vontade expressa do paciente ou, na sua

    impossibilidade, a de seu representante legal.27

    Concluso A leitura da obra Hipocrtica contribui para a compreenso de muitos princpios e regras ticas contemporneas, j que possvel encontrar grandes similaridades entre a medicina antiga e a medicina hoje praticada em seus aspectos essenciais morais. Para os pesquisadores, fica evidente que o resgate cultural das razes hipocrticas da medicina hipocrtica em muito pode contribuir para a boa prtica mdica, pautando-a em virtudes essenciais ao relacionamento mdico-paciente e em cuidados centrados no paciente. A compreenso do passado da medicina um importante exemplo educativo para as atuais geraes de mdicos e acadmicos e oferece um modelo tico adequado desde que corretamente contextualizado e utilizado. Referncias BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princpios de tica Biomdica 2 edio. So

    Paulo: Loyola, 2011. BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics 7th edition.

    New York; Oxford: Oxford University Press, 2013 BENEDETTI, Fabrizio. Placebo and the new physiology of the Doctor-Patient

    Relationship. In: Physiology Review, vol 93, 2013, p.1207-1246. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DO CURSO DE GRADUAO EM

    MEDICINA, Ministrio da Educao, Braslia, 2014. HIPPOCRATES. Ancient Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath. Precepts.

    Nutriment. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library 147. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923.

    KLIGER, Benjamin; LEE, Roberta. Integrative Medicine: Principles for Practice. New York: McGraw-Hill Education, 2004.

    MINISTRIO DA EDUCAO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO CMARA DE EDUCAO SUPERIOR. RESOLUO N 3, DE 20 DE JUNHO DE 2014. Internet, http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdf

    MINISTRIO DA SADE - CONSELHO NACIONAL DE SADE. RESOLUO N 466, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012. Internet, http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

    27 Ibid., p. 267.

    http://www.fmb.unesp.br/Home/Graduacao/resolucao-dcn-2014.pdfhttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

  • ANGOTTI NETO, Hlio (org.). Mirabilia Medicin 7 (2016/2).

    IV UNESC Seminar of Medical Humanities IV Seminrio UNESC de Humanidades Mdicas

    Jul-Dez 2016/ISSN 1676-5818

    15

    NEVES, Nedy. A Medicina para alm das normas: Reflexes sobre o novo Cdigo de tica Mdica. Braslia: Conselho Federal de Medicina, 2010.

    SILVA, F. M.; NUNES, R. Caso belga de eutansia em crianas: soluo ou problema? In: Revista Biotica 23(3), 2015, p.475-484.

    STEWART, Moira; BROWN, Judith Belle; WESTON, W. Wayne; MCWHINNEY, Ian R.; MCWILLIAM, Carol L.; FREEMAN, Thomas R. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o mtodo clnico. So Paulo: ARTMED, 2010.